mediação comunitária. uma ferramenta de acesso à justiça?

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Esse trabalho investiga a mediação comunitária como ferramenta de acesso à justiça para a população de baixa renda no Brasil, a partir da sua implementação por meio de um projeto social, conduzido nos limites de uma organização não governamental. Sua elaboração partiu do estudo sobre o funcionamento de três núcleos do “Balcão de Direitos” da ONG Viva Rio. A resolução de conflitos em ambiente institucional, caracterizada pela impositividade do direito, difere da disputa administrada em ambiente informal, onde a vontade e a cooperação dos pares são os elementos que conduzem a efetividade da lei. O “campo” objeto do presente estudo conforma uma arena interacional com características peculiares que comporta poder comunicacional, autoridade e legitimidade local. Analisando a atividade dos núcleos de mediação do “Balcão de Direitos”, observamos a sua vocação para a valorização da cidadania, sendo a mediação comunitária entendida como um processo multidisciplinar e transversal orientado para o “empoderamento” dos setores vulneráveis, através do investimento nas formas de “comunicação” entre os interlocutores das possíveis relações sociais. Contudo, o modelo pelo qual tal enfrentamento poderia ser conduzido parece, ainda, uma hipótese sujeita a melhor verificação.

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FUNDAO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORANEA DO BRASIL CPDOC PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA POLTICA E BENS CULTURAIS PPHPBC MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

TTULO

Mediao Comunitria. Uma Ferramenta de Acesso Justia?Trabalho de Concluso de Curso apresentado por Angela Hara Buonomo Mendona

E APROVADO EM _____________ PELA BANCA EXAMINADORA

________________________________________________________ HELENA MAR IA BOMENY GARCHET- DOUTORA - ORIENTADORA ________________________________________________________ DR. MRIO GRYNSZPAN - DOUTOR ________________________________________________________ DRA. ELIANE BOTELHO JUNQUEIRA - DOUTORA

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FUNDAO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORANEA DO BRASIL CPDOC PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA POLTICA E BENS CULTURAIS PPHPBC MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

TTULO

Mediao Comunitria. Uma Ferramenta de Acesso Justia?

Trabalho de Concluso de Curso apresentado ao Programa de PsGraduao em Histria, Poltica e Bens Culturais (PPHPBC) do Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil - CPDOC para obteno do grau de Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais.

Angela Hara Buonomo Mendona

Rio de Janeiro, janeiro de 2006

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FUNDAO GETULIO VARGAS CENTRO DE PESQUISA E DOCUMENTAO DE HISTRIA CONTEMPORANEA DO BRASIL CPDOC PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA POLTICA E BENS CULTURAIS PPHPBC MESTRADO PROFISSIONALIZANTE EM BENS CULTURAIS E PROJETOS SOCIAIS

TRABALHO DE CONCLUSO DE CURSO APRESENTADO POR ANGELA HARA BUONOMO MENDONA

TTULO

Mediao Comunitria. Uma Ferramenta de Acesso Justia?

PROFESSOR ORIENTADOR ACADMICO

____________________________________________________ HELENA MARIA BOMENY GARCHET

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Agradecimentos

minha orientadora Professora Helena Bomeny pelo incentivo, apoio e estmulo a minha nova forma de olhar o mundo.

Aos operadores do Balco de Direitos pela permisso para fazer a pesquisa, colaborao, informaes e, particularmente, aos coordenadores dos ncleos onde realizei meu trabalho, pelo entusiasmo com que me receberam em seu campo.

5 1. RESUMO.

Mendona, Angela Hara Buonomo. Mediao Comunitria. Uma ferramenta de acesso justia? Rio de Janeiro, 2005. 177 p. Dissertao de Mestrado Centro de Pesquisa e Documentao de Histria Contempornea do Brasil CPDOC.

Este trabalho investiga a mediao comunitria como ferramenta de acesso justia para a populao de baixa renda no Brasil, a partir da sua implementao por meio de um projeto social, conduzido nos limites de uma organizao no governamental. Sua elaborao partiu do estudo sobre o funcionamento de trs ncleos do Balco de Direitos da ONG Viva Rio. A resoluo de conflitos em ambiente institucional caracterizada pela impositividade do direito difere da disputa administrada em ambiente informal, onde a vontade e a cooperao dos pares so os elementos que conduzem a efetividade da lei. O campo objeto do nosso estudo conforma uma arena interacional com caractersticas peculiares que comporta poder comunicacional, autoridade e legitimidade local. Analisando a atividade dos ncleos de mediao do Balco de Direitos neste contexto, observei a sua vocao para a valorizao da cidadania, e a mediao comunitria como processo multidisciplinar e transversal orientado para o empoderamento dos setores vulnerveis, atravs do investimento nas formas de comunicao entre os interlocutores das possveis relaes sociais. Em minha concluso, o modelo pelo qual tal enfrentamento poderia ser conduzido, parece, ainda, uma hiptese sujeita a melhor verificao.

PALAVRAS-CHAVE: cultura; mediao; mediao comunitria; soluo de conflitos; disputa; comunicao; empoderamento; comunidade de baixa renda; ONG; pblico no-estatal.

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NDICE

INTRODUO

9

CAPITULO 1 Pressupostos Tericos: Mediao e Teoria Social 15

1. A Mediao na sociedade contempornea 1.1. Variaes nos papis do mediador 1.3. Os princpios em que se fundamenta a mediao 1.5. A mediao comunitria

16 18 24 32

1.2. A mediao na histria como mtodo de resoluo de conflitos 20 1.4. A reinveno da tradio da mediao na sociedade moderna 29

2. Trade, tipologia de terceiro e condutas na interao conflituosa 3. A influncia do meio scio-cultural em contextos de resoluo de conflitos

35

38

4. A atitude mediadora como gabarito de cultura 4.1. Modelo de processo para aplicao de conhecimento

40 42

CAPITULO 2 As Instituies de distribuio de justia 46

1. O cenrio brasileiro: o (des)equilbrio entre as dimenses da justia e da solidariedade 46

7

2. As experincias internacionais em mediao de conflitos 3. ONGs no Brasil: as dificuldades inerentes prestao de servios no mbito de polticas pblicas.

52 64

CAPITULO 3 Resultados da pesquisa: Pressupostos metodolgicos e consideraes tericas 70

1. Questes e objetivos de Pesquisa 2. Mtodos de pesquisa de campo 2.1. Definio do objeto de pesquisa 2.2. Estudo de caso 2.3. Observao participante e entrevistas em profundidade 3. A entrada no campo 3.1. O campo 3.2. A coleta de dados e a amostra obtida

70 72 72 74 76 83 85 89

CAPITULO 4 Relato interpretativo dos casos 91

Caso Um: reunio de mediao para fixao de alimentos e regularizao de visitas, com acordo temporrio Caso Dois: mediao familiar com trs pretenses distintas: disputa sobre um bem imvel, fixao de alimentos e regularizao de visitas Caso Trs: encaminhamento para uma mediao de conflito em questo de vizinhana, com envolvimento da Defesa Civil 105 100 96

8

Caso Quatro: tentativa de mediao entre um supermercado e uma pessoa fsica Caso Cinco: mediao para a promoo de um acordo visando a uma ao de divrcio amigvel Caso Seis: mediao visando promoo de uma separao, em caso com precedente de violncia fsica 116 113 109

CAPITULO 5 Entrevista: Vem resolver no Ismael... 121

CONSIDERAES FINAIS

132

BIBLIOGRAFIA ANEXOS 1. Modelos das entrevistas realizadas 2. Modelos de questionrios aplicados no campo 3. As comunidades onde foram desenvolvidos os trabalhos de campo 4. Projeto da lei brasileira sobre Mediao e outros meios pacficos de soluo de conflitos

135

141 146 151 154

GRFICOS 1. Do Balco de Direitos 2. Retrato matemtico das favelas no Rio de Janeiro 168 174

9

1. INTRODUO.

Refletir sobre a mediao em mbito social , de um certo modo, (re)visitar temas como cidadania, democracia, educao, solidariedade e preveno violncia. So valores que norteiam as questes presentes nos atuais debates com vistas a uma sociedade mais justa e igualitria. Facilitadora de novos espaos de participao cidad, a mediao tem sido percebida como uma possibilidade de promover o dilogo e a autodeterminao dos atores envolvidos, constituindo-se em um indispensvel elemento para o incremento e fortalecimento da sociedade civil atual. Os processos de mediao tm sido tratados como portadores de uma feio multidisciplinar e transversal, na medida em que podem servir como instrumento de interao que vai desde os inter-relacionamentos pessoais at as mais complexas interaes com organismos governamentais. Essas caractersticas autorizam os interessados na implementao desse processo a pensar a sua aplicao em espaos como escolas, associaes, entidades religiosas, ambientes comunitrios, agncias governamentais, sindicatos, entre tantos outros grupos em que se vislumbre a nec essidade de trabalhar a diversidade cultural e o uso de espaos comuns, gerando alternativas diretas e eficazes de administrao de conflitos, decorrentes das necessidades e do cotidiano das pessoas, guiadas por suas identidades geogrficas e culturais. neste contexto que estamos considerando uma proposta para a mediao comunitria. preciso explicitar que tais processos no so espontneos. Os desafios previstos para a sua expanso so considerveis. Trata-se do estabelecimento de uma nova abordagem de enfrentamento de conflitos em qualquer mbito e nvel de interao social. Esse desafio exacerbado pelo cenrio existente na Amrica Latina, sia e Caribe, em cujo ambiente os canais de comunicao entre grupos se distanciaram por questes econmicas, culturais e polticas provenientes de

10 longos perodos de autoritarismo e de pouco investimento em mecanismos de democratizao das relaes da sociedade civil e entre a sociedade civil e os organismos de concentrao de poder. A tradio do ordenamento jurdico brasileiro tem se pautado, basicamente, no acesso ao Poder Judicirio formal, negligenciando o momento anterior propositura da ao judicial e da efetividade do referido acesso, o que pode ser ilustrado pelo desconhecimento que a populao tem dos seus direitos e deveres, pelo desequilbrio entre os princpios de justia e solidariedade e pelos elevados custos das taxas de administrao de procedimentos judiciais que restringem, por si s, o alcance da expresso acesso justia. Dentre as inmeras dificuldades que os Judicirios enfrentam, merecem destaque: a perda de confiana da opinio pblica; a obsolescncia e lentido dos procedimentos legais; a escassez de recursos financeiros e a crescente litigiosidade nas relaes sociais. Por outro lado, em diversos pases do mundo, a partir da dcada de 1970, se iniciou um movimento em cadeia1 em busca da transformao das leis processuais e da reformulao do processo judicial, na busca de eficincia, celeridade e simplicidade na sua conduo, o que se fez acompanhar por uma ampla flexibilizao do direito atravs de novas leis, e da interpretao do acesso justia como um significado peculiar e abrangente que no se limita simples entrada, nos protocolos do judicirio de peties e documentos, e abrange uma efetiva e justa composio dos conflitos de interesses, diante da necessidade de respostas ao aumento significativo das demandas sociais. No Brasil essa reao no emergiu das mesmas bases que justificaram o Florence Projec 2: a expanso do welfare state e a efetivao dos novos direitos conquistados ps dcada de 1960, pelas minorias tnicas e sexuais. Surgiu com o movimento social interno iniciado em meados da dcada de 1980, a partir do processo poltico e social de abertura poltica, com foco na excluso - da grande maioria da populao dos direitos sociais bsicos. (Junqueira: 1996).

