mediação de conflitos

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  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    Direito FDireito FDireito FDireito Fraterno raterno raterno raterno

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

    2

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  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

    3

    Ana Carolina GhisleniAna Carolina GhisleniAna Carolina GhisleniAna Carolina Ghisleni

    Fabiana Marion SpenglerFabiana Marion SpenglerFabiana Marion SpenglerFabiana Marion Spengler

    Mediao de conflitos a partir doMediao de conflitos a partir doMediao de conflitos a partir doMediao de conflitos a partir do Direito FraternoDireito FraternoDireito FraternoDireito Fraterno

    Santa Cruz do Sul EDUNISC

    2011

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    Copyright: Das autoras 1 edio 2011 Direitos reservados desta edio: Universidade de Santa Cruz do Sul

    Editorao: Clarice Agnes, Julio Mello Capa: Denis Ricardo Puhl (Assessoria de comunicao e marketing) Reviso do portugus pelas autoras.

    Bibliotecria: Luciana Mota Abro CRB10/2053

    ISBN 978ISBN 978ISBN 978ISBN 978----85858585----7578757875787578----325325325325----2222

    G426m Ghisleni, Ana Carolina

    Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno [recurso eletrnico] / Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler - Santa Cruz do Sul : EDUNISC, 2011.

    Dados eletrnicos.

    Texto eletrnico. Modo de acesso: World Wide Web: www.unisc.br/edunisc

    1. Direito - Filosofia. 2. Fraternidade. 3. Mediao. 4. Direitos fundamentais. I. Spengler, Fabiana Marion. II. Ttulo.

    CDD: 340.1

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    SUMRIOSUMRIOSUMRIOSUMRIO

    1 1 1 1 PREFCIOPREFCIOPREFCIOPREFCIO ........................................................................................................ 6 Doglas Cesar Lucas

    1 INTRODUO1 INTRODUO1 INTRODUO1 INTRODUO .................................................................................................. 8 2 2 2 2 PODER E DOMINAO DO ESTADOPODER E DOMINAO DO ESTADOPODER E DOMINAO DO ESTADOPODER E DOMINAO DO ESTADO ........................................................... 12

    2.1 O modelo contratualista ................................................................... 12 2.2 A autoridade estatal ......................................................................... 16 2.3 A Jurisdio ...................................................................................... 21

    3 3 3 3 DIREITO FRATERNODIREITO FRATERNODIREITO FRATERNODIREITO FRATERNO ...................................................................................... 24

    3.1 A lei da amizade ............................................................................... 26 3.2 Da inimizade s guerras ................................................................... 30 3.3 Cdigos fraternos ............................................................................. 36

    4 4 4 4 CONFLITO E SEU TRATAMENTOCONFLITO E SEU TRATAMENTOCONFLITO E SEU TRATAMENTOCONFLITO E SEU TRATAMENTO .................................................................. 40

    4.1 A sociedade e os conflitos ............................................................... 40 4.2 Mediao .......................................................................................... 47 4.2.1 O mediador ................................................................................... 49

    5 5 5 5 TCNICAS E PROCEDIMENTOS DE MEDIAOTCNICAS E PROCEDIMENTOS DE MEDIAOTCNICAS E PROCEDIMENTOS DE MEDIAOTCNICAS E PROCEDIMENTOS DE MEDIAO .......................................... 56

    5.1 O rapport .......................................................................................... 56 5.2 A tcnica do resumo ........................................................................ 56 5.3 Parfrase .......................................................................................... 58 5.4 A arte de perguntar .......................................................................... 60 5.5 Identificao de questes, interesses e sentimentos ....................... 63 5.6 Validao de sentimentos ................................................................ 65 5.7 Resoluo de questes .................................................................... 66 5.8 Despolarizao do conflito ............................................................... 67 5.9 Afago ................................................................................................ 67 5.10 Silncio ........................................................................................... 68 5.11 Inverso de papis ......................................................................... 68 5.12 Escuta ativa .................................................................................... 68 5.13 Identificao/gerao de opes(brainstorming) ........................... 70 5.14 Estgios da mediao .................................................................... 70

    REFERNCIASREFERNCIASREFERNCIASREFERNCIAS .................................................................................................. 84

  • 6 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    PREFCIO

    MEDIAO: UMA FORMA DE PROMOVER ENCONTROS,

    COMPROMISSOS E RESPONSABILIDADES COM O OUTRO

    Invariavelmente as formas modernas e standartizadoras de se dizer o direito escondem os rostos, valorizam conceitos abstratos que impendem a visibilidade histrica das demandas e contribuem para velar as diferenas simblicas que permeiam todo e qualquer tipo de conflito social. A dogmtica jurdica tradicional castra os sentidos, reduz acessos e diminui a possibilidade de se compreender a complexidade residente nos litgios. O processo moderno pautado pela lgica da distribuio de bens jurdicos entre seus litigantes. No jogo processual tradicional sempre h vencedores e perdedores; h deciso; h interveno quase sempre arbitrria. Justamente por desconsiderar a historicidade dos atores em conflito o processo desumaniza e no se apropria das sutilezas e das complexidades que os sujeitos querem ver reconhecidas e protegidas pelo direito. A distribuio de direitos e garantias sem dvida uma conquista; precisamos substancializar este avano com o incremento de um modelo processual que reconhea o complexo debate entre igualdades e diferenas que constituem qualquer tipo de conflito.

    Se as formas tradicionais de Jurisdio tendem a afastar a complexidade e a negar a diferena que envolve os conflitos identitrios, a mediao, por sua vez, poder ser uma forma de descortinar novos rostos, de desvel-los e permitir o vir tona das diferenas por intermdio do dilogo. Por certo que a mediao no a tbua de salvao do direito e nem deveria s-lo, mas pode inaugurar novos olhares sobre o conflito e novas formas de senti-lo. A mediao no pretende acabar com o conflito. Isto seria impossvel e mesmo indesejado sob o ponto de vista social. Afinal, conflitos movem estruturas, constituem matria prima da evoluo e da reforma. Trata de v-lo, entretanto, como condio mesma de vivncias humanas em disputa, como realidade que se choca e que encontra nas diferenas divergentes a essncia de identidades que precisam uma da outra para ser o que realmente so.

    A mediao exige um estatuo tico de subjetividade que no se esgota na iniciativa do sujeito em direo ao outro, na postura de uma moralidade ou normatividade imperativa baseada numa situao de predomnio ou zona de conforto de identidades, pois nessas condies solipsistas o sujeito no se desprende de si mesmo e permanece na posio central da realidade e do conflito, tornando impossibilitada a formao de laos de alteridade e reduzindo a compreenso da complexidade do eu semelhante sua prpria identidade. Para que a mediao se instale como um processo de dilogo inovador indispensvel que o sujeito seja afetado pelo outro, que receba o outro em si mesmo numa relao que promova encontros entre eus diferentes que se reconhecem numa

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    dimenso tica de responsabilidade de um-para-o-outro1 e no de um em direo ao outro. Um apelo tico ao outro se faz necessrio.

    O livro da Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler constitui-se num trabalho importante para aqueles que querem compreender as fragilidades da Jurisdio e a mediao como forma alternativa de soluo de conflitos. Visivelmente afastado dos ranos positivistas que dominam a maior parte da produo jurdica brasileira, o presente livro tem a especial virtude de apresentar didaticamente a fraternidade e a amizade como elementos essenciais para a formao de um tipo de compromisso que gera responsabilidades entre as partes dispostas a mediarem. Influenciado diretamente pela obra do professor italiano Eligio Resta, o texto reclama um estatuto de tratamento de conflitos baseado em um novo tipo de reconhecimento entre as partes e um novo tipo de reponsabilidade entre elas, que no pode ser alcanado pelo direito centrado na interveno arbitrria e violenta, mas somente pela adoo de um direito fraterno, de um direito que promova reencontros e compromissos mtuos.

    A professora Fabiana Spengler tem se constitudo numa autoridade nacional sobre a temtica da mediao. Seus trabalhos ultrapassam as disposies dogmticas que tradicionalmente povoam o debate e apostam na busca dos fundamentos para a afirmao da prtica mediativa como forma legtima de resposta ao tratamento dos conflitos. Iniciando sua carreira acadmica, Ana Ghisleni, de quem a Fabiana foi professora e orientadora no Mestrado em Direito da UNISC, demonstra com este livro que possui muita qualidade terica, um olhar sofisticado sobre o direito e um futuro promissor.

    Recebi com carinho o convite para prefaciar o presente livro, deferncia que acredito decorra mais da amizade que me liga a professora Fabiana do que propriamente dos meus conhecimentos sobre a matria que permeia a obra. De fato, a amizade tem um efeito revolucionrio; capaz de aproximar sem cobranas, de unir diferenas, de promover encontros e gerar compromissos silenciosos construdos pela escuta mtua. Precisamos transpor para o direito essa fora transformadora que a amizade e a fraternidade desempenham no quotidiano do homem comum; precisamos aprender que os laos de amizade e de fraternidade que comprometem e responsabilizam os amigos podem ser potentes na definio de reciprocidades no mbito de prticas alternativas de soluo de conflitos, como o caso da mediao. Enfim, tem razo o poeta e politico Francs Alphonse de Lamartine quando disse que "O egosmo e o dio tm uma s ptria. A fraternidade no a tem". Mediar, pois, romper com a bruteza da ao e aproximar expectativas; desamar e potencializar a palavra; falar e escutar; enfim, poder ver no outro aquilo que sou.

    Ijui, 22 de agosto de 2011

    Professor Doutor Doglas Cesar Lucas Professor da UNIJUI e do IESA

    1 Ver, a respeito, LVINAS, Emmanuel. Entre Ns. Ensaios sobre a alteridade. 2.ed. Petrpolis: Vozes, 2005.

  • 8 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    1 INTRODUO1 INTRODUO1 INTRODUO1 INTRODUO

    Atualmente possvel questionar sobre a importncia e at mesmo sobre a

    necessidade de falar em fraternidade. Mais, a capacidade de relacionar fraternidade teoria e a prtica da poltica tambm se perdeu. Na verdade, estudar as relaes entre fraternidade e poltica nunca foi considerado um tema atrativo. A liberdade e a igualdade aparecem com frequncia nesse debate, mas a fraternidade sempre resta esquecida.

