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ENTRE A MEMÓRIA E O ARQUIVO: MODOS DE ALFABETIZAR NO GRUPO
ESCOLAR CÉSAR BASTOS (1947-1961)
Márcia Campos Moraes Guimarães1
Maria Aparecida Alves Silva2
RESUMO: O presente trabalho, situado no âmbito da História e Historiografia da Educação,
tem como objetivo identificar os modos de alfabetizar utilizados pelas professoras que
atuaram no Grupo Escolar César Bastos, no período de 1947 a 1961. Para tanto, parte-se da
seguinte problemática: Qual a proposta didática para o ensino da leitura e da escrita? Quais
materiais pedagógicos eram utilizados? Como eram realizadas as avaliações dos alunos?
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho documental, pautada na análise das seguintes
fontes: livro de registro das avaliações finais, memorandos, ofícios, dentre outros. Em
paralelo, utilizou-se, também, as entrevistas concedidas por uma diretora e três professoras
alfabetizadoras que trabalharam no Grupo Escolar, no período em estudo. Em linhas gerais
pode-se afirmar que as professoras alfabetizadoras não possuíam diretrizes que orientassem
suas práticas de ensino, os materiais didáticos utilizados resumiam-se a cartazes, adotavam o
método sintético de ensino da língua e as avaliações tinham caráter classificatório e
excludente.
PALAVRAS-CHAVE: História da Educação. Alfabetização. Grupo Escolar. Fazer
Pedagógico. Métodos de Ensino.
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa, situada no âmbito da História e Historiografia da Educação Brasileira,
tem como vertente a História das Instituições Escolares e focaliza, como objeto de estudo, o
Grupo Escolar César Bastos3, instalado, em 1947, na cidade de Rio Verde – Goiás. Para
tanto, busca-se estabelecer as características relevantes de sua prática educativa, por meio da
discussão sobre o processo de ensino da leitura e da escrita.
As questões sobre as práticas desenvolvidas pelo Grupo Escolar César Bastos são
analisadas sob a perspectiva de Certeau (1994), pois se busca encontrar sentido nas artes de
fazer das diretoras e professoras, considerando a legitimidade dos saberes e valores que
permeiam tais técnicas, camufladas do coletivo escolar.
Assim, com o objetivo de identificar os modos de alfabetizar utilizados pelas
professoras que atuaram no Grupo Escolar César Bastos, recorre-se ao depoimento dos
sujeitos que participaram do processo, no período de 1947 a 1961. Tal procedimento
1 Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. Contato:
[email protected] 2 Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Contato:
[email protected] 3 Segundo grupo escolar instalado no município.
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metodológico possibilitou o pensar a respeito das invenções produzidas pelos depoentes no
cotidiano escolar, procurando identificar microdiferenças, onde aparentemente, só existe
uniformização.
Além dos depoimentos, utilizou-se, também, para a escrita deste texto, as seguintes
fontes escritas: Regulamento do Ensino Primário do Estado de Goiás (1949), Ata relativa aos
exames finais e ofícios escolares.
Com a intenção de refletir sobre a problemática apresentada, o texto encontra-se
dividido em duas partes. Na primeira, abordamos a questão dos métodos de ensino da leitura e
escrita em seu processo histórico. Na segunda parte, apresentamos o processo de
alfabetização desenvolvido pelas professoras do Grupo Escolar César Bastos.
1 Percurso histórico dos métodos de alfabetização
Basicamente, temos dois métodos oficialmente reconhecidos para conduzir o trabalho
de alfabetização: método sintético4 e método analítico5. O método sintético é o mais antigo de
todos, tendo mais de 2000 anos. O aprendiz devia primeiro dominar o alfabeto (soletrando),
em seguida apresentando a grafia, posteriormente as sílabas de forma sistemática. Só depois
vêm as palavras simples e depois as mais difíceis. Este método perdurou por longos anos, da
Antiguidade até meados do século XVIII.
