mecanismos linguÍsticos e relaÇÕes intersubjetivas …

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MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS NA PRODUÇÃO DE TEXTOS: ATIVIDADES ENUNCIATIVAS NA PRÁTICA DE ENSINO Solange Christiane Gonzalez Barros SÃO CARLOS 2017

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Page 1: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS NA

PRODUÇÃO DE TEXTOS: ATIVIDADES ENUNCIATIVAS NA PRÁTICA DE

ENSINO

Solange Christiane Gonzalez Barros

SÃO CARLOS

2017

Page 2: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUÍSTICA

MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS NA PRODUÇÃO DE

TEXTOS: ATIVIDADES ENUNCIATIVAS NA PRÁTICA DE ENSINO

Solange Christiane Gonzalez Barros

Bolsista: CAPES

Tese apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Linguística da

Universidade Federal de São Carlos,

como parte dos requisitos para a obtenção

do Título de Doutor em Linguística.

Orientadora: Profa. Dra. Marilia Blundi

Onofre

Coorientadora: Profa. Dra. Helena Topa

Valentim

São Carlos - São Paulo - Brasil

2017

Page 3: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …
Page 4: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

Dedico este trabalho à minha amada mãe Susana, ao meu pai Luciano (in memoriam), à minha querida irmã Sonia e ao eterno Jhonninho.

Page 5: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso recomeçar a viagem. Sempre.

José Saramago

Page 6: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

Agradecimento Especial I

Agradeço, de coração, a minha professora e orientadora

Marilia Blundi Onofre, por me acompanhar nessa caminhada

no mundo acadêmico, pelo incentivo, pela confiança, pelas

preocupações, pelo amor aos animais, pelos lanchinhos, pelas

inúmeras oportunidades e por acreditar que eu pudesse

realizar este trabalho. Obrigada por me compreender e me

auxiliar nos momentos difíceis, por me apoiar nas tomadas de

decisões, sempre aconselhando e proferindo uma palavra

amiga.

Page 7: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

Agradecimento especial II

Com todo carinho, agradeço minha professora e coorientadora

Helena Topa Valentim, por ter me recebido e acolhido muito bem

em terras lusitanas desde o primeiro dia, pelas orientações rígidas e

competentes, pela leitura cuidadosa dos capítulos, pelas exigências

e por ter compartilhado comigo seus conhecimentos. Muito

obrigada por lutar em conseguir o meu cantinho de estudos na sala

T3, por me apresentar a Universidade Nova de Lisboa, pelos

biscoitinhos deliciosos, pelas palavras de afago e por estar sempre

disposta a ajudar com um sorriso lindo no rosto.

Page 8: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a Deus pela força, por ter me concedido saúde e inteligência

para que eu pudesse concretizar este trabalho.

À minha mãe Susana e à minha irmã Sonia por me acompanharem nessa jornada, pelo

constante incentivo aos estudos, por apoiar minhas decisões, pela preocupação, pelo

carinho, pela dedicação, pelo amor e pela compreensão.

Ao Jhonninho, amigo inseparável e fiel, pela companhia nas horas de dedicação à

leitura e escrita, tornando esses momentos menos solitários.

À Profª. Drª. Marilia Blundi Onofre, pela orientação neste trabalho, pelas oportunidades

de aprendizagem, pelos ensinamentos e por contribuir para minha formação.

À Profª. Drª Helena Topa Valentim, por ter aceitado a coorientação deste trabalho, pelas

leituras cuidadosas, pelos ensinamentos valiosos, pela disciplina como pesquisadora,

pela oportunidade de frequentar o Summer School, congressos e eventos ofertados na

Universidade Nova de Lisboa e por compartilhar suas experiências.

À Profª. Drª. Letícia Marcondes Rezende, pelas contribuições no exame de qualificação

e por ter aceitado fazer parte desta trajetória até a defesa. Agradeço pelas leituras

minuciosas, pelas indicações e empréstimos de livros, pelas caronas divertidas, pelo

incentivo e apoio para a realização do estágio de doutorado sanduíche em Portugal.

À Profª. Drª. Cássia Regina Coutinho Sossolote, pelas sugestões, pelas importantes

contribuições nos exames de qualificação e de defesa, por sempre me encorajar em

investir nos estudos acadêmicos.

À Profª. Drª. Janete Bessa Neves por ter aceitado participar deste exame de defesa, pela

delicadeza e pelas oportunidades de aprendizagem.

À Profª. Drª. Luzmara Curcino Ferreira, pela leitura deste trabalho, por compartilhar

suas experiências, pelas conversas agradáveis e conselhos valiosos.

À minha tia Ema e aos meus primos Rosa, Angel (in memoriam), Humberto e Marcos,

que apesar da distância, sempre incentivarem e torceram para que eu concretizasse essa

jornada acadêmica.

Aos professores do PPGL e do Departamento de Letras da UFSCar, pela sabedoria e

pela minha formação acadêmica e profissional.

Aos professores do Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa, Profª. Drª.

Maria Antónia Coutinho, Profª. Drª. Clara Nunes Correia, Profª. Drª. Maria do Céu

Caetano e Profª Drª. Matilde Gonçalves, pela oportunidade de participar do grupo

Gramática & Texto e dos eventos realizados nesta instituição.

Page 9: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

À minha querida amiga Elizete Bernardes, pela amizade sincera, pelo incentivo, pela

generosidade, pelas pestanas, pelas palhaçadas, pelos momentos Sodiê, pelas novelas

das seis, por me consolar nas tristezas, por me acolher em seu chateau com muito

carinho, pelos ALEDs e por tudo que compartilhamos neste doutorado. Ao Marco

Aurélio, pela paciência, pelas comidas caseiras, pães caseiros e fazer parte desta

amizade.

À grande amiga Duane Valentim, pela sinceridade, pela preocupação, pela paciência,

por ter me encorajado e incentivado a realizar o estágio de doutorado, pelas aventuras,

pelas ajudas nos momentos de dificuldade, pelas discussões de 1 minuto, pelos

inesquecíveis Sete Vidas e Coração d' Ouro, pelas risadas, momentos de estudos,

momentos Bob the cat, pela amizade e pelos não que sempre são sim.

À Patrícia de Oliveira Lucas, pela amizade de anos, pelas situações engraçadas, pelo

apoio aos estudos, pelas lembrancinhas constantes. Por me apresentar e inserir na minha

vida seus queridos pais, Eugênia e Aparecido, exemplos de pessoas generosas e

carinhosas.

À Lidiany Pereira Santos, em quem encontrei uma grande amiga, pelo coração puro,

pela generosidade, pela simplicidade, por me recepcionar com muito carinho em sua

terra natal, pelos saudosos cafés no Forte Apache, exemplo de pessoa lutadora e

esforçada.

À minha querida Carla, pela amizade, pela torcida, pelas conversas agradáveis, pelo

acolhimento constante, por sua luta diária.

Ao meu amigo Stéfano Grizzo Onofre, vulgo Cachos, pelos trabalhos, pelas caronas,

pelos livros compartilhados, broncas nas bibliotecas e os lanchinhos clandestinos.

À família Grizzo Onofre, especialmente Tia Bernadete e Tio Anselmo, Olena, Isaura,

Bianca e Pedrita. Obrigada pelo carinho, pela atenção, pela recepção e acolhimento em

seu lar.

Ao ex-secretário do PPGL, Junior Assandre, pela disponibilidade em ajudar com as

documentações, dúvidas e nos socorrer nas horas de dificuldade com muita simpatia e

energia positiva.

Ao Bigode e à querida Soraya, pela amizade, pelo acolhimento caloroso, pelo carinho,

pela alegria, pelas palavras de incentivo e pelos inúmeros Bigode Vuitton collection.

À minha querida Paula Bullio, pela ternura, pelo sorriso no rosto, pela torcida constante

e pelos vários socorros em abstracts.

À minha amiga Andrea de Paula, pelos conselhos sábios, pelas conversas divertidas,

pela paz na alma, pela calmaria, pela confiança e ajuda em vários momentos.

À querida Lucilene Isaias Moraes, fofíssima Lu, pela simpatia constante, as conversas

descontraídas, pela correria nas encadernações e sempre muito atenciosa.

Page 10: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

Ao casal de amigos, Nancy e Thiery, pela simpatia, pela Lizinha, pelas conversas

animadas, pelos telefonemas de preocupação, pela torcida, pelos almoços e lanches

deliciosos.

Aos queridos Ana Aparecida Dias Rodrigues de Siqueira e Dr. Eugenio Silva Filho,

pelos socorros constantes, palavras amigas, pela generosidade e muita compreensão.

Aos meus queridos amigos da E.E. Profª. Zita de Godoy Camargo, que me

acompanharam no desenrolar desta pesquisa, na luta constante para realizar um bom

trabalho em sala de aula e sempre dispostos a me ajudar no que foi possível: Rose Marie

Martinelli, Érica Arnold, Vera Lia Nalin, Valdecir Silva, Sheila Massulo, Claudete

Nascimento, Marisa Silveira, Sandra Marques, Darlene Lima, Regina Pantano, Adão

Lopes e Kamila de Souza Guimarães.

Aos meus amigos queridos que conheci graças ao estágio de doutorado sanduíche: Caio

Castro, Antonio Marcio Mendonça, Aline Ponciano, Socorro Oliveira e Fátima Santos.

À mon amie Lívia Simões pelas palavras incentivadoras, pelas conversas divertidas,

pela coragem, pelo acolhimento, pelas dicas espertas e passeio maravilhoso na Cidade

Luz.

À querida amiga Mihaela Moreno, pela generosidade, pela delicadeza, pelo amor aos

animais, pela dedicação à família, pelos passeios, pela alegria.

À saudosa sala de estudos T3 da UNL: às queridas Beatriz Carvalho, Mara Moira,

Raquel Oliveira, Ana Guilherme, Margarida Tomaz, Margarida Azevedo, e aos queridos

Sandro Dias, Radovan Miletic e Miguel Gonçalves de Magalhães.

Aos bibliotecários da UNL, Ana Inácio e Marcelo Monte, pela atenção e disponibilidade

em ajudar sempre.

À minha querida e saudosa vizinhança lisboeta: Isabel Marta Figueiredo, Lira, Melocas,

Dona Eugênia, Isa, Angela, Seu Luís, Luís do Nascimento Carneiro Paiva Adães,

Alexandra Figueiredo, Jack, Magali e Dona Adelaide.

À agência de fomento CAPES, pelo apoio financeiro e por possibilitar a realização do

Estágio de Doutorado Sanduíche em Portugal, que me proporcionou expandir meu

conhecimento científico, crescimento pessoal, profissional e cultural.

Aos meus queridos alunos da E.E. Profª. Zita de Godoy Camargo, pelos desafios, pelo

apoio em horas inesperadas e por compreender minhas ausências. Gratidão especial ao

Elian Braga, por sempre estar disposto em me ajudar, Luiz Henrique Rigo, Matheus

Alves de Campos, Ester Silva, Gabriela Modesto, Eduarda Comim, ao 3º ano 1 das

turmas de 2016 e 2017.

Aos atuais e ex-funcionários do PPGL, Leonardo Lucifora, Jéssica Oliveira e Vanessa

Rodrigues, pela gentileza e serviços prestados. Enfim, a todas as pessoas que não citei

neste trabalho, mas que sempre me desejam coisas boas e torcem pelo meu sucesso

profissional e pessoal.

Page 11: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

RESUMO

Este estudo intitulado Mecanismos linguísticos e relações intersubjetivas na produção

de textos: atividades enunciativas na prática de ensino visa a retomar questões que

foram abordadas no trabalho de dissertação, como a dificuldade dos alunos em inserir

noções de qualificação como marca explícita de regulação intersubjetiva (mundo

comentado) em suas produções de textos. Pensando, agora, em um trabalho prático a ser

realizado em contexto escolar, e considerando as dificuldades constatadas em produções

textuais de alunos, temos o objetivo de, ao mesmo tempo, i. explorar com mais

profundidade o processo de constituição de planos enunciativos que envolve

mecanismos linguísticos como marcas de regulação intersubjetiva, sobretudo a

modalidade apreciativa, que assinala o ponto de vista do enunciador favorável ou

desfavorável sobre um conteúdo que constrói linguisticamente; ii. determinar e analisar

o uso da modalidade apreciativa num corpus constituído de textos narrativos, sobretudo

fábulas; iii. propor práticas linguísticas a serem aplicadas no exercício da produção

textual visando a explorar, no ensino de línguas, processos de linguagem que, por sua

vez, possam promover o desenvolvimento linguístico-cognitivo nos aprendizes.

Filiamo-nos, para tanto, à Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas proposta

pelo linguista francês Antoine Culioli.

Palavras-chave: Ensino/aprendizagem de línguas. Análise linguística. Operações

enunciativas. Modalidade apreciativa. Produção textual.

Page 12: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

ABSTRACT

In this study called Linguistic mechanisms and intersubjective relations in textual

production: enunciative activities in the teaching practice, the aim is to recall questions

from the Master’s degree, such as the difficulty that students have to insert notions of

qualification as explicit marks of intersubjective regulation (commented world) in their

textual productions. Analysing, now, a practical work to be done in school contexts and

considering the difficulties observed in the students’ textual production, we have the

objective to i. explore more deeply the process of constitution of enunciative plans

which involve linguistic mechanisms as marks of intersubjective regulation, especially

the appreciative modality, which marks the enunciator’s point of view – favourable or

unfavourable – about a content that is constructed linguistically; ii. determine and

analyse the use of the appreciative modality in a corpus constituted of narrative texts,

especially fables; iii. propose linguistic practices to be applied in the exercise of textual

production aiming to explore, in the language teaching, the language process which can

promote the students’ linguistic-cognitive development. It is used in this work the

Theory of Predicative and Enunciative Operations proposed by the French linguist

Antoine Culioli.

Key-Words: Learning/Teaching languages. Linguistic Analysis. Enunciative

Operations. Appreciative Modality. Textual Production

Page 13: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Texto original de um aluno do Ensino Fundamental – Anos Finais, 2010 .........19

Figura 2 – Proposta de atividade do Caderno do Aluno de 6º ano ........................................48

Figura 3 – A representação aristotélica revista por Abelardo ...............................................63

Figura 4 – Modelo de configuração da asserção ...................................................................78

Figura 5 − A modalidade no livro didático ..........................................................................86

Figura 6 − Exemplos de enunciados com modalização ........................................................88

Figura 7 − O domínio nocional .............................................................................................91

Figura 8 − Interdependência das ocorrências fenomenais e linguísticas ..............................93

Figura 9 − Proposta de produção de texto da Situação de Aprendizagem 1........................98

Figura 10 – Orientação para elaboração de escrita de narrativa ...........................................99

Figura 11 − O paradigma QNT/QLT ..................................................................................114

Figura 12 − O domínio nocional em PT1............................................................................121

Figura 13 − Exemplo de atividade com respostas de um aluno .........................................130

Figura 14 − O domínio nocional de aprender ....................................................................133

Figura 15 − Noção de revolta .............................................................................................138

Page 14: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

LISTA DE QUADROS E TABELAS

Quadro 1 – Versão digitada de O gladiador e o canibal ..................................................20

Quadro 2 – Encadeamentos de ações/acontecimentos em O gladiador e o canibal ........20

Quadro 3 – Representação das relações modais ................................................................61

Quadro 4 – A estrutura binômica de poder e dever ...........................................................71

Quadro 5 – Produção textual elaborada por uma aluna do 6º ano/2013 ............................100

Quadro 6 – Relação simbólica entre enunciação e enunciado ...........................................104

Tabela 1 − Encadeamento de ação/acontecimento em PT 1 ............................................120

Tabela 2 − O domínio nocional em PT 2 .........................................................................128

Tabela 3 − Encadeamento de ação/acontecimento em PT12 ...........................................136

Tabela 4 − O domínio nocional em PT14 ........................................................................142

Page 15: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AA = Atividade Aplicada

E = Exterior

I = Interior

IE = instante origem

PCN = Parâmetros Curriculares Nacionais

PLE = Pour une linguistique de l'énonciation

QLT = Qualificação

QNT = Quantificação

PT = Produção Textual

S = variável subjetiva e intersubjetiva

T = variável espaço-temporal

TOPE = Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas

Page 16: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

SUMÁRIO

DEDICATÓRIA ........................................................................................................................3

EPÍGRAFE .................................................................................................................................4

AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................7

RESUMO ....................................................................................................................................10 ABSTRACT ................................................................................................................................11

LISTA DE FIGURAS ..................................................................................................................12

LISTA DE QUADROS E TABELAS .........................................................................................13 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ..................................................................................14

SUMÁRIO ..................................................................................................................................15 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................17

1. TEMA E JUSTIFICATIVA .................................................................................................17

2. APORTE TEÓRICO ............................................................................................................22

3. ESTRUTURA DA TESE .....................................................................................................22

CAPÍTULO I – AS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM, ATIVIDADE EPILINGUÍSTICA E

ATIVIDADE METALINGUÍSTICA NA TOPE.........................................................................24

1. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................24

1.1. A LINGUAGEM PELO VIÉS DA TOPE.............................................................................24

1.1.1. NÍVEIS DE REPRESENTAÇÃO..................................................................................28 1.1.1.1. NÍVEL I (REPRESENTAÇÃO ABSTRATA) .......................................................28

1.1.1.2. NÍVEL II (REPRESENTAÇÃO LINGUÍSTICA) .................................................29

1.1.1.3. NÍVEL III (REPRESENTAÇÃO METALINGUÍSTICA) ........................................30 1.1.2. A CONSTRUÇÃO DA SIGNIFICAÇÃO .......................................................................31

1.2. A ATIVIDADE EPILINGUÍSTICA E ATIVIDADE METALINGUÍSTICA.....................33

1.2.1. A ATIVIDADE EPILINGUÍSTICA ...............................................................................33 1.2.2. A ATIVIDADE METALINGUÍSTICA ..........................................................................36

CAPÍTULO II – A TEORIA DAS OPERAÇÕES PREDICATIVAS E ENUNCIATIVAS EM

RELAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA .................................................................41 2. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................41

2.1. A CONCEPÇÃO DE LINGUAGEM NOS PCNS E NO CURRÍCULO DO ESTADO DE

SÃO PAULO − LINGUAGENS, CÓDIGOS E SUAS TECNOLOGIAS ..................................41 2.2. A ATIVIDADE EPILINGUÍSTICA ....................................................................................54

2.3. A ATIVIDADE METALINGUÍSTICA ..............................................................................56

CAPITULO III – OPERAÇÃO DE DETERMINAÇÃO: MODALIDADE ................................59 3. INTRODUÇÃO .....................................................................................................................59

3. 1. A MODALIDADE DO PONTO DE VISTA LÓGICO........................................................59

3. 2. A MODALIDADE NOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS......................................................63

3.2.1. A NOÇÃO DE ASSERÇÃO ........................................................................................64

3. 3. OS TIPOS DE MODALIDADE DE PALMER ...................................................................65

3.3.1. MODALIDADE EPISTÊMICA....................................................................................65 3.3.1.1. MODALIDADE EPISTÊMICA DE ESPECULAÇÃO .............................................67

3.3.1.2. MODALIDADE EPISTÊMICA DE DEDUÇÃO E DE ASSUNÇÃO ..........................67

3.3.2. MODALIDADE DEÔNTICA ......................................................................................68

Page 17: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

3.3.2.1. MODALIDADE DEÔNTICA DIRETIVA .............................................................68 3.3.2.2. MODALIDADE DEÔNTICA COMISSIVA ..........................................................69

3. 4. A MODALIDADE EM BENVENISTE ...............................................................................70

3.5. A MODALIDADE NA TOPE ..............................................................................................71 3.5.1. OS TIPOS DE MODALIDADE NO ÂMBITO CULIOLIANO ...........................................76

3.5.1.1. MODALIDADE DE ASSERÇÃO (AFIRMAÇÃO OU NEGAÇÃO), DE

INTERROGAÇÃO E DE ÊNFASE .........................................................................................77 3.5.1.2. MODALIDADE DO NECESSÁRIO, DO POSSÍVEL, DO EVENTUAL OU DO

PROVÁVEL .......................................................................................................................79

3.5.1.3. MODALIDADE APRECIATIVA .......................................................................80

3.5.1.4. MODALIDADE INTERSUJEITOS .....................................................................80 3.6. A MODALIDADE CULIOLIANA REVISTA POR CAMPOS ...........................................81

3.6.1. A MODALIDADE EPISTÊMICA ..........................................................................82

3.6.2. A MODALIDADE APRECIATIVA ......................................................................84 3.6.3. A MODALIDADE DEÔNTICA .............................................................................85

3.7. A MODALIDADE NO LIVRO DIDÁTICO .......................................................................85

CAPÍTULO IV – METODOLOGIA DA PESQUISA .................................................................90

4. INTRODUÇÃO .......................................................................................................................90

4.1. O CARÁTER METODOLÓGICO DA TOPE......................................................................90 4.2. CONTEXTO DE PESQUISA ..............................................................................................96

4.3. DESCRIÇÃO DO CORPUS ................................................................................................97

4.3.1. PRIMEIRA FASE DE COLETA DE DADOS .................................................................97 4.3.2. SEGUNDA FASE DE COLETA DE DADOS .................................................................99

4.4. PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE: O PAPEL DO LINGUISTA E LES OUTILS

TECHNIQUES .............................................................................................................102 4.4.1. A OPERAÇÃO DE LOCALIZAÇÃO ..........................................................................104

4.4.2. OPERAÇÕES CONSTITUTIVAS DE UM ENUNCIADO ...............................................106

4.4.2.1. A RELAÇÃO PRIMITIVA OU RELAÇÃO ORDENADA ...................................106

4.4.2.2. A RELAÇÃO PREDICATIVA .......................................................................107 4.4.2.3. A RELAÇÃO ENUNCIATIVA .......................................................................109

4.4.3. AS OPERAÇÕES DE DETERMINAÇÃO ....................................................................110

4.4.3.1. A QUANTIFICAÇÃO E A QUALIFICAÇÃO ...................................................111

CAPÍTULO V – ANÁLISE DE CORPUS .................................................................................116

5. INTRODUÇÃO .....................................................................................................................116

5.1. BREVES CONSIDERAÇÕES ...........................................................................................116

5.2. ANÁLISE DAS PRODUÇÕES TEXTUAIS PRODUZIDAS NO ANO DE 2013 ............118 5.2.1. PT1 − O MELHOR DIA DE TODOS .........................................................................118 5.2.2. PT2 − A CIGARRA DÁ SEU TROCO ........................................................................123

5.3. REFLETINDO SOBRE AS ATIVIDADES REALIZADAS PELOS ALUNOS ...............129

5.4. ANÁLISE DAS PRODUÇÕES TEXTUAIS PRODUZIDAS NO ANO DE 2016 ............134

5.4.1. PT12 − A REVOLTA DA FORMIGA .........................................................................135 5.4.2. PT14 − (SEM TÍTULO) .........................................................................................139

CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................143 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .....................................................................................146

APÊNDICES .............................................................................................................................154

ANEXOS ...................................................................................................................................157

Page 18: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

17

INTRODUÇÃO

Nesta seção introdutória, apresentamos o tema abordado em nossa

investigação, além de expormos a justificativa para a realização deste trabalho e os objetivos

que delineamos, assim como situamos o nosso aporte teórico.

1. Tema e justificativa

A investigação que apresentamos surgiu do resultado de reflexões alcançadas

em nossa trajetória profissional e, mais recentemente, acadêmica. Levando em consideração

que o papel do ensino de língua é refinar a capacidade discursiva dos alunos, acredita-se que

os estudos enunciativos contribuam para que haja uma avaliação das práticas pedagógicas que

têm sido adotadas pela escola, diante da constatação de que muitas vezes ocorra o desvio do

verdadeiro objetivo do ensino, ao voltar-se para modelos normativos e descritivos. Além

disso, considera-se também que o estudo de língua deve ser submetido a uma abordagem

dialógica que muitas vezes não é vista tradicionalmente nas escolas, onde se costuma

trabalhar separadamente língua e linguagem, gramática e produção/interpretação de textos.

Inicialmente, a preocupação é saber como nos apoiar na atividade de

linguagem, determinando quais marcadores de operações linguísticas são responsáveis pelo

processo que visa ao ajustamento entre sujeitos, estes sempre operando sobre a linguagem ou

negociando sobre as representações, associadas a efeitos semânticos.

Nesse sentido, propomo-nos a repensar, dentro da perspectiva enunciativa, o

ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa a partir da articulação entre marcas gramaticais e

produção/interpretação de textos. Tais colocações vão ao encontro das concepções do

Currículo do Estado de São Paulo – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (2012, p. 32),

pois postula que “[...], os conhecimentos linguísticos não podem ser limitados apenas pelo

conhecimento da norma-padrão.” Essa orientação curricular, além de ressaltar a relevância da

ampliação da competência discursiva dos alunos, também registra que:

A proposta de estudar a língua considerada como uma atividade social, como

um espaço de interação entre pessoas, num determinado contexto de comunicação, implica a compreensão da enunciação como eixo central de

todo o sistema linguístico e a importância do letramento, em função das

relações que cada sujeito mantém em seu meio. (SÃO PAULO, 2012, p. 33)

Page 19: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

18

Levando em consideração o que nos indica o Currículo em relação ao papel a

ser desenvolvido pelo ensino/aprendizagem de língua materna, acreditamos que uma

perspectiva enunciativa seja um caminho pertinente para alcançarmos os seguintes objetivos

traçados para a realização desta pesquisa:

(1) explorar com mais profundidade o processo de constituição de planos

enunciativos que envolve mecanismos enunciativos como marcas de regulação intersubjetiva,

sobretudo a modalidade apreciativa ;

(2) determinar e analisar o uso da modalidade apreciativa num corpus

constituído de textos narrativos, sobretudo fábulas.

(3) propor práticas linguísticas a serem aplicadas no exercício da produção

textual visando a explorar, no ensino de línguas, processos de linguagem que, por sua vez,

possam promover o desenvolvimento linguístico-cognitivo nos aprendizes.

Esse estudo foi instigado graças à investigação sobre o processo de

constituição de planos enunciativos veiculado por mecanismos linguísticos como marcas de

regulação intersubjetiva (a relação do discurso narrado/comentado) nas predicações, durante o

desenvolvimento da dissertação de mestrado intitulada Processos linguísticos na produção de

textos: mecanismos de qualificação e relações intersubjetivas, na qual trabalhamos com a

noção de qualificação veiculada por diferentes marcadores gramaticais, tais como os

adjetivos, locuções adjetivas, predicativo do sujeito e orações adjetivas, incluindo-se também

verbos e advérbios. Foi-nos possível observar que a presença de tais noções de qualificação

como marca explícita de uma regulação intersubjetiva é rara nas produções textuais de alunos

do Ensino Fundamental – Anos Finais1, como pudemos comprovar com o levantamento e

análise dos textos que constituem o corpus dessa citada dissertação. De um conjunto de 300

produções textuais coletadas, que inicialmente compuseram o corpus, somente 29 foram

selecionadas para a realização das análises. As 271 produções restantes foram

desconsideradas, ou por não apresentarem sentido ao serem realizadas as leituras, ou por

serem ilegíveis, e principalmente, por não possuírem ocorrências que envolvessem a noção de

qualificação.

Do conjunto de 29 produções textuais selecionadas para a realização das

análises, 4 amostras apresentaram ausência total de noção de qualificação, enquanto que as

outras 25 amostras apresentaram predicações com número variável de ocorrências envolvendo

1 Tais dados remetem ao Ensino Fundamental – Anos Finais de uma escola pública localizada na periferia de

uma cidade do interior de São Paulo.

Page 20: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

19

marcadores de qualificação que traduzem intersubjetividade. Com a efetuação das análises,

constatou-se primeiramente que as produções textuais caracterizadas pela carência de noção

de qualificação se edificam por meio de encadeamentos de ações/acontecimentos, ocorrendo o

apagamento das marcas de julgamento por parte do sujeito-enunciador, como podemos

verificar na produção textual2 e no quadro de encadeamentos de ações/acontecimentos

(BARROS, 2011) abaixo:

Quanto à versão digitada:

2 Exemplo de produção textual retirada da dissertação Processos linguísticos na produção de textos:

mecanismos de qualificação e relações intersubjetivas.

Figura 1 - Texto original de um aluno do Ensino Fundamental – Anos Finais, 2010

Fonte: Barros (2011, p. 116)

Page 21: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

20

Quadro 2 - Encadeamentos de ações/acontecimentos em O gladiador e o canibal

Ao levar em consideração as produções textuais que apresentaram poucas ou

mais ocorrências envolvendo noções de qualificação que traduzem intersubjetividade, foi

possível observar que a marca de qualificação responde em grande parte pela regulação

intersubjetiva discursiva. Além desse fato, verificamos também que a atribuição de

qualificação não se edifica somente por meio de adjetivos, locuções adjetivas, orações

adjetivas, aos quais, tradicionalmente, atribui-se esse papel, mas também por diferentes

marcas gramaticais, tais como advérbios, locuções adverbiais, orações coordenadas e

subordinadas, verbos, como podemos observar nos seguintes excertos retirados dos textos

constituintes do corpus da dissertação (BARROS, 2011, p. 75-76):

• Advérbios, locuções adverbiais e orações adverbiais:

(1) <sua visão estava muito embaçada >

(2) <perdeu totalmente>

<o canibal comeu os filhos do gladiador> <gladiador e canibal brigam>

<gladiador mata canibal com uma flechada> <gladiador afunda mais a flecha no corpo do

canibal para ter certeza de sua morte>

Fonte: Barros, 2011, p. 82

O gladiador e o canibal

Eu gladiador e um canibal estão brigando por causa que o canibal comeu os filhos

do gladiador e o gladiador mora numa casinha no pântano e o canibal fica no mato esperando alguém

passar para comer alguém.

E os dois estão brigando no bosque e o gladiador dá uma flechada no canibal e o

canibal morre.

E o gladiador segura na flecha que acerta no coração do canibal e afunda mais

ainda para ele morrer e o gladiador fala. ─ Vai para o inferno porque você matou meus filhos e o canibal morreu.

(produção textual de um aluno de 6ª série do Ensino Fundamental – Ciclo II, 2010)

Quadro 1 - Versão digitada de O gladiador e o canibal

Fonte: Barros (2011, p. 82)

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21

• Verbos:

(3) <a linda noite se expôs> → exposta

(4) <[...] e se iludiu> → iludida

Considerando as ocorrências acima, verificamos que as classes gramaticais não

constituem domínios estanques tais como são abordadas tradicionalmente, sobretudo no que

concerne aos verbos. Por meio dos desdobramentos seguintes, nos permitiu destacar a

natureza qualitativa das predicações, tais como:

< sua visão estava embaçada < marca < o embaçado era muito >

< perdeu, houve perda < marca < a perda havida foi total >

< a noite está linda < está exposta >

< x se iludiu < marca < x é iludido >

Portanto, a leitura nos possibilitou observar que a ocorrência de movimento

entre as classes morfológicas foi possível graças aos valores enunciativos gerados, tais como a

quantificação/qualificação, modalidade, tempo e aspecto. Esses resultados nos viabilizaram a

delinear esta pesquisa. Dessa forma, este estudo intenciona mostrar que a aplicação de

atividades enunciativas envolvendo a modalidade apreciativa, marcas que expressam

comentários por parte do sujeito enunciador no enunciado ao longo de sua narrativa, no

ensino de Língua Portuguesa é um caminho para se promover a capacidade discursiva dos

aprendizes.

Isso se justifica, pois a presença de noções qualificativas demonstra um

trabalho realizado pelo sujeito-enunciador em relação ao que é dito, ao mesmo tempo em que

apresenta fatos, o aluno os julga, comenta, dialoga com o texto.

Apesar de passarem diversos anos em salas de aula de língua materna, os

alunos ainda apresentam dificuldades na produção de textos. Diante de tais problematizações,

acreditamos que uma abordagem enunciativa possa contribuir para o processo de

ensino/aprendizagem de língua materna, subjacente às teorias que consideram a linguagem

em sua totalidade. E como docentes, é necessário estudar e descrever situações de

desenvolvimento, visando a compreender e fazer com que os aprendizes, também, as

compreendam melhor.

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2. Aporte teórico

Como essa investigação visa por meio da descrição e compreensão do

funcionamento de diferentes marcas linguísticas e difundir junto a professores formas de

promover a competência discursiva dos alunos no ensino/aprendizagem de Língua

Portuguesa, torna-se necessário, então, submetermos o estudo de língua a uma abordagem

dialógica. Desse modo, propomos o dialogismo como sustentação teórica, levando-se em

consideração a articulação entre gramática, produção e interpretação de texto.

Ainda para a realização deste trabalho, empregaremos conceitos enunciativos

na elaboração das atividades enunciativas que serão aplicadas em contexto de sala de aula e

na efetuação das nossas análises linguísticas. Tais apontamentos vão ao encontro dos

pressupostos teóricos de Culioli (1990), que propõe um deslocamento do olhar do analista que

deve deixar de observar a língua pela língua, como um simples produto final (sistema),

operando com a língua enquanto sistema de representação (produto) a que subjazem

operações de linguagem (processo) geradoras de significação. Isso posto, faz que nos filiemos

à Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas (doravante TOPE) para o

desenvolvimento deste estudo.

Por se tratar de uma teoria que toma como objeto de estudo o próprio

enunciado, intencionamos estudá-lo subjacente aos mecanismos enunciativos que o

constituem. Para Culioli (1990), a compreensão da enunciação linguística se dá, ao

estabelecer que toda produção de significação parte de operações de predicações, e essas se

desenvolvem a partir de três relações. Tais relações são denominadas como relação primitiva,

relação predicativa e relação enunciativa. Estabelece-se também no construto culioliano que a

tarefa do linguista/analista é desenvolver as atividades metalinguísticas, que representam as

atividades epilinguísticas, por sua vez representadas pelas atividades linguísticas (material

linguístico).

3. Estrutura da tese

Este trabalho está organizado em cinco capítulos, além desta introdução.

Na Introdução, caracterizamos a pesquisa no que se refere a seu tema,

justificativa, objetivos e aporte teórico que fundamenta este estudo.

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No Capítulo I, refletimos sobre a concepção de linguagem, tendo em conta os

conceitos de atividade epilinguística e de atividade metalinguística, analisando como são

concebidas pela TOPE.

No Capítulo II, retomamos as concepções de linguagem, atividade

epilinguística e atividade metalinguística, observando o modo como são abordadas em

importantes orientações escolares, como os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua

Portuguesa e o Currículo do Estado de São Paulo - Linguagens, Códigos e suas tecnologias,

com a finalidade de realizar uma discussão sob uma perspectiva enunciativa.

Quanto ao Capítulo III, apresentamos o arcabouço teórico que fundamenta a

investigação, sobretudo no que concerne à categoria linguística da modalidade. Para isso,

recorremos às abordagens de cunho lógico, linguístico e enunciativo.

