libras estudos linguísticos

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Texto disponível em: Apostila de Libras. UFRGS, 2014. 1. LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA: ASPECTOS LINGUÍSTICOS Lodenir Becker Karnopp (...) pessoas surdas definem-se em termos culturais e linguísticos. (WRIGLEY 1996, p. 13) As línguas de sinais existem em comunidades de pessoas surdas. Entretanto, o reconhecimento do status linguístico das línguas de sinais é bastante recente. Encontramos declarações da UNESCO, da Organização Mundial da Saúde, da Federação Mundial dos Surdos e do Encontro Global de Especialistas sobre o status das línguas de sinais. A UNESCO, em 1984, declarou que “a língua de sinais deveria ser reconhecida como um sistema linguístico legítimo” e Federação Mundial do Surdo, em 1987, adotou sua primeira Resolução sobre Línguas de Sinais, rompendo com uma tradição oralista. O Encontro Global de Especialistas, em 1987, recomenda seguinte: Pessoas surdas e com grave impedimento auditivo [devem] ser reconhecidas como uma minoria linguística, com o direito específico de ter sua língua de sinais nativa aceita como sua primeira língua oficial e como o meio de comunicação e instrução, tendo serviços de intérpretes para a língua de sinais (WRIGLEY, 1996, p. xiv).

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Texto sobre estudos linguísticos e Libras. Texto sobre estudos linguísticos e Libras.

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Page 1: Libras Estudos Linguísticos

Texto disponível em: Apostila de Libras. UFRGS, 2014.

1. LÍNGUA DE SINAIS BRASILEIRA: ASPECTOS LINGUÍSTICOS

Lodenir Becker Karnopp

(...) pessoas surdas definem-se em termos culturais e linguísticos. (WRIGLEY 1996, p. 13)

As línguas de sinais existem em comunidades de pessoas surdas. Entretanto, o

reconhecimento do status linguístico das línguas de sinais é bastante recente.

Encontramos declarações da UNESCO, da Organização Mundial da Saúde, da

Federação Mundial dos Surdos e do Encontro Global de Especialistas sobre o status das

línguas de sinais. A UNESCO, em 1984, declarou que “a língua de sinais deveria ser

reconhecida como um sistema linguístico legítimo” e Federação Mundial do Surdo, em

1987, adotou sua primeira Resolução sobre Línguas de Sinais, rompendo com uma

tradição oralista. O Encontro Global de Especialistas, em 1987, recomenda seguinte:

Pessoas surdas e com grave impedimento auditivo [devem] ser reconhecidas como uma minoria linguística, com o direito específico de ter sua língua de sinais nativa aceita como sua primeira língua oficial e como o meio de comunicação e instrução, tendo serviços de intérpretes para a língua de sinais (WRIGLEY, 1996, p. xiv).

A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

sublinha que os fatores fundamentais para os direitos humanos das pessoas surdas são o

acesso e o reconhecimento da língua de sinais, incluindo aceitação e respeito pela

identidade de pessoas surdas linguística e culturalmente, acesso à educação bilíngue,

intérpretes de línguas de sinais e recursos de acessibilidade.

O relatório "As pessoas surdas e os Direitos Humanos" constitui, até agora, o

maior banco de dados que permite conhecer a situação das pessoas surdas no mundo.

Esse relatório descreve vidas de pessoas surdas de noventa e três países1 apresentando

dados e análises sobre o reconhecimento da língua de sinais na legislação, situação

educacional e profissional de surdos, utilização de recursos de acessibilidade, formação

1 A Associação Nacional Sueca de Surdos (Swedish National Association of the Deaf) e a Federação Mundial de Surdos (World Federation of the Deaf - WFD) realizaram a pesquisa e apresentaram o relatório sobre a situação de pessoas surdas no mundo.

