jania saldanha - a mentalidade algargada

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A “MENTALIDADE ALARGADA” DA JUSTIÇA (TÊMIS) PARA COMPREENDER A TRANSNACIONALIZAÇÃO DO DIREITO (MARCO PÓLO) NO ESFORÇO DE CONSTRUIR O COSMOPOLITISMO (BARÃO NAS ÁRVORES) JÂNIA MARIA LOPES SALDANHA * “…E como começo de caminho/Quero a multiplici- dade/Onde cada homem é sozinho/A casa da humani- dade…”Tom Zé e Ana Carolina “Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos. Juca Sabão, In: Mia Couto. Um rio chamado tempo. Uma casa chamada terra. PAULO MERÊA E GUILHERME BRAGA DA CRUZ 347 BFD 83 (2007), p. 347-382 * Este texto foi apresentado em Palestra proferida junto ao Mestrado de Filoso- fia do Direito, da Universidade de Coimbra, no dia 11.12.2007.Trata-se de resultado parcial de duas pesquisas interligadas. A primeira, que se realiza na UNISINOS e que se intitula “A concretização dos direitos humanos na jurisprudência brasileira sob a ótica do constitucionalismo e da internacionalização do Direito: O fenômeno da recepção e da fertilização recíproca”. A segunda, junto a Ufsm e que se denomina: “O sistema autônomo de solução de controvérsias do MERCOSUL e as Cortes Supremas de seus países: Direitos Humanos e perspectivas para a consolidação da cida- dania”, esta última sob os auspícios do CNPQ.

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A “MENTALIDADE ALARGADA” DA JUSTIÇA (TÊMIS)PARA COMPREENDER A TRANSNACIONALIZAÇÃODO DIREITO (MARCO PÓLO)NO ESFORÇO DE CONSTRUIR O COSMOPOLITISMO(BARÃO NAS ÁRVORES)

JÂNIA MARIA LOPES SALDANHA*

“…E como começo de caminho/Quero a multiplici-dade/Onde cada homem é sozinho/A casa da humani-dade…”Tom Zé e Ana Carolina

“Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu debandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dosmortos. Juca Sabão, In: Mia Couto. Um rio chamado tempo.Uma casa chamada terra.

PAULO MERÊA E GUILHERME BRAGA DA CRUZ 347

BFD 83 (2007), p. 347-382

* Este texto foi apresentado em Palestra proferida junto ao Mestrado de Filoso-fia do Direito, da Universidade de Coimbra, no dia 11.12.2007.Trata-se de resultadoparcial de duas pesquisas interligadas.A primeira, que se realiza na UNISINOS e quese intitula “A concretização dos direitos humanos na jurisprudência brasileira sob a ótica do constitucionalismo e da internacionalização do Direito: O fenômeno darecepção e da fertilização recíproca”. A segunda, junto a Ufsm e que se denomina:“O sistema autônomo de solução de controvérsias do MERCOSUL e as CortesSupremas de seus países: Direitos Humanos e perspectivas para a consolidação da cida-dania”, esta última sob os auspícios do CNPQ.

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INTRODUÇÃO

A pretensão de compreender o cosmopolitismo neste texto, a partirda relação entre Têmis, Marco Pólo e o Barão Cosme da obra de ÍtaloCalvino,1 responde, por um lado, à exigência da construção de uma novagramática para que se possa entender a Justiça e a jurisdição no vastocampo do fenômeno da transnacionalização do Direito. E, por outro,para mostrar que a extensão dos domínios desse último extrapola a visãomoderna de sua produção, linear e piramidal, restrita ao âmbito dos Esta-dos nacionais. Para o leitor, ao primeiro olhar, talvez seja incongruenteestabelecer estreita relação entre Têmis, do mundo grego e mítico,MarcoPólo, do mundo medieval e real e Barão Cosme de Rondó, do mundoliterário e contemporâneo.

Entretanto, a metáfora pode ser bem-vinda na medida em que sereconheça a necessidade de colocar Têmis (a Justiça) no lugar onde sem-pre deveria ter estado, ou seja, como o poder (estatal ou não) caracteri-zado por aquilo que se pode denominar, com Kant, de “mentalidadealargada”,2 humanizando-a e retirando-lhe do espaço mítico, trazendo--a para o mundo dos homens.

Enquanto que Marco Pólo, como homem e tendo se tornado umafigura emblemática, suplantou os limites das fronteiras e ganhou o mundo.Essa tem sido e ainda é, de certo modo, a condição do Direito da atua-lidade. Esse acontecimento, tal como para o sucesso do viajante, exigenovas gramáticas e a compreensão de que as relações humanas, comopara Marco Pólo, têm ocorrido na circularidade.

Tais relações, no entanto, têm passado da geometria do círculo paraa geometria da rede. Para explicar esse fenômeno que se constitui nodesenho do cosmopolitismo, escolheu-se a figura do Barão Cosme comoaquela que dá sentido material à ânsia atual pela sua concretização.O Barão, tendo decidido passar o resto de seus dias vivendo sobre asárvores, desenvolveu relações complexas e em rede com toda sorte deseres vivos que pelo seu caminho — suspenso — passaram. E ao fazê-lofoi desafiado pelo exercício constante da tolerância e da comity3 em rede.

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1 CALVINO, Ítalo. O barão nas árvores. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.2 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa

da Moeda, 1998.3 Allard e Garapon retiram essa expressão da língua inglesa, dizendo que signi-

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Ítalo Calvino, autor de tão fascinante narrativa, conseguiu reunir emseu protagonista a qualidade de obstinadamente viver o novo. E o BarãoCosme, em virtude disso, o que tinha em mente era uma sociedade uni-versal.Associando pessoas, reunindo-as no abalo do encontro, criava um“clima de seita, de heresia e naquele clima também os discursos passa-vam facilmente do particular ao geral e das simples regras de uma ocu-pação artesanal passava-se com a maior naturalidade para o projeto deinstauração de uma república mundial de iguais, de livres e de justos.”4

Ao contrário do mito, o que é humano é que é elevado à condição uni-versal. Daí a busca pelo cosmopolitismo, pano de fundo deste texto.

A humanidade, talvez sem que se tenha precedente de tamanhadimensão, vive um tempo de profundas transformações e interrogações.Seja qual for o campo a que se dedique o pensamento humano, o cha-mado à filosofia é condição de possibilidade para que se alcance o sen-tido da existência humana e do próprio homem. Castanheira Neves,5ao referir-se a Karl Jaspers, aponta três possíveis origens da filosofia:a) a admiração ou o assombro; b) a incerteza e a dúvida e; c) o abalo e acomoção.

O fio da sociedade segura e previsível está rompido. E a filosofia,enquanto possibilidade de pensar as “coisas humanas”, pode favorecer odesvelamento de eventos que batem à porta, sem pedir licença e que exi-gem novas instituições. Terrorismo, lavagem de dinheiro, movimentosmigratórios, voluntários e forçados, guerras, clonagem humana, crimesvirtuais, crise climática, crise energética, doenças epidêmicas, pobreza eexclusão, são temas contemporâneos que estendem seus tentáculos paraos lugares mais recônditos da terra clamando por resposta.

Daquelas três origens filosóficas, parece ser o abalo o que se faz pre-sente mais intensivamente a suscitar a reflexão sobre o sentido da exis-

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fica uma forma de civilidade entre iguais e que é graças a ela que as nações reconhe-cem em seu território ou nos seus tribunais, as instituições de outras nações ou direi-tos ou privilégios adquiridos por cidadãos estrangeiros em seu próprio país. ALLARD,Julie. GARAPON, Antoine. Os juízes na mundialização.A nova revolução do Direito. Lisboa:Piaget, 2005, p. 74. Mas a expressão “comity em rede” é nossa, no sentido de existên-cia de uma rede de amizade ou de hospitalidade de que será tratado adiante.

4 CALVINO, Ítalo. O barão…, p. 222.5 CASTANHEIRA NEVES, A. A crise atual da filosofia do direito no contexto da crise glo-

bal da filosofia. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 142.

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tência humana. Já não é mais possível responder a tantas exigências quea vida apresenta tomando-se por base os referenciais teóricos — e práti-cos — há muito conhecidos.Talvez como para o pré-socrático Heráclito,hodiernamente, a tradição, os rituais e os mitos legados pela moderni-dade devam ser redimidos para dar lugar às palavras e aos atos.

Tal como para o filósofo, deter-se, no sentido metafórico, ao que“toca os ouvidos, os olhos, a língua, a pele”6 pode ser uma condição depossibilidade para compreender as profundas transformações porquepassa o mundo. Trata-se de deixar os sentidos falarem sua gramática.Como existem várias gramáticas, há, assim, o “discurso dos discursos”,que gera o que “é que é e o que se diz”7 sobre as coisas, tirando o mundoda sua letargia.

Nesse sentido, se a filosofia heideggeriana, no século XX, foi o motepara que se compreendesse a exigência ontológico-existencial de cui-dado8 para o trato de toda e qualquer questão humana, em sua faticidadee temporalidade, foi justamente ela que colocou o abalo e o espantocomo o núcleo das questões últimas. E o seu lugar resta assegurado emtempo de hipercomplexidade, hiperconsumo, hiperinsegurança.9 Não se trata,como se vê, da ultrapassagem da modernidade para a pós-modernidade,mas da vivência da modernidade elevada à enésima potência, para cujosproblemas as categorias modernas não são capazes de dar respostas ade-quadas.

Esse “desnorteio” quanto às categorias que davam sentido à exis-tência humana, atingiu de modo ostensivo, primeiro, a própria com-preensão de Direito. Segundo, e de modo bem particular, a noção de Jus-tiça, no que respeita à sua função e validade.

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6 SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis)curso. Porto Alegre: L&PM, 2001,p. 15-16.

7 Ibid., p. 16.8 Consulte-se HEIDEGGER, Martin.Tempo e Ser. In: Conferências e Escritos Filosó-

ficos. São Paulo: Nova Cultural, 1989.9 As expressões são de LIPOVETSKI, Gilles e inserem-se na concepção desse autor

sobre “sociedade hipercomplexa”. O autor refere-se a uma nova sociedade, que fun-ciona por hiperconsumo e não por des-consumo. Consulte-se: A sociedade da decepção.Barueri: Manole, 2007, p. 14 e A felicidade paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hipercon-sumo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 25.

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No campo específico do Direito, novamente faz-se o chamado aCastanheira Neves10, que apresenta três perguntas fundamentais: a) porque o direito emerge na realidade humana em variadas expressões? Res-ponde afirmando que o direito é só uma resposta possível a um humano--social problema necessário e que não exclui respostas diversas en-quanto eventuais alternativas ao direito; b) para-que o direito concretiza-se num sentido civilizacional universal e por que hoje é chamado a con-cretizar-se? e; c) o que — qual o fundamento material que o seu sentidoexige? O autor irá respondê-los dizendo que “o direito não é tudo narealidade humana, mas é uma dimensão capital, e irrenunciável, da hu-manidade do homem”, em cujo contexto aqueles três problemas emer-gem. E só poderão ser respondidos se o homem pensar-se a si mesmo eassumir-se como tal.