O Capítulo IV trata da metodologia de pesquisa do estudo em questão, no qual

esclarecemos a questão metodológica sob o viés da TOPE, o contexto de pesquisa, o período

em que a coleta de dados foi realizada e os procedimentos adotados.

Por fim, no Capítulo V, apresentamos e analisamos as produções textuais mais

relevantes que constituem nosso corpus, a título de ilustração da pesquisa em curso.

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CAPÍTULO I

AS CONCEPÇÕES DE LINGUAGEM, ATIVIDADE

EPILINGUÍSTICA E ATIVIDADE METALINGUÍSTICA NA TOPE

1. INTRODUÇÃO

Neste estudo, propomos uma proposta didática para o ensino-aprendizagem de

Língua Materna sob uma ótica enunciativa. Pretendemos, neste capítulo, refletir sobre a

concepção de linguagem, tendo em conta os conceitos de atividade epilinguística e de

atividade metalinguística. Analisaremos a forma como essa concepção é refletida na Teoria

das Operações Predicativas e Enunciativas, doravante TOPE, de Antoine Culioli, modelo

teórico que adotamos.

1.1. A linguagem pelo viés da TOPE

Para compreender a concepção de linguagem no âmbito da TOPE, é necessário

recorrer a um sistema de representação metalinguística, tanto por se adequar à descrição e a

explicação dos fatos, quanto pela maleabilidade intrínseca, de que resultam coerência e

eficácia teórica. O aparato teórico que parece reunir as citadas características e adequação ao

objeto de estudo é o sistema de representação metalinguística elaborado por Antoine Culioli

no quadro da TOPE.

A opção teórica por esse enquadramento justifica-se pelo fato de investigar o

funcionamento da linguagem de uma perspectiva global, além da elaboração de um trabalho

formal que subjaz à produção e ao reconhecimento das formas interpretáveis, concebendo,

assim, os denominados enunciados. Os enunciados são produtos dinâmicos resultantes da

atividade de linguagem, ou seja, a relação entre produção e reprodução linguísticas, geradas

pelos enunciadores em suas enunciações3. Por meio destes, os mecanismos de linguagem são

remetidos ao cenário interpretativo que o enunciado induz. No entanto, Culioli se propõe

3 A TOPE não privilegia o estudo de produtos que considera estáticos, tais como as frases, analisáveis em

termos da ordem dos constituintes, ignorando a dimensão enunciativa.

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apreender o funcionamento da linguagem somente por meio das línguas, isto é, dos

observáveis que são as produções linguísticas na diversidade das línguas naturais.

Esse fato é enfatizado por De Vogüe:

Culioli insiste no fato de que a linguagem não é propriedade do linguista: o

"domínio" do linguista é limitado à "relação que existe entre a atividade de

linguagem e estas configurações específicas que são os enunciados nas

diversas línguas naturais." (DE VOGÜE, 2011, p. 68)

Sublinhamos que o programa culioliano, ao se debruçar sobre as línguas e os

mecanismos formais que elas desenvolvem, preocupa-se em dar conta de uma faculdade

humana, relativa ao homem, evidenciando as suas propriedades que, de uma maneira ou de

outra, tocam no que faz a especificidade da condição humana.

Culioli (1990) defende a ideia da concepção de linguagem como atividade

significante, onde consequentemente, temos a reabilitação do sujeito enquanto entidade capaz

de se constituir em origem das produções linguísticas. Nesse mesmo sentido, De Vogüe

(2011) asserta que:

É precisamente porque a enunciação é concebida como um processo de constituição de sentido (e não como o ato de um locutor) que a linguagem

deve ser concebida como uma atividade. O sentido é construído, enunciado

por enunciado. A linguagem não poderia ser concebida como uma grade

interpretativa posta sobre o mundo (semiótico), nem como um motor discursivo do qual os sujeitos se apropriam para investir o mundo de

significação: é uma máquina própria para construir significação. [...] Os

sistemas variam de língua para língua, os discursos, de locutor para locutor: é somente na atividade que a linguagem reside, aquém dos sistemas e dos

discursos. (DE VOGÜE, 2011, p. 75)

Culioli estabelece uma integração entre linguagem e humanidade, que não são

separadas, marcando, desse modo, o conceito de linguagem como atividade humana,

colocando em jogo a problemática humana da cognição, que não é autônoma em relação a

essa atividade4.

De acordo com o programa culioliano, as formas e sequências linguísticas,

desde o morfema ao texto, são marcadores de operações metalinguísticas, ou "traços de

4 Esta postura teórica vem de encontro ao posicionamento da Gramática Gerativa de Chomsky, que defende uma

autonomia entre linguagem e cognição.

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operações subjacentes". Visando a construção da significação, a linguagem pode ser

concebida como atividade de representação, atividade de referenciação e atividade de

regulação. Tais atividades, consideradas capacidades cognitivas que nos são inatas,

concretizam, de acordo com Culioli (1990), os processos de construção e de reconhecimento

de formas. Assim, o sentimento de uma especificidade de uma dada língua, direciona a uma

visão particular do mundo, fazendo com que nossa atividade simbólica permita a construção

de uma ligação necessária, entre nossa representação linguística e nossa representação mental.

Quanto à atividade de representação, esta é composta por uma sequência de

operações que se desenvolvem em diferentes níveis. Corresponde à apreensão do mundo pelo

sujeito, construída graças a fatores físico-culturais e mentais, que acabam por refletir na

linguagem e que se caracterizam por construir as noções linguísticas/extralinguísticas que

adquirem forma, quando em relação com outras noções (ONOFRE, 2003).

A atividade de referenciação objetiva constituir um sistema referencial

intersubjetivo que consiste na localização dos objetos metalinguísticos construídos e

reconstruídos (VALENTIM, 1998). Para Culioli (1990), esse processo pode ser compreendido

como,

[...], o requisito para a referência é a construção de um complexo sistema coordenado intersubjetivo, de um espaço referencial, e de objetos

linguísticos localizáveis (mais precisamente, localizável em relação ao

centro organizador de um domínio nocional, tanto quanto em relação aos parâmetros subjetivo e espaço-temporal do espaço referencial). Em outras

palavras, o correspondente intersubjetivo que permite referência não é

trivial5. (CULIOLI, 1990, p. 180)

Quanto ao sistema de referência, este é construído por um sujeito considerado

parte integrante do sistema, que deve construí-lo em relação a outro sujeito com o qual

compartilha sua representação, constituindo assim uma situação complexa. Desse modo, se

constrói um sistema de referência estável e ajustável, que permite, ao outro a sua reconstrução

a partir dos enunciados, e a operação de referenciação, onde o texto é possível de ser

interpretado e valores referenciais são atribuídos (CULIOLI, 1999a). Por fim, é relevante

5 Tradução nossa, do original: "[...], the prerequisite to reference assignment is the construction of a complex

intersubjective coordinate system, of a referencial space, and of localizable linguistic objects (more accurately,

locatable with respect to the organizing centre of a notional domain, as well as relative to the subjective and

spatio-temporal parameters of the referencial space). In other words, the intersubjective matching which allows

reference is not a trivial one."

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27

sublinhar que o sujeito enunciador, ao ser considerado origem do referencial, pode se

representar e ser representado como móvel e atual ao longo do tempo.

Na terceira atividade referida, de regulação, são instauradas relações de

alteridade, concomitantemente complexas e formalizáveis entre enunciador e coenunciador.

Indissociável das operações de representação e de referenciação, incide sobre a relação entre

noções e marcadores, incluindo a relação intersubjetiva.

Considerar a atividade de linguagem é necessariamente construir um objeto

complexo, heterogêneo, tal como sua modelização supõe a articulação de vários domínios.

Consequentemente, levar em conta os fenômenos da língua é colocar a questão do específico

e do generalizável, do contingente e do invariante. Aliás, encontrar as invariantes que fundam

e regulam a atividade de linguagem, em toda sua riqueza e complexidade, é um dos objetivos

centrais desse sistema de representação metalinguística (CULIOLI, 1999a).

Culioli acredita que a Linguística tem por objeto a atividade de linguagem

apreendida por meio da diversidade das línguas naturais e através da diversidade de textos,

tanto orais quanto escritos (CULIOLI, 1990). As produções textuais são fruto de operações

linguístico-cognitivas realizadas por sujeitos enunciadores6 em relação de interação,

compostas por uma imbricação de marcas enunciativas. Por conseguinte, tal atividade possui

uma natureza dupla, de produção e de reconhecimento das formas, que não pode ser estudada

independentemente dos textos. O contrário também se aplica: o estudo dos textos não pode ser

independente do estudo das línguas. Ainda, em relação à produção e reconhecimento de

formas, Culioli (1990) salienta:

A atividade de linguagem é significante à medida que um enunciador produz

formas para que sejam reconhecidas por um coenunciador como sendo produzidas para serem reconhecidas como interpretáveis. Quanto às formas,

elas são fundamentalmente sonoras (ou gráficas)7. (CULIOLI, 1990, p. 39)

Portanto, a relação tripla entre representação mental, processos referenciais e

regulação intersubjetiva é subjacente a qualquer atividade conceitual simbólica mediada por

6 Culioli não tem a preocupação de elaborar uma teoria do diálogo, pois enunciadores como espaço de diálogo

não são considerados sob seus aspectos empíricos, em situações de interação, mas como construtos teóricos. 7 Tradução nossa, do original: "L'activité de langage est signifiante dans la mesure où un énonciateur produit des

formes pour qu'elles soient reconnues par un co-énonciateur comme étant produites pour être reconnues comme

interprétables. Quant à ces formes, elles sont foncièrement sonores (ou graphiques)."

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sequências textuais que os sujeitos produzem e reconhecem como formas que possuem

significação e são interpretáveis.

Isso posto, recorre-se aos níveis de representação, que funcionam como base

para entender a relação que estas operações abstratas possuem com os marcadores

linguísticos. Referimo-nos, concretamente, aos níveis de representação abstrata, linguística e

metalinguística, que correspondem aos níveis mental, linguístico e descritivo-explicativo da

atividade de linguagem, sua manifestação nas línguas naturais e sua descrição teórica.

1.1.1. Níveis de representação

Um esquema de níveis de representação é proposto por Culioli (1990) na

relação entre linguística, linguagem e línguas naturais, considerado adequado a um modelo

teórico que se preocupe com o conhecimento da atividade de linguagem subjacente às línguas

naturais. Aqui delineamos os três níveis de representação.

1.1.1.1. Nível I (Representação abstrata)

O Nível I, considerado o nível da atividade cognitiva da linguagem, que

designamos por nível de representação abstrata, constitui-se de noções e operações e é pré-

linguístico, ou seja, pré-lexical e pré-enunciativo. Remete ao nível das operações cognitivas,

à representação mental. Nesse nível são organizadas as experiências que elaboramos desde a

infância, as construções de nossas relações com o mundo, com os objetos, com o outro, pelo

fato de pertencer a uma determinada cultura, além do interdiscurso no qual nos banhamos.

Na representação mental, há ocorrências de operações em relação, de

encadeamento, de construção de propriedades compostas, às quais não temos acesso, no

sentido imediato. Não temos acesso aos processos que originam as formas e as construções

linguísticas, mas temos à nossa disposição os traços textuais que nos apontam para tais

processos.

Neste nível, considerado o mais complexo na ordem das operações, ocorre uma

operação elementar primitiva denominada Localização. O conceito de Localização está ligado

à ideia de localizar um termo em relação ao outro, sendo que, por meio dessa operação, o

termo localizado ganha determinação quanto aos domínios nocionais em causa. É uma

operação essencial, uma vez que um objeto somente adquire forma e valor referencial graças

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29

ao esquema dinâmico de Localização. Mais concretamente, a operação de Localização se

descreve do seguinte modo:

Dizer que x é localizado em relação a y significa que x é localizado (no

sentido abstrato do termo), situado em relação à y, este último, que serve de

localizador (ponto de referência) seja ele mesmo localizado em relação a um outro localizador, ou a um localizado original ou que seja ele mesmo

original. Nada impede que um termo seja localizado em relação a ele

mesmo, que um termo que estava localizado numa primeira relação torne-se a seguir um termo localizador, ou que os dois termos estejam numa relação

recíproca de localizador a localizado8. (CULIOLI, 1999a, p. 97)

Este nível é anterior à categorização em palavras, por isso, como linguistas não

temos acesso a ele de forma imediata.

1.1.1.2. Nível II (Representação linguística)

Trata-se do nível de representações linguísticas, as formas e as construções

observáveis nos textos, consideradas traços da atividade de representação do Nível I, apesar

da relação entre os dois níveis não ser biunívoca. As representações linguísticas são

representações das representações mentais da realidade. A este nível, se tem acesso à

referenciação como construção de um complexo sistema intersubjetivo coordenado, de um

espaço referencial e de objetos linguísticos localizáveis.

No nível de representação linguística, todos os objetos produzidos têm marcas

gramaticais que assinalam os valores de referência (por exemplo, de referência temporal,

aspectual, modal). O Nível II é, assim, o nível do texto. Como a relação entre as

representações dos níveis I e II não é considerada unívoca e imediata, recorre-se à construção

de um terceiro nível de representação que possa ser manipulado: o nível das representações

metalinguísticas.

8 Tradução nossa, do original : "Dire que x est repéré par rapport à y signifie que x est localisé (au sens abstrait

du terme), situé par rapport à y, que ce denier, qui sert de repére (point de référence) soit lui-même repéré par

rapport à um autre repère, ou à un repère origine ou qu' il soit lui-même origine. Rien n' interdit ou 'un terme soit

repéré par rapport à lui-même, qu' un terme qui était repère dans une première relation devienne ensuite terme

repéré, ou que deux termes soient dans une relation réciproque de repère à repéré."

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30

1.1.1.3. Nível III (Representação metalinguística)

Por fim, ao nível III ocorre a construção de hipóteses de explicitação

metalinguística. Acredita-se que seja o nível de uma reconstrução da relação de adequação (de

correspondência) entre os níveis I e II. Por meio desta relação explícita, podemos simular a

correspondência entre objetos abstratos (noções e operações) e objetos linguísticos (formas e

construções) e, deste modo, reconstituir, através de hipóteses explicativas, o nível I, isto é, o

nível das operações cognitivas. Obtêm-se, assim, representativos dos representativos

(REZENDE, 2011). É relevante assinalar que o trabalho metalinguístico consiste em

reconstruir as operações e suas respectivas cadeias das quais a forma empírica é o marcador.

Por ser necessária uma elaboração teórica e uma formalização, esse é considerado o nível de

domínio do linguista, e não do locutor. Trata-se de uma construção de um sistema de

representações formais, ou seja, uma construção teórica9.

No nível III, a construção explícita de um sistema de representação

metalinguística elaborada pelo linguista ocorre com a finalidade de modelizar as observações

dos dados. Esta prática está diretamente relacionada à atividade metalinguística, que será

abordada posteriormente. Consequentemente, todo sujeito realiza uma atividade

metalinguística não-consciente (atividade epilinguística) que remete à sua atividade

metalinguística explícita ao refletir sobre sua própria experiência em uma ou mais línguas.

Rezende (2011), em seus estudos, relaciona este nível de representação com a

atividade de regulação que caracteriza a linguagem. Tem presente dois aspectos aqui postos

em destaque:

a) o sistema é autorregulado através da reflexão inconsciente do sujeito sobre a

própria atividade de linguagem;

b) a regulação intersubjetiva consiste em ajustar estruturas de referência e

representações, permitindo a modulação e deformação, onde a mensagem não é considerada

um simples transporte de informação constituída e estável.

Como a atividade de linguagem não consiste em veicular sentidos, mas em

produzir e reconhecer formas tanto quanto traços de operações, isso acarreta na relação entre a

produção e reconhecimento, que supõe a capacidade de ajustamento entre os sujeitos.

Portanto, a significação não é veiculada, mas (re) construída.

9 A formalização culioliana se distingue da notação, no sentido em que permite um cálculo. Este último, Culioli

considera relevante, pois possibilita o vaivém entre teoria e observação, entre o nível III e II.

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1.1.2. A construção da significação

A atividade de linguagem é uma atividade de construção de significação. Para

Benveniste, construir significação é enunciar: antes de toda coisa, a linguagem significa, tal é

seu caráter primordial, sua vocação original que transcende e explica todas as funções que

assegura ao meio humano (BENVENISTE, 2006).

Enunciar é construir referência e determinação, estabelecendo uma rede de

valores referenciais. A construção de determinação está diretamente ligada à construção de

relações de localização. Nesse sentido, pode-se afirmar que:

Partindo de uma estrutura abstracta à qual se associa um sentido, vai-se, por

sucessiva operações de localização abstracta, atribuindo determinação a essa

estrutura, globalmente e em cada um dos seus termos. A estrutura abstracta de origem é, assim, afectada de valores referenciais, passando a ser um

enunciado, dotado de significação. (CAMPOS; XAVIER, 1991, p. 295)

Com vista à construção da significação, as operações de localização incidem

sobre a relação predicativa, um objeto abstrato, pré-linguístico e pré-enunciativo. Só

mediante a localização da relação predicativa10

em relação a um sistema referencial esta

ganha determinação, resultando em um número teoricamente infinito de enunciados, aos quais

associamos uma significação.

Duas entidades enunciativas estão envolvidas na atividade de linguagem que

gera construção e reconstrução de significação: por um lado, o enunciador − responsável por

produzir formas linguísticas com significação − e, por outro lado, o coenunciador − que, por

meio do reconhecimento das formas linguísticas geradas, reconstrói a sua significação. Dessa

forma, o enunciado encerra a significação construída pelo enunciador e, concomitantemente,

aquela reconstruída pelo coenunciador, partindo das formas linguísticas geradas pelo

enunciador e por si reconhecidas (VALENTIM, 1998). É deste modo que, conforme referido

atrás, a atividade de linguagem pode ser descrita e explicada a partir da observação das

formas linguísticas que coocorrem em enunciados. É também nesse sentido que os textos em

línguas naturais são considerados manifestações da citada atividade, por isso são eles os 10

Trata-se uma representação validável de um estado de coisas, graças a um sistema de coordenadas,

representadas por S - onde ocorre a construção de um sujeito origem e de uma relação intersubjetiva - e por T -

localizador espaço-temporal.

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32

observáveis, o que possibilita formular hipóteses teóricas sobre o funcionamento da

linguagem.

Na perspectiva da Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, a

construção da significação ocorre em diferentes momentos, e graças ao funcionamento da

linguagem, pois todo termo, linguístico ou metalinguístico, é um termo em relação. Devido à

existência de enunciadores que constroem enunciados, as operações enunciativas não são

dissociáveis das operações predicativas, senão por conveniência metodológica. Estabelece-se

que toda produção de significação parte de operações de predicação, e que essas se

desenvolvem a partir de uma relação predicativa − < r > − entre três termos: um predicado e

os seus argumentos − < a r b > −, que correspondem a um conteúdo proposicional11

. Os

argumentos da relação predicativa se alteram devido a operações de determinação que lhes

atribuem valores de quantificação e/ou qualificação que não possuíam anteriormente.

Subjacente à produção de um enunciado, construímos uma relação predicativa

que é uma representação de Nível I, abstrata, portanto. Esta relação predicativa se situa em

um espaço enunciativo munido de um sistema de parâmetros coordenados, adquirindo valores

referenciais e constituindo, desse modo, um enunciado capaz de ser interpretado como um

acontecimento linguístico.

Esse espaço enunciativo assume a forma de um sistema referencial, composto

pelas coordenadas Sujeito (doravante S) e Espaço-Tempo (doravante T) que, por sua vez,

compõem uma situação de enunciação (doravante Sit), origem de coordenadas subjetiva e

espaço-temporal de diferentes estatutos teóricos. Por outras palavras, a situação de enunciação

é concebida como uma representação metalinguística do sistema de coordenadas enunciativas

que localizam referencialmente um dado estado de coisas. Dentre as duas coordenadas, por

um lado, subjetiva (S), e por outro lado, coordenada espaço-temporal (T), é a coordenada

subjetiva a relevante para a construção dos valores modais do enunciado.

Nesse sentido, Campos (2000) postula que:

A significação resulta, assim, de cadeias de relações de localização abstracta.

O localizador último é a situação de enunciação origem Sit0, definida pelos parâmetros sujeito enunciador S0 e tempo da enunciação origem T0. Fazendo

parte dos mecanismos de construção da determinação, os parâmetros

enunciativos são internos à língua. A enunciação não é, portanto, um nível

que se acrescenta ao nível da predicação, mas converge e interage com a predicação na construção da significação. (CAMPOS, 2000, p. 165)

11 Nas formulações metalinguísticas propostas, r representa o operador de predicação e a e b são variáveis

relativas aos argumentos da relação predicativa.

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33

A significação resulta da linguagem enquanto atividade, origina de uma cadeia

de operações de localização abstrata, um primitivo teórico, sendo os parâmetros S, T e Sit

localizadores últimos nestas cadeias. Assim, no quadro culioliano, a enunciação intervém na

construção metalinguística de toda significação gerada, não interferindo apenas na descrição

de fenômenos bem delimitados como a modalidade, por exemplo.

A linguística da enunciação culioliana se preocupa com a transição que se

opera entre objetos abstratos (noções e operações) e objetos linguísticos (formas e construções

que constituem enunciados). Trabalha, por isso, com a linguagem enquanto atividade

cognitiva que permite ao sujeito enunciador tecer um jogo estruturado de operações que, por

via da produção de enunciados, visa a uma pluralidade de significações e de valores

referenciais.

1.2. A atividade epilinguística e atividade metalinguística

A reflexão que propomos neste subcapítulo sobre atividade epilinguística e

atividade metalinguística considera o modo como estas são concebidas por Antoine Culioli na

Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, no sentido de tratar "o problema da

abstração ligada às nossas representações12

" (CULIOLI; NORMAND, 2005, p. 21).

1.2.1. A atividade epilinguística

Nas reflexões de Gombert (1990), especialista em Psicologia do ensino,

realizar uma distinção entre atividade epilinguística e atividade metalinguística é fundamental,

pois corresponde a uma oposição de propriedades psico-cognitivas, aplicada no ensino de

maneira coerente por meio de diferentes domínios. Na sua proposta, a atividade epilinguística

é concebida como um conhecimento intuitivo e um controle funcional da atividade linguística.

Sem desconsiderar o propósito comunicativo que é atribuído ao sujeito, esse autor entende

que qualquer sujeito desempenha uma atividade de controle sobre a produção, sobretudo

sobre as regras gramaticais por ele implicitamente utilizadas - por exemplo, escolha do

12 Tradução original, do original: "le problème de l'abstraction liée à nos représentations."

Page 35: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

34

gênero, do artigo, construção de referência anafórica, etc. - sendo possível observar os

fenômenos de autocorreção.

No Brasil, temos acesso à epistemologia culioliana, graças às publicações da

professora-pesquisadora Letícia Marcondes Rezende, que defende a importância da atividade

epilinguística no ensino de línguas, como veremos mais adiante no Capítulo II.

A origem do conceito de atividade epilinguística é atribuída ao linguista

francês Antoine Culioli. A atividade epilinguística é concebida como "uma atividade

metalinguística não consciente do sujeito" (Culioli, 1999, p. 19). Segundo a linguista francesa

Claudine Normand (2005)13

, Culioli foi o único a realizar a distinção entre metalinguístico e

epilinguístico, fundamentada na distinção entre a racionalidade do linguista ou racionalidade

de efetuação demonstrativa explícita, e a racionalidade do locutor. Sobre a racionalidade do

locutor, a epilinguística, afirma Culioli que essa recupera uma racionalidade

metodologicamente considerada enquanto anterior, sendo, por isso, abstrata. Observemos as

seguintes afirmações de Culioli:

A racionalidade para mim é a construção que eu faço como pesquisador da

nossa atividade racional, e o que eu quero dizer, por nova racionalidade14

, é

uma maneira de conduzir os pensamentos que busca uma certa coerência e que não passa pela linguagem

15. (CULIOLI; NORMAND, 2005, p. 22)

Um questionamento que surge é em relação ao nível de funcionamento da

linguagem em que se situa essa racionalidade, concebida como um "raciocínio" que não passa

necessariamente pela verbalização. Parece-nos que, sendo de natureza cognitiva e intuitiva, se

poderá considerar que se situa no nível I, isto é, o nível das representações abstratas.

O próprio Culioli afirma que o termo "epilinguístico" tem três fontes, ou razões

de ser. A primeira refere-se à dificuldade que esse autor confessa de não poder designar o

raciocínio que considera silencioso e inacessível. Em segundo lugar, remete a François

Bresson, especialista da psicologia cognitiva, que lhe sugeriu o termo. Por fim, a terceira

13

Claudine Normand é a autora de Onze rencontres sur le langage et les langues (2005), um volume constituído

de entrevistas por ela realizadas a Antoine Culioli. 14

O atributo "nova", aqui associado a racionalidade, se refere a uma realidade teórica, algo que Culioli diz ser

"uma racionalidade muito antiga" (CULIOLI; NORMAND, 2005, p.22) 15

Tradução nossa, do original: "La rationalité pour moi est la construction que je fais en tant que chercheur de

notre activité rationnelle, et ce que j'entends par là, par nouvelle rationalité, c'est une manière de conduire les

pensées qui recherche une certaine cohérence et qui ne passe pas par le langage."

Page 36: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

35

fonte é proveniente das suas leituras sobre epigênese e sobre os chréodes16

. Ainda em relação

a esta atividade de linguagem, Culioli asserta:

Epilinguístico remete ao fato de nossa atividade de representação e de reação

às representações dos outros e de reação às nossas representações que não

cessam jamais. Há uma atividade permanente, talvez até mesmo quando dormimos, e << epi >> significa que está chegando lá de baixo para

preparar/pavimentar os caminhos17

. (DUCARD, 2004, p. 13)

As atividades epilinguísticas podem ser concebidas como processos de

modulação realizados pelos sujeitos por meio de enunciados organizados em famílias

parafrásticas e de processos de desambiguização, pelos quais se visa uma adequação às

situações singulares de interação intersubjetiva. Rezende explicita procedimentos que

concretizam esta concepção, designando como "operações"18

:

A atividade epilinguística (essa modelização interna) permite operar sobre representações, comparar e avaliar diferenças e semelhanças, fazer

analogias, extrair ou incluir propriedades, levantar hipóteses, ordenar,

contrastar, reformular e reorganizar os dados. Essas operações são operações

formais e cognitivas de base. Esse processo permite aos indivíduos, mas também às línguas, a sua trajetória evolutiva (REZENDE, 2011, p. 711).

Outra observação a este propósito passa pela necessidade de se clarificar a

relação entre o conceito de atividade linguística e o conceito de glosa epilinguística. No

âmbito culioliano, textos produzidos pelo sujeito enunciador, de modo espontâneo ou como

uma resposta a uma solicitação, são denominados de glosa. Para Culioli (1999a), as glosas

epilinguísticas formam uma boa parte do discurso cotidiano, desempenhando um papel

importante, sobretudo, no discurso explicativo, por serem consideradas uma fonte preciosa de

informações linguísticas. A glosa constitui, por isso, um meio de aceder a um sistema de

representações internas à língua, ou seja, uma metalinguagem não totalmente controlável.

Dessa forma, consideramos relevante a seguinte afirmação: "Nós falamos de glosa e não de

16

Ou seja, caminhos estabilizados entre os caminhos possíveis. 17

Tradução nossa, do original: "Epilinguistique renvoie au fait que notre activité de represéntation et de réaction

aux représentations d'autrui et de réaction à nos représentations ne cessent jamais. Il y a une activité permanente,

peut-être même quand nous dormons, et << épi >> signifie que ça vient là-dessus frayer des chemins." 18 Neste contexto, a acepção de "operação" não se confunde com a de operações abstratas (predicativas e

enunciativas).

Page 37: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

36

paráfrase, a fim de reservar este último termo a uma atividade regrada, portanto controlada

pelo observador [...], enquanto que a glosa remete à prática linguageira do sujeito

enunciador19

" (CULIOLI, 1999a, p. 74).

É deste modo que Culioli designa a atividade epilinguística como uma

atividade metalinguística não consciente do sujeito, o que a distingue da atividade

metalinguística deliberada.

Considerar o conceito de "epilinguismo" apresentado na epistemologia

culioliana é de grande contribuição para os estudos da linguagem e permite apreender como

esta funciona, acreditamos que práticas didáticas que operem com a linguagem considerando

a dimensão epilinguística são extremamente relevantes para o ensino de Língua Portuguesa,

uma vez que os aprendizes ganham o seu espaço no ambiente escolar e buscam se adequar

nos contextos psicossociológicos nos quais vivem.

1.2.2. A atividade metalinguística

A tarefa primordial atribuída ao linguista é a de, por meio de uma construção

metalinguística, dar conta da atividade de produção e de reconhecimento de formas

linguísticas, isto é, de sequências textuais. Tal é possível graças à reconstrução das operações

abstratas a que não se tem acesso direto, senão através dos marcadores presentes nos textos,

vestígios dessas operações. Assim, é possível ao linguista construir um sistema de

representações que incida sobre o funcionamento da língua, entendida ela própria como um

sistema de representações.

Considerando os estudos de Gombert (1990), a atividade epilinguística é

indispensável à emergência da atividade metalinguística. Esta consiste em um conhecimento

consciente crescente, um controle deliberado de numerosos aspectos da linguagem. Nesta

perspectiva da Psicologia do ensino, a atividade metalinguística é, em oposição à atividade

epilinguística, facultativa e aparece tardiamente, de modo que o conhecimento funcional da

atividade linguística é considerado necessariamente um pré-requisito.

Partindo novamente para uma perspectiva enunciativa, ao realizarmos a leitura

de Onze Rencontres sur le langage et les langues, é perceptível que Culioli privilegia a

abordagem da atividade epilinguística em detrimento de metalinguística. Para este estudioso,

19

Tradução nossa, do original: Nous parlons de glose et non de paraphrase, afin de réserver ce dernier terme à

une activité réglée, donc contrôlée par l'observateur [...], alors que la glose renvoie à la pratique langagière du

sujet énonciateur.

Page 38: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

37

a metalinguagem está na língua e, se considerarmos a situação de ensino/aprendizagem de

língua que trataremos no Capítulo II deste estudo, acredita-se que a necessidade

metalinguística se impõe nas primeiras tentativas de expressão do aprendiz.

Na análise de André Gauthier (1981), a linguística da enunciação atribui ao

sujeito uma identidade, que estabelece a sua autonomia. Desse modo, insere o sujeito falante

no centro da atividade de linguagem, que considera as perspectivas de autocorreção e de

autocontrole sustentadas pelo reconhecimento da sua capacidade de abstrair, de generalizar,

de construir os sistemas de representação. Por meio das relações intersubjetivas e das

categorias gramaticais, se estabelece uma relação entre aprendiz e o mundo. Afirma ainda que

"recorrer à metalinguagem condiciona ao mesmo tempo o acesso do aprendiz ao sistema

gerador da língua-alvo e o controle do professor sobre a atividade de seus alunos20

."

(GAUTHIER, 1981, p. 490).

Gauthier reflete, desse modo, uma visão que não distingue atividade

metalinguística daquilo que Culioli denomina como atividade epilinguística. Por seu lado,

Culioli, ao conceber a atividade epilinguística como uma racionalidade silenciosa, em

oposição, conceitua a atividade metalinguística como uma racionalidade "tagarela", bavarde

em francês. Estabelecendo o linguista como especialista, este deve construir uma

metalinguagem que permita captar os fenômenos ligados à subjetividade, e mais precisamente

à intersubjetividade, de uma maneira objetiva a partir do subjetivo e do intersubjetivo.

A atividade metalinguística possui propriedades de exterioridade, a propósito

de um objeto que lhe caracterize como foi em uma relação de interioridade-exterioridade, a

saber da linguagem que não é uma simples ferramenta. Ao discutir sobre essa operação de

linguagem, Culioli remete ao termo "meta-operador", méta-opérateur em francês, que é um

marcador propriamente metalinguístico, com propriedades precisas que se constroem a partir

das observações que se criam de uma relação entre o meta-operador e as observações. Além

destas propriedades, a metalinguagem se caracteriza pela univocidade: os termos devem ter

um estatuto e são definidos pelas operações que definem as relações. Por fim, Culioli (1976,

p. 24) registra que "A exigência metalinguística é uma disciplina extremamente difícil de

20 Tradução nossa, do original: "Le recours au métalangage conditionne à la fois l'accès de l'apprenant au

système générateur de la langue-cible et le contrôle du maître sur l'activité des ses élèves."

Page 39: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

38

manter, mas que permite ver o quanto os problemas se ligam, ou seja, quais são os problemas

que devem ser resolvidos para poder abordar e resolver outros21

".

A atividade metalinguística é uma forma de, partindo de observações de

agenciamentos de superfícies, conectar um esquema primitivo de constituição, isto é, as

relações primitivas22

e, ao mesmo tempo, a partir deste esquema, retornar à superfície para

derivar uma ou mais famílias de paráfrases de enunciados. Este procedimento tem

consequências semânticas, podendo implicar variação de significação (VIGNAUX, 1995):

Dizer ou enunciar, é de fato sempre construir e de acordo com uma certa

forma, mas ao mesmo tempo, é correr o risco de interpretações múltiplas:

<<Há sempre proliferação da linguagem sobre ela mesma; temos sempre um

jogo de formas e um jogo de significações23

>>. (CULIOLI apud VIGNAUX, 1995, p. 569)

O linguista realiza a construção de famílias parafrásticas24

, ou seja, classes de

equivalências, que remetem a termos complexos ou enunciados, que apresentam propriedades

fortemente diferentes das de uma classe distribucional. Trata-se de uma análise de

enunciados, que pode consistir numa técnica de manipulação que opera sobre os termos25

complexos. Portanto, é necessário recorrer a um sistema metalinguístico capaz de representar

a derivação parafrástica, como podemos demonstrar nas equivalências seguintes.

Considerando o enunciado A cigarra aprendeu a lição, do qual estabelecemos

a relação primitiva < Cigarra, aprender, lição >, podemos observar, por meio dos textos dos

alunos, o modo como essa relação será assertada ao receber as marcas:

21 Tradução nossa, do original: "L'exigence métalinguistique est une discipline extrêmement difficile à tenir mais

qui permet de voir combien les problèmes se lient, c'est-à-dire quels sont les problèmes qui doivent être résolus

pour pouvoir en aborder et en résoudre d'autres. 22

A relação primitiva é concebida como uma tripla ordenada representada por P = (a, b, p), ou mais

especificamente por a p b, onde a indica a fonte e b o objetivo de p. Como toda relação é orientada, a relação primitiva, sobretudo a fonte versus objetivo, depende de determinadas propriedades de a, b, e p e de modulações

retóricas dependentes da situação de enunciação e das pressuposições dos enunciadores. 23 Tradução nossa, do original: "Dire ou énoncer, c'est en effet toujours construire et selon une certaine forme,

mais en memê temps, c'est encourir le risque d'interprétations multiples: << Il y a toujours prolifération du

langage sur lui-même; nous avons toujours un jeu de formes et um jeu de significations>>". 24

Também são denominadas como classes de ocorrências moduladas. 25 Tais termos podem ser lexicais ou gramaticais.

