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1 Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Assunção de São Paulo - Catedral da Sé Endereço: Praça da Sé, Centro, SP. Classificação: Espaço Religioso. Identificação numérica: 132-10.001 No centro da Capital de São Paulo, desde o início do século XX, a Catedral Metropolitana Nossa Senhora da Assunção de São Paulo, popularmente conhecida como Catedral da Sé, tornou-se pólo aglutinador de manifestações de massa que encontraram ali espaço de reunião e protesto. Ao assumir a Arquidiocese em 1970, Dom Paulo Evaristo Arns transformou a Catedral em tribuna de denúncias dos crimes cometidos pelo regime ditatorial, mas também local de apoio aos perseguidos políticos e seus familiares. Ao mesmo tempo, multidões passaram a se reunir na praça, em frente à catedral, reivindicando anistia, melhores condições de vida e eleições diretas para presidente. A praça passou a ser uma extensão da igreja, e quando os militares chegavam ao espaço público para reprimir a população que protestava, os religiosos abriam as portas da igreja para proteger a população. ATUAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR A instabilidade política do governo de João Goulart (1961-1964) favoreceu o cenário para o golpe civil-militar, e a Igreja Católica teve grande destaque, sobretudo, na promoção de manifestações públicas a exemplo das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. O movimento surgiu em meados de 1962, organizado por mulheres com apoio do clero, de alguns governos estaduais e dos militares. Nos primeiros meses de 1964 mulheres de diversas capitais e de importantes cidades do interior, apoiadas e organizadas pelo clero, promoveram debates, Memorial da Resistência de São Paulo PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

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Catedral Metropolitana Nossa Senhora da

Assunção de São Paulo - Catedral da Sé

Endereço: Praça da Sé, Centro, SP.

Classificação: Espaço Religioso.

Identificação numérica: 132-10.001

No centro da Capital de São Paulo, desde o início do século XX, a Catedral

Metropolitana Nossa Senhora da Assunção de São Paulo, popularmente conhecida

como Catedral da Sé, tornou-se pólo aglutinador de manifestações de massa que

encontraram ali espaço de reunião e protesto. Ao assumir a Arquidiocese em 1970,

Dom Paulo Evaristo Arns transformou a Catedral em tribuna de denúncias dos crimes

cometidos pelo regime ditatorial, mas também local de apoio aos perseguidos políticos

e seus familiares.

Ao mesmo tempo, multidões passaram a se reunir na praça, em frente à

catedral, reivindicando anistia, melhores condições de vida e eleições diretas para

presidente. A praça passou a ser uma extensão da igreja, e quando os militares

chegavam ao espaço público para reprimir a população que protestava, os religiosos

abriam as portas da igreja para proteger a população.

ATUAÇÃO DA IGREJA CATÓLICA DURANTE A DITADURA CIVIL-MILITAR A instabilidade política do governo de João Goulart (1961-1964) favoreceu o

cenário para o golpe civil-militar, e a Igreja Católica teve grande destaque, sobretudo,

na promoção de manifestações públicas a exemplo das Marchas da Família com Deus

pela Liberdade. O movimento surgiu em meados de 1962, organizado por mulheres

com apoio do clero, de alguns governos estaduais e dos militares.

Nos primeiros meses de 1964 mulheres de diversas capitais e de importantes

cidades do interior, apoiadas e organizadas pelo clero, promoveram debates,

Memorial da Resistência de São Paulo

PROGRAMA LUGARES DA MEMÓRIA

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organizaram comícios e irromperam em estações de jornais e TV levando manifestos

anticomunistas e demonstrando enfaticamente sua decisão de se organizarem para

combater a “infiltração vermelha”1.

A religiosidade, segundo Simões foi fundamental para a articulação

do movimento, posto que as mulheres detinham pouco conhecimento

sobre os projetos políticos e econômicos. A atenção dessas era

contra a suposta “ameaça comunista” e seus danos à moralidade,

aos costumes e a religião. A compreensão que se tinha do

comunismo e socialismo, dentro destes grupos, era a concepção de

“doutrina”, a qual tinha por objetivo subverter a moral, eliminar a

religião e separar os pais dos filhos2.