1

Acess-to-justice movement. Movimento acadmico de cunho jurdico-poltico, com enfoque na ampliao do acesso justia. 2 Florence Project: Projeto coordenado por Mauro Capelletti e Bryant Garth, financiado pela Ford Foundation, 1978, nascido do Acess-to-justice movement.

11 Muito embora, desde o final da dcada de 1980, a sociedade civil brasileira venha se exercitando em torno de uma crescente mobilizao na busca do exerc cio de uma cidadania ampla, ainda carece de polticas pblicas sociais efetivas, que possam contribuir para a reduo da pobreza e da desigualdade social. O descumprimento dos direitos fundamentais (que para uma grande parcela da sociedade so desconhecidos), e a ausncia de iniciativas sociais eficientes so encarados como fatores normais do dia a dia, o que gera uma cultura de resignao, com abdicao de valores indispensveis para a consolidao de um Estado democrtico de direito. Frente a esse cenrio, cientistas sociais vm levantando questes como, por exemplo, que instrumentos seriam eficazes para minimizar o efeito perverso da perda da capacidade de indignao do indivduo? (Santos: 1993). Como resgatar o sentimento de pertencimento de um grupo? (Zaluar:2004). Existe uma forma de reaproximar os indivduos em torno de interesses comuns? (Velho e Kuschnir: 2001). Como superar a barreira da comunicao em sociedades marcadas pela diferena social? (Putnam: 1996). Como trabalhar os efeitos da individualizao em sociedades nas quais as identidades precisam ser conquistadas? (Da Matta:1997 e Velho e Kuschnir: 2001). E, finalmente, para o escopo desse trabalho a questo que se quis colocar foi a seguinte: a mediao comunitria teria vocao para servir como ferramenta de acesso justia material3, para a populao de baixa renda no Brasil, a partir de sua concepo como processo multidisciplinar e transversal, fortalecedor do empoderamento dos setores vulnerveis, atravs do investimento nas formas de comunicao , entre os interlocutores das possveis relaes sociais? O enfrentamento desta questo complexa, embora encontre solo frtil na reflexo acadmica, tem limites muito evidentes no escopo de uma dissertao de mestrado. Assim, uma possibilidade que me pareceu atrativa foi considerar especificamente um experimento de mediao comunitria: o Balco de Direitos, um projeto de Assessoria Jurdica, criado pelo movimento Viva Rio, como uma

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Acesso formal o acesso ao Poder Judicirio, e acesso material o acesso justia propriamente dita (Kelsen, 1997).

12 porta promotora do exerccio da cidadania em comunidades de baixa renda do Estado do Rio de Janeiro. Partindo do pressuposto que informa o conceito de mediao comunitria a crena de que o estabelecimento de um novo paradigma para a relao entre instituies e pessoas da comunidade permite ampliar a democracia participativa e as liberdades individuais, ao mesmo tempo em que favorece o aumento do controle sobre as polticas pblicas locais procurei tambm observar as aes desenvolvidas no escopo do objeto estudado: se apenas na esfera individual (resoluo de conflitos entre pares), ou se as demandas coletivas tambm so recepcionadas (direitos difusos e coletivos); e identificar o tipo de representao efetiva. Durante os ltimos anos, em minha trajetria profissional, venho refletindo sobre a necessidade de ampliao do estudo sobre os efeitos da mediao comunitria, que precisa avanar em seu contedo terico e metodolgico, deixando de ser observada apenas sob a tica de uma ferramenta do direito para a resoluo de conflitos, o que limita demais a sua potencialidade, negando o fundamental elemento de transformao sobre o seu entorno social. A expectativa envolvida em tal aposta de interao que a mediao comunitria proporcione conhecimentos tericos e prticos a seus agentes (Moore: 1998; Bush e Folger: 1996; Gergen, Shailor, Drake, Donohue in Schnitman e Littlejohn:1999), valorizando o contexto onde est inserida e produzindo efeito no de reproduo, mas de mudana comportamental dos indivduos e dos grupos. Esses so os argumentos que justificaram a relevncia e a atualidade do tema escolhido para essa dissertao de mestrado. Como referncia terica para as reflexes aqui propostas vali-me de uma farta bibliografia multidisciplinar. Em relao s reflexes sobre o conceito de mediao , trabalhei com as definies estabelecidas por Christopher W. Moore (1998) e por Bush e Folger (1996; 1999). No tratamento do tema terceiros tomei como referncia a tipologia apresentada por Georg Simmel (1950, Wolff Kurt) 4.

4

Obra traduzida, editada e com introduo de Kurt H. Wolff. The Sociology of Georg Simmel. Free Press of Glincoe, N. Y, 1950.

13 Meu olhar sobre os atores de uma mediao adotou o conceito de trade e a tipologia de terceiro conforme abordagem de Caplow (1974) citada por Remo F. Entelman (2002: 133-134), nos moldes preconizados por Georg Simmel (19581918). Ainda sob a tica da atuao dos atores em uma mediao, trabalhei em consonncia com as variveis de conduta na interao conflituosa, conforme proposio de Remo F. Entelman (2002: 181-182), considerando trs tipos de interao: cooperao, participao e disputa. Nas reflexes sobre a conduta e o comportamento das partes, a referncia terica foi o conceito de cultura semitico defendido por Clifford Geertz (1989:4), em cujo escopo a cultura conceituada como uma cincia interpretativa procura de significado, e o homem, um animal amarrado a essas teias de significados. Sob essa perspectiva, adotar-se- o conceito de cultura como um conjunto de mecanismos de controle planos, receitas, regras, instrues -, que orientam o comportamento (1989:32), a partir da idia de que o homem dependente de tais mecanismos de controle para ordenar seu comportamento e de que essa teia de significados a prpria cultura, o que permitiu desenvolver nossa reflexo dentro do escopo da teoria extrnseca do pensamento (Galanter e Gerstenhaber: 1956:218-227, in Geertz, 1989:121). Segundo esta perspectiva o pensamento consiste na construo e manipulao dos sistemas simblicos, e os padres culturais so programas que fornecem um gabarito para a organizao dos processos sociais e psicolgicos, o que conduz a reflexo sobre a necessidade de adoo de tais gabaritos simblicos, frente a extrema plasticidade do comportamento humano (Geertz, 1989:33). Ainda nas searas da conduta e do comportamento das partes e, mais especificamente, sobre os padres culturais, o estudo de Luiz Roberto Cardoso de Oliveira (1996) sobre os dilemas dos direitos de cidadania no Brasil e nos EUA serviu como fonte primria para o enfrentamento da discusso sobre um dos princpios da cidadania na dimenso proposta pelo autor: - a do equilbrio entre a dimenso da justia, dos direitos do indivduo e a dimenso da solidariedade. Para embasar as reflexes sobre o cenrio brasileiro no mbito do enfrentamento de conflitos, nossa referncia bsica foi Wanderley Guilherme dos

14 Santos (1993), em sua abordagem sobre a precariedade da credibilidade das instituies brasileiras e a ausncia de capacidade participativa (motivao). A pesquisa foi realizada atravs de estudo de caso, com base em estudo crtico da bibliografia pertinente indicada ao final; informaes coletadas em arquivo, referentes aos anos de 2003 e 2004, no mbito do Projeto Social Balco de Direitos, cedidas, gentilmente, pela coordenao do projeto para essa pesquisa5; e com base nos resultados da minha observao participante, em trabalho de campo realizado nos ncleos do Balco de Direitos do morro Dona Marta, Mar e no bairro da Rocinha6, na cidade do Rio de Janeiro, entre os meses de dezembro de 2004 e agosto de 2005. Meu objetivo foi reunir informaes que permitam estimular a reflexo sobre a utilizao da mediao comunitria em comunidades de baixa renda a partir da dimenso da cidadania como um equilbrio entre a dimenso da justia - dos direitos do indivduo -, e a dimenso da solidariedade; e do empoderam ento de grupos, como estruturao para uma maior participao nos processos de motivao, cooperao e deciso, para o enfrentamento de problemas emergentes no meio social.

5 6

Dados do arquivo Balco de Direitos. V. informaes no Anexo.

15 CAPITULO 1. Pressupostos Tericos: Mediao e Teoria Social.

Uma boa maneira de iniciar a exposio do meu tema de interesse nesta dissertao reproduzir a definio literal, tal como apresentada no dicionrio da lngua portuguesa, do termo que pretendo tratar como conceito sociolgico. Na terminologia adotada por Houaiss, media o o ato ou efeito de mediar; ato de servir de intermedirio entre pessoas, grupos, partidos, faces, pases etc., a fim de dirimir divergncias ou disputas; arbitragem, conciliao, interveno, intermdio... A definio do dicionrio mais extensa do que o enunciado acima, especificando as reas possveis onde tal procedimento se efetiva. Encontra-se desde as reas de contrato e de composio de litgios os mais diversos, at a intercesso junto a um santo, a uma divindade para obter proteo. O alcance sociolgico do termo j est dado: a implicao do que Simmel recupera como conceito sociolgico fundamental expresso na categoria trade. Falar de mediao considerar a existncia de conflito em situaes as mais variadas. Minha formao em direito e minha experincia profissional no campo da mediao jurdica foram responsveis pelo interesse no tema. Percebi no curso de minha atuao que a reduo ao escopo do direito limitava tambm minha prpria compreenso do fenmeno com o qual me envolvia. Da veio a deciso de procurar um mestrado no campo das cincias sociais na expectativa de que a teoria social pudesse ampliar e sofisticar analiticamente o que no campo da justia eu vinha amadurecendo na prtica de consultoria e de interveno social. Este captulo trata das referncias que me pareceram frutferas para o redimensionamento de minha rea de compreenso. Percebi ao longo da pesquisa a centralidade que o conceito tem na teoria sociolgica e na antropologia. So essas referncias que explicito como pressupostos tericos que orientaro o trabalho de campo apresentado nos captulos finais. A anlise aqui desenvolvida filia-se a uma linhagem terica que tem como referncia fundamental a mediao como instrumento multidisciplinar que

16 promove um dilogo efetivo entre a sociologia, a antropologia e o direito. Sero abordados os conceitos considerados importantes para esse enfoque.