Desse modo, se é visível o abalo de que o Direito é vítima, o cha-mado à Justiça é cada vez mais intenso e carregado de incertezas. Doponto de vista do direito interno, descortina-se um conjunto de fatoresque desafiam a tradicional racionalidade positivista, destacando-se espe-cialmente a atuação da jurisprudência, a quem, na atualidade cabe o papelde superar os limites normativos da lei e de reconhecer a existência dedireitos fundamentais acima e independentemente desta. Trata-se, emverdade, da “concreta-problemática realização do direito”11 que implicaem distinguir-se, mais uma vez, entre ius e lex.

Porém, não se trata apenas disso; o Judiciário, na concorrênciaentre os clássicos poderes do Estado, ora tem sua competência alargada,ora se vê encurralado pelas decisões dos demais poderes. Instânciasalternativas de solução de conflitos existentes no âmbito da sociedadecivil, como as de mediação e de arbitragem, bem assim, as práticas cos-tumeiras e tradicionais de locais e culturas, se por um lado contribuempara reduzir o deficit da solução dos conflitos provocado pelas notó-rias limitações Estatais, por outro, causam o aumento exponencial dasincertezas.

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10 A crise atual da filosofia do direito…, op. cit., p. 146-147.A preocupação do autor,assumida em outro lugar, faz com que se pense o direito não apenas como o lugar dasanção, mas como uma “responsabilidade vivida em seu sentido.” In: O direito hoje e emque sentido? O problema atual da autonomia do direito. Lisboa: Piaget, 2002, p. 75.

11 Ibid., p. 106.

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Por outro lado, a incerteza na prestação da Justiça12 aumenta de en-vergadura quando, sob o ponto de vista externo, constata-se a mundia-lização das instituições, das relações jurídicas e, sobretudo, do Direito.A transnacionalização do Direito, assim, se põe como um fenômeno irre-nunciável, ainda a exigir construção de suas categorias, ainda que não seconstitua em fenômeno exclusivo do século em curso. Porém, talveznunca antes na história da humanidade, a transnacionalização tenhasofrido tão intensamente o impacto da dinamicidade das relações huma-nas e jamais, como agora, foi o resultado da pluralidade de fontes, depoderes e de valores.

Assim, para que sejam compreendidas todas as nuances do fenô-meno da transnacionalização do Direito, é importante refletir não ape-nas sobre suas fontes e valores mas, primeiramente, sobre seus atores.Neste trabalho, especial destaque será dado à atividade dos juízes, segu-ramente os “agentes mais ativos”13 da transnacionalização. Ora, o con-texto das relações internacionais, neste início de século, denuncia uminteressante fenômeno, que é o da busca exacerbada pelo juiz. Se aindaé possível manter a separação dos poderes clássicos do Estado, é perfeita-mente pertinente afirmar que, no plano internacional, os juízes consti-tuem o mais universal daqueles três poderes, o quê, à toda evidência,tende a provocar desequilíbrio entre os mesmos.14

Sob o ponto de vista da jurisdição dos Estados, a tarefa dos juízeschegou à máxima complexidade porque, invariavelmente, resolver pro-blemas concretos implica transbordar o próprio sistema jurídico, contri-buindo para a construção de um Direito cuja eficácia ultrapassa as fron-teiras nacionais. Desse modo, no amplo cenário das jurisdições regional,supranacional e internacional, surgem novos modelos de juiz, dos quaisé exigida uma dupla tarefa. De um lado, solucionar fenômenos inteira-mente desconhecidos, muitas vezes sem qualquer orientação normativa,o que os leva a inspirarem-se nas jurisdições nacionais. De outro, cons-truir, pela atividade jurisdicional paulatina, os próprios princípios basila-res de sua função.

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12 Sobre o tema veja-se: DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direitomundial. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003, p. 158-165.

13 ALLARD, Julie. GARAPON, Antoine. Os juízes…., p. 8.14 DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginatives du droit (III). La refondation des

pouvoirs. Paris: Seuil, 2007, p. 41-42.

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Nesse contexto de alta complexidade e exigência, poderá a juris-dição superar sua mentalidade estreita — porque restrita ao nacional — e, assim, seria capaz de alargar seu pensamento para empreender umdiálogo com seus pares (Parte 1)? As “viagens” do direito, ocasionadaspelo referido alargamento da compreensão de justiça, não estão a provo-car um duplo fenômeno, qual seja, o direito internacional influenciandoo constitucional, e vice-versa (Parte 2)? Diante dessa perspectiva, quaissão as condições que o direito cosmopolítico impõe aos juristas, para quesua efetivação transborde do plano das expectativas, invadindo o campoda experiência (Parte 3)?

1. Têmis, “fertilizações recíprocas” e “mentalidades alargadas”

Como referido, o objetivo deste trabalho é analisar o papel quetem desempenhado a jurisdição no enfrentamento da complexa ques-tão da transnacionalização do direito e, ao mesmo tempo, verificar emque medida ela tem contribuído para concretizar o direito cosmopo-lítico.15

Difícil será desenvolver tal tarefa sem que, desde logo, seja empreen-dida reflexão sobre o perfil “nacional” do direito para, na seqüência, ana-lisar a tarefa jurisdicional, sob o ponto de vista da sua atuação no planonacional e do aprisionamento dos juízes “ao seu direito”.

O direito moderno, tal como é conhecido, nasceu nacional. Assimera necessário para dar o suporte adequado ao Estado-Nação que entãosurgia. Subjacente aos elementos clássicos do Estado estava a idéia dedireito, fator essencial que corroborava a teoria contratualista rousseau-niana, bem como a própria “afirmação jurídica original” associada ànoção de sujeito de direito. Ou seja, aquele que possuísse uma honradezoriginal podia-se afirmar contra os demais e também portar uma dis-posição para a imputabilidade, que se afirmaria contra outro sujeito, tam-

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15 Uma inteligente abordagem sobre o tema pode ser vista em:VENTURA, Deisy.Hiatos da transnacionalização na nova gramática do direito em rede: um esboço de conjugaçãoentre estatalismo e cosmopolitismo. No prelo, 2007.

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bém titular de direitos, relação essa que somente estaria completa pormeio da consciência da reciprocidade.16

Não é outra a preocupação que na atualidade, em particular, temdemonstrado Castanheira Neves, quando indaga pelo problema univer-sal do direito e sobre as condições da emergência do direito como di-reito. O autor vai dizer que se a condição mundanal e a condição antro-pológico-existencial são condições constitutivas para a emergência dodireito, não são suficientes. É preciso agregar-lhes a condição ética, por-que vivendo o homem em condição de relação, uma vez que “A pessoasó existe no mundo que se constitua como mundo de pessoa”17 é ines-capável a condição humana da coexistência.

Nesse sentido, o autor recupera duas dimensões básicas que dãoconformação a essa condição ética em que o direito está inscrito.A pri-meira é a de que o homem é um sujeito ético, o que se traduz por duasnotas essenciais: a liberdade e a condição de pessoa. Liberdade, comocondição transcendental da normatividade, porque essa é impensável semaquela. Pessoa, na medida em o homem deixa de situar-se no campopuramente antropológico para colocar-se no mundo da coexistênciaética, uma vez que a pessoa “não é uma categoria ontológica, é uma ca-tegoria ética.”18

A segunda é a de que o próprio direito está submetido ao impera-tivo ético. Ora, entendendo-se a pessoa como “sujeito ético”, para Cas-tanheira Neves a ética também deve se impor ao direito. Diz:“sê pessoae respeita os outros como pessoa”19, sendo essa a mais profunda dimen-são ética do direito e que está à base da noção de amor ao próximo, o queimplica pensar, com Kant,20 de que aí está o mote do “pensar pondo-se

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16 Quanto a esse último aspecto HÖFFE, Otfried afirma que se trata de uma“ética jurídica”, uma vez associada ao auto-conhecimento dos direitos e dos deveres.In:A democracia no mundo de hoje. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 93.

17 CASTANHEIRA NEVES, A. Coordenadas de uma reflexão sobre o problema uni-versal do direito — ou as condições da emergência do direito como direito. In:MOURA RAMOS, Manuel etc e tal. Estudos em homenagem à Professora Doutora Isabel deMagalhães Collaço. Coimbra:Almedina, 2002. II, p. 837-871.

18 Ibid., p. 863-864.19 Ibid., p. 866.20 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. § 40. Lousã: Imprensa Nacional

Casa da Moeda, p. 196.

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no lugar de um qualquer outro”, o que pressupõe o exercício da co-res-ponsabilidade, porque os homens estão ligados entre si porque sãohomens. Então “direito não é ética, mas tem dimensão ética”.

Tais considerações preparam a compreensão da necessidade de“abertura de mentalidade” da jurisdição ao não conhecido, ao inusitado,ao alargado, como se verá adiante.

Mas o comportamento trivial das jurisdições nacionais, voltado aointerno, sempre foi resposta à própria conformação do direito. Ora,como sabido, toda a produção jurídica estava voltada à consolidação doespaço nacional, garantindo-se, com isso, a própria afirmação do Estado,em âmbito interno, quanto impunha sua independência frente aos de-mais Estados.Tratava-se de um tempo em que urgia consolidar-se comoordenamento jurídico, com sistema próprio e autônomo, que mais tardeveio expressar-se como legicentrismo, para poder libertar-se do peso damultiplicidade e fragmentação de poderes que grassara no medievo.21

Por outro lado, sob o ponto de vista do campo de atuação do PoderJudiciário, os juízes deram uma relevante contribuição para a sedimenta-ção do direito nacional e de suas bases político-filosóficas. Na verdade,dos três poderes do Estado, o Judiciário tem sido aquele que, histori-camente, reproduz de modo seguro os valores do sistema jurídico a quepertencem, o que fez aflorar a tese do “modelo jurisdicional” de controleda atividade do Estado, porquanto, nas democracias contemporâneas,o ideal de “Estado democrático” é o Estado de Direito e este não se fazsem os juízes.22

Mas hodiernamente quando se pensa em segurança interna ou ex-terna, previdência social, relações de trabalho, desenvolvimento econô-

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21 Foi um fenômeno audacioso que, como refere HESPANHA, Antonio Manuel,teve sua ascensão, apogeu e queda. Essa última expressão pode ser associada à contínuamudança de conteúdo e função da lei, que gerou a chamada “crise da lei”, que restoupor enfraquecer seus próprios pilares, o legalismo e o estatalismo. Assim, segundo oautor, o primado da lei como tecnologia não encontra mais eco na realidade contem-porânea, dando vazão à perspectiva sociológica das “novas fronteiras da legalidade” ouà perspectiva política atinente à chamada “deslegalização”.Veja-se: Lei e justiça: histó-ria e prospectiva de um paradigma. In: HESPANHA, António. Justiça e litigiosidade: Histó-ria e prospectiva. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, p. 9 e 22.

22 Por vezes chamado de “Estado dos Juízes”. Destaca-se aqui o papel das juris-dição constitucional como concretizadora desses direitos. Consulte-se STRECK, Lenio.Verdade e consenso. 2.ª. Ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2007, p. 123-142.