A Igreja Católica teve dois momentos e posicionamentos quanto ao governo

militar: de apoio à intervenção militar, sobretudo, nos primeiros anos do golpe; e de

repúdio e combate as violações aos direitos humanos cometidos pelos militares.

Antes de mais nada, é preciso lembrar que a Conferência Nacional

dos Bispos do Brasil (CNBB) deu apoio oficial ao golpe militar de

1964, em declaração de 29 de maio, na qual os bispos brasileiros

afirmam que, vendo “a marcha acelerada do comunismo para a

conquista do poder, as forças armadas acudiram em tempo, e

evitaram que se consumasse a implantação do regime bolchevista

em nossa terra”3.

Havia setores conservadores que apoiaram o regime militar, mas também

alguns segmentos e membros do clero que combateram a ditadura denunciando seus

crimes. Diversas ordens da Igreja Católica (franciscanos, dominicanos, beneditinos,

entre outros) atuaram ajudando os perseguidos políticos e seus familiares. Em São

Paulo, o Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns teve grande destaque na denuncia dos

crimes da ditadura e no apoio a seus familiares.

Cardeal da Esperança (dito por Clarice Herzog), Cardeal da Resistência

(Ricardo Carvalho), Cardeal da Coragem (José Carlos Dias), Profeta da Resistência

(José Gregório) são alguns dos adjetivos que antecediam ao nome do religioso, dito

por quem conheceu Dom Paulo. Nomeado Cardeal do estado de São Paulo em 1970,

ele se destacou na defesa dos direitos humanos nos anos mais violentos do país,

1 SIMÕES, Solange de Deus. Deus, Pátria e Família. As mulheres no golpe de 1964. Petrópolis: Vozes, 1985, p.67. 2 BRITO, Ana Paula. O tempo da Memória Política: (Re) significando os usos sobre a memória do período militar no Brasil. Dissertação. (Mestrado em Memória Social e Patrimônio Cultural). Universidade Federal de Pelotas: Pelotas, 2013. 3 COMPARATO, Fábio Konder. A Cúria como Centro de Resistência. In: CARVALHO, Ricardo. O Cardeal da Resistência: as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns. São Paulo: Vlado Editora, 2013, p.109.

3

durante um regime militar que não respeitava o direito de nenhum civil nem mesmo

dos religiosos.

DO SAGRADO AO SOCIAL: USOS DA CATEDRAL EM DEFESA DOS DIREITOS

HUMANOS

A primitiva igreja do Páteo do Colégio, erguida no século XVI, e por vezes

reconstruída, foi a Catedral de São Paulo até 1911 quando foi novamente demolida.

Em 1913 se inicia a construção de uma nova igreja para se tornar a Catedral de São

Paulo, localizada nas imediações da antiga edificação e concluída apenas em 1954.

A nova igreja foi projetada pelo alemão Maximilian Emil Hehl (1861-1916) em

estilo eclético, predominantemente neogótico, inspirada nas grandes catedrais

medievais europeias:

A catedral foi por muito tempo a maior igreja da cidade de São Paulo,

com 111 metros de comprimento, 46 de largura, duas torres de 92

metros e a cúpula atinge 70 metros de altura. A Catedral paulistana

tem dimensões semelhantes à Abadia de Saint-Denis, da França e

capacidade para abrigar 8.000 pessoas. Possui cinco naves cobertas

por abóbadas ogivais, quase todas quatripartidas. O ponto de

intercessão entre elas é uma abóbada alicerçada por doze colunas

de três metros de diâmetro e trinta metros de altura4.

