memória de um menino moçambicano em escola eurocêntrica … · carinho, os cuidados e a comida...

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1 Memória de um menino moçambicano em escola eurocêntrica em moçambique Roberto da Costa Joaquim Chaua 1 - [email protected] Por onde passa a enxada, há sempre algo por colher. Provérbio africano. O presente texto tem em vista refletir sobre os conflitos entre certas práticas culturais consideradas tradicionais e as primadas pela escola de visão e práticas eurocêntricas. Trata-se da reflexão principalmente da componente linguística das mesmas no cotidiano escolar de crianças em Moçambique. Assim, a escrita apresenta narrativas sobre experiências vivenciadas em Moçambique, narradas a partir do lugar de aluno de uma escola localizada na periferia da cidade da Beira no centro do país, onde as questões de coexistência de múltiplas línguas consideradas maternas se conflituam e se esbarram com a portuguesa, tida como oficial nas escolas. Portanto, prima-se por tecer as dificuldades que a criança enfrenta para buscar significações do seu imaginário linguístico “materno” e com ele construir o seu pensamento e aprendizado na língua oficializada. O percurso da construção deste texto baseia-se numa perspectiva dialógica e tem como principais interlocutores teóricos, Homi Bhabha, Frantz Fanon e Bakhtin. Palavras-chave: escola, crianças, línguas, Moçambique. 1 Licenciado em Planificação, Administração e Gestão Escolar pela Universidade Pedagógica de Moçambique. Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e membro do grupo de pesquisa Culturas e Identidades no Cotidiano.

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Page 1: Memória de um menino moçambicano em escola eurocêntrica … · carinho, os cuidados e a comida saborosa, afinal, era esse o papel de uma “boa dona de casa”. Nos dias de alegria,

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Memória de um menino moçambicano em escola eurocêntrica em moçambique

Roberto da Costa Joaquim Chaua1 - [email protected]

Por onde passa a enxada, há sempre algo por colher.

Provérbio africano.

O presente texto tem em vista refletir sobre os conflitos entre certas práticas culturais

consideradas tradicionais e as primadas pela escola de visão e práticas eurocêntricas. Trata-se da

reflexão principalmente da componente linguística das mesmas no cotidiano escolar de crianças

em Moçambique. Assim, a escrita apresenta narrativas sobre experiências vivenciadas em

Moçambique, narradas a partir do lugar de aluno de uma escola localizada na periferia da cidade

da Beira no centro do país, onde as questões de coexistência de múltiplas línguas consideradas

maternas se conflituam e se esbarram com a portuguesa, tida como oficial nas escolas. Portanto,

prima-se por tecer as dificuldades que a criança enfrenta para buscar significações do seu

imaginário linguístico “materno” e com ele construir o seu pensamento e aprendizado na língua

oficializada. O percurso da construção deste texto baseia-se numa perspectiva dialógica e tem

como principais interlocutores teóricos, Homi Bhabha, Frantz Fanon e Bakhtin.

Palavras-chave: escola, crianças, línguas, Moçambique.

1 Licenciado em Planificação, Administração e Gestão Escolar pela Universidade Pedagógica de Moçambique.

Aluno de Mestrado do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e

membro do grupo de pesquisa Culturas e Identidades no Cotidiano.

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VII Jornadas Nacionales sobre la Formación del Profesorado – Mar del Plata, 2013

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Até aos sete anos, nasci e vivi entre Munhava e Lamego2, entre a periferia da cidade e o

campo, entre o bairro campeão em quase tudo e o campo promissor, mas devastado pela guerra.