No método sintético, primeiro o aprendiz dominava o alfabeto, repetindo as letras, em
coro. Depois lhe era apresentada a grafia das letras do alfabeto, seguidas das sílabas
devidamente ordenadas. Na sequência as palavras simples e depois as mais complexas. A
regra geral era de que o aprendiz não poderia avançar no processo sem que todas as
dificuldades da fase anterior estivessem dominadas.
A aprendizagem da leitura e da escrita estava ligada à aprendizagem da oratória. A
leitura consistia em exercício de articulação com o propósito de eliminar os defeitos da língua
oral, já a escrita,
4 Método sintético consiste em mostrar primeiro as letras e ensinar suas correspondências com sons e depois
ensinar a compor com elas as sílabas e as palavras. A instrução procede do simples para o complexo,
racionalmente estabelecidos: num processo cumulativo, a criança aprende as letras, depois as sílabas, as
palavras, frases e, finalmente, o texto completo. Estabelece-se como regra geral que a instrução não deve avançar
no processo sem que todas as dificuldades da fase precedente estejam dominadas (LEMLE, 1991, p. 42). 5 Método analítico consiste em mostrar primeiros palavras – ou frases – e ensinar a identificar nelas as unidades
componentes – as letras – e os sons que lhes correspondem. Parte das sequências completas, sendo a tarefa
analisá-las e identificar os átomos. Tomam-se por empréstimos alguns elementos do global, sem, no entanto, abandonar a característica básica do sintético: a operação b + a = ba continua a ser a operação de base (LEMLE,
1991, p. 42).
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[...] os textos não tinham pontuação, as palavras não eram separadas por espaços em
branco, a forma da letra era rebuscada e ornamental, a ortografia não estava
normalizada. Todas essas dificuldades visuais do texto levavam o leitor à oralização
como estratégia de leitura. Era um método que progredia lentamente; em geral, o
aprendiz demorava quatro anos para começar a ler um texto completo. Só após esse
período, ele iniciava a aprendizagem da escrita (BARBOSA, 1994, p. 47).
O método analítico surge a partir do século XVIII, em oposição teórica ao método
sintético, cuja concepção era de que a criança deveria primeiro aprender as palavras ou as
frases, depois as letras isoladas. Mas é no final do século XIX e início do século XX que se
estabelece em definitivo os postulados do método analítico, com forte influência da Psicologia
Genética e de seus defensores.
O método sintético sofreu duras críticas por seu caráter mecânico, artificial e não-
funcional. Assim, fundamentos do método global provocam alterações no método sintético
resultando um novo modelo: analítico-sintético que preserva a característica básica do
sintético: b + a = ba. Se comparados enquanto essência observa-se que não existe grande
diferença, a matriz centra-se no “tradicionalismo".
Um bom leitor compreende perfeitamente um texto sem se preocupar com cada
palavra. Nós “[...] reconhecemos o rosto de alguém com uma visão global de muitas
particularidades que, descritas ou mesmo vistas uma a uma, não permitiriam a identificação
da pessoa. A visão da árvore encobre a visão da floresta” (BARBOSA, 1994, p. 124). Por que
então acreditar na eficiência de um método que fragmenta a leitura e a escrita e não tem
mostrado resultados satisfatórios?
O surgimento do método analítico não sobrepôs o método sintético, apenas gerou uma
batalha entre seus adeptos que “[...] repercutiram até nas páginas dos jornais, a Diretoria de
Instrução do Estado de São Paulo determinou a obrigatoriedade da adoção do método
analítico nas escolas públicas” (BARBOSA, 1994, p. 51).
Em função dos questionamentos por parte dos professores, a lei foi revogada em 1920
e até os dias atuais os professores são “livres” para escolha do método a usar. A questão assim
vista parece simples, mas há que verificar a prática e a hierarquização do sistema de Ensino.