    A Revoluo Francesa e seus partcipes, que produziram a trade liberdade, igualdade e fraternidade princpios universais de carter poltico -, aos poucos expurgaram a fraternidade de seu contexto voltando os olhos somente para as duas primeiras. nesse sentido que a fraternidade passou a ser encarada como a parente pobre, a prima do interior2, assumindo aos poucos outras conotaes3: religiosa, consangunea, ou ento na forma de ligaes sectrias, no mbito de organizaes secretas, ou que colocam nveis de segredo ao lado de outros de carter pblico como a maonaria e que buscam fortalecer sua prpria rede de poder econmico e poltico.4

    Ao abordar o tema da amizade como cimento social possibilitador de um tratamento adequado aos conflitos, Eligio Resta5 faz referncia ao do direito fraterno, mencionando que a fraternidade possui um sentido vagamente anacrnico, uma vez que nos reporta ao cenrio da revoluo iluminista. No entanto, no com essa conotao que se pretende aqui abordar o direito fraterno, (tambm no foi assim que o autor conduziu o seu texto) uma vez que, dito daquela forma, a fraternidade deixava entrever muitas coisas, mas continuava no estado de aceno silencioso. Desse modo, confirmava antes de tudo o jogo da pertena dos indivduos, de mulheres e homens de carne e osso, ao territrio de nascimento.... Consequentemente, ligava separando, inclua excluindo: o sentimento de fraternidade na direo de outras naes, do povo de uma nao, ao povo de outras naes. Assim abria o cenrio do cosmopolitismo para fech-lo imediatamente dentro do recinto de pertencimento nacional.6 Por isso o anacronismo da fraternidade pode ser traduzido como um

    2 RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Laterza: Roma, 2005 (introduzione), p. IX. 3 Tal afirmativa apenas ilustrativa uma vez que o presente estudo no tem por objetivo investigar

    profundamente a fraternidade no contexto cristo/familiar/associativo. 4 BAGGIO, Antonio Maria (Org.). O princpio esquecido. So Paulo: Cidade Nova, 2008, p. 20. 5 RESTA, Eligio. Le verit e il processo. In: MARINI, Alarico Mariani. Processo e verit. Pisa: Plus, 2004,

    p. 9. 6 Nesse ponto o autor salienta: Il diritto fraterno sembrerebbe aver trovato la sua istituzionalizzazione

    formale nella grande codificazione di fine secolo, dapprima com le Dichiarazione universali e poi com um vero e proprio processo di constituzionalizzazione che si apre com questa affermazione dellugualianza di fronte alla lege. Ma gi nella netta separazione tra lugualianza e la fraternit riemerge il problema delluniversalismo; la fraternit il critrio direttivo, la nuova regola, dei rapporti com gli altri Stati e com gli altri cittadini. Essa indica uma scelta di solidariet cosmopolitica Che non solo non contesta, ma addirittura presuppone i confini statuali, sovrani, sulla base di territrio. Lugualianza, al contrario, proprio perch supportata da uma legge Che nasce dal nuovo patto della

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    contratempo, na exata acepo de andar contra o tempo, no sentido de remar contra a corrente ou quem sabe interromper a linearidade que vai do incio ao fim.

    Seguindo as palavras de Eligio Resta7, objetiva-se aqui tratar da fraternidade e, consequentemente, do direito fraterno como aquele que abandona as fronteiras fechadas da cidadania, respeitando os direitos humanos e que, ao retornar ao binmio constitudo de direito e fraternidade, recoloca em jogo um modelo de regra da comunidade poltica: modelo no vencedor, mas possvel.8 Dessa forma, o autor prope o retorno a um modelo convencional de direito, jurado conjuntamente entre irmos e no imposto, como se diz, pelo pai senhor da guerra. Jurado conjuntamente, mas no produzido em conluio. Por isso decisivamente no violento isto , capaz de no apropriar-se daquela violncia que diz querer combater. 9

    Nesse sentido o presente texto se fundamenta no Direito Fraterno como fomentador de polticas pblicas gestoras da mediao de conflitos, esta ltima como forma alternativa de tratamento dos mesmos. A escolha do tema ocorreu justamente em razo da necessidade de se apresentar uma nova opo para a soluo dos conflitos, desvinculando-se das decises impostas pelo Estado, j que este no mais consegue trat-los de forma adequada em razo das crises que enfrenta.

    O debate proposto envolve o estudo de um conjunto de conhecimentos, desde o surgimento do Estado, sua evoluo e crises, at a origem da sociedade e suas modificaes, passando pelas diferentes maneiras de resoluo dos litgios. Porm, tendo em vista a abrangncia dos assuntos, ser feita uma abordagem ampla e geral, privilegiando as questes mais importantes, especialmente os fundamentos fraternos da mediao.

    Atravs da anlise da proposta fraterna, suas origens e resultantes, deseja-se apresentar suas consequncias positivas no tratamento de conflitos sociais, apontando seu embasamento terico, os motivos que contriburam para o surgimento de uma sociedade violenta e conflitiva, bem como os benefcios gerados com a soluo pacfica e harmnica das lides. Para tanto, a metodologia utilizada foi a hermenutica e histrico-crtica atravs da coleta de informaes a partir de uma

    sovranit, una deimensione esclusiva de cittadini. Gli uguali Che giurano il diritto fraterno devono gi riconoscersi in una comunit poltica di altro genere. O Direito Fraterno parecer ter encontrado sua codificao do fim do sculo primeiro com a declarao universal e depois com um verdadeiro e prprio processo de constitucionalizao que se abre com esta afirmao de igualdade perante a lei. Mas j na separao entre igualdade e fraternidade emerge o problema do universalismo, a fraternidade o critrio diretivo, a nova lei, das relaes com os outros Estados, e com os outros cidados. Essa indica uma escolha de solidariedade cosmopoltica que no s no contesta, mas fracamente pressupe os confins estaduais, sobre a base do territrio. A igualdade, ao contrrio, porque baseada em uma lei que nasce do novo pacto da soberania uma dimenso exclusiva dos cidados. Os iguais que juraram o direito fraterno devem j reconhecer-se em uma comunidade poltica de outro gnero. (RESTA, Eligio. Poteri e diritti. Torino: Giappichelli Editore, 1996.)

    7 RESTA, Eligio. Le verit e il processo. In: MARINI, Alarico Mariani. Processo e verit. Pisa: Plus, 2004, p. 15. Ver tambm: RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005.

    8 Sobre o assunto importante a leitura de DERRIDA, Jacques. Polticas da Amizade. Traduo de Fernanda Bernardo. Porto, Campo das Letras: 2003.

    9 RESTA, Eligio. Le verit e il processo. In: MARINI, Alarico Mariani. Processo e verit. Pisa: Plus, 2004, p. 15. Ver tambm: RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2005.

  • 10 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    pesquisa feita com os ensinamentos de doutrinadores jurdicos e aplicadores do direito, por meio de seus posicionamentos e divergncias.

    A mediao, enquanto alternativa fraterna de tratamento dos conflitos, pressupe uma convivncia baseada na cidadania, direitos humanos, jurisdio mnima, consenso, direito compartilhado e mediao. um modelo realmente democrtico e no violento que aposta no bem comum.

    A estrutura do trabalho compreende a exposio da matria em quatro captulos, atravs de pesquisa bibliogrfica com diversos autores. No primeiro, estuda-se a viso positiva do surgimento do Estado, baseada no modelo contratualista, a qual prev a necessidade da criao de um pacto social entre os indivduos e um representante dotado de poder, capaz de defend-los e proteg-los. O contrato social cria, portanto, a autoridade soberana estatal e a sociedade.

    O poder jurisdicional do Estado, no entanto, est passando por vrias crises em razo da complexidade das relaes sociais e seus conflitos, que resultam na insuficincia e ineficincia de seus instrumentos. Essa forma de soluo das lides baseada na funo estatal, atravs do juiz, no considerada democrtica, tendo em vista que apenas a aplicao das leis positivadas sem a ocorrncia da transformao social necessria entre as partes. Os conflitos remetidos ao Judicirio possuem mecanismos complexos e dependem de muitos fatores que no esto regulamentados.

    No segundo captulo so expostos os fundamentos principais de uma sociedade fraterna, baseada na amizade e solidariedade, na qual as partes decidem em consenso as prprias lides. Abandona-se, neste caso, a ideia do vencedor ou perdedor (procedncia ou improcedncia), a qual substituda por uma deciso conjunta e harmoniosa entre elas, atravs da abertura de novos caminhos e da reinveno quotidiana. No se trata de negao da figura do Estado, at mesmo porque no se exclui a opo da via jurisdicional.

    O terceiro captulo analisa a sociedade, seus conflitos e as formas de trat-los, visto que ela passa por muitas mudanas que, por sua vez, tambm modificam seus conflitos, tornando-os mais violentos e complexos. A contrapartida para seu tratamento a utilizao de mecanismos extrajudiciais, que traz resultados mais adequados aos litigantes. Nesse caso, a melhor sugesto a utilizao da mediao, haja vista as vantagens e benefcios trazidos aos demandantes.

    J o ltimo captulo expe, de forma prtica, as tcnicas e as etapas de uma sesso de mediao apontando as habilidades que deve possuir/desenvolver o mediador para evitar a realizao de uma mediao intuitiva. O objetivo desse captulo alcanar ferramentas ao mediador para que proceda numa mediao tcnica, mais eficiente e mais produtiva.

    As formas alternativas de resoluo de litgios so cada vez mais utilizadas em razo da necessidade de solues mais cleres e eficientes, ao contrrio do processo judicial, que lento e custoso. De todas essas prticas de tratamento de controvrsias, a mediao se destaca das demais justamente porque seu local de atuao a sociedade, sendo sua base de operaes o pluralismo de valores, a presena de sistemas de vida diversos e alternativos, e sua finalidade consiste em reabrir os canais de comunicao interrompidos e reconstruir laos sociais destrudos.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

    11

    Deste modo, pretende-se comprovar os benefcios trazidos pelo Direito Fraterno, j que o Poder Judicirio apenas resolve a lide, mas no consegue solucionar o real problema social e evitar novas contendas. Pretende, tambm, colaborar com as discusses profissionais e acadmicas sobre o tema, apostando em uma sociedade fraterna e solidria.

