memorial de formação docente

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1 MEMORIAL DE FORMAÇÃO – REGISTRO DE UM PERCURSO Ana Lúcia Guedes-Pinto 1 Escrever um memorial? A tarefa de escrever um memorial de formação pode se configurar, a princípio, como um desafio difícil de se enfrentar, pois nos provoca inúmeras questões e dúvidas tais como: que encaminhamentos devemos dar a sua escrita? Que escolhas fazer em sua narrativa? O que se conta e o que não se deve revelar? E se não conseguirmos lembrar? E se a memória falhar? Como ter o discernimento sobre o que é relevante contar? Creio que todos esses questionamentos fazem parte do processo da escrita de um texto marcado pela subjetividade – pois se trata do relato da experiência vivida do sujeito narrador - e que ainda possui a particularidade de se referir à sua história pessoal. No entanto, vários autores como Pollak (1992) e Bosi (1995) enfatizam que essa história pessoal é perpassada e nuançada pela história sócio-cultural em que estamos todos inseridos, no movimento da história do Homem. Por outro lado, Portelli (1997) acrescenta a essas considerações o fato de que, apesar de as memórias individuais serem constituídas a partir dessa vivência socialmente compartilhada, elas serão sempre singulares e únicas, pois cada sujeito traz consigo uma experiência própria de vida e, neste aspecto, irrepetível. Ou seja, a história de cada um não poderá ser igual a de qualquer outro e, neste sentido, ela sempre contribuirá com mais uma versão dos fatos vividos, enriquecendo e ampliando o patrimônio histórico-cultural da humanidade. Por essa perspectiva, um memorial – no âmbito de um curso de formação de professores com o caráter de trabalho de conclusão – está tanto voltado ao registro da trajetória pessoal do sujeito-narrador tendo como referência a formação acadêmico-profissional como também será marcado e circunscrito pelo movimento mais amplo da história, sendo socialmente datado e constituído, pois terá sua redação, sua construção e publicação ocorridas dentro de um curso de formação específico, em uma faculdade e universidade específicas, em um tempo histórico definido. Trabalhar com a memória. Bosi (1995), em seu trabalho de livre-docência por meio do qual focalizou a reconstrução da memória de velhos paulistanos, destaca o caráter da memória-trabalho. Ou seja, a rememoração não é, em geral, espontânea e livre, mas um processo que envolve esforços e dedicação (no caso de pessoas idosas essa faceta se revela com mais nitidez). Afirma a autora: Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (Bosi, 1995: 55) Soares (1991), ao escrever seu memorial como exigência para a inscrição no concurso de professora titular da UFMG, destaca um outro aspecto a respeito do movimento de rememorar. Quando nos voltamos a olhar para o nosso passado, ao tentarmos recuperar os diversos caminhos pelos quais passamos na trajetória de nossa vida, sempre o fazemos tendo em vista o momento presente em que vivemos. Não dá para fugirmos da nossa condição de sujeitos engajados na vida do nosso hoje e do nosso agora. Em seu texto a autora enfatiza essa questão: Procuro-me no passado e “outrem me vejo”; não encontro a que fui, encontro alguém que a que sou vai reconstruindo, com a marca do presente. Na lembrança, o passado se torna presente e se transfigura, contaminado pelo aqui e agora (grifos da autora - 1991: 37). No trecho acima Soares torna visível o aspecto da reconstrução da memória: rememoramos a partir do nosso presente encarnado, a partir da nossa compreensão de vida até aquele determinado momento em que lembramos. É com base na realidade vivida que conseguimos olhar para o passado: por isso “reconstrução”. Somado a isso, Thomson (1997), historiador oral que estudou através de depoimentos orais a participação dos trabalhadores 1 Professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora do grupo AULA.

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Memorial de Formação Docente

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Page 1: Memorial de Formação Docente

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MEMORIAL DE FORMAÇÃO – REGISTRO DE UM PERCURSO

Ana Lúcia Guedes-Pinto1

Escrever um memorial?