O bairro da Munhava era campeão em pobreza, saneamento deficitário, índices de criminalidade,

cheias e gente “analfabeta”, era a periferia mais periférica da Beira, o bairro do lixo3. Lamego, a

cerca de 100 quilômetros da cidade da Beira era promissor, com terras aráveis, prometia produzir

mais gado, mais milho, mais feijão, mais cana-de-açúcar e mais sossego. A guerra civil4 que

durou 16 anos em Moçambique desassossegava e assim, Lamego teimava em se manter apenas

como o local da esperança de vida melhor. Entre tempos de trabalho a terra e fuga pela guerra,

essa esperança pendulava e eu pendulava junto dos meus pais e irmãos, entre o desespero e a

tranquilidade. Estas duas situações posicionais com certeza se encontravam no Lamego e na

Munhava. A tranquilidade de ter o que comer no Lamego e de ter segurança na Munhava; o

desespero pela guerra no Lamego e pela fome na Munhava.

De pai auxiliar administrativo de última classe nos Caminhos de Ferro de Moçambique -

marco da colonização - não se poderia esperar maior esforço que a garantia de no mínimo duas

refeições diárias. Da mãe, esperançosa e que cedo o marido lhe retirou a escola, vinham o

carinho, os cuidados e a comida saborosa, afinal, era esse o papel de uma “boa dona de casa”.

Nos dias de alegria, nós meninos, brincávamos de construir sonhos lindos, brincávamos

tambalale5, chicuaela

6, banana

7, likhuba

8, guapiachitua

9 e sem deixar as brincadeiras dos

2 Munhava é um dos bairros da cidade da Beira na provincia de Sofala. Lamego é um vilarejo que dista a 100km da

cidade da Beira.

3 É lá onde eram depositados os resíduos sólidos da cidade da Beira.

4 A guerra civil, por muitos designada também por conflito armado ou guerra de desestabilização começou em 1976,

um ano após a independência de Moçambique que foi alcançada por meio de outra guerra contra o colonialismo

Português que levou cerca de 10 anos (1964-1974).

5Tambalale - é uma brincadeira de crianças, que ficam sentadas sobre o chão e com pés esticados. Uma delas, a

mestre, é a entoadora do canto provocador, as sentadas entoam respondendo a mestre, enquanto esta passa a mão

pelos pés das sentadas, contando-os ao ritmo do canto. Tambalale nos ensina que não se pode confiar uma grávida

antes do parto.

6Chicuaela - é uma dança de crianças, podendo ser realizada também por adultos. A mesma consistia na formação de

uma roda de dança. Entre cânticos e palmas, a dança fluía na roda.

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azungu10

brincávamos também, de motorista e construtores de carros de arame e comboio de

barro. Brincávamos o que podíamos. Não mais do que o repertorio sena e ndau, as línguas

predominantes na Beira, no Lamego e em toda província de Sofala permitiam. Essas brincadeiras

representavam buscas e respeito. Busca pelo oculto e pela diversão e o respeito pelos ancestrais,

pelos velhos, pelas crianças, pela família, em suma pelo muambu (representa um conjunto de

princípios, usos e costumes que devem ser preservados e transmitidos de gerações em gerações).

As crianças mais velhas da Munhava conheciam por dentro o que as mais novas tinham

como “nobre”, a Escola Primária da Munhava, a maior escola do bairro e estudada pelos mais

“inteligentes”. Os menos não permaneciam dentro dos murros deste local por mais de um

semestre ou período. Em Lamego, no bairro de Mangomo onde também morávamos, essa

“nobreza” era inexistente, para encontrá-la só apeando no mínimo quatro quilômetros, em

período seco, e seis no período chuvoso para Ndeza11

. Lá a “nobreza” estava no professor, único

representante da “civilização”. A infraestrutura escolar não passava de uma árvore, um quadro

preto e troncos pelo chão que serviam de assentos. Os meninos e as meninas saiam de Mangomo

às quatro horas de madrugada e regressavam às duas e meia da tarde. Muitas vezes a energia para

a caminhada e para a aula era garantida pelo milho torrado na noite anterior e colocado em um

frasco com água para amolecer, depois era guardado em lugar indescortinável perto da escola,

pois o professor - “civilizado” - não permitia que se comesse nduto12

na escola.

