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A língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano: memória discursiva e funcionamento do dispositivo 1 Enísio Guilhermina Cuamba 2 (Universidade Estadual de Maringá - UEM) Resumo: Moçambique é um país cujo contato linguístico e cultural é bastante marcado pelo diálogo entre a Língua Portuguesa e as línguas de origem bantu. A partir desse cenário, pretendemos estabelecer um regime de dizer e de olhar sobre o funcionamento da Língua Portuguesa nesse contexto multilíngue, que é revestido de contradições das quais destacamos aquelas vinculadas às políticas linguísticas vistas, comumente, pelos órgãos públicos como um “problema”, por causa do multilinguismo e das implicações culturais daí resultantes, nomeadamente, o multiculturalismo, cujas condições de existência enunciativa específicas demandam pela implementação de ações biopolíticas. Neste simpósio, sob a perspectiva da Análise do Discurso Franco-Brasileira, definimos como objetivo compreender os regimes de (in)visibilidade inscritos na materialidade discursiva formada por uma série enunciativa, constituída por excertos documentais e depoimentos de professores a respeito da convivência linguística entre o Português e as línguas bantu. Tal procedimento exige o resgate da memória discursiva por meio da relação língua, história e memória, de tal modo que os enunciados sejam compreendidos na sua singularidade a partir da correlação com outros enunciados. Palavras-chave: Língua Portuguesa, memória discursiva, funcionamento do dispositivo. Résumé: Le Mozambique est un pays dont le contact linguistique et culturel est très marqué par le dialogue entre la langue portugaise et les langues d'origine bantoue. De ce scénario, nous avons l'intention de mettre en place un système à dire et de regarder le fonctionnement de la langue portugaise dans ce contexte multilingue, qui est revêtue de contradictions dont nous remarquons celles qui ont trait aux politiques linguistiques vues communément par des organismes gouvernementaux comme un « problème » en raison du multilinguisme et des implications culturelles qui en résultent, à savoir le multiculturalisme, dont les conditions énonciatives spécifiques exigent la mise en œuvre d'actions biopolitiques. Dans ce colloque, sous la perspective de l’analyse du discours franco-brésilienne, on définit comme objectif comprendre les systèmes d’invisibilité inscrits dans la matérialité discursive formée para une série énonciative, constituée par des extraits documentaires et des témoignages des professeurs à propos de la coexistence linguistique entre le portugais et les langues bantoues. Telle procédure nécessite ne sauvetage de la mémoire de telle sorte que les énonces soient compris dans leur singularité à partir de la corrélation avec d’autres énoncés. Mots-clés: langue portugaise, mémoire discursive, fonctionnement du dispositif. Introdução 1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação PEC-PG Brasil 2 Doutorando em Letras/ Linguística pela Universidade Estadual de Maringá UEM. Membro do Grupo de Estudos em Análise do discurso da UEM GEDUEM/CNPq. E-mail: [email protected].

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A língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano: memória discursiva e

funcionamento do dispositivo1

Enísio Guilhermina Cuamba2

(Universidade Estadual de Maringá - UEM)

Resumo: Moçambique é um país cujo contato linguístico e cultural é bastante marcado pelo

diálogo entre a Língua Portuguesa e as línguas de origem bantu. A partir desse cenário,

pretendemos estabelecer um regime de dizer e de olhar sobre o funcionamento da Língua

Portuguesa nesse contexto multilíngue, que é revestido de contradições das quais destacamos

aquelas vinculadas às políticas linguísticas vistas, comumente, pelos órgãos públicos como um

“problema”, por causa do multilinguismo e das implicações culturais daí resultantes,

nomeadamente, o multiculturalismo, cujas condições de existência enunciativa específicas

demandam pela implementação de ações biopolíticas. Neste simpósio, sob a perspectiva da

Análise do Discurso Franco-Brasileira, definimos como objetivo compreender os regimes de

(in)visibilidade inscritos na materialidade discursiva formada por uma série enunciativa,

constituída por excertos documentais e depoimentos de professores a respeito da convivência

linguística entre o Português e as línguas bantu. Tal procedimento exige o resgate da memória

discursiva por meio da relação língua, história e memória, de tal modo que os enunciados sejam

compreendidos na sua singularidade a partir da correlação com outros enunciados.