Page 40: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

39

(a) A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição26

. [PT27

2 - A

cigarra dá seu troco];

(b) A cigarra já tinha aprendido a lição e [...]. [PT3 - A amizade]

(c) A cigarra cheia de alegria, infelizmente aprendeu a lição. [PT8 - sem

título]

(d) A cigarra finalmente aprendeu a lição. [excerto referente à resposta de uma

aluna X do 6º ano durante a execução do exercício 4 da aplicação de atividade]

(e) A cigarra aprendeu a lição e [...]. [PT10 - sem título]

(f) Explicou que só não deu alimento porque a cigarra tinha de aprender a

lição e [...]. [excerto referente à resposta de uma aluna Y do 6º ano durante a execução do

exercício 4 da aplicação de atividade]

(g) A cigarra, transbordando de alegria, muito feliz aprendeu a lição. [excerto

referente à resposta de um aluno W do 6º ano durante a execução do exercício 4 da aplicação

de atividade]

(h) A cigarra com muita alegria, até quemfim28

aprendeu a lição. [PT14 - sem

título]

Como observamos acima, a lexis < Cigarra, aprender, lição > funciona como

um "gerador de paráfrases", a partir da construção de um enunciado, é possível derivar uma

família de enunciáveis em relação de paráfrase e assertar um membro desta família.

Consequentemente, não há possibilidade da existência de um enunciado isolado, uma vez que

constitui uma família parafrástica, não representa um fenômeno único (FUCHS; LE GOFFIC,

1992).

Um sistema de representação metalinguística adequado possibilita marcar

formalmente as equivalências, independentemente das regras que estão subjacentes à

transposição de um agenciamento a outro, explicando as razões particulares pelas quais estes

possuem valores de significação equivalentes. Quanto ao transpor de um agenciamento a

outro por via da manipulação de enunciados, Culioli (1999a) ressalta que de cada situação

resulta algo diferente, ganhando cada um dos marcadores do enunciado um estatuto teórico e

26 Enunciados extraídos dos textos que constituem o corpus desta investigação. 27 Abreviação adotada para nos referir à produção textual. 28

Os excertos das produções de escrita realizadas pelos alunos se encontram aqui transcritas sem modificação no

sentido de corrigir eventuais erros ortográficos ou outros.

Page 41: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

40

operatório que marca as operações que permanecem na passagem de um enunciado a outro

equivalente.

Para Culioli (1999a), a elaboração das famílias parafrásticas remete à intuição e

ao uso das regras descritivas, uma vez que toda parafrasagem se caracteriza por uma

invariante e um conjunto de relações entre termos, que podem se tornar estáveis sob

transformação. Quanto às regras descritivas, especificamente, mostram o porquê as

modulações parafrásticas e os enunciados parafrásticos possuem determinadas formas. Por

fim, a última regra considerada extremamente exigente e fundamental é "[...] utilizar sempre

fórmulas onde cada ocorrência de símbolos metalinguísticos possua um traço localizável em

um texto e onde cada constituinte do texto adquira um estatuto metalinguístico no sistema de

representações29

" (CULIOLI, 1999a, p. 81)

O ponto de vista do linguista fica exposto por via da construção de um sistema

de representação metalinguística com a intenção de representar os fenômenos. Isso é possível

graças aos representantes que possuem propriedades formais construídos a partir de termos

primitivos. Acerca dessa construção, Culioli (1990, p. 41) asserta sobre o seu caráter não

definitivo: "[...] o sistema de representação metalinguístico não será jamais estritamente

exterior, jamais totalmente adequado, jamais unívoco, jamais em toda parte homogêneo, e

isso também faz parte do trabalho teórico30

".

Desse modo, o sistema de representação metalinguístico, no sentido realista,

não é capaz de representar fielmente e de forma acabada a atividade cognitiva, incluindo a

atividade epilinguística, o que coloca o linguista na posição de quem realiza cálculos que

remetem a operações, sob a forma de simulações e da formulação de hipóteses explicativas.

29

Tradução nossa, do original: "[...] utiliser toujours des formules où chaque occurrence des symboles

métalinguistique a une trace repérable dans un texte et où chaque constituant du texte acquiert un statut

métalinguistique dans le système de représentations." 30

Tradução nossa, do original: "[...] le système de représentation métalinguistique ne sera jamais strictement

extérieur, jamais totalement adéquat, jamais univoque, jamais partout homogène, et cela fait aussi partie du

travail théorique."

Page 42: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

41

CAPÍTULO II

A TEORIA DAS OPERAÇÕES PREDICATIVAS E

ENUNCIATIVAS EM RELAÇÃO AO ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

2. INTRODUÇÃO

Neste capítulo, propomos uma discussão sobre o ensino-aprendizagem de

língua portuguesa sob uma ótica enunciativa. Pretendemos observar como a concepção de

linguagem e os conceitos de atividades epilinguísticas e metalinguísticas, já estudadas no

capítulo anterior deste trabalho, se apresentam em orientações escolares como os Parâmetros

Curriculares Nacionais31

de Língua Portuguesa e no Currículo do Estado de São Paulo -

Linguagens, códigos e suas tecnologias32

. Temos a intenção de verificar o quanto essas

citadas conceituações se aproximam ou se distanciam da TOPE, bem como algumas

consequências para práticas voltadas para a produção de textos.

2.1. A concepção de linguagem nos PCNs e no Currículo do Estado de São Paulo -

Linguagens, códigos e suas tecnologias

Um dos papéis do ensino-aprendizagem de línguas é o de garantir ao aprendiz

seu engajamento discursivo, isto é, proporcionar o seu envolvimento e de outros no discurso,

além de assegurar ao aluno uma experiência singular de construção de significação por meio

da linguagem. Tal apontamento é proposto pelos PCNs de Língua Portuguesa, cuja orientação

central é de que o ensino de língua deva ocorrer por meio de textos, um consenso tanto entre

linguistas teóricos como aplicados. Adotando como perspectiva teórica as concepções

31 Parâmetros Curriculares Nacionais, doravante PCN, são documentos elaborados em 1998 por uma equipe do

MEC - Ministério da Educação, que compõem a grade curricular com a intenção de orientar quanto ao cotidiano

escolar, propondo práticas docentes que encaminhem os alunos rumo à aprendizagem. 32

É considerado o documento curricular da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. Neste material,

encontram-se as orientações e conteúdos a serem ministrados nas disciplinas de Língua Portuguesa, Língua

Estrangeira Moderna - Inglês, Língua Estrangeira Moderna - Espanhol, Arte e Educação Física; para o Ensino

Fundamental - Ciclo II e Ensino Médio.

Page 43: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

42

culiolianas sobre linguagem, a ideia aqui não é apenas evidenciar as controvérsias como,

também, expor as possibilidades aí contidas.

Embora nos PCNs alguns estudiosos afirmem que o enfoque linguístico-

enunciativo remeta à teoria bakhtiniana, por abordar tópicos relativos aos gêneros do

discurso33

e práticas pedagógicas fundamentadas em tais princípios, não constituem um

subsídio para as práticas de natureza enunciativa e reflexiva que devem ser desenvolvidas e

aplicadas em sala de aula. Na análise de Onofre e Sossolote (2015),

Isso não seria, de fato, problemático, se não houvesse a crença de que,

trabalhando, por exemplo, com gêneros discursivos, fosse possível responder

a todas as questões léxico-gramaticais e discursivas que possam surgir no

texto do aluno, posição da qual discordamos. Qualquer um diria que não se está afirmando isso, porém o que se observa é que, atualmente, o texto

passou a ser trabalhado sob a ótica dos gêneros, da funcionalidade, moldado

pelos padrões discursivos, por um lado, e, por outro, sob a ótica das regras de textualidade, moldado pelos padrões das estruturas textuais e gramaticais.

(ONOFRE, SOSSOLOTE, 2015. p. 639)

Isso demonstra que esses documentos curriculares apresentam lacunas nas

orientações fornecidas, uma vez que o tão esperado trabalho com recursos linguísticos

articulados às práticas de linguagem se perde, diante das dificuldades em se desenvolver

atividades reflexivas no ensino de produção/interpretação textuais, além da tentativa de

despertar um olhar diferenciado sobre o processo de construção do sentido nos textos, aliado a

uma mudança em relação à prática linguística.

Pode-se dizer que, à medida que realizamos a leitura dessas orientações,

pudemos verificar que o objetivo do ensino de Língua Portuguesa é consolidar práticas em

que tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada é o uso da linguagem. Além de

ressaltar a relevância da linguagem, os elaboradores nos apresentam a seguinte concepção:

Linguagem aqui se entende, no fundamental, como ação interindividual por

uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diferentes grupos de uma sociedade, nos

distintos momentos da sua história. Os homens interagem pela linguagem

tanto em uma conversa de bar, entre amigos, ou ao redigir uma carta pessoal, quanto ao redigir uma crônica, uma novela, um poema, um relatório

profissional. [...]

33 Não temos a intenção de discutir sobre este tópico nesta investigação.

Page 44: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

43

Em síntese, pela linguagem se expressam ideias, pensamentos e intenções, se estabelecem relações interpessoais anteriormente inexistentes e se influencia

o outro, alterando suas representações da realidade e da sociedade e o rumo

de suas (re)ações. (BRASIL, 1998, p. 20)

Não se trata de confinar a questão do ensino de Língua Portuguesa à

linguagem, embora esta seja fundamental no desenvolvimento de todo e qualquer homem, na

compreensão de concepções que permitem aos sujeitos entender o mundo e nele agir.

Subjacente à linguagem, deve-se levar em conta a interlocução, concebida como espaço de

produção de linguagem e de constituição dos sujeitos. Vê-se, assim, nessa perspectiva, a

linguagem como constitutiva dos sujeitos que a constroem e reconstroem em cada situação

enunciativa.

Subjacente à linguagem, considera-se relevante as operações discursivas, que

remetem aos sistemas de referência, é o que torna possível a ocorrência da intercompreensão

nos processos interlocutivos, apesar da vagueza dos recursos expressivos utilizados. Neste

particular o professor João Wanderley Geraldi (2006) registrou que:

Nestas operações pode se dizer que há ações que os sujeitos fazem com a linguagem e ações que fazem sobre a linguagem; no agenciamento de

recursos expressivos e na produção de sistemas de referências pode-se dizer

que há uma ação da linguagem.

Obviamente, estes três tipos de ações se entrecruzam e se concretizam nos recursos expressivos que, materialmente, os revelam. Considero que a

linguagem permite tais ações em função de uma de suas características

essenciais: a reflexividade, isto é, o poder de remeter a si mesma. (GERALDI, 2006, p. 16)

Verifica-se, então, que Geraldi identifica três tipos de ações linguísticas a partir

do estabelecimento da subjetividade como constituinte da linguagem.

Em relação às "ações que se fazem com a linguagem", pressupõe-se que os

homens, ao falarem, realizam muito mais do que o simples enunciar algo. Os discursos

aproximam os sujeitos pelo significado que remete a um sistema de referência. É neste

sistema de referência que os recursos expressivos ganham significação, com os quais os

homens, em sua historicidade, veem e compreendem o mundo. Como citado anteriormente, os

sujeitos e a linguagem são constituídos no espaço da interlocução. Neste sentido,

Page 45: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

44

[...] os sujeitos não são cristalizações imutáveis, os processos interlocutivos estão sempre a modificá-los ao modificar o conjunto de informações que

cada um dispõe a propósito dos objetos e dos fatos do mundo; ao modificar

as crenças pela incorporação de novas categorias e, até mesmo, ao modificar a linguagem com que falamos e representamos o mundo e as relações dos

homens neste mundo. (GERALDI, 2006, p. 28)

Tanto as "ações que se fazem sobre a linguagem" como as "ações que se

fazem com a linguagem" são consideradas trabalho que se realiza por meio de operações que

tomam recursos expressivos insuficientes para determinar um sentido e tentar produzi-lo,

"usando recursos expressivos e ao mesmo tempo contando com fatores extralinguísticos para

que a compreensão se produza, produzindo um sentido", de acordo com Geraldi (2006, p. 41).

Embora as "ações que se fazem sobre a linguagem" visem o interlocutor, se caracterizam por

voltar-se sobre a própria linguagem, onde os próprios recursos expressivos são adotados como

objeto. Tal ideia possa remeter ao conceito tradicional de atividade metalinguística, porém

neste caso, "as ações sobre a linguagem" estão ligadas à criatividade, consciente ou não, do

sujeito em busca da constituição de sentidos para seu discurso.

Em as "ações da linguagem", a própria historicidade das línguas naturais são

consideradas e "significam tanto as construções, os limites que as possibilidades formais

estabelecem, quanto o próprio sistema de referências dentro do qual o sistema linguístico se

torna significativo" na análise de Britto (2004, p. 157).

Isso demonstra que para ocorrer a compreensão das ações que se fazem com a

linguagem, sobre a linguagem e as ações da linguagem, é necessário distinguir entre as

atividades epilinguísticas e metalinguísticas34

. Tais atividades são relevantes, pois

representam níveis distintos de reflexões.

De acordo com o programa culioliano, a linguagem é uma atividade

representacional significativa, somente acessível por meio de sequência de textos, ou mais

especificamente, por meio de marcadores de operações. Por se tratar de uma atividade de

produção de significação, a linguagem é realizada por interlocutores em interação e veiculada

pela língua. Portanto, uma articulação entre língua e linguagem é necessária na escola, o que

acarreta em conceber gramática e produção/interpretação de textos de modo não fragmentado,

e de assumir como tarefa o estudo do processo subjacente ao produto.

34 As conceituações da atividade epilinguística e atividade metalinguística, no modelo teórico de Culioli, foram

apresentadas no Capítulo I deste estudo.

Page 46: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

45

Nas orientações curriculares, no que concerne à língua, há uma preocupação

em apreender pragmaticamente seus significados culturais, concomitante ao modo que as

pessoas compreendem e interpretam a realidade e a si próprias. Em relação a essa constatação,

o Currículo do Estado de São Paulo salienta:

De acordo com o Currículo, as propostas de ensino de língua nos segmentos Fundamental II e Médio convergem em seus objetivos. Ambas têm a

pretensão de cuidar para que os estudantes sejam capazes de simbolizar as

experiências (suas e dos outros) a partir da palavra (oral e escrita), refletindo

sobre elas mediante o estudo da língua, instrumento que lhes permite organizar a realidade na qual se inserem, construindo significados,

nomeando conhecimentos e experiências, produzindo sentidos, tornando-se

sujeitos. (SÃO PAULO, 2012, p. 35)

Isso registra uma oportunidade de troca de experiências que pode ocorrer entre

os aprendizes e o professor, uma vez que as produções textuais são oriundas de operações

linguístico-cognitivas realizadas por sujeitos interlocutores em relação de interação,

compostos por uma imbricação de marcas enunciativas. Portanto, os textos, considerados

insaturáveis, equivalem à língua. Nesse sentido, verificamos que ocorre uma convergência em

relação à orientação apresentada pelos PCNs como podemos observar:

O discurso, quando produzido, manifesta-se linguisticamente por meio de textos. O produto da atividade discursiva oral ou escrita que forma um todo

significativo, qualquer que seja sua extensão, é o texto, uma sequência

verbal constituída por um conjunto de relações que se estabelecem a partir da coesão e da coerência. Em outras palavras, um texto só é um texto quando

pode ser compreendido como unidade significativa global. Caso contrário,

não passa de um amontoado aleatório de enunciados. (BRASIL, 1998, p. 21)

Tal atividade nos permite remeter a uma atividade de produção e de

reconhecimento das formas, estas que não podem ser estudadas independentemente dos

textos, e estes não podem ser independentes das línguas. É evidente a ausência do conceito de

linguagem na reflexão linguística e no ensino de línguas.

Entretanto, discutir sobre a linguagem pelo viés enunciativo culioliano, faz

com que se torne necessário recorrermos às conceituações de Rezende (2011), que realiza

uma aproximação desse referencial teórico com o contexto educacional. Nos estudos dessa

autora, a linguagem é concebida como trabalho de representação, referenciação e regulação.

Page 47: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

46

Colocada como indeterminada, a linguagem é vista como um constante trabalho de construção

de representação, garantindo não somente a inserção do sujeito no interior dos processos de

construção em língua, mas também a sua liberdade.

Apesar do PCN de língua portuguesa para os Anos Finais do Ensino

Fundamental estar em vigência desde 1998, Rezende em seu artigo intitulado Estudos

Gramaticais publicado em 1989, já defendia uma prática didática de ensino de línguas por

meio de textos, como podemos observar:

Desse modo, um texto específico, significando alguma coisa para alguém,

em uma situação determinada de interação verbal, é uma

produção/interpretação escolhida em um feixe de possíveis

produções/interpretações. Um texto não existe só em sintagma mas existe dinamicamente, em paradigma. O paradigma textual ou intertexto resultam

do diálogo de quem produz/interpreta com os seus possíveis interlocutores

ou consigo próprio, enquanto outro (atividade epilinguística). Quando se escolhe um caminho determinado para uma produção/interpretação,

eliminam-se os outros caminhos. Quanto mais rica for a experiência/formas

de expressão mais rico será o intertexto ou paradigma textual e mais precisa será a produção/interpretação. (REZENDE, 1989, p. 151)

Delinear esses caminhos auxilia o professor a identificar o todo, no qual

consideramos o indivíduo e o seu contexto, e as partes, o modo como o indivíduo

produz/interpreta um texto determinado. Deve-se evitar reduzir o aprendizado de uma língua à

memorização de formas linguísticas e à sua organização em sequências lineares, mas realizar

um trabalho com interpretação e desconstrução de marcas, reconstrução de relações, pois as

significações não são dadas completamente prontas. Diante do exposto, é necessário levar em

consideração que o ensino de línguas é capaz de proporcionar uma oportunidade única para se

trabalhar processos formativos.

No PCN de Língua Portuguesa, a preocupação em desenvolver atividades de

natureza reflexiva nas aulas de língua portuguesa, que levem os alunos a pensar e operar sobre

a própria linguagem, está subordinada à afirmação de que "Deve-se ter em mente que tal

ampliação35

não pode ficar reduzida ao trabalho sistemático com a matéria gramatical."

(BRASIL, 1998, p. 27). É evidente que o ensino da gramática deve estar conectado à

produção de textos orais e escritos, tornando-se mais fecundo quanto mais servir a esse

objetivo. Portanto, a produção de um texto deve ser antecedida pela apropriação do cenário

35 Refere-se à ampliação da competência discursiva dos alunos.

Page 48: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

47

psicossociológico pelo aprendiz, estimulando a sua criatividade e não forçá-lo a realizar

exercícios mecânicos e padronizados. Tais postulados enunciativos convergem com a seguinte

afirmação:

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto como unidade

de ensino e a noção de gramática como relativa ao conhecimento que o

falante tem de sua linguagem, as atividades curriculares em Língua

Portuguesa correspondem, principalmente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta de textos orais e leitura de textos escritos e de

produção de textos orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise

e reflexão sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e construção de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar sua

competência discursiva. (BRASIL, 1998, p. 27)

Desse modo, ressalta-se a necessidade de se evitar polarizações somente no

estudo gramatical, que foca fortemente em formas linguísticas de maneira descontextualizada,

ou na consideração do texto desvinculado dos recursos linguísticos que o compõem. Com o

intuito de ilustrar algumas reflexões que o modelo teórico culioliano permite que possam ser

realizadas, levando em consideração as questões educacionais acima, levantamos algumas

discussões a esse respeito.

O constante contato com livros didáticos de Língua Portuguesa e com o

material denominado Caderno do Aluno36

de Língua Portuguesa - Linguagens, no caso das

escolas públicas estaduais do Estado de São Paulo, possibilita mostrar exercícios normativos e

descritivos, focando formas isoladas e significações preestabelecidas, ainda que os Parâmetros

Curriculares evidenciem que a preocupação do ensino da disciplina em questão é o de ampliar

a competência discursiva dos alunos. Desse modo, analisamos, a título de ilustração da

discussão em curso, a atividade proposta seguinte:

36

Material didático distribuído em toda rede de ensino público estadual pela Secretária da Educação do Estado

de São Paulo. Discorremos mais detalhadamente sobre esse material no Capítulo de Metodologia deste trabalho.

Page 49: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

48

Figura 2 - Proposta de atividade do Caderno do Aluno de 6º ano

Fonte: São Paulo (2014-2017, p. 12)

Page 50: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

49

Como pudemos verificar, nos exercícios apresentados, há uma escassez de

compreensão do processo de construção textual, não contribuindo para que os aprendizes

percorram caminhos que os levem a refletir sobre uma determinada forma, visando a uma

significação particular. Observando esse material didático, é evidente que a seção intitulada

Estudo da Língua objetiva especificamente realizar um estudo gramatical do substantivo e

adjetivo. Porém, analisando a proposta e considerando o público-alvo, os alunos de 6º ano,

trabalhar simultaneamente substantivo e adjetivo é fornecer muita informação para que o

aprendiz assimile, não focando de forma apropriada nem em uma estrutura ou em outra, o que

converge com os dizeres de Onofre (2011) a seguir:

Nada é comentado em relação aos exercícios estruturais, que criam a ilusão

de que todos os textos atendem a uma mesma estruturação, [...], pois, ao mesmo tempo em que levar o aluno a fixar uma dada estrutura para um

determinado gênero, leva-o a um exercício de reprodução textual. O mais

sério em relação a essa ilusão da estabilidade entre uma forma e sua função é o apagamento que se faz em relação às subversões, aos lugares discursivos

que se constroem por uma dada singularidade, ou subversividade, e que

contribuem para um refinamento da competência discursiva do aluno. Ainda

que as estruturas apresentadas estejam presentes em grande parte dos textos, elas têm de ser abordadas como uma das possibilidades de estruturação

textual, que convive com outras tantas possibilidades. Nesse caso, é

importante mostrar que há um lugar gerador dos gêneros, onde os diferentes tipos de aproximam, antes das reconhecidas estabilizações. (ONOFRE,

2011, p. 744)

Retomando o exercício em questão, ao examinarmos a atividade proposta em

2, se tratando de preenchimento de lacunas, atentamos para o fato de qual seria realmente a

intenção de aprendizagem envolvida, uma vez que, sendo necessário recorrer ao texto

completo e finalizado apresentado no início da unidade, caracteriza um exercício típico de

repetição de palavras. Seria mais frutuoso se o aprendiz resolvesse esta atividade antes de

realizar a leitura da fábula, fornecendo-lhe a oportunidade de completar as lacunas livremente,

criando oportunidade para que reflita sobre a construção textual.

Em relação aos exercícios 3, 4 e 5, estes demonstram uma preocupação voltada

somente para a sistematização de conceitos, assumindo uma postura tradicional e normativa,

cujo interesse é focar no produto, na marca linguística acabada. Apesar da tentativa de se

trabalhar uma atividade produzida com base no texto apresentado anteriormente, a fábula A

cigarra e a formiga, introduzindo essas classes gramaticais com o que já está sendo estudado,

Page 51: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

50

há ainda uma mecanicidade envolvida, que acarreta numa artificialidade das resoluções

esperadas. A aplicação dos exercícios gramaticais é efetuada em detrimento da significação,

limitando-se a preencher, marcar, completar e copiar, divergindo, desse modo, das

postulações dos PCNs e Currículo do Estado de São Paulo, que defendem um ensino

gramatical articulado às práticas de linguagem e não baseado em atividades de

reconhecimento e memorização de terminologia.

Uma proposta de trabalho mais proveitosa, em relação aos adjetivos, seria

pedir aos alunos que identificassem as marcas que qualifiquem tanto a cigarra quanto a

formiga, uma vez que não se restringem somente à desprovida e irritada como apontadas pelo

material didático, levando os a refletir sobre a importância desses elementos na construção

verbal. Quanto às outras ocorrências que envolvem uma qualificação, que foram

desconsideradas no exercício proposto, destacamos:

(1) A cigarra/formiga, tendo cantado por todo o verão, [...]

(1a) A cigarra/formiga cantora.

(2) Ela foi chorar de fome na casa de sua vizinha, [...]

(2a) Ela foi chorar na casa de sua vizinha, pois estava faminta/esfomeada.

(2b) Ela, com muita fome, foi chorar na casa de sua vizinha.

(3) Ela foi chorar de frio na casa de sua vizinha.

(3a) Ela foi chorar na casa de sua vizinha, pois estava frígida/com frio.

(3b) Ela, com muito frio, foi chorar na casa de sua vizinha.

Com a intenção de demonstrar as marcas com qualificação, levamos em conta

as possíveis respostas esperadas que pudessem ser elaboradas pelos alunos ao completar o

exercício 2, porém sem consultar a fábula e sem ter efetuado a leitura desta anteriormente. Por

fim, realizamos uma outra observação, suscitada a partir do seguinte excerto extraído:

Page 52: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

51

(4) [...] quando o frio chegou, [...], que poderia gerar as seguintes

possibilidades geradas pelo aluno, sob as mesmas condições que propomos para a realização

da atividade:

(4a) [...] quando o terrível frio chegou, [...]

(4b) [...] quando o temível frio chegou, [...]

(4c) [...] quando o inesperado frio chegou, [...]

(4d) [...] quando o imenso frio chegou, [...]

(4e) [...] quando o intenso frio chegou, [...]

(4f) [...] quando o inverno frio chegou, [...]

(4g) [...] quando o vento frio chegou, [...]

(4h) [...] quando o tempo frio chegou, [...]

Na fábula A cigarra e a formiga, o enunciado [...] quando o vento frio chegou,

é aquele apresentado pelo texto completo e finalizado. Porém, considerando a proposta de

trabalho já discutida anteriormente, em que o aluno completaria sem ter acesso à fábula antes

da efetuação do exercício, diante destas possíveis ocorrências, possibilitaria ao professor

refletir com os alunos sobre a diferença de significado e as consequências para a produção

textual, que possam surgir da inversão das estruturas, como em imenso frio/frio imenso. Em

seguida, observamos as seguintes práticas sugeridas pelo livro didático37

, que deveriam ser

realizadas como "Lição de casa", como sugestão do próprio Caderno do Aluno, com a

intenção de complementar os estudos sobre as classes gramaticais mencionadas.

Por meio da observação de vários materiais didáticos voltados para os 6º anos

de Ensino Fundamental − Anos Finais, detectamos que é semelhante a forma de organização

didática e abordagem de exercícios que envolvam sobretudo o adjetivo. Inicialmente, há um

texto narrativo a partir do qual são formuladas as atividades que serão realizadas pelos

estudantes, visando ao trabalho com a citada classe gramatical. Assim sendo, simulamos a

título de ilustração da discussão em curso, a seguinte prática didática:

37 Procuramos e observamos os títulos indicados pelo MEC por meio do Programa Nacional do Livro Didático

(PNLD) vigente durante os anos de 2014 a 2016. Ressaltamos que não temos a intenção de analisar materiais

didáticos, portanto, realizamos uma apresentação muito próxima das atividades apresentadas nos livros didáticos,

com o objetivo de sustentar a discussão sobre o trabalho de produção/reconhecimento de produção de texto

desenvolvido no ensino de língua materna. Nesse sentido, omitimos as informações bibliográficas, uma vez que

os exemplos não se tratam de citações.

Page 53: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

52

Optamos pelo texto As luas de Luísa de Diléa Frate, por estar presente na

maioria das atividades propostas relacionadas ao estudo do adjetivo em diversos livros

didáticos. Após a realização da leitura da narrativa, a etapa seguinte consiste em apresentar

aos alunos uma breve conceptualização da classe gramatical tal como exemplificamos:

(1) Adjetivo é uma classe de palavras que utilizamos para qualificar,

caracterizar o substantivo. Portanto, palavras como temperamental, brincalhona, carente são

adjetivos.

Em seguida, é solicitado aos estudantes que identifiquem e transcrevam as

características correspondentes à Luísa que estão no texto apresentado:

(2) Releia o seguinte trecho de As luas de Luísa.

"A Terra tem uma lua, Saturno tem vinte, mas Luísa, temperamental, imprevisível,

criativa, brincalhona, chorona, risonha, generosa, carente e absurda, tinha pelo menos umas trinta

luas perto de si."

As luas de Luísa

Diléa Frate

A Terra tem uma lua, Saturno tem vinte, mas Luísa, temperamental,

imprevisível, criativa, brincalhona, chorona, risonha, generosa, carente e absurda,

tinha pelo menos umas trinta luas perto de si. Cada lua representava um estado de

espírito diferente. A melhor lua iluminava as brincadeiras noturnas quando Luísa

ficava acordada até tarde jogando, brincando, pulando na cama, vendo TV, fazendo

maluquices e olhando pro céu. Era quando a mãe chegava e dizia: "Pare com isso,

amanhã você tem que acordar cedo". O que já era o suficiente para despertar a pior

das luas: a do mau humor. Nesse momento ela batia o pé, chorava, xingava, e a mãe

dizia apenas: "Luísa, você é de lua!". E fechava a janela. [...]

Fonte: Frate (1996, p. 72)

Page 54: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

53

É possível percebermos no excerto uma enumeração das mudanças de humor

de Luísa, mais especificamente, de suas "luas". Transcreva as características

correspondentes às:

a) "melhores luas": _______________________________________________

b) "piores luas": _________________________________________________

Por fim, um exercício exigindo que o aluno somente aponte partes que

compõem o texto apresentado como exemplo:

(3) Agora, copie em seu caderno os adjetivos que qualificam os seguintes

substantivos:

(a) brincadeiras;

(b) humor.

Quanto às práticas apresentadas para o 6º ano do Ensino Fundamental que

abordam o estudo do adjetivo, nos deparamos novamente com a aplicação de exercícios

gramaticais voltados para a aquisição da norma, em detrimento da significação. Na atividade

exemplificada acima, é proposto apenas que se identifiquem as características relativas à

Luisa, levando o aluno novamente a realizar um exercício mecânico, impedindo-o de pensar

sobre o seu pensar. Seria muito mais proveitoso, se a atividade oferecesse ao aluno a

oportunidade de explorar a relação entre Terra/ Saturno/ Luísa/ lua e os adjetivos atribuídos

no texto.

Em “A Terra tem uma lua, [...]” podemos verificar que, embora não ocorra

presença de uma marca gramatical (adjetivo), tal como aponta a conceituação, percebemos a

atribuição de qualificação nesse enunciado pelo fato de uma lua pertencer a Terra,

caracterizando tal planeta. E, assim, ocorre o mesmo com a ocorrência “[...] Saturno tem

vinte,”.

Ainda que tradicionalmente se aborde a gramática pela gramática no ensino de

língua materna, ou o texto sem atenção para as marcas linguísticas responsáveis pela

construção de sua significação, o que nos leva a comprovar que na prática, as propostas de

atividade de trabalho divergem do que os PCNs e o Currículo do Estado de São Paulo

postulam.

Page 55: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

54

Devido à diversidade regional, cultural e política existente no país, os PCNs

buscam parametrizar referências nacionais para as práticas educativas, procurando fomentar a

reflexão sobre os currículos estaduais e municipais, já em andamento em diversos estados e

municípios. Gera uma rediscussão do ensino de gramática, enfatizando a gramática no texto e

a exploração das atividades epilinguísticas e metalinguísticas. Um possível caminho

enunciativo de trabalho seria articular gramática e produção e interpretação de textos, "não

havendo conceitos estanques fora de realizações em produções textuais" (BRASIL, 1998, p.

32).

2.2 A atividade epilinguística

Neste momento, temos a intenção de refletir sobre o conceito de atividade

epilinguística, analisando o modo como este se apresenta nos PCNs e no Currículo do Estado

de São Paulo.

Nos PCNs, além da proposta de trabalhar com textos orais quanto escritos,

nota-se uma preocupação em ampliar a competência dos alunos, cuja ampliação não pode

ficar reduzida ao trabalho sistemático com a matéria gramatical. É necessário que o aluno

aprenda a pensar e falar sobre a própria linguagem, realizando uma atividade de natureza

reflexiva. Em seguida, nos apresentam a seguinte orientação:

A atividade mais importante, pois, é a de criar situações em que os alunos

possam operar sobre a própria linguagem, construindo pouco a pouco, no

curso dos vários anos de escolaridade, paradigmas próprios da fala de sua comunidade, colocando atenção sobre similaridades, regularidades e

diferenças de formas e de usos linguísticos, levantando hipóteses sobre as

condições contextuais e estruturais em que se dão. É, a partir do que os

alunos conseguem intuir nesse trabalho epilinguístico, tanto sobre os textos que produzem como sobre os textos que escutam ou leem, que poderão falar

e discutir sobre a linguagem, registrando e organizando essas intuições: uma

atividade metalinguística, que envolve a descrição dos aspectos observados por meio da categorização e tratamento sistemático dos diferentes

conhecimentos construídos. (BRASIL, 1998, p. 28)

Dessa forma, o documento nos apresenta o termo "trabalho epilinguístico"

como uma operação sobre a própria linguagem, onde não se justifica tratar o ensino

gramatical desarticulado das atividades de linguagem. A conceitualização de atividade

epilinguística é explicitada apenas em uma nota de rodapé dessa orientação curricular, não há

Page 56: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

55

uma discussão prolongada acerca do termo e nem referencial teórico no qual se basearam,

como podemos verificar:

Por atividade epilinguística se entendem processos e operações que o sujeito

faz sobre a própria linguagem (em uma complexa relação de exterioridade e

interioridade). A atividade epilinguística está fortemente inserida no processo mesmo da aquisição e desenvolvimento da linguagem. Ela se

observa muito cedo na aquisição, como primeira manifestação de um

trabalho sobre a língua e sobre suas propriedades (fonológicas, morfológicas, lexicais, sintáticas, semânticas) relativamente independente do espelhamento

na linguagem do adulto. Ela prossegue indefinidamente na linguagem

madura: está, por exemplo, nas transformações conscientes que o falante faz

de seus textos e, particularmente, se manifesta no trocadilho, nas anedotas, na busca de efeitos de sentido que se expressam pela ressignificação das

expressões e pela reconstrução da linguagem, visíveis em muitos textos

literários. (BRASIL, 1998, p. 28)

Constata-se que se trata de uma ação que se realiza sobre a linguagem, porém

representando um nível distinto de reflexão. Trata-se de se estimular uma prática pedagógica

que não seja uma atividade linguística artificial, onde os aprendizes possam assumir seus

papéis de verdadeiros locutores/interlocutores no processo de aprendizagem, tornando a

relação intersubjetiva eficaz. Para que este processo ocorra, enfatiza-se a necessidade natural

de o aluno ter o que enunciar, possuir uma razão para fazê-lo e ter para quem dizer ou

escrever. Além disso, levando em consideração os diferentes usos da linguagem, o aprendiz

engaja-se na prática de produção de textos, investindo no trabalho de construção e

reconstrução destes, visando interlocutores reais e situações discursivas possíveis e

adequadas.