1. A Mediao na sociedade contempornea.

As estruturas conceituais da viso individualista do mundo e sua influncia na definio do papel que deve desempenhar as instituies vm sendo h algumas dcadas objeto de densos estudos pelos cientistas sociais. O indivduo como figura central da sociedade deixa uma marca incontestvel no sculo XX, em um cenrio onde se defrontam diversos padres, hbitos e cdigos de comportamento. Como expresso das relaes sociais, a subjetividade e as aes (no sentido objetivo) se entrelaam num movimento contnuo e tenso, entre uma variedade de ethos e de vises de mundo. A partir dos anos 1950, estudiosos da sociedade urbana j se referiam existncia das redes de relaes que movimentam o mundo social produzindo interaes sociais associadas a experincias e identidades individualizadas (Redfield, Miner, Lewis, Warner, In Velho, 1994:20). Georg Simmel, citado por Gilberto Velho (1994:18), em artigo escrito em 1902, j chamava a ateno para a especificidade da vida social nos grandes centros urbanos surgidos ps Revoluo Industrial, alertando que a grande cidade (j naquela poca...) tenderia a se caracterizar pela grande quantidade e diversidade de estmulos, o que geraria um excesso, que favoreceria uma adaptao no nvel individual, definida por Simmel como atitude blas, o que, ainda sob a sua tica, poderia ocasionar o desenvolvimento de uma indiferena, como defesa da ameaa de fragmentao. Simmel via na multiplicidade e diferenciao de domnios e nveis de realidade da sociedade moderna, um desafio integridade psicolgica do indivduo. No desenvolvimento de sua argumentao, Velho admite que a viso de Simmel, no incio do sculo, absolutamente atual, assumindo, no entanto, matizes, nuanas e, em ltima anlise, maior complexidade, em funo das prprias transformaes das sociedades contemporneas (Velho, 1994:20).

17 Assim tambm o pensamento de Antonio Firmino da Costa (2002), quando se refere ao carter plural e plstico, contextual e interativo mutvel e entrelaado das identidades culturais que, na medida em que se ampliam e se intensificam por meio de uma rede interligada de intercmbio, comunicao e difuso, multiplicam-se e acentuam -se, num fenmeno a que se refere como sendo um paradoxo das identidades culturais em contexto de globalizao. A problemtica destacada pelos autores em relao ao intenso fluxo entre os diferentes mundos scio-culturais aponta para a exposio potencial dos indivduos a um leque de diferentes experincias vivenciadas a partir da necessidade de interao com esses mundos, representados pelos diversos universos sociolgicos, os vrios estilos de vida e as distintas percepes da realidade. Nesse universo social complexo e propenso a choques de valores,

crenas, interesses e necessidades, apresenta-se como cada vez mais urgente o desenvolvimento de modelos de comportamento adequados ao trnsito a que se refere Velho desses indivduos dentro de uma sociedade diferenciada e marcadamente desigual. Com foco nessa perspectiva - e tendo por base que as identidades culturais so socialmente construdas (Costa, 2002) - as estruturas polticas, educacionais, econmicas e legais podem indicar novos programas que ofeream gabaritos para a organizao dos processos sociais e psicolgicos, adequados complexidade social, atuando como o outro social na organizao do ambiente em torno do indivduo. Nestes novos contextos urbanos em que a coexistncia de mltiplas referncias culturais deve ser assegurada segundo uma tica da universalidade de direitos e dignidade (Costa, 2002:21), a mediao, fundamentada na viso relacional do mundo moderno-contemporneo como um programa de valorizao e aperfeioamento da comunicao e da linguagem, que estimula o fortalecimento de competncias individuais para o desenvolvimento de habilidades interrelacionais, se apresenta como um processo vivel para a negociao da realidade. Na viso de Velho ...nem sempre se d como processo consciente,

18 viabiliza-se atravs da linguagem no seu sentido mais amplo, solidria, produzida e produtora da rede de significados, de que fala Geertz. (Velho:1994: 22). 1.1. Variaes nos papis do mediador.

Em sua longa e variada trajetria atravs da histria, a atividade mediadora tem registro em quase todas as culturas do mundo (Moore, 1998:32-41). O modelo de sua representao na realidade cultural de cada povo varia em termos de rituais e smbolos, mas sua essncia a mesma desde o seu registro no Velho Testamento: centra-se na capacidade de articulao do mediador, em promover um ambiente propcio para a composio das diferenas e na vontade individual das partes, a que se refere Castro - com inspirao em Maquivel -, como virt, a responsabilidade inalienvel que nos cabe por nossas aes (Celso Castro, In Velho, 2001: 211). A construo do papel de mediador varia dentro de um universo que vai desde a sua utilizao de forma emprica, na conduo de um projeto individual (Castro, In Velho, 2001: 211) at sua utilizao de forma procedimental, como uma atividade profissional remunerada e reconhecida nos ltimos 25 anos, na totalidade dos pases. Durante o perodo em que se desenvolveu como uma atividade profissional, muitos esforos foram canalizados por meio de diferentes propostas, no sentido de ampliar a possibilidade de desenvolvimento da atitude mediadora em diversos segmentos da sociedade. Os projetos mais

representativos centram suas iniciativas na rea escolar, nas comunidades carentes e/ou conflituosas, e na disseminao da mediao junto aos operadores do Direito (Cappelletti e Bryant: 1988). De forma muito simplista e geral pode-se destacar trs variaes de papis mais correntes na prtica da mediao, definidas pelo tipo de relacionamento que envolve as partes mediadores da rede scio-cultural, mediadores com poder de deciso e mediadores profissionais.

19 Mediadores da rede social so aqueles indivduos que fazem parte de uma rede de convivncia comum e duradoura (Moore, 1988:48). Eles podem ser identificados entre os amigos, vizinhos, scios, colegas de trabalho e de profisso, autoridades religiosas, lderes comunitrios, polticos e artistas. A marca de distino desses indivduos que a confiana (ou admirao) que lhes devotada foi adquirida, com o passar do tempo, e a partir de um relacionamento que inspira segurana e (ou) empatia. Esse papel se relaciona a um interesse

genuno em promover relacionamentos duradouros e estveis. O mediador com poder de deciso se expressa com facilidade em ambientes caracterizados pelas relaes hierrquicas (gerentes e administradores de empresas, por exemplo). Ele no precisa no sentido da relao causa e efeito compor com as partes, porque est investido de uma autoridade que lhe permite decidir a questo sem a interferncia das partes, podendo, at, impor um resultado. Contudo, atua como quem no tem essa discricionariedade. Sua influncia pode ter como base uma boa reputao pessoal, porm, e em geral, depende de uma posio formal dentro de uma comunidade ou organizao, de uma escolha ou indicao por parte de uma fonte legtima, de uma imposio legal ou de acesso a recursos valorizados pelos disputantes. No incomum o uso da influncia pessoal ou da influncia delegada. Em geral esse mediador tem a seu favor bases de poder que se originam de fatores de coero, de ligaes de influncia (poder de conexo) ou de algum tipo de recompensa (positiva ou negativa). Um histrico de obteno de acordos, a baixa quantidade de falhas na implementao dos mesmos, e cumplicidade so as marcas identificadoras da sua expresso. Sua principal distino o poder de influncia e o interesse no desfecho da questo. Seu papel se relaciona com a qualidade e a continuidade das aes decorrentes do relacionamento. Atente-se para que dentro deste contexto da deciso com caracterstica impositiva, pode-se pensar em bases de poder originadas em poder legtimo ou legitimado. O poder considerado legtimo quando atribudo por uma organizao; e legitimado, quando sustentado por liderados.

20 Uma terceira variao a do papel do mediador profissional, Essa construo se expressa atravs de uma atividade ticamente regulamentada por indivduos capacitados na tcnica de negociao e de facilitao de dilogo, cuja competncia adquirida atravs de treinamento e prtica. A imparcialidade a marca caracterstica da construo desse papel e representa a garantia de um proceder tico, e somente sob a sua base o projeto de mediao profissional adquire legitimidade. No se quer dizer que para o desempenho dos outros dois papis acima descritos a imparcialidade seja prescindvel. Ela no . Mas na construo do papel do mediador profissional ela se confunde com a prpria possibilidade. Nessa construo o relacionamento, anterior ou continuado, com as partes no tem maior significado. Seu papel se relaciona com uma hiptese de construo conjunta da melhor soluo para todos os envolvidos. Estes profissionais so mais facilmente identificados em sociedades que desenvolveram um poder judicirio independente, o que fornece um modelo para procedimentos imparciais percebidos como justos, ou, ainda, em sociedades que mantm tradies de aconselhamento ou acompanhamento profissional independentes e objetivos. So indivduos especializados na negociao de conflitos, inteiramente envolvidos com o papel e que gostam imensamente de desempenh-lo. 1.2. A Mediao na histria como mtodo de resoluo de conflitos.

O desenvolvimento da humanidade tem como referncia bsica contatos e conflitos entre modos diferentes de organizar a vida social, de se apropriar dos recursos naturais e transform-los, de conceber a realidade e express-la (Jos Luiz dos Santos, 1949:7). A histria registra as muitas transformaes por que passam as culturas, sejam elas motivadas pela fora implcita dos conhecimentos ou pela conseqncia lgica dos contatos e conflitos a que se refere o autor. No ordenamento jurdico brasileiro, a distribuio da justia para a soluo de conflitos surgidos no ambiente social tem como tradio litigiosidade 7, o que7

Composio de conflitos atravs de mtodos impositivos.

21 afasta o caminho natural e emprico da negociao entre pares e deposita nas mos do Estado atravs do seu poder impositivo - o destino dos problemas privados. No entanto, como a cultura tem dimenso dinmica, impulsora de novos conhecimentos, e pode ser definida como um sistema de significados, atitudes e valores partilhados (Peter Burke,1978: 15), ou ainda como um sistema ordenado de significado e smbolos ...nos termos dos quais os indivduos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus julgamentos (Geertz, 1999:50), possvel antever e propor alteraes nas condies de existncia em sociedade, e inventar novas tradies. No mbito do sistema de normas que regem o comportamento da sociedade brasileira h somente uma exigncia mxima a ser cumprida: o respeito ordem pblica8 . No oceano dos valores e crenas que inclui hbitos e costumes referentes ao comportamento dos homens como seres polticos, e sob a tica de que a cultura pode ser entendida como forma de representao simblica, relacionada com a maneira de atuar na vida social, destaca-se o pensamento de Carl J. Friedrich segundo o qual: a inveno de uma grande tradio pressupe uma crena muito profunda, por parte daqueles que tero que aceit-la, nos princpios sobre os quais a tradio est fundada ( 1974:127). A partir dessa perspectiva possvel observar a mediao, no contexto social atual, sob a tica da sua reinveno. A histria nos revela que as solues de conflitos entre grupos humanos se efetivaram, de forma constante e varivel, atravs da mediao. Culturas judaicas, crists, islmicas, hindustas, budistas, confucionistas e indgenas, tm longa e efetiva tradio em seu uso. Trata-se de uma prtica antiga, embora seja comum ser reapresentada como um novo paradigma, uma inovadora metodologia de resoluo de conflitos. (Schnitman, In Schnitman e Littlejohn, 1999:17-27).8

De acordo com o sistema jurdico brasileiro, a autonomia da vontade princpio mximo da liberdade de agir e contratar encontra respaldo na ordem pblica. O respeito ordem pblica implica na obedincia s normas que estabelecem os princpios cuja manuteno se considera indispensvel organizao da vida social, segundo os preceitos do direito. (Bevilaqua, Clovs. Theoria Geral do Direito Civil, Livr aria Francisco Alves, 1951, p.15. IN Carmona, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentrio a lei 9.307. SP. Malheiros, 1998, p. 64.)