Page 2: Libras Estudos Linguísticos

e atuação de intérpretes de línguas de sinais etc. Cento e vinte e três (123) países

receberam o questionário e 93 responderam (em geral, associações de surdos), dando

uma taxa de resposta de 76%. Conforme esse relatório, relativamente poucos países

negam aos surdos o acesso à educação, serviços públicos ou exercício da cidadania,

tendo como base apenas a surdez. Mas a falta de reconhecimento da língua de sinais, a

carência de educação bilíngue, a disponibilidade limitada de serviços de interpretação e

a generalizada desinformação sobre a situação das pessoas surdas, mantêm os surdos

privados do acesso a amplos setores da sociedade. Assim, os surdos não são capazes de

desfrutar plenamente dos mais básicos direitos humanos. (HAUALAND & ALLEN,

2009)

Podemos verificar que, no Brasil, ocorreram importantes conquistas das

comunidades surdas, em diferentes espaços, especialmente o reconhecimento da cultura

surda e a oficialização da Língua Brasileira de Sinais (Libras). A partir da luta das

comunidades de surdos, que se organizam em associações, instituições e através da

Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (FENEIS), ocorreu a

oficialização da Libras, conforme consta na Lei Federal 10.436, de 24 de abril de 2002.

No entanto, permanece a situação de carência de educação bilíngue, disponibilidade

limitada de serviços de interpretação e falta de acesso a amplos setores da sociedade.

LEI FEDERAL Nº 10.436, DE 24 DE ABRIL DE 2002

Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras e dá outras providências.O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:Art. 1º É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.

Parágrafo único. Entende-se como Língua Brasileira de Sinais - Libras a forma de comunicação e expressão, em que o sistema linguístico de natureza visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema linguístico de transmissão de ideias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do Brasil. Art. 2º Deve ser garantido, por parte do poder público em geral e empresas concessionárias de serviços públicos, formas institucionalizadas de apoiar o uso e difusão da Língua Brasileira de Sinais - Libras como meio de comunicação objetiva e de utilização corrente das comunidades surdas do Brasil. Art. 3º As instituições públicas e empresas concessionárias de serviços públicos de assistência à saúde devem garantir atendimento e tratamento adequado aos portadores

Page 3: Libras Estudos Linguísticos

de deficiência auditiva, de acordo com as normas legais em vigor. Art. 4º O sistema educacional federal e os sistemas educacionais estaduais, municipais e do Distrito Federal devem garantir a inclusão nos cursos de formação de Educação Especial, de Fonoaudiologia e de Magistério, em seus níveis médio e superior, do ensino da Língua Brasileira de Sinais - Libras, como parte integrante dos Parâmetros Curriculares Nacionais - PCNs, conforme legislação vigente.Parágrafo único. A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa. Art. 5º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 24 de abril de 2002; 181º da Independência e 114º da República. FERNANDO HENRIQUE CARDOSOPaulo Renato Souza

Apesar de mudanças significativas na legislação e de iniciativas de algumas

instituições, o fato é que, há muito tempo, temos por parte dos surdos uma luta histórica

tentando fazer valer a diferença linguística e cultural que lhes é devida, não somente nos

espaços escolares, mas também na mídia e nos diferentes artefatos culturais. Pode-se

dizer que a tradicional concepção de cultura em oposição a natureza repercutiu na forma

como os surdos foram narrados e tratados pelas instituições ao longo da história. A

ênfase no suposto dado da natureza — o ouvido anormal — negou qualquer

possibilidade de narrativas que inscrevessem os surdos como grupo cultural, capazes de

produzir significados a partir de suas experiências compartilhadas.

Em pesquisa sobre as produções culturais em comunidades surdas2 Karnopp,

Klein e Lunardi-Lazzarin (2011) argumentam que através de narrativas produzidas em

Libras, a comunidade surda vem imprimindo significados na constituição de identidades

e diferenças. Tais narrativas convergem para o entendimento dessa comunidade como

um grupo cultural e como uma minoria linguística.3 A partir da contextualização da

língua e da situação de pessoas surdas, neste capítulo objetivamos introduzir alguns

estudos realizados na área da linguística das línguas de sinais, considerando que a

descrição gramatical dessa língua contribuiu fortemente para o reconhecimento dessa

língua como a língua nativa das pessoas surdas e da identificação da comunidade surda

2 Auxílio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e do Ministério da Cultura, através do Edital 07/2008 (Capes/MinC – Pró-cultura). 3 KARNOPP, L. B.; KLEIN, M.; LUNARDI-LAZZARIN, M. Cultura Surda na Contemporaneidade: negociações, intercorrências e provocações. Canoas: Editora da ULBRA, 2011.

Page 4: Libras Estudos Linguísticos

como minoria linguística. Inicialmente são apresentados aspectos compartilhados entre

línguas orais e línguas de sinais. Em seguida, são descritos aspectos linguísticos

envolvidos na produção dos sinais.