  • 12 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    2222 PODER E DOMINAO DO ESTADOPODER E DOMINAO DO ESTADOPODER E DOMINAO DO ESTADOPODER E DOMINAO DO ESTADO

    O Direito Fraterno tem suas origens na Revoluo Francesa, juntamente aos ideais de liberdade e igualdade. A ideia de fraternidade est diretamente ligada vida em sociedade, cidadania entre os homens e aos direitos humanos. Na verdade, continua bem prxima dos ideais iluministas, pois no h hierarquia que os diferencie: todos os homens so iguais, livres e deveriam viver em harmonia fraterna.

    Para se entender melhor esta proposta, necessrio se faz discorrer acerca dos motivos que contriburam para sua elaborao, dentre eles a origem do Estado, a crise jurisdicional, os conflitos sociais, e outros elencados a seguir.

    2222.1 O modelo contratualista.1 O modelo contratualista.1 O modelo contratualista.1 O modelo contratualista

    Existem duas vises acerca do surgimento do Estado, uma positiva e outra

    negativa. A primeira v o Estado como uma criao artificial da razo humana, sendo que o fim do estado de natureza atravs do consenso entre os homens faz surgir o Estado; j a segunda, entende que o Estado produto da sociedade, pois, ao chegar a determinada fase de seu desenvolvimento e frente s incompatibilidades inconciliveis de classe, necessrio um poder para manter a ordem e abrandar os conflitos.10

    Alm disso, diversas doutrinas definem a origem estatal; neste caso, ser analisada a teoria contratualista, que identifica o Estado como produto do pacto social constitudo pela livre vontade e pelo consenso. Porm, existem muitas outras, como por exemplo: doutrina teolgica (Estado criao divina e seus governantes so representantes de Deus), familiar/patriarcal (a famlia a base primria e formadora do Estado), fora e violncia (Estado resultado de lutas e guerras, prevalecendo a imposio dos grupos mais fortes) e econmica (vinculao do Estado a um modo de produo econmico e relaes sociais de classe).

    O modelo contratualista11 aponta para a viso positiva acerca da criao do Estado e possui trs principais autores: Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau. Para eles o contrato social a ponte entre o Estado de Natureza e o Estado Civil.

    10 BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediao e arbitragem: alternativas jurisdio!. 2. ed., rev. e ampl. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2008.

    11 Conforme Norberto Bobbio (1999, p. 272) o contratualismo definido por meio das teorias polticas que veem a origem da sociedade e o fundamento do poder poltico (chamado, quando em quando, potestas, imperium, Governo, soberania, Estado) num contrato, isto , num acordo tcito ou expresso entre a maioria dos indivduos, acordo que assinalaria o fim do estado natural e o incio do estado social e poltico. Num sentido mais restrito, por tal termo se entende uma escola que floresceu na Europa entre os comeos do sculo XVII e os fins do sculo XVIII.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

    13

    Para Lenio Luiz Streck12 o estado de natureza se apresenta como contraface do estado civil, ou seja, se no estivermos no interior da sociedade poltica, camos no estado de natureza. Esse seria o estgio pr-poltico e social do homem.

    Cada um dos contratualistas mencionados anteriormente v o estado de natureza de forma diferente, como ser mostrado a seguir; da mesma forma em relao definio de contrato social e estado civil.

    Para Hobbes, o estado de natureza um ambiente de disputas e domnio dos mais fortes sobre os mais fracos, onde h insegurana e desejo de poder. Isto , nesta fase os homens so comparados a animais; o homem o lobo do prprio homem. Portanto, para impedir a destruio de uns aos outros, surge a necessidade de estabelecerem um acordo, que seria o contrato social. Este pacto constituiria um Estado que Hobbes considera absoluto, capaz de impedir a disputa de todos contra todos. Desta forma, o contrato passa a permitir a vida em sociedade13.

    De certa forma, Hobbes14 acaba recontando a burguesia e a formao do mercado, visto que descreve os homens de sua prpria poca. Ademais, o contrato tem a finalidade de conservao da vida em sociedade e seu conforto, terminando com o estado de guerra permanente. O autor refere, ainda, que as leis da natureza auxiliam no cumprimento de pactos,

    porque as Leis da Natureza (tais como Justia, Equidade, Modstia, Piedade, que determinam que faamos aos outros o que queremos que nos faam), so contrrias s nossas Paixes naturais, que nos inclinam para Parcialidade, Orgulho, Vingana e outras, se no houver o Temor de algum Poder que obrigue a respeit-las. Sem a espada, os Pactos no passam de palavras sem fora que no do a mnima segurana a ningum. Assim, apesar das Leis da Natureza (que cada qual respeita quando tem vontade e quando pode faz-lo com segurana), se no for institudo um Poder considervel para garantir nossa segurana, o homem, para proteger-se dos outros, confiar, e poder legitimamente confiar, apenas em sua prpria fora e capacidade. Roubar e espoliar uns aos outros sempre foi uma ocupao legtima, que no era considerada contrria Lei da Natureza, em locais em que as pequenas Famlias se agrupavam, e quanto maior era a espoliao conseguida maior era a honra adquirida.15

    Ainda, o contratualista Hobbes16 compara o Estado ao Leviat, vez que este,

    atravs de seu poder de impor sanes, tinha o dever de buscar a paz; para isso, a humanidade firmou com ele um pacto. Ou seja, objetivando o fim da guerra de todos

    12 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis. Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 32.

    13 GRUPPI, Luciano. Tudo comeou com Maquiavel: as concepes do Estado em Marx, Engels, Lnin e Gramsci. 16. ed. Porto Alegre: L&PM, 2001.

    14 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. So Paulo: cone, 2000.

    15 Ibidem, p. 123. 16 Ibidem.

  • 14 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    contra todos, trocam seus direitos e possibilidades em razo de receberem segurana e proteo.

    Deste modo, o Estado caracterizado como o Leviat na obra de Hobbes, que o designa como deus mortal, porque a ele por debaixo do Deus imortal devemos a paz e a defesa de nossa vida. Esta dupla denominao resulta fortemente significativa: o Estado absolutista que Hobbes edificou , em realidade, metade monstro e metade deus mortal. 17

    necessria, portanto, a criao de um pacto, no qual todos os homens designariam um representante capaz de defender o povo, atravs da instituio de um poder comum.18

    Isso equivale a dizer que, designar um Homem ou uma Assembleia de homens para represent-los, considerando e reconhecendo cada um como Autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar, em tudo que se refere Paz e Segurana Comuns, submete, assim, suas Vontades Vontade do representante, e seus Julgamentos a seu Julgamento. Significa muito mais que Consentimento ou Concrdia, pois uma Unidade real de todos, numa s e mesma Pessoa, atravs de um Pacto de cada homem com todos os homens, de modo que seria como se cada homem dissesse a cada homem: Autorizo e desisto do Direito de Governar a mim mesmo a este Homem, ou a esta Assembleia de homens, com a condio de que desistas tambm de teu Direito, autorizando, da mesma forma, todas as suas aes. Dessa forma, a Multido assim unida numa s Pessoa, passa a chamar-se Estado, em latim, CIVITAS. Esta, a gerao do grande LEVIAT, ou antes (para usarmos termos mais reverentes) daquele Deus Mortal a quem devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Em virtude da Autoridade que cada indivduo d ao Estado, de usar todo o Poder e Fora, pelo temor que inspira capaz de conformar todas as vontades, a fim de garantir a Paz em seu prprio pas, e promover a ajuda mtua contra os inimigos estrangeiros.19

    John Locke, por sua vez, via o estado de natureza dominado por uma paz relativa e pela liberdade. Porm, a razo um dos elementos predominantes exigia certos limites a essa liberdade, a fim de poder assegurar a propriedade. Portanto, para garantir a propriedade e sua segurana, se estabelece o contrato social, que, por sua vez, cria o Estado e igualmente a sociedade. Diferentemente de Hobbes, neste caso o Estado ou o governo precisam respeitar o contrato, caso contrrio, este poder ser desfeito como qualquer acordo. Por isso, conforme a viso de Locke, deve haver alguma garantia por parte do governo em relao a determinadas liberdades, por exemplo, poltica20.

    Observa-se que John Locke defendia o liberalismo, tendo em vista que o Estado soberano e sua autoridade vem do contrato que o criou, bem como a ligao entre a

    17 STRECK, Lenio Luiz; BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis. Cincia Poltica e Teoria Geral do Estado. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 33-34.

    18 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. So Paulo: cone, 2000.

    19 Ibidem, p. 126. 20 GRUPPI, Luciano. Tudo comeou com Maquiavel: as concepes do Estado em Marx, Engels, Lnin e

    Gramsci. 16. ed. Porto Alegre: L&PM, 2001.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

    15

    ideia de propriedade e liberdade. Consequentemente, defendia tambm a ideia da burguesia21.

    O contratualista Jean-Jacques Rousseau define o estado de natureza como um estado de felicidade, satisfao e virtudes. Alm disso, o homem possuidor de condies naturais, tais como liberdade e igualdade, muito importantes para a constituio da sociedade. Entretanto, para Rousseau, apenas a sociedade nasce a partir de um contrato, distintamente de Locke, relacionando-se personalidade dos indivduos. Os males existentes provm da propriedade, mas ao mesmo tempo no prope meios para abolir a mesma. Fala tambm nos ideais da democracia, mesmo sabendo das dificuldades do homem em ceder sua soberania e liberdade22.