Bamberger acredita que o método utilizado pelo professor depende muitíssimo dele
mesmo e do material de leitura disponível levando em consideração a superação do
[...] dogmatismo metodológico quando se alfabetiza. Já que pesquisas demonstram
que a criança é capaz de perceber tanto global quanto sinteticamente, o dogmatismo
na metodologia [...] deve ser evitado. A abordagem deve ser multilateral para todos
os alunos, e os métodos usados, ecléticos (BAMBERGER, 2000, p. 24).
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Silva não acredita “[...] que exista um único método, suficientemente abrangente e
‘milagroso’, para atender à multiplicidade de propósitos, situações e práticas de ensino da
leitura” (SILVA, 1998, p. 106).
Foucambert e Magne analisam os métodos e declaram que:
Os mais difundidos ainda hoje literalmente fazem os alunos avançarem às cegas, não
lhes permitindo que situem o que lhes é ensinado em relação ao que devem
aprender. O processo é sempre sintético, partindo do supostamente simples rumo a
algo complexo, no qual não se tem experiência (FOUCAMBERT; MAGNE, 1994,
p. 35).
A partir dos métodos sintético e analítico surgiram vários, embora com denominações
diferentes, apresentavam os mesmos princípios, ou partem da unidade menor para a maior
(letra – sílaba – palavra – sentença – texto), ou percorrem o caminho contrário. Vejamos o
Quadro 1:
Quadro 1 – Sinopse das fases dos métodos Fases Métodos
Métodos Soletração Fônico Silábico Palavração Sentenciação Contos e da
experiência
infantil
1ª fase Alfabeto:
letra, nome
e forma
Letras:
som e
forma
Letras:
consoantes
e vogais
Palavras Sentenças Conto ou
texto
2ª fase Sílabas Sílabas Sílabas Sílabas Palavras Sentenças
3ª fase Palavras Palavras Palavras Letras Sílabas Palavras
4ª fase Sentenças Sentenças Sentenças Sentenças Letras Sílabas
5ª fase Contos ou
textos
Contos ou
textos
Contos ou
textos
Contos ou
textos
Contos ou
textos
Letras
Fonte: MENDONÇA, O. S.; MENDONÇA, O. C., 2008, p. 25.
Os métodos da soletração, o fônico e o silábico são de origem sintética; os métodos da
palavração, sentenciação ou os textuais são de origem analítica.
O antigo, mas até hoje utilizado bê-a-bá, se encaixa no método sintético que nada
contribui para o letramento. O aluno só conseguirá ler o que lhe foi ensinado até o momento e
“[...] é preciso dizer mais uma vez que alguns livros não vão além de frases para a leitura, que
são cheias de repetições, como ‘A vovó deu a uva a Olavo’, ‘O bebê bebe e baba’ etc.;
obviamente, isto é o que há de pior para se dar para uma criança ler” (CAGLIARI, 1992, p.
179). Geralmente estes livros são as chamadas cartilhas que ainda são comuns na
alfabetização das crianças. Colocaram uma nova roupagem nas cartilhas, mas a essência
permanece intacta.
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Com relação às cartilhas, Barbosa (1944, p. 54) define-as como “livros didáticos
infantis destinados ao período da alfabetização”. Acrescenta que as mesmas são de caráter
transitório, e que todas partem do pressuposto de que, “para aprender a ler, o aprendiz deve
transformar o signo oral, para depois chegar à compreensão. O oral é utilizado como
mediador da compreensão” (p. 54).
As cartilhas são estruturadas conforme a escolha metodológica de seus autores e
podem ser, conforme Barbosa:
Sintéticas, “de soletração ou silabação” – apresentam as vogais, suas combinações,
ditongos e tritongos; em seguida as combinações entre consoantes e vogais, as
chamadas famílias silábicas, cuja combinação daquelas já conhecidas surgem as
palavras. Após há a fixação por meio de exercícios repetitivos. Com a combinação das
palavras surgem os textos. São consideradas as mais tradicionais.