ESTUDOS LINGUÍSTICOS NAS LÍNGUAS DE SINAIS4

Os articuladores primários das línguas de sinais são as mãos, que se

movimentam no espaço em frente ao corpo e articulam sinais em determinadas locações

nesse espaço. Alguns sinais são articulados com uma única mão, enquanto outros são

articulados com as duas mãos. Um sinal pode ser articulado com a mão direita ou com

a mão esquerda; tal mudança, portanto, não é distintiva. Sinais articulados com uma

mão são produzidos pela mão dominante (tipicamente a direita para destros e a esquerda

para canhotos), sendo que sinais articulados com as duas mãos também ocorrem e

apresentam restrições em relação ao tipo de interação entre ambas.

A linguística estuda as línguas naturais e humanas e as pesquisas realizadas

nesta área incluem tanto as línguas orais quanto as línguas de sinais. A linguística está

voltada para a descrição e explicação da estrutura, do uso e do funcionamento das

línguas. Muitas pessoas simplesmente relacionam a linguística com o uso de diferentes

línguas ou gramáticas normativas. No entanto, essa é uma área do conhecimento que se

preocupa com temas como a linguagem e a comunicação humana, procurando

desvendar a complexidade das línguas e as diferentes formas de comunicação, a fim de

elaborar teorias da língua(gem) e teorias da comunicação. (QUADROS; KARNOPP

2004)

O trabalho de um pesquisador é explicar, e não determinar, os usos e as regras

de funcionamento de uma língua. É precisamente isto que os linguistas tentam fazer –

descobrir as leis de uma língua, assim como as leis que dizem respeito a (quase) todas

as línguas. Neste sentido, podemos perceber que há diferenças entre as línguas orais e

as línguas de sinais, mas também encontramos aspectos comuns entre elas, aspectos que

são compartilhados entre essas diferentes línguas.

As línguas de sinais começaram a ser pesquisadas pela linguística a partir de

1960. Uma das primeiras descrições sobre a estrutura, uso e funcionamento das línguas

de sinais foi feita por W. Stokoe na Língua de Sinais Americana.

4 Esta seção tem como base o capítulo 1 de QUADROS E KARNOPP (2004). Sugere-se a leitura desse livro para um aprofundamento na temática.

Page 5: Libras Estudos Linguísticos

Stokoe propôs um esquema linguístico estrutural para analisar a formação dos

sinais na American Sign Language (ASL). Estava preocupado em identificar as

unidades que formam os sinais. A partir disso, propôs a decomposição de sinais em três

unidades ou parâmetros que não carregam significados isoladamente, a saber:

(a) configuração de mão (CM)

(b) locação da mão (L)

(c) movimento da mão (M)

Análises posteriores sugeriram a adição de outras unidades ou parâmetros, a

saber:

(d) orientação da mão (OM)

(e) expressões não-manuais: expressões faciais (EF) e corporais (EC).

Todas essas unidades – CM, L, M, OM, EF e EC – formam os sinais nas línguas

de sinais e isso foi aceito por muitos pesquisadores e identificado em muitas línguas de

sinais. O estudo dessas unidades isoladamente é realizado por uma das áreas da

linguística, denominada de Fonética e Fonologia das línguas de sinais.

Estudos realizados pela linguística das línguas de sinais descrevem e/ou

explicam alguns dos aspectos de diferentes línguas de sinais, incluindo outras áreas

além da fonética e fonologia, tais como morfologia (estudo das palavras/sinais), sintaxe

(estudo das sentenças/frases), semântica (estudo do significado) e pragmática (estudo

dos usos da língua), por exemplo.

A seguir serão apresentadas as propriedades de cada unidade/parâmetro em

Libras, isto é, propriedades de configurações de mão, movimentos, locações, orientação

de mão, bem como dos aspectos não-manuais dessa língua, conforme descrição feita por

Ferreira Brito (1990, 1995) e Quadros e Karnopp (2004).