    Rousseau23 afirma que chega um momento em que os obstculos que ameaam a conservao do estado de natureza se tornam maiores do que as foras individuais dos homens que tentam se manter nele. Deste modo, ficam obrigados a unir as foras existentes, como nica forma de refrear a resistncia. A maior dificuldade, assim,

    encontrar uma forma de associao que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associao com toda a fora comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, no obedea seno a si mesmo. Esse, o problema fundamental cuja soluo o contrato social oferece. As clusulas deste contrato so de tal modo determinadas pela natureza do ato, que a menor modificao as tornaria vs e de nenhum efeito, de modo que, embora talvez jamais enunciadas de maneira formal, so as mesmas e toda a parte, e tacitamente mantidas e reconhecidas em todos os lugares, at quando, violando-se o pacto social, cada um volta a seus primeiros direitos e retoma sua liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela qual renunciara quela. [...] Cada um dando-se a todos no se d a ningum e, no existindo um associado sobre o qual no se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior fora para conservar o que se tem. Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que no pertence sua essncia, ver-se- que ele se reduz aos seguintes termos: Cada um de ns pe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direo suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisvel do todo.24

    Para Montesquieu25, no estado de natureza, os homens nascem realmente na

    igualdade; mas no poderiam nela permanecer. A sociedade faz com que a percam, e eles s voltam a ser iguais graas s leis.

    21 Ibidem. 22 Ibidem. 23 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princpios do direito poltico. So Paulo: Editora Nova

    Cultural, 2005. 24 Ibidem, p. 71. 25 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O esprito das leis. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p.

    123.

  • 16 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    Segundo Rousseau26 a passagem do estado de natureza para o civil causa transformaes no homem; a principal delas a utilizao da razo em lugar do simples atendimento de seus desejos e vontades, pois a passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudana muito notvel, substituindo, na sua conduta, o instinto pela justia e dando s suas aes a moralidade que antes lhe faltava. E s ento que, tomando a voz do dever o lugar do impulso fsico, o homem, at a levando em considerao apenas sua pessoa, v-se forado a agir baseando-se em outros princpios e a consultar a razo antes de ouvir suas inclinaes. Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se eleva a tal ponto que, se os abusos dessa nova condio no o degradassem frequentemente a uma condio inferior quela donde saiu, deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um animal estpido e limitado, um ser inteligente e um homem. A fim de no fazer um julgamento errado dessas compensaes, impe-se distinguir entre a liberdade natural, que s conhece limites nas foras do indivduo, e a liberdade civil, que se limita pela vontade geral, e, mais, distinguir a posse, que no seno o efeito da fora ou do direito do primeiro ocupante, da propriedade, que s pode fundar-se num ttulo positivo.

    Assim, assentado sob um modelo contratualista, o Estado se mune de legitimidade e autoridade para fazer valer suas regras e oferecer ao cidado segurana em troca de uma parcela considervel de sua liberdade. Essa autoridade estatal exercida por um soberano munido de poderes concedidos pelo povo o que se debate no item a seguir.

    2222.2 A.2 A.2 A.2 A autoridade estatalautoridade estatalautoridade estatalautoridade estatal

    O Estado vem conceituado em Hobbes27 como uma pessoa instituda, pelos atos

    de uma grande Multido, mediante pactos recprocos uns com os outros, como Autora, de modo a poder usar a fora e os meios de todos, de maneira que achar conveniente, para assegurar a Paz e a Defesa Comum. O titular dessa pessoa chama-se SOBERANO e se diz que possui Poder Soberano. Todos os restantes so SDITOS.

    J Hans Kelsen28 afirma que o Estado definido como um relacionamento em que alguns comandam e governam, e outros obedecem e so governados.

    Para Rousseau29, a soberania ou poder soberano emanado do Estado inalienvel e indivisvel, visto que a fora estatal nada mais do que a vontade geral do povo. A soberania, no sendo seno o exerccio da vontade geral, jamais pode

    26 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princpios do direito poltico. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2005, p. 77.

    27 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. So Paulo: cone, 2000, p. 126.

    28 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 269. 29 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princpios do direito poltico. So Paulo: Editora Nova

    Cultural, 2005, p. 86.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    alienar-se, e que o soberano, que nada seno um ser coletivo, s pode ser representado por si mesmo. Assim, o poder pode transmitir-se; no, porm, a vontade. [...] A soberania indivisvel pela mesma razo que inalienvel, pois a vontade ou geral, ou no o ; ou a do corpo do povo, ou somente de uma parte.

    Deste modo, tal poder soberano do Estado de governar, legislar e decidir, alm de regrar as relaes sociais, institudo mediante o consentimento dos sditos. Estes, por sua vez, no podem renunciar ao pacto estabelecido e consequentemente ao soberano, muito menos sem sua licena, pois cada um considerado autor de tudo o que o soberano fizer. Cada sdito transferiu seu poder a apenas um soberano, e, se aquele o depuser, estar desconstituindo a si prprio.30

    Hobbes31 exemplifica a circunstncia mencionada ao apresentar a seguinte situao: Se aquele que tentar depor seu soberano, morto ou castigado por ele devido a essa tentativa, pode considerar-se como Autor de seu prprio castigo j que , por Instituio, de tudo o que seu Soberano fizer.

    J para Jos Luis Bolzan de Morais32 a soberania caracteriza-se, historicamente, como um poder que juridicamente incontrastvel, pelo qual se tem a capacidade de definir e decidir acerca do contedo e da aplicao das normas, impondo-as coercitivamente dentro de um determinado espao geogrfico, bem como fazer frente a eventuais injunes externas. Ela , assim, tradicionalmente tida como una, indivisvel, inalienvel e imprescritvel. Porm, embora a soberania permanea adstrita ideia de insubmisso, independncia e de poder supremo juridicamente organizado, deve-se atentar para as novas realidades que impem mesma uma srie de matizes, transformando-a por vezes.

    A soberania, portanto, o principal elemento que caracteriza o Estado; sem ela, ele no se estrutura. A soberania a Alma do Estado e, uma vez separada do corpo, tira o movimento dos membros. 33

    Nessa mesma linha de raciocnio, a dominao exercida enquanto houver uma pessoa que manda eficazmente em outras, no necessariamente com a existncia de um quadro administrativo ou associao, esta ltima denominada associao poltica quando houver ameaa e coao fsica para garantia da ordem. A possibilidade de exercer poder ou influncia exige autoridade soberana que se baseie nos motivos da submisso, podendo existir, por outro lado, a vontade de obedecer. A dominao dirigida a uma pluralidade e requer um quadro de pessoas, isto , h a probabilidade confivel de que haja uma ao dirigida especialmente execuo de disposies gerais e ordens concretas, por parte de pessoas identificveis com cuja obedincia se pode contar.34

    30 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. So Paulo: cone, 2000.

    31 Ibidem, p. 128. 32 BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediao e arbitragem: alternativas

    jurisdio!. 2. ed., rev. e ampl. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2008, p. 30. 33 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. So Paulo:

    cone, 2000, p. 161. 34 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Editora

    Universidade de Braslia, 2000, p. 139.

  • 18 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    Da mesma forma em que Estado e soberano no so a mesma coisa, governo e Estado tambm no se confundem. Governo35 um corpo intermedirio estabelecido entre os sditos e o soberano para sua mtua correspondncia, encarregado da execuo das leis e da manuteno da liberdade, tanto civil como poltica.36

    Atravs do governo que emanam foras formadoras do poder soberano e do Estado. A diferena entre esses dois corpos que o Estado existe por si mesmo, e o governo no existe, seno pelo soberano.37

    O tipo de dominao exercida definido pela natureza de seus motivos, no entanto nenhuma dominao se contenta com motivos puramente materiais, afetivos ou racionais como possibilidade de sua persistncia. Procuram sim conservar a crena em sua legitimidade, que, dependendo de sua natureza, alterar a obedincia e o prprio exerccio da dominao.38

    Weber39 divide a dominao legtima em relao vigncia de sua legitimidade, que pode ser de carter racional (dominao legal), tradicional e carismtico. No caso da dominao baseada em estatutos, obedece-se ordem impessoal, objetiva e legalmente estatuda e aos superiores por ela determinados, em virtude da legalidade formal de suas disposies e dentro do mbito de vigncia destas. No caso da dominao tradicional, obedece-se pessoa do senhor nomeada pela tradio e vinculada a esta (dentro do mbito de vigncia dela), em virtude de devoo aos hbitos costumeiros. No caso da dominao carismtica, obedece-se ao lder carismaticamente qualificado como tal, em virtude de confiana pessoal em revelao, herosmo ou exemplaridade dentro do mbito da crena nesse seu carisma.40

    Com a instituio do poder soberano ao Estado surgem os diferentes tipos de governo; a principal distino entre eles est na pessoa que representa a todos os indivduos, podendo ser apenas um homem ou uma assembleia de homens.

    Com a criao do Estado, os sditos se submetem ao domnio do soberano, transferindo sua liberdade e obedecendo aos preceitos deste; a finalidade da obrigao a proteo. Porm, ningum pode resistir fora do Estado para defender outrem, pois essa liberdade estar privando o soberano de proteger seus prprios sditos. Alm disso, se algum sdito discordar do soberano por algum motivo embasado em lei, poder defender seu direito como se este fosse outro sdito, solicitando inclusive que a causa seja julgada de acordo com a lei. Todavia, se no

    35 Existe um critrio puramente sociolgico para se discernir o governante do Estado. Um estudo da conduta social efetiva talvez pudesse revelar que esse governante , ele prprio, governado por outras pessoas, por um conselheiro, sua amante ou seu camareiro, e que os comandos que ele emite so resultado da influncia que esses outros indivduos exercem sobre ele. Uma sociologia do Estado, porm, ir ignorar essas relaes e dominao em que o prprio governante ocupa o lugar do governado. (KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 269).

    36 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princpios do direito poltico. So Paulo: Editora Nova Cultural, 2005, 136.

    37 Ibidem. 38 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. Braslia: Editora

    Universidade de Braslia, 2000. 39 Ibidem. 40 Ibidem, p. 141.