Palavras-chave: Língua Portuguesa, memória discursiva, funcionamento do dispositivo.

Résumé: Le Mozambique est un pays dont le contact linguistique et culturel est très marqué

par le dialogue entre la langue portugaise et les langues d'origine bantoue. De ce scénario, nous

avons l'intention de mettre en place un système à dire et de regarder le fonctionnement de la

langue portugaise dans ce contexte multilingue, qui est revêtue de contradictions dont nous

remarquons celles qui ont trait aux politiques linguistiques vues communément par des

organismes gouvernementaux comme un « problème » en raison du multilinguisme et des

implications culturelles qui en résultent, à savoir le multiculturalisme, dont les conditions

énonciatives spécifiques exigent la mise en œuvre d'actions biopolitiques. Dans ce colloque,

sous la perspective de l’analyse du discours franco-brésilienne, on définit comme objectif

comprendre les systèmes d’invisibilité inscrits dans la matérialité discursive formée para une

série énonciative, constituée par des extraits documentaires et des témoignages des professeurs

à propos de la coexistence linguistique entre le portugais et les langues bantoues. Telle

procédure nécessite ne sauvetage de la mémoire de telle sorte que les énonces soient compris

dans leur singularité à partir de la corrélation avec d’autres énoncés.

Mots-clés: langue portugaise, mémoire discursive, fonctionnement du dispositif.

Introdução

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa de Estudantes-Convênio de Pós-Graduação – PEC-PG

– Brasil 2 Doutorando em Letras/ Linguística pela Universidade Estadual de Maringá – UEM. Membro do Grupo de

Estudos em Análise do discurso da UEM – GEDUEM/CNPq. E-mail: [email protected].

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O funcionamento da Língua Portuguesa em Moçambique remonta da época colonial.

Período em que os vários grupos linguísticos daquele país tinham contacto entre si e com o

Árabe.

De acordo com a historiografia portuguesa, os colonizadores chegaram a Moçambique

em 1498. Desde essa época a esta parte, o contacto entre o português e as línguas bantu passou

por vários estágios que, de certa maneira, rompem com a perspectiva contínua que a história

global procura impor, afinal, nos termos foucaultianos, “a descontinuidade era o estigma da

dispersão temporal que o historiador se encarregava de suprimir da história”(FOUCAULT,

1986, p. 10).

Diante disso, hoje, tornou-se uma ordem na Análise do Discurso a busca de momentos

em que a aparente continuidade histórica falha criando rupturas onde se dá a irrupção de

singularidades históricas a que chamamos de acontecimentos.

Sob tal direção, o acontecimento discursivo que marca a irrupção de condutas outras,

enquanto evento único, é a proclamação da Independência Nacional em 1975 cujos alicerces

discursivos e não discursivos encontram espaço inicial na adoção da primeira Constituição da

República Popular de Moçambique (em 1990, passou a ser República de Moçambique).

Sabendo que esse instrumento legal define institucionalmente as relações de saber e poder que

a Língua Portuguesa e as línguas bantu desempenham, podemos afirmar que ele é o dispositivo

de segurança, no exercício da biopolítica, como tecnologia da governamentalidade, que devia

reger condutas que privilegiassem o equilíbrio entre as línguas faladas no mesmo território,

através da definição de funções sócias, políticas, econômicas e administrativas igualitárias.

Nesse sentido, colocamos a seguinte indagação: como se estabelecem os regimes do

dizer e do olhar sobre o funcionamento da Língua Portuguesa em contexto multilíngue

moçambicano?

Sob tal delineamento e indagação, o presente artigo pretende compreender como se dão

os regimes de (in)visibilidade inscritos na materialidade discursiva formada por uma série

enunciativa, constituída por excertos documentais e depoimentos de professores a respeito da

convivência linguística entre o português e as línguas bantu.

Apesar do contacto permanente entre a língua portuguesa e as línguas bantu, em

Moçambique, apenas o português assume o estatuto de língua oficial, condicionando, dessa

forma, as relações de saber e poder vinculadas a essas línguas. Por exemplo, o processo de

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ensino e aprendizagem usa essa língua como instrumento e objeto de ensino e as demais línguas

destinam-se para contatos restritos.