Língua de Sinais Brasileira: uma introdução

Uma das principais diferenças a considerar entre as línguas de sinais e as línguas

orais é em função do modo como essas línguas são produzidas e percebidas. Utilizamos

para as línguas orais o termo oral-auditivo e para as línguas de sinais o termo gestual-

visual. Gestual-visual significa aqui o conjunto de elementos linguísticos manuais,

corporais e faciais necessários para a articulação do sinal em um determinado espaço de

Page 6: Libras Estudos Linguísticos

enunciação5, oposto a oral-auditivo que representa a produção da informação linguística

através do aparelho fonador. Quanto à percepção, nas línguas de sinais a construção das

sentenças e dos significados ocorre através da visão e nas línguas orais através da

audição. Desta forma, nas línguas de sinais, já que a informação linguística é recebida

pelos olhos, os sinais são construídos de acordo com as possibilidades perceptuais do

sistema visual humano. A Libras, assim como outras línguas de sinais, é basicamente

produzida pelas mãos, embora movimentos do corpo e da face também desempenhem

funções.

Uma das tarefas de um investigador de uma língua de sinais particular é

identificar configurações de mão, locações, movimentos, orientações de mão e

expressões não-manuais que compõem um sistema linguístico e têm uma função

distintiva6. Isso pode ser feito comparando-se pares de sinais que contrastam

minimamente, um método utilizado na análise tradicional de fones distintivos das

línguas orais. Nas línguas orais, podemos exemplificar o caráter distintivo com as

palavras: bala, fala, cala, mala, rala, gala). O valor distintivo dos parâmetros

fonológicos nas línguas de sinais é ilustrado a seguir, em que se observa que o contraste

de apenas um dos parâmetros provoca diferença no significado dos sinais.

5 O espaço de enunciação dos sinais é o local onde os sinais são realizados, ou seja, sinais são produzidos no corpo e no espaço em frente ao corpo (denominado espaço neutro). 6 Pequenas diferenças na forma como os sinais são produzidos, mas que acarretam mudanças de significado, por exemplo, os sinais ilustrados na figura 2.

Page 7: Libras Estudos Linguísticos

Sinais que se opõem quanto àConfiguração de mão

PEDRA QUEIJO

Sinais que se opõem quanto ao Movimento

TRABALHAR VÍDEO

Sinais que se opõem quanto à Locação

APRENDER SÁBADO

Figura 1: Pares mínimos na Libras7

Esses exemplos mostram a complexidade das línguas de sinais. No entanto,

como os sinais são produzidos em contextos discursivos e não isoladamente, podemos

abstrair o significado dos sinais a partir dos contextos em que são produzidos.

(a) Configuração de Mão

As configurações de mão da Libras foram descritas a partir de dados coletados

nas principais capitais brasileiras, sendo agrupadas verticalmente segundo a semelhança

entre elas, mas ainda sem uma identificação enquanto básicas ou variantes. Dessa

forma, o conjunto de configurações de mão refere-se apenas às manifestações de

superfície, isto é, de nível fonético, encontradas na Libras.

7 1Retirado de Quadros & Karnopp (2004, p.52).

Page 8: Libras Estudos Linguísticos

Quadro 1: Configurações de Mão na Libras8

Um sinal pode ser produzido com uma única configuração de mão, por exemplo,

MÃE, que pode ser articulado com a mão esquerda ou com a mão direita.

MÃE com a mão direitaMÃE com a mão esquerda

A configuração de mão pode permanecer a mesma durante a articulação de um

sinal (PAI), ou pode passar de uma configuração para outra, por exemplo, SOL. Além

disso, os sinais podem ser produzidos com as duas mãos, por exemplo, TELEVISÃO e

VOTAR.

8 Retirado de Ferreira Brito e Langevin, 1995.

Page 9: Libras Estudos Linguísticos

PAI (sinal articulado com uma mão)

TELEVISÃO (sinal articulado com as duas mãos: condição de

simetria)

VOTAR (sinal articulado com as duas mãos: condição de

dominância)

O alfabeto manual (abecedário), utilizado também na Libras, é usado na

soletração manual de palavras da língua portuguesa (ou de outras línguas), em especial,

nomes próprios que ainda não têm um sinal correspondente. Mas, configuração de mão

é uma das unidades que formam os sinais.

Page 10: Libras Estudos Linguísticos

(b) Movimento

Nas línguas de sinais, a(s) mão(s) do enunciador realiza(m) o movimento no

espaço de enunciação. O movimento é definido como uma unidade complexa que pode

envolver uma vasta rede de formas e direções, desde os movimentos internos da mão, os

movimentos do pulso e os movimentos direcionais no espaço (KLIMA; BELLUGI,

1979).