A catedral tornou-se o principal espaço religioso da cidade instituído no centro

da capital. Na história contemporânea, o lugar passou a servir à população não

apenas para assuntos espirituais, mas passando a contemplar também ações de

serviço social. O jurista Fábio Comparato, sobre a atuação de Dom Paulo Evaristo

Arns, afirma que:

Ao tomar posse do cargo de arcebispo metropolitano de São Paulo,

em 1º de novembro de 1970, ele fez da Cúria Metropolitana o centro

de resistência à política de sequestros, assassínios e tortura de

presos políticos. Dom Paulo foi o primeiro a organizar, na Cúria

Metropolitana de São Paulo, a lista dos desaparecidos políticos5.

No livro “Brasil Nunca Mais” publicado em 19856 (resultado de um projeto que

analisou mais de 1.000.000 de páginas contidas em 707 processos do Superior

Tribunal Militar, que relevou a sociedade a extensão da repressão política no Brasil

4 SANTOS, Marcos Eduardo Melo dos. A Catedral Metropolitana de São Paulo por Maximilian Emil Hehl (1891-1916): história, arte e ecletismo na arquitetura sacra paulistana. Revista Eletrônica Espaço Teológico, vol. 8, n. 13, jan/jun de 2014, p.9. 5 COMPARATO, Fábio Konder. op cit, loc cit. 6 A versão digital da publicação poderá ser consultada em Brasil Nunca Mias Digit@l. Disponível em: <http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/bnm-digital>. Acesso em 15/09/2014.

4

entre os anos de 1961 a 1979), o próprio arcebispo relata a importância do trabalho

realizado na Catedral da Sé na defesa dos direitos humanos.

As angústias e esperanças do Povo devem ser compartilhadas pela

Igreja. [...] Durante os tempos da mais intensa busca dos assim

chamados “subversivos”, atendia eu na Cúria Metropolitana,

semanalmente, a mais de vinte senão cinquenta pessoas. Todas em

busca do paradeiro de seus parentes. [...] A senhora mais idosa me

fez a pergunta que já vinha repetindo há meses: “O senhor tem

alguma notícia do paradeiro de meu filho?” Logo após o sequestro,

ela vinha todas as semanas. Depois reaparecia de mês em mês. Sua

figura se parecia sempre mais com a de todas as mães de

desaparecidos. Durante mais de cinco anos, acompanhei a busca de

seu filho, através da Comissão Justiça e Paz e mesmo do Chefe da

Casa Civil da Presidência da República. O corpo da mãe parecia

diminuir, de visita em visita. Um dia também ela desapareceu. Mas

seu olhar suplicante de mãe jamais se apagará de minha retina7.

Dom Paulo representou uma série de religiosos e civis vinculados à Catedral

da Sé que enfrentaram o regime militar com atos de solidariedade aos perseguidos

políticos. Entre as principais ações realizadas durante o arcebispado de Dom Paulo

Evaristo Arns, destacamos algumas ações na linha do tempo abaixo.

7 ARNS, Paulo. Prefácio. In: ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Editora Vozes, 1985, p.12.

5

-

6

Comissão Justiça e Paz de São Paulo – 1972

No contexto de resistência ao terrorismo de Estado implantado pelos militares,

Dom Paulo Evaristo Arns organiza na Catedral grupos de pessoas para lhe ajudarem

na defesa dos direitos humanos. Nesse cenário é criada a Comissão Justiça e Paz em

1972 com o objetivo de auxiliar, na esfera jurídica, os perseguidos militares e seus

familiares. A Comissão era composta majoritariamente por juristas, mas dispunha

ainda de um estudante, uma mulher e um operário (em cumprimento ao estatuto de

criação da Comissão) e ajudou muitos presos políticos, familiares de desaparecidos

políticos e militantes estrangeiros que buscavam exílio no Brasil8.