22 O Velho Testamento traz vrias narrativas onde se pode identificar a soluo de conflitos pela via da negociao direta e pela negociao mediada por um terceiro. Alguns episdios bblicos como Abraho e Lot; Abraho e o Rei Abimelec; Issac e o Rei Abimelec; Jacob e Labo estimulam nossa reflexo. (Jacob Dolinger, In Martins e Garcez, 2002: 57-76). Nas tradies judaicas, a mediao era praticada em tempos bblicos por lderes religiosos e polticos para resolver diferenas civis e religiosas. Em tempos posteriores, na Espanha, frica do Norte, Itlia, Europa Central, e Leste Europeu, Imprio Turco e Oriente Mdio, rabinos e tribunais rabnicos desempenharam papis centrais nas solues dos conflitos, utilizando-se da mediao. Essa tradio foi transportada para as comunidades crists emergentes que viam Jesus Cristo como mediador supremo (Moore, 1998: 32). Na Bblia, o papel do Clero foi estabelecido sob a gide do conceito de intermedirio, como mediador entre a congregao e Deus e entre os crentes. At o perodo da Renascena, a Igreja Catlica na Europa Ocidental e a Igreja Ortodoxa no Leste Mediterrneo podem ser identificadas como as principais organizaes de mediao de conflitos da sociedade ocidental (Moore, 1998: 32). Os Islmicos tambm possuem uma longa tradio de mediar. Nas reas urbanas, o costume local (urf) tornou-se codificado em uma lei sharia , que era interpretada e aplicada por intermedirios especializados, os quads, que alm de exercerem a funo judicial, exerciam tambm a mediao, na tentativa de preservar a harmonia social efetivando um acordo para a soluo de uma disputa, em vez de aplicar os ditames da lei. (Dolinger, In Martins e Garcez, 2002: 57-76). Na Indonsia o musyawarab era um procedimento de administrao de conflitos baseado no consenso entre as partes. Variaes desse processo foram usadas e ainda so utilizadas at hoje por todo o arquiplago, tanto nas questes locais, quanto nas internacionais (Schwartz, A. Nation in Wainting: Indonsia in the 1990s. In Moore, 1998: 33). Na ndia, as comunidades aldes empregam o sistema de justia panchayat. Nesse sistema um grupo de cinco membros alm de exercer funes

23 administradoras ao lidar com questes relativas ao bem-estar da sociedade, atuam como mediadores na soluo das disputas. (Moore, 1998: 33). Tambm na Amrica e em outras colnias, registra -se a longa tradio no uso da mediao. Nos Estados Unidos e no Canad, seitas religiosas como os Puritanos e os Quaquers desenvolveram procedimentos de resoluo de conflitos que se caracterizavam pela informalidade e pela voluntariedade, e que funcionavam paralelamente aos mecanismos preexistentes de soluo de conflitos dos povos americanos nativos. Utilizavam reunies de conselhos baseadas no consenso, conduzidas por um ou vrios idosos (Moore, 1998: 34). A partir dos novos conceitos sobre Estado e organizaes jurdicas, deflagrados pela Magna Carta de 1215 e pelas Constituies de Melfi, sc. XII, sob o reinado de Frederico II da Siclia, surge o princpio do juiz natural, para o qual a justia s poderia ser administrada por tribunais constitudos pelos magistrados escolhidos pelo rei, no se admitindo tribunais especiais para nobres e demais cidados. Este conjunto de leis obrigava a todos, indiscriminadamente. (Greco, Vicente Filho In Lemes, 2001:38). Contudo, a mediao continuou sendo utilizada, no sob as vestes de um tribunal especial - cuja caracterstica jamais possuiu -, e sempre em pequena escala, mas em quase todos os continentes, de forma emprica, e complementar ao poder estatal jurisdicional nunca como uma forma substitutiva. Foi somente a partir do Sculo XX que a mediao se tornou formalmente institucionalizada, e passou a ser desenvolvida como uma atividade profissional reconhecida. Sua prtica expandiu-se, de forma expressiva nos ltimos vinte e cinco anos, e teve como base para sustentao e expanso o reconhecimento dos direitos humanos e da dignidade dos indivduos, a conscincia da necessidade de participao democrtica em todos os nveis sociais e polticos, a crena de que o indivduo tem o direito de participar e ter controle das decises que afetam sua prpria vida, os valores ticos que devem nortear os acordos particulares e, finalmente, a tendncia a uma maior tolerncia s diversidades que caracterizam a cultura no mundo contemporneo.

24 Nos estudos sobre a evoluo social dos grupos, constata-se que a sociedade - como ente coletivo - sempre teve a seu dispor dois caminhos para administrar conflitos: pela natureza instintiva e pacfica das relaes utilizando a negociao (direta entre pares ou mediada atravs de um terceiro), ou pelo confronto em ambiente contencioso que exige a ao de uma vontade mais forte e impositiva atravs do Estado, como a prpria sociedade juridicamente organizada, com funes essenciais e precpuas para declarar as regras em abstrato (funo normativa), gerir a coisa comum (funo administrativa) e declarar as regras em concreto (funo jurisdicional). O registro histrico da coexistncia desses dois caminhos para administrar conflitos - o privado (ou amigvel) e o estatal (ou pblico) - permite a reflexo de que eles jamais se excluram. Utilizados em funo das prprias circunstncias das questes a resolver, mant iveram -se sempre complementares o que permite concluir que, desde os primrdios da civilizao, o acesso justia, em seus aspectos formal e material, sempre pde ser concretizado pela negociao direta, pela mediao (negociao mediada por um terceiro) e pelo poder do Estado.

1.3. Os princpios em que se fundamenta a mediao.

A mediao de conflitos geralmente definida como a interferncia consentida de uma terceira parte em uma negociao ou em um conflito instalado, com poder de deciso limitado, cujo objetivo conduzir o processo em direo a um acordo satisfatrio, construdo voluntariamente pelas partes, e, portanto mutuamente aceitvel com relao s questes em disputa (Moore, 1998). Composta de uma srie de movimentos 9, - que as pessoas realizam com o objetivo de resolver suas diferenas de forma satisfatria, sob a conduo do mediador - cada movimento envolve uma tomada de deciso racional em que as9

Um movimento um ato especfico de interveno ou tcnica de influncia focalizada nas pessoas que participam da questo em disputa. Os movimentos so contingentes e nocontingentes e dependem da complexidade da questo a ser resolvida.

25 possveis aes so avaliadas em relao a fatores que caracterizam a dinmica dos atos, tais como a reao das partes seus padres e estilos de comportamento, percepo e habilidades, necessidades e preferncias, determinao e objetividade, quantidade de informaes que todos - inclusive o mediador - possuem sobre o conflito; atributos pess oais do mediador; recursos disponveis. As estratgias que determinaro a qualidade da interveno do mediador nesta dinmica procedimental devero corresponder complexidade da disputa e fornecer a estrutura ideal para as decises das partes em direo soluo do problema comum. Nesse contexto de trabalho conjunto entre as partes e o mediador so observados os padres ticos em que se sustenta o projeto de mediao, que se caracterizam como seus princpios definidores, e que resultam na sua

credibilidade. A auto-determinao das partes, a imparcialidade e competncia do mediador, a informalidade e confidencialidade do processo so princpios definidores da mediao. A auto-determinao das partes relaciona-se com a voluntariedade. As pessoas envolvidas na questo optam conscientemente pela mediao como tipo de abordagem para administrar o conflito10. Esta opo significa a conquista de direitos e o comprometimento com responsabilidades. Caracteriza-se como um princpio de liberdade, no s pela possibilidade que as partes detm de escolher o meio pelo qual querem resolver o conflito existente entre elas mas, principalmente, pela possibilidade de poderem decidir sobre o seu resultado. No contexto da auto-determinao das partes que est compreendida a tradio, vista como um conjunto de valores e crenas estabelecidos, tendo persistido por vrias geraes, e que pode ser entendida, conforme lies de Carl Friedrich (1974:16-21), como base de uma racionalidade fundamentada em valores, o que proporciona o alicerce para a comunicao e a argumentao integrativa e eficaz .

10

As abordagens podem ser: tomada de deciso pelas prprias partes: negociao direta ou mediao; deciso tomada por um terceiro: deciso administrativa ou arbitragem; tomada de deciso pela autoridade pblica: poder judicirio; tomada de deciso coercitiva: ao direta violenta)

26 Ao expor sobre a tenso dialtica entre tradio e racionalidade, e analisar o pensamento de Max Weber, sobre a tradio como uma das trs fontes possveis de autoridade e legitimidade, Friedrich ( 1974:97-99) conclui que a questo:...est circunscrita com a trade da razo, racionalidade e religio e que a chave, politicamente, saber quem possui a autoridade para dizer o que verdadeiro, isto , o que tradio ou o que lei ou, ainda, o que o significado da ideologia.

O princpio da auto-determinao das partes est ligado

tradio,

entendida como fonte de autoridade e legitimidade e se expressa na capacidade para elaborao racional, na tomada de decises que, em funo dessa autoridade da qual decorre, so consideradas justas e legtimas. (Friedrich 1974:97-99). A imparcialidade do mediador est intimamente ligada a sua competncia e supe a garantia de um proceder tico, e somente sob a sua base o processo de mediao pode representar um instrumento para ser utilizado na conduo das partes a um acordo. A subjetividade o seu trao caracterstico. Fabreguettes11 (In Selma Lemes, 2001:57) assim a define:A imparcialidade o resultado, ao mesmo tempo, da inteligncia e da moralidade. No se confunde com a neutralidade e a desateno. Supe uma ao interior, feita de lealdade, de bom senso, de desinteresse. A fora de vontade, a energia do carter de onde procede, so o resultado de uma grande altivez de vistas da elevao do pensamento, da largueza do esprito .

Em relao neutralidade e a imparcialidade, h que se distinguir os conceitos. Embora utilizados como sinnimos na linguagem comum, em

11

Fabreguetes, M.P. La logique judiciaire et l'art dejuger, 2 ed., Paris: Librarie Gnerela de Droit et de Jurisprudence, 1926, 574p.