Esse cenário ocorre num país em que o português é falado pela grande maioria da

população como língua não materna (língua segunda), num ambiente sociolinguístico

caracterizado pelo multilinguismo distribuído em dois tipos de contato linguístico: contato de

línguas e contato bidialectal (variantes da mesma língua). Para Mapasse (2017, p. 241), “a

primeira situação, o reconhecimento dos dois sistemas é claro, porque cada uma das línguas

tem funções e valores distintos na economia linguística da comunidade, enquanto na segunda

situação, a distinção entre as variedades menos clara” especificamente porque no meio urbano

confluem falantes oriundos de vários lugares e etnias que falam um português que comporta

marcas do contato ente si e as línguas bantu.

Perante essa situação de evidente contacto linguístico, o português falado em

Moçambique, vai comportar um conjunto de características outras que o afasta da norma-

padrão, o português europeu, isto é, fala-se, hoje, uma língua portuguesa em transformação

estrutural e lexical.

Este trabalho mostra-se relevante porque ajuda a compreender o funcionamento da

língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano a partir do resgate de elementos já-

ditos ou escritos em outros lugares pois todo o enunciado “tem margens povoadas de outros

enunciados”(FOUCAULT,1986, p. 112), com os quais (co)existe historicamente num

determinado espaço.

Esse retorno a memória discursiva implica a constituição dos sentidos pelo viés da

língua, da história e da memória. Dessa maneira, “o enunciado se delineia em um campo

enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que

lhe abre um futuro eventual, isto é, que o insere na rede da História e, ao mesmo tempo, o

constitui e o determina” (GREGOLIM, 2004, p. 93).

Por essa razão, inscrevemos o nosso estudo num arquivo que compreende,

de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos

enunciados como acontecimentos singulares […]entre a tradição e o

esquecimento, ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos

enunciados substituírem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente

(FOUCAULT, 1986, p. 149-150).

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Nessa configuração, o arquivo é o sistema que determina o aparecimento de

acontecimentos singulares, constituídos, neste artigo, pelos recortes dos seguintes documentos:

a Constituição da República de Moçambique (2004); a comunicação de Fernando Ganhão no I

Seminário Nacional de Língua Portuguesa; as obras sobre a história e políticas linguísticas

(GOMÉZ, 1999; LOPES, 2004).

Para a realização do trabalho, adotamos o método arquegenealógico foucaultiano. Esse

método, guia-se pela identificação de acontecimentos por meio de uma história arqueológica

para depois fazer a sua genealogia, isto é,

Se a história arqueológica procura identificar e descrever a singularidade dos

objetos históricos, desfazendo-se das generalidades que correspondem aos

universais antropológicos (como a identidade, a origem, o sujeito, a razão, a

verdade), a genealogia percorre o engendramento de uma determinada

singularidade, acentuando as relações de poder que determinam a sua

constituição, a fim de reparar de que modos estas singularidades modelaram

o presente (FONSECA, 2008, p. 250).

Em linhas gerais, podemos dizer que o método proposto por FOUCAULT visa analisar

o acontecimento discursivo, tratando dos enunciados objetivamente ditos ou escritos, em sua

irrupção de acontecimento, como forma de buscar as condições de possibilidade para a sua

emergência em um determinado momento histórico. Feito isso, o analista do discurso, procura

restituir as condições de surgimento dessa singularidade a partir de seus múltiplos

determinantes como, por exemplo, as relações de força que incidem sobre a vida dos

indivíduos.

Acontecimentalização discursiva e o método arquegenealógico

Tendo em conta o que temos sublinhado até agora, a noção de acontecimento discursivo

é uma das que desempenha um papel central para a Análise do Discurso, uma vez que permite

ao analista descrever os enunciados em sua singularidade e irrupção histórica porque ele “é

sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente”

(FOUCAULT, 1986, p.132).

Esse conceito relativamente novo surgiu imbricado à “nova História” (descontinuidade,

ruptura, limiar, limite, transformação, série) que veio impor o afastamento de noções utilizadas

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pela história tradicional como continuidade, linearidade, causalidade, soberania do sujeito.