Em sua célebre obra Portos de Passagem, além de realizar uma discussão

detalhada sobre a linguagem, Geraldi retoma as concepções de atividade epilinguística e

metalinguística. A primeira é concebida como uma atividade presente e detectável nos

processos interacionais, resultante de uma reflexão que considera os próprios recursos

expressivos como seu objeto. Embora considere a distinção entre atividade epilinguística e

metalinguística, sustentada na distinção entre operação não consciente e operação consciente,

como problemática, é evidente que Geraldi (2006) assume tal postura se utilizando de

referência teórica concernente a Antoine Culioli (1999a):

Page 57: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

56

Poderíamos caracterizar as atividades epilinguísticas como atividades que, independentemente da consciência ou não

38, tomando as próprias expressões

usadas por objeto, suspendem o tratamento do tema a que se dedicam os

interlocutores para refletir sobre os recursos expressivos que estão usando. Seriam operações que se manifestariam nas negociações de sentido, em

hesitações, em autocorreções, reelaborações, rasuras, pausas longas,

repetições, antecipações, lapsos, etc. e que estão sempre presentes nas atividades verbais, e que têm sido estudadas tanto nos processos de aquisição

de linguagem quanto nos processos de reconstrução da linguagem pelo

sujeito afásico [...]. (GERALDI, 2006, p. 24)

Nesse sentido, a atividade epilinguística é significante, pois além de tornar

possível a realização de funções sociais exteriores, há a ocorrência de uma multiplicidade de

operações subjacentes, interiores ao sujeito. Por ser anterior à categorização formal, o

epilinguismo não é visto como objeto das gramáticas e, por isso mesmo, é desconsiderado

pela prática tradicional.

Em relação ao Currículo do Estado de São Paulo, neste documento não há

nenhuma discussão a respeito da atividade epilinguística, nem uma única citação, o que faz

com que voltemos, neste momento, nossos estudos para os Parâmetros Curriculares Nacionais

de Língua Portuguesa. Este expõe a relevância de se desenvolver práticas de

produção/interpretação de textos que explorem tais atividades epilinguísticas. Como já

citamos anteriormente, estas diretrizes curriculares somente apresentam o termo e não

oferecem ao público alvo desta orientação curricular, subsídios que possibilitem o

desenvolvimento destas práticas ou fundamentações teóricas para que o professor possa se

informar e se apoiar, o que seria interessante para o ensino de línguas, uma vez que

aprofundaria os estudos sobre linguagem, permitindo apreender como esta funciona.

2.3 A atividade metalinguística

Neste subcapítulo, intencionamos realizar o mesmo percurso que fizemos em

relação à atividade epilinguística, iniciando nossas observações sobre como a atividade

metalinguística é concebida nos PCNs de Língua Portuguesa e no Currículo do Estado de São

Paulo. Neste último, assim como em relação à atividade epilinguística, não apresenta um

estudo voltado para essa atividade de linguagem, sendo necessário, desse modo, priorizar a

orientação curricular nacional.

38 Grifos nossos. Ao definir atividade epilinguística, Culioli relaciona tal termo à questão de consciência.

Page 58: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

57

Durante as leituras dessa diretriz curricular, nota-se que tal documento refuta a

ideia de um ensino descontextualizado da metalinguagem associado a exercícios mecânicos

de identificação de elementos linguísticos em frases soltas. O desafio é desenvolver e aplicar

situações didáticas que levem os alunos a pensar sobre a linguagem, com o intuito de poder

compreendê-la e utilizá-la em determinadas situações e propósitos definidos. Isso posto, os

PCNs afirmam que um instrumento de apoio para o professor em discussões sobre aspectos da

língua em sala de aula é a atividade metalinguística.

Entretanto, verificamos que nestes parâmetros, assim como a atividade

epilinguística, o termo "atividade metalinguística" é apresentada de maneira superficial, não

há uma discussão esmiuçada sobre o mesmo e nem exemplificações de práticas pedagógicas

que explorem o trabalho metalinguístico que possam auxiliar o professor na apreensão do

termo.

Além destas constatações, ao apresentar a conceitualização, não há nenhuma

citação sobre qual embasamento teórico estão se apoiando, reduzido apenas a uma breve

explicitação do termo sob a forma de nota de rodapé como podemos observar:

Por atividade metalinguística se entendem aquelas que se relacionam à

análise e reflexão voltada para a descrição, por meio da categorização e

sistematização dos conhecimentos, formulando um quadro nocional intuitivo

que pode ser remetido a construções de especialistas. (BRASIL, 1998, p. 28)

Isso demonstra que se trata da utilização de uma metalinguagem que possibilite

falar sobre a língua, ou melhor, enfatiza-se a ideia de uma metalinguagem sistemática com a

qual falam sobre a língua. Esta abordagem teórica sobre "atividade metalinguística", embora o

texto não forneça a sua referência, remete explicitamente às reflexões de Geraldi (2006) em

seu livro Portos de Passagem:

Trata-se, aqui, de atividades de conhecimento que analisam a linguagem

com a construção de conceitos, classificações, etc. Enquanto tais, elas

remetem a construções de especialistas e, em consequência, à formação cultural dos sujeitos. Dependendo do nível de escolaridade dos sujeitos

intervenientes num processo interativo, é possível detectar nele a presença de

certos conceitos gramaticais e portanto uma atividade metalinguística, cuja pertinência, em cada ocasião, é definir parâmetros mais ou menos estáveis

para decidir sobre questões como erro/acerto no uso, pronúncia, etc. de

expressões; na construção de sentenças ou na significação dos recursos linguísticos utilizados. (GERALDI, 2006, p. 25)

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58

Diante destas constatações, é evidente que tanto os PCNs de Língua Portuguesa

quanto o linguista Geraldi defendem uma proposta de se explorar tais capacidades

metalinguísticas em ambiente escolar, sobretudo em atividades que envolvam a

produção/interpretação textual, o que muitas vezes é um verdadeiro desafio para o professor

de línguas. Além disso, não devemos privar o aluno de toda perspectiva de controle sobre suas

próprias produções, pois acreditamos que saber e refletir sobre a linguagem seja socialmente

relevante e interessante para o aprendiz. Aprende-se operando com ela, comparando

expressões, transformando-as, experimentando novos modos de construção e, assim,

investindo as formas linguísticas de significação.

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59

CAPÍTULO III

OPERAÇÃO DE DETERMINAÇÃO: MODALIDADE

3. INTRODUÇÃO

Neste capítulo, aprofundamos nossos estudos no que concerne à categoria

linguística da modalidade. Restringindo-nos ao âmbito estritamente linguístico, observamos

várias propostas de tipologia dos valores modais, em termos de sua classificação e descrição,

caminhando, finalmente, para a sua explicação no quadro da Teoria das Operações

Predicativas e Enunciativas.

3.1. A modalidade do ponto de vista lógico

Iniciamos nosso percurso no quadro aristotélico uma vez que a lógica das

modalidades nasce nesse contexto. De acordo com Aristóteles, a ciência propõe proposições

universais, implementando um tipo particular de raciocínio que deve se apoiar nos princípios

verdadeiros e apropriados. Esse fato remete ao silogismo, um dos elementos principais da

lógica aristotélica no que toca ao raciocínio. O silogismo, que vem do grego organon,

representa o instrumento da formalização do raciocínio que torna a conclusão necessária a

partir das premissas. (DAY, 2008)

O viés aristotélico visava alcançar as atividades do sujeito e as propriedades

comuns dos objetos, além das estruturas ou formas em geral. Nessa perspectiva, a lógica

permitia inventar o raciocínio, sendo, por esse motivo, considerada uma produtora de

conhecimentos. Na base desta concepção está o estabelecimento das proposições atributivas e

das proposições modais. A primeira corresponde à afirmação ou negação da atribuição de um

predicado (doravante P) a um sujeito (doravante S). Já a segunda seria não somente a

atribuição de um predicado a um sujeito, mas também a indicação do modo como o predicado

se une ao sujeito, determinando a composição de P e S, distinguindo entre o modus e o

dictum.

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60

Graças a essa distinção, foi possível a Aristóteles definir as quatro modalidades

que caracterizam as proposições modais. Portanto, a teoria de Aristóteles das modalidades

comporta quatro modalidades:

• o necessário

• o impossível

• o possível

• o contingente

Primeiramente, estas modalidades foram denominadas de modalidades

aléticas, que depois foram rejeitadas, segundo Le Querler (1996), em virtude de sua

terminologia sugerir que somente modalidades permitem atribuir um valor de verdade.

Posteriormente, devido a esta contestação, são denominadas modalidades ônticas.

Nos estudos ligados à modalidade alética, que vem do grego 'alèthea', cujo

significado é o de verdade, há uma discussão acerca do estatuto que Aristóteles atribuía às

modalidades do possível, do contingente e do necessário. Segundo Oliveira, F. (1993), em

relação ao possível, este possui duas interpretações: "como o que é necessário é possível" ou

"para a mesma coisa é possível não só ser como não ser". Este questionamento deu origem ao

que posteriormente se veio a designar por "possibilidade unilateral e possibilidade bilateral."

(OLIVEIRA, F.,1993, p. 6).

Para outros filósofos sucessores de Aristóteles, como Diodore Cronos, o

trabalho com a modalidade se realiza com base em noções temporais, esclarecendo que o

impossível não é verdadeiro no momento presente e nem no momento futuro. Desse modo, o

valor de verdade de um acontecimento é determinado por um acontecimento presente,

acarretando a impossibilidade de uma palavra possuir dois sentidos simultâneos, pois

significaria que possui dois sentidos potenciais (DAY, 2008).

A distinção entre enunciados não modalizados (proposições assertivas que

enunciam um fato) e enunciados modalizados (consideram a existência das noções de

necessidade e de possibilidade) ocorreu graças à integração do conceito de modalidade na

lógica aristotélica. A introdução de operadores modais pode afetar os valores de verdade das

proposições, assim, algumas destas que são modalizadas reforça a asserção, enquanto que

outras são enfraquecidas. As relações entre os valores de verdade das proposições podem ser

representadas pela modalidade alética, que se baseia tanto no sistema de oposição da

Page 62: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

61

(Np) ( ¬ P ¬ p) (1) (N ¬ p) ( ¬ Pp)

(3) (4) (3)

(Pp) ( ¬ N ¬ p) (2) (P ¬ p) ( ¬ Np)

afirmação e da negação, quanto das noções de possibilidade (P) e de necessidade (N). No

quadro abaixo, observamos como se dão essas relações modais:

Esta representação estabelece quatro categorias entre as proposições:

• As proposições contrárias não podem ser conjuntos verdadeiros (1);

• As proposições subcontrárias não podem ser conjuntos falsos (2);

• As proposições subordinadas são tais que a segunda (P ¬ p) não pode ser falsa

quando a primeira (N ¬ p) é verdadeira (3);

• As proposições contraditórias não podem ser conjuntos nem verdadeiros, nem

falsos (4).

A representação da modalidade de acordo com acima exposto determina a

modalidade ôntica, que concorda com um uso unilateral do possível, sendo que este acaba por

envolver o necessário. Com a introdução dos operadores modais, surge o questionamento

sobre se a modalidade se apoia sobre o predicado (de re) ou sobre toda a proposição (de

dicto). Aristóteles não realizou uma distinção entre de re e de dicto em seus trabalhos sobre a

Quadro 3 - Representação das relações modais

Fonte: Day (2008, p. 13)

¬ = negação do termo situado imediatamente à direita.

= equivalência entre os conjuntos situados de ação e do outro N = É necessário que... ; P = É possível que...

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62

lógica modal, portanto, coube aos estóicos e aos megaricos desenvolver um estudo de certas

formas de raciocínio por meio da linguagem. Desse modo, estabelece-se uma lógica das

proposições que explicitam as pressuposições necessárias às operações lógicas (LE

QUERLER, 1996).

A questão da modalidade de re e de dicto foi distinguida por Abelardo e Tomás

de Aquino, o que permitiu introduzir um complemento ao comentário dos enunciados. Nesses

estudos identificou-se o surgimento de uma dimensão subjetiva, a reação, e uma dimensão

objetiva, a representação (DAY, 2008). Em relação às modalidades de re/ de dicto,

consideramos relevante o posicionamento de Valentim no excerto que segue:

A oposição de re / de dicto permite, por exemplo, distinguir as sequências

talvez o Pedro venha e a vinda do Pedro é possível. No primeiro caso, a modalidade do possível diz-se ser de dicto, uma vez que é aplicada do

exterior, pelo locutor, ao conteúdo do que diz, o dictum ou conteúdo

proposicional. A formulação da modalidade na segunda sequência é igualmente de dicto, mas à equivalente possível desta segunda sequência - o

Pedro pode vir (interpretado como “o Pedro tem a possibilidade de vir”) –

corresponde uma modalidade de re. A oposição de re / de dicto permite,

assim, distinguir as duas interpretações possíveis de o Pedro pode vir, como “o Pedro tem a possibilidade de vir” e “talvez o Pedro venha”, que, do ponto

de vista linguístico, em Campos (1998a), se descrevem, respectivamente,

como valor (não epistémico) de possibilidade e valor epistémico de não exclusão. Transposta e adaptada a outras tipologias, perspectivada de acordo

com outros critérios, a oposição de re / de dicto virá a ser, portanto,

particularmente importante no domínio da modalidade linguística.

(VALENTIM, 2004, p. 94)

Retomando as quatro categorias aristotélicas de modalidade, que inspiraram

posteriormente outras teorias, estas são revistas por Abelardo, atestando que o possível e o

contingente são equivalentes. Desse modo considera o necessário, o possível e o impossível

como as três modalidades de base, o que acarreta uma mudança no quadro da representação

modal, como podemos observar na figura abaixo:

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63

POSSÍVEL

NECESSÁRIO IMPOSSÍVEL

As categorias modais da lógica não se aplicam do mesmo modo que no âmbito

do semantismo linguístico e "as definições puramente pragmáticas não interessam às formas

de língua e às suas propriedades39

." (DUCARD, 2004, p. 47).

Na perspectiva da semântica enunciativa, a modalidade é entendida como um

valor de determinação dos enunciados, enquanto subjacente às formas linguísticas, que, desse

modo, são marcadores modais. A significação desses marcadores modais permite sustentar a

concepção de uma tipologia de modalidades. O alcance da significação modal no enunciado

resulta da interação que os marcadores modais estabelecem com as restantes formas em

coocorrência.

3.2. A modalidade nos estudos linguísticos

A modalidade, ao se preocupar com o status da proposição que descreve o

evento, e não se referindo diretamente com alguma característica deste, difere do tempo e do

aspecto. Uma possível abordagem de sua análise (PALMER, 2001) passa pela realização de

uma distinção binária entre "não-modal" e "modal", entre "declarativa" e "não-declarativa",

associando com o contraste nocional entre o "fatual" e o "não-fatual", ou o "real" e o "não-

real". Entretanto, os termos "real" e "não-real" não foram considerados os mais adequados, e

se passou a utilizar os termos "realis" e "irrealis" para designar esta distinção.

39 Tradução nossa, do original: "et les définitions purement pragmatiques ne s'intéressent pas aux formes

de langue et à leurs propriétés."

Figura 3 - A representação aristotélica revista por Abelardo

Fonte: Le Querler (1996, p. 48)

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64

Realis corresponde a situações atualizadas, que estão ocorrendo ou que já

ocorreram, reconhecidas por meio de percepções diretas. Quanto ao irrealis, este representa

situações mentais reconhecidas por meio da imaginação. A distinção entre realis e irrealis teve

sua validação questionada em estudos tipológicos. Estes estudos consideram, de uma forma

geral, que há muito mais variação que respeito a distinção entre realis e irrealis ao nível da

modalidade do que noutras categorias linguísticas.

Para Palmer (2001), ocorre variação nas categorias que são tratadas como realis

e irrealis em diferentes línguas, pois dar-se o caso de uma destas possuir marcadores do valor

realis, enquanto que em uma outra língua a marcação incidir sobre o valor irrealis, ou ainda,

estes podem não constituir o sistema de modalidade de uma determinada língua. Por exemplo,

na língua inglesa, o verbo modal é utilizado para distinguir um julgamento sobre uma

proposição de uma afirmação categórica.

3.2.1. A noção de asserção

A distinção entre realis e irrealis não pode ser totalmente explicada pelo

contraste entre "factual" e "não-factual" ou "real" e "não-real". Ainda, os termos "verdadeiro"

e "não verdadeiro" passam a ser evitados por conta das conotações lógicas. Marcas

gramaticais de muitas línguas europeias, como o uso do indicativo e do subjuntivo, são

utilizados para distinguir realis e irrealis, que passam a ser denominados de asserção e não

asserção.

Palmer (2001) expõe que a forma mais sucinta de se explicar esse fato é a

associação do indicativo à asserção e a associação do subjuntivo à não asserção. Sugere, pois,

que a proposição não pode ser considerada uma asserção por três motivos:

(i) o falante tem dúvidas sobre sua veracidade: Eu duvido que seja + 3

40SG

41 + PRES

42 + SUBJ

43 boa ideia

"Eu duvido que seja uma boa ideia"

(ii) a proposição não se realiza:

Eu preciso que me devolva + 2SG + PRES + SUBJ aquele livro

"Eu preciso que você me devolva aquele livro para mim"

40 Os números correspondem a: 1ª pessoa do singular, 2ª pessoa do singular e 3ª pessoa do singular. 41

SG = singular 42 PRES = presente 43 SUBJ = subjuntivo

Page 66: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

65

(iii) a proposição é pressuposta: Estou feliz que você saiba + 2SG + PRES + SUBJ a verdade

"Estou feliz que você saiba a verdade" 44

(PALMER, 2001, p. 3)

A análise destas considerações demonstra a escolha de um marcador

considerado irrealis, no caso, marcado pelo subjuntivo ("seja", "devolva" e "saiba"), que não

tem relação com a distinção entre fatual e o não fatual, mas com o fato de ser assertivo ou não

assertivo. Esta afirmação se justifica principalmente por meio do terceiro enunciado (Estou

feliz que você saiba a verdade), pois relaciona o que é pressuposto entre o falante e o

destinatário. Desse modo, uma proposição é considerada como irrealis por não ser assertiva,

isto é, por não possuir informação que, de acordo com a TOPE, seria construída na situação

de enunciação em curso.

3.3. Os tipos de modalidade de Palmer

Na perspectiva de Palmer, a modalidade está representada em todas as línguas,

mas não sempre com marcação linguística ao nível da morfologia verbal. Para esse autor, a

categoria estudada é vista como a gramaticalização das atitudes e opiniões subjetivas do

falante, se distinguindo dois tipos de modalidade: a modalidade epistêmica e evidencial e a

modalidade deôntica e dinâmica.

3.3.1. Modalidade epistêmica

Para Palmer (2001), a modalidade epistêmica e evidencial são dois tipos

principais de modalidade proposicional. A modalidade epistêmica está relacionada com as

noções de possibilidade e de necessidade, além de corresponder aos julgamentos que o falante

44 Tradução nossa, do original:

(i) the speaker has doubts about its veracity: I doubt that be + 3SG + PRES + SUBJ good idea

"I doubt that' a good idea"

(ii) the proposition is unrealized:

I need that me return + 2SG + PRES + SUBJ that book

"I need you to return that book to me"

(iii) the proposition is presupposed:

me it pleases that know + 2SG + PRES + SUBJ the truth

"I'm glad that you know the truth" (PALMER, 2001, p. 3)

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66

expressa sobre o status fatual da proposição. O modo como o sujeito enunciador constrói a

sua responsabilidade e a sua não responsabilidade pela validação ou não-validação da relação

predicativa (por vezes, por meio de uma nova origem enunciativa) só é possível graças à

análise das relações entre a modalidade e a evidencialidade e está na origem da modalidade

epistêmica. Certos marcadores em determinados contextos, como por exemplo o verbo poder,

são interpretados como modalizadores epistêmicos.

A modalidade epistêmica consiste na construção de sistemas que possam

descrever o que é da ordem da crença, do conhecimento, do desconhecimento, da dúvida.

Embora se possa considerar que teoricamente um ser humano pode compreender um conjunto

ilimitado de conhecimentos, na verdade, esse está cingido a um mundo de conhecimentos

possíveis (DAY, 2008).

Em relação à modalidade evidencial (Palmer, 2001), esta indica a evidência do

status fatual. Palmer designa por evidenciais os juízos de necessidade e de possibilidade que

são, por conseguinte, dois grandes sistemas da modalidade epistêmica. Por meio das formas

das quais dispõe, o falante expressa o seu (des)comprometimento com a verdade da

proposição expressa. Quanto à questão da evidencialidade45

, Valentim asserta que:

A esta tendência - concepção estreita da evidencialidade -, segundo a qual a modalidade epistêmica se sobrepõe englobando a evidencialidade como uma

outra categoria (postura assumida, entre outros, por Palmer (1986) e

Hengeveld (1989)), opõe-se uma outra tendência - concepção larga da evidencialidade -, que considera que a qualificação evidencial determina a

qualificação epistêmica e, portanto, modal. Esta última, também surgida na

literatura anglo-saxónica, é representada, por exemplo, pelo trabalho de

Nuyts (1992a) segundo o qual qualquer juízo modal se baseia em "evidências" ("evidencies"), variando sim a qualidade da "evidência".

(VALENTIM, 2004, p. 201, 202)

Retomando a modalidade epistêmica, é necessário destacar que há, ainda

segundo Palmer (2001), tipos diferentes desta mesma categoria:

• modalidade de especulação;

• modalidade de dedução;

45

As línguas por não serem consideradas idênticas, em termos de graus de diferença de integração de

conhecimento, são semanticamente categorizadas, e devido à sua relação com a evidencialidade, estudos

sugerem que a distinção entre velho e novo conhecimento constitui uma base importante para o sistema

evidencial e epistêmico.

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67

• modalidade de assunção.

3.3.1.1. Modalidade epistêmica de especulação

A modalidade epistêmica de especulação expressa julgamentos utilizando

proposições relativas ao presente. Palmer (2001) exemplifica, por meio de enunciados da

língua inglesa:

• John may come tomorrow. proposição no presente se referindo ao

futuro

• John may/must have been in his office. HAVE + particípio passado

para proposições relativas ao passado

Verifica-se que, no primeiro enunciado, o falante não tem certeza se John virá

amanhã. No segundo, o falante realiza um julgamento baseado em alguma evidência prévia.

Nesse contexto, o modal MUST caminha para uma possível conclusão. Levando em conta o

sistema modal em Inglês, há envolvimento da força da conclusão, distinguindo entre o que

pode ser e deve ser, ou seja, entre o que é epistemicamente possível e o que é

epistemicamente necessário.

3.3.1.2. Modalidade epistêmica de dedução e de assunção

A modalidade de dedução corresponde a uma inferência a partir da observação,

enquanto que a modalidade de assunção corresponde a uma inferência a partir da experiência

ou do conhecimento geral. Segundo Palmer (2001), na língua inglesa, há um contraste entre

estas duas modalidades, como podemos observar nos enunciados:

• John must be in the office.

• Jonh' ll be in his office.

Destaca-se, desse modo, a diferença entre os marcadores linguísticos MUST e

WILL, o primeiro assinalando dedução e o segundo assinalando assunção. O mesmo ocorre

nos enunciados do diálogo abaixo:

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A - It's nine o'clock - John will be in his office now.

B - Yes, the lights are on, so he must be there.

A ocorrência de modalidades epistêmicas de dedução e de assunção se dá em

sistemas que incluam marcadores evidenciais de discurso. A modalidade de dedução em

sistemas evidenciais ocorre quando há um certo grau de dedução envolvido, enquanto que, no

caso da modalidade de assunção, é levada em consideração a experiência do falante com

situações similares, com padrões regulares, ou com circunstâncias comuns da vida

(PALMER, 2001).

3.3.2. Modalidade deôntica

A modalidade deôntica corresponde à modalidade que contém um elemento de

vontade. Ao contrário da modalidade epistêmica, possui a eficácia das regras fundamentais do

cálculo proposicional. A modalidade deôntica dos enunciados é marcada por expressões da

língua associadas à permissão e à proibição. Entre os marcadores de modalidade deôntica, se

destacam as expressões É permitido, É proibido, É obrigatório e É opcional (DAY, 2008).

As relações de vontade, de permissão, de obrigação, de proibição, recaem

sobre o coenunciador, de forma direta ou indireta, pressionando-o ou persuadindo-o a realizar

a situação, considerada necessariamente dinâmica, descrita pela relação predicativa

(VALENTIM, 2004). Para Palmer (2001), a modalidade deôntica, com seu caráter de

linguagem como ação, ancorada no mundo exterior, expõe naturalmente um componente

pragmático. Ao condicionar fatores externos ao indivíduo relevante, possibilita a relação de

obrigação ou permissão, que emana de uma fonte externa. Estes fatores externos podem estar

ligados a um tipo de autoridade externa, tais como regras ou leis, provenientes do falante atual

que estabelece uma permissão ou obrigação com o destinatário.

3.3.2.1. Modalidade deôntica diretiva

Uma das modalidades deônticas mais comum é a considerada diretiva, e possui

a característica de convencer o outro a realizar coisas. Na língua inglesa, a modalidade

deôntica diretiva é expressa por MAY e MUST, dois verbos modais que representam também

Page 70: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

69

a modalidade epistêmica de especulação e de dedução. De acordo com Palmer (2001), na

linguagem coloquial CAN é mais utilizado do que MAY, como podemos observar nos

exemplos que seguem:

• You may/can go now

• You must go now

Os enunciados acima representam uma permissão e uma obrigação

respectivamente na modalidade deôntica, porém também podem ser interpretados como

modais de permissão e obrigação no sistema epistêmico de especulação e de dedução, se os

considerarmos em termos de possibilidade e necessidade.

3.3.2.2. Modalidade deôntica comissiva

A modalidade deôntica comissiva está ligada ao nosso próprio

comprometimento em realizar as coisas. Promessas e avisos representam esta modalidade,

marcada pelo comprometimento do falante em realizar algo que pode ou não favorecer o seu

destinatário. A modalidade deôntica comissiva, na língua inglesa, é assinalada pelo verbo

modal SHALL, como podemos observar nos enunciados:

• John shall have the documents tomorrow

• You shall do as you are told

Portanto, o falante se compromete em garantir que o evento aconteça,

garantindo que John receberá os documentos e que o destinatário fará o que lhe foi

recomendado.

Entretanto, na língua portuguesa, o verbo modal poder é responsável por

imprimir uma variedade de valores semântico-pragmáticos em diferentes contextos, e tais

valores são os de modalidade deôntica e epistêmica. No âmbito semântico quanto no de força

ilocucionária, o verbo poder possui um grande número de significados em língua portuguesa.

Conforme o contexto linguístico, aos enunciados com poder podem ser atribuídos os

diferentes sentidos de permissão, possibilidade, capacidade, entre outros. Em relação à força

ilocucionária, é possível identificar outros significados relacionados a esse verbo, como, por

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70

exemplo, os de comando, pergunta, solicitação, e outros, os quais podem revelar diferentes

graus de polidez (KOCH, 1986).

Pierre Le Goffic, apud Ducard (2004, p. 48), ressalta a impossibilidade de se

enumerar com precisão as modalidades apreendidas de acordo com os atos do discurso em sua

Grammaire de la phrase française. Realiza uma distinção das modalidades da frase, que

afetam a relação entre um sujeito e um predicado46

, denominando-as de modalidade da

enunciação. Ainda em relação à Le Goffic, em outra obra mais recente, Grammaire

méthodique du français, aborda mais detalhadamente sobre o modo e a modalidade,

ressaltando que uma mesma modalidade pode ser marcada por diversos modos, e um mesmo

modo pode marcar diversas modalidades.

3.4. A modalidade em Benveniste

Nos estudos benvenisteanos é necessário legitimar a categoria da modalidade,

concebida como "uma asserção complementar referente ao enunciado de uma relação"

(Benveniste, 2006, p. 192). Ao retomar a discussão lógica sobre a modalidade, na qual se

destaca a representação aristotélica, já mostrada anteriormente em 3.1 deste capítulo, em que

esta categoria corresponde à possibilidade, à impossibilidade e à necessidade; Benveniste

ressalta que sob uma perspectiva linguística, esses três modos se reduzem a dois, pois a

impossibilidade não tem expressão distinta e se exprime graças à negação da possibilidade.

Nesse sentido, a possibilidade e a necessidade são consideradas duas

modalidades primordiais, tanto nos estudos linguísticos quanto dos lógicos. Apesar de a

categoria linguística da modalidade não fazer parte das categorias necessárias e constitutivas

do paradigma verbal, ela compreende inicialmente os verbos poder e dever. Estes verbos são

estudados do ponto de vista da auxiliação de modalidade, sendo necessário enfatizar que se

caracterizam formalmente pela estrutura binômica, ou seja:

46 Na perspectiva de Le Goffic, o predicado é concebido como uma estrutura lógico-gramatical da frase.

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71

Quadro 4- A estrutura binômica de poder e dever

Como se pode observar, poder e dever, são modalizantes por excelência, pois

possuem sempre essa estrutura de construção. O mesmo não ocorre em outros verbos

considerados modalizantes ocasionais, como é o caso de querer, cuja auxiliação de

modalidade se manifesta dependendo do modo como se constrói estruturalmente. Se o sujeito

do auxiliante (explícito) for idêntico ao sujeito do auxiliado (implícito), como em Ele quer

dançar, temos um verbo com caráter modalizante. Porém, se o sujeito do auxiliado é diferente

e o infinitivo é substituído por uma oração subordinada como em Ele quer que eu dance, o

verbo não desempenha mais a função de auxiliante.

Converter a forma pessoal do auxiliado em uma forma de infinitivo constitui

um critério de auxiliação de modalidade. Esta conversão é apropriada também quando um

verbo modalizado está em um tempo que necessita da auxiliação de temporalidade como em

Pedro dançou torna-se Pedro pode ter dançado. Ao finalizar suas análises, Benveniste

distingue os verbos estudados em duas categorias, "poder" e "dever" como modalizantes por

função, enquanto que os verbos "querer", "desejar", "saber" e "fazer" são denominados

modalizantes por assunção, conforme a construção do infinitivo auxiliado e susceptível à

variação em função das fases e dos estados da língua.

3.5. A modalidade na TOPE

Antoine Culioli, em seus estudos, se preocupou em construir um sistema de

representações metalinguísticas manipuláveis e operacionais, possibilitando o estabelecimento

1º termo → forma flexionada do auxiliante

+

2º termo → infinitivo do verbo auxiliado

(1) pode chover, pode chegar;

(2) devo estudar, deve sair.

Fonte: Elaboração própria

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72

de uma correspondência entre as configurações linguísticas, concebidas como agenciamentos

de marcadores no texto oral e escrito, e as operações abstratas. Procedendo desse modo, se

espera construir um conjunto de operações formais, graças às deformações controladas, isto é,

apreender um conjunto de operações fundamentais generalizáveis que constitui a atividade

enunciativa na diversidade das línguas e dos fenômenos discursivos.

Considerada como uma operação de determinação, a modalidade desempenha

um papel fundamental na configuração semântica das representações, na construção dos

valores referenciais e na localização das posições enunciativas dos sujeitos (DUCARD, 2004).

A modalidade assinala o ponto de vista do enunciador sobre um conteúdo que constrói

linguisticamente, evidenciando inclusive o seu posicionamento em relação a um

coenunciador. O sujeito enunciador expõe um conteúdo de pensamento que ele mesmo

perspectiva ora como uma verdade, ora como uma hipótese ora mesmo como um

questionamento. Pode também exprimir uma ordem, uma obrigação ou um desejo.

Considerando que todo o enunciado se organiza a partir de um espaço de referência

intersubjetivo, no quadro da TOPE, a modalidade opera sobre dois planos:

• a relação do sujeito enunciador com o conteúdo que ele mesmo constrói: trata

da relação entre sujeito enunciador e a relação predicativa, ocorrendo avaliação das chances

de realização da relação predicativa.

• a relação do sujeito enunciador com o coenunciador: trata da relação

intersubjetiva.

Valentim (2004) destaca que, nos estudos linguísticos, a modalização é um dos

temas menos conclusivamente tratado, enquanto que, no domínio da lógica, é privilegiado.

Em relação aos estudos desenvolvidos pelo quadro enunciativo culioliano, a estudiosa

ressalta:

No âmbito da TFE47

, a descrição da construção da categoria gramatical da

modalidade prevê que a todo e qualquer enunciado corresponde um valor modal.

A concepção lata da modalidade, como categoria que caracteriza qualquer

enunciado, está, desde logo, expressa em Bally [...], onde, apesar de não se

propor qualquer classificação das modalidades, se afirma que a modalidade é “[...] la pièce maîtresse de la phrase, celle sans laquelle il n’y a pas de

47 Valentim, em sua Tese de Doutorado, utiliza a abreviação TFE, ou seja, Teoria Formal da Enunciação para se

referir a TOPE.

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73

phrase” e se analisa como modais um longo inventário de marcadores como a entoação, a mímica, os modos verbais, os advérbios ou os adjetivos.

(VALENTIM, 2004, p. 117)

Desse modo, nos pressupostos culiolianos, os valores modais confluem para a

determinação de qualquer enunciado, juntamente com os valores temporais-aspectuais,

resultando da localização da relação predicativa em relação ao sujeito enunciador ou a uma

classe de sujeitos enunciadores. O segundo ponto de análise empreendido por Valentim é de

que a concepção de modalidade em Culioli está fortemente ligada ao conceito decisivo de

enunciação, concebida como um processo inserido numa necessidade teórica, não numa

prática efetiva.

A categoria da modalidade pode ser representada por determinados auxiliares

modais, tais como os advérbios - por exemplo, certamente, provavelmente, maravilhosamente

- e itens lexicais que exprimem o ponto de vista do sujeito enunciador - por exemplo,

importante, triste, inevitável, formidável. Em relação a essa abordagem, nos apoiamos no

posicionamento que segue:

O fato é que, entre os fenómenos do português habitualmente etiquetados de "modais" a que se recorre para uma definição extensional da modalidade,

encontram-se as formas susceptíveis de ocupar uma posição "mais alta" na

hierarquia sintáctica, verbos que ocorrem como verbos principais de uma

frase matriz e introduzem uma estrutura de complementação verbal (como achar, pensar... ), certos adverbiais (como certamente, felizmente,

lamentavelmente, sem dúvida, talvez), assim como certas construções

sintácticas (como os adjuntos modais na minha opinião, do meu ponto de vista, etc). Mas não é só com recurso ao significado lexical dos predicados

"mais altos" que se procura representar as modalidades. Também se associa

a modalidade a formas inscritas no interior do complemento, como os verbos ditos "auxiliares de modalidade" ou "verbos modais" (como poder, dever, ter

de e parecer). (VALENTIM, 2008, p. 217)

Assim, ao considerar que todo e qualquer enunciado comporta um valor de

determinação modal, a perspectiva enunciativa propõe uma concepção de modalidade mais

vasta e abrangente.