27 linguagem tcnica possuem acepes diferentes. Todo mediador pode se manter imparcial, mas nenhum mediador consegue ser radicalmente neutro, j que a emoo da natureza do homem, e todo ser humano pauta sua conduta em crenas e convices ntimas que se materializam em uma ao impulsionada pela emoo, a partir de seu contedo cognitivo, desiderativo e valorativo (Michael Stocker e Elizabeth Hegeman, 2002: 55). Assim como os atos exteriorizados atravs da conduta passam por um processo psquico de avaliao, resultante do prprio inconsciente, no se pode esperar que a pessoa se abstraia de suas crenas e convices, e de seus valores scio-polticos. Corroborando essa reflexo, Selma Lemes ( 2001:65) conclui com muita propriedade, em trabalho que lhe outorgou o ttulo de mestre ....verifica-se, portanto, que enquanto a imparcialidade se refere a comportamento tendente ausncia de interesse imediato, a neutralidade pressupe a indiferena e algo impossvel de ocorrer.. . Espera-se, por isso, que o mediador, ciente do dever decorrente de sua imparcialidade, recus e mediar um conflito, sempre que no se sentir competente para conduzir o processo, tendo em vista a influncia que suas crenas, convices e valores scio-polticos, possam imprimir na interveno de seus movimentos, e que, de qualquer forma, possa res ultar em prejuzo para as partes envolvidas. Por competncia entende-se a qualificao necessria para satisfazer as expectativas das partes, a compreendida a capacidade para mediar, em seu sentido tcnico (capacitao e experincia) e subjetivo (imparcialidade). Em relao ao princpio da informalidade e da confidencialidade do processo, a mediao essencialmente um projeto de interao, de comunicao eficaz, sem exigncias em relao a sua forma, o que se traduz na ausncia de rigidez de regras nas quais as partes iro pautar sua conduta. No existe uma receita de bolo ou uma frmula mgica para que o resultado seja o pretendido, muito embora deva existir um planejamento mnimo para o projeto ser implementado, planejamento que contemple a liberdade dos movimentos, e se balize pela simplicidade de aes que conduzam a um resultado pretendido. A

28 flexibilidade a maior aliada desse tipo de procedimento em um cenrio onde os padres determinados pela sociedade contempornea demandam objetividade e interatividade, em processo permanente de negociao entre pares. Gilberto Velho (2001: 26; 83), em sua definio de projeto como forma atravs da qual os indivduos constituem, prospectivamente, suas identidades, sintetiza a meu ver, de forma muito pertinente:

Projeto a tentativa consciente de dar sentido ou coerncia experincia de fragmentao de papis e heterogeneidade de mundos na complexidade social. Em outros termos, a organizao da conduta no sentido de atingir fins especficos. O projeto consciente, envolve algum tipo de clculo e planejamento; deve fazer sentido, mesmo que rejeitado, na relao com os contemporneos; e pressupe uma margem de escolha que indivduos e grupos tm em um campo de possibilidades histrica e culturalmente circunscrito.

A confidencialidade do projeto (contedo e movimentos do processo) um princpio que as partes podem dispor a seu favor, sendo obrigatria em relao ao mediador 12, que, em nenhuma hiptese, pode revelar fatos dos quais tenha sido informado pelas partes, durante a sua atividade. Tais princpios, muito embora possam ser apresentados sob roupagens diversas dependendo do perodo objeto de estudo, caracterizaram-se sempre como definidores da mediao de conflitos, em qualquer poca ou regio em que foi socialmente aceita e utilizada pelos grupos. Neles esto contemplados conceitos como os de liberdade, voluntariedade e tica, marcadamente caracterizados pela subjetividade, o que pode servir de estmulo pessoal na consolidao de sua crena, a partir do compromisso com a prpria conscincia.

12

Na grande maioria dos sistemas de normas o mediador no poder servir como testemunha perante o Poder judicirio, em processo cujo plo ativo e ou passivo figurem partes que tenha anteriormente conduzido em uma mediao.

29 1.4. A reinveno da tradio da mediao, na sociedade moderna.

Os ltimos dois sculos favoreceram importantes transformaes na sociedade, o que incrementou a inveno de diversas tradies. Chama-se especial ateno para a inveno de tradies , decorrentes das profundas e rpidas transformaes sociais, que se teve contato a partir da Revoluo Industrial e dos avanos tecnolgicos que permearam a ultima metade do sculo XX. Tais invenes ocorreram tanto no sentido a que se refere Hobsbawm e Ranger (1984: 9), quando definem as tradies como sendo:um conjunto de prticas, normalmente reguladas por regras tcita ou abertamente aceitas; tais prticas, de natureza ritual ou simblica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento atravs da repetio, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relao ao passado.

quanto no sentido da compreenso da tradio conforme a tica de Max Weber, citado por Friedrich (1974: 38.), da qual se referiu como sendo uma das trs fontes possveis da autoridade e da legitimidade. Hobsbawm (1984: 9), em seu estudo sobre a inveno das tradies dispe que: O termo utilizado em sentido amplo, mas nunca indefinido. Inclui tanto as tradies realmente inventadas, construdas e formalmente institucionalizadas, quanto as que surgiram de maneira mais difcil de localizar num perodo limitado e determinado de tempo...

Para o mesmo autor, a inveno de tradies deve ocorrer com mais freqncia quando:

30...uma transformao rpida da sociedade debilita ou destri os padres sociais para os quais as velhas tradies foram feitas, produzindo novos padres com os quais essas tradies so incompatveis; quando as velhas tradies, juntamente com o seus s promotores e divulgadores institucionais, do mostras de haver perdido grande parte da capacidade de adaptao e da flexibilidade; ou quando so eliminadas de outra forma (Hobsbawm,1984: 9).

No mesmo texto, evolui o seu pensamento e negocia um entendimento menos rgido a respeito da capacidade de adaptao das tradies a novos padres, no sentido de que se deve evitar pensar que essas formas mais antigas de estrutura de comunidade e autoridade e, as tradies a elas associadas, tenham sido modificadas em razo da sua rigidez, obsolescncia ou incapacidade de adaptao, ponderando que de fato a adaptao se caracteriza pela possibilidade de utilizao de velhos modelos para novos fins. Contextualiza sua posio citando o exemplo de instituies antigas, como a Igreja Catlica e os Tribunais, que possuem funes estabelecidas, referncias ao passado e linguagens e prticas rituais, mas podem sentir necessidade de tal adaptao (Hobsbawm,1984: 13). Sob a tica, ainda, de Hobsbawm (1984: 17), as tradies inventadas desde a Revoluo Industrial parecem se caracterizar em trs categorias superpostas:a) aquelas que estabelecem ou simbolizam a coeso social ou as condies de admisso de um grupo ou de comunidades reais ou artificiais; b) aquelas que estabelecem ou legitimam instituies, status ou relaes de autoridade; e c) aquelas cujo propsito principal a socializao, a inculcao de idias, sistemas de valores e padres de comportamento.

O estudo da tradio como uma das trs possveis fontes de autoridade e legitimidade; ou como uma categoria que estabelece ou legitima instituies,

31 status ou relaes de autoridade, ou ainda, como uma categoria que pretende incutir sistemas de valores e padres de comportamento, que nos leva a refletir sobre a atividade desempenhada pelo terceiro, na soluo de controvrsias, com autoridade reconhecida, como a reinveno da tradio da mediao, em novas roupagens, adequada a um mundo globalizado, decorrente, principalmente, da viabilidade de concretizar o acesso justia em seu sentido material, como uma inovadora metodologia de resoluo de conflitos, sistematizada em um procedimento que resulta de um projeto estabelecido em comum acordo com as partes envolvidas, do qual resulta o compromisso e a volun tariedade em encontrar uma soluo para o problema comum. Especialmente nas grandes metrpoles, a difcil crise vivenciada pelos poderes judiciais locais, a crescente heterogeneidade scio-cultural, a

especializao da diviso do trabalho, a diversificao e fragmentao de papis sociais, e os problemas e dificuldades de acesso das camadas populares a bens materiais e imateriais valorizados no mbito da sociedade abrangente, so fatos que favorecem a noo de complexidade do mundo contemporneo. Constata-se uma significativa mudana nos padres tradicionais relativos aos valores e crenas, que se deslocam em busca de adequao a um novo establishment. A valorizao do indivduo encontra um papel determinante no s na dimenso econmica, como tambm na dimenso interna da subjetividade. O trnsito entre mundos scio-culturais distintos favorece os inmeros choques de valores e interesses, demandando a utilizao de novos padres de comportamento e comunicao, em cujo cenrio a negociao a fonte primria dos interrelacionamentos (entre partes e organizaes).

1.5. A mediao comunitria.

Nesse universo complexo, a expanso da mediao pode ser observada em todos os contextos da sociedade, atravs de constante utilizao das suas

32 tcnicas, que muitas vezes se d de forma emprica e natural13, porm, cuja especializao vem se consolidando de forma profissional e sistematizada 14, como se pode constatar pela imensa variao dos papis que podem ser desempenhados pelos atores da mediao, e que se tem notcia nos dias de hoje. Uma possibilidade que nos parece merecedora de especial ateno o uso da mediao como ferramenta de estmulo solidariedade intergrupos, utilizada como mecanismo facilitador do estabelecimento de cooperao entre partes, e como recurso que promove a capacitao individual, facilitador do

empoderamento de grupos menos favorecidos. Em estudo que reflete sobre a construo de uma outra sociedade em contexto que busca compreender como se d o processo de desenvolvimento de interesses polticos, em ambiente caracterizado pela desigualdade social, Marcello Baquero (2003: 84) analisa a possibilidade de constituio de capital social como fator de empowerment dos setores excludos, como instrumento complementar de ingerncia poltica e chama ateno para o quanto se tm argumentado no sentido de que as polticas para o desenvolvimento local so mais eficientes quando formuladas e implementadas por uma cooperao prxima entre os atores pblicos e privados (Baquero, 2003:87). No mesmo sentido destaca a dimenso de valorizao do cidado referindo-se ao envolvimento dos indivduos em atividades coletivas que geram benefcios em um espectro mais amplo, e estimula o debate acerca da validade ou no do paradigma de capital social no processo de fortalecimento da democracia contempornea. Pondera a respeito que, ...quando h, de fato, um processo interativo para decidir sobre assuntos comunitrios, o lado perdedor no questiona a legitimidade do resultado, pois a deciso passou por uma discusso pblica, inclusiva e regular do ponto de vista de procedimentos (2003:89). Nesse cenrio, tanto da constituio de capital social como fator complementar de empowerment, quanto da eficincia das polticas pblicas que

13 14

Atuao de mediadores nos contextos: cultural, poltico, religioso... Atuao de mediadores nos contextos: comunitrio, judicial, escolar, empresarial...