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mico, bem-estar, preservação da vida e do meio ambiente, redução dapobreza, movimento humano, comunicações virtuais, isto é, quando sepensa na grande parte daquelas atividades que dão impulso à organi-zação social e humana e às formas jurídicas de uma maneira geral,percebe-se que todas essas dimensões da vida em sociedade extrapolamos limites estatais. E aqui, trata-se de saber se os juízes nacionais estãofadados a aplicar o direito interno; ou se, sem que sejam obrigados,devem abrir-se ao global.

Novos atores ganham forma e influência no cenário mundial, atri-buindo diversa dimensão aos espaços públicos e privados.Todavia, os sig-nos máximos da modernidade — democracia e responsabilidade social— não são eliminados. Ganham diferente performance, exigem novasinterpretações e, por tal razão, promovem mudanças radicais na própriapolítica. Relações jurídicas inovadoras são entabuladas nesse cenário enovos conflitos daí derivam. O chamado ao juiz foi elevado à enésimapotência.

No entanto, como já referido, o Poder Judiciário, amiúde, tem-sevoltado aos litígios internos, sem qualquer elemento exterior que osqualifique, forjando um tipo de racionalidade/mentalidade judiciáriaestreita, uma vez que restrita ao próprio ordenamento jurídico. Não setrata de um defeito ou mal em si.Tal perfil cumpriu por dezenas de anosa finalidade através das quais as atividades dos juízes reduzidas ao seu sis-tema jurídico encarregavam-se de consolidá-lo por meio de suas deci-sões. Não eram, na verdade, chamados a enfrentar demandas complexase tampouco eram convidados a pensar seu sistema e suas práticas a par-tir do que se fazia em outros lugares.

Talvez seja possível pensar que, quando a justiça dos Estados se abreà influência de sistemas normativos que não aquele a que está sujeita,como os de natureza regional, suprananacional e internacional, bemcomo quando busca inspiração na jurisprudência dessas outras dimen-sões normativas, assim como também, em sentido contrário, quando ajustiça regional, supranacional e internacional, pratica a reciprocidade ebusca ensinamentos na justiça estatal, toma forma aquilo que Kantdenominou de “mentalidade alargada”, um tipo de cultura animi23, isto é,

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23 A expressão é de Cícero, que a utilizou para explicar que somente por meioda filosofia é que se adquire essa cultura.Também pode ser encontrada em ARENDT,

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uma mente de tal modo educada que se possa confiar-lhe o cuidado derever suas posições e valores em nome dos interesses humanos.

Ao tratar de três máximas do entendimento humano comum ligadoao gosto, é que Kant24 põe a questão da mentalidade alargada. Primeiro,diz que é preciso “pensar por si”; segundo, diz que é preciso sempre“pensar no lugar de todo o outro” e, terceiro, é preciso “pensar de acordoconsigo próprio”. Assim, de acordo com o filósofo, a primeira é a má-xima da maneira de “pensar livre de preconceito”, a segunda e é a queinteressa para o efeito deste trabalho, é a maneira de “pensar alargada”,enquanto que a terceira é a maneira de “pensar conseqüente”.

A contribuição do pensamento kantiano não só como elemento decompreensão, antes de necessidade, para o desenvolvimento da menta-lidade alargada dos juízes, no contexto da pluralidade jurídica e do rom-pimento de fronteiras, banha de luz um caminho que sempre conheceuo limite do estatal. Kant, ao referir-se sobre o “pensar alargado”, deixaclaro que não se trata da “faculdade de conhecimento, mas da maneirade pensar, fazendo dessa faculdade uso conforme os fins (zweckmässig).”Assim, não deixa dúvida que ao referir-se à pessoa de mentalidade alar-gada, quer dizer que essa não se “importa com as condições privadas sub-jetivas do juízo”, e sim “reflete sobre o seu juízo desde um ponto de vistauniversal (que ele somente pode determinar enquanto se transpõe parao ponto de vista dos outros).25 Para ele, então, a máxima do pensar alar-gado nada mais é do que o exercício da “faculdade do juízo”.26

Ora, que fazem os juízes senão exercer a faculdade de julgar? E jul-gar, segundo Kant27, é uma faculdade essencialmente política no sentidode que não deve ser resultado de um ponto de vista próprio, mas da pers-

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Hannah. Entre o passado e o futuro. Capítulo 6. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 273.Com o mesmo sentido é encontrada na apresentação feita por Rob Riemen à obra deSTEINER, Georg, referindo que a cultura animi trata da alma e do espírito humanos paraque a pessoa possa ser mais do que aquilo que também é, ou seja, um animal. In:A idéia de Europa. Lisboa: Gradiva, 2004, p. 15.

24 KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo, op. cit., p. 196-197.25 Ibid., p. 197-198.26 Ibid., p. 198.27 Como visto, Kant trata da questão quando se refere ao gosto e diz que o juízo

do gosto “exige somente ser válido para toda a gente”. Isso significa dizer que inde-pende da “contingência interna”. Ibid., p. 76.

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pectiva de todos os outros presentes e do material envolvido. O principalproblema no âmbito da prática da justiça é exatamente o de dar-se contadessa dimensão política28 da jurisdição como concretizadora de valoresfundamentais à vida humana.29 E se assim é, tais valores não conhecemfronteiras. Põe-se, de um lado, a questão da universalidade desses valoresprofundamente humanos, que não conhecem credo, etnia e condiçãosocial. De outro lado, o risco da sua hegemonia, que tende a solapar a diversidade e o multiculturalismo.30 Ainda que não se deva perder devista esse referencial, o fato é que os juízes têm sido chamados a decidirsobre matérias que não conhecem limites territoriais e jurídicos.

A razão pode estar com Hannah Arendt31, quando afirma que a efi-cácia do juízo fruto de uma mentalidade alargada “repousa em uma con-

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28 Justamente porque a política concerne ao mundo que está entre os homens.Se desaparecida a política esse também será o desaparecimento do “mundo comum”.Por isso, quanto mais povos e relações houver, mais mundo serão criados entre eles,com uma riqueza de pontos de vista e, espera-se, maior e mais aberta será a nação.Nesse mundo será reencontrado o particular, mas é justamente o pensamento alargadoé que permitirá o conhecimento do remoto e, assim, reconhecer o semelhante naqueleque não nos assemelhe.Veja-se em: REVAULT D’ALLONES, Myriam. Hannah Arendt e aquestão do mal político. Disponível em <http://iscte.pt/~apad/justica01/conferen-cia/Arendt%20pt.rtf> Acesso em 12 de janeiro de 2008.

29 Com o necessário enfrentamento do código econômico, que é na verdade o que predomina hoje no plano mais amplo das relações internacionais, uma vez que houve, segundo NEVES, Marcelo, uma expansão hipertrófica do mesmo, eis queassociado à globalização econômica e, por outro lado, uma redução hipotrófica daautonomia dos sistemas político e jurídico, em cujo contexto está inserido o PoderJudiciário.Veja-se: Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: Martins Fontes,2006, p. 218.

30 Tal paradoxo, segundo SANTOS, Boaventura de Sousa, poderia encontrar res-posta na hermenêutica diatópica, na medida em que os vários sistemas jurídicos poderiamaprender uns com os outros, por exemplo, no âmbito dos direitos humanos, quando oque pode ser considerado como um topoi forte de determinada cultura ou povo, trans-forme-se em outra apenas em argumento. A hermenêutica diatópica seria a condiçãode possibilidade da aproximação entre as culturas e, desse modo, viabilizaria um maiorequilíbrio entre o respeito aos direitos humanos e a imposição dos princípios econô-micos. In: Por uma concepção multicultural dos direitos humanos. Reconhecer para liber-tar. Os caminhos do cosmopolitismo cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003,p. 427-462.

31 Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 274.

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cordância potencial com outrem e o processo pensante que é ativo nojulgamento de algo não é, como o processo de pensamento do raciocí-nio puro, um diálogo de mim para comigo, porém se acha sempre e fun-damentalmente, mesmo que eu esteja inteiramente só ao tomar minhadecisão, em antecipada comunicação com os outros com quem sei quedevo afinal chegar a algum acordo. O juízo obtém sua validade desseacordo potencial…”.

No campo próprio da jurisdição, essa “mentalidade alargada” vaifazer-se presente quando o juiz, para julgar, faz o desvio para outras cul-turas, encontrando nelas algum elemento que possa contribuir para oexercício de persuasão que desenvolverá ao julgar. Sendo assim, escapa--se da condição de sujeito solipsista que, isolado, cria a “sua decisão”e vai-se ao encontro de uma jurisdição com discernimento — phróne-sis —, uma vez que sua decisões derivam também da consideração doponto de vista ou da perspectiva dos outros. Por conseguinte, tais deci-sões são destinadas a um auditório amplo. Na mesma linha do que pensaPerelman,32 ou seja, quando o filósofo refere acerca da audiência uni-versal o que justamente pretende é “realçar um modo de saber que seforme na expectativa de aceitação de todas as pessoas razoáveis”.33

Enfim, trata-se de exercício do profundo sentido público do seuagir, que impõe ao julgador uma atitude de abertura, ainda que comsacrifício ou com o afastamento do seu próprio ordenamento jurídico,para tomar de empréstimo, em verdadeiro diálogo, decisões provindas deoutros âmbitos judiciários, tudo em nome dos valores em jogo e consi-derando a complexidade do mundo.

Uma das características desse diálogo entre juízes, que pode serhorizontal, relacional, nacional, social e intelectual, é que o paradigma doraciocínio lógico-formal cede passo ao do razoável. E a justiça, assim,rompe com a linearidade a que sempre esteve associada e manifesta-secomo “uma idéia confusa” em que o razoável toma o lugar da verdadeabsoluta.34 Outra característica é o papel da conversação, pano de fundo

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32 PERELMAN, Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da argumentação:A nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 34-39.

33 Ibid., p. 135.34 MOREIRA DA SILVA FILHO, José Carlos. Hermenêutica e interdisciplinariedade

no direito: um diálogo entre o Brasil e os Estados Unidos. Seqüência. Florianópolis:Fundação Boiteaux, 2007, p. 123-143.

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do pensamento gadameriano. Ora, quando as jurisdições resolvem, reci-procamente, abrir-se aos ensinamentos umas das outras, praticam a expe-riência da conversação, reconhecendo seus pré-juízos inautênticos, o queas leva a reconhecer a possibilidade de modificá-los frente aos argumen-tos do outro.Trata-se da “fusão de horizontes” que caracteriza o pensa-mento hermenêutico, pois todo aquele que compreende faz parte dopróprio acontecimento.35

Tão inusitado quanto possa significar essa mudança de atitude, porum lado, pode servir de alavancagem para uma verdadeira virada noslimites das funções jurisdicionais e, por outro, denuncia ainda a timidezdos juízes nacionais em voltar-se para o direito comparado. O que pos-sui de surpreendente e novo a teoria kantiana da mentalidade alargada,possui também de útil.