Foucault (1986, p. 28) assevera que

É preciso renunciar a todos esses temas que têm por função garantir a infinita

continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência

sempre reconduzida. É preciso estar pronto para acolher o discurso em sua

irrupção de acontecimentos, nessa pontualidade e dispersão temporal […]

Não remetê-lo à longínqua presença da origem, tratá-lo no jogo de sua

instância.

Dessa forma, a busca de acontecimentos discursivos ou a acontecimentalização consiste

em construir uma rede causal que procura dar conta das singularidades dos enunciados como

resultado de múltiplas relações. Nas palavras do autor, acontecimentalizar é “reencontrar as

conexões, os encontros, os apoios, os bloqueios, os jogos de força, as estratégias, etc., que, em

um dado momento, formaram o que, em seguida, funcionará como evidência, universalidade,

necessidade” (FOUCAULT, 2006 apud NAVARRO, 2011, p. 283).

No caso vertente, o percurso aqui apontado não se ajusta a uma pesquisa em história

tradicional. Para a análise que nos propomos, o acontecimento que gera a descontinuidade na

história colonial e, ao mesmo tempo, cria condições de possibilidade para que um conjunto

finito de enunciados tenha sido efetivamente dito ou escrito, em sua singularidade de

acontecimento é a proclamação da Independência Nacional em 1975.

Cada enunciado efetivamente falado ou escrito sobre a colonização e a proclamação da

Independência em Moçambique, enquanto acontecimento discursivo, constitui uma articulação

recíproca entre singularidade e repetição, isto é,

inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou

articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre para si mesmo uma

existência remanescente no campo da memória, ou na materialidade dos

manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque

é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à

transformação, à reativação; finalmente, porque está ligado não apenas as

situações que o provocam, e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao

mesmo tempo, e segundo uma modalidade inteiramente diferente, a

enunciados que o procedem e o seguem (FOUCAULT; 1986, p. 32, grifos

nossos).

Vale destacar que as condições de emergência dos discursos sobre a colonização e a

proclamação da Independência Nacional em Moçambique estão articulados com outros

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enunciados que remetem, não só ao passado, como também ao futuro. Daí ser necessário

estabelecer a descrição dos jogos de relações aí imbricadas.

Identificado o acontecimento discursivo, passaremos a falar sobre o método

arquegenealógico. Considerado o que dissemos anteriormente, o método em alusão permite-

nos buscar um percurso que coloque em evidência a relação língua, história e memória, tendo

como ponto de partida o enunciado enquanto unidade mínima do discurso (FOUCAULT,

1986). Desse modo, A palavra arqueologia que está implicada no método de Foucault (1986),

refere-se a um tipo de investigação que “se dedica a extrair os acontecimentos discursivos como

se eles estivessem registrados num arquivo” (FOUCAULT, 2006 apud NAVARRO, 2011, p.

284), que corresponde ao sistema de regras que rege o aparecimento de enunciados como

acontecimentos singulares, delimitando a prática discursiva.

Por seu turno, a genealogia serve-se da descrição e da análise dos enunciados como

ferramentas para a compreensão das relações entre o saber e o poder no exercício da

governamentalidade e do disciplinamento dos corpos dos indivíduos, tornando-os dóceis e

obedientes (VEIGA-NETO, 2014).

Dessa forma, a biopolítica, como tecnologia da governamentalidade, funciona com

controles definidos e concretos de modo a exigir que a vida seja maximizada e gerida pelo

governo. Por exemplo, quando se oficializa o português num país multilíngue, isso é feito de

maneiras que se garanta mais vida para a população. Ao mesmo tempo que a oficialização de

apenas uma língua impõe medidas disciplinares para que cada um dos indivíduos compreenda

“o que é ser e como ser disciplinado” nesse meio (VEIGA-NETO, 2014, p. 71).

A Língua Portuguesa em contexto multilíngue moçambicano: que contacto é esse?

A reflexão que trazemos, neste artigo, enquadra-se no rol de temas pertinentes para a

sociedade moçambicana, mas, por várias razões, tem sido pouco discutido. Falar da Língua

Portuguesa em contexto multilíngue moçambicano exige de nós algum critério, tendo em conta

que esta questão mexe com as identidades dos indivíduos, afinal de contas, Moçambique é um

país multilíngue no qual as comunidades estão expostas num cenário de diglossia no qual

apenas uma língua assume o estatuto dominante e as restantes são “minoritarizadas” através de

mecanismos legais como a Constituição da República (2004) e as demais leis correlatas que

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funcionam como dispositivo que regula a biopolítica, isto é, “poder presente em todos os níveis

do corpo social e utilizadas por instituições […]” (FOUCAULT, 1999, p. 132).