Analíticas, “de palavração ou sentenciação” – Partem de palavras ou frases e por meio
de decomposição retornam as unidades menores: as sílabas. Empregam procedimento
inverso ao das cartilhas sintéticas.
Mistas ou anlítico-sintéticas – combinam as duas orientações: sintética e analítica.
Partem da palavra-chave destacadas de uma frase, e em seguida é decomposta em
sílabas, que darão origem a novas palavras. Institui hierarquia das dificuldades,
distinguem-se as sílabas simples, as complexas, os encontros consonantais e sílabas
inversas. Para apresentar as sílabas há preocupação com a relação biunívoca com o
oral, além de todo um cuidado em não introduzir sílabas com som ou grafia
semelhantes em proximidade (BARBOSA, 1994).
Muitos autores criticam a escolha da palavra-chave. Embora os autores das cartilhas
defendam utilizar a realidade linguística da criança na escolha das mesmas, percebe-se que o
critério utilizado é apenas o respeito à hierarquização tradicionalmente estabelecida: do
simples para o complexo. Os textos das cartilhas também sofrem duras críticas por
frequentemente terem falta de nexo entre as sentenças, abordando temas distantes da realidade
da criança, alguns próximos do absurdo.
Outro ponto a ser destacado com relação às cartilhas se refere ao fato de sua
perenidade. Um clássico exemplo é a Cartilha da Infância, de Thomaz Galhardo. Elaborada
por volta de 1880, esteve no catálogo da editora até 1970 (BARBOSA, 1994), sendo, portanto
114 anos de publicação.
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As cartilhas surgiram sob a influência do Renascimento (séculos XV e XVI) e da
imprensa na Europa, que culminaram na preocupação com os leitores, uma vez que a leitura
deixa de ser coletiva e passa a ser individual, resultando na necessidade de alfabetizar a
sociedade (CAGLIARI, 2009).
Muitas cartilhas surgiram, em se tratando da língua portuguesa, a mais antiga foi
publicada em 1540 por João de Barros, que, paralelamente publicou a “Cartinha”, que trazia o
alfabeto em letras góticas, seguido das tabelas com todas as combinações de letras possíveis.
Depois havia uma lista de palavras ilustrada, e por último os mandamentos de Deus e da
Igreja e algumas orações. Como nesta época não se alfabetizava, a Cartinha de João de Barro
não era utilizada na escola (CAGLIARI, 2009).
Depois surgiu a Cartilha do ABC que seguia o mesmo esquema da Cartinha de João de
Barros. Outras famosas foram a de Antonio Feliciano de Castillho, denominada “Metodo
portuguez para o ensino do ler e do escrever”, de 1850; a de João de Deus, intitulada “Cartilha
Maternal ou arte de leitura”, de 1876 (CAGLIARI, 2009).
Cagliari (2009) explicita que com a Cartilha Maternal, começa o método analítico,
assumindo relevância na década de 1930, quando a psicologia passa a fazer testes de
maturidade psicológica e a condicionar o processo a resultados obtidos nesses estudos. Temos
como exemplo a Cartilha do povo, publicada em 1928; e o Teste ABC publicado em 1934,
ambos de Lourenço Filho.
Muitas cartilhas foram publicadas seguindo o método misto (analítico-sintético), como
Caminho suave, de Branca Alves de Lima, em 1948, que continha o período preparatório.
Após 1990 várias obras surgiram denominando-se construtivistas, cujas propostas pretendiam
aplicar os ensinamentos da psicogênese da língua escrita.
2 Modos de alfabetizar no Grupo Escolar César Bastos
Os grupos escolares surgiram, no Brasil, a partir de 1890 e estabeleceram profundas
transformações no ensino primário, isto porque:
A escola primária graduada pressupunha o agrupamento dos alunos mediante a
classificação pelo nível de conhecimento, o edifício escolar dividido em várias salas
de aula, a divisão do trabalho docente, a ordenação do conhecimento em programas
distribuídos em séries, o emprego do ensino simultâneo, o estabelecimento da
jornada escolar e a correspondência entre classe, sala de aula e série (SOUZA;
FARIA FILHO, 2006, p. 26-27).