Surpreendente e novo, porque a elaborou quando examinou o fe-nômeno do gosto. Sim, porque sempre se acreditou que por ser matériasituada no campo da estética, estava invariavelmente para além do campoda política e do domínio da razão. Mas Kant, como lembra HannahArendt36 “se viu perturbado pela pretensa arbitrariedade e subjetividade”do gosto, uma vez que tal arbitrariedade ofendia o seu sentido político enão estético. Útil porque, na medida em que é aqui utilizada para jus-tificar a necessidade de alargamento da mentalidade dos juízes nacionaisao regional, transnacional e internacional, convoca o exercício de suafunção pública naquilo que de mais valioso comporta, que é a realizaçãoda justiça.

Note-se que o “estreitamento” ao nacional, que deve ser superado,e o “alargamento”ao internacional, que deve ser alcançado, decorrem,em boa medida, da prática da solidariedade que, pode-se dizer, radica nocoração da idéia de “mentalidade alargada”, na medida em que essasomente se realiza em consideração ao “outro”, mas também exige umesforço de imaginação, um tipo de “pensamento nômada”37, capaz de

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35 Trata-se do giro hermenêutico porque, nesse campo, a linguagem é que étomada como horizonte onde tudo acontece e é considerada a base da ontologia her-menêutica. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método.Traços fundamentais de uma herme-nêutica filosófica. 3. ed. Porto Alegre:Vozes, 1999, p. 708.

36 Entre o passado e o futuro…, ibid. p 277.37 ALARD e GARAPON, Os juízes na mundialização, op. cit. p. 75.

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transitar por vários lugares e culturas e que se tornou vital com a glo-balização. Talvez esse seja o lugar em que o senso de solidariedadehumana permaneça intacto, porque chama ao reconhecimento da dife-rença e de outras experiências, então, valoriza o partilhamento. Essaidéia de solidariedade e partilha é sobretudo visível em matéria de efe-tivação dos direitos humanos, que acaba por ser traduzida na ambiçãoética da justiça.38

Postas essas premissas, no limitado espaço deste texto, é chegada ahora de dizer que, muito mais do que motivada em razões que buscavampersuadir,39 as jurisdições nacionais, baldada a timidez antes referida,tiveram de dar início ao diálogo com outras jurisdições, porque temasinterdisciplinares e transversais como, por exemplo, o relativo aos direi-tos humanos,40 além de serem inescapáveis, não podiam mais esperarpelas lentas definições burocráticas dos Estados. E, ao contrário, as juris-dições regionais, transnacionais e internacionais, em muitas ocasiõesvaleram-se das decisões que nesse âmbito elas proferem, como tambémdas decisões nacionais41 na mesma matéria, diante da natural insegurançaoriginária da multiplicação de fontes de onde se tira o direito.

Assim como os juízes nacionais se internacionalizam, porque cha-mados a aplicar os textos internacionais, os juízes “regionais e interna-cionais”, cada vez mais, são demandados para resolver casos não só entreos Estados ou organismos internacionais, mas casos que envolvam indi-víduos, vítimas de violações de direitos humanos, bem como autores dedelitos elevados à categoria de internacionais. Essa possibilidade tornou-

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38 ALARD e GARAPON, ibid., p. 8.39 Ibid., p. 72-73.40 Que, a propósito, põe em destaque o papel do direito processual.Veja-se a

importante participação de ONGS no Brasil, como o caso da Justiça Global junto àComissão Interamericana dos Direitos Humanos na busca da efetivação dos direitoshumanos quando o sistema judiciário nacional e seu complexo quadro de instânciasrecursais não oferece as respostas adequadas. Desde o ano 2000 foram entregues 11pedidos junto a CIDH todos denunciando violação de direitos humanos no Brasil.E assim, o papel dessa jurisdição tem sido decisivo para instar o Estado brasileiro aocumprimento da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual tornou-sesignatário no ano de 1992. Observe-se os dados em: http://www.global.org.br/.Acesso em 12 de janeiro de 2008.

41 Como ocorreu no caso Pretty.Veja-se nota 70.

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-se factível sobretudo depois do reconhecimento de que os indivíduossão sujeitos de direito internacional.42

Considerando-se essa dupla via, o trabalho da jurisdição também secomplexifica, chamada que é a desenvolver uma hermenêutica que dêconta das exigências dos Estados e do mercado, bem como dos interes-ses dos indivíduos.A regra de ouro do não isolamento fomenta, em vistadisso, as trocas entre as jurisprudências, quando uma instância decisóriainspira-se em outra. Há ou deveria haver uma troca corrente e perma-nente entre o plano internacional, regional e nacional, método que,segundo Mireille Delmas-Marty, pode fomentar uma “fertilização re-cíproca”.43 É inegável, assim, que a existência de órgãos jurisdicionais de controle, não só serve para estabilizar o conjunto normativo comotambém para acelerar/regular o tempo para a incorporação do próprioDireito.

Ora, sendo assim, restaram totalmente vazias de sentido as posiçõesque viam no papel da jurisdição o poder do Estado voltado à concre-tização dos direitos subjetivos ou à preservação da vontade concreta dalei. Não é o caso simplesmente de negar a importância da jurisdição nocontexto do Estado nacional, mas para além disso, diante da urgência davida, encontrar nela o lugar onde os julgadores têm a exata percepção dacomplexidade do mundo e da pluralidade que o qualificada e que clamapor novas instituições e novas gramáticas.

O pano de fundo em todas essas questões consiste no aumento daintensificação dos intercâmbios entre as mais diversas jurisdições e, na suasingular expressão, o surgimento de uma “sociedade de tribunais”. Navisão de Alard e Garapon, tal situação não levaria ao surgimento de umsistema jurisdicional novo e tampouco ordenado44, mas sim um espaço

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42 Os indivíduos tornaram-se sujeitos de direito internacional em meio à plenacrise de poderes, em nível nacional e internacional, a exigir uma refundação dessespoderes, a partir de outras bases teóricas, para além da moderna dicotomia do públicoe do privado.Tal crise, como se pode constatar, é bem mais profunda que apenas a depoderes. A inserção dos indivíduos como sujeitos de direito internacional remete auma crise valores, porque compõem o mosaico dos novos atores da mundialização. Essetema é desenvolvido por DELMAS-MARTY, Mireille. Les forces imaginatives du droit (III).La refondation des pouvoirs, op. cit. p. 163-191.

43 Les forces imaginatives du droit (II). Le pluralisme ordonné. Paris: Senil, 2006, p. 49.44 Os juízes na munidalização…, op. cit. p. 31.

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“não hierárquico e policêntrico” em que a ausência de hierarquia e aacefalia seriam, elas próprias, a condição de possibilidade de sua exis-tência e de seu funcionamento. Nesse ponto, criticam tanto a obra deAnne-Marie Slaughter — A new world order45 — quanto a de MireilleDelmas-Marty — Le relatif et l’universel —, uma vez que tais autorasreconhecem o comércio de juízes, mas afirmam que esse fenômenodeverá ser ordenado para reunir o que é múltiplo e complexo.

Ora, o pluralismo em que se constitui na atualidade a prática dajurisdição exige sim novas gramáticas e uma nova teoria das fontes.Talvez seja inapropriado negar a necessidade de ordená-lo para evitar a hegemonia de instâncias de interesses sobre outras — como as do mer-cado sobre os direitos humanos e vice-versa — como refere Delmas--Marty. Esse reconhecimento, entretanto, não renega que no diálogoentre juízes há efetivamente a formação de redes jurisdicionais, que oraestabelecem relações de coordenação, de sobreposição e, até de exclusão,não sendo em nada desprezível a alusão de que no âmbito da “mundia-lização da justiça” existem multifacetadas expressões dessa atuação,como: a) função de mediação; b) função de admoestação; c) função deestímulo; d) função de avaliação; e) função de neutralização e, f) funçãode competição.46

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45 Para Slaughter, o Estado não está desaparecendo, e sim se desagregando, divi-dindo-se em seus componentes funcionalmente distintos. Esses componentes — tri-bunais, instâncias de controle, órgãos executivos e até mesmo legislativos — estão for-mando redes com seus homólogos no estrangeiro, estabelecendo uma cerrada teia derelações que constitui uma nova ordem transgovernamental. Segundo a autora, atuaisproblemas internacionais — terrorismo, crime organizado, deterioração ambiental,lavagem de dinheiro, quebras bancárias e fraudes financeiras — estão na origem e jus-tificam essas redes de relações. Para ela, o transgovernamentalismo é a forma mais efi-ciente e difundida de governabilidade internacional. In: SLAUGHTER, Anne-Marie. Anew world order. Princenton: Princenton University Press, 2004.

46 a) de mediação — como quando a justiça americana mediou o conflito entrecidadãos franceses judeus e a França em pedidos de indenização pelos prejuízosdurante o regime Vichy; b) de admoestação — quando o Tribunal Internacional de Jus-tiça ordenou aos tribunais americanos que revissem penas de morte impostas a cida-dãos sob a jurisdição mexicana, sob a alegação de que tais decisões foram proferidasem ofensa ao direito internacional; c) de estímulo — como ocorreu no caso Pinochet,pois a denuncia feita pelo juiz espanhol fomentou o processo contra o ex-ditador emsua pátria; d) de avaliação — que ocorre quando os tribunais internacionais têm de

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Assim, a Têmis do século XXI escolhe suas vestes e delibera sobreseus olhares. Espera reconhecer em Marco Pólo e no Barão Cosme asmetáforas em que se inspirará para mudar. É o que segue.

2. Marco Pólo,“comércios judiciais” e a transnacionalização dodireito

Marco Pólo, explorador italiano nascido em 1254, provinha de umafamília de abastados mercadores venezianos. Ainda que, aqui, não se analisem detalhes esmiuçados de sua vida e de seus feitos, cumpre salien-tar seu legado. O relato detalhado que elaborou sobre suas viagens peloOriente conferiu-lhe, por muito tempo, a reputação de contador de his-tórias fantásticas.

Nos séculos XIX e XX, reputou-se ao viajante a qualidade demodernista. Esse caráter ambíguo, apontado por Jacques Brosse, faz comque suas aventuras sejam lidas com tanto prazer.47 Mas a ambigüidadenão impede que se identifique, em Marco Pólo, o gosto pela viagem, peladescoberta e pelos novos saberes. É como se, já nos séculos XIII e XIV,o viajante estivesse a antecipar os princípios e diretrizes fundamentais àsviagens do direito, hodiernamente.

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avaliar se os tribunais locais estão em condições de julgar crimes de guerra; e) — deneutralização — como quando um estado para fugir da competência da justiça re-gional, por exemplo em matéria de comércio, recorre a OMC e; e) de competição — quando no campo das marcas e patentes, busca-se canalizar para os tribunais inter-nos os processos mais importantes. ALARD e GARAPON. Os juízes na mundialização…,op. cit. p. 34 e 35. No caso da América-Latina, a Comissão Interamericana de DireitosHumanos invariavelmente tem exercido a função admoestadora quando, por exemplo,considera que os Estados não cumprem a Convenção Latino-Americana de DireitosHumanos. Por isso, denuncia-os à Corte Interamericana de Direitos Humanos, comorecentemente ocorreu em dois casos envolvendo o Brasil, por violação dos direitoshumanos ao devido processo legal, proteção da honra e da dignidade e proteção judi-cial.Vejam-se os casos n.° 12.353 e 12.478. In: <http://www.cidh.org/Comunicados/Spa-nish/2008/1.08sp.htm > acesso em 12 de janeiro de 2008.