33 contam com a cooperao dos beneficiados, a mediao comunitria parece ser uma forte aliada. Como mecanismo de qualificao participativa nos diversos assuntos de interesse de um grupo, a mediao assume uma feio multidisciplinar, podendo promover o dilogo entre reas da cincia como a antropologia, a sociologia, a psicologia e o direito. Sob essa roupagem o termo se amplia em sua abrangncia de aplicao, e permite visualizar sua utilizao em comunidades menos favorecidas, objetivando um trabalho com enfoque na democratizao de informaes sobre direitos, deveres e cidadania, e a promoo de uma comunicao eficaz no inter-relacionamento do grupo. A conscincia sobre direitos e deveres e a construo de habilidades em comunicao traz em seu bojo um processo implcito de transformao social do grupo. Como conseqncia natural, o grupo tende a adotar um novo comportamento frente aos problemas comuns e aos conflitos interpessoais, e a transformao pode funcionar como facilitadora da adoo de uma nova abordagem para a soluo de problemas e conflitos relacionados com os moradores da comunidade, atravs das prprias partes envolvidas, da atuao de agentes locais e da atuao de mediadores de conflitos interpessoais. Em reflexes sobre a comunicao de massa na Amrica Latina, que remetem ao reconhecimento, segundo a lgica da diferena, de verdades culturais e sujeitos sociais, Martin-Barbero (1997:259) aponta para o surgimento de uma nova sensibilidade poltica, no instrumental nem finalista, aberta tanto institucionalidade quanto a cotidianidade, subjetivao dos atores sociais e multiplicidade de solidariedades que operam simultaneamente em nossa sociedade. Em suas consideraes destaca a importncia das culturas de bairro, a partir de um estudo pioneiro s obre o assunto, empreendido por L.H. Gutierrez e L. A. Romero acerca da cidade de Buenos Aires, em contexto onde o bairro inicia e entretece novas redes que tm como campos sociais a quadra, o caf, o clube, a sociedade de fomento e o comit poltico. Os mediadores da rede social foram considerados como elemento configurador bsico dessa cultura. So moradores do bairro que operam nas instituies locais fazendo a conexo entre as

34 experincias dos setores populares e outras experincias do mundo intelectual ou poltico, transmissores de uma mensagem e inseridos no tecido popular do bairro. (Martin-Barbero, 1997: 269 -270). Considerando essa perspectiva, defini como objeto de investigao a atuao prtica e a vocao dos Balces de Direito VivaRio, objetivando refletir sobre a mediao dentro do escopo que vai alm da sua aplicao como um mtodo de resoluo de conflitos, no mbito do Direito, para repensa-la como uma prtica orientadora para o empoderamento de grupos menos favorecidos, atravs da melhoria dos processos comunicacionais.

35 2. Trade, tipologia de terceiro e conduta na interao conflituosa.

Uma das caractersticas do conflito est em sua bipolaridade, que supe a excluso de terceiros (Freund15, 1983:287, in Entelman, 2002:133), consistindo na dualidade adversrio-adversrio, e que tem lugar entre opoentes. Por isso mesmo, bastante razovel que, em um primeiro momento, a idia de que possa existir um terceiro em um conflito cause algum tipo de rejeio. O primeiro autor moderno que tratou do tema terceiro foi o socilogo Georg Simmel (1950:148-149) 16, distinguindo uma tipologia baseada em trs classes: o terceiro imparcial, o terceiro denominado tercius gaudens e o terceiro com interesse direto no resultado do conflito. O terceiro imparcial assim denominado por no estar implicado no conflito e por ter sido escolhido, pelas partes, para que julgue e ponha fim ao conflito. Tal tipo de interveno propicia uma variedade de papis (ou formas de atuao) dentre os quais Simmel identifica o do mediador e o do rbitro. O segundo tipo de terceiro, denominado por Simmel como tercius gaudens, aquele terceiro que embora no tenha implicao direta no conflito, dele pode obter benefcios para si mesmo. Como enfatiza o autor the non-partisan may also use his relatively superior position for purely egoistic interests. Simmel aborda duas formas de interao do tercius gaudens e conclui que In both cases, the advantage of impartiality, which was the tercius original attitude toward the two, consists in his possibility of making his decision depende on certain conditions (1950:154-155). Um exemplo simples e ilustrativo com que nos brinda Entelman (200:134) a hiptese de um conflito gremial, onde os competidores se beneficiam da paralisao da produo de um dos colegas durante o evento. O terceiro tipo identificado por Simmel aquele que tem interesse direto no resultado do conflito. Sua interveno refora a sua posio dominante, ou possibilita algum tipo de vantagem.

15 16

Freud, Julien. Sociologie du Conflit, Presses Universitaries de France, Paris, 1983. Ob. Citada.

36 Essa classificao discutida e criticada por Freund (in Entelman, 2002: 134) que prope, duas outras categorias que se distinguem pela forma de participao. Terceiros que participam do conflito e terceiros que no participam dele. Na primeira categoria estariam considerados trs tipos distintos: as alianas; o terceiro parcial em relao a uma das partes; e o terceiro beneficirio, no mesmo sentido do tercius gaudens identificado por Simmel. Na segunda categoria, ou seja, naquela distinguida pela interveno do terceiro na resoluo do conflito, sem dele participar, so identificados o facilitador de dilogo, o moderador e, essencialmente, o mediador. No pretendo aprofundar o estudo sobre terceiros, como gostaria. Contudo, destaco a necessidade de entender os diferentes tipos e avaliar a possibilidade de deslocamentos das partes dentro da dinmica relacional conflituosa, a partir do magnetismo (fora de atrao) presente em toda situao de resoluo de conflito. Nesse contexto, retornamos s idias de Georg Simmel, um dos inquestionveis fundadores da sociologia moderna, a quem se deve os primeiros estudos acerca da anlise das leis que regem o funcionamento dos grupos sociais integrados por trs ou mais membros, para alcanar sua evoluo na atualidade, a partir da dcada de 1950, quando se intensificaram os estudos sobre os grupos denominados trades. Uma trade, tal como o autor a define um sistema social formado por trs membros relacionados entre si em uma situao persistente. A moderna concepo da estrutura de grupos sociais exposta por Bukminster Fuller, e citada por Caplow17 (1974:11), postula que todos os enfrentamentos, associaes ou configuraes naturais devem basear-se em modelos triangulares (in Entelman, 2002:145). Nessa tica, da interao social triangular, ela absorve a influncia de uma determinada platia, presente ou no fisicamente. Ressalta-se que no se trata de contradizer a lei da bipolaridade do conflito, j que a trade a que se refere o autor se integra com os atores do conflito e a platia, que constitui o terceiro. Cabe ressaltar que para a teoria das trades todo grupamento de quatro, cinco,

17

Caplow, Theodore. Dos contra uno Teoria de las coaliciones em ls tradas. Madri : Alianza Editorial S. A., 1974.

37 seis ou mais membros, se reduz a grupamentos traticos, o que tem relao direta com o magnetismo presente nas relaes conflituosas acima referenciado, e que se expressa na postura das partes em busca de uma aliana com o terceiro, ou na parcialidade do terceiro em relao a qualquer uma das partes conflitantes. Como bem sintetiza Entelman (2002:136) La comprensin del magnetismo que ejercen los campos adversarios de un conflicto para los terceros que integran su entorno es fundamental para entender los diferentes tipos de terceros y poder evaluar la facilidad con que quienes no eran participantes al comienzo del conflicto, pasan a serlo.

As trades se constituem por atos voluntrios de seus membros, de maneira formal ou informal. Contudo, merece especial ateno, o pensamento tritico, existente em estado latente em cada um dos integrantes do grupo, e para o qual, embora a trade no se configure como inteno inicial ou pr-estabelecida, permitido, sempre, desenhar estratgias destinadas a possibilitar a um dos membros de uma dade a inteno de aumentar seu poder relativo frente ao outro membro do grupo de dois, atr avs de algum tipo de aliana. O que comum ocorrer dentro do universo de conflitos entre Estados, entre atores individuais e entre atores coletivos (Entelman, 2002: 159), o que pude constatar nas dinmicas entre as partes envolvidas nos processos de mediao observados.

38 3. A influncia do meio scio-cultural em contextos de resoluo de conflitos.

Em conceituado estudo sobre a concepo da cidadania no Brasil, Roberto Da Matta nos revela a sociedade brasileira como uma sociedade fortemente relacional, onde ningum existe de modo social pleno sem ter uma famlia e uma rede de laos pessoais imperativos e instrumentais. Nesse universo, a influncia do meio scio-cultural apresenta-se significativamente tendente a criar uma linguagem de conciliao, negoc iao e gradao, utilizada pelos brasileiros como instrumentos de soluo de problemas, ao longo de sua vida. A estratgia social e poltica que emerge desse cenrio a busca constante pela relao. A comunidade necessariamente heterognea, complementar e hierarquizada, baseada no no indivduo, mas em relaes pessoais, familiares, grupos de amigos e partidos, e em tradies sociais e polticas diferentes. A noo universal de indivduo contraposta idia de pessoa ou ser relacional (Da Matta, 1997:6595). No contexto da resoluo de conflitos, dentro de uma sociedade marcadamente relacional, como a brasileira, o que sempre se espera o reconhecimento e a hierarquizao das pessoas implicadas na situao. Esse mundo das relaes, ainda sob o olhar de De Matta (1997:81), boicota a noo de solidariedade, implicada no conceito de cidadania presente em um meio social homogneo, igualitrio, individualista e exclusivo, que estabelece o indivduo como unidade social bsica (cidado), e onde a escolha capaz de estabelecer a hierarquia, o privilgio e o primado da relao, teoricamente impossvel. Em suas reflexes sintetiza o caso brasileiro como uma estrutura de segmentao dualista: uma nao brasileira que opera fundada nos seus cidados, e uma sociedade brasileira que funciona fundada nas mediaes tradicionais (Da Matta, 1997:86). Conclui propondo que se tome conscincia dessa segmentao como parte importante da dinmica social, o que deixaria de ser uma fora invisvel, para se consolidar em um estudo focado na lgica das relaes pessoais em geral, como um dado bsico da sociedade.

39 Buscando dar nfase recomendao de Da Matta, e, apenas a ttulo de exerccio de reflexo para a minha pesquisa questiono: de que forma se pode explorar essa caracterstica da sociedade brasileira (do universo relacional), no sentido positivo das redes de relaes a que se refere Gilberto Velho (2001), em estudo que aborda o indivduo, a sociedade, a mediao e as mltiplas realidades socio-culturais evidenciadas na sociedade metropolitana contempornea? Em reflexes sobre o paradoxo das identidades culturais em contexto de globalizao, Antonio Firmino da Costa (2002) afirma que

A pesquisa emprica e a anlise terica em cincias sociais tm mostrado, porm, que as identidades culturais so sempre socialmente construdas, e, por isso, mltiplas e mutveis. So, mais precisamente, construes sociais relacionais e simblicas. Simplificando: relacionais, porque sempre produzidas em relao ao social e porque sempre relativas a outras; simblicas, porque envolvem sempre categorizaes culturais e porque significam sempre o destaque simblico seletivo de algum ou alguns atributos sociais.

Partindo das trs reflexes acima, a primeira sobre os efeitos perversos do universo relacional (para este contexto compreendido como identidade cultural brasileira), conforme preocupao esposada por Da Matta (1977); a segunda, na viso de Velho (2001), que considera a importncia do papel do mediador como elemento promotor de comunicao e facilitador de dilogos entre grupos e categorias sociais distintas, a partir de redes de relaes sociais e fluxos de informaes; e a terceira tomando por base as lies de Costa (2002), para quem as identidades culturais so construes soc iais relacionais e simblicas, socialmente construdas, e, por isso, mltiplas e mutveis. Foi possvel lanar uma nova indagao, que se elabora a partir das trs anteriores: seria factvel pensar na estruturao de uma rede de mediao comunitria a partir de uma

40 rede relacional existente dentro de uma determinada comunidade, de tal forma que os contatos e interconexes entre as duas realidades, interna e externa, possam ser promovidos por agentes locais (mediadores) dotados de recursos comunicacionais adequados, numa verso exarcebada do cruzamento de crculos sociais e dos efeitos potenciais da metrpole nas experincias de vida, de que Simmel (1986,1997) j falava h cerca de um sculo? (in Costa, 2002:16).