Panfletos e distribuição de livretos com a Declaração Universal dos Direitos

Humanos – 1973

Em março de 1973, quando os militares celebravam o 14º aniversário do Golpe

de 1964, a Arquidiocese distribuiu cerca de 500 panfletos sobre a Declaração

Universal dos Direitos Humanos elaborada em 1948 pela Organização das Nações

Unidas – ONU, e assinada pelo Brasil em 1973. Depois do domingo de páscoa, a

igreja então distribuiu cerca de 500 mil livretos de uma versão ecumênica da

Declaração.

Em cada um dos 30 artigos da Declaração existem trechos com

recentes pronunciamentos tanto das Igrejas Evangélicas como da

Igreja Católica. Cada artigo é seguido das seguintes partes: todas

alusivas ao artigo: um versículo do Antigo Testamento; um versículo

do Novo Testamento; um pronunciamento oficial da Igreja Católica;

um pronunciamento oficial de Igrejas Evangélicas; e outros textos

bíblicos9.

Ricardo Carvalho afirma que neste ano chegaram a ser rodados um milhão e

quinhentos mil exemplares da Declaração, que foram bastante utilizadas nas reuniões

das comunidades de base10.

8 Para maiores informações sobre a Comissão, recomenda-se a leitura do livro de Antônio Carlos Ribeiro Fester. Justiça e Paz. Memórias da Comissão de São Paulo. São Paulo: Loyola, 2005. 9 Trecho do jornal “O São Paulo” de março de 1973. Transcrito no livro O Cardeal da Resistência: as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns, de Ricardo Carvalho, p.306. 10 CARVALHO, Ricardo. O Cardeal da Resistência: as muitas vidas de Dom Paulo Evaristo Arns. São Paulo: Vlado Editora, 2013, p.36.

7

A Rádio Nove de Julho e o Jornal “O São Paulo” – 1973

A igreja católica dispunha de outras formas de se aproximar da comunidade,

para além das celebrações religiosas. Um de seus canais era a Rádio Nove de Julho.

“Criada em 1953, um ano antes das comemorações do 4º centenário da cidade de

São Paulo, a emissora só passou a operar oficialmente a 2 de março de 1956, através

de concessão autorizada pelo presidente Juscelino Kubitschek”11. Sua transmissão

cobria o Estado de São Paulo, grande parte dos estados brasileiros e alguns países

vizinhos.

A rádio divulgava os eventos da igreja e transmitia as missas dominicais e,

evidentemente, os sermões de Dom Paulo Evaristo Arns que eram sermões de

denúncias e defesa dos direitos humanos para presos políticos. Este aspecto motivou

os militares a fecharem a rádio em 05 de novembro de 1973, durante o governo de

Emílio Garrastazu Médici. Somente na democracia, na década de 1990 com o

presidente Fernando Henrique Cardoso, a rádio é devolvida à Cúria Metropolitana com

permissão para a atividade.

Outro meio de comunicação da igreja era o jornal “O São Paulo”12. Tratava-se

de um semanário arquidiocesano “dedicado a refletir os acontecimentos à luz da

doutrina da Igreja e das linhas de pastoral da CNBB e, particularmente, da Igreja que

está em São Paulo”13.

Com a instauração do regime militar no Brasil em 1964 e sendo

testemunha dos desaparecimentos, torturas e mortes emplacados

em 20 anos de ditadura, o jornal O São Paulo nunca fora tão incisivo

cumprindo o papel de consciência crítica, de voz dos sem voz e de

defensor dos direitos humanos14.

Por seu apoio aos direitos humanos o jornal passou a sofrer advertências dos

militares, sobretudo a partir de 1966 quando o semanário completou dez anos de

fundação. As advertências ao jornal tiveram continuidade nos anos seguinte, até que

em 1973 os militares censuram sua publicação.