47 BROSSE, Jacques. As fantásticas (e verdadeiras) aventuras de Marco. Disponível em<http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/as_fantasticas__e_verdadei-ras__aventuras_de_marco_polo.html> Confira a adaptação das descrições da viagemde Marco Pólo em CALVINO, Ítalo.As cidades invisíveis. São Paulo:Companhia das letras,1992.

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Um fenômeno de dupla face emerge: a transnacionalização do di-reito constitucional e a constitucionalização do direito internacional,grandemente responsáveis pela “mentalidade alargada da jurisdição”.O fato é que soçobram razões para querer-se ir além, ou seja, pensar talfenômeno sob o ponto de vista da efetivação do cosmopolitismo, tarefaque também seria dos juízes.

Aos radicais defensores do direito constitucional, pode parecer in-sólito aos Estados abrirem-se ao internacional. Afinal, tanto esforço demandou a organização político-jurídica dos Estados que pareceimpensável, senão perigoso à soberania, beber na fonte do internacional.Porém, o direito, no seu sentido lato, filosófico, não se vincula ao caráterestatal, no sentido tradicional e restrito, como sublinha Otfried Höffe.48

No entanto, é verdadeiramente inescapável que ante o fenômeno datransnacionalização ou mundialização, o direito estatal não só é chamadopara resolver problemas entre vizinhos, mas a organizar relações inter-continentais, como circulação de dinheiro, de bens materiais, de pessoase de informações. O que se faz no “solo” não preenche as inúmeras bre-chas provocadas pelo alargamento das relações no plano global.

A diferença entre o plano constitucional e o internacional, que mar-cou de forma indelével as teorizações encetadas ao longo do Século XXnessa matéria, sucumbiu na entremistura, que atualmente é provocadapor um campo plural de outras fontes normativas nacionais ou interna-cionais ou, ainda, por meio de consensos produzidos por instituições ouorganismos internacionais.

A good governance — “a condução responsável dos assuntos do Es-tado” — pode dar bons aportes acerca do assunto. Canotilho49 vai lem-brar dentre outras razões, que é justamente ela que acentua a interde-pendência internacional dos Estados e a necessidade de que se voltemàs regulações internacionais. E o autor vai além para dizer que a “boagovernança”“constitui um novo enquadramento transnacional da esta-talidade”.50

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48 HÖFFE, Otfried.A Democracia no mundo de hoje. São Paulo: Martins fontes,2005.

49 CANOTILHO, Joaquim José Gomes. “Brancosos” e interconstitucionalidade. Itinerá-rios dos discursos sobre a historicidade constitucional. Coimbra:Almedina, 2006, p. 326-327.

50 Ibid., p. 330.

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Enquadramento inovador que, aliás, tem apontado para novos prin-cípios, denunciando a imprescindibilidade do acolhimento de uma Teo-ria do Estado por parte da Teoria da Constituição. Dentre eles, sob aperspectiva da transnacionalização, despontam o princípio da coerênciaentre as diferentes políticas e ações estatais; o princípio da abertura, voltadopara a constante procura de soluções de governo e o princípio da eficácia,conjugando políticas públicas e necessidades sociais.51

Por falta de uma Teoria da Constituição supranacional, o plano deconstrução das constituições nacionais pode ser uma alternativa inicialà consolidação de estruturas normativas supranacionais. Seus elementosconstrutivos — questões de justiça, do bem comum, regras de orga-nização política e as questões de validade e transição ordenada dasConstituições — oferecem margens às discussões e deliberações entreEstados.52

A ordem jurídica supranacional, à qual a União Européia representa,na contemporaneidade, a forma melhor lapidada, caracteriza-se pelatranscendência das fronteiras dos Estados membros isolados, sem prejuízode consulta e aplicação das jurisdições nacionais. Se a obra contratual daUnião Européia, frente aos indícios, como adverte Frankemberg, adquireum caráter constitucional, ainda se está por resolver “de que forma o caosou a pluralidade de uma comunidade de muitos povos, voltada à expan-são, deveria ser adequadamente constituída”.53

Nesse sentido, o que se detecta é a abertura do direito internacionalao constitucional, em função do diálogo necessário que brota do multi-lateralismo entre os Estados e da imposição do respeito aos direitos hu-manos em sentido amplo. Particularmente no que diz respeito a essesúltimos, o seu fortalecimento no plano interno é uma decorrência da suauniversalização, bem como o é a dos princípios democráticos que ser-vem de vetor à organização dos Estados.

Isso porque, num mundo em desordem, onde “ninguém pareceestar no controle agora”54, a universalização dos direitos do homem,

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51 Ibid, p. 330-331.52 Cf. FRANKENBERG, Günther. A gramática da Constituição e do Direito.Tradução

de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 102-111.53 Ibid, p. 124.54 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução de

Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.

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a construir, promete oferecer um compartilhamento de sentidos.As ex-periências exitosas das Constituições nacionais oferecem, para tanto,a expectativa de consolidar essa universalização, pela troca de culturas eexperiências.

É importante ressaltar, com Flávia Piovesan, que as Constituições daArgentina, Brasil, Uruguai e Paraguai, como marcos jurídicos relevantesnessa transição, no âmbito do Mercosul — ordem jurídica supranacionala ser lapidada —, consagram em suas Constituições “o primado do res-peito aos direitos humanos como paradigma propugnado para a ordeminternacional”.55 Todos estes aspectos, referidos acima, configuram aconstitucionalização do direito internacional.

Urge que o direito reconheça-se mutante — entre o nacional e ointernacional, revela-se transnacionalizado — a fim de que não reduza“sua capacidade de influenciar um processo histórico que galopa”, con-forme alerta Deisy Ventura. Segundo a autora, a atual razão de ser doEstado de direito implica organizações capazes de acolher atores estataise não-estatais, numa perspectiva de complexidade em expansão.56 A Teo-ria do Direito, dessa forma, é desafiada a incluir em sua semântica a pro-blemática das ordens jurídicas plurais e globais.57

Na análise de Peter Häberle, a hermenêutica constitucional têm-sedeparado com uma constante relativização. Isto porque, com cláusulasconstitucionais cada vez mais abertas, a permitir interações entre as or-dens locais e internacionais, os juízes constitucionais não interpretam deforma isolada: as forças pluralistas públicas os acompanham neste pro-cesso, conferindo potencial normativo à sua esfera.58

Ademais, Häberle cita, em outro lugar, os pactos internacionais rela-tivos aos direitos humanos, bem como a Comissão Européia de Direitos

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55 PIOVESAN, Flávia (Org.). Direitos humanos, Globalização Econômica e Inte-gração Regional: desafios do direito constitucional internacional. São Paulo: MaxLimonad, 2002, p. 58.

56 VENTURA, Deisy. Hiatos da transnacionalização na novagramática do direito em rede:um esboço de conjugação entre estatalismo e cosmopolitismo, op. cit.

57 NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil. São Paulo: MartinsFontes, 2006. p. 261.

58 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: A sociedade aberta dos intérpretes daconstituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição.Tra-dução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 41-42.

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Humanos como elementos a configurar a abertura do Estado Costitu-cional. Para o pensador, vêm surgindo sucessivos indícios do que eleconsidera uma “Comunidade Internacional de Estados Constitucionais”,em sentido kantiano.59

Abertura ao mundo e solidariedade são termos chaves a esse novofenômeno. Estados como a Itália, a Alemanha, a Grécia e a Irlanda, den-tre outros, revelam, em suas respectivas Constituições, disposições quantoa concessão de certas parcelas de suas soberanias, em prol de cooperaçõespacíficas. A internacionalização do direito constitucional revela-se, assim, comoum dos aspectos desse novo “direito comum cooperativo”.60

Tanto sob a ótica da transnacionalização do Direito quanto sob aótica do cosmopolitismo, porém, a concretização do Direito por meio daatividade jurisdicional é uma realidade intranspassável. O Direito, comose viu, não se encerra no espaço limitado dos Estados Nacionais. Ergue--se ao regional e ao internacional e, com isso, modela um novo julgadorque deve se abrir ao global para dialogar com seus pares.

Para uma pensadora do quilate de Mireille Delmas-Marty tratar-se--ia de um diálogo permanente que fomentaria uma “fertilização recí-proca” entre os juízes ou um “comércio entre juízes” como quer Gara-pon. Na verdade, a abertura do Poder Judiciário, seja nacional, regionalou internacional ao aprendizado proveniente dos seus pares “globais”pode ser compreendida como o exercício de uma “mentalidade alar-gada” que pode ser comprovada em inúmeras situações concretas quetêm sido objeto de estudo.

A própria jurisdição constitucional, nascida no século XX, paraacompanhar as grandes Constituições democráticas que surgiram após ofim da Segunda Guerra Mundial, consolidou-se como um recurso deafirmação da soberania e de autonomia do direito estatal frente aosdemais direitos. Mas as margens de interpretação valorativa que ganha-ram campo e provocaram a perda das certezas jurídicas, inclusive no quediz respeito à aplicação hegemônica do marco normativo exclusiva-mente estatal, fizeram surgir esforços para compreender o fenômeno.Buscar novas gramáticas tornou-se imperioso e, a partir disso, suscita-

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59 HÄBERLE, Peter. Pluralismo y Constituición: estudios de Teoría Constitucional de lasociedad abierta. Madrid:Tecnos, 2002, p. 124.

60 Ibid, p. 283-289.

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ram-se indagações se a hermenêutica poderia ajudar a compensar essaperda de “certezas” e a encontrar essa nova gramática.

Mais uma vez com Alard e Garapon, a aplicação e invocação do di-reito e dos precedentes estrangeiros pelos juízes nacionais, antes de deri-var de um imperativo ou a de alguma autoridade, repousa no espaço daescolha, pois visa a atender o objetivo persuasivo. Para que isso ocorra,é preciso contar com um outro tipo de racionalidade jurídica, maisaberta, alargada e hospitaleira.

