memória modos de usar

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    MEMÓRIA: MODOS DE USAR

    Vanessa Massoni da Rocha 

    RESUMO

    Este artigo pretende estudar as interfaces entre escrita e

    memória no romance Cantique des plaines  da canadense

    Nancy Huston. À luz de Borges, Ítalo Calvino, JacquesLe Goff, Marc Augé e Paul Ricoeur pretende-se estu-

    dar o fazer ficcional em seus diálogos com a memória,

    procurando compreender a ambivalência entre gênesis e

    memória no fazer literário.

    PALAVRAS-CHAVE: escrita; memória; fabulação

    Os personagens Paddon e Paula do romance Cantique des plaines, pu-blicado pela escritora canadense Nancy Huston em 1993, poderiamser apresentados pelas palavras profecia e promessa. Muito mais do

    que um avô e uma neta unidos pelo gosto das histórias e das descobertas, estespersonagens se complementam em uma ciranda de encontros e desencontrose se confundem em um projeto épico de escrita sobre o tempo. Aos nove anos,Paula percebe o desassossego do avô diante do projeto não realizado de escre-ver um livro e promete fazê-lo caso ele não consiga. Eis que, com a morte doavô, Paula recebe um envelope com seus manuscritos e se debruça na tarefa

    de transformar o emaranhado de esboços do avô em uma narrativa sobre ele,sobre si mesma e sobre quatro gerações de sua família.

     Assim, podemos pegar de empréstimo do livro de contos Invenção e me-mória  de Lygia Fagundes elles, uma frase de seu marido, o cineasta PauloEmílio Gomes, que nos servirá de mote para a leitura do romance por aludirà presença incontornável da invenção nas escritas memoriais. anto quantoLygia, entendemos que a ideia de invenção acompanha inegavelmente tododebate sobre as narrativas escritas a partir das lacunas da memória. Se a vida

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    é, segundo Ricoeur, um tecido de histórias narradas, a narração, por sua vez,se apresenta como um deslocamento criativo entre o lembrar e o esquecer, um

    alimentando as potencialidades do outro.E como não pensar em Paula diante de seu confuso e provocador ma-

    nuscrito? Como não nos lembrarmos dos diálogos existentes entre a profecia,a promessa e a missão de escrita que lhe foi confiada? Paula se mostrou, ca-prichosamente, uma escritora de reconhecida aptidão fabulatória e confessouestar preenchendo os vazios da memória com imaginação. Acreditamos quetinha dentro de si a “secreta esperança de estar inventando certo”1, o desejo dese utilizar da escrita no presente para recriar o passado e modificar a seu gosto

    a vida do avô – e, consequentemente, a de toda a sua família e de si mesma. Ao se lembrar de um episódio em que o avô manifesta sua raiva, ela deduzque “peut-être que ce qui te [le] rendait si amer, c’était en fait mon absence?”2 De fato, o romance escrito com contornos epistolares por Paula pode ser lidocomo vontade de trazer o avô à vida, não somente transformá-lo em persona-gem e representá-lo ficcionalmente, como sugere Chalanset3, mas, igualmen-te, assegurar uma companhia para si e prolongar o amor e o reconforto que acompanhia e a atenção do avô sempre lhe proporcionaram.

    Neste sentido, Paula declara : “je ne me souviens pas des mots que tu asprononcés mais j’entends encore la musique derrière”4, e seu esquecimentoassegura o sucesso de seu projeto, pois, ciente de que não se lembra e feliz porpoder imaginar, ela faz de seu texto uma procura pela música de sua infância,pelos sons da voz e das histórias de Paddon. Um desafio de se reconstituir osbons momentos do passado e de encontrar desculpas para explicar os proble-mas que se impuseram. Um desafio de compreender e lidar com a escrita demodo menos rígido e megalômano do que fizera seu avô. Caminharia pelomesmo caminho que ele, mas não se deixaria seduzir pelos atalhos nem exigi-

    ria de si mais do estava pronta para oferecer. Compreenderia o tempo como

    1  Apud ELLES, Lígia Fagundes. Invenção e memória . São Paulo: Companhia das Letras,2009, p. 5.

    2 HUSON, Nancy. Cantique des plaines . Montréal : Lémeac, 1993, p. 280.3 CHALANSE, Anne-Marie. CHALANSE, Annie. « Du cri à la parole » In CZECHOWS-

    KI, Nicole e DANZIGER, Claudie (org.). Deuils , Vivre c’est perdre no. 128. Paris : Editions Autrement, 1992.

    4 HUSON, Nancy. Op. Cit., p. 284.

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    duração da vida de quatro gerações e, por delimitá-lo, estaria mais perto dereproduzi-lo na escrita e de curvá-lo às imposições do papel. Estaria ciente de

    que “raconter des histoires autour d’un feu de camp et écrire des livres, ce n’estpas la même chose”5, o que lhe tornaria a mais apta a registrar as histórias doavô, da família e da tribo de Miranda.

     Assim, a memória e a morte foram fios condutores da missão – e do de-sejo – de escrita, binômio propulsor do fazer literário como maneira criativade se viver o luto e de se trabalhar os caprichos da memória. As insegurançasgeradas pelo desaparecimento de Paddon e as dificuldades de se retraçar a vidade várias gerações dos Sterling podem ser lidos como pulsão para a prática li-

    terária, como incentivos permanentes que a possibilitaram se afastar da inérciae da confusão que impediram a realização dos sonhos do avô.O caminho entre a herança recebida e à escrita do romance se mostrou

    longo, cansativo e exigiu da neta a habilidade de oferecer acolhimento ao avôe, ao mesmo tempo, realizar uma escrita somente sua. Não por acaso as falasde Paddon, quase sempre demasiadamente fragmentadas, se mostraram maiscomo desejo de sua presença e de homenagem do que como fio condutor quedisciplinou e orientou a neta. Por isso, como defende Compagnon, a presençado avô é uma fricção, uma tentativa de diálogo, de aproximação. odavia, estacitação se mostra um corpo estranho no texto e sua diferença, seu desloca-mento, se faz sentir pelas marcar tipográficas que convidam a um encontro,ao mesmo tempo em que criam espaços em branco e distâncias entre uma voznarrativa e outra.