Falamos de cenário diglóssico para descrever, segundo JUNG (2013, p. 104),

[…] comunidades multilíngues e ou/ou bidialetais em que o uso das línguas

ou variedades é marcado por uma relação assimétrica. Uma das línguas ou

variedades é considerada dominante, que goza de prestígio, e a instrução

escolar geralmente acontece nessa língua. Portanto, as crianças falantes de

uma variedade local devem participar de práticas escolares na língua

dominante e, sobretudo, aprender e participar de práticas letradas nessa

língua.

No caso específico de Moçambique, a língua dominante é o Português que goza de

prestígio e talvez seja a condição básica de acesso à cidadania e à moçambicanidade. As

restantes línguas de origem bantu funcionam como veiculares e restritas ao domínio familiar e

étnico. Falamos de domínio étnico fazendo referência a “modalidades de interação bem menos

complexas, como a uma mera “forma de interação entre grupos culturais atuando em contextos

sociais comuns” (OLIVEIRA, 2000, p. 8). Em suma, “centramo-nos na língua portuguesa como

língua pátria e não deixamos que as outras línguas ganhem cidadania” (KHOSA, 2010, p. 191).

Diante desse cenário, é importante sublinhar que apesar de termos adotado o português

como língua oficial de Moçambique, existem cerca de vinte e três línguas autóctones e outras

de origem asiática e europeia3, distribuídas pelo território nacional, conforme se ilustra no

quadro (INE4 apud NGUNGA; BAVO, 2011, p. 14):

3As línguas asiáticas(Hindi, Urdu e Gujurati), em Moçambique, são usadas em contexto familiar por descendentes

de indianos que asseguram atividades comerciais em centros urbanos. Há também alguns registros do Árabe que

é comumente usado nas mesquitas para a aprendizagem da leitura do Alcorão (livro sagrado dos muçulmanos). 4 Instituto Nacional de Estatística.

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De acordo com a tabela acima, existem em Moçambique 15.670.424 falantes de pelo

menos uma língua. O Instituto Nacional de Estatística (INE) teve como referência a idade

mínima de 5 anos para considerar um indivíduo como falante de uma língua.

Para além, dessas línguas existem treze grupos étnicos, vinculados intrinsecamente

àquelas línguas nativas, a saber: Swahilis, Macuas-Lomués, Ajauas, Marave, Nhanjas, Sena,

chuabo, chonas, Angonis, tsongas, chopes, bitongos.

As línguas autóctones são usadas não só para a interação entre pessoas da mesma

família e parentes, mas também são um veículo de expressão de identidades étnicas. Daí, a

situação de diglossia que se vive em Moçambique exigir que os agentes da educação e

pesquisadores possam

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Compreender o tipo de práticas e relações com a escrita que acontecem nessas

situações representa um desafio para a pesquisa [e para as práticas

pedagógicas de letramento] que deve considerar não apenas as situações

linguísticas nas comunidades envolvidas, mas também suas histórias

particulares de relação com a escrita, em qualquer sistema ou variedade

linguística (ROCKWELL, 2010, p. 101).

Nesse contexto, podemos afirmar que a língua portuguesa está em permanente contato

com as línguas bantu desde a chegada dos portugueses a Moçambique a esta parte. No entanto,

importa-nos sublinhar que

as relações entre a língua portuguesa e as línguas moçambicanas durante o

tempo colonial eram reflexo de relações próprias de colonizador e

colonizado. Com efeito, o colonialismo português nunca reconheceu às

línguas moçambicanas o estatuto de línguas, subtraindo-lhes todos os

predicados susceptíveis de encorajar os moçambicanos a usarem e ensinarem

aos seus filhos como línguas de cultura e de acesso ao conhecimento

(NGUNGA; BAVO, 2011, p. 1, grifos nossos).