4. A atitude mediadora como gabarito de cultura. O conflito emerge em qualquer ambiente social em que haja o compartilhamento de espaos, atividades, recursos, normas e sistemas de poder. Embora o conflito no seja necessariamente um fenmeno da violncia, em muitas ocasies, em que a sua abordagem inadequada, pode deteriorar o clima relacional e gerar uma violncia multiforme na qual difcil reconhecer a origem e a natureza do problema. Frente a essas situaes conflituosas as pessoas adotam modelos de comportamento, motivadas pelo s eu ethos e pela sua viso de mundo. No contexto da realidade social do sculo XXI, caracterizado pelo fenmeno das mltiplas realidades scio-culturais que identificam a sociedade modernocontempornea, o contato com diversas sub-culturas, vises de mundo e tipos de ethos , acaba expondo uma marcante fragilidade dos papis sociais, em diferentes nveis e domnios da realidade, o que valoriza os processos de comunicao e de interatividade, como modelos de comportamento adequados a esse ambiente social complexo, e que os tornam responsveis pelo nvel de dificuldade que vai delimitar o intercmbio desses papis e garantir, ainda que sempre precariamente, o equilbrio entre a subjetividade do indivduo e a forma como se relaciona no ambiente social. Esse modelo pode encontrar na atitude mediadora, uma factvel forma de estruturao. Gilberto Velho (2001:10), em sntese que confirma sua autoridade no assunto, argumenta:

41Num contnuo processo de negociao da realidade, escolhas so feitas, tendo como referncia sistemas simblicos, crenas e valores, em torno de interesses e objetivos dos mais variados tipos. A mediao uma ao social permanente, nem sempre bvia, que est presente nos mais variados nveis e processos interativos.

A atitude mediadora, estabelecida como um gabarito de cultura como um projeto, na viso de Velho (2001:159) -, um modelo que estrutura o comportamento a servio da interao eficaz que s se viabiliza em situaes em que os envolvidos desejam restaurar a comunicao e o equilbrio das relaes. Dependendo unicamente da vontade - que vai instruir o comportamento -, essa atitude mediadora funciona como um elo de conexo entre a formulao do pensamento, a integrao do ethos e a viso do mundo, caracterizando uma forma efetiva de representao da realidade. Em abordagem sobre a ideologia como sistema cultural, e buscando a resposta para o sentido da afirmao de que as tenses scio-psicolgicas so expressas em formas simblicas, Geertz (1999: 121-123), trabalha com a perspectiva da teoria extrnseca do pensamento, para a qual o pensamento consiste na construo e manipulao dos sistemas simblicos, definindo os padres culturais como programas que fornecem um gabarito para a organizao dos processos sociais e psic olgicos. Dialogando com Parsons 18, fixa um entendimento sobre estruturas, padres de organizao, de significado e programas, para concluir sobre a necessidade de adoo de gabaritos simblicos , frente a grande plasticidade do comportamento humano. Em sua concepo,A extrema generalidade, disseminao e variabilidade da capacidade inata de resposta do homem significa que o padro particular que seu comportamento assume guiado, predominantemente, por gabaritos culturais em vez de genticos, estabelecendo estes ltimos o contexto

18

T. Parsons. Na Approach to Psychological Theory in Terms of the Theory of Action, in Psychology: A study of a Science, org. por S.Koch (Nova York, 1959, vol. 3.)

42geral psicofsico dentro do qual as seqncias precisas de atividades so organizadas pelos primeiros.

Dentro dessa tica que se reflete sobre o conceito da mediao, em sua possibilidade de utilizao como modelo de processo para a aplicao do conhecimento, em suas vrias perspectivas: cultural, religiosa, comunitria, educacional, poltica, jurdica, atravs da participao de um terceiro relacionado ou da participao de um profissional. 4.1. Modelo de processo para aplicao de conhecimento

Geertz (1989:68), em Interpretao das culturas, define padres culturais como sistemas ou complexos de smbolos, que representam fontes extrnsecas de informaes, que do forma definida a processos externos a eles mesmos, capaz es de fornecer programas para a instituio dos processos social e psicolgico que iro modelar o comportamento pblico. um sentido para e que os padres culturais Na evoluo de sua argumentao enfatiza que o termo modelo tem dois sentidos: um sentido de e

...diferentes dos genes e outras fontes de informao no-simblicas, tm um aspecto duplo, intrnseco eles do significados, isto , uma forma conceitual objetiva, realidade social e psicolgica, modelandose em conformidade a ela e ao mesmo tempo modelando-a a eles mesmos.

Ressalta que os modelos de que funcionam para representar os processos padronizados como tal so raros e que talvez sejam encontrados somente no homem, como animal vivo, concluindo que:A percepo da congrunc ia estrutural entre um conjunto de processos, atividades, relaes, entidades e assim por diante, e um

43outro conjunto para o qual ele atua como um programa, de forma que o programa possa ser tomado como uma representao ou uma concepo um smbolo do programado, a essncia do pensamento humano. (Geertz, 1989:69-70).

O modelo assim pensado predispe o indivduo a uma atuao probabilstica, na qual ter significativa influncia (i) a sua motivao, assim entendida a tendncia a praticar certos atos ou expressar determinados tipos de sentimentos ( Geertz, 1989:68); (ii) a sua disposio - atitude subjacente em relao a ele prprio e ao seu mundo que a vida reflete (Stocker e Hegeman, 2002:29); (iii) os seus valores e as suas emoes - aqui entendidos como a prpria essncia do elemento avaliador (Michael Stocker e Elizabeth Hegeman, 2002:29). Em complementao a essa abordagem sobre o pensamento humano, remete-se a concepo de Lev S. Vygotsky (1987;1988a ;1988b) sobre o funcionamento do crebro, e a sua fundamentao de que as funes psicolgicas superiores (como por exemplo a linguagem e a memria) so construdas ao longo da histria social do homem, em sua relao com o mundo. Em sua teoria essas mesmas funes referem -se a processos voluntrios, aes conscientes, mecanismos intencionais e aprendizagem. Enquanto sujeito de conhecimento, o homem no tem acesso direto aos objetos, mas acesso mediado, atravs de recortes do real, operado pelos sistemas simblicos de que dispe. A teoria de Vygotsky (1987;1988a ;1988b) enfatiza a construo do conhecimento como uma interao mediada por vrias relaes, ou seja, o conhecimento no visto como uma ao do sujeito sobre a realidade, mas mediada pelo outro social que pode se apresentar por meio de objetos, da organizao do ambiente, do mundo cultural que rodeia o indivduo. Nessa interao ganham nfase os sistemas simblicos: por um lado, a cultura, fornecendo ao indivduo os sistemas de representao da realidade - o universo de significaes que permite construir a interao do mundo real; por outro, a linguagem sistema simblico dos grupos humanos fornecendo os conceitos, as formas de organizao do real, promovendo a interao entre sujeito

44 e o objeto do conhecimento, e servindo de meio para que as funes mentais superiores sejam socialmente formadas e culturalmente transmitidas, produzindo estruturas diferenciadas. Vygotsky (1987;1988a ;1988b) destaca, tambm, a essencialidade do processo de internalizao para o desenvolvimento do funcionamento psicolgico humano, que passa do plano interpessoal para o intrapessoal, referindo-se a funo mental, como processos de pensamento, memria, percepo e ateno, dando especial enfoque ao pensamento, como fonte em que se origina a motivao, o interesse, a necessidade, o impulso, o afeto e a emoo. Na elaborao do pensamento acerca dos processos mentais, e dialogando com Dewey19, sobre a reao do organismo como um todo, Geertz (1989:43-56) enfatiza que mente um termo que denota uma espcie de habilidade, propenso, capacidade, tendncia, hbitos; um sistema organizado de disposies que descobre a sua manifestao atravs de algumas aes e algumas coisas. E, proclama com a autoridade que lhe peculiar: ...o crebro humano inteiramente dependente dos recursos culturais para o seu prprio funcionamento. Assim, tais recursos no so apenas adjuntos, mas constitutivos da atividade mental. Dentro do enfoque das funes psicolgicas superiores, a atitude mediadora pode se consolidar como um processo de aprendizagem, que se materializa em aes conscientes e intencionais, representado por um modelo ou programa que se adapta tanto para a realidade das relaes entre pares, como para a realidade da administrao de problemas, com a interferncia de um terceiro. A tomada de deciso ao final de um projeto de mediao recorre a imagens, programas ou modelos, atravs de motivos resgatados tanto do raciocnio orientado, quanto da formulao dos sentimentos, ou da integrao de ambos, e se vincula ao sentimento individual em relao aos fatos sobre os quais a deciso interfere de forma a alterar o seu status quo. Tais processos mentais ocorrem em qualquer espao social, como estruturas conceituais que os indivduos utilizam para construir a experincia a partir de um conhecimento mais19

Dewey, J. Intelligence and the Modern World, org. por J. Rainer. Nova York: 1939, p.851.

45 contextualista e relativista, e que podem ser pensados, sob a tica da antropologia interpretativa de Geertz, dentro dos rumos recentes do pensamento moderno sobre o social, cada vez menos provinciano e mais pluralista. Na construo de um padro cultural (Geertz, 1989) pela formao da conscincia coletiva e adaptado as exigncias de um mundo caracterizado pelas diferenas scio-culturais, a mediao ganha espao para ser (re)pensada como um programa multidisciplinar, fundamentado em um projeto de comportamento individual, desenvolvido atravs de uma abordagem educacional, que valorize a comunicao e a cooperao entre grupos, objetivando ajustar os interrelacionamentos s especificidades da complexa sociedade modernocontempornea, onde o conhecimento contextualizado e as diversas reas de conhecimento se consolidam como modos de estar no mundo. Como elemento estrutural na interveno em conflitos, a mediao j vem se estruturando como meio de fortalecimento do sentido de justia pautado no relacionamento entre o fato e a lei, nos diferentes contextos culturais (Geertz: 2004), utilizando a abordagem de reconhecimento do conflito como

potencialmente transformador, trabalhando o comportamento com um enfoque centrado na motivao e na disposio, o que poderia torn-la capaz de desenvolver e integrar habilidades individuais, empatia e solidariedade. Questo que se vem verificando a partir das experincias internacionais.

46 CAPITULO 2. As Instituies de distribuio de justia 1. O cenrio brasileiro: o (des)equilbrio entre as dimenses da justia e a da solidariedade.