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Assim, a escola graduada de ensino primário constituiu, em si, um modelo cultural em
circulação. Instaurava-se, desse modo, uma nova cultura escolar6, onde o ensino da leitura e
da escrita recebeu lugar de destaque, pois era necessário ensinar as primeiras letras aos
brasileiros, para que o país pudesse sair do atraso e entrar no caminho das luzes.
O Grupo Escolar César Bastos foi instalado, no município de Rio Verde, no ano de
1947 e teve seu processo de gênese marcado por embates e parcerias entre o público
(representado pelo Estado) e o privado (constituído pela sociedade civil), o que, de um modo
ou de outro, acabou por interferir nas práticas pedagógicas ali desenvolvidas.
No que tange à alfabetização, as fontes nos revelam que, os primeiros anos de
funcionamento da instituição escolar, evidenciavam, por parte da direção, uma preocupação
com a leitura. No ano de 1949, a então diretora, Srª Ena Maria Ferreira, enviou ofícios a
várias editoras, solicitando o envio de livros infantis.
Dentre as obras requeridas sobressaiam as de Monteiro Lobato. Por meio de seus
escritos, o autor enfatizava o nacionalismo, que era evidenciado na linguagem, ação,
comportamentos e relação das personagens com a natureza. Desse modo, enquanto elemento
discursivo, seus livros foram utilizados como recursos para proteger e perpetuar certas
identidades do país, ao mesmo tempo em que assegurava a grandiosa identidade da pátria.
No entanto, a atitude da diretora revelava uma preocupação com o ensino da leitura e
da escrita pautada nos moldes da Escola Nova, presente no Regulamento do Ensino Primário
de 19497.
Com relação ao método de ensino da leitura e escrita, inicialmente, a diretora optou
pelo uso do Livro de Lili. Tal obra era uma cartilha analítica e seguia o método global, pelo
processo de contos e historietas. As lições ou historietas possuíam sentido completo e as
temáticas eram enriquecidas com ilustrações, como pode ser evidenciado a seguir:
6 O termo “cultura escolar” será utilizado, neste trabalho, de acordo com a definição proposta por Frago (1995, p.
68-69), ou seja, como práticas e condutas, modos de vida, hábitos e ritos, a história cotidiana do fazer escolar –
objetos materiais -, função, uso, distribuição no espaço, materialidade física, simbologia, introdução,
transformação, desaparecimento... – e modos de pensar, bem como significados e ideias partilhadas. 7 Decreto n. 805, de 28 de janeiro de 1949.
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Fonte: http://www.anosdourados.blog.br/2012/08/imagens-escola-livro-de-lili.html
Além do livro do aluno, fazia parte do material didático o manual do professor,
cartazes e cadernos com fichas:
Fonte: http://pt.slideshare.net/CidaLondrina/17623312- acartilhadelili101001191655phpapp01-1
Todavia, com o passar do tempo, o que se observou foi que as professoras do Grupo
Escolar deixaram de seguir o método analítico proposto pelo Livro de Lili e começaram a
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aplicar o método sintético, baseado na silabação. Tal atitude das docentes evidencia um
ecletismo processual e conceitual em alfabetização, comum nesse período, como relata
Mortatti (2000).
Quando questionada sobre como ensinava a ler e a escrever, uma professora respondeu
o seguinte: “eu usava o método silábico mesmo! Começava pelo ABC, depois as sílabas,
palavras e por último os textos” (SIQUEIRA, 2012).
Com relação ao uso de materiais didáticos, estes quase não existiam. Uma professora
mencionou que vez ou outra fazia um cartaz no papel de embrulhar pão. No entanto, a outra
disse não utilizar:
Não tinha material, era utilizando apenas o cuspe da professora, o quadro negro e o
giz. E aquele giz então. Aquele giz que saía poeira pra todo lado. A gente ficara
rouquinha, com alergia. Hoje tem uns colorido! Nós tínhamos só giz branco.