Na predicação, um sujeito enunciador, em um primeiro momento, ordena os

termos da lexis, decidindo qual termo será a origem da relação predicativa. Esta operação é,

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74

por conseguinte, de natureza predicativa. A lexis48

é considerada pré-modal e pré-assertiva.

Ela apenas se reveste de um valor modal mediante operações enunciativas que operam sobre a

relação predicativa. É por via dessas operações enunciativas que toda a enunciação por um

sujeito enunciador implica uma modalização. O sujeito enunciador, ao construir uma lexis,

constrói um conjunto fechado de relações intralexicais.

Culioli descreve a modalidade em referência à relação intersubjetiva, ou seja, o

sujeito enunciador, considerado o centro organizador do enunciado, remete ao interlocutor por

meio do seu dizer, e desse modo, determina duas modalidades fundamentais. De um lado, a

modalização reflete os modos de dizer, de predicar, onde o sujeito recorre aos índices

linguísticos que expressam seus modos de apoio. Por outro lado, a relação intersubjetiva está

em jogo, implicando uma distância em relação ao que é visado, isto é, às situações de desejo,

de vontade, de desejo, de ordem (DAY, 2008, p. 52)

Diante destas constatações, é evidente que o sujeito desempenha um papel

fundamental quando se trata da modalidade no contexto culioliano. Este se inscreve no

sistema linguístico como um parâmetro teórico, metalinguístico, acarretando no

estabelecimento de uma classe de sujeitos, localizados entre si, responsáveis pela construção

de valores referenciais da categoria modalidade. Um sujeito, ao instanciar-se como sujeito

enunciador pela e na enunciação, determina valores temporais-espaciais, possibilitando a

construção de um sistema de referência. Tal construção é considerada como um localizador

das estruturas abstratas que o sujeito enunciador constrói pela e na enunciação, sendo

simultaneamente, consequência e condição de toda a enunciação (VALENTIM, 2008).

Deste modo, no enquadramento da TOPE, a categoria linguística da

modalidade é definida graças ao conjunto de processos pelas quais o sujeito localiza uma

relação predicativa.

Ao descrever a modalidade em função da quantificação relativa no domínio

nocional da certeza subjetiva, possibilita o aparecimento da probabilidade, de uma certeza

enfraquecida. Por fim, concebe as outras modalidades que refletem as apreciações, estas

apresentam expressões tais como felizmente, que escândalo, é bom, etc; e as modalidades do

possível, o necessário, o provável que se apresentam nos enunciados que possuem os verbos

modais como poder e dever.

48 As lexis possuem valores referenciais, tais como aspectuais, modais, quantificação e qualificação, graças a um

cálculo sobre o parâmetro de situações localizadas, onde Sit0 é o localizado origem.

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75

Em suas reflexões sobre a modalidade, Culioli (1985) considera que as

expressões modais, devido às suas dimensões polissêmicas, apresentam um "nó de valores" e

não funcionam de maneira estanque.

Retomando a seguinte afirmação, de que modalidade opera sempre em dois

planos: a relação do enunciador com o conteúdo que ele diz e a relação do enunciador com o

co-enunciador, percebemos que esta dupla polaridade permite entender, nesta perspectiva, os

diferentes tipos de modalidade. Nesse sentido, no âmbito da TOPE:

Modalizar significa << afetar uma modalidade >> e modalidade será

entendida aqui no quádruplo sentido de (1) afirmativa ou negativa, injuntiva,

etc. (2) de certeza, provável, necessário, etc. (3) apreciativa: << é triste que...

felizmente >> (4) pragmática, em particular, modo alocutório, causativo, logo, que implica um relação entre sujeitos

49. (CULIOLI, 1999a, p. 24)

Diante desta concepção, Culioli propõe uma descrição metalinguística dos

valores da categoria de modalidade, em função das operações enunciativas que as suas

ocorrências marcam. Para a realização deste procedimento, recorremos à descrição e uma

explicação semântico-enunciativa de enunciados cuja construção resulta de um encadeamento

de operações predicativas e enunciativas, considerando-se que, nesta construção dinâmica de

operações e de valores intervêm não de forma composicional, mas de forma inter-relacional,

todas as unidades que coocorrem no enunciado.

Segundo Antoine Culioli, os valores modais − que, com os valores temporais-

aspectuais, confluem para a determinação de qualquer enunciado − resultam da localização da

relação predicativa em relação ao sujeito enunciador ou a uma classe de sujeitos

enunciadores.

Nas reflexões de Dufaye (2009), a modalização na perspectiva culioliana

converge precisamente com uma abordagem hermenêutica, uma vez que se procura abstrair o

que há de constante nos fenômenos observados e das interferências contextuais, ou seja, deve-

se focar na contribuição específica do modal, independente do sentido veiculado. Ao realizar

um estudo mais detalhado sobre os auxiliares das modalidades, Dufaye (2001) ressalta que

49

Tradução nossa, do original: Modaliser signifie << affecter d'une modalité >> et modalité sera entendu ici au

quadruple sens de (1) affirmatif ou négatif, injonctif, etc. (2) certain, probable, nécessaire, etc. (3) appréciatif: <<

il est triste que... heureusement >> (4) pragmatique, en particulier, mode allocutaire, causatif, bref, ce qui

implique une relation entre sujets.

Page 77: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

76

estes constituem uma classe fechada de marcadores, que se definem em função de critérios

morfossintáticos.

O termo auxiliar modalidade destaca, no entanto, a importância de se lidar com

formas linguísticas que intervêm em duas noções diferentes: a noção sintática do auxiliar,

muito ligado aos critérios morfossintáticos, e a noção semântica da modalidade. Como nem

todos os operadores de modalidade se comportam como auxiliares, os modais constituem

classes de marcadores que correspondem à zona de recuperação destas duas noções, de modo

que sua definição acarreta na exigência de se dar conta destes dois tipos de características.

Em relação à noção sintática da modalidade, esta apresenta algumas

particularidades que devem ser citadas, tais como:

Os verbos modais são sempre seguidos por um infinitivo e não são empregados

no imperativo:

(1) Moral: Cuidado com as aparências porque pode não saber o que

está na sua frente. [PT4 - A formiga e a cigarra]

No caso da Língua Inglesa, os verbos modais não apresentam um

comportamento homogêneo, sobretudo, MUST, NEED e DARE. Além de não possuírem a

forma no pretérito, NEED e DARE não desempenham a função de modal em contextos não

assertivos, se diferenciando, deste modo, dos outros modais.

Em relação à noção sintática da modalidade, Dufaye (2009) realiza um estudo

sob a perspectiva da TOPE, no qual esta categoria se apresenta sob a forma de componentes

qualitativos e quantitativos50

, apreendidos como resultado de valores construídos.

3.5.1. Os tipos de modalidade no âmbito culioliano

Antoine Culioli distingue quatro tipos de modalidades. Para Deschamps

(2001), a tentativa de formalizar os modais se depara com a extrema flexibilidade do sistema,

além da proliferação de valores, a existência de importantes zonas de recuperação, de

permutações possíveis e de incompatibilidades.

Esses elementos implicam na deformabilidade, isto é, a maleabilidade

constante no nível dos observáveis − o emprego real dos modais em contexto − que se apoiam

50 A qualificação remete à construção das propriedades, das relações intersubjetivas e a posição do enunciador. A

quantificação está ligada ao espaço-temporal e à construção das ocorrências situacionais.

Page 78: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

77

em um sistema estável, que possui uma certa flexibilidade para dar conta dos fenômenos,

permitindo ao mesmo tempo um controle das possibilidades e impossibilidades.

A modalidade, em efeito, marca um certo tipo de relação entre o sujeito e seu

enunciado, que, consequentemente, constrói julgamentos. No que concerne a esse respeito,

Grize (2006) salienta sobre essa categoria que:

Culioli observou na Enciclopédia Alpha que « todo ato de enunciação supõe

uma atitude tomada no que diz respeito à relação que contem a lexis » e farei mais uma, exige também uma atitude face às relações entre lexis. Trata-se de

uma série de operações da categoria EE/E51

que permitem organizar a

esquematização. Elas são próximas das operações da lógica clássica, mas de

natureza profundamente diferente52

. (GRIZE, 2006, p. 39)

A categoria da modalidade se constrói inicialmente, a partir da representação

do sujeito que age sobre o mundo e sobre os outros, dando origem à representação linguística

da asserção, da injunção, da interação, que possuem por base, a teleonomia, a validação e a

capacidade de agir (CULIOLI, 1999).

3.5.1.1. Modalidade de asserção (afirmação ou negação), de interrogação e de

ênfase

Nas reflexões culiolianas, a modalidade do tipo assertivo apresenta um caráter

primordial, devido à importância da ocorrência dos fenômenos de tematização no nível

predicativo. Uma questão que surge é em relação às condições que permitem de se elaborar

um enunciado - seja ele afirmativo ou negativo - como validável, ou seja, referencial.

Em seus estudos sobre a asserção, há uma tentativa de Culioli (1999)

demonstrar as relações existentes entre a negação e interrogação, interrogação e hipótese,

além de situar a injunção em relação à asserção. Para essa finalidade, recorre à lexis, que ao

considerá-la em relação à asserção positiva, configura a afirmação, e em relação à asserção

negativa, configura a negação. Por outro lado, os estudos estritamente linguísticos confirmam

51

Notação adotada por Grize, referente à categoria primitiva E de enunciados. 52 Tradução nossa, do original: "Culioli notait dans l' Encyclopédie Alpha que « tout acte d'énonciation suppose

une attitude prise à l'égard de la relation qui contient la lexis » et je ferai un pas de plus, il exige aussi une

attitude face aux relations entre lexis. Il s'agit d'une série d'opérations de la catégorie EE/E qui permettent

d'organiser la schématisation. Elles sont proches des opérations de la logique classique, mais de nature

profondément différente."

Page 79: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

78

absolutamente que não há lexis negativa, uma vez que a negação se apoia sobre a lexis, o que

a torna nem afirmativa, nem negativa.

A elaboração de esquemas, como acima apresentado, possibilita a solução de

problemas relacionados às línguas ou à linguagem. Dentre estes, se destaca a ambiguidade da

lexis, que pode ser observada nas seguintes manipulações, como proposto pelo modelo

culioliano53

:

[a cigarra, cantar]

(a) o canto da cigarra → acontecimento: « se a cigarra canta », « a ideia, o fato

de que a cigarra cante »;

(b) desejo: « eu desejo que a cigarra cante », « que a cigarra cante! »;

(c) rejeição: « eu não aceito a ideia de que a cigarra cante »;

(d) retorno à lexis.

É evidente, ainda, a construção de um espiral que simula o seguinte caminho a

ser percorrido:

53 Em PLE II, Culioli (1999) assinala a ambiguidade da lexis partindo de [meu pai, morrer], demonstrando por

meio das seguintes derivações: (a) a morte de meu pai, simples acontecimento: eu considero que meu pai morra,

se meu pai morre, onde ocorre a ideia, o fato que meu pai morra; (b) eu desejo que meu pai morra, que meu pai

morra!; (c) eu não quero que meu pai morra, eu não vou considerar a ideia de que meu pai morra; (d) retorno à

lexis, etc.

Fonte: Culioli (1999a, p. 29)

Figura 4: Modelo de configuração da asserção

Page 80: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

79

[cigarra, cantar ou não cantar] → « a ideia que ....» → « o desejo de... » → «

o não desejo de ... » ou « a rejeição de desejar... » → finalmente « o desejo de ... », graças à

[cigarra, cantar ou não cantar]

Para se tornar uma asserção, uma lexis deve ser modalizada e estilisticamente

modulada, induzindo traços prosódicos e permutações.

3.5.1.2. Modalidade do necessário, do possível, do eventual ou do provável

Correspondem à expressão, por parte da fonte enunciativa, de uma falta de

certeza, em diversos graus, quanto à validação da relação predicativa. Inclui-se aqui, a

modalidade epistêmica ou do acontecimento linguístico.

Quanto à probabilidade, é possível a construção de diferentes valores, entre

outras possibilidades.

Em relação à concepção de possibilidade na perspectiva da TOPE, esta

apresenta natureza de extrema complexidade devido aos seguintes fatores (CULIOLI, 1995):

(i) indica uma certa positividade dos enunciados.

(ii) o próprio termo possibilidade suscita uma divergência entre o possível e o

impossível.

(iii) remete à eventualidade, representada, sobretudo, pela expressão É possível

que [...]. Neste exemplo, Culioli (1985) assinala que se trata de um caso híbrido envolvendo

(i) e (ii), pois induz a vários valores, e dentre estes, o negativo faz parte destas possibilidades,

como podemos notar em "É possível que a formiga não empreste seus alimentos." O termo

impossibilidade, nesse sentido, "é uma noção bem diferente. 'Impossível' significaria: não é

possível de se dizer que qualquer coisa acabará54

." (CULIOLI, 1985, p. 83).

(iv) o possível pode corresponder também ao factível, ou seja, significa que

algo pode ser feito ou não.

Por fim, no caso da necessidade, há somente um único valor, na qual se destaca

a distância em relação à atual realização de algo. Com a finalidade de clarificar tal afirmação,

Culioli (1995) ressalta que há um problema de ordem filosófica, ou seja, a relação entre o que

é verdadeiro e o que é necessário: "Assim que processamos dados genéricos, por exemplo,

54 Tradução nossa, do original: "[...] est une notion bien différente. 'Impossible' signifierait: il n'est même pas

enviesageable de dire que quelque chose éventuellement se fera."

Page 81: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

80

estamos processando uma relação que, quaisquer que sejam os termos a que se aplica, é

sempre validado: temos, então, uma relação necessária55

." (CULIOLI, 1995, p. 120).

Os casos que abrangem este tipo de modalidade apontam para um

acontecimento do qual não se pode dizer o que é verdadeiro, nem o que é falso, mas permite a

construção do que é provável, do que é necessário. Mais especificamente, uma relação entre

enunciação, enunciado e enunciador, permite a ocorrência de um acontecimento ao qual nos

referimos por meio de uma construção do valor referencial do enunciado.

3.5.1.3. Modalidade apreciativa

Esta modalidade constitui a dimensão apreciativa ou afetiva centrada sobre o

sujeito enunciador. Por intermédio deste, são construídas todas as distâncias, as avaliações, os

julgamentos autocentrados. Ocorre construção de um juízo de valor, uma apreciação sobre

uma relação predicativa já constituída e validada.

Efetivamente, pode corresponder apenas à construção, por parte do enunciador,

de uma apreciação sobre o caráter bom, mau, favorável, desfavorável, etc. do conteúdo

proposicional de uma relação predicativa construída como validada (ou como não validada)

numa situação de enunciação, que pode ocorrer ou não, dependendo da relação que é

construída entre enunciador e enunciado.

Quanto à dimensão apreciativa da modalidade, esta remete a um jogo de

polarização entre o bom/mau que se opera sobre os casos avaliados. Portanto, a interpretação

deste tipo de modalidade está associada ao grau de agentividade do processo, do termo fonte e

da dimensão intersubjetiva do contexto (DUFAYE, 2001).

3.5.1.4. Modalidade intersujeitos

Por fim, esta modalidade marca a relação entre enunciador e um coenunciador.

Estabelece uma relação entre sujeitos, intitulada também como modalidade do sujeito do

enunciado, marcando uma relação intersujeitos, mais especificamente, interagentes, isto é,

entre enunciador e coenunciador, enquanto desencadeadores de processos.

55

Tradução nossa, do original: "As soon as we process generic data for example, we are processing a

relationship that, whatever the terms to which it applies, is always validated: we then have a necessary

relationship."

Page 82: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

81

Na proposição "Eu acho melhor vocês saírem daqui antes que ela volte56

", há

uma sugestão do que o coenunciador deveria fazer, não se dirigindo necessariamente a uma

pessoa só. De acordo com Culioli (1995, p. 116), "Se é uma questão de relação com o outro,

incluindo a si mesmo como o outro, estamos lidando com o problema de coerção, do

deôntico. Na coerção, estamos lidando com a relação onde há necessariamente avaliação57

.".

A modalidade intersujeitos é constituída pelo fato de ser capaz de, poder e

dever, além de abranger em alguns casos expressões modalizadoras similares a Eu preciso, Eu

devo. Enfatiza-se também que esta modalidade envolve a questão da relação predicativa

quanto à validação ou não-validação58

, onde o valor positivo os distingue por meio de

avaliação.

3.6. A modalidade culioliana revista por Campos

Campos (2001) concebe o enunciado como o resultado de um encadeamento de

operações predicativas e enunciativas. A relação predicativa e a organização sintática

constituem as operações predicativas, enquanto que as operações enunciativas têm a função

de localizar a relação predicativa no espaço enunciativo, ou espaço referencial, que se constrói

na e pela enunciação. Valores referenciais de tematização, diátese, pessoa, quantificação-

qualificação, temporalidade, aspectualidade, modalidade surgem como resultado das

operações enunciativas, afetando a relação predicativa subjacente à produção do enunciado

(CAMPOS, 1998). Ressalta-se também que a origem enunciativa desempenha o papel de

localizador absoluto na construção dos enunciados, sendo, portanto, responsável pela

construção da significação.

Para Valentim (2004, p. 123), "a complexidade deste mecanismo decorre

fundamentalmente do caráter intersubjecivo da actividade linguística, consubstanciado no

facto de o sujeito construir o sistema referencial em relação a outro sujeito, com quem partilha

a representação.". À medida que Campos conduzia sua investigação, esta permitiu a

construção de um quadro coerente sobre as diferentes subcategorias da modalidade.

56 Excerto extraído de PT3 − A amizade. 57 Tradução nossa, do original: "If it is a question of a relationship to another, including oneself seen as another,

we shall be dealing with a problem of coercion, of deontics. In coercion we are dealing with a relationship where

there is necessarily valuation." 58 A não validação da relação predicativa, nesta modalidade, corresponde a um hiato.

Page 83: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

82

A concepção de modalidade apresentada por esta pesquisadora portuguesa,

constantemente ligada aos desenvolvimentos da TOPE, é de uma categoria entendida como

fundacional em relação à atividade de linguagem (MORENO, 2009). É considerada

onipresente na construção do enunciado, portanto, é necessário o acompanhamento de um

estudo minucioso da diversidade e da multiplicidade de suas manifestações linguísticas.

A forma como o sujeito enunciador assume a validação da relação predicativa

corresponde aos valores modais, ou seja, o sujeito enunciador ao se assumir como localizador,

faz com que ocorra a construção da relação predicativa como verdadeira ou não verdadeira,

desse modo, o enunciado exprime valor assertivo positivo ou negativo. Já o enunciado com

valor interrogativo ocorre quando o sujeito enunciador antecipa o seu coenunciador como

localizador modal da relação predicativa.

Em Campos (2004), há uma retomada da tipologia das quatro modalidades

apresentadas no item 3.5.1., além de ser acompanhada pela introdução de algumas precisões

teóricas na definição das modalidades classificadas (na sequência de Culioli) de tipo 3

(modalidade apreciativa) e de tipo 4 (modalidade intersujeitos), propõe um “rearranjo” de que

resulta uma tipologia tripartida: modalidade epistêmica, modalidade apreciativa e modalidade

deôntica.

Para Oliveira, M. T. F. (2001), a construção de um valor modal provém da

manifestação da "atitude de um sujeito enunciador em relação ao conteúdo proposicional que

enuncia e em relação ao seu coenunciador, no e pelo acto de enunciar" (CAMPOS apud

OLIVEIRA, M. T. F., 1997, p. 417).

Na perspectiva da semântica enunciativa, interessa a representação da

simulação referente à atividade significante da linguagem, que produz sobre a realidade dos

atos enunciativos ligados ao espaço da intersubjetividade no sentido do semantismo

linguístico. É imprescindível ressaltar que uma mesma relação predicativa pode apresentar um

conjunto de enunciados com valores modais de tipos e graus diferentes, tal como expomos a

seguir.

3.6.1. A modalidade epistêmica

Esta modalidade se destaca pelo fato de que é a partir dos valores epistêmicos

que são construídos todos os outros valores modais. Segundo Campos (2000) é o tipo de

Page 84: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

83

modalidade presente em todo enunciado por corresponder aos operadores lógicos de crença

ou de saber, estes considerados constitutivos obrigatórios de todo e qualquer enunciado.

Para uma melhor compreensão desta modalidade, partimos da relação

predicativa < Cigarra, aprender, lição >, da qual derivamos as seguintes proposições:

(a) A Cigarra aprendeu a lição;

(b) A Cigarra não aprendeu a lição;

(c) A Cigarra deve ter aprendido a lição;

(d) Acho que a Cigarra aprendeu a lição;

(e) Talvez a Cigarra tenha aprendido a lição;

(f) A Cigarra pode ter (ou não ter) aprendido a lição.

Espelhamos-nos em Campos e Xavier (1991) para realizar as explicitações de

cada excerto. Inicialmente, é explícito que todos os enunciados constituem uma resposta à

interrogação A Cigarra aprendeu a lição?. Isso significa que exprimem valores modais do

mesmo tipo, porém de diferentes graus. Em (a) a (f) está evidente a atitude do sujeito

enunciador quanto à validação − simbolizado pelo sim como em (a) − ou não-validação da

relação predicativa − simbolizado pelo não como em (b) −, ou opta por não se responsabilizar

inteiramente pela validação ou não-validação. Em relação à validação, uma distância, maior

ou menor, é construída, representando o grau de conhecimento ao acontecimento construído.

Levando em consideração ainda a proposição (a), pelo fato de o sujeito

enunciador assumir inteiramente a validação da relação predicativa, caracteriza o que

denominamos de valor de asserção estrita positiva. O enunciado (b) possui valor de asserção

estrita negativa, pois o sujeito enunciador assume inteiramente a não-validação da relação

predicativa. Tanto (a) quanto (b) se inserem no domínio do certo.

Em relação às outras proposições acima, em alguns casos há recusa por parte

do sujeito enunciador em assumir a validação (ou não-validação) da relação predicativa,

enquanto em outros somente assume parcialmente. Portanto, tais valores modais

correspondem ao domínio do não-certo.

Na relação predicativa (f), trata-se de um exemplo de recusa total que se situa

no pólo negativo, isto é, a assunção nula, pois nesse caso ocorre a equiponderação entre

aprendeu e não aprendeu, uma vez que o sujeito enunciador não dispõe, linguisticamente, de

Page 85: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

84

elementos que possibilitem validar ou não-validar a relação predicativa (CAMPOS; XAVIER,

1991).

Quanto à (c) e (d), estes apresentam valores modais do mesmo tipo e graus

diferentes, destacando que (c) se aproxima da asserção estrita. Por fim, o valor modal

expresso pelo verbo dever, nessa perspectiva, é justificado pelas autoras por meio da

afirmação: "o enunciador não dispõe de um conhecimento que lhe permita validar (ou não-

validar) a relação predicativa; mas tem outros conhecimentos, que ele interpreta como

indícios, nos quais se baseia para construir um valor modal quase-certo, próximo da asserção

estrita" (CAMPOS; XAVIER, 1991, p. 340).

3.6.2. A modalidade apreciativa

Devido à dificuldade de sistematizar os diversos marcadores existentes, esta

modalidade é a menos estudada. A construção de um juízo de valor ou de uma apreciação

sobre uma relação predicativa já constituída e validada caracteriza a modalidade apreciativa.

Esses tipos de valores modais são marcados por uma estrutura de

complementação de tipo impessoal tais como: foi bom que, é bom que, é natural que, etc.

Partindo da mesma relação predicativa utilizada no item 3.6.1., obtemos:

(g) Foi bom que a Cigarra tivesse aprendido a lição;

(h) É bom que a Cigarra esteja a aprender a lição.

Nos enunciados acima, trata-se de uma relação predicativa validada, construída

numa situação de enunciação anterior como em a Cigarra aprendeu/está aprendendo a lição,

acarretando na constituição de um pré-construído, termo este introduzido por Culioli para

designar o nível pré-lexical.

De acordo com Neves (2009), o pré-construído se situa no nível inassertado,

possui natureza linguística, o que permite a identificação e caracterização por meio de regras

metalinguísticas, independente de ser ou não verbalizado. Por fim, é essencial

complementarmos esta designação com os dizeres de Moreno (2009, p. 27): "[...], os casos em

que se verifica uma verbalização do pré-construído constituem exemplos particularmente

ilustrativos da relação entre enunciação e pré-construção.".

Page 86: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

85

3.6.3. A modalidade deôntica

Nesta citada modalidade, ocorre a construção de uma relação entre o sujeito da

enunciação e o coenunciador, o que desencadeia na realização da situação dinâmica

simbolizada pela relação predicativa < r > modalizada.

O modo imperativo e os seus substitutos marcam tradicionalmente a

modalidade deôntica. O valor deôntico se insere nesta modalidade expressa pelos modais

dever e poder, a expressão É necessário, o verbo ter de/que, além de outras construções como

a interrogação. A seguir, nos referimos às exemplificações deste tipo de valor modal por meio

das predicações:

(i) A Cigarra deve aprender a lição;

(j) A Cigarra pode aprender a lição.

Tais proposições indicam a construção de uma relação entre o sujeito

enunciador e o sujeito do enunciado, A Cigarra, que pode ser pressionado como em (i) ou

autorizado como em (j) pelo sujeito enunciador a realizar o evento ou a atividade expressos na

relação predicativa (CAMPOS; XAVIER, 1991).

3.7. A modalidade no livro didático

Nesta subseção, apresentamos brevemente como a modalidade é abordada nos

livros didáticos59

de Língua Portuguesa adotados pela rede pública de ensino do Estado de

São Paulo. Em relação às obras utilizadas no Ensino Fundamental − Anos Finais, vigente

desde fevereiro de 2014 até meados de dezembro de 2016, constatamos que não há nenhuma

menção sobre a categoria da modalidade em seus 4 volumes, que correspondem

respectivamente aos 6º, 7º, 8º e 9º anos. Verificamos também a ausência do tema nos

denominados Caderno do Aluno e Caderno do Professor, material que já citamos no Capítulo

II deste trabalho.

59 Para realizar essa abordagem, restringimos a pesquisa em vista dos livros didáticos de Língua Portuguesa

utilizados somente no estabelecimento de ensino que realizamos a coleta de corpus para este trabalho.

Consideramos necessário enfatizar que nosso objetivo não é analisar materiais didáticos, nem realizar

críticas sobre como as conceituações da modalidade e atividades propostas que envolvem o assunto são

abordadas no citado livro.

Page 87: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

86

Neste sentido, caminhamos em direção à coleção de Português selecionada

para o público alvo do Ensino Médio. Trata-se de Língua Portuguesa: Linguagem e interação

de Faraco, Moura e Maruxo Jr. (2014), cuja vigência iniciou-se em fevereiro de 2015,

finalizando em dezembro de 2017. A coleção é composta por 3 volumes direcionados

respectivamente para o 1º, 2º e 3º anos do Ensino Médio.

Percorrendo esta obra, nos deparamos com uma breve explicação sobre o

assunto somente no volume voltado ao 3º ano, como podemos verificar em seguida:

Verificamos que a definição apresentada pelo livro didático diz respeito ao

ponto de vista do enunciador expresso em relação a uma informação, como destacamos na

imagem. Os autores evidenciam a importância da modalização, sobretudo em textos

argumentativos, e posteriormente, expõem a sua frequência em artigos de opinião no decorrer

do livro.

Figura 5 - A modalidade no livro didático

Fonte: Faraco; Moura; Maruxo Júnior (2014, p. 315)

Page 88: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

87

A intenção é levar os alunos a formulações que deixem transparecer suas

opiniões, de modo a não recair exclusivamente sobre o eu. Nesse sentido, Vion (2011) reflete:

O poder persuasivo de um enunciado não pode, no entanto, ser colocado em

relação simples e direta com um grau particular de adesão do locutor ao seu

próprio discurso, mesmo que em razão de diferentes pontos de vista entre os atores da comunicação. (VION, 2011, p. 78)

É possível perceber que os autores expressam a preocupação de mostrar aos

aprendizes que, apesar de não ser acompanhado das formas linguísticas consideradas modais,

o enunciado é modalizado pelas atitudes comportamentais do locutor. Verifica-se também,

que ao fornecer a explicação sobre a modalidade, são apresentadas frases exemplares que

devem servir de modelo para o aluno se espelhar e reproduzir em seus textos, que podemos

observar abaixo:

Page 89: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

88

Figura 6 - Exemplos de enunciados com modalização

Fonte: Faraco; Moura; Maruxo Júnior (2014, p. 316)

Page 90: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

89

Apesar de uma breve exposição da modalidade em um livro voltado para o

Ensino Médio, detectamos uma ausência de um trabalho com esta categoria de determinação

em materiais didáticos elaborados para o Ensino Fundamental, sobretudo aqueles que

circulam nos Anos Finais, ou seja, de 6º ao 9º anos. No que concerne a essa questão, Onofre

(2011) opina:

Essa ausência de um trabalho com os mecanismos enunciativos e

discursivos, que se constroem por meio das relações entre as marcas léxico-gramaticais, deveria figurar como a maior lacuna encontrada nesses

materiais didáticos analisados, porém o que observamos é que essa questão

segue, sempre, negligenciada. Isso leva-nos a considerar que, de fato, não há uma teoria da linguagem que sirva de referencial para o desenvolvimento do

trabalho com a produção de texto no ensino. As relações léxico-gramaticais

ficam sempre deslocadas das discussões sobre discursividade, o que nos

mostra que persiste o fosso entre gramática e produção/interpretação de texto. (ONOFRE, 2011, p. 744)

Isso demonstra que ainda permanece a tradição de se direcionar o livro didático

para a sistematização de categorizações importantes que devem ser apresentados aos alunos,

sem a preocupação de se elaborar atividades de compreensão de textos que visem ao

aperfeiçoamento da construção/reconstrução da significação, tais como exercícios que

pudessem demonstrar como as atitudes do sujeito enunciador que são explicitadas pela

sistematização de valores modais construídos são enriquecedores para o desenvolvimento

linguístico discursivo dos aprendizes.

Page 91: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

90

CAPÍTULO IV

METODOLOGIA DA PESQUISA

4. INTRODUÇÃO

Neste capítulo apresentamos a metodologia de pesquisa do estudo em questão.

4.1 O caráter metodológico da TOPE

Ao definir a Linguística como a ciência que possui como objeto de estudo a

linguagem apreendida por meio da diversidade das línguas naturais, Culioli (1990) revela

nesta definição o seu caráter programático, pois esta concepção influencia a teorização e a

metodologia. A observação mostra que há, além da diversidade das realizações e das

categorizações possíveis, propriedades analógicas estáveis, ou seja, as línguas não são

irredutivelmente específicas (CULIOLI, 1999a).

De acordo com o autor, há um sistema de representação metalinguística que é

autônomo e adequado à complexidade do objeto de análise, constituído de diferentes níveis

metalinguístico: o nível nocional, o nível predicativo e o nível enunciativo. No nível nocional,

remete à noção, concebida como um conjunto de propriedades psicossociológicas culturais de

ordem cognitiva que permite a construção de um domínio nocional, que associa à noção uma

classe de ocorrências, construindo um espaço topológico (p, p') que permite distinguir o que

pertence e o que não pertence ao domínio. Este é constituído de propriedades formais, que

corresponde a três zonas:

(1) um interior (I), que compreende verdadeiramente as propriedades, onde se

situam as ocorrências validadas;

(2) um exterior (E), onde se situa as ocorrências não validadas;

(3) uma Fronteira (F), não corresponde verdadeiramente às propriedades,

podendo ou não ser construída linguisticamente.

As conceituações relacionadas à noção, segundo Sousa (2007), podem ser

assim ilustradas:

Page 92: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

91

Não podemos deixar de citar o centro atrator, considerado como um segundo

polo organizador fornecido pela noção. Graças ao centro atrator é possível determinar em que

e qual medida uma ocorrência tem a ver com a noção, estabelecendo, desse modo, uma dupla

singularidade. A primeira singularidade remete à singularidade da noção enquanto indizível e

a segunda seria a singularidade dos indivíduos, considerados herdeiros da noção sob este ou

aquele aspecto e que a dividem.

Em relação ao domínio nocional, Deschamps (2001) aponta:

Ao lado da noção, necessitamos da relação predicativa tanto quanto a tripla

de elementos: dois argumentos e um relator (ou predicado). Esta relação

predicativa constitui um novo domínio nocional complexo com as mesmas partições que as noções simples. Neste estudo sobre a modalidade, somente

os dois valores correspondem à I (validação da relação) e E (não-validação)

vão ser considerados. Deixamos de lado provisoriamente a fronteira e o

centro atrator60

. (DESCHAMPS, 2001, p. 5)

60 Tradução nossa, do texto original: “A côté de la notion, on a besoin de la relation prédicative en tant que triplet

d’elements: deux arguments et un relateur (ou prédicat). Cette relation prédicative constitue un noveau domaine

notionnel complexe avec les mêmes partitions que les notions simples. Dans cette étude sur la modalité, seules

les deux valeurs correspondant á I (validation de la relation) et E (non-validation) vont être prises em compte. On

laissera provisoirement de côté la fronteire et le centre attracteur.”

Fonte: Sousa, 2007, p. 30

Figura 7 - O domínio nocional

Page 93: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

92

Para que o domínio nocional possa ser melhor compreendido, é preciso estar

claro que a zona interior constitui uma classe aberta de ocorrências. Uma noção,

representação inacessível, somente apreendida por meio de traços textuais, é anterior à

categorização de nome, verbo e de outras classes gramaticais; além de ser definida em

intensão e não ser quantificável. Essa afirmação pode ser melhor compreendida segundo os

dizeres de Valentim (1998):

Assim sendo, a definição de uma noção só pode ser dada em intensão, isto é,

qualitativamente. Representa, por isso, um predicável, encontra-se ainda por

ser atribuída a um objecto e a um estado de coisas. Com valor puramente qualitativo, a noção não é quantificável: apresenta-se como um compacto e

indivisível. (VALENTIM, 1998, p. 38)

Nos estudos culiolianos, as noções são analisadas, segundo três tipos:

(a) As noções lexicais ou predicativas: classes de palavras, que ao serem

lexicalizadas, são expostas a um "filtro lexical" determinando na enunciação, desse modo, a

seleção de um dos elementos da classe. Assim, "cada noção lexical associa-se uma classe

teoricamente infinita de lexemas, que são representações linguísticas da noção" (CAMPOS,

1994, p. 140).