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    houver o pretexto de seu prprio poder, no existe aplicao da lei, porque tudo o que o soberano faz em virtude de seu poder feito pela autoridade de cada sdito. Neste caso, o sdito que move a ao contra o soberano, estar movendo contra si mesmo.41

    Atravs de seu poder, o soberano defende seus sditos, e a obrigao destes para com aquele permanece apenas enquanto existir seu poder. Seno o direito de defesa estaria sendo abandonado com a instituio do pacto. Embora a Soberania seja imortal, na inteno daqueles que a criaram, ela est, por sua prpria Natureza, sujeita morte violenta atravs da guerra exterior. 42

    O poder soberano dotado de fora. Esta, por sua vez, mais coercitiva e imediata do que o poder. Fala-se, enfatizando-a, em fora fsica. O poder, em seus estgios mais profundos e animais, antes fora. 43 O Estado uma organizao poltica por ser uma ordem que regula o uso da fora, porque ela monopoliza o uso da fora; tambm uma sociedade politicamente organizada por ser constituda pela ordem coercitiva, que o Direito.44

    A lisura e a ordem caracterizam a essncia do poder, de um modo geral, pois so inseparveis dele e se verificam em qualquer forma de poder.45

    Uma organizao uma ordem. 46 Atrelada fora, portanto, est a ordem. O poder dispara ordens qual uma nuvem de flechas mgicas: as vtimas por elas atingidas oferecem-se elas prprias ao poderoso, convocadas, tocadas e guiadas pelas flechas. A ordem no admite resistncia ou questionamentos, concisa, clara e reconhecida por longo tempo; no se pode discuti-la, explic-la ou coloc-la em dvida e precisa ser entendida de imediato. Caracteriza-se, ainda, pela simplicidade e unicidade, afigurando-se absoluta, bem como pelo fato de que nunca se perde ou se esgota, mas permanece armazenada para sempre. Cada ordem desencadeia uma ao que est atrelada a um momento. A ordem decorre de algo estranho quele que a recebe, mas algo que tem tambm de ser reconhecido como mais forte. Obedece-se porque uma luta no teria nenhuma perspectiva de xito; o vencedor seria aquele que deu a ordem. 47

    Por conseguinte, o poder daquele que d a ordem cresce a cada ordem dada, pois h algo que garante ao poder a segurana e o desenvolvimento de sua esfera. A ordem composta do impulso e do aguilho; o primeiro obriga o receptor ao seu cumprimento, enquanto que o segundo se conserva naquele que o executa. Atenta-se

    41 O impotente, a quem o detentor de poder se afigura imensamente forte, no percebe quo importante para este ltimo a submisso absoluta de todos. Ele s consegue avaliar um aumento de poder se que possui algum faro para isso com base em seu peso real, e jamais compreender o que significa para o rei esplendoroso o ajoelhar-se de seu mais nfimo, esquecido e miservel sdito. (CANETTI, 1995, p. 298).

    42 HOBBES, Thomas. Leviat ou a matria, forma e poder de um estado eclesistico e civil. So Paulo: cone, 2000, p. 162.

    43 CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 281. 44 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998. 45 CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. 46 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 273. 47 CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 305.

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    que este ltimo se mantm oculto quando o atendimento da ordem normal e de acordo com o que se espera dela; entretanto, possvel que se manifeste quase imperceptivelmente antes de seu cumprimento.48

    O contedo da ordem se preserva no aguilho, vez que sua fora foi delimitada no momento da transmisso da ordem. Porm, somente a ordem cumprida crava seu aguilho naquele que a ela obedeceu. Aquele que se esquiva das ordens considerado livre.49

    Em razo da alta capacidade que os aguilhes tm de se aderirem aos homens, podem estes ficar completamente cheios daqueles e no sentirem disposio para mais nada. Neste caso, sentem necessidade de se proteger contra novas ordens, tornando-se, ento, uma questo de vida ou morte.50

    O aguilho surge, portanto, quando do cumprimento da ordem, permanecendo naquele que a cumpre. No h como livrar-se dele. Para libert-lo, necessrio haver uma fora semelhante quela que o penetrou, chamada de inverso. Quando a ordem repetida com frequncia pela mesma fonte e dirigida mesma vtima, estaro se formando idnticos tipos de aguilho. Entretanto, quando a mesma ordem repetida por fontes diversas frequentemente o aguilho perde sua forma e se transforma em um monstro, colocando em risco a vida, inclusive.51

    Direcionando a discusso para a jurisdio enquanto poder do Estado, observa-se que a ordem dada principalmente para fins de fazer cumprir direitos, e que possui dispositivos sancionatrios para fins de obrigar o seu cumprimento. Tal se d porque a funo jurisdicional do Estado possui legitimidade e autoridade.52 Por isso a exposio do prximo item trata da funo jurisdicional do Estado e seu desempenho.

    48 CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995. 49 Ibidem, p. 306. 50 Ele tenta no ouvi-las, a fim de que no tenha de acat-las. Se tem de ouvi-las, no as entende. Se

    obrigado a entend-las, esquiva-se delas da maneira mais surpreendente, fazendo o contrrio do que lhe mandam. Se lhe dizem para dar um passo adiante, ele recua; se o mandam recuar, adianta-se. No se pode afirmar que dessa forma ele fique livre da ordem. Trata-se de uma reao desajeitada, impotente poder-se-ia dizer , pois, sua maneira, tambm ela determinada pelo contedo da ordem. (CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 322-323).

    51 Ibidem, p. 328. 52 A autoridade entendida como o simples poder estabilizado a que se presta uma obedincia

    incondicional, pois pressupe um juzo de valor positivo em sua relao com o poder. Pode-se dizer que na autoridade a aceitao do poder como legtimo que produz a atitude mais ou menos estvel no tempo para a obedincia incondicional s ordens ou s diretrizes que provm de uma determinada fonte. Naturalmente, isto se verifica dentro da esfera de atividade qual a autoridade est ligada ou dentro da esfera de aceitao de autoridade. Na verdade, uma relao de autoridade como toda e qualquer outra relao de poder diz respeito a uma esfera que pode ser mais ou menos ampla ou mais ou menos explcita e claramente delimitada. Acrescente-se que a disposio para a obedincia incondicional, embora durvel, no permanente. A fim de que a relao de autoridade possa prosseguir, de tempos em tempos deve ser reafirmada ostensivamente a qualidade da fonte do poder qual atribudo o valor que funda a legitimidade. (BOBBIO, Norberto. Dirio de um sculo. 2. ed. Rio de Janeiro: Campus, 1998, p. 90).

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    21

    2222.3 A jurisdio.3 A jurisdio.3 A jurisdio.3 A jurisdio

    Conforme o debate proposto, o poder estatal s existe em razo de uma ordem instituidora, de forma que um mande e os outros obedeam. O Estado descrito como o poder que se encontra por trs do Direito, que impe o Direito. Se tal poder existe, pelo fato de que o Direito em si efetivo e na ideia de que normas jurdicas prevendo sanes motivam a conduta dos indivduos e exercem uma compulso psquica sobre os indivduos. 53

    Alm disso, a aplicao ou criao de penas e sanes, principalmente as mais violentas e cruis, influencia os homens. O inconveniente ocorre quando o governo pretende corrigir os cidados se utilizando de maneiras brutas que apenas implicam em uma soluo temporria e instantnea, gerando ao mesmo tempo desgaste dos mecanismos do governo e desprezo por parte daquele que recebeu a pena. Isto ocorre porque a imaginao acostuma-se com esta grande penalidade, assim como se tinha acostumado com a menor; e, como se diminuiu o temor por esta, -se forado a estabelecer a outra para todos os casos. A conduta humana no deve ser regida de forma extrema e descomedida, mas sim, atravs de meios naturais e coerentes. Examinemos a causa de todos os relaxamentos e veremos que eles vm da impunidade dos crimes e no da moderao das penas. Sigamos a natureza, que deu aos homens a vergonha como flagelo, e seja a maior parte da pena a infmia de sofr-la. 54

    De acordo com o anteriormente analisado, a ordem dada pretende atingir algum especificamente, o qual precisa arranc-la e pass-la adiante para libertar-se de sua ameaa. Uma ordem cumprida satisfaz aquele que a mandou. O medo da ordem se traduz na sensao do perigo, na ameaa e pode tambm se manifestar nos detentores do poder de forma reprimida e oculta.55

    O prazer de condenar rude e cruel e no se deixa perturbar por coisa alguma; desconhece a clemncia da mesma forma como desconhece a cautela. O homem acaba se afastando de algum que se encontra em um grupo inferior e automaticamente se coloca em um grupo superior. Isto , ao rebaixar o outro, acaba se elevando. Assim, formam-se dois grupos distintos, mas a existncia de dois

    53 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do estado. 3. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 274. 54 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O esprito das leis. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p.

    95. 55 No difcil compreender como ocorre esse medo da ordem. Um tiro que mata um ser isolado no

    resulta em perigo algum. O morto no pode mais fazer nenhum mal quele que o matou. Uma ordem que, embora ameaando com a morte, acaba por no matar, deixa para trs a lembrana da ameaa. Algumas ameaas erram o alvo; outras, porm, o atingem, e so estas que jamais so esquecidas. Aquele que fugiu da ameaa ou cedeu a ela, este ir certamente vingar-se. Chegado o momento, ele sempre se vinga, e aquele de quem a ameaa partiu tem conscincia disso: ele tem de fazer de tudo para tornar impossvel uma tal inverso. A sensao do perigo a de que todos aqueles aos quais se deu ordens, todos os ameaados de morte, esto vivos e se lembram , um perigo ao qual se estaria exposto se todos os ameaados de morte se juntassem contra aquele que os ameaou; esse sentimento profundo, mas que permanece indefinido, porque no se sabe quando os ameaados passaro da lembrana ao; esse sentimento torturante, inexaurvel e ilimitado do perigo , pois, o que eu chamo de medo da ordem. (CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 309).