    O binômio memória e morte

    Nossa leitura contempla o binômio “memória e morte” lido a partir da

    metáfora de Marc Auge, para quem “a memória e o esquecimento possuem,de alguma maneira, a mesma relação que a vida e a morte”6. Segundo o autor,da mesma maneira que pensar na vida nos remete a pensar na morte, pensarna memória passa necessariamente pela compreensão de que não há memóriasem esquecimento. Se a memória estaria, por um lado, ligada às lembranças

    5 HUSON, Nancy. Op. Cit., p.144.6  AUGÉ, Marc. Les formes de l’oubli . Paris: Rivage Poche, 2001, p.20.

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    e à vida, ela estaria, por outro lado, ligada ao esquecimento e à morte. Destemodo, a memória poderia ser lida como os encontros e os desencontros entre

    as lembranças e os esquecimentos. A fórmula de Augé, que brinca ao dizer “diga-me do que esqueces e te di-

    rei quem és”7, serve de mote para a escrita de Paula e a leitura do tempo presenteno livro. A parte inicial do romance, dedicada ao enterro e à despedida do avô,deixa transparecer a ausência da neta: “Je ne pouvais, ne voulais pas assister àton enterrement; j’ai préféré rester assise ici à des milliers de kilomètres et cher-cher à tout voir”8. Desde o princípio, Paula renuncia à possibilidade de assistirao enterro do avô para, de longe, imaginar tudo o que aconteceu. Fica claro

    seu desejo de não ver seu avô morto, de não ser testemunha do silenciamentodaquele reconhecido como o “livre des cantiques”9. Paula se reservaria o direitoda distância, o direito de fantasiar reações e detalhes com a liberdade de quemnada viu: “la tombe a été vidée de sa boue dure et puis remplie de Paddon et deboue dure et maintenant c’est terminé. Je ne vois pas encore les visages mais jecommence à voir les habits, sombres pour l’occasion et faits de tissus qui n’ontpas besoin de repassage”10. Esta liberdade é adquirida paradoxalmente com aimposição da escrita como único legado deixado pelo velho Paddon, herançapara sua neta preferida, sua cúmplice de sonhos e de devaneios.

     Ao deixar a vida no início da primavera, Paddon parece acenar com apossibilidade da fertilidade da estação, marcada pela propulsão da vida e dascores como época propícia para a retomada de seus textos esquecidos. Aofalecer, parece levar junto a si o enorme inverno que acompanhou sua vidapara, esperançoso, entregar à neta uma missão marcada pela prosperidade daestação: renascimento da beleza e do vigor da natureza.

    Falar na pulsão da fala e da imaginação nos remete, incontornavelmen-te, à personagem Sherazade, que adia a morte pelo poder sedutor de contar

    histórias. Aparentemente, Paula e Shezarade assumem posições divergentes,pois, enquanto a primeira inicia sua narrativa por causa da morte do avô,esta última parece bem disposta a ludibriar a morte com sua malícia e suacapacidade inventiva. Contudo, é o desaparecimento de Paddon que convida

    7 Ibid, p. 26.8 HUSON, Nancy. Cantique des plaines . Montréal : Lémeac, 1993, p. 10. 9 Ibid, p. 11.10 Ibidem, p. 11,12.

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    a neta, desde o enterro, a escrever, tentar reter suas impressões sobre a vida doavô, desde seus pais até seus netos. Se a morte promove a vida do texto, ela

    promove, sobretudo, a sobrevida de Paddon: a escrita de Paula mostra-se aúnica maneira de manter viva sua voz e suas ideias, único modo de dar corpoaos seus fragmentos.

    Na coletânea Vivre, c’est perdre , Annie Chalanset demonstra o caminhoentre o grito e a palavra, procurando explicar de que maneira a dor de umaperda pode ser superada através de uma “palavra reparadora”11, ou seja, de quemodo a experiência dolorosa do luto ganha novos contornos se, ao invés doconsolo do silêncio ou do grito, a ferramenta utilizada por aquele que sofre é

    “se fazer espectador de seus dramas, seu contador”12

    . Para a escritora, está nestatroca de papéis o único viés criativo possível para se vivenciar o luto não maiscomo sofrimento, mas como representação: “é a representação da dor que noslevará em direção à cura”13. Na segunda parte de nossa dissertação estudare-mos mais calmamente aspectos relevantes da escrita como procedimento paraludibriar a morte e trabalhar o luto diante de uma grande perda.

    Neste sentido, o livro de memórias escrito por Paula só começa a existirgraças à morte de Paddon, na medida em que somente a angústia da ausênciapode revelar a necessidade de se fixar a presença. Portanto, o livro de memóriassurge, essencialmente, pelo desejo de unir peças de um grande quebra-cabeça,peças dispersas que insistem em não se encaixar, ou que surpreendem pelaimagem que reproduzem: “Plus j’apprends, plus je me rends compte de toutce que j’ignore. Chaque réponse soulève une nuée de questions nouvelles”14.Logo, Paula escreve sobre Paddon não se atendo somente às suas lembranças,porém procurando preencher seus “trous de mémoire”15com pistas deixadasnos manuscritos quase indecifráveis. rata-se de articular suas lembranças dainfância com as descobertas feitas na idade adulta, unir as duas pontas, muitas

    vezes controversas, para reconstituir a vida do avô, procurar explicar seus mo-tivos para se dedicar exclusivamente ao projeto de escrita sem fazer o mesmoque fizeram aqueles que com ele conviveram: julgá-lo. Por conseguinte, Paula

    11 CHALANSE, Annie. Op. Cit., p. 145.12 CHALANSE, Annie. Op. Cit. p. 154.13 CHALANSE, Annie. Op. Cit., p. 155.14 HUSON, Nancy. Cantique des plaines . Montréal : Lémeac, 1993, p. 63.15 ROBIN, Régine. La mémoire saturée . Paris : Stock, 2003, p. 60.