Insistir ser a contingência o que delineia um tipo de sociedade e desistema mundo que suplantam expectativas de futuro linear, é umanecessidade para quem pretende livrar-se de regimes e sistemas autori-tários e, no caso particular da jurisdição, dos clichês que a têm definido,especialmente como resultado das teorizações que sobre ela foram ela-boradas na virada do Século XIX para o século XX.61 É justamente

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61 Não é objetivo deste texto tecer explicações e conceituações acerca da juris-dição. Contudo, não se pode deixar de referir que a doutrina processual, invariavel-mente, aponta os seguintes conceitos clássicos sobre a jurisdição, a saber: a) Jurisdiçãodo Estado liberal, em cujo contexto os juízes estavam impossibilitados de interpretar alei ou considerar as circunstâncias do caso concreto. O contrário disso obscureceria osvalores liberais de previsibilidade e certeza; b) a Jurisdição do positivismo que foi tri-butário da concepção de lei do Estado liberal. Porém, o positivismo não apenas colheua idéia de que o direito se esgota na lei como também foi o responsável por uma bru-tal simplificação das funções dos juízes, limitando-as a uma aplicação mecânica das nor-mas jurídicas na prática forense; c) umbilicalmente ligada às duas concepções anterio-res, a concepção que via na jurisdição uma função dirigida a tutelar direitos subjetivosprivados, contribuiu para a construção da perspectiva repressiva de jurisdição, pois pres-supunha, para agir, que tivesse havido previamente a violação de um direito subjetivo,cuja reparação poderia sempre ser convertida em indenização pecuniária. Com isso,jamais houve preocupação com a integridade do direito material; d) a jurisdição vistasob o prisma da atuação da vontade da lei que teve em Mortara seu idealizador, ao pri-meiro olhar revelou a preocupação em afirmar o direito objetivo ou o ordenamentojurídico. Seu objetivo, nessa linha, passou a ter uma conotação publicista. Não obstanteisso, ao fazer a defesa do direito objetivo, não se alforriou da influência dos valores doEstado liberal, mantendo-se fiel ao aprisionamento do juiz ao legislador e à vontade dalei; e) — Chiovenda em 1903 teorizou que a jurisdição deveria ser vista como umafunção voltada à atuação concreta da lei ao caso concreto.Apesar disso, manteve a pers-pectiva de que o verdadeiro poder estatal estava na lei e que a jurisdição somente semanifestava a partir da revelação da vontade do legislador.A contribuição dessa teoria foique separou o direito processual do direito material. Porém, jamais indagou acerca do

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nesse ponto que se pode indagar se há realmente um núcleo humanoque deve ser preservado e qual papel é reservado à Justiça em tal con-texto.

Ora, na mesma proporção em que há a fuga das essências, dos fun-damentos últimos que se prestariam a dizer o que é “essencialmente hu-mano” há, por outro lado, a ânsia de encontrar um núcleo comum queidentifica a humanidade. Esse núcleo comum, pode-se dizer, repousa naprópria idéia de solidariedade. Como afirma Rorty,62 mesmo que não seadmita que haja direitos fora da história, porque é ela que os constrói,quando ela se conturba e as instituições e padrões de conduta entram emcolapso, o que se quer é preservar algo para além da história e para alémdas instituições.

Nesse diapasão, o fenômeno da transnacionalização do direito con-fronta os juízes nacionais com uma realidade inusitada, qual seja a cons-tatação de que deixaram de ser as estrelas que brilhavam sozinhas naconstelação das soluções dos litígios.63 Não se pode ignorar a existência

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acesso à justiça e da efetividade dos direitos, temas que se encontram no olho do fura-cão das teorizações sobre jurisdição na atualidade; f) Depois de Chiovenda, Carne-lutti viu na jurisdição a função de compor de forma justa a lide e fez dessa a carac-terística essencial para a presença da jurisdição, revelando a compreensão privatistaque dela tinha no que o seguiu Calamandrei, adepto da teoria unitária do ordena-mento jurídico que sustenta que a lei se individualiza por meio da sentença. Seriademasiado exigente descrever nos estreitos limites desta nota a compreensão con-temporânea de jurisdição e que foi construída ao longo do Século XX. Assim, ape-nas refere-se que a jurisdição da contemporaneidade cabe além de atribuir significadoe aplicação aos valores constitucionais, dar também tutela ao direito material envol-vido, por meio de procedimentos adequados.Veja-se por todos: MARINONI, Luiz Gui-lherme. A jurisdição no Estado contemporâneo. In: MARINONI, LUIZ Guilherme(Org.). Estudos de Direito Processual Civil. São Paulo; RT, 2005, p. 13 a 66.Análise crí-tica sobre a Teoria geral do processo e jurisdição pode ser encontrada em: SALDANHA,Jânia Maria Lopes. Da teoria geral do processo à teoria da tradução: Um aporte dasociologia das ausências e das emergências. In: DIDIER JUNIOR, Fredie. JORDÃO,Eduardo Ferreira. (Orgs.). Teoria do Processo. Panorama doutrinário mundial. Salvador:Podium, 2007, p. 389-427.

62 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. São Paulo: Martins Fontes,2007, p. 312.

63 Ora, como se sabe tal “desterritorialização” faz parte de um fenômeno maisamplo que deriva da globalização. Como lembra BECK, Ulrich a arquitetura do pensa-mento, da ação e da vida dentro dos espaços e das identidades nacionais, desmantela-

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de um conjunto de instâncias jurisdicionais regionais e internacionais,que colocam em cheque a estatalidade das soluções dos conflitos.64

Trata-se de um fenômeno relativamente recente que provoca a porosi-dade/permeabilidade do direito65, mas que acaba por atingir também asdemais jurisdições que não só as estatais. A complexidade emerge narazão direta da inexistência, em regra, de hierarquia entre essas jurisdi-ções, exigindo, portanto, o desenvolvimento de um trabalho de coorde-nação entre elas, ante toda a falibilidade de qualquer pretensão ao isola-mento.

Desse ponto de vista, será possível que se construa um tipo de juris-dição que, para além da concretização dos valores constitucionais e paraalém da guarda do direito material, tenha a solidariedade como fio con-dutor da sua racionalidade e do seu agir? Se a resposta for positiva, a con-dição de possibilidade para sua efetivação não estaria ligada a uma boadose de ousadia dos juízes que necessariamente teriam de alforriar-sedos limites impostos por seu direito nacional para, assim, voltarem-se aodiálogo com seus pares de outras paragens e terras, a fim de, nesse diá-logo cooperativo, aprender uns com os outros?66

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-se frente à globalização econômica, política, ecológica, cultural e biográfica. In: O queé globalização? Equívocos do globalismo. Respostas à globalização.São Paulo: Paz e Terra, 199,p. 122.

64 No plano internacional, por exemplo, funciona a Corte Internacional de Justiça em Haia. No plano supranacional atua o Tribunal de Justiça da ComunidadeEuropéia. Em âmbito regional a Corte Interamericana de Direitos Humanos. HÖFFE,Otfried propõe uma República Mundial e, segundo ele, no campo da Justiça poderãoexistir duas esferas de jurisdição. Os Tribunais Internacionais, que se destinariam a solu-cionar os litígios entre os Estados e a República Mundial, e os Tribunais de DireitoCosmopolítico, com competência para atuar nos casos em que os Estados tenhamcometido ilícitos contra os direitos humanos. Consulte-se: A democracia no Mundo deHoje, op. cit., p. 428.

65 DELMAS-MARTY. Les forces imaginatives du droit (II).Le pluralisme ordonné, op.cit., p. 40.

66 Afinal não é isso que tem ocorrido e que ocorreu quando os juízes europeus— e hoje os da América — passaram a dar concretização aos direitos humanos, aindaquando não positivados em suas cartas constitucionais? Não seriam as decisões dos juí-zes europeus uma “grande declaração sobre os homens”? Uma alusão primorosa a res-peito pode ser vista em SLOTERDIJK, Peter. Se a Europa despertar. São Paulo: EstaçãoLiberdade, 2002, p. 76-77.

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Alard e Garapon67 afirmam que quando os juízes nacionais tomamas decisões estrangeiras como razão de decidir, não o fazem como regrageral, mas como exemplo do que se faz em outras partes. Ao referiremsobre o que denominam de “comércio de juízes”, indicam as formas queesse pode tomar em diferentes processos, seja quando se trata de ques-tões ligadas à homossexualidade,68 aos julgamentos de crimes contra ahumanidade em tribunais penais internacionais,69 às decisões do Tribu-nal Europeu sobre Direitos do Homem em processo de eutanásia,70 aofinanciamento das campanhas eleitorais,71 ao mandado de detençãoeuropeu72 e, por fim, à arbitragem internacional.

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67 Os juízes na mundialização…, op. cit., p. 16-30.68 Foi o caso que envolveu um indivíduo chamado Lawrence encontrado tendo

relações sexuais com outro homem, maior de idade e consentidor.Após ter sido con-denado nas instâncias jurisdicionais do Texas, Lawrence obteve vitória junto a SupremaCorte Americana por esta ter reconhecido ser a Lei texana que condena a sodomia,inconstitucional.A Suprema Corte foi buscar argumentos em decisões do Tribunal Eu-ropeu dos Direitos Humanos para fundamentar sua decisão. Alard e Garapon, quantoa esse caso específico, dizem que a comunicação entre os juízes pode tomar diversasformas, ou seja, vertical, no caso de um tribunal supranacional, como o de Luxemburgoem relação às jurisdições nacionais dos Estados da União Européia, ou horizontal,quando faz-se presente a coordenação, como se dá entre o primeiro tribunal e osegundo aqui citados, uma vez que não existe entre eles qualquer relação orgânica oude hierarquia, mas no entanto, citam-se reciprocamente.. Ibid., p. 16-20.

69 Lembre-se da atuação dos tribunais penais internacionais ad hoc como para aex-Iuguslávia e para Ruanda, que desafiaram juízes internacionais de diferentes cultu-ras, em razão dos métodos, práticas e teorizações de ambos os tribunais relativamenteà própria formação nacional dos julgadores.

70 Com referência especial ao Processo Pretty, em que uma jovem pedia autori-zação para praticar eutanásia. Chegando a questão ao TEDH-Tribunal Europeu dosDireitos do Homem, esse confirmou decisão inglesa anterior que no mesmo sentidohavia sido proferida com base em um acórdão do Tribunal do Canadá. Os juízes ingle-ses e do TEDH tomaram a decisão canadense como um “manancial de idéias”, bus-cando legitimidade em seu feito à base da fertilização recíproca, assim denominada porDelmas-Marty. Ibid., p. 23-24.

71 Caso em que os advogados é que buscaram endossar suas posições em pro-cesso em que eram discutidos os limites máximos para as despesas das campanhas elei-torais visando, desse modo, comparar soluções legislativas sobre a matéria em diversosEstados. Ibid., p. 25.

72 Que pôs em questão a construção de um espaço judicial comum, sendo esseum mecanismo estritamente judicial, quando os sistemas judiciais não entram em con-

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Experiências jurisdicionais contemporâneas evidenciam que o credona justiça fechada ao seu próprio ordenamento não passa de utopia, poisos sonhos, as ambições e as realizações cotidianas dos homens há muitodesatrelaram-se de espaços geopolíticos estatais. No campo da prática dajurisdição, tal situação se notabiliza pelo fato de que, em inúmeras si-tuações, os juízes nacionais têm levado a sério, nas suas decisões, normase decisões vindas de fora. Esse é um dos passos determinantes na cami-nhada do direito cosmopolítico.Vejamos quais são os demais.

3. Cosme, distanciamentos aproximativos e a efetivação dodireito cosmopolítico

Afastando de si o prato de escargots, o menino Cosme Chuvasco deRondó afirma, intempestivamente, sua recusa em comê-los. O pai or-dena-o, então, a sair da mesa de refeições. Contrariado, o menino sobeem uma árvore do jardim e, daquele momento em diante, nunca maispõe os pés no chão.