7Banana - é igualmente uma brincadeira de criança, que consiste na procura duma pessoa escondida, geralmente em

noites de luares.

8Likhuba - é uma dança tradicional que a principio envolvia apenas as senhoras. Faz-se um círculo, canta-se e dança-

se em momentos de festa, sobretudo, depois da colheita.

9Guapiachitua - é um conto duma estória, sobre acontecimentos do passado, sendo reais ou fictícios que ocorreram

em certas comunidades. Serve como meio de educação das crianças. Aqui, todos os participantes desempenham o

papel de ouvinte e de contador de historias, diferente da figura de Griôs da África Ocidental.

10 Brancos em Xisena.

11 Uma das Aldeias da localidade de Lamego.

12 Milho torrado que os meninos levavam à escola para o lanche.

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Em 1994, recém reformado13

e dois anos após o fim da guerra civil, o meu pai Costa,

decide conversar com a minha mãe Chintheia, no sentido de pôr fim aos vaivéns entre Munhava e

Lamego, entre a periferia da cidade e o campo. O dinheiro que ganhava tornou-se menor ainda,

estando insuportável o nível das despesas correntes, numa altura em que a inflação em

Moçambique crescia astronomicamente. O país vivia os seus primeiros anos de “democracia”.

Com o fim da guerra, eles chegam à conclusão que o melhor lugar para se morar é no Lamego -

trabalhando a terra e com ajuda da aposentadoria, não faltaria comida na mesa. Costa e Chintheia,

avisados e “espertos” como quem se recorda do “se eu soubesse teria estudado” sabiam que os

filhos tinham que estudar, o mais velho, Domingos, era exemplo da possibilidade de vida melhor

que acreditavam advir da escola. Professor primário detinha de melhores condições de vida que

eles. Assim, insistiam e acreditavam no papel da escola. Era por essa razão que seu filho Abel

estava fazendo o Ensino Secundário, Cheyd sob cuidados do Domingos, estava na 2ª classe numa

escola da cidade de Tete, a noroeste de Moçambique. As minhas quatro irmãs mais velhas, tal

como muitas meninas do bairro, desistiram da escola e cedo casaram. A justificativa de que

“mulher não pode estudar muito” consolava os meus pais. Maria a mais nova de casa tinha

apenas um ano e eu com sete era a grande preocupação, já devia ter entrado na escola.

A decisão de fixar residência definitiva no Lamego colocava maiores sacrifícios para

mim, menino de sete anos que precisava entrar na escola. Os meus pais conheciam a escola de

Ndeza, valorizavam o esforço que Abel empreendeu para concluir alguns anos do ensino

primário nessa escola, reconheciam a minha fragilidade, sabiam que se não tivesse a força do

Abel, não passaria de um “aldeão” 14

. Entre o risco de me tornar “aldeão” e o de pouco

participarem do meu crescimento, eles optaram pelo segundo. Assim, deixaram-me na Munhava -

Beira junto do Abel que era doze anos mais velho, para que pudesse frequentar e usufruir a

“nobreza” que a Escola Primária da Munhava proporcionava, sem passar pelas dificuldades que a

de Ndeza impunha.

13

O mesmo que aposentado no contexto brasileiro.

14 O termo aldeão, muitas vezes designa os meninos e meninas das aldeias que por várias razões não vão à escola. O

lugar deles, segundo essa concepção, é na aldeia.

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Como quem pronuncia o provérbio africano: por onde passa a enxada, há sempre algo

por colher, esse pensar sobre o meu contexto de vida antes do ingresso à escola é peça

fundamental para a reflexão que pretendo fazer sobre as minha experiência em escola

moçambicana. O que vem narrado a seguir alavanca uma vivência, que não se defere da de

muitas crianças moçambicanas. Tenta-se ilustrar uma ideia prevalecente e instituída da escola

como tempoespaço “civilizador” e as transformações, sujeitas a dificuldades e benefícios que a

mesma proporciona em crianças de Moçambique.