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    dá vida a uma escrita mais durável, capaz de absorver, de algum modo, a es-crita esfacelada de Paddon. Em um trabalho em espiral, faz dialogar a herança

    de uma escrita filosófica sobre o tempo com seu desejo de, motivada e pressio-nada a escrever, transformar seu material de trabalho em um projeto pessoalde escrita do tempo, lido através da vida de quatro gerações da sua famíliapaterna, “ lembrança do não-vivido, não conhecido”16.

    De alguma forma, na impossibilidade de reter o tempo cronológico quesempre fascinou o avô, Paula se atém a narrar o tempo vivido pelo avô e seusfamiliares mais próximos. Para o avô, tal interesse surge nas dores no cóccixdurante os longos sermões da igreja, sermões que o faziam refletir sobre a

    passagem do tempo. Paula imagina este momento e o descreve : “C’est alorsque furent plantées les toutes premières graines de ton travail sur le temps, untravail qui allait germer comme le haricot magique et grimper et proliférer deplus en plus follement pour se perdre finalement dans les nuages”17. ComoPaula afirma, a ideia do trabalho sobre o tempo se tornou tão grandiosa e ina-tingível que se perdeu nas alturas ou nas tentativas sem sucesso do patriarca.

     Aqui podemos lembrar, contudo, que Paddon nunca reconheceu o ca-ráter megalômano e altamente ambicioso do estudo que se impôs. Diante dasopiniões negativas de seus professores universitários, afirma, por exemplo, que“ils auraient évidemment fait la même remarque à Platon ou à Descartes”18,pois todo estudo novo e, de certa maneira, o revolucionário era visto comdescrença pela academia. Paddon se inspira na perseverança dos filósofos cujaabrangência dos estudos teria sido, em suas épocas, considerada impertinente.Continua suas nada modestas comparações ao declarar que Jesus só conseguiufazer tudo o que fez porque não tinha um horário de trabalho completo. Éa partir deste momento que Paddon resolve deixar o trabalho de professor eoferecer um ano de dedicação aos estudos sobre o tempo. Diante da primeira

    recusa do diretor do colégio, retoma seus argumentos religiosos para dizer que“même Dieu a eu besoin de se reposer après six jours de création”19. Acabaconseguindo a licença e, com todo o tempo livre, pretende trabalhar e colherresultados tão bons quanto os de suas referências.

    16 ROBIN, Régine. L’immense fatigue des pierres . Montréal.: XYZ, 1996, p. 17.17 HUSON, Nancy. Cantique des plaines . Montréal : Lémeac, 1993, p. 36, 37.18 HUSON, Nancy. Op. Cit., p. 47.19 HUSON, Nancy. Op. Cit., p. 53.

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    Mostrando-se bem mais lúcida do que seu avô, um dos méritos de Paulafoi não ter querido subir, tão afoita quanto seu avô, neste pé de feijão sem fim.

    Seu mérito foi perceber que a literatura era um meio eficaz de retrabalhar otempo, prendê-lo aos limites formais do papel, impedindo-o, assim, de crescerlivremente. Logo, para Paula, o tempo que mais importa é o “tempo narrado”,o tempo refigurado pelo trabalho de memória, o tempo que é “uma ponteentre o tempo fenomenológico [tempo vivido] e o tempo cosmológico”20.

    Desta maneira, ao transformar o projeto do avô em seu projeto, Paulase permite esquecer algumas lembranças, condená-las à morte sugerida por Augé. al como um jardineiro que, ao cuidar de seu jardim, precisa esco-

    lher e eliminar algumas plantas para que outras tenham espaço suficiente paracrescer, fazer o “trabalho de memória” é reconhecer a necessidade do esque-cimento como procedimento natural da memória. Este trabalho de memóriaestudado por Ricoeur tem como base o trabalho de perlaboração estudadopor Freud, cuja finalidade é “substituir os pedaços de memória ininteligíveise insuportáveis por uma história coerente e aceitável”21. Ou seja, a narrativa –seja oral ou escrita – é a forma por excelência para se reter as impressões, darcoerência e unidade aos flashes  de lembrança trabalhados pelo esquecimento.

    Como define Augé através de outra metáfora, “as lembranças são talha-das pelo esquecimento como os contornos da margem o são pelo mar”22. Estametáfora parece reiterada por Silviano Santiago, que reconhece ser a lembran-ça as poças d’água que insistem em permanecer no chão após a chuva. Nãoparece ser coincidência, contudo, haver duas tentativas de definição que apon-tam para a água como elemento vital capaz de abarcar lembranças e esqueci-mentos. Água que escorrega, se esvai entre os dedos, mostrando vitalidadedifícil de ser aprisionada. Por outro lado, água polivalente, capaz de apresentardiferentes formas e surpreender pela versatilidade de suas versões. Aqui, água

    ligada à origem da vida, à transformação, à perpetuação.Como demonstram Augé e Santiago, se não podemos nos lembrar de

    tudo, tampouco podemos nos esquecer de tudo. É justamente neste intervaloque surgem os vestígios, os traços, as impressões do vivido que podem ser

    20 RICOEUR, Paul. Temps et récit . Paris : Seuil, 1985, p. 439.21 RICOEUR, Paul. Op. Cit., p. 444.22  AUGÉ, Marc. Op. Cit. , p. 29.

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    registrados pela literatura. Processo dinâmico e em construção23, a memóriase realiza em um jogo de vida e de morte, de lembrar e de esquecer, de esco-

    lher e de abandonar, afinal, “a memória se revela como uma organização doesquecimento”24.