11 ABREU, João Batista de. Rádio Nove de Julho e o apóstolo hertziano. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. V Congresso Nacional de História da Mídia. São Paulo – 31 maio a 02 de junho de 2007, p.2. 12 O primeiro número do semanário foi publicado em São Paulo em 25 de janeiro de 1956. 13 PEREIRA, Antônio Aparecido. A Igreja e a censura política à imprensa no Brasil 1968 -1978. Tese (Doutorado em Jornalismo). Centro Internazionale per gli Studi sull’ Opinione Pubblica: Roma, 1982, p. 36. Disponível em <http://goo.gl/MhyjSb>. Acesso em 15/09/2014. 14 BRAGA, Luiz Cláudio de Almeida. A censura ao jornal O São Paulo durante a Ditadura Militar (1964-1985): desafio a evangelização na cidade de São Paulo. Dissertação (Mestrado em Teologia). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo: São Paulo, 2010, p.61.

8

Culto Ecumênico pela morte do jornalista Vladimir Herzog – 1975

O assassinato do jornalista Vladimir Herzog em 25 de outubro de 1975

provocou uma onda de indignação nos setores sociais que estavam adormecidos

frente a truculência instaurada pelo regime. O ato ecumênico reuniu cerca de oito mil

pessoas em um ato de protesto silencioso.

A tentativa de repressão ao ato, onde a força policial cercou a catedral filmando

e fotografando quem compareceu a missa, não impediu essa grande mobilização.

Sendo, portanto, a primeira manifestação aberta contra a ditadura desde o final dos

anos 1960.

Imagem 01: Multidão

em frente à Catedral

da Sé no dia do Culto

Ecumênico pela morte

de Vladimir Herzog em

31 de outubro de

1975. Foto: Autor

desconhecido. Fonte:

Acervo do Sindicato

dos Jornalistas do

Estado de São Paulo.

Imagem 02: Ato Ecumênico na Catedral da Sé pela morte do jornalista Vladimir Herzog em 31 de outubro de 1975. Foto: Autor desconhecido. Fonte: Arquivo Agência do Estado.

9

CLAMOR – 1978

Outra importante organização criada por Dom Paulo na Catedral da Sé foi o

Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os Países do Cone Sul – CLAMOR em

1978. A Arquidiocese, representada por Dom Paulo, passou a ser muito buscada por

cidadãos latino-americanos que procuravam abrigo, proteção e ajuda financeira,

sobretudo após o golpe militar na Argentina em 1976. “Foi para resolver essa

necessidade que refugiados argentinos procuraram Jan Rocha e Luiz Eduardo

Greenhalgh, fato que deu origem à formação do grupo”15.

O CLAMOR passou a distribuir em toda a América Latina e Europa

boletins com relatos de violações aos direitos humanos e fotografias

de bebês levados pelos militares. O primeiro, produzido em

português, inglês e espanhol, chegou à Argentina, anfitriã da Copa

do Mundo de 1978, na semana do primeiro jogo16.

Além dos boletins com as denúncias e dados dos desaparecidos políticos dos

países do Cone Sul, o grupo publicou um dossiê com uma extensa pesquisa sobre os

desaparecidos. “A ideia básica era mostrar que os desaparecidos não eram uma

massa sem rosto, simplesmente números, mas que cada um existiu sim, como uma

pessoa, um indivíduo, um pai e uma mãe, com nome e profissão”17. O dossiê foi muito

importante, anos depois, quando da elaboração do relatório da Comissão Nacional

sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina.

15 FRAGA, Guilherme Barboza de. A solidariedade não tem fronteiras: o grupo Clamor e a rede de direitos humanos na resistência às ditaduras do Cone Sul. Monografia (Monografia em História). UFRGS: Porto Alegre, 2012, p.45. 16 CARVALHO, Ricardo. op.cit, p.209. 17 FRAGA, Guilherme Barboza de. op. cit, p.47.

Imagem 03: Dom Paulo e

o rabino Henry Sobel no

Culto Ecumênico pela

morte de Vladimir Herzog.

Foto: Alvaro Costa. Fonte:

FolhaPress.