Quando nos mandam à escola, apraze-nos a ideia da “civilização”. Aprender a se

comportar e saber ser e estar. Apreender a ser “culto”. Como dizia um velho professor para

deixar de praticar Itsu za haya/coisas vergonhosas em Emacua - uma das línguas moçambicanas.

Parece consensual que esta forma de pensar sobre a escola foi um processo de construção

histórico imposto pelo colonizador. Basta lembrarmos a fala do então ministro das colônias

portuguesas, Oliveira Salazar15

, em 1957 para nos certificarmos disso: “Acreditamos que existem

raças decadentes ou se preferem, atrasadas, a quem sentimos o dever de conduzir para a

civilização – tarefa esta de formação de seres humanos que deve ser levada a cabo de maneira

humanizante”. Mas, o aval complacente desta ideia poderá ter surgido com “moçambicanos

revolucionários”. Após a independência nacional em 1975, estes, tinham como principal objetivo,

(…) destruir a Velha Sociedade, profundamente impregnada de vícios e defeitos, em que

florescem as ideias conservadoras, supersticiosas, individualistas e corruptas (…). Para

construir sobre os seus destroços a Sociedade Nova. Mazula, 1995 apud Gonçalves (2005:137).

Na construção desta “nova sociedade” papel importante era reservado à escola.

Esta colocação do papel da escola me faz cogitar sobre os milhares de compatriotas que

por adversidades não a frequentaram. Questiono-me também quanto à caixinha de significação

em que cabe ou coloca-se o conhecimento dos meus avos, pais e irmãos que não a frequentaram.

Na Escola Primaria da Munhava, aonde foi matriculado, tal como em outras escolas do

país, a língua de ensino é a portuguesa, geralmente estranha para uma criança que com seis ou

sete anos, nunca “tossiu” nada nela, só sabe que existem os que a dominam. O discurso

15

MAZULA 1995 apud GONÇALVES (2005:121).

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denominador manda que nela devemos aprender e falar o português, pois, além de mim, criança

Masena16

, estão também os meus amigos e vizinhos Ndaus, o meu irmão Nhúngue, Xangana,

Emacua, Maconde e outros oriundos de todas as partes do país, afinal, Moçambique, apesar de

ser um mosaico etnocultural, é único. No país, existem cerca de vinte línguas nacionais, todas de

origem Banthu. Em zonas rurais as interações diárias desenvolvem-se, quase, unicamente, nestas

línguas, que possuem cada uma delas, entre quatro a cinco dialetos, sendo que todas têm uma

forma escrita. Dezoito destas línguas têm a ortografia padronizada. Porém, apesar de a língua

portuguesa gozar de estatuto de única língua oficial nunca foi tido como língua local ou

moçambicana. (PATEL, 2012).

Fanon (2008:34), dizia que todo povo colonizado - isto é, todo povo no seio do qual

nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade cultural -

toma posição diante da linguagem da nação “civilizadora”, isto é, da cultura metropolitana. Em

peles negras, máscaras brancas ele estabelece cuidadosamente a busca da linguagem do

“civilizador” como uma forma que o colonizado toma para tornar-se “evoluído”. Segundo o

autor, o colonizado pressupõe que o domínio da língua do colonizador, serve como um

“amortecedor” e diminuidor do fosso entre ambos, sendo ele a parte inferior. Pese, embora, não

se tenha evidência comprovada do posicionamento de Fanon como uma justificação plausível ao

uso da língua eurocêntrica na educação escolar em Moçambique e nem seja objetivo da presente

discutir esse fato. Procura-se reflexionar a seguir sobre as dificuldades de linguagem –

perpassando o simples código linguístico - patentes em crianças moçambicanas para construírem

o seu aprendizado em escolas onde a eurocentricidade é primada.