Desde a época colonial, as relações de saber e poder que permitem individualizar os

enunciados vinculados ao dispositivo do pacto de segurança (assunto de que falaremos

adentradamente mais adiante) são aquelas que estabelecem o verdadeiro da épocae se

encontram regidas pela biopolítica, enquanto tecnologia de poder, concebida visando promover

a segurança e em cujo ordenamento abarca tudo o que põe em risco a vida da população

(TASSO, 2013).

Nesse caso, o verdadeiro da época continua sendo a omissão do estatuto de línguas de

conhecimento às línguas bantu. Através desse jogo de verdade quer o governo colonial

português quer o governo moçambicano pós-república controlam a população relativamente

ao uso das línguas, no exercício da biopolítica, que é a arte de governar a vida da população

com o intuito de maximizá-la e geri-la. Essa relação entre saber, poder e verdade é o que

sustenta o processo biopolítico de governação da população sempre através do exercício da

memória que permite que o enunciado se delineie em um campo enunciativo onde tem lugar e

status que lhe dão espaço para o diálogo com o passado e, ao mesmo tempo, lhe projetam um

futuro eventual como ocorre entre os enunciados típicos do sistema colonial que mais tarde são

retomados pelo governo moçambicano.

Para encerrar esta seção, podemos dizer que apesar do crescimento das taxas de falantes

do português como língua materna em Moçambique, o português ainda é falado pela maioria

da população como língua segunda num contexto sociolinguístico marcado pelo

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multilinguismo. Isto pode ser uma evidência clara de que não há poder sem resistência como

Foucault (2015, p. 18) assevera: “e como onde há poder, há resistência, não existe propriamente

o lugar da resistência, mas pontos móveis e transitórios que também se distribuem por toda a

estrutura social”

Esse contexto marcado sociolinguisticamente pelo multilinguismo gera, na perspectiva

de Mapasse (2017, p. 241), dois tipos de contato linguístico, a saber: contato de línguas e

contato bidialectal. “Na primeira situação, o reconhecimento dos dois sistemas é claro, porque

cada língua tem funções e valores distintos na economia linguística da comunidade, enquanto

na segunda situação, a distinção entre as variedades é menos clara”.

O segundo caso, é que ilustra perfeitamente a resistência, uma vez que, no âmbito do

exercício da biopolítica, o governo oficializou o português europeu como padrão a ser ensinado

nas escolas e usado nas comunicações oficiais. Porém, ninguém usa a norma europeia nas

comunicações oficiais, aliás, “os próprios professores fornecem modelos linguísticos, muitas

vezes, não consistentes em relação à norma que eles dizem ensinar, mas que não dominam,

provavelmente, porque a maior parte deles teve acesso a um imput do português desenvolvido

por falantes não nativos dessa língua” (Op. Cit).

Materialidades e(m) análise: memória discursiva e dispositivo de pacto de segurança

Na dispersão dos objetos constituídos pela série enunciativa “Artigo 10º - A Língua

Portuguesa é língua Oficial em Moçambique” (Constituição da República de Moçambique,

2004, grifos nossos), as práticas discursivas concorrem para estabilizar os regimes de verdade

que estão “circularmente ligado[s] a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e a efeitos

de poder que ela induz e que a reproduzem” (FOUCAULT, 2015, p. 54)

Essa estabilização é assegurada, por um lado, pelos efeitos de memória que resultam

das relações possíveis que os enunciados estabelecem com o passado uma vez que “não há

enunciados que não suponham outros; não há nenhum que não tenha, em torno de si, um campo

de coexistências, efeitos de séries e de sucessão, uma distribuição de funções e

papéis”(FOUCAULT, 1986, p. 114) como ilustram os enunciados abaixo:

[SE1] - Artigo 1°: O ensino indígena tem por fim conduzir gradualmente o

indígena da vida selvagem para a vida civilizada, formar-lhe a consciência

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de cidadão português e prepará-lo para a luta da vida, tornando-se mais útil à

sociedade e a si próprio.

[SE2] - Artigo 7°: O ensino primário rudimentar destina-se a civilizar e nacionalizar

os indígenas das colónias, difundindo entre eles a língua e os costumes portugueses

(MEC/GÊS, 1980: p. 24/25 apud GOMÉZ, 1999).