O enredo que tece o romance de Italo Calvino tem muito mais aoferecer ao leitor do que mero divertimento — pelas peripécias do“Barão Cosme”, a equilibrar-se entre os galhos das árvores de Penúm-bria, cidade onde vive, fielmente acompanhado de seu cão ÓtimoMáximo — ou encantamento — por seu amor pela donzela SofonisbaViola Violante de Rodamargem. O barão nas árvores é uma obra profun-damente humana e reflexiva.

Ao dizer não aos valores viscosos (representados na narrativa deCalvino pelo escargot e pelo visgo), Cosme deixa claro seu perfil dinâ-mico e não conformador. Capaz de superar-se constantemente e de

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corrência, mas sim numa avaliação recíproca permanente. É o que se almeja, de certomodo, implementar na Ibero-America com o Projeto de Código Modelo de Coope-ração Interjurisdicional, por meio de instrumentos de cooperação interjurisdicionalcomuns como auxílio mútuo; carta rogatória; ação e incidente de impugnação da efi-cácia da decisão estrangeira; procedimento de execução de decisão estrangeira; pro-cedimento de medida judicial de urgência e procedimento de extradição. In: GRI-NOVER, Ada Pelegrini e Outros. Projeto de Código modelo de cooperação interjurisdicionalpara a Ibero-America. Revista da Escola Nacional da Magistratura.Ano II. Edição n.° 4.Brasília: Escola Nacional da Magistratura, 2007, p. 98-112.

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encarar a realidade de forma ativa e participante, ele aproveita o que amodernidade lhe oferece de melhor: lê os enciclopedistas, escreve tra-tados (como seu Projeto de constituição de um Estado ideal fundado em cimadas árvores) e, principalmente, utiliza-se da força que a razão confere àcoisas73.

Apesar de a ação da narrativa transcorrer no século XVIII, a refle-xão a que ela conduz é quase atemporal, não fosse o fato de que as re-cusas de Cosme, referidas acima, estão bastante atreladas ao contextofático-temporal em que viveu. Por trás de seu isolamento — que não épropriamente um isolamento, pois “quanto mais decidido estava a ficarsozinho entre seus galhos, mais sentia necessidade de criar novas relaçõescom o gênero humano”74 — há o desejo constante de compreendermelhor o mundo em que vive, de descobrir novas formas de ser útil aomeio do qual faz parte e de dar voz a uma concepção de mundo aper-feiçoada, em relação àquela que a sociedade tradicionalmente cultivava.

O cosmopolitismo, ao que parece, é o valor maior a informar a ra-cionalidade de Cosme. Decidido a superar os limites comuns a seutempo, acaba por enraizar-se num cosmos maior, ainda que não ao níveldo mundo, já estendido à sua comunidade. Escapar do particularismo,sem renunciar à pertença ao seu grupo originário: é assim que o barãosemeia sua mensagem, legando ao pensar cosmopolita mais uma con-tribuição.

Aponta-se, com freqüência, Diógenes de Laertes (413 a.C. — 323a.C.), maior representante do cinismo — filosofia grega que combatia oprazer, o desejo e a luxúria por impedirem a auto-suficiência — comoo precursor do cosmopolitismo.Ao ser indagado acerca de qual seria suapátria, o filósofo respondeu — como Cosme responderia — que era um“cidadão do mundo (cosmos), e não de um estado ou cidade (polis)qualquer”. Os representantes do estoicismo — doutrina filosófica origi-nada na Grécia, e que afirma que toda a humanidade constitui uma única

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73 Ao conversar com sua amada, Cosme explica a ela que “todas as coisas, como uso da razão, aumentam seu poder”. Desse modo, o amor também deveria funcio-nar com raciocínios, a fim de tornar-se ainda mais forte. Não se trata de impessoalizaros sentimentos, como pode parecer à primeira vista, mas de conferir-lhes razoabilidade,ao menos na leitura a que esse texto se propõe. O barão… Op. Cit, p. 198.

74 Ibid., p. 221.

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comunidade — elaboraram e lapidaram, sob a influência cínica, este tipode pensamento.

Marco Aurélio, representante do período romano do estoicismo, emseu Pensamentos, reconhecia-se como “cidadão de um mundo governadopela razão”, conforme lembra Pierre Jean-Labarrière. A razão, comocondição de compatibilidade, por seu caráter supostamente universal,teria o condão de unir os homens numa comunidade de princípios, paraalém dos particularismos locais.75 Ademais, o reconhecimento da uni-versalidade da razão implicaria em uma recusa da ideologia que tende a separar o mundo em “civilizados” e “bárbaros”.

Seria redundante lembrar aqui o paradoxo inerente aos temposmodernos? Se, de um lado, a modernidade foi impulsionada pelo reco-nhecimento da universalidade da razão, por outro, sua crise resulta da“imposição de normas particulares como universais sem o devido con-senso, em função de um mecanismo de falsificação que apresenta o par-ticular como um simulacro de universal”, no dizer de Juremir Silva.76

É, porém, no início dos tempos modernos que o ideal virtuoso dosestóicos conhece um renascimento significativo, embora o universalismocristão de São Paulo e Santo Agostinho retome essa idéia num certo sen-tido — ao estabelecer a igualdade de todos, não como cidadãos domundo, mas como “cidadãos do céu” — e o humanista holandês Erasmode Roterdão (1469-1536) tenha proposto um “cosmopolitismo ex-clusivo”.77

Diderot,Voltaire e David Hume, cada um à sua moda, retomaram,no século XVIII, as discussões acerca do tema. O desenvolvimento dodireito internacional público e da crença predominante nos direitosnaturais representaram fortes limitações cosmopolitas ao conceito desoberania, a partir do surgimento do Estado-nação moderno na Europa,que se seguiu ao Tratado de Westfália, de 1648.78

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75 LABARRIÈRE, Pierre-Jean, Cosmopolitismo. Disponível em <http://www.mon-dialisations.org/php/public/art.php?id=1853&lan=PO>

76 SILVA, Juremir Machado da. Depois da modernidade. In: Aplauso. Porto Ale-gre:Via Design, ano 10, v. 85, 2007.

77 HOFFE, Otfried.A Democracia…, op. cit., p. 395.78 O Estado não poderia, para os iluministas cosmopolitas,“ser visto como uma

entidade isolada e abstrata, divorciada de sua ligação natural com a sociedade univer-sal de Estados e despojada de suas responsabilidades com o resto da humanidade”.

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Porém Kant, com “Idéia de uma história universal de um ponto de vistacosmopolita” (Idee zu einer Allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht)— espécie de manifesto, publicado na Berlinische Monatsschrift de novem-bro de 1784,79 — foi quem “deu à luz científico-filosófica” o cosmopo-litismo.80

O intento de Kant, neste texto é o de, por meio de nove “propo-sições”, descobrir qual é o propósito da natureza, o qual os homens esta-riam fadados a seguir. Na quinta proposição, Kant reconhece que “omaior problema para a espécie humana, a cuja solução a natureza aobriga, é alcançar uma sociedade civil que administre universalmente o direito”.81 Em suma, a instituição do direito cosmopolítico. Este pro-blema, segundo ele, será o último a ser resolvido pela espécie humana,uma vez que a vasta maioria dos homens tem necessidade de líderes (ousenhores), que os obriguem a obedecer à vontade universalmente vá-lida.82

Já neste escrito kantiano, subjaz a idéia de que a pacificação resultade constantes ajustes, esforços e superações. É como se o direito cosmo-político estivesse, sempre, a exigir dos homens sucessivas renúncias.Alémda renúncia a uma mentalidade estreita, conforme explicitado anterior-mente, e à atuação em monólogos jurisdicionais, há ainda duas delas quemerecem anotação. A primeira é a renúncia ao isolamento ou, antes, aodistanciamento.

O distanciamento não deve ser compreendido, aqui, sob a ótica dapassividade.A renúncia exigida pelo direito cosmopolítico não se dirige

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HAYDEN, Patrick. Kant, Held e os imperativos da Política Cosmopolita. Tradução deNuno Coimbra Mesquita. Revista IMPULSO, v. 15, n. 38: Immanuel Kant, p., Piraci-caba: UNIMEP, set./dez. 2004, p. 85.

79 Kant, Immanuel. Idéia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopo-lita. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

80 Ainda que, como lembra HÖFFE, Otfried, as virtudes cosmopolíticas em sen-tido político tenham sido abordadas por Kant de forma incidental e genérica, mesmoem À paz perpétua, a qual será analisada a seguir. In:A Democracia …, p. 393.

81 Ibid, p. 1482 A renúncia ao instinto e o uso da coerção seriam as ferramentas eficazes na

construção de todas as sociedades. Segundo Freud, os homens não se inclinam espon-taneamente ao trabalho, e os argumentos nada valem contra suas paixões.Ver, paratanto, FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Tradução de José Octávio de AguiarAbreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

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tão somente aos que distanciam-se de realidades alheias, por negar-lhesimportância; mas antes, àquela razão dissimulada, que distancia-se dosanseios da coletividade, aproximando-se de interesses individuais. Emsíntese, deve-se renunciar a uma aproximação distanciadora, distanciadoraporque não verdadeiramente aproximativa.

Novamente, recorre-se à metáfora de Calvino para esclarecer umponto bastante significativo. À primeira vista, pode parecer estranha a escolha de Cosme — um homem que abdicou o contato com o solo— como representante de uma racionalidade cosmopolita.Afinal, não foiele quem, voluntariamente, distanciou-se de seus pares?

Sim. Realmente, o barão faz pensar que seu isolamento restringiu--lhe horizontes, conferindo-lhe uma razão “indolente”83. Mas este é umargumento que não resiste a uma análise detida pois, como visto acima,o distanciamento aproximou-o ainda mais da essência humana, por lhepresentear com a diversidade.

O distanciamento aproximativo de Cosme é uma preparação paracompreender que a segunda das renúncias exigidas pelo direito cosmo-político é justamente à intolerância. Isto porque a tolerância abre as por-tas para o diferente, para o inusitado, para a pluralidade. Tolerar repre-senta, para o pensar cosmopolita, a inclusão do outro, e a reinvenção doprincípio da solidariedade.

José Manuel Aroso Linhares alerta, lembrando Habermas, para ofato de que as condições para que se (re)constitua o projeto da hospi-talidade universal tem hoje “menos a ver com a hospitalidade de um“direito de visita” do que com a tolerância garantida pelo discurso epelas regras de procedimento que o sustentam.”84

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83 Essa expressão é de autoria de SANTOS, Boaventura de Sousa. O autor criticaa razão indolente, aquela que contrai o presente, por adotar uma concepção de totali-dade, e expande o futuro, tratando-o sem o devido cuidado. Segundo o autor, há umdesperdício de experiência, que deve ser combatido, não com a proposta de um outrotipo de ciência social, mas de um modelo diferente de racionalidade: a razão cosmo-polita. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (Org.) Conhecimento prudente para uma vidadecente. São Paulo: Cortez, 2004, p. 779-780.

84 HABERMAS, Jürgen apud AROSO LINHARES, José Manuel. In: Jus Cosmopoliti-cum e Civilização de direito: as “alternativas” da tolerância procedimental e da hospi-talidade ética. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra. Vol LXXXII. Coimbra: 2006,p. 157.