A tarefa de escrever um memorial de formação pode se configurar, a princípio, como um desafio difícil de se enfrentar, pois nos provoca inúmeras questões e dúvidas tais como: que encaminhamentos devemos dar a sua escrita? Que escolhas fazer em sua narrativa? O que se conta e o que não se deve revelar? E se não conseguirmos lembrar? E se a memória falhar? Como ter o discernimento sobre o que é relevante contar? Creio que todos esses questionamentos fazem parte do processo da escrita de um texto marcado pela subjetividade – pois se trata do relato da experiência vivida do sujeito narrador - e que ainda possui a particularidade de se referir à sua história pessoal. No entanto, vários autores como Pollak (1992) e Bosi (1995) enfatizam que essa história pessoal é perpassada e nuançada pela história sócio-cultural em que estamos todos inseridos, no movimento da história do Homem. Por outro lado, Portelli (1997) acrescenta a essas considerações o fato de que, apesar de as memórias individuais serem constituídas a partir dessa vivência socialmente compartilhada, elas serão sempre singulares e únicas, pois cada sujeito traz consigo uma experiência própria de vida e, neste aspecto, irrepetível. Ou seja, a história de cada um não poderá ser igual a de qualquer outro e, neste sentido, ela sempre contribuirá com mais uma versão dos fatos vividos, enriquecendo e ampliando o patrimônio histórico-cultural da humanidade. Por essa perspectiva, um memorial – no âmbito de um curso de formação de professores com o caráter de trabalho de conclusão – está tanto voltado ao registro da trajetória pessoal do sujeito-narrador tendo como referência a formação acadêmico-profissional como também será marcado e circunscrito pelo movimento mais amplo da história, sendo socialmente datado e constituído, pois terá sua redação, sua construção e publicação ocorridas dentro de um curso de formação específico, em uma faculdade e universidade específicas, em um tempo histórico definido. Trabalhar com a memória. Bosi (1995), em seu trabalho de livre-docência por meio do qual focalizou a reconstrução da memória de velhos paulistanos, destaca o caráter da memória-trabalho. Ou seja, a rememoração não é, em geral, espontânea e livre, mas um processo que envolve esforços e dedicação (no caso de pessoas idosas essa faceta se revela com mais nitidez). Afirma a autora:

Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. (Bosi, 1995: 55)

Soares (1991), ao escrever seu memorial como exigência para a inscrição no concurso de

professora titular da UFMG, destaca um outro aspecto a respeito do movimento de rememorar. Quando nos voltamos a olhar para o nosso passado, ao tentarmos recuperar os diversos caminhos pelos quais passamos na trajetória de nossa vida, sempre o fazemos tendo em vista o momento presente em que vivemos. Não dá para fugirmos da nossa condição de sujeitos engajados na vida do nosso hoje e do nosso agora. Em seu texto a autora enfatiza essa questão:

Procuro-me no passado e “outrem me vejo”; não encontro a que fui, encontro alguém que a que sou vai reconstruindo, com a marca do presente. Na lembrança, o passado se torna presente e se transfigura, contaminado pelo aqui e agora (grifos da autora - 1991: 37).

No trecho acima Soares torna visível o aspecto da reconstrução da memória:

rememoramos a partir do nosso presente encarnado, a partir da nossa compreensão de vida até aquele determinado momento em que lembramos. É com base na realidade vivida que conseguimos olhar para o passado: por isso “reconstrução”. Somado a isso, Thomson (1997), historiador oral que estudou através de depoimentos orais a participação dos trabalhadores 1 Professora da Faculdade de Educação da Unicamp e coordenadora do grupo AULA.

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australianos como soldados na Primeira Guerra Mundial, além de ressaltar esse entrecruzamento constante entre os tempos vividos – aquele tempo que se foi e aquele que está sendo - no processo de rememoração, também chama atenção para a capacidade prospectiva que o trabalho da memória proporciona, assumindo o papel de propulsora de um futuro, possibilitando outras projeções para quem rememora. E aliado a esse fator, o autor ainda focaliza outro ponto concernente a esse processo: a rememoração relaciona-se à construção identitária do narrador, está intimamente ligada à identidade. Ele explicita:

Ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem

pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais. Assim podemos dizer que nossa identidade molda nossas reminiscências; quem acreditamos que somos no momento e o que queremos ser afetam o que julgamos ter sido (Thomson, 1997: 57).

Ao reconstruirmos nossa memória estamos ao mesmo tempo modificando o presente e

alterando o futuro. Por essa razão o trabalho com a memória amplia nosso horizonte de possibilidades, pois ela nos mobiliza e gera novas ações. Segundo Certeau (1994: 161), estudioso das práticas culturais, a memória produz uma ruptura instauradora.