10

REPRESSÃO AOS RELIGIOSOS Por todas essas ações de enfrentamento ao regime militar, com atos de

resistência e solidariedade aos ditos “subversivos”, Dom Paulo e os principais

integrantes das organizações criadas por ele passaram a ser vigiados e ameaçados

pelos militares. Para Dom Paulo Evaristo Arns, especificamente, os militares abriram

46 fichas na Delegacia de Ordem Política e Social de São Paulo – Deops, para

registrar as ações do religioso. Reunidos em um prontuário do mesmo órgão, de

numeração 5053, os documentos demonstram análises de agentes do Deops sobre o

padre considerado “subversivo da cúpula da Ala Progressista do clero católico”. Dom

Paulo passou a conviver com ameaças e com os olhares atentos e ameaçadores de

militares que passaram a vigiá-lo.

A Catedral também foi alvo dessa repressão militar. Na foto acima, frases

como: “Morte aos padres comunas”; “Padres chamando o povo para a luta armada”;

“Comunistas traidores, Padres comunistas Fora!” foram pichadas na lateral da igreja.

MISSA DE SEPULTAMENTO DO OPERÁRIO SANTO DIAS Santo Dias participava de um piquete em frente à Fábrica Sylvania18 onde

conversava com operários que entravam no turno da tarde. Viaturas policiais foram até

18 Para mais informações, consultar material produzido pelo Memorial da Resistência de São Paulo sobre a Fábrica Sylvania e a Igreja da Consolação e disponibilizadas no site da instituição.

Imagem 04: Lateral da Catedral da Sé com pichações de ameaça aos religiosos. Foto: Autor desconhecido. Fonte: Ricardo Carvalho.

11

o local prendendo alguns trabalhadores, na tentativa de conversar com os policiais

para a libertação dos companheiros presos, ele foi atingido pelas costas sendo levado

pelos policiais ao Pronto Socorro de Santo Amaro, chegando morto. Seu corpo só não

desapareceu devido à postura firme de esposa que, mesmo pressionada pelos

policiais, manteve-se ao lado do corpo durante todo o tempo do transporte até o IML.

Com a divulgação da notícia da morte de Santo Dias seu corpo foi velado na

Igreja da Consolação no dia 31 de outubro, onde compareceram 30 mil pessoas que

acompanharam a condução do corpo até a Catedral da Sé, protestando contra a morte

do operário e pelo direito de livre associação sindical e de greve contra a ditadura.

MISSA EM HOMENAGEM AO FREI TITO – 1983

Os religiosos foram muito perseguidos pelos militares durante a ditadura. Na

ordem dos dominicanos, por exemplo, houve casos emblemáticos sobre as

consequências das torturas infringidas pelos militares. Um dos casos de maior

notoriedade pública foi o do frei dominicano Tito de Alencar, preso em novembro de

1969 no Convento de Perdizes e encaminhado para o Deops/SP, onde foi

barbaramente torturado pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury.

Frei Tito é banido do país em 1970, após ser incluído na lista de presos

políticos a serem trocados pelo embaixador suíço Giovanni Bucher. Exilado na França,

o frei não conseguiu suportar as consequências psicológicas que as torturas físicas lhe

causaram e comete o suicídio.

Em março de 1983 os restos mortais do Frei retornam ao Brasil sendo acolhido

na Catedral da Sé para uma missa solene celebrada pelo cardeal D. Paulo Evaristo

Arns.

RELAÇÃO DA PRAÇA COM A IGREJA E AS MANIFESTAÇÕES CONTRA A

CARESTIA

A Praça da Sé, ao longo de sua história, assume o caráter de espaço

aglutinador das manifestações e protestos das mais diversas correntes ideológicas.

Ora abrigando movimentos conservadores como a Ação Integralista e a Marcha da

Família com Deus pela Liberdade (que apoiou o golpe civil-militar de 1964) ora

abrigando manifestações como o do 1º de maio com a luta dos trabalhadores contra a

opressão e promovendo cultos ecumênicos àqueles que foram reprimidos pelos

militares.