Portanto, matriculado e longe dos meus pais, morando apenas com Abel, meu irmão,

lembro-me do primeiro dia de aulas, como se de hoje se tratasse. Eram seis horas da manhã e eu

já estava preparado para a aula. Juntaram-se a mim os meus dois amigos, João e Banito, vizinhos

e colegas da mesma turma. Juntamo-nos agarrados a porta de casa para receber as instruções

sobre a sala e a escola. “Vocês estarão na sala três, junto do primeiro bloco da escola. O professor

chama-se Carlos” – dizia Abel, meu irmão, pelo caminho da escola que distava a cerca de quinze

16

Um dos grupos étnicos de Moçambique. Em geral, a base nominal do grupo é reflexa da língua do mesmo.

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minutos de casa. Na escola, ele entregou-nos a sala como se fosse nossa e retirou-se do ambiente

escolar atrasado para a sua aula na Escola Secundaria Samora Machel, há quatro quilômetros de

casa. A sala era parecida com as outras quinze existentes na escola. As janelas com vidros

quebrados eram o marco das boladas nos recreios. Do mobiliário escolar lembro-me do quadro de

giz azul e apenas uma secretária que se destinava ao professor. De trajes diferentes, uns bonitos

outros nem tanto, uma coisa havia de comum nos alunos - arrumados em ordem alfabética lá

estavam meninas e meninos sentados no chão de cimento.

Quando o professor chega, nos saúda e poucos alunos respondem. Ele encara isso com a

maior naturalidade, pois sabia que muitos desconheciam o português, e que era sua tarefa,

durante a abordagem dos conteúdos, ensinar aos seus alunos a se comunicarem na língua dos

“civilizados”. Para isso devia se estabelecer regras concretas, destacando-se a proibição do uso

das chamadas línguas maternas no recinto escolar. No primeiro toque sinalizador do recreio, eu e

os amigos João e Banito, recolhemos as nossas pastas plásticas que continham os cadernos e

voltamos para casa. Em casa, os pais do João perguntaram o que teria acontecido para que

voltássemos tão cedo. Respondemos que Abel, meu irmão, explicara que devíamos voltar depois

de toque do sinal. Só depois nos apercebemos que na verdade a aula não havia terminado, o toque

que ouvimos era sinal de intervalo para o recreio e não de término da aula. Conscientes do erro

cometido, estávamos preocupados com o castigo do dia seguinte. E era regra, fugir da aula dava

no mínimo assistir a aula seguinte de joelhos durante trinta minutos ou em pé durante todo o

período.

Danher, então colega e posteriormente um grande amigo, também esteve mergulhado em

episódios similares. Tratado carinhosamente por Danher, nome batizado na nascença, apercebeu-

se durante os primeiros três dias de aulas que o seu nome não estava sendo enunciado pelo

professor durante a habitual marcação de presenças no início das aulas. Preocupado, dirigiu-se a

mãe para se queixar. A mãe compareceu na escola, foi ao encontro do professor e ficou sabendo

que Danher não conhecia o seu novo nome. Na véspera da matricula, a dona de casa e vendedeira

no mercado local teve o cuidado de registrá-lo no civil, e como “Danher” era um nome religioso,

ele teve que ganhar um nome mais “bonito”, mais “civilizado” e “oficial”. Por isso, Danher não

podia responder no lugar do Luís, que na verdade já tinha três faltas.

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Nesta escola me ensinaram que o que chamo de meu “amigo” em português, equivale ao

meu “Chamuari” em minha língua materna e habitual, o Xisena. No aprendizado sobre família,

uma coisa retém a minha repugna e atenção - a palavra “primo”. O professor fala de família e da

sua importância na sociedade e me aparece a figura do primo. Busco no meu repertório Xisena e

não encontro uma significação, uma tradução equivalente. Desesperado, pergunto ao professor o

que seria “primo”, ele explica-me que se trata de uma designação que se dá ao filho ou filhos do

tio ou da tia. Pasmo, desemboca-se outra confusão em mim, em Xisena não existe o

correspondente de primo. Para nós os massenas, primo é mbale (irmão), somos todos irmãos.