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A ética da hospitalidade nem sequer tem de ser cultivada, pensaDerrida. “Na medida em que diz respeito ao ethos, à morada, (…) aomodo de se relacionar consigo e com os outros, a ética é a hospitalidade”.85

Acredita o filósofo que a experiência das “cidades-refúgio” dá lugar depensamento à experimentação de uma democracia e de um direito cos-mopolíticos por vir.

Em À paz perpétua, obra escrita em 1795, Kant apresenta o quechama de artigos preliminares à paz perpétua entre Estados. A segundaseção trata dos três artigos definitivos, sendo seguida por dois suplemen-tos. Aliando-se aos pensadores que vislumbram o “estado de natureza”como um estado de guerra, Kant acredita que a paz deva ser asseguradapor estruturas jurídicas institucionais. Confere, essa abordagem, relevân-cia ao direito público.

Declarando que a Constituição civil em cada Estado deva ser repu-blicana e que um federalismo de Estados livres deve fundar o direito dasgentes, Kant prepara o terreno para o acréscimo de uma terceira dimen-são à teoria do direito:“ao direito público e ao direito internacional vemsomar-se o direito cosmopolita”.86

Isto porque no terceiro, dos três artigos definitivos, Kant constataque o direito cosmopolita deve ser limitado às condições da hospita-lidade universal. Sendo coletivamente proprietários do planeta, com-pete a cada um e a todos, desde que ajam pacificamente, o “direito devisita”.

À hospitalidade universal, atribui dois limites relevantes. Esses limi-tes geram inúmeras questões, que Derrida julga difíceis de esconder e dedominar, segundo suas palavras.87

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85 DERRIDA, Jacques. Cosmopolitas de todos os países, mais um esforço! Tradução deFernanda Bernardo. Coimbra: Minerva-Coimbra, 2001, p. 43. Nesse sentido, MORIN,Edgar aproxima-se do pensamdento de DERRIDA, quando observa que “Todo olharsobre a ética deve perceber que o ato moral é um ato individual de religação; religa-ção com um outro, religação com uma comunidade, religação com uma sociedade e,no limite, religação com a espécie humana” In: O método 6: ética.Tradução de Jure-mir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2005, p. 21.

86 HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução deGeorge Sperber e Paulo Astor Soethe. São Paulo, Loyola, 2002, p. 185.

87 Cosmopolitas… Op. Cit., p. 57.

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O primeiro deles é a exclusão da hospitalidade como direito de resi-dência, o qual deveria ser objeto de um tratado particular entre Estados,por não tratar-se, a hospitalidade, de filantropia, mas de direito.

O segundo é representado pela significação da hospitalidade comopublicidade do espaço público. Definindo-a rigorosamente como direito,Kant adstringiu a hospitalidade às condições da soberania estatal, comono caso do direito de residência.

Há que se considerar, por óbvio, que o mundo de hoje difere emlarga medida do mundo de Kant. É inegável que

“[…] os enunciados básicos do projeto kantiano sofreram uma erosão his-tórico-concreta, que poderia ser definida em dois grandes planos: pri-meiro, a erosão (no plano puramente normativo) do Direito Internacio-nal Público, à medida que os imperativos econômicos impostos pelatransnacionalização da produção reduziram drasticamente a liberdade dasnações e, também, a sua capacidade de decidir ‘livremente’ sobre a ‘pazperpétua’. Segundo, a erosão ocasionada pela transnacionalização das rela-ções, que gera um outro tipo de cultura, que produz um sujeito indivi-dual diferente daquele sujeito-cidadão formal da época em que se estabi-lizavam os Estados-nação analisados por Kant.”88

Se é verdade que a nova realidade do mundo pede estratégias dife-rentes para atingir a paz perpétua, essa superação exige o acréscimo dosentimento, como legitimador dos projetos humanos.

Sentimento que leva a acolher o outro como igual, pois portador deuma essência comum. Que se furta à comodidade, uma vez que o con-formismo não coaduna com o bem comum. Que leva a reconhecer asdeficiências internas, buscando a colaboração externa como horizontede possibilidade de progresso.

Esta é uma tarefa que exige a superação de barreiras, num duplosentido. Primeiro, é preciso superar a barreira da racionalidade (racional-positivista). Aquela que inscreve na mentalidade do jurista a concepçãode um direito hierarquizado, que em cujo topo instala-se o legisladornacional soberano, semideus da modernidade.

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88 GENRO,Tarso.A “Paz perpétua”no mundo atual. In:ROHDEN,Valério (Coord.).Kant e a instituição da paz. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, Goethe-Insti-tut/ICBA, 1997. p. 239.

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Num segundo momento, é preciso superar a barreira da sensação(de culpa).Aquela que fomenta, no jurista, a idéia de que a soberania seabala quando se fazem concessões a valores externos, não tendo o direitointernacional outra função que não a de resolver conflitos pontuais. Seriaa partilha verdadeira heresia, a fomentar a instabilidade e a desordeminternas.

Delineia-se, a partir daqui, um novo modelo de jurista e de juris-dição. Por tê-las superado, ele é sujeito de uma aproximação sem barrei-ras, capaz de recepcionar e exportar racionalidades, princípios e valores.Não intolerante, não egoísta, sem medo das incertezas: este é o juristacosmopolita.

O cosmopolitismo, ao contrário do que dizem muitos, não é umafilosofia a pregar a homogeneidade.A variedade humana é, para o direitocosmopolítico, fonte inesgotável de conhecimento e fruição. Na verdade,como lembra Kwame Anthony Appiah, “em um mundo mais respeita-dor da dignidade humana e da autonomia pessoal, tal movimento emdireção à homogeneidade provavelmente iria desacelerar-se”.89

É invocada mais uma vez, aqui, a figura do barão Cosme de Rondó.Com um gosto inigualável pela diversidade, o personagem demonstraque a imaginação, a renúncia e a superação das mazelas humanas sãovalores caros ao “esforço” cosmopolita.

Com Cosme, aprende-se a valorizar perspectivas diversas, a transporracionalidades egoístas, a enfrentar as incertezas e dialogar com o desco-nhecido. Para além de Cosme, deve-se reconhecer a necessidade de man-ter os pés no chão, de adotar novos pontos de vista, sem olvidar que osanseios por justiça e por dignidade requerem batalhas constantes, trava-das lado a lado, com aliados ora próximos, ora distantes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De forma preliminar, este texto buscou demonstrar que o fenô-meno da transnacionalização do direito tem sido fomentado por um

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89 APPIAH, Kwame Anthony. Cultura, comunidade e cidadania. In: A crise dosparadigmas em ciências sociais e os desafios para o século XXI. Agnes Heller, et al. Rio deJaneiro: Contraponto, 1999, 242.

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alargamento da concepção de justiça. Se a modernidade limitou-se aencarar o direito sob o prisma hierárquico, as condições hodiernas impe-lem os juristas, em especial os juízes, a extrapolar esta perspectiva.

Na pauta dos temas a exigir, do direito, decisões urgentes, prolife-ram questões difíceis e complexas. Difíceis, porque os juízes — enge-nheiros da mundialização —, no mais das vezes, não encontram, nas pala-vras (cada vez mais evasivas) dos legisladores nacionais, os elementossuficientes para solucionar o quebra-cabeça. Complexas porque, aindaque encontrem tais elementos, a solução justa, nestes casos, requer a coo-peração e a harmonia com seus pares, além de envolver interesses deoutros Estados-nacionais.

Frente a esse panorama,Têmis retoma sua face humana, aliando aoseu poder a necessária “mentalidade alargada” de que necessita, para dia-logar solidariamente com os homens. Dando latitude à sua compreen-são, é capaz de reconhecer, em Marco Pólo e no Barão Cosme deRondó, metáforas ajustáveis aos tempos em que vive.

Com Marco Pólo, e reconciliados com Têmis, os juízes compar-tilham o apetite pela descoberta. Se Marco Pólo encontrou na viagem oêxtase de seu viver, os juízes avistam, nos “comércios judiciais”, mais umafonte a inspirar-lhes parâmetros persuasivos, e a fortalecer-lhes a convic-ção de que suas decisões aliam-se aos princípios de justiça.

Em meio às complexidades e incertezas, o direito nacional tende aabrir-se às influências transnacionais, em especial no que atine aos direi-tos humanos. Assiste-se, notadamente, a uma internacionalização dodireito constitucional. A recíproca é verdadeira: os elementos constru-tivos das Constituições nacionais tendem a fornecer condições de pos-sibilidade a acordos supranacionais, produzindo os contornos de umaconstitucionalização do direito internacional.

Ainda que esse processo se revele tímido, muitos elementos dessapaisagem sugerem a emergência de um direito mais tolerante, compro-metido com a consolidação das garantias asseguradas pelos direitos hu-manos e menos receoso no que atine às incertezas. É a emergência dodireito cosmopolítico. Cosme, o barão que viveu sua vida nas árvores,estimula Têmis a adotar novas perspectivas e renunciar ao distancia-mento.

A efetivação do direito cosmopolítico não nega o consenso, maselogia a diversidade. Reduzir a complexidade não é seu intento, mas des-

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cobrir formas eficazes de lidar com ela é uma de suas metas principais.Há muito que se caminhar em direção ao progresso qualitativo, no âm-bito do direito, para preservar as conquistas da humanidade. O primeiropasso é garantir que não feneçam, batalhando contra o enclausuramentoda justiça.

RÉSUMÉ: Le texte réhabilite la conception de “mentalité élargie”, définie parKant et renforcée par Hannah Arendt, en montrant la nécessité de repenser la relation deThémis avec les hommes. Dans un scénario de complexités et d’insuffisance des concep-tions traditionnelles, le droit cosmopolite apparaît comme une perspective possible derupture et d’émancipation, en renforçant et en perfectionnant les arguments dont se ser-vent les juges pour légitimer la transnationalisation du droit.

MOTS CLÉS: Droit cosmopolite, transnationalisation,“mentalité élargie”.

ABSTRACT: This paper revives the concept of “enlarged mentality” defined by Kant and consolidated by Hannah Arendt, indicating the need to reconsider the relationship between Themis and humankind. In a context characterized by complexityand the inadequacy of traditional concepts, cosmopolitan law offers the possibility of rupture and emancipation, consolidating and perfecting the arguments used by judges tolegitimize the transnationalisation of law.

KEYWORDS: Cosmopolitan law, transnationalisation, enlarged mentality.

ZUSAMMENFASSUNG: Dieser Beitrag beleuchtet den von Kant definiertenund von Hannah Arendt gefestigten Begriff der “erweiterten Denkungsart”, wobei dieNotwendigkeit einer Neubestimmung des Verhältnisses von Temis zu den Menschenherausgearbeitet wird.Vor dem Hintergrund von Komplexität und der Unzulänglichkeitder traditionellen Konzepte wird das kosmopolitische Recht als eine mögliche Aussichtauf Bruch und Emanzipation erfahren, indem es die von den Richtern zur Legitimationder Transnationalisierung des Rechts verwendeten Argumente untermauert und aus-richtet.

STICHWÖRTER: Kosmopolitisches Recht,Transnationalisierung, erweiterte Denkungsart.

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