(ELIAS, 2012).
Além do mais, desde o ingresso no primeiro ano do curso primário, o aluno era
colocado diante de exaustivos exercícios de gramática normativa, como forma de “criação de
um conformismo linguístico” (FARIA FILHO, 2000, p. 198), capaz de superar o atraso
cultural dos estudantes, que, em sua maioria, era oriunda de camadas populares.
Para o ensino da leitura e escrita, o primeiro ano era dividido em três classes: A, B, C.
Formava a turma de alunos do 1º ano C, aqueles que iniciavam no aprendizado das primeiras
letras e se esperava, que ao final do ano letivo os mesmos fossem capazes de escrever o
alfabeto e realizar cópias corretas de sentenças, como habilidades necessárias à promoção ao
1º ano B. Ao término do 1º ano B, os alunos deveriam ser capazes de reconhecer o número de
sílabas das palavras, escrever palavras e sentenças e, ao concluírem o 1º ano A, a fim de
serem promovidos para o 2º ano, deveriam escrever textos ditados pela professora, assim
como dominar as questões da língua no que tange à gramática, conforme evidencia o quadro
abaixo:
QUADRO 2 - Exame final de Português - 1º ano C, B, A – 1954
1º ANO C
1ª questão – Fazer cópia do quadro negro, passado pela professora:
A bola é do Didi.
O dado é do Donato.
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Maria é boa môça.
O bolo é bom.
A menina canta bem.
2ª questão – Escrever dez vezes a seguinte frase:
Maria sabe cantar.
3ª questão – Confeccionar o alfabeto.
1º ANO B
1ª questão – Cópia do livro de leitura adotado em classe8.
2ª questão – Quantas sílabas tem estas palavras:
livro ( ) caderno ( ) verde ( ) casa ( ) menino ( ) cavalo ( )
3ª questão – Escreva os dias da semana
4ª questão – Quantas estações tem o ano?
5ª questão – Escreva seu nome.
6ª questão – Escreva 4 sentenças com as seguintes palavras: menino, rio, livro e régua.
1º ANO A
1ª questão – Ditado – Minha professora – do livro adotado em classe.
2ª questão – Quando é que usamos letra maiúscula?
3ª questão – Que é grupo vocálico?
4ª questão – Dar o sinônimo das seguintes palavras: cachorro, moço, comprido, feio, limpo.
5ª questão – O que é artigo?
6ª questão – Separar as sílabas das palavras: abóbora, professora, carreiro, córrego, pássaro,
velho.
7ª questão – Que é substantivo?
8 As fontes consultadas e as entrevistas não revelaram o nome do livro utilizado pelos alunos do Grupo Escolar
nesse período.
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8ª questão - Formar sentenças com as palavras: cachorro, flor, carneirinho, copo.
9ª questão – Passar para o feminino estes nomes: homem, tio, leitão, avô, irmão.
10ª questão – Analisar as seguintes palavras: Brasil, laranjas, mesinha, uma, Paulo, os, as.
Fonte: GECB9 (1954-1958).
A análise das avaliações evidencia que, no Grupo Escolar, o ensino da leitura e escrita
consistia em cópias de palavras e sentenças, com priorização dos aspectos gramaticais e
ortográficos das palavras. Por meio da cópia se avaliava, a arte do bem escrever, importante
“exigência do mundo do trabalho urbano, no qual se faziam necessárias a escrita e a leitura de
textos manuscritos” (SOUZA, 1998, p. 177).
De um ano para o outro houve acréscimo no número de conteúdos, o que implicou,
diretamente, a extensão da prova. Assim, a prova do 1º ano C era composta de três questões, a
do 1º ano B possuía seis e a do 1º ano A, dez questões. Segundo Souza, a adoção de um
programa extenso, abrangente e enciclopédico, do ponto de visto político, dotaria os filhos do
povo de noções diversas sobre o mundo, o homem e a sociedade, ou seja, “a ciência preparava
para a vida racional e para o trabalho na agricultura e na indústria” (SOUZA, 1998, p. 174).