    Nancy Huston escreve sobre a memória em seu artigo “La mémoiretrouée”, no qual afirma que sua memória é “um território sagrado”25, uma vezque não podemos invadi-lo, tampouco transformar sua natureza. rata-se dealgo no qual ninguém pode interferir: “Assim como nossas lembranças sãomarcadas pelo que vivemos no dia a dia, a memória, também, muda, brilha,foge, indomável”26. Durante um encontro com sua melhor amiga da época

    do colégio, Nancy percebe a mudança e a fugacidade inerentes à memória aoreconhecer que “cada vez que eu dizia : ‘Você se lembra...’, Susan dizia sim;em contrapartida, as lembranças que ela ressuscitava, ao menos a metade nãome dizia nada”27. A explicação de Nancy para se ter esquecido de momentosque se mantiveram vivos para sua amiga foi o fato de suas lembranças estaremmortas por inanição: “Uma lembrança, é preciso visitá-la de vez em quando.É preciso alimentá-la, sair com ela, dar-lhe ar, mostrá-la, recontá-la aos outrosou a si mesmo. Sem o que, ela enfraquece”28. Assim, tal como um jardineiroque precisa cuidar do seu jardim, nós precisamos trabalhar nossa memória, re-visitar momentos aparentemente esquecidos, ressignificá-los ao longo do tem-po para que nunca deixem definitivamente de fazer parte de nosso mosaico delembranças, marcas do vivido, do que fomos ou fizemos, cúmplices de nossascaminhadas. Para Nancy, “nós somos uma construção, uma história cheia delacunas, um livro de páginas arrancadas”29.

    Um livro de “imperfeição flagrante”30, um livro de comportamento com-pletamente divergente, por exemplo, da atitude de um personagem, possuidorda singularidade de não se lembrar de esquecer, criado por Borges. Irineu Fu-

    nes, o memorioso, por se considerar cego, surdo e desmemoriado, resolve fazer

    23 ROBIN, Régine. Op. cit, 2003, p. 36,37.24 RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire et l’oubli . Paris : Seuil, 2000. p. 582.25 HUSON, Nancy. Nord perdu, suivi de Douze France. Montréal: Lémeac, 1999, p.96.26 HUSON, Nancy, Op. Cit, 1999, p. 97.27 HUSON, Nancy, Op. Cit, 1999, p. 98.28 HUSON, Nancy, Op. Cit, 1999, p. 99.29 HUSON, Nancy, Op. Cit, 1999, p. 100.30 HUSON, Nancy, Op. Cit, 1999, p. 101.

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    de sua vida um estímulo constante para a percepção e para a memória, com oobjetivo de torná-los infalíveis.

    De fato, Funes não só recordava cada folha de cada árvore de

    cada monte, como também cada uma das vezes que a tinhapercebido ou imaginado. Resolveu reduzir cada uma de suas

     jornadas pretéritas a umas setenta mil lembranças. (...) Pensou

    que na hora da morte não teria acabado ainda de classificar

    todas as recordações da infância 31.

    Como consequência de sua incrível e inusitada habilidade, Funes nãoconseguia mais dormir, já que “dormir é distrair-se do mundo”32. Por fim,descobre que pode aprender vários idiomas, mas suspeita que não conseguepensar, pois “pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair”33. Assim,ao dar vida a alguém incapaz de esquecer, Borges cria uma alegoria sobre aimportância do esquecimento para a memória, a importância da renúncia àideia de se catalogar o tempo vivido. Borges afirma que o trabalho meticulosoe infundado do acúmulo de todos os traços do passado é incompatível com apossibilidade de pensar e de viver o presente. Quem tudo lembra não encontratempo para outra coisa senão meios de armazenar lembranças. Quem tudolembra desconhece a beleza do não lembrar, a vivacidade de uma busca semsucesso garantido. Quem tudo lembra não tem tempo para criar, comparar,inventar, imaginar, fazer e desfazer de modo criativo e inesperado ações dopresente. Quem tudo lembra se atém de tal forma às tradições do passado quenão percebe que as potencialidades do presente lhe escorrem pelas mãos.

    É inegável que através de seu personagem, Borges ironiza e problematizaos saudosos que desejam tudo colecionar lançando as bases para se compre-

    ender o processo dinâmico, falho e rico da memória. A beleza do não lembrarconsiste justamente nas enormes potencialidades do espaço em branco, espaçoaberto às fabulações e às deambulações, espaço de eterna construção, espaçopreenchido pelas lacunas da memória. O fato de esquecer nos convida a va-lorizar as lembranças, saudá-las como imagens voluntárias ou involuntárias

    31 BORGES, Jorge Luís. “Funes, o memorioso”. In: Ficções. São Paulo: Abril, 1992, p. 544.32 BORGES, Jorge Luís. Op. Cit., 1992, p. 545.33 BORGES, Jorge Luís. Op. Cit., 1992, p. 545.

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    que nos permitem reviver momentos de antigamente. O esquecer ilumina desentidos e de vivacidade o lembrar, torna-o um momento muito especial de

    transposição de tempos e de reencontro com lugares e pessoas.Em seu livro  As cidades invisíveis , Italo Calvino nos apresenta duas ci-

    dades que nos permitem aprofundar nossas leituras sobre Funes. A primeira,Zora, é a “cidade que quem viu uma vez nunca mais consegue esquecer. (...)Zora tem a propriedade de permanecer na memória ponto por ponto”34. EZora, por permanecer presa ao passado, não oferece a seus visitantes a possi-bilidade de descoberta e de reconstrução. Por ser sempre a mesma, Zora podefascinar os homens sábios, pois eles se engrandecem ao reter toda e qualquer

    informação da cidade imutável. Contudo, para o viajante Marco Pólo, a via-gem foi inútil, pois “obrigada a permanecer imóvel e imutável para facilitar amemorização, Zora definhou, desfez-se e sumiu. Foi esquecida pelo mundo”35.Esquecida em sua previsibilidade, Zora se recusou a viver o presente pelo ex-cesso de vontade de tudo guardar. eve a mesma sorte de Funes, que, incapazde esquecer, acabou se esquecendo de viver.