  • 22 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    grupos, representando valores opostos, tida por natural e necessria. Quem quer que seja bom, esse bom existe para destacar-se do mau, e o prprio homem define quem pertence a uma ou outra categoria. 56

    Justamente por isso o homem possui grande necessidade de se agrupar e reagrupar, conferindo densidades aos grupos contrapostos. Ao cri-los, imagina e deseja oposio entre eles, como se os grupos tivessem de lutar entre si. Julga, desta forma, aquele que bom ou mau, atravs de uma classificao dualista no conceitual ou pacfica. O que importa a tenso existente entre os dois grupos, tenso esta que aquele que julga cria e renova. 57

    Este prazer de condenar nada mais do que o poder estatal que busca disciplinar a conduta humana e constituir elementos capazes de resolver disputas e conflitos, atravs de meios jurdicos hbeis composio dos litgios. Porm, a complexidade de uma sociedade conflituosa e violenta dificulta a busca de respostas jurdicas suficientes e eficientes para a soluo de suas controvrsias. Assim, cabe ao judicirio a imposio de uma soluo, pois a ele que se defere, com exclusividade, a legitimao de dizer o Direito (jurisdio). 58

    A jurisdio, portanto, uma funo estatal que, em consequncia de transformaes histricas, passou a ser monopolizada pelo Estado. Isso ocorre porque h uma terceira pessoa dotada de neutralidade e imparcialidade que deve decidir o conflito, impondo o Direito positivado com o intuito de assegurar a convivncia e harmonia social. Por isso, esta forma de decidir conflitos no considerada democrtica, visto que emana exclusivamente da soberania estatal.59

    Nesse sentido, Eligio Resta60 vai mais longe ao afirmar que quando se recorre ao Juiz se perde a face, pois a tarefa do Juiz a de assumir decises com base em decises e de permitir decises com base nas mesmas decises. Mas, paradoxalmente, em um sistema de altssima complexidade, se sabe, quanto mais se decide, tanto mais se aumenta vertiginosamente a necessidade das decises.

    Alm disso, ao juiz, pede-se que decida, que diga a ltima palavra com na base da lei e no que desenvolva a tarefa de cimento social que compete a outros mais preparados fazer. Porm, sabe-se que o resultado paradoxal: incorpora-se no interior das competncias judicirias cada gnero de linguagem funcional, embocando, obviamente, uma estrada errada. 61

    Portanto, os juzes, com os mecanismos legais que lhe so postos disposio, no tm conseguido solucionar em definitivo as controvrsias, que se encerram de uma maneira meramente formal, ou seja, com a extino do processo em si. Todavia, os problemas persistem e a falta de criatividade dos magistrados tem impedido que

    56 Ibidem, p. 297. 57 Ibidem, p. 297. 58 BOLZAN DE MORAIS, Jos Luis; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediao e arbitragem: alternativas

    jurisdio!. 2. ed., rev. e ampl. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2008. 59 Ibidem. 60 RESTA, Elgio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 116. 61 Ibidem, p. 100.

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    sejam buscadas formas alternativas, dentro dos mecanismos legais j existentes, para se resolver, em definitivo, a controvrsia.62

    Logo, a crise jurisdicional est diretamente vinculada crise estatal, haja vista o crescimento e a complexidade de conflitos sociais aliados falta de estrutura fsica, tecnolgica e financeira do Estado, o rebuscamento da linguagem jurdica, o acmulo de processos, entre outros.

    Nessa esteira, presencia-se uma crise da dogmtica jurdica positivista que tambm uma crise do Estado e, por conseguinte, do Poder Judicirio, assim como de todos os aplicadores do direito, em especial os juzes, cuja redefinio se faz urgente e necessria a fim de que se possa dar uma nova conotao ao direito, para que seja efetivamente mais justo.

    Eligio Resta63 tambm faz referncia ao tema quando aborda a lgica dos remdios, referindo que muitas vezes se tenta solucionar um conflito sem atacar sua verdadeira causa. Neste caso,

    os conflitos aumentam progressivamente e se atribui tudo isso ineficincia decorrente da falta de recursos; pedem-se, assim, aumentos consistentes de recursos, pensando que assim os conflitos podem ser diminudos. No somente a interferncia causal resulta gratuita, mas nos coloca em uma lgica remedial que contribui, por si s, no somente a no resolver, mas inclusive a inflacionar o saldo de procura e oferta. Sem referir-se ao carter culturalmente induzido da demanda por parte da oferta, que um discurso possvel e corroborado pelos dados quantitativos, o problema de policy que emerge aquele de um sistema que investe no remdio sem incidir nas causas; assim, aumentam os recursos do aparato judicirio, mas continua somente a iluso de que isto faa diminuir os conflitos. O remdio reage sobre o remdio, mas no tem nenhuma direta incidncia sobre as causas, dimenses, efeitos da litigiosidade que determinam os conflitos.

    Desse modo, preciso repensar o atual modelo de jurisdio objetivando

    garantir novas formas de solucionar as contendas e procurando seu tratamento de forma consensual, solidria, fraterna. A partir de novas alternativas que visam aproximao das partes, como o consenso e o acordo, com a confrontao de vontades e interesses entre ambas, facilitando sua comunicao, sem procedimentos adstritos s regras estatais, ser possvel chegar a uma deciso de forma pacfica e que as satisfaa.

    62 MORAIS, Jos Luis Bolzan de; SPENGLER, Fabiana Marion. Mediao e arbitragem: alternativas jurisdio!. 2. ed., rev. e ampl. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2008

    63 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 104.

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    3333 DIREITO FRATERNODIREITO FRATERNODIREITO FRATERNODIREITO FRATERNO

    A proposta fraterna o embasamento terico da mediao e das demais formas

    alternativas de resoluo de conflitos sociais, pois insere uma cota de complexidade no primado do justo sobre o bom, procurando alimentar de paixes quentes o clima rgido das relaes. Sem esquecer que a ela est necessariamente atrelada a ideia de amizade, na medida em que prev a comunho de destinos derivada do nascimento e independente das diferenas. A mediao, por sua vez, definida como a interferncia em uma negociao ou em um conflito de uma terceira parte aceitvel, tendo um poder de deciso limitado ou no-autoritrio, e que ajuda as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo, mutuamente aceitvel com relao s questes em disputa. 64

    Contudo, a fraternidade possui um sentido vagamente anacrnico, pois se comparada aos outros ideais presentes no cenrio da revoluo iluminista pode ser considerada como a parente pobre, prima do interior, porquanto permaneceu indita e irresolvida em relao aos outros temas da igualdade e liberdade e retorna hoje com prepotncia, quanto mais o presente impe, com as suas aceleraes jacobinas, a questo do global, da dependncia de tudo e de todos. A fraternidade indicava apenas um dispositivo de vaga solidariedade entre as naes; tinha mais a ver com os princpios de um direito internacional nascente, que deixava intacta, bem como pressupunha, uma comunidade poltica fundada nos princpios dos Estados nacionais, mas sua solidificao inaugura uma nova oportunidade no tratamento de conflitos.65

    Por isso a importncia de re-propor aquelas condies que j se haviam apresentado no passado, interrompendo a linearidade ditada pelo tempo. Vive-se hoje uma poca em que se desgasta a forma estatal das pertenas fechadas, governadas por um mecanismo ambguo que inclui os cidados, excluindo todos os outros; identifica-se uma singular contemporaneidade no contempornea de ideias, smbolos e eventos; recoloca-se em questo a comunho de pactos entre sujeitos concretos com as suas histrias e as suas diferenas. H necessidade de se apostar no cdigo da fraternidade, que, por sua vez, compreende um espao mais ou menos artificial onde se deve tentar dar corpo a um modelo de vida compartilhada.66

    64 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 9-12.

    65 Ibidem, p. 9-12. 66 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 16: o Direito Fraterno compreende um modelo de direito que abandona a fronteira fechada da cidadania e olha em direo nova forma de cosmopolitismo que no representada pelos mercados, mas pela necessidade universalista de respeito aos direitos humanos que vai se impondo ao egosmo dos lobos artificiais ou dos poderes informais que sua sombra governam e decidem. Fala-se, portanto, de uma proposta frgil, infundada, que aposta sem impor, que arrisca cada desiluso, mas que vale a pena cultivar: vive de expectativas cognitivas e no de arrogncias normativas.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    O binmio direito e fraternidade, deste modo, alm de ser uma tentativa de valorizar uma possibilidade diferente, recoloca em jogo um modelo de regra da comunidade poltica: modelo no vencedor, mas possvel. Portanto um trecho do direito vivo67 que no deve ser visto sempre como o direito vencedor [...]. Atravs daquele binmio retorna um modelo convencional de direito, jurado conjuntamente entre irmos e no imposto, como se diz, pelo pai senhor da guerra. Jurado conjuntamente, mas no produzido por um conluio. Por isso decisivamente no violento isto , capaz de no apropriar-se daquela violncia que diz querer combater.68

    O Direito Fraterno tambm se sustenta atravs dos direitos humanos, que se estabeleceram ao longo de toda a histria da humanidade e possuem carter de universalidade, j que so aplicados a todos os cidados. Os direitos humanos resultaram, por conseguinte, de vrios processos histricos e que ainda hoje sofrem alteraes em razo da globalizao mundial. Resta69 assevera que o Direito Fraterno coincide com o espao de reflexo ligado ao tema dos Direitos Humanos, com uma conscincia a mais: a de que a humanidade apenas um lugar comum, somente em cujo interior pode-se pensar o reconhecimento e a tutela.

    O autor deixa clara, porm, a diferena entre ser homem e ter humanidade: ser homem no garante que se possua aquele sentimento singular de humanidade. A linguagem, com as muitas sedimentaes de sentido que encerra, um infinito observatrio dos paradoxos com os quais convivemos. 70

    Ao discorrer sobre os direitos humanos, Resta71 assevera, ainda, que ao mesmo tempo em que eles somente podem ser ameaados pela prpria humanidade, graas a esta que entram em vigor; e o direito fraterno pode ser a forma mediante a qual pode crescer um processo de auto-responsabilizao, desde que o reconhecimento do compartilhamento se libere da rivalidade destrutiva tpica do modelo dos irmos inimigos.

    Podem ser definidos como o direito inerente a toda e qualquer pessoa, visando proteo e resguardo da integridade dos cidados. O interessante que os direitos humanos vm adquirindo cada vez mais solidez com o evoluir da humanidade, possuindo carter internacional em face da criao de normas de proteo internacional da pessoa humana.