Suponho que o meu irmão emacua, tenha passado pela mesma situação, porque depois me

apercebi que, por exemplo, o que chamamos de tia em português é para a significação macua o

que corresponde a mãe e/ou até avo.

Recordemos que Bakhtin (2006:69), na tentativa de apreensão sobre o que considerou

objeto de estudo da linguagem, afirma:

Com efeito, é indispensável que o locutor e o ouvinte pertençam à mesma comunidade linguística,

a uma sociedade claramente organizada. E mais, é indispensável que estes dois indivíduos estejam

integrados na unicidade da situação social imediata, quer dizer, que tenham uma relação de pessoa

para pessoa sobre um terreno bem definido. É apenas sobre esse terreno preciso que a troca

linguística se torna possível; um terreno de acordo ocasional não se presta a isso, mesmo que haja

comunhão de espírito. Portanto, a unicidade do meio social e a do contexto social imediato são

condições absolutamente indispensáveis para que o complexo físico–psíquico-fisiológico que

definimos possa ser vinculado à língua, à fala, possa tornar-se um fato de linguagem. Dois

organismos biológicos, postos em presença num meio puramente natural, não produzirão um ato de

fala.

Se a língua mais do que um elemento da linguagem, representa sobretudo assumir uma

cultura17

, forma de estar e ser de uma sociedade, no contexto acima é difícil encontrarmos o que

Bakhtin chamou de unicidade do meio social e a do contexto social imediato, fato que de certa

forma leva a distorção de um todo processo de linguagem, tendo em conta que “o essencial na

tarefa de descodificação não consiste em reconhecer a forma utilizada, mas compreende-la num

contexto concreto preciso, compreender sua significação numa enunciação particular” (2006:94).

17

FANON (2008: 33)

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Assim neste meio distorcido várias questões me se colocaram e que de alguma forma

esbarraram com o manancial de experiências e conhecimentos anteriores. Como admitir que o

meu primo deixou de ser o meu irmão? Como aceitar que essa irmandade desapareceu? Parece

que a palavra “primo” separa-nos e retira-nos os laços que tecíamos entre nós – agora muda a

aproximação e até em alguns contextos não seremos considerados família. Aceitar que Júlio, filho

de Tomé que eu considerava ser meu segundo pai, passa a ser meu primo, não é tarefa fácil para

uma criança. É incutir nela, uma nova forma de olhar a família, se não for conflituosa, admitamos

que seja confusa; é impingir que a criança mude o seu olhar para a família como mandam os bons

costumes africanos; é destacar tal como sempre primou a nossa escola um olhar eurocêntrico da

família.

Dentre perguntas e respostas estabelecidas no contexto de escola primária, algumas

certezas são evidentes e que só o tempo veio a confirma-las, a língua portuguesa e outros saberes

veiculados pela escola, encontram-se mergulhados entre a conquista e a perda. O que se pode

chamar também de cedências. Através de estes saberes e da escola que os prima é possível tecer

laços com outros povos mundo a fora e dentro do país, se recordarmos que em cada região do

país predomina uma determinada língua, usos e costumes considerados diferentes dos de outras

regiões. Este fato evidenciou-se doze anos depois da minha primeira experiência em escolas e

atualmente no Brasil.