     A outra cidade, Leônia, se aproxima de “Funes, o memorioso” pelo ex-tremo oposto: o gesto exarcebado de tudo jogar fora. Definida como umacidade que “refaz a si própria todos os dias”36, Leônia “se mede pelas coisasque todos os dias são jogadas fora para dar lugar às novas”37. Assim, a cadanovo dia, a cidade aparece com uma nova aparência: ao lixo os antigos objetosem prol dos novos que não param de chegar. A velocidade da mudança assolaLeônia de tal modo que os aterros sanitários são insuficientes para o apetitevoraz de uma cidade que sempre se renova. Logo, junto à impetuosidade derenovação surgem problemas ambientais e de ordem pública de uma cidadeque não tem mais como crescer. Uma cidade dinâmica que se esqueceu dovalor do passado e que deixa para si uma herança de desordem e de caos: uma

    cidade que, no meio de todo o seu amontoado, consegue ser vazia.Estas duas cidades de Calvino deixam perceber claramente que toda re-

    lação visceral com a memória acaba sendo conflituosa. Precisamos saber lem-

    34 CALVINO, Ítalo.  As cidades invisíveis . São Paulo: Companhia das Letras, 1990.p. 19).

    35 CALVINO, Ítalo, Op. Cit., 1990, p. 20.36 CALVINO, Ítalo, Op. Cit., 1990, p. 105.37 CALVINO, Ítalo, Op. Cit., 1990, p. 105.

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    brar e esquecer com a certeza de que somente nos espaços entre o lembrar e oesquecer é que construímos nossa vivência. E que qualquer tentativa de tudo

    lembrar ou tudo esquecer representa uma maneira errônea de se construir opresente com as experiências do passado.

     Ao retornarmos ao romance Cantique des plaines , fica claro o desejo daneta, através desta obra biográfica sobre seu avô, de reter a fugacidade daslembranças para compor um livro de memórias sobre Paddon. Se a memóriase torna essencial para o projeto de Paula, ela, antes disso, aparece como com-ponente frágil na vida de Miranda, companheira de seu avô. Ao contrário deFunes, que desconheceu a faculdade do esquecer, Miranda fascina e emociona

    pela sua perda flagrante de memória. Enquanto Funes deixa de viver, pois nãoconsegue renunciar às lembranças, Miranda se fragiliza pela incapacidade dese lembrar e de conhecer os que a cercam. Ambos refletem a linha tênue doexcesso de lembrança e do excesso de esquecimento, exageros que impossibi-litam a vida cotidiana ao desequilibrar a balança da memória. Exageros quecondenam os dois a uma morte lenta e sofrida, a morte dos que, apesar devivos, não conseguem viver e se encontram em um limbo inquietante.

     Assim, o medo da perda de memória acompanha Paula da mesma ma-neira que acompanhou o avô, que procurou vencer a doença de Miranda re-gistrando nos seus manuscritos as histórias que ela contava. Ao antecipar atrajetória que mais tarde sua neta repetiria, Paddon escreve sobre Mirandapor não admitir seu silenciamento, para prolongar sua presença e para abolira distância imposta pela impossibilidade da fala. Paddon cria um texto capazde absorver a vivacidade de Miranda e sua alegria – e, também, sua revolta -ao falar da história de seu povo Blackfoot, ao contar histórias com a seduçãode uma grande contadora marcada pelo fascínio da literatura oral. Graças aosmanuscritos, Paula conhece Miranda e pode dar vida às suas histórias, um

    círculo sem fim que procura, através da escrita, superar a morte e assegurara permanência de textos surpreendentes: “toi aussi, comme Miranda, tu nepeux continuer de vivre que dans mes mots: ici, sur ces pages que je ne cessede maculer de mes larmes et de mes cendres”38.

    Com a doença de Miranda, Paddon se vê diante da real possibilidadede voltar a ser sozinho e, disposto a não deixar que suas histórias sejam silen-

    38 HUSON, Nancy. Op. Cit., 1993, p. 79.

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    ciadas com sua morte, descobre as facetas da escrita sobre a memória: “Voilàce que Miranda t’avais permis de comprendre: cette merveille de la mémoire,

    ce caractère indestructible du passe”39. Miranda, todavia, por desconhecer aleitura e a escrita, “incita-o a viver o tempo muito mais do que a fixá-lo empalavras”40. Miranda ensina a Paddon a importância de se viver o presente e dese ler o tempo não pelo viés da acumulação e da efemeridade, mas, sobretudo,pelo possibilidade de usufruir do tempo e das vivências, percepção própria dacultura de seu povo.

     A homenagem a Miranda feita por Paddon e reiterada por Paula nascede sua importância para a transformação da vida mecânica e infeliz levada

    por Paddon. Paula escreve que “c’est comme si Miranda te fécondait, commesi elle versait en toi des graines qui bourgeonnaient constamment en gesteset pensées inattendus. u te sentais la force de tout supporter, absolumenttout”41. Na realidade, Miranda fecunda Paddon quando o impulsiona para avida, quando lhe mostra que viver não passa necessariamente pela angústia epela solidão, quando lhe ensina a vivacidade da memória e o convida a escre-ver sem grandes pretensões, quando vislumbra para ele a riqueza de ouvir e decontar histórias.

    anto Ricoeur quanto Augé afirmam, contudo, que não nos lembramosexatamente de um momento passado e sim da impressão deste momento quepermaneceu em nossa memória. Por esta definição, percebemos que “a lem-brança é sempre a mimeses de um original conhecido, apreendido”42. Lembrarassume, desta forma, a função de despertar uma representação, uma imagem,uma impressão, um vestígio, um traço de algo que se manteve vivo na me-mória. Logo, por esta série de enumerações chegamos mais perto da definiçãode lembrança e, consequentemente, da ideia fragmentária essencial à com-preensão do funcionamento da memória. Se, por um lado, lembrar é evocar

    39 HUSON, Nancy. Op. Cit., 1993, p. 84.40 HANCIAU, Núbia Jacques. Nancy Huston, uma francesa adotiva, que volta ao Canadá,

    aceita sua história e suas origens e canta as planícies albertanas. In PORO, Maria Bernadet-te (org.) Fronteiras, passagens, paisagens na literatura canadense . Niterói: EdUFF/ABECAN,2000, p. 155),

    41 HUSON, Nancy. Op. Cit., 1993, p. 179.42 MACRON, Emmanuel. La lumière blanche du passé – Lecture de La Mémoire, l’histoire

    et l’oubli, de Paul Ricoeur In ESPRIT- Les historiens et le travail de la mémoire  no. 266-267Paris : août / septembre 2000, p. 19.