Em decorrência desses vários aspectos constitutivos do trabalho com a memória, talvez uma pergunta surja em meio a tantas asserções: se ao reconstruirmos nosso passado o fazemos com os olhos do presente, como podemos nos assegurar de que lembramos dos fatos tal como ocorreram? Onde encontraremos a “verdade” de nosso passado? Como poderemos nos tranqüilizar de que nossa lembrança é confiável?

Sobre essas questões, diversos autores, como Thompson (1992), Portelli (1997) e Passerini (1993) já destacaram que a “verdade” entendida como algo fixo, estável e inquestionável não existe – não na perspectiva assumida por eles. Os fatos ocorridos na história terão sempre versões diferentes advindas da experiência de cada sujeito que os viveu. Assim, é constitutivo do ato de rememorar o imaginário de cada um. O que vale, ao nos debruçarmos sobre as lembranças que vão ficando e sendo registradas, é nos abrirmos e termos sensibilidade para compreendermos os sentidos atribuídos pelos sujeitos a respeito da experiência vivida. Amado (2003), historiadora oral, enfoca outro ponto relevante: o caráter simbólico contido na narração do passado. Neste aspecto, o trabalho com a memória reúne uma pluralidade de significados, ele documenta e registra – no nosso caso específico, o memorial de formação - a diversidade das vivências.

O papel da narrativa no processo de rememoração.

Ao rememorarmos, ao nos voltarmos ao passado e procurarmos torna-lo um relato, geralmente o fazemos por meio da narrativa. Esse modo de dizer específico - o narrar - possui algumas peculiaridades que o distinguem de outros modos de dizer e que por isso mesmo o tornam como meio eleito para a rememoração.

Segundo Benjamin (1996) a narrativa encerra saberes antigos e distantes da nossa cultura atual, pois germinou outrora como forma de expressão oral, como modo de manter vivas as histórias que não se podiam esquecer jamais, patrimônio da humanidade. A narrativa, conforme afirma o autor, tem como fonte de seu enredo e de sua tessitura a experiência acumulada pelo narrador. Ela possui a qualidade de conservar a tradição, de manter viva suas relíquias justamente por que pode ser facilmente contada e re-contada, alcançando com isso ampla circulação social, pois tem uma dimensão utilitária e um laço estreito com seus ouvintes. Por essa perspectiva, a narrativa está articulada à memória, à preservação de um saber-fazer socialmente constituído e cultivado.

Souza e Kramer (1996), tomando Benjamin e Bakhtin como referências teóricas em um trabalho que desenvolveram junto aos professores do município do Rio de Janeiro, compreendem a narrativa como espaço de produção de linguagem no qual se constroem conhecimentos e por meio do qual experiências podem ser compartilhadas. Ao optarem trabalhar com as histórias de vida desses professores e buscarem reconstituir sua relação pessoal com a leitura e a escrita, acreditam que essa possa ser uma maneira de compreender as práticas sociais e educativas desses sujeitos, sem com isso incorrer na postura de lançarem um olhar explicativo que tenha

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como foco categorizar suas práticas. As autoras preferem apreender, através das narrativas colhidas e registradas, como esses professores se vêem e que experiências trazem consigo na qualidade de leitores e escritores.

Memória e formação.

Kenski (1996), pesquisadora da área de formação de professores, acredita que o trabalho de rememoração realizado junto aos professores pode trazer pistas importantes a eles sobre sua prática docente, fornecendo com isso elementos outros para a compreensão dos vários aspectos constitutivos de sua vida profissional. A autora assume, portanto, o trabalho com a memória como uma alternativa possível de se fazer uso no processo de formação docente. Segundo a perspectiva que defende:

A análise e discussão das marcas do passado podem levar à compreensão da repercussão, na vida profissional, de diferentes situações vividas: crises, mudanças, rupturas, sucessos e fracassos. Esse conhecimento possibilita ao professor tomar medidas no sentido de superar determinados problemas, reformular concepções pessoais sobre sua maneira de ensinar, seu relacionamento com a disciplina, as formas que utiliza para avaliar seus alunos etc. além de resgatar a imagem pessoal do bom professor, construída a partir dos contatos efetuados durante toda a sua trajetória escolar (grifos da autora - Kenski, 1996: 106-107)

Kenski destaca um outro aspecto relativo à reconstrução da memória: quando nos

engajamos no processo de rememoração temos a possibilidade de refletirmos sobre nós mesmos, sobre nossa história particular, nosso percurso de vida.