(b) As noções gramaticais: estão associadas a marcas gramaticais próprias de

cada língua. Correspondem aos valores semânticos expressos por meio de morfemas

gramaticais (flexão verbal, flexão nominal), de partículas, de morfemas suprassegmentais e da

ordem das palavras, na maioria das línguas (CAMPOS, 1994). Os casos de número, de

gênero, de pessoa, de determinação, de diátese, de tempo, de aspecto e de modalidade são

considerados noções gramaticais, existentes em cada língua ao estabelecerem um sistema de

correspondências, não necessariamente biunívoca, entre os valores de cada noção gramatical e

os respectivos marcadores linguísticos.

(c) As noções complexas: se associam com a finalidade de constituir um

esquema de lexis, concebida como uma categoria pré-enunciativa.

As noções são apreendidas por meio de ocorrências que permitem a sua

constituição. Tais ocorrências possuem diferentes propriedades ao serem localizadas em

relação a um tempo e a um espaço. De um conjunto de ocorrências, Culioli (1990) distingue

dois tipos:

Page 94: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

93

(a) Ocorrências fenomenais que remetem a um universo de objetos ou de inter-

relações entre objetos, parcialmente rígidos, adquiridos culturalmente. Não são de

responsabilidade do linguista, apesar de que durante a efetuação das análises, as ocorrências

fenomenais devem ser consideradas "se não quiserem analisar um conjunto de entidades

estranhas aos enunciadores e coenunciadores de uma determinada língua" (CORREIA, 2002,

p. 26).

(b) Ocorrências linguísticas (metalinguísticas) constituem os termos do

enunciado e estão ligadas à tarefa do linguista. Uma relação é produzida entre o

posicionamento dos termos e as relações de localização abstrata, gerando uma imbricação de

ocorrências, cujo resultado dessa relação é um conjunto de valores diferentes de uma mesma

ocorrência. É necessário levar em consideração os valores que estão presentes em cada um

dos enunciados e que os diferencia.

Como as ocorrências linguísticas não pré-existem às ocorrências fenomenais e

são somente analisadas sistematicamente quando se manifestarem nos textos, as relações entre

ocorrências fenomenais e ocorrências linguísticas (e metalinguísticas) são interdependentes,

como podemos observar na representação elaborada por Correia (2002):

Figura 8 - Interdependência das ocorrências fenomenais e linguísticas

Fonte: Correia (2002, p. 27)

Page 95: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

94

A figura acima reforça o fato de que por meio das ocorrências podem-se

apreender as noções. As ocorrências podem ser qualitativamente uniformes, intercambiáveis e

identificadas com outras. Essa uniformidade é atribuída à influência das relações

intersubjetivas, o que não significa que são idênticas.

A metodologia culioliana visa construir por meio de enunciados de classes de

fenômenos, que raramente considera a unidade dialógica como objeto de estudo. Nas

reflexões de Boutet (1995), a relação não unívoca entre marcadores linguísticos e valores

semânticos, nas quais se incluem os fenômenos linguísticos ligados a não simetria das

atividades de produção e de reconhecimento dos enunciados, constitui avanços para a análise

da interação. Esta relação entre marcadores e valores é considerada instável. A teoria se

preocupa com a complexidade das manifestações linguísticas, que, como vimos

anteriormente, partindo de um programa de trabalho que considera um conjunto de operações

abstratas, marcadas nos textos por meio de formas e construções específicas de cada língua.

Não se pode isolar, de um lado, o objeto produzido pela atividade de

linguagem (o enunciado) e, de outro lado, a atividade da linguagem (a enunciação), pois as

duas são intimamente ligadas. Desenvolver um estudo centrado nas sequências textuais nos

conduz a uma possibilidade de reconstruir as formas abstratas, subjacentes a um processo de

ajustamento realizado entre os sujeitos enunciadores. Partindo de um texto, podemos

manipular de forma controlada os elementos que o constituem, observando quais as diferentes

operações estão envolvidas em cada uma das sequências obtidas. Esse procedimento constitui

um dos pressupostos para o afastamento metodológico daquilo que diremos ser uma análise

linguística meramente classificatória.

Segundo Valentim,

[...] o modelo teórico elaborado por Culioli constitui um aparelho teórico

estável que, acompanhado de uma manipulação criteriosamente controlada

dos enunciados, pode fundar a unidade de qualquer descrição linguística. Constrói um sistema de representação explícito que permite articular e

homogeneizar domínios de operações heterogêneos (VALENTIM, 1998, p.

33)

Portanto, somente um trabalho teórico nos fornece os meios de construção de

um sistema de representação explícito estável; e ao tratarmos de fenômenos heterogêneos,

articulamos teorização e trabalho de abstração. Construir uma teoria dos observáveis, partindo

Page 96: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

95

de fenômenos, sobretudo constituídos de famílias de enunciados em relação parafrástica, e

formular procedimentos de raciocínio libera-nos do discurso intuitivo graças à construção de

um sistema de representação metalinguística, que inclui a língua usual, excedendo as

propriedades classificatórias.

Nas reflexões de Rezende (1989), no que concerne à representação

metalinguística, nesse viés teórico enunciativo, esta descreve e explica o que há de essencial

na passagem dos universos extralinguísticos, considerados extremamente diversificados, para

os sistemas de representação das línguas naturais. Cabe ao linguista investigar como os signos

discretos das línguas naturais são organizados para a expressão/representação dos

símbolos/referentes do extralinguístico. Tais signos devem ser estudados como traços para se

descobrir o processo dinâmico que os gerou e não como organização resultante e estática

(produto).

Ao adotarmos como objeto de análise, agenciamento de marcadores, lidamos

concomitantemente com uma forma abstrata, concebida como o produto das operações,

levando-nos a simular a relação de operação e marcadores graças a uma construção

metalinguística. Portanto, atribui-se ao linguista a tarefa de discutir sobre a linguagem, que

seria apreendida por meio da observação de várias marcas veiculadas pelas línguas naturais.

No que concerne a esse respeito, Zavaglia (2016) salienta:

Todavia, se o linguista permanecer apenas no nível textual das línguas,

ele negligenciará, à maneira estruturalista saussuriana, o estudo da

atividade de linguagem. Para escapar dessa cilada, a ele incumbe a difícil tarefa de passar de um nível a outro considerando as evidências

dadas pelos sistemas visíveis e aquelas que ele próprio construiu a

partir de suas análises e interpretações das marcas das diferentes manifestações linguísticas que observou, sejam elas provindas de

várias produções de um mesmo sujeito, da comparação e contraste

entre a língua da criança e a língua do adulto, entre regionalismos ou entre duas ou mais línguas distintas, ou das diversas faces ou recortes

de uma mesma língua. Nesses agenciamentos, o linguista poderá

encontrar regularidades próprias aos mecanismos da atividade de

linguagem, os quais estão, sem ser possível determinar o seu lugar, além ou aquém dos sistemas linguísticos. (ZAVAGLIA, 2016, p. 33)

Desse modo, o modelo proposto se apoia na TOPE, que postula que a

metalinguística repousa sobre sequências de operações ligadas aos processos cognitivos (não

constituindo uma gramática universal como da teoria gerativista), considerados base da

Page 97: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

96

construção dos sistemas de representação. Essas operações organizadas em esquemas, ou seja,

em cadeias de operações abstratas, que devem ser levadas em consideração como

fundamentos do sistema, fundamentais para a compreensão das etapas da construção dos

sentidos.

Tais esquemas não são materializados pelas formas linguísticas atestadas, os

marcadores de operação, "[...] que não podem ser consideradas palavras vazias ou palavras

função (opostas às palavras cheias), nem como simples etiquetas, nem como morfemas

definidos em termos de marca (marcado/não marcado)61

" (Deschamps, 2001, p. 4).

Como os marcadores linguísticos são necessariamente o traço de uma

referência do real, tal como o sujeito falante o representa ou escolhe para representá-lo, o

emprego desses marcadores em um determinado contexto implica na existência de uma

compatibilidade entre sua forma esquemática e o esquema de operações em jogo.

Consequentemente, surgem os valores constatados como resultado desta compatibilidade que

devem ser explicados vinculados à sequência das operações e da forma abstrata.

4.2. Contexto de pesquisa

A realização desta pesquisa ocorreu em uma escola pública, localizada na

periferia62

de uma cidade do interior de São Paulo. Trata-se de uma instituição escolar de

porte médio, com aproximadamente 1111 alunos, comportando 12 salas de aula. Ao

considerarmos o ano de 2016, os períodos da manhã e da tarde totalizam 19 turmas de Ensino

Fundamental – Anos Finais, das quais 5 classes são de 6º ano, 5 classes de 7º ano, 5 classes de

8º ano e 4 classes são de 9º ano. Cada sala de aula possui uma média de 35 alunos por sala. A

professora-pesquisadora desta pesquisa leciona em oito turmas do Ensino Fundamental desta

escola, principalmente nos 6º, 8º e 9º anos, nas disciplinas de Língua Portuguesa e Língua

Inglesa, possibilitando, deste modo, a coleta de dados.

Para Holmes (1992), um bom pesquisador tem que conhecer a sala de aula,

sendo assim, o professor é o mais indicado a realizar pesquisa, dado que participando

diretamente do contexto pesquisado tem mais possibilidades de coletar dados reais, válidos e

relevantes.

61 Tradução nossa, do original: "[...], qui ne peuvent être considérés comme des mots vides ou des mots outils

(opposés aux mots pleins), ni comme de simple étiquettes, ni comme des morphèmes définis em termes de

marque (marqué/non marqué)." 62 Esta escola atende uma comunidade de aproximadamente 18 bairros.

Page 98: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

97

Em relação à faixa etária média dos alunos do Ensino Fundamental, é de onze a

quatorze anos, havendo apenas poucos alunos mais velhos em função de repetência ou

abandono.

4.3. Descrição do corpus

Nesta investigação observamos um conjunto de 108 produções de textos

escritos, de alunos de 6º ano do Ensino Fundamental – Anos Finais. Optamos, nesse

momento, pela estrutura narrativa, sobretudo fábulas e escritas de narrativa, tendo em vista a

relevância da ocorrência da categoria linguística observada, uma vez que o objeto de análise é

a modalidade apreciativa. O corpus é composto de enunciados em que haja ocorrência de

processos de predicação que apresentem esse marcador linguístico. Esse processo não se

caracteriza por ser exaustivo, pois trabalhamos com ocorrências típicas.

Em relação à coleta de dados, Culioli (1995) enfatiza que observar não é

puramente empírico, mas um procedimento que pressupõe e vincula considerações teóricas

que não pode ser destituído dos contrastes técnicos.

Optamos por selecionar textos produzidos em sala de aula de classes de 6º anos

pertencentes aos anos de 2013 e 2016, respectivamente, período em que se insere o

desenvolvimento desta pesquisa de doutorado, caracterizando fases distintas e substanciais

para a realização deste estudo.

4.3.1. Primeira fase de coleta de dados

Em um primeiro momento, os textos produzidos basearam-se em uma das

seções apresentadas no Caderno do Aluno de 6º ano de Língua Portuguesa - Linguagens,

material didático distribuído em toda rede de ensino público estadual e elaborado por uma

equipe da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. O Caderno do Aluno é divido em 4

seções intituladas Situação da Aprendizagem, no caso desta disciplina. O corpus é

constituído, sobretudo, de produções textuais escritas com base nas atividades desenvolvidas

da Situação de Aprendizagem 1 intitulada Quem conta a história? . Esta Situação de

Aprendizagem foi elaborada com a intenção de trabalhar as seguintes subseções:

Leitura e análise de texto

Page 99: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

98

Produção escrita

Lição de casa

Na subseção Leitura e análise de texto, há a apresentação de dois textos, Texto

A - A cigarra e a formiga de La Fontaine, e Texto B - sem título, um parágrafo narrativo que

conta a história de Gilberta, que adora sair para dançar forró todas às sextas-feiras. É

proposto, então, que o professor conduza uma discussão sobre as semelhanças entre a fábula e

a pequena narrativa de Gilberta. Após essa atividade inicial, o professor deve, em seguida,

aprofundar as informações sobre os elementos da narrativa, tais como: personagem, enredo,

tempo, espaço e foco narrativo.

Ao encerrar essa breve discussão, o professor é orientado a passar para as

habilidades específicas de escrita, cujo objetivo é entender a diferença entre narrador e autor

na subseção Produção escrita. A proposta é que o aluno escreva um texto curto com base no

seguinte tema:

Nesta atividade, o aluno é orientado, inicialmente, a elaborar um esquema,

"uma espécie de esqueleto" como o próprio Caderno do Aluno sugere, devendo apontar as

informações que são solicitadas para a escrita do texto, de acordo com as seguintes questões

norteadoras:

Figura 9 - Proposta de produção de texto da Situação de Aprendizagem 1

Fonte: São Paulo (2014-2017, p. 7)

Page 100: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

99

Entretanto, consideramos esse tema "um dia inesquecível" uma proposta

descontextualizada com o que estava sendo trabalhado na subseção Leitura e análise de texto

nas aulas anteriores, uma ruptura com a sensibilização inicial. Seria mais pertinente um outro

tema, que na ocasião, partiu da própria sugestão dos alunos do 6º ano de 2013: a continuação

da história de A cigarra e a formiga. As produções textuais foram produzidas durante as

atividades realizadas em sala de aula, gerando um total de 29 textos. Em relação à subseção

Lição de casa, esta se divide nas atividades de Oralidade e Estudos da língua, no qual, este

último evidencia os estudos gramaticais.

4.3.2. Segunda fase da coleta de dados

Por fim, esta caracteriza a segunda etapa da coleta de dados, realizada no 1º

bimestre de 2016, mais especificamente o mês de fevereiro. Neste caso, participamos da aula

de Língua Portuguesa de três salas de 6º ano, com a permissão de um professor desta mesma

escola pública de periferia citada anteriormente. O fato de o material didático utilizado nesta

Figura 10 - Orientação para elaboração de escrita de narrativa

Fonte: São Paulo (2014-2017, p. 7)

Page 101: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

100

aula ser o mesmo descrito anteriormente, ou seja, o Caderno do Aluno de Língua Portuguesa,

não interferiu no contexto de pesquisa.

Como professora-pesquisadora, o envolvimento bastante próximo com as aulas

em anos anteriores, possibilitou as observações e questionamentos que surgiram com a

aplicação da atividade, constituindo substrato para a análise de dados posteriormente.

O momento de aplicação da atividade, não poderia ter sido mais oportuno, uma

vez que o professor estava encerrando os exercícios propostos sobre os aspectos e

características estruturais das narrativas e passaria para a seção de Produção escrita.

Modificando a proposta sugerida no Caderno do Aluno, que é a escrita de uma breve história

sobre "um dia inesquecível", foi entregue aos alunos uma folha de atividade (Apêndice A),

cuja sugestão, inicialmente, era que realizassem a leitura do Texto I - A cigarra dá seu troco,

onde destacamos em negrito as marcas de modalização apreciativa.

Esse Texto I é parte constituinte do corpus coletado no primeiro momento, do

ano de 2013, trata-se de uma continuação de A cigarra e a formiga produzida com base na

fábula apresentada no Caderno do Aluno, elaborada por uma aluna do 6º ano na ocasião da

coleta daquele ano:

Texto I - A cigarra dá seu troco

A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição. Receosa, agora

sabe que se você guardar hoje, com certeza terá amanhã.

A formiga, toda contente, foi pedir desculpa à amiga. Explicou que só não

ofereceu alimento porque a cigarra tinha de aprender a lição e dar valor às coisas. A cigarra aceitou numa boa, na verdade, foi muito bom. Emocionada,

disse:

─ Tudo bem, eu lhe perdoo, mas não me esquecerei, você foi muito cruel

comigo!

Logo depois, a formiga foi embora rindo da cara da cigarra dizendo:

─ Nunca precisarei de você!

Cabisbaixa, a cigarra simplesmente se recolheu em casa. Era uma pena.

O tão temido inverno chegou e a formiga, despreocupada, nem se preparou.

Confiante, é claro que foi para a casa da cigarra. Chegando lá, implorou para que lhe

abrigasse. A cigarra, muito satisfeita e com um sorriso nos lábios, indagou:

─ Você lembra que eu pedi sua ajuda? Envergonhada, a formiga trêmula disse:

─ Por favor, me perdoe!

Muito decidida, a cigarra fechou a porta, exclamando:

─ O que plantamos hoje, colhemos amanhã.

Moral da história: O mundo dá voltas, hoje você tem, amanhã você pede.

Quadro 5 - Produção textual elaborada por uma aluna do 6º ano/2013

Fonte: O próprio corpus deste trabalho

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101

Por ser uma produção textual rica em marcadores que nos interessam, ou seja,

marcas de modalidade apreciativa, esse material foi utilizado como base para a elaboração da

atividade que aplicamos nas salas de 6º ano de 2016, encerrando, deste modo, a etapa de

coleta de dados. Após a leitura do Texto I, é solicitado que os alunos leiam o Texto II, de

mesmo título do anterior, este que não apresenta as marcas em negrito. Em seguida, os

aprendizes responderam às seguintes perguntas norteadoras, elaboradas pela própria

pesquisadora para a aplicação da atividade:

As questões apresentadas aos alunos, sobretudo, chamam a atenção para as

semelhanças e diferenças entre os dois textos, pois conforme afirma Rezende (2008, p. 106)

"a mudança de cenário é importante para que o aluno aprenda a se apropriar do texto".

Espera-se que ocorra percepção da existência de um cenário anterior ao Texto II, do qual

poderá se inserir durante o processo de produção de textos, leitura e escrita da narrativa, dos

quais poderão avaliar, julgar, apreciar, distanciar-se ou aproximar-se e remontar significados

(REZENDE, 2008, p. 107).

Por fim, requisitamos aos alunos que escrevam uma nova versão da fábula,

resultando em um total de 79 produções textuais.

1- Você acha que os dois textos acima são idênticos? Justifique sua

resposta.

2- Qual a importância das expressões em negrito para a construção do

texto?

3- De qual texto você gostou mais? Por quê?

4- Reescreva o seguinte trecho, inserindo novas expressões que você achar

interessante.

"A cigarra aprendeu a lição. Agora sabe que se você guardar hoje, terá amanhã.

A formiga foi pedir desculpa à amiga. Explicou que só não ofereceu

alimento porque a cigarra tinha de aprender a lição e dar valor às coisas.

A cigarra aceitou e disse:"

Page 103: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

102

4.4. Procedimentos de análise: o papel do linguista e les outils techniques63

O procedimento metodológico adotado no presente trabalho é sustentado pelos

princípios enunciativos da TOPE, propondo, nesse sentido, um estudo linguístico baseado na

articulação entre as noções de linguagem e línguas naturais, o que implica a articulação entre

gramática e produção/interpretação de textos.

Tal aparato teórico possibilita explicar o funcionamento da atividade de

linguagem em um sentido mais abrangente. Para o desenvolvimento da análise linguística

apoiada nesse modelo, é necessário o conhecimento de um conjunto de ferramentas

conceituais e metalinguísticas, que permitem construir a explicação.

Apropriando-nos dos dizeres de Culioli (1990, p. 17), "todo enunciado pertence

a uma família parafrástica64

, onde às vezes se desliza de um enunciado a um enunciado

equivalente, porém resultando uma modulação diferente". Portanto, trata-se de construir uma

teoria dos observáveis, por meio da manipulação regrada de uma série de sequências textuais

com a finalidade de extrair enunciados aceitáveis, estáveis e "bem formados", graças a um

sistema de representação metalinguística, que deve dar conta do funcionamento das

derivações e das impossibilidades. No que concerne à teoria dos observáveis, Valentim (1998)

realiza a seguinte reflexão:

Apenas mediante o acesso a observáveis linguísticos65

, se constrói uma

teoria que, de uma forma regular e económica, permita homogeneizar e

articular os diferentes fenómenos. O recurso a uma teoria dos observáveis é, pois, fundamental para que se identifique e delimite o tipo de dados que se

submeterá à análise. É este procedimento controlado que está subjacente

quando se procede à manipulação de um certo número de enunciados a fim de delimitar a classe de fenómenos ou problema. (VALENTIM, 1998, p.

34)

Quanto ao linguista, incumbe-se o papel de se trabalhar com as sequências

textuais, ou formas, além da relevância destacada por Culioli (1990), na qual "O linguista é

obrigado a trabalhar de modo mais rudimentar: produzir observações, trabalhar sobre

63 Corresponde a "ferramentas técnicas", porém optamos por manter o termo em francês tal como utilizado por

Culioli em PLE II em relação aos procedimentos metodológicos. 64

Não há família parafrástica, sem propriedades formais, e consequentemente, não há produção e

reconhecimento de formas. 65 Grifos realizados pela autora.

Page 104: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

103

avaliações [...]; teorizar para poder representar; retornar às observações, neste vai e vem

indispensável entre a observação e a teorização.66

" (CULIOLI, 1990, p. 23). Durante suas

observações, o pesquisador assume-se como sujeito e observador, pois não é possível a

existência de sujeitos que possuam uma relação de extrema exterioridade em relação à sua

própria língua.

Assim, como orienta Culioli (1990), é necessário deduzir, realizar

investigações comparáveis por meio de uma teoria dos observáveis, construindo uma

representação formal dos dados através de um sistema de representação metalinguística.

Adiciona-se, ainda, o fato de que devemos respeitar a especificidade dos fenômenos próprios

de cada língua, associados a operações elementares, como a predicativa e a enunciativa, que

possuem uma forma geral por meio de encadeamentos argumentados e configurações

específicas dos mecanismos linguísticos (CULIOLI, 1999a).

Portanto, como não é possível acessarmos os processos abstratos que originam

as formas nos quais os enunciados se baseiam, temos à disposição traços textuais que apontam

para tais processos. Quanto a essa questão, destacamos os dizeres de Correia (2002):

A importância da centralidade do estudo das sequências textuais leva a poder

reconstruir-se as formas abstractas, estando sempre subjacente um processo

de ajustamento feito entre os sujeitos enunciadores. A partir de um texto é

possível manipular de uma forma controlada os elementos que o constituem, verificando-se quais as diferentes operações implicadas em cada uma das

sequências obtidas. (CORREIA, 2002, p. 30)

Nesse sentido, compete à análise explicitar as operações abstratas envolvidas a

partir da organização das formas constitutivas do enunciado e das restrições que manifesta,

constituindo os dados que o linguista estabelece e coloca à prova de hipóteses, levando-o à

descoberta de novos fatos. A necessidade de se formalizar uma análise faz com que Culioli

(1999) realize uma separação entre objetos metalinguísticos e operações. O primeiro remete à

relação primitiva, à lexis, ao domínio nocional, aos jogos de marcadores em relação a uma

categoria (gramatical ou lexical), ao espaço de referência constituído de uma origem e de

parâmetros. Entre as operações, é evidente o destaque às operações constitutivas destes

objetos; e observação dos enunciados, concebido pelo linguista nesse momento de seu estudo,

66

Tradução nossa, do original: "Le linguiste est obligé de travailler de façon plus rudimentaire: produire des

observations, travailler sur des valuations [...]; théorizer pour pouvoir représenter; retourner aux observations,

dans ce va-et-vient indispensable entre l'observation et la théorisation."

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104

como o produto de uma instanciação de um esquema de lexis situado em um espaço de

referência regulada. Assim, cada operação é complexa e se combina com outras, além de

filtrar relações e valores em uma sequência de signos.

4.4.1. A operação de localização

Primeiramente, é necessário retomar a operação de localização67

, pois constitui

uma ancoragem forte e relevante para a realização das análises. Todo enunciado é localizado

em relação a uma situação de enunciação, definida em relação a um sujeito enunciador S 068

e

a um tempo de enunciação T 0, representados por maiúsculas denominadas bouclées. Quanto

ao domínio do enunciado, S1 representa a primeira ocorrência de um sujeito do enunciado em

relação a um sujeito enunciador, e posteriormente, a segunda ocorrência é notada por S2.

Simbolicamente, a relação entre enunciação e enunciado é expressa pelo quadro abaixo:

A linguagem, vista como uma atividade representativa, é considerada um

processo dinâmico de construção de formas, pois distintas operações são apresentadas de

maneira ordenada e dispostas em série, num complexo de diferentes níveis (VALENTIM,

1998). Uma das operações que se destaca é a de localização, de natureza elementar e

primitiva, presente nas etapas de constituição do enunciado e nos fenômenos mais variados,

como a modalidade e o aspecto.

A relação de localização, responsável pela estabilidade das representações,

apresenta caráter binário e sua construção possibilita a construção dos diferentes valores

semânticos que se manifestam no enunciado. A representação metalinguística desta operação

67

A relação de localização foi brevemente abordada no Capítulo I deste trabalho. 68 Este sujeito enunciador é o que fornece a origem do espaço intersubjetivo da situação de enunciação.

E (nunciação) ⇄ E(nunciado) :S ⇄ S(ujeito do enunciado); T ⇄ T(empo do enunciado)

Quadro 6- Relação simbólica entre enunciação e enunciado

Fonte: Culioli (1999a, p. 49)

Page 106: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

105

é notada por ∈, denominado épsilon ou operador de localização abstrata69

. Este operador

define a relação entre dois termos, caso sejam x e y - que constituem um localizador e um

localizado, respectivamente - representado formalmente por < x ∈ y >, que interpretamos

como um « x está localizado em relação à y ».

Abordar a localização é remeter à constituição de uma relação e à relação

constituída, uma vez que todas as operações participantes na construção de um enunciado se

articulam em torno da operação de localização. De acordo com Culioli (1999a), ao

retornarmos às observações dos fenômenos linguísticos, verificamos que as relações com as

quais estamos lidando comportam duas propriedades primitivas que especificam a

conceituação de localização: as propriedades de reflexividade/não-reflexividade e de simetria/

não-simetria. Consequentemente, o operador de localização abstrata ∈ pode assumir

diferentes valores, tais como de:

(a) identificação: notada formalmente por (=), quando há identificação entre x e

y, constituindo uma localização reflexiva e simétrica, sendo responsável pela estabilidade das

representações.

(b) diferenciação: de propriedade de não-simetria, representada formalmente

por (≠), quando x não se identifica com y, e de caráter paradoxal, uma vez que há

compatibilidade com a reflexividade e a não-reflexividade.

(c) ruptura ou não localização: notada metalinguisticamente como (ω), não

ocorre nem identificação, nem diferenciação de x em relação à y, podendo ser interpretado

como uma não-localização de x em relação e y em um domínio determinado.

(d) valor compósito: notado por estrela (*), corresponde a um valor misto,

aliando a identificação, a diferenciação e a ruptura. Esse caractere composto de localização

estrela destaca menos a pluralidade das localizações que lhe são associadas em vista da

construção de um duplo nível de representação: um plano de valores de uma parte e um plano

de desprendimento a partir dos quais esses valores são acessíveis (DUFAYE, 2009).

Por fim, graças à relação de localização, é possível construir a categoria de

pessoa, de modalidade, dos dêiticos, entre outros, segundo os domínios nocionais.

69 Em seus estudos, Culioli (1999a) associa o operador de localização ∈ a um operador dual notado

metalinguisticamente por ϶ - denominado épsilon espelhado - onde a relação entre dois termos, representado por

< y ϶ x >, significa que « x é possuído por y ».

Page 107: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

106

4.4.2. Operações constitutivas de um enunciado

A construção de um enunciado está vinculada à noção e à sua ocorrência,

enquanto que a localização desta ocorrência remete a um sistema de localização, já discutida

anteriormente. A concepção de enunciado, sob o viés da TOPE, é de uma sequência textual

que se situa em um espaço enunciativo constituído de um sistema de coordenadas subjetivas e

espaço-temporais, associado a uma significação.

A definição de enunciado como uma sequência, consequentemente, o

diferencia de uma frase, pois esta é designada pelas regras de boa formação que regem

essencialmente a relação predicativa. Por outro lado, o enunciado é uma relação predicativa

localizada em relação a um sistema de coordenadas enunciativas (CULIOLI, 1990). Portanto,

partindo dessas breves conceituações, é primordial percorrermos sobre as diferentes operações

implicadas na construção de um enunciado.

4.4.2.1. A relação primitiva ou relação ordenada

Considerada como uma das operações fundamentais envolvida na construção

do enunciado, a relação primitiva é ordenada entre três noções, na qual uma funciona

necessariamente como fonte e a outra como alvo. A relação primitiva se submete a operações

que as lexicalizam, resultando uma relação predicativa. Como todo termo constituinte de uma

relação predicativa pertence a um domínio nocional, é pressuposto uma relação entre

domínios, mais especificamente, entre feixes de propriedades constituintes das noções.

Ao analisar sobre o problema referente à construção dos valores referenciais

em uma diversidade de línguas, Culioli (1995) verificou que a relação primitiva está

envolvida com três categorias que seguem:

(a) operações de identificação e de localização;

(b) relações entre propriedades e a organização do espaço, responsável pela

produção da estruturação de eventos;

(c) relações entre propriedades e agentividade das quais derivam as relações

intersubjetivas.

Page 108: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

107

4.4. 2.2. A relação predicativa

As operações de natureza predicativa se destacam entre outras operações de

cujo encadeamento resulta o enunciado. "As operações predicativas são constitutivas da

relação predicativa (simples ou complexa) e da organização sintáctica com que irá aparecer no

enunciado" (VALENTIM, 1998, p. 43).

Partindo de uma relação primitiva e de um esquema de lexis, ocorre a

construção do predicado e argumentos, no qual se distingue o primeiro argumento − notado

como 0 − de um segundo argumento − notado como 1. Quanto ao esquema de lexis é

representado metalinguisticamente por < ξ0, ξ1, π >, onde ξ0 e ξ1 remetem às variáveis dos

argumentos e π corresponde à variável dos operadores de predicação. Ao estabelecer relações

entre estes três lugares no interior da lexis, três tipos de relação são formados:

- ξ0 ∈ ξ1: indica a relação do ponto de partida ao ponto de chegada;

- ξ0 ∈ π: identificação da propriedade entre o primeiro argumento e o predicado

da relação;

- ξ1 ∈ π: identificação da diferença de propriedade entre o segundo argumento e

o predicado da relação.

Nas reflexões de Vignaux (1988), tal esquema poderia induzir a uma suposição

de um nível mais profundo, ou seja, a estrutura clássica de sujeito-verbo-complemento, o que

não é viável. Deve-se levar em consideração o fato de que há inicialmente o estabelecimento

de uma relação R70

que pode ser abstraída sob a forma de uma tripla « a R b », onde a é a

origem de R e b, o objetivo de R.

Ao esquema de lexis está associado um filtro lexical, que de acordo com as

circunstâncias, permite ao sujeito enunciador efetuar a seleção de três termos do léxico: < a R

b >; o que poderia ser representado da seguinte maneira: < cigarra/ tocar/ guitarra>, caso

tivesse a intenção de ressaltar que se trata de um nível meta, preliminar à constituição do que

resultará em seguida como enunciado.

Então, ao considerarmos a lexis71

(1) < cigarra/tocar/guitarra >, possuímos três

tipos de ligações precedentes, podendo gerar no momento da enunciação dois casos:

70

R è considerada um objeto metalinguístico, constituído pelas noções lexicalizadas e categorizadas, que possui

um sentido, porém ainda não é um enunciado, não está nem assertada, nem validada. 71 Para exemplificar, utilizamos enunciados extraídos de nosso corpus.

Page 109: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

108

(2) A cigarra está tocando guitarra.

Marca a dualidade da relação «tocar»

(3) A cigarra tocou guitarra.

Portanto, na lexis < cigarra/tocar/guitarra >, o predicado «tocar» recupera não

somente a relação entre um agente (Cigarra) e um objeto (guitarra), além da indicação de um

instrumento de determinadas línguas (Culioli, 1999a). Essa representação é primordial para a

compreensão da determinação e análise transcategorial dos fenômenos linguísticos, como a

modalidade, visando identificar as diferenças existentes entre os enunciados.

Consequentemente, a construção de uma lexis implica na formação de um conjunto de

relações entre os elementos constituintes da relação predicativa.

A operação de localização abstrata, numa relação predicativa, localiza o

enunciado em relação a uma situação de enunciação (Sit0), que se define em relação a um

sujeito enunciador (S0) e a um tempo de enunciação (T0). Uma relação predicativa concebe,

desse modo, um enunciado, quando lhe forem atribuídos valores referenciais resultantes das

operações de localização que sobre ela incidam, associando-lhe valores das noções

gramaticais (VALENTIM, 1998). Nesse momento, utilizamos o símbolo λ referente à lexis e

Sit em relação à situação de enunciação, para designar o sistema de localização enunciativa,

uma vez que um enunciado é o produto de uma operação:

De uma lexis, considerada uma forma geradora de uma família de relações

predicativas, é possível derivar, com intenção de exemplificar, entre muitos outros, os

seguintes enunciados:

(4) a cigarra tocou a guitarra / uma guitarra / a guitarra da formiga

(5) a guitarra foi tocada pela cigarra / uma cigarra / aquela cigarra

(6) foi uma cigarra preguiçosa / uma cigarra que tocou a guitarra

< λ ⋸ Sit >

Page 110: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

109

Verifica-se, portanto, que uma relação predicativa apresenta uma

potencialidade enunciativa ao impulsionar a geração de possíveis enunciados.

O enunciado, ainda constituído sob a forma elementar, sofrerá intervenções das

operações de asserção, ou seja, um sujeito que enuncia e implica operações de predicação

como uma forma de atualização de certas relações internas que aciona diferentes marcas como

de tempo, aspecto e modalidade. É na etapa seguinte, na relação enunciativa, devido a

determinados meios e circunstâncias que vão agenciar todo o esquema da relação predicativa,

se decreta o status de enunciado.

4.4. 2.3. A relação enunciativa

Na formação da predicação, um sujeito enunciador ordena os termos da lexis,

orienta e decide qual termo será a origem de tudo que afeta a ordem de uma determinada

modalidade de asserção, tanto de natureza afirmativa, negativa, de possibilidade ou de

probabilidade. Esse processo acarreta no estabelecimento de uma relação predicativa entre os

termos (VIGNAUX, 1988).

Após essa etapa, chega-se à relação enunciativa que se define por situar esta

relação construída entre os termos em relação a uma dada situação enunciativa, levando em

consideração os enunciadores e o momento da enunciação.

Para que um enunciado seja produzido, uma relação predicativa é localizada

em relação a um sistema complexo que compreende um referencial situacional-origem Sit0,

um referencial de acontecimento de locução Sit1 e um referencial de acontecimento

correspondente a Sit2. Enfatizando que o esquema possui dois parâmetros − S para sujeito

enunciador e locutor; T para as localizações espaço-temporais − para a origem enunciativa, o

ato de locução e ao acontecimento ao qual nos referimos (CULIOLI, 1999a). Esse sistema

referencial possibilita a construção de valores de determinação nominal ou verbal ou valores

modais. Esse processo de construção do enunciado é representado metalinguisticamente pela

fórmula a seguir:

λ72

⋸ < Sit2 (S2, T2) ⋸ Sit1 (S1, T1) ⋸ Sit0 (S0, T0)

72 Pode simbolizar uma lexis qualquer.

Page 111: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

110

Isso acarreta no surgimento de um conjunto estruturado de operações que

permitem a construção da categoria de determinação, mais especificamente, a quantificação e

a qualificação que entram numa relação de localização enunciativa. Esse processo permite

remeter às categorias, por meio de marcadores73

de operações fundamentais, o que leva à

análise de fenômenos específicos e à pesquisa de invariantes linguísticos.