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    pedaços de acontecimentos, “inscrições que foram conservadas”43, dar vida aoque estava em repouso, por outro, esquecer é abandonar um acontecimento,

    um produto forjado pela memória, deixá-lo morto em alguma parte de nós. Assim, “a memória é um exercício, quase sempre difícil, de retrospecção, deanamnese, sempre do presente em direção ao passado”44.

    Em seu poema “Resíduo”, Drummond defende a ideia de que “de tudofica um pouco”45, um pouco de nós nos outros, um pouco dos outros emnós mesmos, um pouco dos objetos, um pouco dos lugares, um pouco dosodores, um pouco de pouco. Mesmo trabalhada pelos esquecimentos, nossamemória retém sempre um pedaço de lembrança, uma amostra de tudo o que

    se mostrou importante. Assim, fica em Miranda a história de seu povo e suadificuldade diante da assimilação sofrida. Fica em Paddon um pouco de Mi-randa, um pouco de sua infância nas planícies, um pouco de suas ideias sobreo tempo. Fica em Paula um pouco de Paddon, de sua infância, de seu amorincondicional. Fica no romance escrito por Paula um pouco dela mesma, dePaddon, de Miranda, de toda uma família viva nas lembranças e presentificadapelo trabalho da escrita. Fica o resíduo da vida de quadro gerações, o resíduoda história do oeste canadense, o resíduo de histórias de encontros e de de-sencontros que acompanham tantos personagens, uma história evocada pelamemória e enriquecida pela imaginação. Fica da morte um resíduo da vida,fica do esquecimento um resíduo de lembrança, fica da promessa um resíduoda profecia.

    De tudo fica um pouco porque nos esquecemos bastante. Sobre a im-portância do esquecimento – imprescindível para o trabalho da memória –,Nancy Huston revela no romance Une adoration que “(...) on oublie. Et heu-reusement! Sans cela, sans cette précieuse faculté d’oubli, on nagerait dans unemasse inextricable d’impressions anciennes et récentes, dépourvues de hié-

    rarchie et de sens”46. Ricoeur acredita que existe uma forma de esquecimentochamado “esquecimento de reserva”, “estado de latência no qual permanecemas lembranças que a anamnese ou o acaso farão ressurgir. O esquecimento de

    43 MACRON, Emmanuel. Op. Cit, 2000, p. 18.44 MACRON, Emmanuel. Op. Cit, 2000, p. 26.45  ANDRADE, Carlos Drummond de. “Resíduo” In A rosa do povo. Rio de Janeiro: Record,

    1984, p. 93.46 HUSON, Nancy. Une adoration. Montréal: Lémeac, 2003, p. 161,162.

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    reserva permite o trabalho da memória pois é graças a ele que não nos lem-bramos de tudo o tempo todo”47. Desta maneira, o esquecimento passa a ser

    o “quarto escuro”48 da memória, um lugar de permanente estado de espera,lugar de abandono, de deixar de ser. Fica aqui muita clara a ideia de Paula deque escrever por causa e sobre o avô era uma maneira de “faire l’impossiblepour reprendre le flambeau que tu avais allumé”49. Mais uma vez, a escritacomo uma ação em equipe, tal como a chama dos jogos olímpicos que, pas-sando por diversas mãos, deve se manter acessa. Escrever, aqui, como práticaligada à luminosidade: escrever para não deixar apagar-se a chama acesa peloavô, escrever para dar continuidade à luz e afastar para sempre a presença do

    quarto escuro para onde os pensamentos e manuscritos de Paddon poderiamser encerrados para sempre.Difícil não associar o quarto escuro de Ricoeur ao Quarto de despejo de

    Carolina Maria de Jesus. Em ambos, apesar das diferenças, fica latente a ideiade que “o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo”50,o que confirma a máxima de que neste quarto permanece tudo o que podeser queimado, apagado, reduzido ao nada, objetos considerados descartáveis efacilmente substituíveis. Enfim, ao entrar no escuro do quarto nada mais restado que abandono, esquecimento e morte. É justamente no intuito de revertero trabalho desta tríade que Paula, assim como Carolina Maria de Jesus, escreveusando suas lembranças, sua imaginação e sua capacidade ficcional para abrir aporta do quarto, ou mais precisamente o envelope deixado de herança pelo avô,e iluminá-lo com a possibilidade da existência. Não por acaso, os manuscritosdo avô ficavam escondidos em um porão, também não por acaso em uma crisede raiva por não conseguir escrever, ele joga no aterro sanitário seus textos,uma “véritable montagne d’angoisse révolue”51. Do caminho do porão para odepósito, os textos saem do quarto de despejo onde poderiam, um dia, talvez,

    ser recuperados para irem de encontro ao esquecimento irrevogável. Ao deixarpara trás caixas com inúmeros escritos, Paddon lhes impõe a morte por esque-

    47  Apud MACRON, Emmanuel. Op. Cit, 2000, p. 31.48 MACRON, Emmanuel. Op. Cit, 2000, p. 31.49 HUSON, Nancy. Op. Cit., 1993, p. 285.50  JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo – diário de uma favelada. São Paulo: Livraria

    Francisco Alves, 1960, p. 38.51 HUSON, Nancy, Op. Cit., 1993, p. 195.