Revirei o país em busca de oportunidades. A escola nos ensinou a buscar oportunidades,

muitas vezes elas encontram-se invisíveis ou invisibilizadas. Doze anos depois, me encontrando

em Nampula, província mais populosa e situada a norte de Moçambique, depois de ter passado os

últimos cinco anos na província de Tete. Falando um pouco do português, na minha nova rua me

chamam de “civilizado”,- que grande vitória rapaz, conseguiste - é o que dizem os vizinhos e

amigos. Consegui o quê? Pergunto-me preocupado, pois se eu disser aos mesmos que não passei

pelo muali – os ritos de iniciação à vida adulta - portanto, sou lukho18

, nada disso será dito, não

terei conseguido nada, porque aos olhos dos meus irmãos emacuas, o lukho não passa de uma

18

Uma designação comum e considerada pejorativa no norte do país, pois, usa-se para denominar crianças e/ou

jovens que não foram iniciados a vida de adulto, portanto, não passaram pelos ritos de iniciação. Considerados ainda

de crianças.

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miniatura, não pode assumir deveres e muito menos direitos plenos de um adulto, então não pode

ter conseguido algo.

Estou cursando gestão escolar numa universidade pública e como práxis é necessário

entrar em contacto com, e nas escolas de modo a vivenciar o dia-a-dia destas. Não por acaso,

escolho a Escola Primária Completa (EPC) 19

de Mutomote que fica a um quilômetro da minha

nova residência. Quando entro no recinto escolar a memória me leva de volta aos meus primeiros

anos de escolaridade. No período em que pela primeira vez entrei como aluno em uma escola. Na

escola de Mutomote existem muitas crianças, a infraestrutura parece a mesma – será que nada

mudou? Olho para mim e digo, o governo conseguiu, quando eu estava no ensino primário o

número de alunos por sala não passava dos 50, hoje, o mesmo professor tem mais de 100 alunos

no mesmo espaço. Essa observação só é possível graças ao raciocínio e critica estimulada pela

escola, pois percebo o conjunto de situações embaraçosas em que alunos e professores

encontram-se suceptiveis com esse racio aluno-professor.

Aqui descubro novas realidades, mas muitas semelhanças com o cenário por mim

vivenciado na escola da Munhava, muitas crianças não falam a língua de ensino e vem à escola

em busca de oportunidades. Dou-me conta também, que no norte de Moçambique, existem outros

campos educativos e por isso, práticas que não são veiculadas e expressas pela escola que

frequentei. Dizem-me até que em tempos as crianças trocavam a sua frequência nesta escola pela

participação nestes campos educativos, veiculadores de saberes e poderes considerados pelas

comunidades, mais importantes que os da escola. Por exemplo, o estatuto de adulto e de

responsável era atribuído depois de demonstrar domínio dessas práticas e não pela idade

cronológica e menos ainda pela escola.

A par das inquietações que considero legitimas, percebo que esta escola que me é

estranha, me é também achegada, pois é nela onde milhares de compatriotas depositam a sua

esperança de vida melhor. Esta escola que nos coloca vários conflitos dá-nos também a

19

A Escola Primaria Completa, também conhecida abreviadamente por EPC em Moçambique, é um tipo de

estabelecimento escolar que oferece a educação básica e primaria às crianças a partir dos 6anos de idade. Ela

compreende sete classes, sendo que da 1ª a 5ª temos o primeiro grau e a 6ª e 7ª classes correspondem ao segundo

grau. Muitas dessas escolas eram inicialmente destinadas para o 1º grau, mas foram transformadas em completas de

modo a atender a crescente demanda por esses serviços.

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possibilidade de abrir o horizonte, perceber o outro e com ele empreender uma vivência, tal como

Bhabha (1998:82) advoga se admitirmos a escola como um campo veiculador de uma

cultura,“essa cultura parcial, que é o tecido contaminado, e até conectivo, entre as culturas – ao

mesmo tempo a impossibilidade de as culturas bastarem-se a si mesmas e da existência de

fronteiras entre elas.”