4.4.3. As operações de determinação

A determinação remete às operações nas quais são construídas ocorrências de

representações nocionais, situadas no espaço de referência intersubjetiva. Quanto a uma

categoria74

, esta é definida como o produto de um mapeamento das representações do nível I,

e pelos marcadores do nível II. Estes estão dispostos em redes, específicos de uma língua

dada, e se associam a redes específicas de valores, levando à formação de uma dupla relação,

não simétrica, entre noções e marcadores, que pode ser interpretado do seguinte modo:

Noções ⇄ Marcadores

Como as noções possuem propriedades formais invariantes, estas permitem,

graças à seleção e combinação, o seu reagrupamento, que consequentemente são variáveis e

fornecem uma multiplicidade de caminhos possíveis entre o nível I e o nível II. Levando em

consideração a especificidade de cada língua, são produzidas variações na relação entre os

dois níveis já citados, que desencadeia a estabilização ao construirmos e nos apropriarmos de

um sistema de marcadores. Estes, graças às trocas enunciativas, lançam operações do nível I,

que geram o reconhecimento da forma do enunciado e lhe atribuem um valor referencial.

Portanto, o caminho entre I e II associam a invariância e a variação a uma

relação de analogia entre as línguas, que apesar de diferentes, pertencem a uma classe de

equivalência (CULIOLI, 1999a). Ao nos situarmos no nível II, é possível compreender o

porquê da especificidade de cada língua se apresentar como irredutível e ajustável, justamente

por estar relacionada à origem das formas resultantes das representações do nível I.

73

O conceito de marcador exclui toda separação radical entre léxico e gramática. No entanto, não existe uma

categoria gramatical sem o componente gramatical, uma vez que não há léxico que não possua propriedades

formais de ordem gramatical. Desse modo, toda gramática é gramática lexical. 74

Não há categorias que não sejam construídas em rede com outras, sendo assim, diátese, aspecto, modalidade e

determinação são praticamente indissociáveis, apesar de privilegiarmos uma categoria organizadora na

observação de marcadores.

Page 112: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

111

Toda noção supõe um trabalho concatenado de determinação, notado

metalinguisticamente por (Qt). Partindo de um esquema de individuação, que consiste numa

cadeia dinâmica de operações de localização, a noção se transforma em uma ocorrência

localizada em relação a um sistema referencial, acarretando na determinação de um nome, ou

seja, há construção de existência em relação a um localizador, resultando em uma operação de

quantificação/qualificação sobre a noção (CORREIA, 2002).

4.4.3.1. A quantificação e a qualificação

Os estudos a respeito da quantificação teve início com a lógica, sob a forma

conhecida de quantificadores, designada pelos símbolos tradicionais ∀ e Ǝ, enquanto que as

operações de determinação qualitativa são deixadas de lado pela lógica matemática.

A quantificação no viés culioliano, representada metalinguisticamente por

QNT, é uma operação acerca da quota, no sentido de quantidade não definida apreendida

globalmente, e sobre a quantidade no sentido contável. Esta operação não remete à

quantificação lógica, mas à construção de uma representação de "qualquer coisa" que se

distingue e situa em um espaço de referência (CULIOLI, 1999b). A expressão "qualquer

coisa" é designada por Culioli (1999b) como uma ocorrência que um sujeito pode apreender,

discernir, distinguir e situar em um espaço-temporal.

A quantificação permite a efetuação de duas operações essenciais:

(a) a quantifiabilização ou fragmentação75

é responsável pela construção do

domínio nocional das ocorrências da noção. Mais detalhadamente, parte-se de uma noção P, e

através de uma operação abstrata de individuação, é fragmentada, acarretando na construção

de ocorrências nocionais na produção e reconhecimento de enunciados. A fragmentação

apresenta caráter triplo, pois (i) permite a transição de uma qualidade inquebrável a uma

qualidade fragmentada, (ii) possibilita a construção de ocorrências quaisquer, e por fim, (iii)

proporciona a construção de ocorrências diferenciadas, fazendo com que esta ocorrência

possa ser ou predominantemente QNT, ou predominantemente QLT, ou indiferentemente

75

Nos estudos de Dufaye (2009), com a intenção de explicitar este metatermo, realiza uma analogia, na qual

devemos levar em consideração um elemento que possua propriedade de continuidade, como a água, uma vez

que é possível "fragmentá-la" de diversas maneiras, o resultado obtido sempre será água. Ou seja, ao realizarmos

uma fragmentação, é condição necessária que um feixe de propriedades de uma noção deva ser mantido.

Page 113: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

112

QNT/QLT76

. A operação de quantifiabilização permite expor as problemáticas da

representação metalinguística fundamentais.

(b) Construção de uma ocorrência a partir de uma noção fragmentada, diante a

situação espaço-temporal enunciativa que um sujeito enunciador constrói em relação a um

coenunciador.

A esse respeito, nos estudos desenvolvidos por Dufaye (2009), este linguista

salienta: "Se QLT e QNT tornaram-se assim onipresentes na TOE77

, sem dúvida que são

essenciais à estruturação dos sistemas de representação para dar conta de oposições de valores

no seio dos paradigmas linguísticos78

" (DUFAYE, 2009, p. 94). Uma outra característica que

se destaca em relação à quantificação é no nível de representação mais abstrato como uma

aplicação de uma topologia sobre a qualificação. Por fim, o marcador preferencial desta

operação é um, cuja preponderância é representada por Qnt (Qlt).

A ocorrência da operação de qualificação ocorre quando se efetua uma

identificação/diferenciação sobre "qualquer coisa". Quanto a qualificar, esta é concebida

como o lançamento de uma cadeia complexa de operações, não se caracterizando apenas pela

simples adição de um qualificativo. Considerando uma definição mais simplória, a

qualificação é ligada ao modo de representação de uma noção ou de ocorrências de noção.

De acordo com Correia (2002), na língua portuguesa "o é o marcador

preferencial desta operação. Ao activar-se Qlt pressupõe-se uma derivação do enunciado em

relação à noção donde se partiu, [...]." (CORREIA, 2002, p. 253)

Graças às manipulações elaboradas por nós, é possível observar o

funcionamento destas duas operações essenciais79

:

(a) Este canto da cigarra era impressionante.

76 A notação em maiúsculas QNT e QLT incide sobre a noção. Quanto a Qnt e Qlt, representados por letras

minúsculas, diz respeito a ocorrências de uma noção. 77

A forma de designação do modelo teórico da TOPE varia, conforme a opção adotada pelos estudiosos:

“Teoria dos Invariantes da Linguagem”,“Teoria Formal Enunciativa” ou "Teoria das Operações Enunciativas" como utilizada pelo autor nesta citação. 78

Tradução nossa, do original: "Si QLT et QNT sont devenus ainsi omniprésents dans la TOE, c'est sans doute

qu'ils sont essentiels à la structuration des systèmes de reprèsentation pour rendre compte d' oppositions de

valeurs au sein des paradigmes linguistiques." 79

Realizamos estas exemplificações com base no teste de esquema de individuação sobre um texto apresentado

em PLE I apresentado por Culioli (1990) nas seguintes predicações por ele utilizadas: "Ce tigre était

impressionnant", "Il est vrai qu' un tigre est toujours impressionant" e "Ce tigre est particulièrement beau".

Page 114: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

113

Nesse enunciado, o predicado impressionante é considerado descritivo,

precedido do imperfeito, se destacando pela não mudança de estado, o que leva a não

ocorrência de predicação que ocasiona a existência de um novo item que possa ser inferido,

resultando em (Qnt). Uma vez que este canto da cigarra não possua um qualificador adjunto,

resulta em (Qlt) estável. Portanto, a representação metalinguística de (a) é: (Qnt) (Qlt).

(b) É verdade que o canto da cigarra é sempre impressionante.

Nesta predicação, as presenças de é e do marcador sempre demonstram

generalidade. Isso se justifica pelo fato de é sempre ser considerado interpretável como

genérico ou não genérico, notadamente quando este último corresponder a ainda (CULIOLI,

1990). A questão da generalidade diz respeito ao domínio de possíveis ocorrências,

impedindo a formação de ocorrências isoladas que apresentam valores referenciais

particulares. Retomando é sempre no modo de interpretação não genérico, configura que uma

relação predicativa é ainda válida, expressando continuidade.

Desse modo, fundamentado em uma continuidade qualitativa, ocorre uma

movimentação de uma representação de certa entidade existente dotada de propriedades

definidoras para uma representação ideal que destaca a noção envolvida, simbolizada por

(Qlt) → (QLT). Quanto à totalidade do enunciado, a representação metalinguística que

obtemos é: QNT (QLT) e (QNT) QLT.

O mesmo pode ser observado em (c) Este canto é particularmente belo, em que

há marcação de generalidade. Reconhecemos que, dentre os tipos de canto, existe o que é

particularmente belo. Portanto, a representação resultante em QNT (QLT) e (QNT) QLT.

Conforme as conceituações que foram apresentadas, consideramos relevante

complementar tais informações com as distinções do paradigma QNT/QLT desenvolvida por

Dufaye (2009) na figura abaixo, que resume o modo de articulação destes operantes.

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114

Relacionando ao estudo da modalidade, é possível demonstrar três casos em

função do jogo de ponderação por meio de asserções negativas (DUFAYE, 2001):

(1) a preponderância Qlt: leva-se em consideração a validação da relação

predicativa em função de critérios qualitativos, tais como a valuação, a incompatibilidade

nocional, dentre outros. É o caso de: A formiga não pode emprestar.

(2) a preponderância Qnt: em uma ocorrência, a negação está ligada à

delimitação espaço-temporal, como em: A formiga não aceitará as desculpas da cigarra antes

do inverno.

(3) a equiponderância Qnt/Qlt: a validação da relação predicativa ocorre em

função de critérios qualitativos e graças a uma delimitação espaço-temporal. Pode ser

obervado em: A cigarra não irá para a festa da formiga amanhã, é muito longe.

Partindo de um número finito de conceitos estáveis, é possível provar que os

valores semânticos de cada modal provêm de um complexo de operações formalizáveis.

Adiciona-se ainda o fato de que o jogo de ponderações garante o destaque de uma operação

preponderante sem que haja exclusão da outra.

Portanto, a análise linguística se desenvolve tendo em vista essa os

procedimentos até aqui explicitados, considerando as relações predicativas e enunciativas,

ressaltando-se ainda a necessidade de retomar as atividades de glosas e paráfrases, tal como

Figura 11 - O paradigma QNT/QLT

Fonte: Dufaye (2009, p. 95)

Page 116: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

115

são propostas no modelo culioliano, uma vez que por esse caminho é possível explorar as

atividades linguísticas, epilinguísticas e metalinguísticas.

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116

CAPÍTULO V

ANÁLISE DE CORPUS

5. INTRODUÇÃO

Neste capítulo apresentamos as produções textuais que compõem o

corpus desta investigação, constituído, sobretudo, de fábulas80

produzidas por alunos de

6º ano do Ensino Fundamental - Anos Finais, que selecionamos e observamos

detalhadamente para a realização das análises.

5.1. Breves considerações

A TOPE, ao tomar o próprio enunciado como objeto de estudo, trata-se de uma

teoria da enunciação. Embora o enunciado não seja considerado como o resultado de um ato

de linguagem individual, deve ser compreendido como um arranjo de formas a partir das

quais os mecanismos enunciativos que o constituem possam ser analisados, recorrendo a um

sistema de representação formalizável, como um encadeamento de operações do qual é

vestígio.

De acordo com Franckel (2011), a interpretação de um enunciado se dá em

função das condições e dos efeitos particulares de seu proferimento em um dado âmbito

extralinguístico, levando em consideração os parâmetros pscissocioantropoculturais , além das

intenções ou representação que podemos realizar das intenções do locutor.

A significação de um enunciado gera uma certa acomodação intersubjetiva,

concomitante às condições de enunciação, e esta vinculada à predicação, torna a linguagem

uma incessante vinculação, graças aos sujeitos enunciadores, que tecem um jogo estruturado

de referências ao produzirem enunciados e localizando uma pluralidade de significações

(CULIOLI, 1999a).

80 Aqui expomos as produções textuais digitadas para uma melhor visualização. Os textos originais estão

em anexo neste trabalho.

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117

Para a TOPE, o contexto ou a situação não é exterior ao enunciado, mas

engendrado pelo próprio enunciado, onde são encontradas as relações primitivas, um

parâmetro de localização espaço-temporal e um sujeito enunciador, responsável pelas

avaliações e construção dos sistemas visados e de representação com relação à situação real.

Como todo termo, é tomado em relação a um outro termo, previamente dado,

possuindo uma relação sempre assimétrica, o estatuto de termo orientador

Nesta análise, por meio de uma representação metalinguística, pretendemos

identificar determinadas formas linguísticas que constroem valores de modalidade apreciativa.

É relevante salientar que o modelo teórico elaborado por Culioli, constituído de um aparelho

teórico estável, com a ocorrência de manipulações criteriosamente controladas dos

enunciados, possibilita fundar a unidade de qualquer descrição linguística.

Portanto, é fundamental nos utilizarmos de um esquema instanciado81

que

possibilite a derivação de uma família de enunciados em relação parafrástica, cujos

enunciados podem suportar uma pluralidade de interpretações, ligadas à ambiguidade. Como

não há enunciado isolado, este é um entre tantos outros graças à modulação, não constituindo

desse modo, um fenômeno único.

Como pesquisadora e linguista, temos por desafio, identificar marcadores

enunciativos, sobretudo a modalidade apreciativa, que permitem localizar o enunciado em

relação a uma situação de enunciação e ao contexto.

Ressaltando, então, que no processo de análise, é relevante levarmos em

consideração o valor referencial, pois este possibilita que o enunciado construa um sistema de

localização graças aos enunciadores, que referem e estabelecem uma relação entre uma

situação enunciativa e um acontecimento factual ou imaginário.

Desse modo, como profere Culioli (1999a), o objetivo fundamental da

realização de uma análise é:

[...] reconstruir uma abordagem teórica e formal do tipo fundamental, as

noções primitivas, as operações elementares, as regras e esquemas, que geram as categorias gramaticais e os agenciamentos próprios a cada língua,

logo, pesquisar os invariantes que fundam e ajustam a atividade de

linguagem, como aparece por meio das configurações de diferentes línguas

82. (CULIOLI, 1999a, p. 96)

81

Aqui retomamos o conceito de lexis, concebido como uma fórmula que associa uma relação primitiva entre os

termos, consideradas relações vazias, e operações de instanciações. 82 Tradução nossa, do original: "[...] reconstruire par une démarche théorique et formelle de type fondationnel,

les notions primitives, les opérations élémentaires, les règles et schémas, qui engendrent les catégories

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118

Isso demonstra que somente um sistema de representação adequada permite

marcar formalmente a equivalência, com regras claras que possibilitam passar de um

agenciamento83

a outro, além de explicitar particularidades destes agenciamentos que

possuem valores referenciais equivalentes.

Para a realização das análises, do conjunto de 108 produções textuais,

selecionamos as mais representativas, que apresentam as marcas de modalidade apreciativa,

pois não temos a intenção de tornar essa etapa da investigação exaustiva e repetitiva.

Iniciamos com os textos coletados em 2013, e posteriormente, focamos as análises no corpus

oriundo da atividade realizada em sala de aula em 2016.

5.2. Análise das produções textuais produzidas no ano de 2013

Neste trabalho, incidimos nosso estudo sobre o ponto de vista avaliativo do

sujeito enunciador relativamente sobre aquilo que enuncia, isto é, sobre a modalidade de tipo

apreciativo. Tomamos, portanto, como ponto de reflexão a análise de marcas de modalidade

apreciativa ou sua ausência em fábulas escritas por alunos de 6º ano de Ensino Fundamental -

Anos Finais.

Isso posto, iniciamos as análises, com uma discussão sobre uma produção

textual que não apresenta marcas de modalidade apreciativa, apenas potenciais possibilidades

de construção de tais ocorrências. Em seguida, partimos para o segundo texto, no qual

realizamos o levantamento de algumas ocorrências com os marcadores específicos.

5.2.1. PT84

1 - O melhor dia de todos

Segundo a TOPE, a produção textual é concebida como um processo dinâmico

resultante de uma série de operações enunciativas geradas por um indivíduo em busca de sua

própria constituição como sujeito.

grammaticales et les agencements propres à chaque langue, bref, de rechercher les invariants qui fondent et

règlent l' activité de langage, telle qu' elle apparaît à travers les configurations des différentes langues". 83 Trata-se, também, de representar as operações que passam de um enunciado equivalente a outro, sob as

mesmas condições. 84 Abreviação que adotamos nesse trabalho para nos referir à produção textual.

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119

Neste âmbito enunciativo, o sujeito é construído por meio de operações

enunciativas que o instituem em diferentes níveis de natureza teórica. Relações de localização

são estabelecidas entre várias instâncias subjetivas presentes num enunciado, que acarretam

na construção de cadeias de referência que as estabilizam enunciativamente. Na análise de

Oliveira, M. T. F. (2013, p. 11), isso demonstra que "os sujeitos assumem particular

importância, quer pela forma como são construídos, quer pelas funções que desempenham,

sendo a sua construção indissociável da própria construção do texto".

Tradicionalmente, em análises de textos narrativos, como aqueles que aqui

estão em causa, habitualmente, observações são voltadas somente para a identificação entre o

sujeito enunciador (S0) e o narrador, que assim se assume como localizador último de

qualquer enunciado. Contudo, a atividade de linguagem não é constituída de frases isoladas,

pois toda produção linguística adquire sentido quando enquadrada na situação que lhe deu

origem.

A partir desse ponto, estabelecemos uma ponte com a análise a ser

desenvolvida.

Inicialmente, percebemos que na produção textual há uma sequência de ações

realizadas pelo sujeito enunciador, tais como <ser aniversário da cigarra>, <esquecer

aniversário> e <realizar surpresa>. Constatamos que os processos de predicação são

O melhor dia de todos

A cigarra levantou cedo, foi logo tomar café e em seguida foi

tomar um banho. A cigarra se lembrou que era seu aniversário, e foi logo dar bom dia a sua vizinha formiga.

A formiga fingiu não se lembrar, e a cigarra ficou muito triste, e

foi para casa. No final do dia, a formiga chamou a cigarra para ir na sua casa,

quando chegou lá viu a festa surpresa que haviam feito e todo mundo disse: ─ Surpresa!

─ Muito obrigado.

A festa foi incrível e pra cigarra foi o melhor dia de todos. Ela nunca mais irá esquecer desse grande dia.

Moral - Não se importe pelas pessoas ter lembrado com seu

aniversario, oquê importa e você ter lembrado!!!

[Produção textual de uma aluna do 6º ano - 2013]

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120

construídos com base em um encadeamento de ações/acontecimentos, comprovando a

raridade de julgamentos, e consequentemente, a ausência de marcas de modalidade

apreciativa. Assim sendo, elaboramos a tabela abaixo com a intenção de demonstrar como

ocorrem tais encadeamentos:

Tabela 1 - Encadeamento de ação/acontecimento em PT1

<ser aniversário da cigarra> <cigarra acordar feliz>

<ser aniversário da cigarra> <levar ao esquecimento do aniversário pela

formiga>

<esquecer o aniversário da formiga> <cigarra ficar triste>

<formiga realizar festa surpresa> <cigarra se alegrar>

<faz que>

<esquecimento triste> tornar-se <esquecimento feliz>

A tabela permite visualizar que a narrativa se dá em decorrência de uma ação

da personagem que gera uma situação, que leva à outra ação e assim por diante, estabelecendo

uma relação de causa e consequência ao longo da construção do texto. Justificamos a

realização desse procedimento, pautando-nos nas considerações de Onofre e Sossolote (2015)

que realizam a seguinte reflexão:

Essa invariância não é predeterminada, podendo ser

estabelecida pelo sujeito diferentemente desses valores estáveis, que são ao

mesmo tempo instáveis, considerando-se que o processo de autoria é fruto de relações psicossociais, e essas construções podem se fazer de modo mais ou

menos consciente. Assim, o sujeito pode recorrer a ou incorrer nas

instabilidades linguísticas, [...]. (ONOFRE; SOSSOLOTE, 2015, p. 641)

Diante destas constatações, é possível identificar uma quebra na estabilidade de

esquecimento como representação de algo negativo. Por meio da construção de todos os

acontecimentos da narrativa, o sujeito enunciador mostra a possibilidade de um esquecimento

assumir um valor positivo. Portanto, a noção esquecimento não pode ser quantifiabilizada,

fragmentada, embora se suponha na construção "um" como forma de quantificação prévia.

Fonte: Elaboração própria

Page 122: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

121

Embora PT 1 permita que realizemos relevantes observações, no entanto, no

que concerne à questão da modalidade apreciativa, é evidente a ausência desses marcadores

por parte do sujeito enunciador, neste caso, identificado com o sujeito locutor, o aprendiz, que

se comporta como um espectador das ações narradas, emitindo raro ponto de vista valorativo.

Portanto, representamos metalinguisticamente do seguinte modo:

S1(sujeito locutor) = S0(sujeito enunciador origem)

S2(sujeito do enunciado) ω S0(sujeito enunciador origem)

É o sujeito enunciador origem que vai servir de localizador às personagens que

introduz, onde estas localizações apresentam um valor de ruptura (ω), marcada pelas formas

da terceira pessoa gramatical utilizadas para referir as personagens, como podemos verificar

em: "Ela nunca mais irá esquecer desse grande dia.", " A cigarra (Ela) levantou cedo, [...]",

" A formiga (Ela) fingiu não se lembrar, [...]".

Prosseguindo com a análise, à medida que realizamos nossos apontamentos,

comprovamos a não atribuição de um juízo de valor em relação a um fato ou a um estado de

coisas. Ao assumirmos a tarefa como linguista, com base no modelo teórico culioliano,

partimos para a manipulação dos enunciados, pois à medida que alteramos a ordem das

EXTERIOR

FRONTEIRA

P' = não esquecimento

INTERIOR

P = esquecimento

Figura 12 - O domínio nocional em PT 1

Fonte: Elaboração própria

Page 123: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

122

relações predicativas, é possível sobrepor o valor modal apreciativo como demonstramos mais

adiante.

Partindo de (1) A festa foi incrível[...], onde:

Representando a noção: /festa/ /ser/

<festa, ser> ⋸ Sit0 (S0, T0)

tematiza

(1a) A festa é incrível.

(1b) A festa foi incrível.

(1c) A festa estava incrível.

(1d) Esta festa era incrível.

Nos exemplos acima, neste determinado momento, a construção das

ocorrências resultou em predicações que supõem a existência do termo qualificado, tratando

de uma predicação de tipo qualitativo (GUILLEMIN-FLESCHER, 1995). Há duas noções

acopladas: festa e incrível, onde restringimos o domínio nocional em um único: festa incrível.

Deste domínio é possível extrair uma ocorrência de tipo quantitativo: uma festa incrível.

Em seguida, construímos proposições de modo que a modalidade recaia sobre

uma relação predicativa validada. Considerando (2) <formiga, fazer>, obtemos as seguintes

derivações:

(2a) A festa que a formiga fez foi incrível.

(2b) Foi incrível a festa feita pela formiga.

(2c) Incrível que a formiga fez a festa.

(2d) Incrível foi a festa que a formiga fez!

(2e) É incrível que a formiga tenha feito uma festa.

(2f) A formiga fez uma festa incrível!

(2g) Incrível, a festa!

Isso demonstra que a construção do valor modal ocorre em situações distintas à

<formiga, fazer> ⋸ Sit0 (S0, T0), considerada anterior ao momento da enunciação em que

acarreta na construção do valor modal apreciativo foi incrível sobre a predicação validada, em

outra situação de enunciação (pré-construída).

Page 124: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

123

5.2.2. PT2 - A cigarra dá seu troco

Aqui apresentamos uma tentativa da representação metalinguística do sistema

modal apreciativo com base nos conceitos elaborados por Culioli em seu quadro teórico

enunciativo. Como linguistas, nos defrontamos com a necessidade de atribuir uma forma

esquemática aos marcadores, explicitando os diferentes empregos e valores resultantes. No

estudo sobre a modalidade, segundo Deschamps (1999), é relevante ressaltar que o domínio

nocional se constrói a partir de uma relação predicativa e somente dois valores correspondem

a um Interior85

(doravante I) ou P − corresponde à validação da relação − e a um Exterior

(doravante E) ou Pʼ − não-validação − que devemos dar conta, e, nesse caso, não inserimos

provisoriamente o centro atrator em nossas análises.

Concomitante à noção, recorremos à relação predicativa, sobretudo aos seus

três elementos constituintes: dois argumentos e um relator. Nesta relação predicativa, que

apresenta o status de enunciado, já está situada em relação às coordenadas enunciativas, cuja

operação de localização86

comporta uma variável espaço-temporal e uma variável subjetiva e

intersubjetiva, conforme representado metalinguisticamente abaixo:

< a R b > ⋸ Sit (T/S)

É integrante primordial da análise, recorrermos às operações de determinação

nominal ou verbal, mais especificamente, a quantificação (Qnt) e qualificação (Qlt). A

quantificação, sobretudo, está associada ao espaço-temporal e à construção das ocorrências

situacionais, enquanto que a qualificação remonta à construção das propriedades, das relações

intersubjetivas e da posição do enunciador.

Esclarecido acima os passos que percorreremos na efetuação das análises das

produções textuais que apresentam os traços linguísticos que nos interessam, iniciamos, então,

nossas observações.

85

Um interior é o real possuidor das propriedades. 86 Em alguns casos, retomaremos os valores de identificação (=), diferenciação (≠) e ruptura (ω).

Page 125: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

124

A partir da leitura de PT 2 - A cigarra dá seu troco, realizamos uma

observação cuidadosa para fazer o levantamento dos enunciados associados à marca de

modalidade apreciativa. Primeiramente, das ocorrências extraídas, verificamos que as formas

destacadas em negrito equivalem, sobretudo, a marcadores que intensificam uma predicação

que correspondem a uma avaliação predicativa, veiculadas, principalmente, por meio de

formas com categorias morfossintáticas de:

• Adjetivo:

(3) Receosa, agora sabe que se você guardar hoje [...]

(4) Emocionada, disse:

(5) Cabisbaixa, a cigarra [...]

A cigarra dá seu troco

A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição. Receosa, agora

sabe que se você guardar hoje, com certeza terá amanhã.

A formiga, toda contente, foi pedir desculpa à amiga. Explicou que só não ofereceu alimento porque a cigarra tinha de aprender a lição e dar valor às coisas.

A cigarra aceitou numa boa, na verdade, foi muito bom. Emocionada,

disse: ─ Tudo bem, eu lhe perdoo, mas não me esquecerei, você foi muito cruel

comigo!

Logo depois, a formiga foi embora rindo da cara da cigarra dizendo:

─ Nunca precisarei de você! Cabisbaixa, a cigarra simplesmente se recolheu em casa. Era uma pena.

O tão temido inverno chegou e a formiga, despreocupada, nem se

preparou. Confiante, é claro que foi para a casa da cigarra. Chegando lá, implorou para que lhe abrigasse. A cigarra, muito satisfeita e com um sorriso nos lábios, indagou:

─ Você lembra que eu pedi sua ajuda?

Envergonhada, a formiga trêmula disse:

─ Por favor, me perdoe! Muito decidida, a cigarra fechou a porta, exclamando:

─ O que plantamos hoje, colhemos amanhã.

Moral da história: O mundo dá voltas, hoje você tem, amanhã você pede.

[Produção textual de uma aluna do 6º ano - 2013]

Page 126: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

125

(6) O tão temido inverno chegou e a formiga, despreocupada, nem se

preparou.

(7) Confiante, é claro que foi para a casa da cigarra.

(8) A cigarra, muito satisfeita e com um sorriso nos lábios, indagou:

(9) Envergonhada, a formiga trêmula disse:

(10) Muito decidida, a cigarra fechou a porta, exclamando:

• Advérbio:

(11) A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição.

(12) A formiga, toda contente, foi pedir desculpa à amiga.

(13) A cigarra aceitou numa boa, na verdade, foi muito bom.

(14) a cigarra simplesmente se recolheu em casa.

(15) (6) A cigarra, muito satisfeita e com um sorriso nos lábios, indagou:

(16) Muito decidida, a cigarra fechou a porta, exclamando:

• Modalizadores apreciativos:

(17) Era uma pena.

Levando em consideração as 15 ocorrências acima, somente os enunciados

(11), (13), (14) e (17) apresentam modalidade apreciativa, cujo sujeito enunciador valida

apreciativamente uma proposição, um conteúdo predicativo marcado pelas formas linguísticas

de felizmente, simplesmente, foi muito bom e Era uma pena. É relevante ressaltar, que nestes

excertos, as asserções modalizadas apreciativamente correspondem a pré-construídos.

Ressaltamos a importância do conceito de pré-construído na descrição

metalinguística destes enunciados com valor modal apreciativo: correspondendo a uma “[...]

estrutura verbalizada ou não, é assumida como validada pelos participantes da enunciação

numa situação de enunciação Sit1, disjunta de Sit0” (CAMPOS; XAVIER, 1991, p. 349).

Em relação às outras formas linguísticas, tais como em muito satisfeita, neste

caso muito, intensifica uma avaliação predicativa.

No caso de (11) A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição., a

construção e a validação da relação predicativa <cigarra, aprender, lição> é marcada por uma

modalização apreciativa (felizmente) que incide sobre um valor assertivo que é construído na

mesma situação de enunciação. Verificamos que essa validação na mesma situação de

Page 127: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

126

enunciação tem relação com a natureza sintática da marca modal que reflete na construção

sintática do enunciado como um todo.

Ao construirmos outros enunciados a partir da mesma relação predicativa

acima, obtemos:

(11a) foi bom que a cigarra tivesse aprendido a lição;

(11b) é bom que a cigarra aprenda a lição;

(11c) seria bom que a cigarra aprendesse a lição;

(11d) Que bom que a cigarra aprendeu a lição.

Observamos, que em construções como (11a) e (11b), nos deparamos com uma

relação predicativa validada. Tal validação não é construída em Sit0, ou seja, não é construída

na situação de enunciação daqueles enunciados, mas numa situação de enunciação anterior

como em a cigarra aprendeu a lição. De qualquer forma, a validação da relação predicativa

constitui um pré-construído. Por fim, em (11c) trata-se de uma relação predicativa validável,

construída como uma modalidade apreciativa que incide sobre a validabilidade dessa relação

predicativa.

Nesse sentido, quanto às ocorrências no modo indicativo, estas marcam a

validação ou não-validação da relação predicativa em Sit0, ou seja, mais especificamente a

construção de um valor de asserção estrita.

Em (13) A cigarra aceitou numa boa, na verdade, foi muito bom., a construção

exclusiva da modalidade apreciativa é marcada por uma estrutura de tipo impessoal (foi muito

bom). Dessa proposição, derivamos as seguintes equivalências:

(13a) Foi muito bom que a cigarra aceitou (a desculpa);

(13b) É muito bom que a cigarra tenha aceitado;

Quanto à (14) a cigarra simplesmente se recolheu em casa, na construção com

o advérbio simplesmente, o caráter avaliativo recai sobre a globalidade do enunciado. Certos

advérbios, tal como simplesmente, assumem a funcionalidade de modalizadores, se

apresentando como um comentário reflexivo. Por meio de relações parafrásticas, obtemos as

seguintes equivalências:

Page 128: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

127

(14a) Simplesmente a cigarra se recolheu em casa;

(14b) A cigarra , simplesmente, tem se recolhido em casa.

Metalinguisticamente, a ‘validação’ da relação predicativa é assumida na

situação de locução [Sit(S1,T1) ou Sit1], situação enunciativa construída e localizada a partir

de Sit0. Cabe a S1 declarar a relação predicativa como verdadeira ou não verdadeira em

diferentes graus. S0 é definido como um parâmetro primitivo, o enunciador origem que funda

a instância de enunciação; S1 é um parâmetro construído, ou seja, o locutor responsável pelo

acontecimento linguístico, assumindo-o com determinado valor modal (CAMPOS; XAVIER,

1991)

Em seguida, destacamos a proposição (6) O tão temido inverno chegou [...],

que apresenta um exemplo de manifestação modal que ocorre graças a um adjetivo em

posição prenominal em sintonia com a curva melódica (LIMA, 2011). O pré-construído O

inverno chegou recebe o adjetivo anteposto, acompanhado do advérbio tão e a curva

melódica.

No que concerne a (17) Era uma pena, por meio desta expressão modalizadora,

o sujeito enunciador resgata um enunciado anterior, conferindo-lhe este comentário,

assumindo um posicionamento em relação ao ocorrido − o fato da cigarra, cabisbaixa, ter se

recolhido em casa diante as atitudes da formiga. Trata-se de uma apreciação negativa entre o

sujeito enunciador e o fazer da cigarra. Nesse sentido, podemos formular os seguintes

enunciados:

(17a) Era uma pena que a cigarra se recolheu em casa;

(17b) Que pena! A cigarra toda cabisbaixa se recolheu em casa;

(17c) Foi uma pena a cigarra ter se recolhido em casa.

Nessa perspectiva que adotamos, o linguista, analista ou professor, incumbe-se

do papel de explorar as ocorrências enunciativas selecionadas como desencadeadoras de

outras possíveis relações enunciativas ou dialógicas, a partir das quais o aluno pode

desenvolver sua competência discursiva. Objetiva-se não alinhar a produção do aluno aos

protótipos, mas, antes disso, explorar o modo de construção da significação e os diálogos que

são gerados a partir de uma certa modulação enunciativa (ROMERO, 2010).

Page 129: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

128

Em relação às representações formais de domínios nocionais ligados a esses

enunciados específicos, nos espelhamos em Deschamps (1999) e Dufaye (2001), que em seus

estudos sobre a categoria da modalidade amparados pela TOPE, ressaltam a necessidade de se

religar aos dois níveis de determinação, a quantificação e a qualificação, configurações

onipresentes nesse viés teórico. Desse modo, elaboramos a tabela seguinte visando a ilustrar

como se relacionam estas configurações:

Tabela 2 - O domínio nocional em PT 2

Enunciado 11 Enunciado 13 Enunciado 14 Enunciado 17

I E I E

IE IE

T S

Qnt Qlt

I E I E

IE IE

T S

Qnt Qlt

I E I E

IE IE

T S

Qnt Qlt

I E I E

IE IE

T S

Qnt Qlt

Fonte: Elaboração própria

I = Interior, que corresponde a P (validação) E = Exterior, que corresponde a P' (não - validação) T = variável espaço-temporal S = variável subjetiva e intersubjetiva IE = instante origem

O caminho percorrido por \ ou / é no sentido de IE orientado na direção de I ou

E, dependendo dos níveis de determinação. Leva-se em consideração a validação ou não-

validação da relação predicativa juntamente da apreciação positiva ou negativa assumida pelo

sujeito enunciador. Isso posto, verificamos que:

(11) A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição; expressa um

juízo intelectual positivo. Portanto, equiponderância Qnt/Qlt.