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    cimento, ou por inanição, como imagina Nancy Huston. Naquele momento,o “esquecimento de reserva” se torna esquecimento irreversível e, assim, ele pre-

    tende, livre do fardo que pesava sobre seus ombros, tentar recomeçar sem levar junto a si os fantasmas de um passado não próspero. Como se ao tirar aquelesmontes de papel diante de si, Paddon estivesse mais livre para fingir que estavaaliviado. O esforço físico, todavia, desloca seu ombro e o deixa em repouso poruma semana. Como não poderia deixar de ser, fica muito claro o investimentocorporal não somente no momento da escrita como, igualmente, no difícilmomento da ruptura e do abandono. Muito mais do que as dores pelo pesodurante o longo percurso, Paddon carrega junto a si a dor da impossibilidade,

    do desejo não realizado, do orgulho ferido e da certeza de que seu projeto sobreo tempo se encontrará perdido nas alturas como seu feijão mágico ou preso noquarto de despejo onde se encontra tudo o que está fadado à morte.

     Assim, falar do binômio “memória e morte” se mostra imprescindívelpara reconhecer o trabalho de Paula como mediadora entre a morte e a so-brevida de Paddon, entre seu enterro nas páginas iniciais do romance à suaconcepção imaginada nas páginas finais do livro, na qual Deus “marmonneSa formule magique au-dessus de la matière grasse dans l’utérus de Mildredpour y faire jaillir une étincelle d’esprit (...) et te tire avec léthargie du néant,Paddon”52. Não por acaso, o fim do romance anuncia a concepção e o futuronascimento de Paddon. Ao escrever sobre o avô, Paula vislumbra para ele umanova existência, pois, acreditando que seja “simplesmente inadmissível que agente disponha somente de uma vida”53, lhe concede uma nova vida capaz depassar a limpo noventa anos de silêncio e de impossibilidades, noventa anosem que diante da folha de papel só havia o branco das angústias. Noventa anosrevividos ficcionalmente graças à profecia e à promessa feitas ainda na infânciapela neta. Escrita que se volta para o passado com o objetivo de enterrar a

    versão desiludida de Paddon para dar vida a uma nova versão, versão forjadano presente que se inscreve em um palimpsesto de textos.

     A neta, ao herdar um sonho não realizado, percebe na narrativa bio-gráfica uma maneira de reter as imagens efêmeras da memória e de transporpara o papel suas impressões sobre a vida da única figura paterna e afetiva

    52 HUSON, Nancy. Op. Cit., 1993, p. 319.53 HUSON, Nancy. Op. Cit., 1999, p. 115.

    Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 271-289, 2010   285

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    que possuía, não sem contar, é claro, com muitos toques imaginativos capa-zes de sobrepor seu projeto pessoal de escrita aos manuscritos indecifráveis

    do avô. Como prescreve Augé, citando Pontalis, “é preciso menos se lembrardo que associar”54, e Paula demonstra saber, como poucos, fazer o trabalhoatencioso de juntar contas de um colar ou de costurar tecidos para com elesconstruir uma vida que, longe de ser tão verídica como pretende a memó-ria, deve ser apenas plausível e verossímil, uma vida que, mesmo não tendoocorrido exatamente da maneira que descreve, poderia sem muito esforçoter sido assim.

    “Nossa memória é uma ficção”55 se mostra como frase síntese da ideia de

    que a humanidade é essencialmente uma espécie fabulatória – não por acaso,o título de um dos mais recentes livro de Nancy Huston. Assim, intimamenteconfundido e particularizado em suas fabulações, ele cria, inventa e brincacom sua memória, preenchendo todas as suas imperfeições – e elas são muitas– com boas doses de imaginação.

     Ao estudar a memória, Jacques Le Goff a define como “propriedade deconservar certas informações (...) que falam do passado, em suma, de um certomodo de apropriação do tempo”56. Defende a ideia, ao citar Changeux, de quea memória é um modo de ordenação e de releitura de vestígios, ou seja, umamaneira de se conviver com os legados do passado, que nos chega por meiode vestígios e de um “comportamento narrativo”57. Fazendo eco com Ricoeur,para quem a vida é um tecido de fios narrados, Le Goff fala da função socialda memória como comunicação de uma informação a outrem.

     Ao valorizar a memória em sociedades sem escrita, como, neste estu-do, a dos ameríndios representados por Miranda, Le Goff insiste em uma“dimensão narrativa” capaz de reconstituir de maneira generativa e não me-cânica fatos que merecem ser recontados. Para ele, as sociedades sem escrita

    “atribuem à memória mais liberdade e mais possibilidades criativas”58  aovalorizarem uma memória criadora que se afasta da memória palavra porpalavra para se aproximar de uma forma mais rica, livre e menos repetitiva

    54  Apud AUGÉ, Marc. Op. Cit., 1998, p.34.55 HUSON, Nancy. L’espèce fabulatrice . Montréal: Lémeac, 2008, p.25.56 LE GOFF, Jacques. História e memória . São Paulo : UNICAMP, 2003, p. 419.57 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p.421.58 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 426.

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    das releituras que cada contador faz continuamente das histórias que ouviue que pretende contar. De certa forma, Le Goff percebe na cultura escrita

    uma perda da vitalidade da memória, uma vez que, escritas, as lembrançasparecem mais firmes e impessoais e perdem o caráter criador que ele tantoenfatiza. É certo que a mudança dos tempos implica novos meios de seinteragir e de se conservar a memória; contudo, romances contemporâneoscomo Cantique des plaines , e Quase memória , de Carlos Heitor Cony, apon-tam para o caráter fabulatório essencialmente ligado ao ato de escrever sobreo passado. Mudam-se os tempos, mas permanece a dimensão narrativa damemória, dimensão cujas bases se dão nos caminhos entre o lembrar e o

    esquecer, o contar e o inventar.Em seu percurso de observação da memória ao longo da história, LeGoff fala das “instituições-memórias” criadas por reis para conservar a históriae a memória de seu povo. Surgem ainda na era anterior a Cristo arquivos,bibliotecas e museus, lugares-templos de toda riqueza digna de não ser es-quecida. Ainda na tentativa de se aprisionar feitos do passado, Le Goff citaas listas – uma vez quer “nomear é conhecer”59– e cita os laços fundamentaisentre escola e memória em todas as sociedades.