Ao nos propormos reconstruir nosso passado (distante ou próximo) temos a oportunidade de repensarmos e ponderarmos a respeito de quem somos e de quem temos sido. Podemos dizer também que o processo de rememorar abre diversas vias, entre as quais a de nos surpreendermos conosco ao longo dessa retomada e ao longo desse recontar e a de nos darmos conta de elaborações e reflexões que nem sabíamos habitar-nos. Neste sentido, o trabalho com a memória é “formativo”, ou seja, proporciona transformações e re-direcionamentos no seu caminhar.

Guedes-Pinto (2002), ao trabalhar com as histórias de leitura das professoras-alfabetizadoras, enfatiza essa faceta da formação no processo de reconstrução da memória. A autora foi constatando que, ao recuperarem suas histórias como leitoras, as professoras tiveram a possibilidade de refletir sobre si mesmas e a re-conceitualizar a prática de leitura:

Compartilhar as memórias de leitura constituiu-se, na realidade, uma estratégia de

trabalho por meio da qual as professoras puderam refletir sobre as concepções de leitura que as formaram e aquelas que circulam na mídia, na academia e na escola. No processo de reviver o passado, suas leituras antigas puderam ser re-significadas e re-dimensionadas a partir de um novo conceito de leitura, que foi sendo construído ao longo da nossa relação interativa (Guedes-Pinto, 2002: 240).

A rememoração possui essa força de nos colocar em xeque, de nos formular indagações

sobre o vivido, sobre nossas escolhas e nossa experiência. E justamente em função desse diálogo que se inicia conosco mesmo é que nos revemos e nos surpreendemos “passando a limpo” a nossa história.

Lançar-se então à escrita de um memorial de formação através do qual temos a oportunidade de registrarmos e re-fazermos um percurso específico de nossa vida - nossa formação escolar-acadêmica e profissional – pode ser talvez uma maneira de divisarmos outros finais para a história que está em seu pleno transcurso...

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Referências bibliográficas: AMADO, Janaína. O Cervantes de Goiás. In Nossa História. N. 02. Rio de Janeiro: Biblioteca

Nacional, 2003.

BENJAMIN, Walter. O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. (Obras Escolhidas vol. I). (7a ed.) São Paulo: Brasiliense, 1996.

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade – Lembranças de Velhos. São Paulo: Cia das Letras, 1995.

CERTEAU, Michel de. Invenções do cotidiano – artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes: 1994.

GUEDES-PINTO, Ana Lúcia. Rememorando trajetórias da professora-alfabetizadora: a leitura como prática constitutiva de sua identidade e formação profissionais. São Paulo: Fapesp; Campinas: Faep/Mercado de Letras, 2002.

KENSKI, Vani Moreira. Memória e Prática Docente. In BRANDÃO, Carlos Rodrigues (org.) As Faces da Memória. Campinas: Centro de Memória-Unicamp, 1996.

PASSERINI, Luisa. Mitobiografia em História Oral. In Projeto História. N. 10. São Paulo: EDUC, 1993

POLLAK, Michael. “Memória e identidade social”. In: Estudos Históricos vol. 5 n. 10. Rio de Janeiro, 1992.

PORTELLI, Alessandro. “Tentando aprender um pouquinho, algumas reflexões sobre a ética na história oral” In: Projeto História n°15, São Paulo: Educ, 1997.

SOARES, Magda. Metamemória –memórias: travessia de uma educadora. São Paulo: Cortez, 1990.

SOUZA, Solange Jobim e KRAMER, Sônia. Experiência humana, história de vida e pesquisa: um estudo da narrativa, leitura e escrita de professores. In SOUZA, Solange Jobim e KRAMER, Sônia (orgs.) Histórias de professores: leitura, escrita e pesquisa em educação. São Paulo: Ática, 1996.

THOMPSON, Paul. A Voz do Passado: História Oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.

THOMSON, Alistair. “Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias”. In: Projeto História n° 15. São Paulo: EDUC, 1997.