(13) A cigarra aceitou numa boa, na verdade, foi muito bom; expressa uma

avaliação positiva, marcada por valor de alto grau. Portanto, (Qnt) Qlt.

(14) a cigarra simplesmente se recolheu em casa; expressa um juízo intelectual

sobre um fato. Portanto, Qnt (Qlt).

Page 130: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

129

(17) Era uma pena; expressa uma apreciação negativa sobre um fato, cujo

conhecimento é relativo ao participante da enunciação. Portanto, (Qnt) Qlt.

Trata-se, neste caso, partindo de um número restrito de parâmetros, que é

possível obter diferentes valores modais apreciativos nos dados atestados por meio da

combinação das sequências de operações enunciativas.

5.3. Refletindo sobre as atividades realizadas pelos alunos

Para nossas reflexões, selecionamos algumas respostas, sobretudo, focamos

aquelas pertencentes ao exercício 4 da atividade desenvolvida em sala de aula em 2016, por

meio da qual realizamos alguns apontamentos sobre uma prática que poderia ser explorada no

exercício proposto pelo professor em resposta à produção do aluno.

O objetivo não é chegar a um protótipo, ainda que se opere com ele, mas

provocar o aluno para que observe modulações léxico-gramaticais discursivas,

independentemente de elas se alinharem mais ou menos com as estabilidades linguísticas.

Esse trabalho metalinguístico desenvolve-se por meio das três relações descritas por Culioli

(1990), como primitiva, predicativa e enunciativa.

Realizada a leitura do Texto I87

pertencente à folha de aplicação de atividade,

foi solicitado aos alunos refletir sobre as expressões em negrito de modo minucioso, sobre o

processo de significação a partir da observação dos termos.

87 Texto I, verificar item 4.3.2. deste trabalho.

Page 131: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

130

Como ilustrado acima, iniciamos a atividade com algumas perguntas com o

objetivo de chamar a atenção do aprendiz para os marcadores de modalidade apreciativa,

ressaltando que não apresentamos a categoria linguística que trabalhamos neste estudo, tal

como as descrevemos, por não considerarmos pertinente aos propósitos didáticos inicialmente

delineados. No desenrolar da atividade, tivemos a intenção de levar os alunos à reflexão por

meio da prática de reformulação. Quanto a uma prática didática que envolva seletos recursos

linguísticos, Araújo e Timóteo salientam:

Trabalhar as expressões linguísticas relacionando-as com o contexto de produção é uma forma importante para mostrar aos alunos que o discurso é

organizado de acordo com a intenção comunicativa do falante e não

aleatoriamente. Um ensino produtivo da língua deve levar o aluno a ser um falante competente dentro da sua língua e levá-lo a ser capaz de refletir sobre

a sua própria língua e a questionar velhos dogmas, tornando-o apto a usar

eficientemente as expressões linguísticas de acordo com a sua necessidade

comunicativa. (ARAÚJO; TIMÓTEO, 2011, p. 322)

Os exercícios aplicados envolvendo a modalidade apreciativa possibilitaram

que os estudantes percebessem os efeitos de sentido ocasionados pelas suas escolhas na

execução da atividade, apesar de não saberem justificar o porquê, como verificamos em suas

Figura 13 - Exemplo de atividade com respostas de um aluno

Fonte: O corpus deste trabalho (2016)

Page 132: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

131

respostas: ‟Porque tem palavras diferentes, mas com o mesmo sentido.”, ‟[..], porque mostra

as expressões dos personagens”, ‟Porque é mais rico em detalhes.”

Foi possível observar que uma simples reformulação, por meio de construção

de famílias parafrásticas, constituiu uma tentativa de conduzir os alunos à compreensão do

funcionamento da categoria gramatical da modalidade.

Se reformular não corresponde a identificar uma unidade linguística por

meio de outra, isso não invalida a própria atividade de reformulação como processo de reconhecimento das características intrínsecas a uma

determinada unidade, como processo capaz de conduzir à apreensão de sua

identidade semântica. Assim, a metodologia posta em prática na da forma invariante consistiu em expandir a reformulação, o parafrasear, propondo

glosas nas quais a materialidade textual é, acima de tudo, valorizada, seja

pela observação das propriedades associadas aos termos presentes em cada

construção e dos efeitos que acarretam, seja pela descrição do contexto solicitado por uma determinada construção (ROMERO, 2010, p. 350, 351)

Para que houvesse uma mediação coerente entre os fundamentos ora

apresentados e a prática pedagógica, estabelecemos 3 perguntas iniciais, cuja resposta seria

buscada pelos próprios alunos por meio da observação das construções, integrando a unidade

linguística a ser analisada.

Levando em consideração a predicação (18) "A cigarra aprendeu a lição.",

como linguistas, somos levados a reconstruir a lexis, responsável por originar este próprio

enunciado e por fornecer um conjunto de relações e, por conseguinte, um domínio nocional.

Logo, de modo esquemático, retomando < a R b >, obtemos:

A partir de < cigarra/aprender/lição >, é possível recuperar não somente a

relação entre um agente (Cigarra) e um objeto (lição) no predicado «aprender», constituindo

uma representação elementar para a compreensão da determinação e análise de fenômenos

< cigarra/aprender/lição >

a = cigarra [termo de partida]

R = aprender

b = lição

Page 133: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

132

linguísticos, como a modalidade, de modo a identificar as diferenças existentes entre os

enunciados. Por isso, a construção de uma lexis implica na derivação de uma classe de

ocorrências, que demonstramos a seguir88

:

(19) A cigarra, cheia de felicidade, finalmente, aprendeu a lição. [AA 2]

(20) A cigarra com certeza aprendeu a lição. [AA 3]

(21) A cigarra finalmente aprendeu a lição. [AA 4]

(22) A cigarra tinha aprendido a lição agora. [AA 5]

(23) A cigarra "ainda bem" aprendeu a lição. [AA 6]

(24) A cigarra despreucupada89

aprendeu a lição. [AA 7]

(25) A cigarra feliz aprendeu a grande lição. [AA 8]

(26) Infelizmente, a cigarra aprendeu a lição. [elaboração própria]

Primeiramente, selecionamos enunciados que permitem estabelecer uma

correspondência entre as configurações e de operações. A partir destas formas esquemáticas

são geradas formas suplementares que se caracterizam por serem deformações da forma de

base donde se partiu.

No quadro da TOPE, todo enunciado comporta, explicitamente ou

implicitamente, posições assumidas pelo sujeito enunciador em relação ao que é dito, que se

configuram em certezas, incertezas, favorável, desfavorável, impondo um valor de verdade

(ROBERT, 1994). Tais formas variadas remetem à modalidade de asserção, das quais se

originam as determinações modais construídas pelo enunciador.

Dentre o conjunto de enunciados de (18) a (26), são de natureza assertiva

afirmativa e validadas pelo sujeito enunciador. Tais predicações constituem enunciados

específicos, uma vez que remetem a uma ocorrência particular: a cigarra que aprendeu a

lição, notada metalinguisticamente por (QNT) QLT. No caso de Cigarras aprendem a lição,

cigarras remeteria a toda uma classe de cigarras, juntamente com o presente do indicativo

aprendem, que designa uma propriedade permanente das cigarras, configurando um

enunciado do tipo genérico.

88 As ocorrências que compõem tais derivações foram extraídas das respostas do exercício 4 da folha de

Atividade, que explicitamos anteriormente no item 4.3.2. desta investigação. Para uma melhor organização de

levantamento de dados, optamos por utilizar a abreviatura AA para designar Atividade Aplicada. 89 Os excertos das atividades realizadas pelos alunos se encontram aqui transcritas sem modificação no sentido

de corrigir eventuais erros ortográficos ou outros.

Page 134: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

133

Portanto, é necessário recorrer à construção do domínio nocional com a

finalidade de identificar os diferentes valores modais. Isto é possível ao localizarmos a

proposição no interior ou no exterior, o que acarreta na constituição de possíveis modais.

Desta maneira, dependendo de como o sujeito enunciador emite uma avaliação

sobre uma relação predicativa constituída e validada, acarreta na sistematização de valores

modais de caráter favorável ou desfavorável sobre um acontecimento.

Para representarmos metalinguisticamente a situação de enunciação, pautamo-

nos em Neves (2012), salientando em seus estudos sobre a modalidade sob a perspectiva da

TOPE, que uma relação predicativa é localizada em relação a esse sistema referencial, do qual

surgem valores de determinação, caracterizando o enunciado em termos de categorias:

A cigarra aprendeu a lição.

Sit0 → situação abstrata, não empírica;

Sit1 → situação de locução, onde S1 é responsável pela construção do

enunciado;

Sit2 → situação do acontecimento linguístico.

EXTERIOR

FRONTEIRA

P' = não aprender

INTERIOR

P = aprender

Fonte: Elaboração própria

Figura 14 - O domínio nocional de aprender

Page 135: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

134

No excerto (18) "A cigarra aprendeu a lição.", o sujeito enunciador atribui um

valor de asserção, validando a relação predicativa, assumindo, portanto, que "sabe que a

cigarra aprendeu a lição". Em alguns casos, a proposição é assumida de formas e graus

diversos pelo sujeito enunciador, como observamos nos seguintes exemplos:

(19) A cigarra, cheia de felicidade, finalmente, aprendeu a lição. [AA 2]

(20) A cigarra com certeza aprendeu a lição. [AA 3]

(21) A cigarra finalmente aprendeu a lição. [AA 4]

Nas proposições (19) e (21), com o advérbio finalmente, o caráter avaliativo

incide sobre a globalidade do enunciado. Concomitantemente, o traço linguístico resgata um

discurso anterior, acarretando num resultado final. Em (20) o sujeito enunciador assume a

validação da relação predicativa, correspondendo ao valor de asserção estrita positiva que se

insere no domínio do certo. Trata-se, neste caso, de uma modalidade epistêmica, segundo

Campos e Xavier (1991).

Justificamos a realização da análise com a intenção de mostrar, que, por meio

de exercícios que impulsionem o aluno a pensar sobre a própria língua, obtemos resultados

inesperados, sobretudo, no que concerne na construção textual por parte dos alunos. Embora a

proposição A cigarra aprendeu a lição pareça simplório, assim como outros enunciados

oriundos desse contexto escolar sejam muitas vezes julgados como mal formados ou errados,

representam um material rico para investigações linguísticas. Por meio de atividades que

explorem o uso da linguagem, é possível abrir caminhos em busca de se evidenciar a questão

da construção da significação nas sequências linguísticas com base na

construção/reconstrução enunciativa, conforme Neves (2012).

Dependendo do nível de criatividade e maturidade do aluno, este é capaz de

estabelecer relações tanto na língua materna quanto na língua estrangeira, acarretando em um

certo nível de explicitação da linguagem, que não são realizadas de modo consciente e

explícito no ato de ensinar/aprender a língua (REZENDE, 1992).

5.4. Análise das produções textuais produzidas no ano de 2016

Neste subcapítulo, prosseguimos com nosso percurso, identificando e

analisando enunciados extraídos do corpus referente à segunda fase de coleta. A análise

Page 136: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

135

também contempla valores de modalidade apreciativa em fábulas escritas por alunos de 6º ano

de Ensino Fundamental - Anos Finais após a realização da atividade didática já apresentada

anteriormente.

Uma vez que, por meio da aplicação da atividade, induzimos indiretamente os

aprendizes a inserirem traços linguísticos avaliativos em suas produções textuais, justificamos

a necessidade da realização desta segunda parte de análise. Dessa forma, partimos para os

textos selecionados, nos quais realizamos o levantamento de algumas ocorrências com os

marcadores específicos, com a intenção de verificar se houve modificações na utilização dos

modais apreciativos. Para tanto, nessa segunda etapa analítica, mantemos os procedimentos

efetuados anteriormente.

5.4.1. PT 12 - A revolta da formiga

Assim como no momento correspondente à primeira etapa da análise,

criteriosamente aqui iniciamos com uma produção textual que não apresenta construção de

valores de modalidade apreciativa em seus enunciados. Em vista disso, direcionamos nossas

discussões para o estabelecimento das sequências linguísticas que desencadeiam relações de

causa e consequência na construção textual.

A revolta da formiga

A formiga muito irritada por causa do troco da cigarra,

resolveu dar um troco na cigarra.

Num belo dia a cigarra estava procurando verme. A formiga ficava só observando-a. A cigarra percebeu que estava sendo

observada, e logo foi descobrir que estava à observando.

Quando viu que era a formiga logo perguntou: ─ O que você está me observando por que?

─ Porque sim – Disse-a irritada.

No outro dia a cigarra foi pedir açucar para a formiga.

A formiga negou e cigarra aceitou a negação da formiga.

Moral: É melhor ignorar do que brigar.

[Produção Textual de uma aluna do 6º ano - 2016]

Page 137: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

136

Após a leitura cuidadosa, identificamos formas linguísticas representadas pelas

categorias morfossintáticas de:

• Adjetivo:

(27) A formiga muito irritada [...].

(28) Num belo dia a cigarra estava procurando verme.

(29) Disse-a irritada.

• Advérbio:

(27) A formiga muito irritada [...].

As formas destacadas em negrito remetem a modificações com adjetivos ou

mesmo o advérbio que sinalizam positiva ou negativamente o sentido construído, daí

resultando uma forma de intensificação da predicação que corresponde a uma avaliação

predicativa.

Ao longo da construção da narrativa, constatamos que os processos de

predicação são construídos com base em um encadeamento de ações/acontecimentos,

comprovando a ausência de valores opinativos. Desse modo, elaboramos a tabela seguinte

visando estabelecer a relação de causa/consequência.

Tabela 3 - Encadeamento de ação/acontecimento em PT12

Fonte: Elaboração própria

Entretanto, no que concerne às linhas sombreadas, verificamos uma ruptura na

narração da ação, como se o fato da formiga observar a cigarra ao procurar alimento (verme)

<cigarra dar o troco na formiga> <formiga ficar irritada>

<formiga ficar irritada> <formiga observar cigarra>

<formiga observar cigarra> <cigarra questionar formiga>

<cigarra pedir açúcar> <formiga negar açúcar>

<faz que>

<cigarra aceitar negação>

Page 138: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

137

tivesse ocorrido em outro momento distinto daqueles outros acontecimentos que haviam

deixado a formiga irritada. Concebe-se o texto narrativo como o gênero mais universal,

devido à possibilidade de ser encontrado em todas as culturas. Trata-se de texto de ação por

excelência, pois resulta de um desenvolvimento, simultaneamente, temporal e causal. Para

Todorov (1973), a narrativa ideal se inicia por uma situação estável que uma força vem

perturbar. Isso provoca um estado de desequilíbrio, devido à ação de uma força dirigida em

sentido inverso, que, em seguida, reestabelece novamente o equilíbrio.

Portanto, é como se o desenvolvimento temporal e causal na sequência

<formiga ficar irritada> e <cigarra pedir açúcar> fosse interrompido por conta da situação

anteriormente citada.

Ao "restabelecermos o equilíbrio da narrativa", nos conduz à compreensão do

fato de a cigarra "ter dado o troco" e "pedir açúcar" posteriormente, ter desencadeado a

revolta na formiga.

Isso posto, damos continuidade à análise, encaminhando para as operações

constituintes do enunciado. Assim sendo, a partir de uma relação predicativa não saturada (p,

p') é possível apreender o nível nocional. À medida que trabalhamos sobre uma lexis, as

propriedades diferenciar-se-ão, uma vez que estamos diante de sistemas de representação

complexas, estruturadas, de propriedades físico-culturais, adicionado o fato de que uma

representação de um domínio nocional fornece, inicialmente, operações sobre operações que

diferenciam as cadeias de derivação. Ao levarmos em consideração a noção /revolta/ /ser/,

designamos:

<revolta, ser> ⋸ Sit0 (S0, T0)

No caso de A revolta da formiga, é evidente a noção muito ligada à ideia de

rebeldia, indignação, revelando um posicionamento, muito implícito por parte do aluno, de

que ser provocado gera revolta, indignação. Nesse sentido, é possível estabelecer:

Page 139: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

138

Da noção revolta, pensando em outras possibilidades com a finalidade de

observar o jogo estabelecido na relação predicativa, formamos as seguintes sequências,

anexando valores modais apreciativos:

(a) O troco que a cigarra deu foi revoltante.

(b) Foi revoltante o troco dado pela cigarra.

(c) Revoltante, o troco!

(d) Revoltante o troco que a cigarra deu.

(e) Revoltante foi o troco que a cigarra deu.

(f) É revoltante que a cigarra tenha dado o troco na formiga.

(g) A cigarra deu o troco na formiga. É revoltante!

Por meio das manipulações, é possível variar os marcadores com o objetivo de

fazer emergir fenômenos, permitindo ao linguista identificar as operações linguísticas que

correspondem a traços linguísticos selecionados para observação. Enfatizamos, de certo

modo, que a construção das sequências resultam em predicações que supõem a existência do

termo qualificado, tratando de uma predicação de tipo qualitativo. Uma vez que A revolta da

EXTERIOR

P' = não revolta FRONTEIRA

INTERIOR

P = revolta

indignação

rebeldia

Figura 15 - Noção de revolta

Fonte: Elaboração própria

Page 140: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

139

formiga não possua um qualificador adjunto, resulta em (Qlt) estável. Portanto, obtemos a

representação metalinguística : (Qnt) (Qlt).

5.4.2. PT 14 - (sem título)

Na construção de um enunciado, o sujeito enunciador situa a relação

predicativa em um espaço enunciativo, assumindo uma posição, que faz com que a relação

predicativa se transforme em uma relação enunciativa, que possui um dado valor modal

(ZAVAGLIA, 2016). Por isso, a análise de valores modais deve incidir sobre conceitos que

correspondem a apreciar, desejar.

Graças ao papel de localizador desempenhado pelo sujeito enunciador origem,

as personagens são introduzidas, cujas localizações apresentam um valor de ruptura (ω),

sinalizadas pelas formas da terceira pessoa gramatical utilizadas para indicar as personagens,

como podemos observar em: "A formiga toda alegre, foi pedi desculpa a amiga", " A cigarra

(Ela) aceitou normalmente, [...]", " A formiga respondeu:". Isso exposto, representamos

metalinguisticamente a situação de enunciação em PT14 do seguinte modo:

S1(sujeito locutor) = S0(sujeito enunciador origem)

S2(sujeito do enunciado) ω S0(sujeito enunciador origem)

(sem título)

A cigarra com muita alegria, até quemfim aprendeu a lição.

Ansiosa, agora sabe que se você guardar hoje, com muita certeza, terá amanhã.

A formiga toda alegre, foi pedi desculpa a amiga. Éxplicou

que só não ofereceu alimento porque a cigarra tinha de aprender a lição e da valor as coisas.

A cigarra aceitou normalmente, na realidade, foi ótimo. muito

alegre, disse: Eu aceito suas desculpas, mais você foi muito chata comigo. Mais eu te prometo que da prossima vez eu vou procurar comida.

A formiga respondeu:

Agora você quer pegar comida comigo?

A cigarra aceitou, e foi as duas atraz de comida.

[Produção Textual de aluna do 6º ano - 2016]

Page 141: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

140

Em seguida, na produção textual apresentada, efetuamos uma verificação

cuidadosa para procedermos ao levantamento das proposições associadas aos traços

linguísticos de modalidade apreciativa. Das ocorrências selecionadas, os destaques em negrito

correspondem, sobretudo, a marcadores que intensificam uma predicação que correspondem a

uma avaliação predicativa, veiculadas, principalmente, por meio de formas com categorias

morfossintáticas de:

• Adjetivo:

(28) A cigarra com muita alegria, até quemfim aprendeu a lição.

(29) Ansiosa, agora sabe que se você guardar hoje, com muita certeza, terá

amanhã.

(30) A formiga toda alegre, foi pedi desculpa a amiga.

(31) A cigarra aceitou normalmente, na realidade, foi ótimo.

(32) muito alegre, disse:

• Advérbio:

(28) A cigarra com muita alegria, até quemfim aprendeu a lição.

(31) A cigarra aceitou normalmente, na realidade, foi ótimo.

(32) muito alegre, disse:

Dessas proposições extraídas, as atitudes do sujeito enunciador são explicitadas

pela sistematização de valores modais construídos nos enunciados (28) e (31). Ressaltamos

que uma operação de modalização pode pertencer a mais de um tipo, uma vez que tais

operações se relacionam entre si (NEVES, 2006).

Determinamos que as asserções modalizadas apreciativamente correspondem a

pré-construídos. Em A cigarra com muita alegria, até quemfim aprendeu a lição, a expressão

coloquial até quemfim corresponde semanticamente ao advérbio finalmente. Notamos que nas

construções com o advérbio há uma diferença na atribuição do valor modal apreciativo

marcado por finalmente, que resulta da relação que esta forma linguística estabelece com as

outras formas presentes no enunciado.

A modalização apreciativa associada à construção, em Sit0, da relação

predicativa e da sua asserção (positiva ou negativa) é marcada pelo modo indicativo (no

Page 142: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

141

pretérito, no presente ou no futuro) que se combina com o predicado verbal. Nessa

proposição, é evidente a apreciação sobre um acontecimento do ponto de vista favorável.

No enunciado A cigarra aceitou normalmente, na realidade, foi ótimo., nos

deparamos com uma relação predicativa validada. Tal validação não é estabelecida em Sit0,

ou seja, não é construída na situação de enunciação daqueles enunciados, mas numa situação

de enunciação anterior como em a cigarra aceitou normalmente. Por outras palavras, a

validação da relação predicativa constitui um pré-construído.

Nesse excerto, percebemos que se trata de uma relação predicativa validável,

construída como uma modalidade apreciativa que incide sobre outra de mesma categoria. O

foi ótimo constitui uma apreciação favorável sobre a aceitação da formiga, aceitação que

ocorreu normalmente. A expressão foi ótimo caracteriza, então, uma estrutura de tipo

impessoal que recai sobre o enunciado. Dessa proposição, nos permitimos manipular e

elaborar as seguintes equivalências:

(31a) É normal que a cigarra aceite.

(31b) É normal que a cigarra tenha aceitado.

(31c) Foi ótimo que a cigarra tenha aceitado normalmente;

(31d) É ótimo que a cigarra aceite normalmente;

(31e) Seria ótimo que a cigarra aceitasse normalmente;

(31f) Que ótimo que a cigarra aceitou normalmente;

(31g) A cigarra aceitou normalmente. Isso foi ótimo!

Nesse sentido, quanto às ocorrências no modo conjuntivo ao nível da frase

subordinada – tenha aceitado (31c), aceite (31d) e aceitasse (31e) – , estas apontam para uma

validação ou não-validação da relação predicativa noutra Sit, distinta de Sit0. Quanto ao modo

indicativo, este marca a validação ou não-validação da relação predicativa em Sit0, ou seja, a

construção de um valor de asserção estrita, que é um valor da modalidade epistêmica,

segundo Campos (1991).

Prosseguindo com a análise, em relação às representações formais de domínios

nocionais ligados a essas proposições específicas, nos pautamos novamente em Deschamps

(1999) e Dufaye (2001), cujos estudos recobrem a categoria da modalidade. Os autores em

questão apresentam posições que coincidem quanto à necessidade de se religar aos dois níveis

Page 143: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

142

de determinação, a quantificação e a qualificação, operações consideradas essenciais. Em

vista disto, notamos metalinguisticamente:

Tabela 4 - O domínio nocional em PT14

Enunciado 28 Enunciado 31

I E I E

IE IE

T S

Qnt Qlt

I E I E

IE IE

T S

Qnt Qlt

Fonte: Elaboração própria

Por fim, considerando a validação ou não-validação da relação predicativa

juntamente da apreciação positiva ou negativa assumida pelo sujeito enunciador, buscamos

identificar as operações de determinação nos seguintes excertos:

(28) A cigarra com muita alegria, até quemfim aprendeu a lição; expressa um

juízo intelectual positivo. Portanto, equiponderância Qnt/Qlt.

(31) A cigarra aceitou normalmente, na realidade, foi ótimo; expressa uma

avaliação positiva, marcada por valor de alto grau. Portanto, notamos por (Qnt) Qlt.

Ao que se analisou com base nas ocorrências consideradas, pudemos constatar,

em grande parte, o surgimento de marcadores que intensificam uma predicação,

correspondendo a uma avaliação predicativa tal como em A cigarra com muita alegria, [...] e

raras ocorrências de modalidade apreciativa, como exemplificada por A cigarra aceitou

normalmente, na realidade, foi ótimo. Portanto, a modalidade não constitui um domínio

estanque, essa categoria de determinação possibilita a ocorrência de inter-relação, acarretando

na geração de valores complexos.

Page 144: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

143

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As análises efetuadas, no capítulo que se encerrou, conduziram-nos a uma

reflexão pedagógica acerca dos trabalhos que desenvolvemos sobre a produção/interpretação

de textos nas aulas de língua materna, tanto no Ensino Fundamental quanto no Ensino Médio.

A princípio, propusemo-nos a comprovar o quanto os estudos enunciativos,

sobretudo filiando-nos à Teoria das Operações Predicativas e Enunciativas, constituem uma

relevante contribuição para que ocorra uma avaliação das práticas pedagógicas que têm sido

adotadas no ensino de língua portuguesa. Para tal, traçamos os seguintes objetivos:

(1) explorar com mais profundidade o processo de constituição de planos

enunciativos que envolve mecanismos enunciativos como marcas de regulação intersubjetiva,

sobretudo a modalidade apreciativa ;

(2) determinar e analisar o uso da modalidade apreciativa num corpus

constituído de textos narrativos, sobretudo fábulas.

(3) propor práticas linguísticas a serem aplicadas no exercício da produção

textual visando a explorar, no ensino de línguas, processos de linguagem que, por sua vez,

possam promover o desenvolvimento linguístico-cognitivo nos aprendizes.

Quanto à modalidade, é um fenômeno pouco explorado pelos livros didáticos,

porém de inquestionável relevância, uma vez que é possível destacar a influência do contexto

enunciativo sobre as formas linguísticas. Com a implementação dos PCNs e do Currículo do

Estado do São Paulo, é imposto que o ensino/aprendizagem de língua materna enfatize o

desenvolvimento da competência discursiva dos alunos. Portanto, é necessário que o professor

trabalhe em sala de aula não somente questões ligadas aos aspectos internos da língua, tais

como fonologia, morfologia, semântica e sintaxe, levando os aprendizes a refletir sobre a

própria língua.

Não temos a intenção de negar a relevância dos trabalhos que apontam os

aspectos estabilizados e mostram a possibilidade das subversões, contudo o questionamento

que realizamos em relação à ausência no ensino de produção textual de um trabalho que

articule gramática e produção/interpretação de texto, visa a levar o professor a olhar além do

"certo" e "errado" (ONOFRE, 2011).

Em vista disso, levando em consideração os dados obtidos na análise realizada

nas produções textuais, é necessário explanar certas posturas pedagógicas suscitadas pelo

Page 145: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

144

estudo da modalidade ligada ao ensino de língua portuguesa, ressaltando a nossa preocupação

com o aprimoramento do ensino de língua materna, sobretudo na escola pública, pois é neste

contexto que é possível conciliar teoria e prática linguísticas, como podemos observar nas

palavras de Campos (1994):

Constato, com frequência, a existência de um desencontro ou, diria mesmo, de um mal-entendido entre investigação linguística, que se desenvolve,

fundamentalmente, nas universidades e o respectivo investimento

pedagógico, cujos destinatários se encontram na língua, sobretudo na aula de

língua materna. Os professores da disciplina de Português deveriam ser utilizadores preferenciais dos produtos daquela investigação, porém tal não

acontece, ou, de uma forma menos radical, raramente acontece.

Tornou-se uma banalidade dizer que, sempre que se encontram, linguistas e professores de Português reconhecem a necessidade de um trabalho

conjunto. No entanto, na maioria dos casos, não se dá continuidade ao que

acaba por não passar de uma formulação sincera de desejos e boas intenções. (CAMPOS, 1994, p. 137)

O desafio de trazer à tona a linguagem é o despertar da sua importância para o

indivíduo, que deve ocorrer por meio da produção e interpretação de textos orais e escritos

que contribuem para a sua formação, o aperfeiçoamento da expressão e organização do

pensamento e o saber relacionar-se com o outro.

Os modalizadores, em certas ocasiões, apresentam um caráter paradoxal,

atribuindo sentido graças ao estabelecimento de lugares dialógicos, apesar de não

explicitarem outros discursos, possibilitam uma abertura para a reconstrução de redes

intertextuais.

A modalidade de natureza apreciativa, sobretudo, dispõe de um conjunto de

traços linguísticos que nem sempre apresentam uma mesma configuração sintática, que

podem ser as marcas adjetivais, adverbiais, como pudemos constatar nas análises

empreendidas. Desse modo, retomando as proposições analisadas, tais como (2a) A festa que

a formiga fez foi incrível., (2f) A formiga fez uma festa incrível! e (2g) Incrível, a festa!, nos

permitiu identificar ocorrências que correspondiam respectivamente a uma avaliação

predicativa, modalidade apreciativa e, mais especificamente em (2g), um caso que transita

entre a avaliação predicativa e a modalidade apreciativa, constituindo uma "fronteira".

Page 146: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

145

À medida que consideramos o possível movimento entre predicações, mais

importante do que diferenciar entre dois tipos estáveis de predicação, a saber, a modalidade

apreciativa e a avaliação predicativa, é observar que:

(i) pode ocorrer um lugar de indistinção entre eles, a que denominamos de

"fronteira";

(ii) esse lugar de indistinção faz-se pelos valores de quantificação e

qualificação;

(iii) o emprego de tais operadores nos textos, pelos alunos, representa o ganho

de tais marcas enunciativas, tão significativas às narrativas.

A pesquisa também nos permitiu verificar que a oportunidade de aplicação de

atividade de uma proposta envolvendo o objeto de estudo convergiu para uma nova dinâmica

docente, abrindo caminho para um trabalho que integre teoria e prática linguística. Desse

modo, voltamos à prática didática com o intuito de levar os aprendizes a desenvolver a

capacidade linguística cognitiva e à construção/reconstrução da significação.

Como professores, temos o desafio de levar o aprendiz à compreensão dos

mecanismos responsáveis pela construção e reconhecimento de enunciados linguísticos. Uma

reflexão sobre a atividade de linguagem e a compreensão de seus mecanismos, constitui em

uma contribuição ao aprendizado/desenvolvimento de uma língua natural e isso seria

oportuno num momento em que há uma consciência geral de que o ensino de línguas,

sobretudo a materna, não anda muito bem (NEVES, 2006).

Por conseguinte, insistimos que a efetuação de produções textuais em ambiente

escolar, que valorizem formas linguísticas como a modalidade apreciativa, simboliza uma

proposta de prática diferenciada da mecanicidade imposta por exercícios tradicionais

realizados em sala de aula.

Page 147: MECANISMOS LINGUÍSTICOS E RELAÇÕES INTERSUBJETIVAS …

146

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154

APÊNDICES

APÊNDICE A - Atividade desenvolvida em sala de aula

Texto I - A cigarra dá seu troco

A cigarra, cheia de alegria, felizmente aprendeu a lição. Receosa, agora sabe que se você guardar

hoje, com certeza terá amanhã.

A formiga, toda contente, foi pedir desculpa à amiga. Explicou que só não ofereceu alimento

porque a cigarra tinha de aprender a lição e dar valor às coisas.

A cigarra aceitou numa boa, na verdade, foi muito bom. Emocionada, disse:

─ Tudo bem, eu lhe perdoo, mas não me esquecerei, você foi muito cruel comigo! Logo depois, a formiga foi embora rindo da cara da cigarra dizendo:

─ Nunca precisarei de você!

Cabisbaixa, a cigarra simplesmente se recolheu em casa. Era uma pena.

O tão temido inverno chegou e a formiga, despreocupada, nem se preparou. Confiante, é claro

que foi para a casa da cigarra. Chegando lá, implorou para que lhe abrigasse. A cigarra, muito satisfeita e com

um sorriso nos lábios, indagou:

─ Você lembra que eu pedi sua ajuda?

Envergonhada, a formiga trêmula disse:

─ Por favor, me perdoe!

Muito decidida, a cigarra fechou a porta, exclamando:

─ O que plantamos hoje, colhemos amanhã.

Moral da história: O mundo dá voltas, hoje você tem, amanhã você pede.

Texto I I - A cigarra dá seu troco

A cigarra aprendeu a lição. Agora sabe que se você guardar hoje, terá amanhã.

A formiga foi pedir desculpa à amiga. Explicou que só não ofereceu alimento porque a cigarra tinha de aprender a lição e dar valor às coisas.

A cigarra aceitou e disse:

─ Tudo bem, eu lhe perdoo, mas não me esquecerei, você foi muito cruel comigo!

Logo depois, a formiga foi embora dizendo:

─ Nunca precisarei de você!

A cigarra se recolheu em casa.

O inverno chegou e a formiga nem se preparou. Foi para a casa da cigarra. Chegando lá, implorou

para que lhe abrigasse. A cigarra indagou:

─ Você lembra que eu pedi sua ajuda?

A formiga disse:

─ Por favor, me perdoe!

A cigarra fechou a porta, exclamando: ─ O que plantamos hoje, colhemos amanhã.

Moral da história: O mundo dá voltas, hoje você tem, amanhã você pede.

1- Você acha que os dois textos acima são idênticos? Justifique sua resposta.

2- Qual a importância das expressões em negrito para a construção do texto?

3- De qual texto você gostou mais? Por quê?

4- Reescreva o seguinte trecho, inserindo novas expressões que você achar interessante.

"A cigarra aprendeu a lição. Agora sabe que se você guardar hoje, terá amanhã. A formiga foi pedir

desculpa à amiga. Explicou que só não ofereceu alimento porque a cigarra tinha de aprender a lição e dar

valor às coisas. A cigarra aceitou e disse:"

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APÊNDICE B - Atividade Aplicada

AA2

AA3

AA4

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ANEXOS

ANEXO A - PT1 − O melhor dia de todos

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ANEXO B - PT 2 − A cigarra dá seu troco

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ANEXO C - PT3 − A amizade

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ANEXO D - PT4 − A formiga e a cigarra

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ANEXO E - PT 10 − (sem título)

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162

ANEXO F - PT12 − A revolta da formiga

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ANEXO G - PT14 − (sem título)