     Ao falar da Grécia antiga, o historiador cita Vernant, para quem a “me-mória, distinguindo-se do hábito, representa uma difícil invenção, a conquistaprogressiva pelo homem de seu passado individual”60. Entendemos aqui a ideiade invenção ao observarmos a subjetividade na leitura dos vestígios do passado.Deslocados de seu tempo, os vestígios são passíveis de ser interpretados e refi-gurados em uma tentativa contemporânea de se conhecer um passado distante.

    Na passagem da memória oral para a memória escrita, Le Goff nos apre-senta o “mnemon”, “uma pessoa que guarda a lembrança do passado em vistade uma decisão da justiça”61. Ancestral dos arquivistas, o “mnemon” encar-

    naria a memória viva e deveria acompanhar os heróis para lhes lembrar umaordem divina cujo esquecimento traria a morte. Assim, assume a função deguia do herói, estando sempre atento para que ele não se afaste de seu caminhonem se esqueça de sua missão.

    59 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 431.60  Apud LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 432.61 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 432.

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    Se a ideia de “mnenon” aponta para a memória como um bem a ser vi-sitado, Platão é lembrado por Le Goff neste panorama da memória ao longo

    do tempo por seu caráter desconfiado em relação à escrita. Segundo a lenda,o deus egípcio Tot foi o patrono dos escribas e dos funcionários letrados,inventor dos números, do cálculo, da geometria e da astronomia, do jogo dedados e do alfabeto. Ele transformou a memória,

    mas contribuiu, sem dúvida, mais para enfraquecê-la doque para a desenvolvê-la: o alfabeto engendrará esqueci-mento nas almas de quem o aprender: estas cessarão de

    exercitar a memória porque, confiando no que está es-crito, chamarão as coisas à mente não já do seu própriointerior, mas do exterior, através de sinais estranhos62.

     Alguns aspectos do mito de Tot merecem ser estudados. Por um lado,fica latente o pressuposto de que a memória precisa ser exercitada, trabalhada,tal como defenderam Freud e Ricoeur. A memória seria desde a antiguidadeum patrimônio vivo que precisa ser revisitado para se manter vivo e presente.Precisa, neste sentido, da atenção e da cumplicidade daquele que quer lem-brar. Não pode ser esquecida num quarto escuro, sozinha, pois facilmente sedeixaria assimilar pelo escuro e pelo esquecimento.

    Por sua vez, a ligação entre memória e imortalidade permanece inalte-rada. A divinização da memória, iniciada na Grécia, ainda é muito difundidaatravés da deusa chamada de “Mnemosine”. Não conhecemos aventuras ougrandes epopéias que tenham caracterizado a vida da musa, tampouco sabe-mos como e porque se tornou e rapidamente deixou de ser a quinta esposa deZeus. Conhecemos tão somente a paixão arrebatadora que os uniu por nove

    noites consecutivas, nove noites que geraram nove herdeiras:

    Calíope: a Musa da poesia épica, Clio: a Musa da história,

    Erato: a Musa da poesia de amor, da poesia lírica e das canções

    matrimoniais, Euterpe: a Musa da música e da poesia lírica,

    62 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 433.

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    Melpômene: a Musa da tragédia, Políminia: a Musa das mími-

    cas e das canções, erpsícore: a Musa da dança, ália: a Musa da

    comédia e Urânia: a Musa da astronomia 63.

    Conhecidas como fontes de inspiração para diversos artistas, sobretu-do os poetas, as musas se destacam por seu generoso trabalho em nome dasartes. São elas que acompanham as solitárias práticas de produção artísticas,garantindo-lhes vida profícua. Antigamente, muitos eram os escritores queexaltavam e agradeciam publicamente às suas companheiras fiéis. Atualmen-te, a ideia de inspiração foi bastante superada pela concepção do trabalho

    efetivo, cansativo e laborioso. Ainda guardamos, todavia, o paradigma ro-mântico de que todo bom artista é de alguma maneira especial e possuisensibilidade e talento vindos não sabemos de onde. Seriam ainda guiadospor musas que os encantam e os mantém firmes no caminho entre as ideiase sua realização?

    Mãe de todas as musas, Mnemosine contribui de forma emblemáticapara o trabalho de memória. Através de suas filhas, permitiu que momentosefêmeros ficassem registrados na vida cultural dos povos ao longo de inúmerasgerações. Mostrou, desta maneira, como a arte é um meio propício para oregistro do passado, um meio de revistá-lo e de mantê-lo sempre por perto.Mostrou, igualmente, que a memória é mãe e ponto propulsor de toda e qual-quer expressão artística. Através da memória conhecemos e estudamos o quefoi feito para podermos criar. Através da memória registramos na linha dotempo nossa criação. Uma organização em palimpsesto: um palimpsesto detempos e criações.

    Retomando, em guisa de conclusão, o estudo de Le Goff sobre História

    e memória, descobrimos que a memória “é o antídoto do esquecimento”64,

    “uma fonte de imortalidade”65. Um elo fragmentado e frágil que se en-

    riquece na escrita ficcional guiada pelas musas e por sua mãe, a deusa

    Mnemosine.

    63 BOLON, Lesley. O livro completo da mitologia clássica. São Paulo: Madras, 2004, p. 198.64 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 434.65 LE GOFF, Jacques. Op. Cit., 2003, p. 434.

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    RÉSUMÉ

    Cet article propose une réflexion autour des interfacesentre écriture et mémoire dans le roman canadien Can-tique des plaines , de Nancy Huston. A l’appui des lec-tures de Borges, d’Ítalo Calvino, de Jacques Le Goff, de

    Marc Augé et de Paul Ricoeur il est question d’étudier la

    pratique fictionnelle dans ses dialogues avec la mémoire.

    Il s’agit d’analyser l’ambivalence entre les procédés de

    l’acte d’écrire et la mémoire dans la pratique littéraire.

    MOS-CLEF: écriture ; mémoire ; fabulation

    Recebido: 31/04/2010 Aprovado: 09/06/2010