Em [SE1] e [SE2], os elementos grifados, na sua dispersão, estabelecem relações

históricas que se vão projetar para outros domínios (educacional e legislativo) e épocas (pós-

independência). A circulação desses enunciados, que constituem a sua regularidade baseada na

língua portuguesa como o elemento civilizador, sustenta-se por regras históricas de emergência

que configuram o verdadeiro da época à luz do dispositivo do pacto de segurança que preconiza

que o Estado assuma a responsabilidade de organizar e prever um conjunto de mecanismos

capazes de minimizar as ocorrências danosas, controlando os seus efeitos nefastos (FARHI

NETO, 2010).

Por outro lado, a circulação de enunciados que se alinham em feixes de relações que

constituem uma regra ou uma regularidade, deve-se, neste caso particular, a memória

discursiva vista como aquele procedimento que “trabalha para estabelecer relações entre o

acontecimento do presente e outros acontecimentos, aos quais o que está em primeiro plano

acaba por ser filiado” (POSSENTI, 2006, P. 96), o que significa que, a memória ora remete

para o passado, ora remete para o futuro como acontece com os enunciados seguintes:

[SE3] - Artigo 9º - O Estado valoriza as línguas nacionais como património

cultural e educacional e promove o seu desenvolvimento e utilização

crescente como línguas veiculares. Artigo 10º - A Língua Portuguesa é

língua Oficial em Moçambique (Constituição da República de Moçambique,

2004, grifos nossos).

A adoção do português como língua oficial de Moçambique pode funcionar como um

dispositivo que para Agamben (2009) é qualquer coisa que tenha a capacidade de controlar

gestos e condutas dos indivíduos. Aliás, nessa perspectiva, o dispositivo está sempre ligado a

relações de poder, traduzindo-se numa lei.

Os enunciados [SE4] e [SE5], na sua dispersão, constituem a unidade através da

necessidade da imposição da unidade nacional que supostamente só se conseguiria com a

implantação de uma única língua oficial.

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[SE4] -A necessidade de combatermos o opressor exigia um combate

intransigente contra o tribalismo e o regionalismo. Foi esta necessidade de

unidade que nos impôs a única língua comum – a que servia para oprimir

– assumisse uma nova dimensão (MACHEL, 1979 apud LOPES, 2012, p.

21).

[SE5] - A decisão de se optar pela língua portuguesa, como língua oficial na

República Popular de Moçambique, foi uma decisão política meditada e

ponderada visando atingir um objectivo - a preservação da unidade

nacional e a integridade do território. A história da apropriação da língua

portuguesa, como factor de unidade e nivelador das diferenças veio desde a

criação da frelimo em 1962 (GANHÃO, 1979 apud LOPES, 2012, p. 21).

Os elementos grifados concorrem para a constituição da regularidade enunciativa com

os restantes enunciados apresentados. Os mesmos itens, permitem constatar que, no exercício

da biopolítica, o governo moçambicano, investido de poderes, adota o Português como língua

oficial numa ação que garantiria que os governados se afastassem de qualquer tipo de incerteza,

risco ou dano. Mas, essa medida colocou e vem colocando em questão a sobrevivência das

línguas veiculares e dos seus falantes pois esses se vêem excluídos do contexto de

desenvolvimento nacional que exige o domínio da língua portuguesa.

Conclusão

O funcionamento da língua portuguesa em contexto multilíngue moçambicano

sustenta-se por mecanismo legais que determinam o estatuto que cada língua assume naquele

território. Esses instrumentos legais funcionam como dispositivos na medida em que são

capazes de controlar gestos e modelar condutas de seres viventes (AGAMBEN, 2009).

A proclamação da Independência Nacional em 1975 é a condição de emergência de

práticas discursivas e não discursivas que se vinculam ao dispositivo do pacto de segurança no

exercício da biopolítica. As práticas discursivas que daí emergem constituem regularidades a

partir de retornos históricos que se vão configurando como regimes de verdade, isto é, a

reaparição de enunciados que na sua singularidade de acontecimento sugerem a adoção do

português como língua oficial como garantia da unidade nacional e territorial. A necessidade

de consolidação permanente da unidade nacional e territorial funciona como o verdadeiro da

época e, por via disso, “é objeto, de várias formas, de imensa difusão e de imenso consumo”

(FOUCAULT, 2015, p. 52).

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