O currículo extenso e enciclopédico ocasionava, todos os anos, um alto índice de
reprovação, como pode ser evidenciado na tabela abaixo:
TABELA 1 - Reprovação ao final do 1º ano, no período de 1954 a 1958.
Período
Reprovação
1º ano C 1º ano B 1º ano A Total Geral
Alunos
frequentes
Repro
vados
%
Alunos
frequentes
Repro
vados
%
Alunos
frequentes
Repro
vados
%
Alunos
frequentes
Repro
vados
%
1954 34 16 47 26 08 31 19 01 05 79 25 32
1955 69 27 39 25 04 16 24 05 21 118 36 31
1956 57 23 40 58 17 29 29 01 03 144 41 28
1957 90 32 35 52 07 13 30 02 07 172 41 24
1958 120 31 26 48 13 27 49 11 22 217 55 25
TOTAL 370 129 35 209 49 23 151 20 13 730 198 27
Fonte: GECB (1954-1958)
Os dados apresentados na tabela revelam que, de modo geral, o maior índice de
reprovação pautava-se no primeiro ano “C”, momento em que a criança aprenderia as noções
gerais da leitura e da escrita. Dos 370 alunos frequentes nessa série, no período de 1954 a
1958, foram reprovados 129, ou seja, 35%.
9 Grupo Escolar César Bastos
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Por conseguinte, o ano de 1954 representou o período em que a reprovação atingiu seu
maior índice: 32%. Nos três anos subsequentes houve um declínio no percentual de
reprovações, “o que parece significar que um maior número de crianças estava conseguindo
‘atender às expectativas escolares’, ou, em outra direção, que as ‘expectativas escolares’
estavam mudando em face da mudança na composição do alunado” (FARIA FILHO, 2000, p.
173). Todavia, no ano de 1958 há crescimento de um ponto percentual no índice de
reprovações, se comparado ao ano anterior.
As informações apresentadas evidenciam um problema que assolava não só Grupo
Escolar César Bastos, mas o Brasil inteiro: a reprovação. Segundo Souza (2004), nos anos de
1950, além das questões relacionadas ao acesso à escola primária, a qualidade do ensino
primário permanecia como problema central da educação brasileira. A escola não ensinava a
ler e a escrever e os índices de analfabetismo continuavam altos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este trabalho teve como proposta a apresentação de alguns breves aspectos sobre o
amplo campo de possibilidades aberto à investigação acadêmica utilizando a cultura escolar
nas análises. Entende-se que esse mergulho no funcionamento interno da escola tem
alicerçado e conferido validade, ainda a interpretações que acolhem o escolar em dimensões
cada vez mais reduzidas. Nesse sentido, pode-se compreender que, a cultura escolar, tomada
como pressuposto da investigação, desponta como resposta imediata aos impasses sofridos
pela escola.
Diante do exposto, o que se pode considerar é que as professoras alfabetizadoras do
Grupo Escolar César Bastos não possuíam diretrizes que orientassem suas práticas de ensino;
os materiais didáticos, quando utilizados, resumiam-se a cartazes; adotavam o método
sintético de ensino da língua e as avaliações aplicadas tinham caráter classificatório e
excludente.
Além do mais, o presente estudo contribuirá para traçar um perfil a respeito da
situação da alfabetização instituída nos grupos escolares, no período de 1947 a 1961,
ampliando o corpus de conhecimento sobre a história da educação goiana, até então parca de
investigação, principalmente, no que tange a este período histórico.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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SIQUEIRA, Maria. Entrevista concedida em 21/09/2012. (58 min.). Rio Verde. Nasceu no dia
11/04/1940 e iniciou sua carreira como professora do Grupo Escolar César Bastos no ano de
1957. Escolaridade: Superior em Letras. Profissão: professora aposentada.
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