Nossa reflexo sobre o cenrio das Instituies no Brasil, e principalmente sobre a credibilidade das instituies da justia tomo como ponto de partida o olhar de Wanderley Guilherme dos Santos (1993), em sua abordagem sobre a precariedade da credibilidade das instituies brasileiras e a ausncia de capacidade participativa (motivao), quando analisa o cenrio da ingovernabilidade ps dcada de 1980. Tal raciocnio pertinente dentro da tica desse trabalho pela razo direta e justificada do entrelaamento da justia formal com as demais formas de seu estabelecimento, j que se assiste, na atualidade, ao crescimento exponencial de entidades privadas de administrao de conflitos, em condio legitimada por lei, como meio alternativo de solucionar conflitos, na esfera dos direitos disponveis 20. Com base em levantamento feito pela Fundao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica FIBGE, sobre Justia e vitimizao, em 1988, Guilherme dos Santos (1993:98-101) conclui que credibilidade institucional no subproduto automtico de progresso material. Em sua reflexo, o autor pondera sobre o comportamento passivo/omissivo de uma massa vtima de mltiplos exemplos de violncia pblica e privada, e enfatiza a relao declarao versus sonegao do conflito com a afirmao de que bvia e escandalosa ausncia de capacidade participativa (ou motivao), e reduzida taxa de demandas, soma-se o absoluto descrdito na eficcia do Estado, e o estratagema de negar ter estado envolvido em algum tipo de conflito torna-se a mais eficiente estratgia

20

Direitos disponveis so direitos patrimoniais que independem de qualquer tipo de consentimento ou autorizao para que se leve a cabo a sua transferncia, a que ttulo for.

47de preservao, por sua conta e por seus prprios meios, de um mnimo de dignidade pessoal.

Para o mesmo autor, a declarao do conflito impe a necessidade de tomada de deciso sobre o que fazer e o enfrentamento consciente do custo envolvido nessa deciso. Em sua abordagem, trs so as alternativas que se apresentam frente a um conflito deflagrado: no fazer nada e conformar-se (dissimular ou ocultar o conflito); resolver por si mesmo (que no entendimento do autor seria a prpria definio do estado de natureza hobbesiano); procurar as instituies estatais competentes arcando com as suas conseqncias.

Interessante de se observar no relato do autor, a proporo de conflitos reconhecidos (no perodo da pesquisa) em relao aos encaminhados para soluo pela justia:

...daquele total de 8.641.761 pessoas que admitiram envolvimento em conflito, nos ltimos cinco anos, somente 2.864.105 (33,0%) confiaram a soluo do ltimo conflito justia. ... O mesmo descaso pelas instituies polirquicas convencionais transparece nas vtimas de roubo e furto e nas vtimas de agresso fsica. Do total de 5.974.345. pessoas roubadas ou furtadas, entre setembro de 1987 e outubro de 1988, somente 32% (1.894.810) recorreram polcia e registraram queixa. J das 1.153.000 que se reconheceram objeto de agresso fsica, 61% tambm no recorreu polcia. (Santos, 1993:100).

Em estudo que explana a Sociologia do Direito no Brasil, Eliane Botelho Junqueira (1993: 115) pondera que Enquanto modificaes mais substantivas no forem introduzidas no Poder Judicirio brasileiro, as estatsticas continuaro revelando que, na grande maioria dos casos, a Justia no procurada pela populao para a resoluo de seus conflitos.

48 No mesmo texto, refere-se ao levantamento realizado pelo FIBGE, em 1988, acima mencionado, e faz aluso a comentrios de Pedro Demo (1992:56) sobre as estatsticas ali apresentadas....o fato de apenas 44,9% das pessoas envolvidas em conflitos recorrerem Justia parece insinuar que ou se recorre pouco justia, em razo da desconfiana em relao atuao desta agncia, ou os conflitos, por serem de pequeno valor, admitem solues diretas entre as partes. Demo observa ainda que tanto o acionamento como a desconfiana em relao ao aparelho judicial variam em proporo direta ao nvel de escolaridade.

Complementando o cenrio apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos e Eliane Junqueira, Dulce Pandolfi (1999, 45-58) destaca alguns paradoxos suscitados a partir dos resultados da pesquisa Lei, justia e cidadania 21, que buscou avaliar a situao e a percepo dos moradores da regio Metropolitana do Rio de Janeiro, em relao aos seus direitos e deveres e em relao aos agentes e s agncias encarregadas de garantir esses mesmos direitos. Em suas reflexes pondera que: .A despeito de termos no Brasil de hoje um regime com um desenho institucional marcadamente democrtico, com as regras do jogo e as instituies polirquicas bem definidas, os dados da pesquisa Lei, justia e cidadania apontam para a precariedade da nossa cidadania e sugerem a ausncia, entre ns, de uma cultura participativa, condio considerada essencial para a consolidao de uma sociedade democrtica.... necessrio que a populao conhea, reconhea e possa usufruir dos seus direitos. Mesmo que no consigamos atingir altas taxas de participao poltica e social, preciso acabar com o descrdito da populao em relao s instituies capazes de assegurar as diversas

21

Pesquisa: Lei, justia e cidadania. CPDOC-FGV/Iser, 1997

49dimenses da sua cidadania. necessrio, sobretudo, que cada pessoa deseje e consiga transforma-se em um cidado.

Como se no bastasse a precariedade que caracteriza o sistema participativo em nossa sociedade, a ele se amlgama os efeitos do individualismo construdo sobre uma base de tradio centralizadora e legalista (Da Matta, 1997:78) que, dentro do contexto, traz graves conseqncias adicionais ao exerccio da cidadania. Pessoas totalmente afastadas dos valores que permeiam a solidariedade, a cooperao e a reciprocidade, pairam num contexto de insegurana social, incerteza e medo, alienao sobre os problemas da coletividade, falta de motivao em promover aes em beneficio dos grupos, pessoas que sequer conseguem se unir em torno de um objetivo comum para pensar solues, ou pressionar o Estado para a efetivao de polticas pblicas capazes de melhorar a vida em sociedade, porque sequer sabem que direitos, deveres e obrigaes possuem. A individualizao - a que se refere acima -, na sociedade que Zygmunt Bauman denomina sociedade da modernidade lquida, no tem mais o mesmo significado do incio da era modern a. Hoje, os indivduos no nascem em suas identidades, preciso conquist-la. Em suas reflexes (2001:23 -64) pondera que...h um grande e crescente abismo entre a condio de indivduo de jure e suas chances de se tornar indivduos de fato isto , de ganhar controle sobre seus destinos e tomar decises que em verdade desejam. desse abismo que emanam os eflvios mais venenosos que contaminam as vidas dos indivduos contemporneos. Esse abismo no pode ser transposto apenas por esforos individuais: no pelos meios e recursos disponveis dentro da poltica-vida auto-administrada.... Esta , nos termos mais amplos, a situao que hoje se coloca para a teoria crtica e, em termos mais gerais, para a crtica social. Ela se reduz a unir novamente o que a combinao da individualizao formal e o divrcio entre o poder e a poltica partiram em pedaos. Em outras palavras, redesenhar e

50repovoar a hoje quase vazia gora lugar de encontro, debate e negociao entre o indivduo e o bem comum, privado e pblico.

para essa sociedade, que tericos como Robert Bates (1999:173-194) propem solues conciliadoras, atravs da cooperao, da confiana, da reciprocidade e dos sistemas de participao cvica, em cujo contexto inclu-se a necessidade de se levar em considerao o princpio da solidariedade entre os grupos. Luiz Roberto Cardoso de Oliveira (1996:67-81), em texto que reflete sobre os dilemas dos direitos de cidadania no Brasil e nos EUA, destaca dois princpios fundamentais que nem sempre so levados na devida conta quando se analisa a questo: o princpio de justia e o princpio da solidariedade. Em suas ponderaes, o princpio de justia associado noo de direitos, de indivduo, noes articuladas a tradio ocidental, que pensa os direitos como elementos intrnsecos do cidado; e a cidadania, na sua articulao com o Estado/Nao, com o Estado nacional, atravs da solidariedade, onde estabelece o elo com a reflexo de Habermas (1987) - Teoria da Ao Comunicativa -, que um dos elementos estruturadores da reflexo do autor. O que o autor acentua que em geral a discusso sobre cidadania uma discusso que prescinde, em sua dimenso, da conformao de uma determinada noo do que solidariedade, que informa as nossas relaes como fundamental para pensar a questo da cidadania, e que nem sempre levada em considerao. Essa outra dimenso, que da percepo de um certo pertencimento a uma comunidade, a um grupo comum, tem na sua base a noo de solidariedade, que une os indivduos dentro de uma sociedade. O ponto central da sua discusso olhar para um dos princpios da cidadania, como sendo o que ele observa como um equilbrio entre essas duas dimenses: a dimenso da justia, dos direitos do indivduo; e a dimenso da solidariedade. Cardoso observa, ainda, que as situaes de sub-cidadania se caracterizariam como resultantes de um desequilbrio entre essas duas dimenses, entre esses dois princpios: onde houvesse excesso de qualquer uma das duas dimenses justia ou solidariedade se caracterizaria o desequilbrio.

51 Em esforo complementar, Alba Zaluar (2004:279-306) pondera sobre a necessidade de resgatar valores como a reciprocidade e a solidariedade, em contexto que busca refletir sobre excluso social e polticas pblicas . Ao abordar o tema sobre a reciprocidade na modernidade, destaca que:... preciso sobretudo restaurar as redes locais de reciprocidade positiva, reforar as solidariedades enfraquecidas entre as geraes, intra e extraclasse, assim como, nas polticas pblicas, abrir espao poltico para reconhecer e estabelecer parcerias com todas as formas de associaes que promovam aquelas reciprocidades e solidariedades...

A partir dessas convices se passou a refletir, com apoio em farta argumentao de cientistas sociais (Couto, 1995; Soares, 1996; Cooke & Morgan, 1998; Moura, 1998; Soares & Pontes, 1998; Pereira, 1999), sobre a eficincia das polticas para o desenvolvimento local, quando formuladas e implementadas por uma operao prxima entre atores pblicos e privados, conforme citado por Marcello Baquero (2003: 83-108) em suas reflexes sobre a construo de uma outra sociedade. Do texto de Wanderley Guilherme dos Santos, publicado h mais de uma dcada, at o de Alba Zaluar, publicado no ano passado (2004), muito pouco foi alterado no cenrio brasileiro em relao credibilidade na eficcia do Estado para resolver conflitos. Muito pouco a sociedade brasileira avanou, em relao grande maioria da populao, na consolidao de uma cidadania ativa. As razes so muito variadas, e neste trabalho no h espao para as diversas abordagens em que se poderia fundamentar tal problematizao. Contudo, a sociedade busca sobreviver s suas imperfeies e, sempre que possvel, redefinir mecanismos para suprir as suas deficincias. Exemplo tpico dessa busca para superar (ou reduzir) a deficincia estatal em sua atividade bsica do estabelecimento da segurana jurdica, vem sendo perseguida por entidades privadas e organizaes no governamentais, como meio de transpor a barreira do acesso justia.

52 Dentro desse escopo foi criado o Balco de Direitos, objeto de estudo deste trabalho de dissertao de mestrado, bem como tambm foram criadas, com amparo legal, as diversas administradoras de conflitos denominadas como comisso, centro ou cmara de mediao e arbitragem, cujo objetivo auxiliar a atuao do