    67 O verdadeiro Direito aquele que pode ser denominado direito vivo, que no se prende a doutrinas ou prescrio estatal, acontecendo a partir da vida concreta das pessoas e de suas relaes entre si e com as mais variadas instituies. A eficcia desse Direito repousa em sanes que, diversamente das estatais, se fundam na presso coletiva e na prpria fora que emana das associaes coletivas (ameaa de expulso do grupo, da famlia, da igreja, do partido, risco de perder o crdito, etc) e no em uma pena. EHRLICH, Eugen. Fundamentos da sociologia do direito. Braslia: UnB, 1986. p. 27 et seq. e p. 286.

    68 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 15.

    69 Ibidem, p. 13. 70 Ibidem, p. 13. 71 Ibidem, p. 13.

  • 26 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    Alm disso, esto ligados ideia de cidadania, como bem refere Eligio Resta72, ao tratar das estruturas fundamentais do Direito Fraterno:

    o seu olhar voltado para alm do confim, para proximidades distantes, requer revogaes decisivas daquele direito de cidadania, que , desde sempre, lugar de excluso atravs de um ethnos. Por isso, a sua forma aquela dos direitos humanos, contanto que eles sejam esvaziados da metafsica. O olhar vai para a humanidade como um lugar comum, e no como a abstrao que confunde tudo e mascara as diferenas. Os direitos humanos tm uma dimenso ecolgica, so espao no qual as duplas opositivas so novamente compreendidas: isto nos leva conscientizao de que os direitos humanos podem ser ameaados sempre e somente pela prpria humanidade; mas podem ser tutelados sempre e somente pela prpria humanidade; no por uma natureza, um Deus, um Terceiro, qualquer outra abstrao metafsica, mas pelos homens de carne e osso, por ns, na vida quotidiana.

    A proposta fraterna citada pelo autor tambm encontra amparo na lei da

    amizade, que, por outro lado, contrariada pelas guerras, violncia, inimizade e inveja. Ao dedicar um captulo inteiro para tratar da amizade, Resta73 refere que sua beleza possui dimenso paradoxal e que quanto mais perde seu carter de argamassa espontnea da sociedade, mais ela tem necessidade de ser prescrita por uma lei que no contenha apenas imperativos tico-religiosos, mas estritamente jurdicos. Sobre o assunto o item a seguir. 3333.1 A lei da amizade.1 A lei da amizade.1 A lei da amizade.1 A lei da amizade

    O autor menciona diversas caractersticas inerentes amizade, dentre elas, que

    os amigos so muitas vezes desconhecidos ao se furtarem do vnculo da reciprocidade quotidiana pode-se compartilhar a vida sem compartilh-la vez que capaz de unir independentemente de vnculos ou liames visveis. Os amigos podem no ser conhecidos, mas poderiam em cada momento ser reconhecidos, e a este difcil evento do reconhecimento que se remete sua visvel concretude. Ademais, possvel saber quando a amizade finda ou at mesmo continua, em razo de um desacordo, por exemplo; porm, difcil saber quando se inicia, pois se manifesta pouco a pouco.74

    Para Alberoni75 a amizade surge sob a forma de conhecimento superficial; aps o estabelecimento de relaes amistosas, troca de favores e ajudas em momentos difceis, aos poucos se tornam amigos. Porm, importante referir que no nos tornamos amigos daqueles com os quais estamos mais frequentemente em contato, daqueles com os quais trocamos mais frequentemente favores. A amizade tende a

    72 Ibidem, p. 134. 73 Ibidem, p. 20. 74 Ibidem, p. 21. 75 ALBERONI, Francesco. A amizade. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 13.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    fugir de tudo quanto imposto, do que dado. O mesmo autor76 tambm a compara com um anacronismo, j que em uma sociedade justa as posies so atribudas no na base da amizade, mas do merecimento avaliado de maneira imparcial. Os servios sociais devem dirigir seus prstimos no s pessoas recomendadas, mas a todos.

    Segundo a concepo aristotlica77, na amizade at pessoas desiguais podem ser amigas, pois assim elas podem ser igualizadas; ela pressupe igualdade e semelhana, especialmente a semelhana daquelas pessoas que se assemelham em excelncia moral.

    Desse modo, reconhecer-se amigo, reconhecer a amizade como reencontrar algo que existia, mas ainda no tinha visibilidade; nela, no tanto a incapacidade de ver a amizade onde ela j se encontra, mas sim, o fato de que, existindo independentemente do gesto voluntarista e subjetivo de procur-la, ela estabelece por si s contedos de um vnculo que vive de comunidade. A amizade a forma mais significativa de uma comunidade possvel que vive espera de reconhecimentos, mas que tambm vive independentemente deles. E comunidade que no diferencia a pertena com base nos bens, mas que identifica formas complexas da identidade: isso significa que no h outra motivao na amizade do que aquilo que Montaigne indicava como a ausncia de objetivos e, portanto, o mximo do reconhecimento da identidade, porque s tu, porque sou eu.78

    No se deve, entretanto, confundir boa vontade com amizade: possvel ter boa vontade em relao a pessoas que no conhecemos, e sem que elas saibam disto, mas no pode ocorrer o mesmo com a amizade. A boa vontade no um sentimento amistoso, no envolve intensidade ou desejo e pode manifestar-se subitamente. Pode ser considerada

    um incio de amizade, da mesma forma que o prazer de olhar o incio do amor. Efetivamente, ningum ama se no fica enlevado primeiro com a figura da pessoa amada, mas quem fica enlevado com a figura de uma pessoa, nem por isto a ama; s se ama quando se anseia pela pessoa ausente e se deseja intensamente sua presena; da mesma forma, as pessoas no podem ser amigas se no passam a sentir uma boa vontade recproca, mas nem por isto as pessoas que sentem boa vontade recproca so amigas; elas somente desejam o bem das pessoas pelas quais sentem boa vontade, e nada fariam por elas nem se preocupariam com elas. Sendo assim, poderamos estender o alcance da palavra amizade para dizer que a boa vontade uma amizade esttica, embora quando se prolonga e atinge o nvel da intimidade ela se torne amizade propriamente dita, mas no a amizade baseada no interesse ou no prazer [...].79

    76 Ibidem, p. 5. 77 ARISTTELES. tica a nicmacos. 4. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2001, p. 162. 78 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 23. 79 ARISTTELES. tica a nicmacos. 4. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2001, p. 180.

  • 28 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    O mundo moderno contribui para a acelerao do processo de ambivalncia da amizade, fazendo com que esta se torne ao mesmo tempo lugar de incluso e excluso. Isto , a contingncia da amizade se apresenta ao mundo das relaes mundanas com esta faceta dplice de re-proposio da solidariedade comunitria e de sua negao. Este paradoxo amplo, pois se constitui de movimentos diversos, mas complementares; a amizade separa reaproximando, dita regras ao mesmo tempo em que as tolera, inclui porque exclui, avizinha porque distancia, reconstri tecidos vitais enquanto destri outros; parece, como o amor, uma improbabilidade normal. 80

    Alberoni81, ao contrrio de Resta, atribui a ambivalncia vida quotidiana, pois h mistura de sentimentos em relao s pessoas e assevera que a amizade a nica relao afetiva incompatvel com a ambivalncia, vez que no podemos ser ambivalentes com relao aos amigos. Se o formos a amizade sofrer com isso e, se a ambivalncia continuar, ela se apagar. Esse , provavelmente, o motivo pelo qual os amigos preferem ver-se de vez em quando, quando esto com vontade, a viverem juntos. certo que uma convivncia contnua cria, inevitavelmente, motivos de dissabor, de ressentimento, pequenas coisas que, somadas, podem tornar-se grandes. A convivncia tende a consolidar os relacionamentos afetivos mas, ao mesmo tempo, divide. Os enamorados escolhem esta estrada e este risco porque tendem fuso. A amizade, porm, prefere renunciar fuso em favor do encontro. O encontro sempre positivo.

    Aquele que encontra um amigo encontra um tesouro, pois

    a amizade reproduz no interior toda a ambivalncia das diferenciaes. Se a existncia de um amigo consola ou permite reencontrar autenticidade num mundo hipcrita, no suporta, por isso, que se reintroduza no interior da amizade algum clculo pr-estabelecido, como o interesse ou a mentira, mas, livre do domnio do interesse, no tolera sequer a mesma obrigao da solidariedade e o mesmo valor da partilha [...]. Mas exatamente graas internalizao das diferenas entre interao e sociedade h a necessidade de acreditar que se amigo de algum (porque ele ou ela), enquanto que no somos amigos ou, at mesmo, somos inimigos, de outros.82

    Os amigos devem compartilhar suas imagens reciprocamente, no devem

    explicaes e seus atos so livres; a amizade possui contedo tico e aspira a um ideal de perfeio moral. No necessariamente se escolhem amigos aqueles pelos quais se possui estima, pois a amizade no apenas estima, no apenas admirao.83

    80 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2004, p. 25.

    81 ALBERONI, Francesco. A amizade. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, 107. 82 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 31. 83 ALBERONI, Francesco. A amizade. Rio de Janeiro: Rocco, 1992, p. 34.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

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    Para Aristteles84 os amigos so refgios em casos de infortnio e ajudam os jovens a evitar os erros, bem como as pessoas idosas, amparando-as em suas necessidades e suplementando sua capacidade de ao reduzida pela senilidade. Amigos estimulam as pessoas na plenitude de suas foras prtica de aes nobilitantes e junto deles as pessoas so mais capazes de pensar e de agir.

    Assim, a simples presena de um amigo nos agradvel, especialmente se estamos na adversidade, e se torna uma salvaguarda contra as aflies, pois um amigo tende a confrontar-nos tanto com sua presena quanto com suas palavras se ele perspicaz, j que ele conhece nosso carter e as coisas que no do prazer ou nos fazem sofrer; mas ver um amigo sofrer com nosso infortnio nos causa sofrimento, pois qualquer pessoa evita causar sofrimento aos amigos.85

    Aristteles86 entende que at uma pessoa extremamente feliz e autossuficiente precisa de amigos, porque estes so considerados o maior dos bens exteriores, e pelo fato de que as pessoas felizes tambm necessitam de algum a quem possam fazer bem.