É através da escola que atualmente estou no Brasil. As discussões e as observações

tratadas no grupo de pesquisa ao qual estou vinculado graças a escola que me deram, abrem a

minha perspectiva e a forma de olhar sobre as questões que sendo íntimas e peculiares da minha

experiência na escola primaria, eram ao mesmo tempo estranhas. Lembrar-se de uma experiência

outrora invisível é tarefa difícil quando se está longe do contexto da sua ocorrência, mas é uma

possibilidade de repensar a vivência e com ela aprender sobre a vida.

Lembrar que na 1ª classe, “apanhei” do professor porque não conseguia dizer ndapiva20

,

depois de este surpreender-me em lugar alheio e barulhando na sala de aula, é pensar sobre o

número de meninas e meninos que por esse motivo deixaram de comparecer à escola. Como se a

desculpa se encontrasse na fala de Keith Meyers citada por Bhabha (op.cit.:66), os professores

deveriam abrir espaço para as maneiras diferentes de falar. Não as ensinando, mas pelo menos

entendendo o que a gente diz. Entender as formas diferentes de falar, era até possível no contexto

da escola moçambicana, mas parecia difícil quando esse falar era tecido em várias línguas

maternas e diferentes da do ensino, o que é normal nos primeiros anos de escolaridade.

Esta realidade legitimou e continua legitimando o pensamento de que a escola é para

“civilizar”. De que a escola continua sendo eurocêntrica. É certo que, além de ser o único espaço

em comunidades inteiras onde o português é falado, nela muitas vezes a língua local não é

entendida e muito menos permitida, promovendo o que parece ser uma descriminação baseada na

linguagem. Onde, os que dominam o português se consideram mais civilizados e evoluídos que

20

Ndapiva em sena é o mesmo que ouço ou entendo em português. Depois de ser surpreendido em lugar que não era

o habitual, o professor usou da vara para que eu voltasse ao meu lugar. Ao mesmo tempo em que aplicava os golpes,

ordenava que eu demonstrasse arrependimento pelo cometido. Calado na inocência de uma criança, ele insistia

batendo e perguntando se eu não teria ouvido que era para manifestar arrependimento. Com o silêncio a manter-se,

desconfiado ele pergunta se ouço. Sem saber como tomar o verbo Ouvir na primeira pessoa, portanto, o certo seria

que respondesse – sim, eu ouço, eu dizia – sim, eu ovo. A varada terminou apenas quando como se de um milagre se

tratasse, surgiu da minha boca, através de sussurros dos colegas a frase – sim, eu ouço!

Page 12: Memória de um menino moçambicano em escola eurocêntrica … · carinho, os cuidados e a comida saborosa, afinal, era esse o papel de uma “boa dona de casa”. Nos dias de alegria,

Memória de um menino moçambicano em escola eurocêntrica em moçambique Chaua, Roberto da Costa Joaquim

VII Jornadas Nacionales sobre la Formación del Profesorado – Mar del Plata, 2013

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os demais. Favorecendo o aparecimento de vários binarismos, como o que fala português e o que

não fala; que terá sucesso escolar e o que será fracassado.

Por fim, cabe lembrar que as dificuldades em escolas primárias moçambicanas não se

visualizam apenas pelos aspectos linguísticos como tratado acima, há também práticas que não

sendo abrangentes em todas as regiões do país, caracterizam a vivência de muitos moçambicanos

e que determinam a ocorrência de outras conflitualidades no cotidiano escolar. Essas práticas

determinam em muito a identidade e a personalidade de muitos moçambicanos.

Referências bibliográficas

Bakhtin, Mikhai (2006). Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª Edição - HUCITEC

Bhabha, Homi K. (1998). O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG

Franon, Frantz. (2008) Peles negras, máscaras brancas, Salvador: EDUFBA

Gonçalves, A. Parafino. (2005) A concepção de educação politécnica em Moçambique– contradições de

um discurso socialista, 1983-1992. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte.

Patel, S. Amade (2012). Um olhar para a formação de professores de educação bilíngue em

Moçambique: foco na construção de posicionamentos a partir do lócus de enunciação e atuação,

Campinas.