12

A praça nesse contexto de reivindicações, atos de solidariedade e de

denúncias aos crimes da ditadura se tornou uma extensão da Catedral e vice-versa.

Uma relação intrínseca se formou de modo que a Catedral e a Praça da Sé passaram

a ser o principal espaço para reivindicações pela liberdade democrática na cidade

durante os anos de chumbo. Dentre inúmeras manifestações que integram a Praça e a

Catedral, podemos citar o movimento popular condensado no “Movimento contra a

Carestia”.

No dia 27 de agosto de 1978 foi organizado um ato na Praça da Sé por donas

de casa que, apoiadas pela Igreja Católica, manifestavam-se contra o alto custo de

vida refletido nos baixos salários e no aumento do gênero alimentício. Cerca de 20.000

pessoas foram reprimidas pelo aparato policial com bombas e cães treinados. O

refúgio encontrado pela multidão foi a Catedral, que abrigou todos os manifestantes. O

movimento havia recolhido 1,3 milhões de assinaturas contra a carestia, e seriam

entregues ao Presidente da República. O presidente Geisel desconsiderou o

documento que representava os anseios da sociedade, mas a organização do

movimento foi crucial para o fortalecimento das lutas pela abertura política.

Ao longo de todo processo de lutas sociais pelas liberdades democráticas,

cabe destacar a ousadia e coragem do Arcebispo da Catedral da Sé, Dom Paulo

Evaristo Arns, e de outros religiosos e civis que arriscaram suas vidas pela defesa dos

direitos humanos e no combate à repressão política. Nesse sentido, a Catedral da Sé,

além de ser um patrimônio de beleza arquitetônica ímpar, é um lugar de memórias de

resistência à ditadura civil-militar, e também de repressão política.

Nela, diversos grupos sociais lutaram pelo direito à verdade em um período

onde a informação tinha o poder sobre a vida ou a morte das pessoas, pois muitos

civis foram presos em órgãos de segurança sem nenhum tipo de registro oficial. O

trabalho desenvolvido na Catedral, em parceria com advogados e familiares, era

crucial para a localização de desaparecidos políticos e em alguns casos, para a

garantia de sua sobrevivência.

Muitos familiares ainda procuram parentes desaparecidos durante o regime

militar, outros clamam por justiça aos crimes cometidos contra seus entes queridos.

Neste aspecto, o arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns foi de uma ousadia singular ao

denunciar, no púlpito da Catedral, os crimes cometidos durante a ditadura pelos

militares. Este lugar reuniu lutas por verdade, justiça e memória, bandeiras

fundamentais na defesa dos direitos humanos em uma sociedade que viveu uma

ditadura militar por 21 anos.

13

ATUALMENTE E/OU ACONTECIMENTOS RECENTES

O Arcebispo Arns recebeu inúmeras homenagens por sua atuação na defesa

dos direitos humanos. Sua imagem, associada à Catedral da Sé, serão sempre

sinônimos de refúgio e ousadia na luta pela democracia.

O Arcebispo atual da Catedral da Sé é o Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer. Os

meios de comunicação da catedral que foram censurados na ditadura (Rádio Nove de

Julho e o Jornal O São Paulo), voltam a existir na democracia e seguem como um elo

de comunicação entre a igreja e o povo.

ENTREVISTAS RELACIONADAS AO TEMA

O Memorial da Resistência possui um programa especialmente dedicado a registrar,

por meio de entrevistas, os testemunhos de ex-presos e perseguidos políticos,

familiares de mortos e desaparecidos e de outros cidadãos que

trabalharam/frequentaram o antigo Deops/SP. O Programa Coleta Regular de

Testemunhos tem a finalidade de formar um acervo cujo objetivo principal é ampliar o

conhecimento sobre o Deops/SP e outros lugares de memória do estado de São

Paulo, divulgando desta forma o tema da resistência e repressão política no período

da ditadura civil-militar.