    Chega-se ao ponto mais alto da amizade quando possvel manter ao mesmo tempo a diferena entre os singulares e o direito a no ser, por ela, discriminados, atravs, especialmente, da igualdade entre irmos que traduzida pela verdadeira igualdade entre amigos. A igualdade fraterna, por sua vez, ao mesmo tempo, pressuposto da forma jurdica da democracia e fim poltico ltimo a ser alcanado atravs dos princpios normativos.87

    A amizade se divide em duas espcies, segundo Aristteles88: as pessoas ms sero amigas por prazer ou por interesse, porquanto se assemelham sob este aspecto, enquanto que as pessoas boas so amigas porque so como so, isto , por causa de sua bondade. Aqueles so amigos acidentalmente ao mesmo tempo em que estes so irrestritamente. A que se baseia no prazer mais parecida com a amizade quando ambas as partes obtm reciprocamente os mesmos benefcios, na medida em que a amizade por interesse para as pessoas mercenrias.

    Ainda, possvel a existncia de uma amizade perfeita quando h pessoas boas e semelhantes em termos de excelncia moral; neste caso, cada uma das pessoas quer bem outra de maneira idntica, porque a outra pessoa boa e elas so boas em si mesmas. Ento as pessoas que querem bem aos seus amigos por causa deles so amigas no sentido mais amplo, pois querem bem por causa da prpria natureza dos amigos e no por acidente; logo, sua amizade durar enquanto essas pessoas forem boas e ser bom uma coisa duradoura. Cada uma dessas pessoas neste caso boa irrestritamente e boa em relao ao seu amigo, pois as pessoas boas so boas irrestritamente e so reciprocamente teis.89

    84 ARISTTELES. tica a nicmacos. 4. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2001, p. 153. 85 Ibidem, p. 189. 86 Ibidem, p. 185. 87 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 36. 88 ARISTTELES. tica a nicmacos. 4. ed. Braslia: Editora Universidade de Braslia, 2001, p. 158. 89 Ibidem, p. 156.

  • 30 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    No se pode, no entanto, ser amigo de muitas pessoas tentando manter uma amizade perfeita com elas, pois, para tanto, ambas as partes devem adquirir experincia recproca e tornar-se ntimas, o que muito difcil.90

    Transportando a amizade para os dias de hoje, numa dimenso global, possvel encontrar a indicao de uma sociedade fraterna enquanto aposta na prpria humanidade, contida no chamado amigo da humanidade, que o indivduo moral e racional que, conscientemente, conhece os riscos, mas, gandhianamente, aposta na existncia de um bem comum, que o bem da humanidade em si mesmo. Paradoxalmente, amigo da humanidade quem compartilha o sentido de humanidade e dela se sente parte, assumindo, tambm, a existncia do inimigo; no o demoniza, nem o descarta, jogando-o em outro mundo, mas assume inteiramente o seu problema. A rivalidade reside, portanto, em ns mesmos, dentro da prpria humanidade: assim, o amigo da humanidade no simplesmente o oposto do inimigo, mas algo diverso que, graas a sua diversidade, capaz de superar o carter paranoico da oposio.91

    No entanto, em oposio ideia de amizade encontramos a inimizade, a violncia e as guerras, cujo tema objeto do debate seguinte.

    3333.2 Da inimizade s guerras.2 Da inimizade s guerras.2 Da inimizade s guerras.2 Da inimizade s guerras

    Conforme Resta92, a guerra um fenmeno da existncia que em sua tragicidade

    envolve as conscincias e representa um sinal visvel do desconforto da civilizao, que deve ser tornado explcito para que se obtenha algum resultado concreto; e a concretude estimula a liberar o campo dos ordenamentos inteis e a formular questes precisas sobre os sentimentos humanos. Aduz que a guerra se autoalimenta e se auto-justifica em um processo circular que no quebra. E basta desviar o olhar para as guerras em ato, para perceb-lo.

    Montesquieu93, ao falar da guerra, relaciona sua causa ao direito de conservao do Estado, pois para os cidados o direito defesa natural no exige a necessidade de um ataque. Assim, o direito guerra deriva ento da necessidade e do justo rigoroso. Se aqueles que dirigem a conscincia ou os conselhos do prncipe no se mantiverem a, tudo estar perdido; e, enquanto estiverem fundamentados nos princpios arbitrrios de glria, de convenincia, de utilidade, ondas de sangue inundaro a terra.

    Para Canetti94, na guerra, o que interessa matar, na medida em que o vencedor aquele que mais inimigos matou. Trata-se da utilizao de fenmenos blicos pelo homem, que deseja antecipar-se morte e age em massa. Ou seja,

    90 Ibidem, p. 159. 91 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 50. 92 Ibidem, p. 168. 93 MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O esprito das leis. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 1996, p.

    150. 94 CANETTI, Elias. Massa e poder. So Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 67.

  • Mediao de conflitos a partir do Direito Fraterno

    31

    ao lut-la, busca-se sempre a superioridade isto , dispor do grupo mais numeroso e explorar em todos os aspectos a fraqueza do adversrio, antes que ele prprio aumente o seu nmero. A conduo da guerra , pois, no mbito particular, um quadro exato daquilo que se passa no mbito geral: quer-se constituir a massa maior de vivos. Que pertena ao lado oposto o amontoado maior de mortos. Nessa disputa das massas em crescimento situa-se uma causa essencial, a causa mais profunda poder-se-ia dizer das guerras. Em vez de mortos, podem-se fazer tambm escravos particularmente mulheres e crianas , os quais serviro, ento, para aumentar a massa dos vencedores. A guerra, contudo, jamais realmente guerra se no visa primeiramente um amontoado de inimigos mortos. [...] Fala-se em batalha e em matana. Fala-se em derrota. Torrentes de sangue tingem os rios de vermelho. O inimigo massacrado at o ltimo homem. Os guerreiros se batem at o ltimo homem. No h perdo.

    Segundo Canetti95, ainda, a formao da massa beligerante um processo

    enigmtico que envolve a ameaa de aniquilao fsica perante o mundo todo: tal ameaa consiste no fato de algum arrogar-se o direito de matar outra pessoa. Compara a ecloso de uma guerra com a erupo de duas massas, vez que seu propsito manter-se em sua disposio e ao e abandon-las seria abrir mo da prpria vida.

    Eligio Resta96 explica que a guerra, alm de ativar sentimentos, mede a histria individual e coletiva, construindo uma representao do tempo, bem como destri qualquer distncia de segurana entre o ator e observador. Ainda, evento que constri memria porque impe mudanas nas nossas posturas sobre questes como a vida e a morte e que pronuncia o fim do sonho de uma existncia coletiva pacfica.

    A guerra tudo desorganiza e revira qualquer ordem, trazendo consigo novos horrores; a evoluo no torna mais dceis e humanas as tcnicas blicas, mas as torna mais cruis e insuportveis. Deixa-nos confusos sem poder mais reconhecer a diferena entre o estrangeiro e o inimigo e, o que mais importante ao olhar de um analista, descobre-se que a rivalidade e a inimizade esto dentro de ns mesmos. O si mesmo da humanidade o lugar daquela ambivalncia emotiva que edifica e destri, que ama e odeia, que vive da solidariedade e de prepotncias, de exrcitos e de hospitais, de amizades e inimizades, tudo ao mesmo tempo e no mesmo local.97

    Por isso que na guerra a humanidade ameaa a si mesma e neste ponto que reside a diferena, j mencionada anteriormente, entre ser homem e ter humanidade.

    Ao analisar o dilogo entre Freud e Einstein sobre os motivos da guerra, Resta98 aponta sua importncia em razo da profundidade trazida sobre a reflexo do

    95 Ibidem, p. 71. 96 RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz do Sul:

    Edunisc, 2004, p. 42. 97 Ibidem, p. 41. 98 Ibidem, p. 40.

  • 32 Ana Carolina Ghisleni e Fabiana Marion Spengler

    pacifismo em um perodo tormentoso da Europa; alm disso, torna-se ao mesmo tempo atual: inexiste alguma razo para a guerra, mas, mesmo assim ela sempre retorna. Na verdade, o texto aborda questes sobre a sociedade contempornea e suas contradies:

    aquilo que est em jogo nos desdobramentos desta reflexo sobre a guerra, so as formas autodestrutivas, a tessitura paciente da paz por parte das instituies polticas, o desencantamento, o trabalho quotidiano das burocracias sem alma, as utopias e os encorajamentos ideais, as paixes e as tantas razes pelas quais vale a pena realizar esforos comuns. E a forma dialtica do confronto confere ao texto uma profundidade que talvez nenhum tratado cientfico pode reservar-lhe; imediato e rigoroso ao mesmo tempo, esse debate abre um horizonte que transcende a poca, os anos trinta, e lana luzes sobre os contornos de um problema que muda no tempo, permanecendo sempre igual [...].99

    A primeira carta foi escrita por Albert Einstein100 em 30 de julho de 1932 a

    Sigmund Freud abordando questes sobre a guerra, especialmente suas razes. Alm disso, Einstein esperava poder encontrar nos estudos e descobertas recentes realizados por Freud respostas, explcitas ou implcitas, a todos os aspectos desse problema urgente e obsessivo, j que sua apresentao poderia demarcar o caminho para novos e frutferos mtodos de ao.101

    Einstein iniciou a carta questionando se existia alguma forma de livrar a humanidade da ameaa de guerra. Afirmou que uma forma superficial para abordar o problema seria a instituio, por meio de acordo internacional, de um organismo legislativo e judicirio para arbitrar todo conflito que surgisse entre naes. Deste modo, as naes se submeteriam s ordens deste organismo, porm, estaria sujeito anulao de suas decises por meio de presses extrajudiciais. A busca da segurana internacional envolve a renncia incondicional, por todas as naes, em determinada medida, sua liberdade de ao, ou seja, sua soberania e absolutamente evidente que nenhum outro caminho pode conduzir a essa segurana.102

    Ventura e Seitenfus103 afirmam que Einstein tambm refere que o insucesso compreende fatores psicolgicos, como por exemplo, o desejo de poder, que caracteriza a classe governante de cada nao, pois a

    99 Ibidem, p. 41. 100 Segundo Resta (RESTA, Eligio. O Direito Fraterno. Traduo de Sandra Regina Martini Vial. Santa Cruz