- Produzidas pelo Programa Coleta Regular de Testemunhos do Memorial da

Resistência

DIAS, Ana. Entrevista sobre militância, resistência e repressão durante a ditadura

civil-militar. Memorial da Resistência de São Paulo, entrevista concedida a Ana Paula

Brito, Paula Salles e Karina Teixeira em 30/09/2014.

- Outras entrevistas

JORNAL GAZETA. Dom Paulo, o cardeal da resistência, em livro. Entrevista com

Ricardo Carvalho. São Paulo, 23/10/2013. Disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=eeZ4P11QLVE, acessado em 12/09/2014.

FILMES E/OU DOCUMENTARIOS

Documentário: Dom Paulo Coragem e Fé. Direção de Renato Levi. 2002. Produção

da TV PUC em parceria com a TV Cultura de São Paulo. Sinopse: Realizado para

comemorar os 80 anos do Arcebispo Emérito de São Paulo, o documentário apresenta

14

dos principais acontecimentos da vida de Dom Paulo. No vídeo o Arcebispo relembra

suas origens no interior de Santa Catarina e como ingressou na igreja. Os principais

acontecimentos históricos recentes e suas consequências para o país são analisados

pelos principais personagens que viveram a resistência contra a ditadura militar. Eles

relatam as dificuldades de organização da sociedade civil e a participação de Dom

Paulo na luta pelo fim da tortura e pelo restabelecimento da democracia no Brasil.

Documentário: Comissão de Justiça e Paz e a ditadura militar no Brasil. Direção

de Mario Dallari Bucci. Trabalho de Conclusão de Curso em Jornalismo orientado por

Renato Levi. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. 2009. Sinopse: O

documentário “Comissão Justiça e Paz e a ditadura militar no Brasil” procura abordar a

atuação do grupo no período entre 1972 e 1985, contado a história a partir do ponto de

vista de três de seus mais importantes membros no período. Disponível em

<http://agemt.org/?p=2937>. Acesso em 15/09/2014.

REMISSIVAS: Praça da Sé; Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e

Propriedade (TFP); Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Centro

Acadêmico XI de Agosto; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP);

Universidade de São Paulo (USP); Fábrica Sylvania; Instituto Médico Legal (IML/SP);

Igreja Nossa Senhora da Consolação; Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo; Praça

Alexandre Vannucchi Leme; Cemitério Israelita do Butantã; Sindicato dos Jornalistas;

Convento Santo Alberto Magno - Convento dos Dominicanos.

REFERÊNCIAS

ABREU, João Batista de. Rádio Nove de Julho e o apóstolo hertziano. Intercom –

Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. V Congresso

Nacional de História da Mídia. São Paulo – 31 maio a 02 de junho de 2007

ARQUIDIOCESE DE SÃO PAULO. Brasil Nunca Mais. Petrópolis: Editora Vozes,

1985.

ANTUNES, Ricardo; RIDENTI Marcelo. Operários e Estudantes contra a Ditadura:

1968 no Brasil. Revista de Ciências Sociais, n.2, 2007.

BRAGA, Luis Cláudio de Almeida. A censura ao jornal O São Paulo durante a

Ditadura Militar (1964-1985): desafio a evangelização na cidade de São Paulo.

Dissertação (Mestrado em Teologia). PUC: São Paulo, 2010.

15

COSTA, Caio Túlio. Cale-se: a saga de Vannucchi Leme, a SP como aldeia

gaulesa, o show proibido de Gilberto Gil. São Paulo: A Girafa, 2003.

CRIVELLARO, Débora. Cardeal da Resistência. Revista Época, dezembro de 2010.

DIAS, Luciana. Santo Dias: quando o passado se transforma em história. São

Paulo: Cortez, 2004.

FERNANDES, F. Brasil, em compasso de espera. São Paulo: Hucitec, 1980.

FRAGA, Guilherme Barboza de. A solidariedade não tem fronteiras: o grupo

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