As variações no movimento são significativas na gramática da língua de sinais.

Um exemplo disso são as cores na Língua de Sinais Americana (BLE, GREEN,

YELLOW e PURPLE) articuladas no espaço neutro. O movimento básico do sinal

BLUE (AZUL) envolve um pequeno contorno na mão. Todavia, se esse movimento é

alterado ocorre mudança no significado do sinal.

Figura 2: Exemplos de sinais na American Sign Language9

O exemplo acima mostra que o movimento pode variar (de certo modo previsto

pelas regras da língua), do que resulta um significado diferente, mas relacionado à

forma base (BAKER; PADDEN 1978, p. 11-12).

Mudanças no movimento servem também para distinguir verbos. Na Língua de

Sinais Americana, cem pares de nomes/verbos foram investigados, já que esses

nomes/verbos possuíam significados associados e supostamente não diferiam no modo

de fazer o sinal. Eles tentaram descobrir, por exemplo, como o sinal CADEIRA

(substantivo) poderia ser diferente do sinal SENTAR (verbo). Concluíram que os

9 Retirado de Baker e Padden (1978, p.12).

Page 11: Libras Estudos Linguísticos

verbos, em geral, apresentam movimentos variados. Alguns verbos são produzidos com

um movimento simples; outros, com movimento repetido. Mas, os nomes têm uma

característica comum: tendem a ter movimentos mais curtos, são sempre repetidos e

tensos (SUPALLA; NEWPORT, 1978). Essa distinção também foi encontrada na

Libras, conforme investigações de Quadros e Karnopp (2004).

As variações no movimento podem estar também ligadas à direcionalidade do

verbo. A forma básica do verbo OLHAR, por exemplo, tem um movimento para fora

(do emissor em direção ao receptor), e significa “eu olho para você”. Se o movimento

dá-se na direção oposta, isto é, se o sinal move-se do receptor em direção ao emissor,

então o significado é “você olha para mim”. Assim, o significado de um sinal está

relacionado com a direção do movimento. Estudos na Libras sobre a sintaxe espacial e

sobre verbos direcionais podem ser conferidos em Quadros e Karnopp (2004).

O movimento pode estar nas mãos, pulsos e antebraço. Os movimentos

identificados na Libras e em outras línguas de sinais estão relacionados ao tipo de

movimento (reto, circular, alternado, simultâneo...), direção do movimento

(unidirecional/ bidirecional/ multidirecional), maneira (categoria que descreve a

qualidade, a tensão e a velocidade do movimento) e frequência do movimento (número

de repetições de um movimento).

(c) Locação ou Pontos de Articulação

Locação ou ponto de articulação é aquela área no corpo em que o sinal é

realizado. Na Libras, assim como em outras línguas de sinais até o momento

investigadas, o espaço de enunciação é uma área que contém todos os pontos dentro do

raio de alcance das mãos em que os sinais são produzidos.

Page 12: Libras Estudos Linguísticos

Figura 3: Espaço de realização dos sinais10

Dentro desse espaço de enunciação, pode-se determinar um número finito

(limitado) de pontos, que são denominados ‘pontos de articulação’. Alguns pontos são

mais precisos, tais como a ponta do nariz, e outros são mais abrangentes, como a frente

do tórax. O espaço de enunciação é um espaço ideal, no sentido de que se considera

que os interlocutores estejam interagindo face a face. Pode haver situações em que o

espaço de enunciação seja totalmente reposicionado e/ou reduzido; por exemplo, se um

enunciador A faz sinal para B, que está à janela de um edifício, o espaço de enunciação

será alterado. O importante é que, nessas situações, os pontos de articulação têm

posições relativas àquelas da enunciação ideal.

Os pontos de articulação dividem-se em quatro regiões principais: cabeça (testa,

rosto, orelha, nariz, boca, queixo, bochechas...), mão (palma, dedos, juntas, costas das

mãos...), tronco (pescoço, ombro, busto, estômago, cintura, braços, antebraço, cotovelo,

pulso...) e espaço neutro. (FERREIRA BRITO; LANGEVIN, 1995)

(d) Orientação da Mão

Orientação é a direção para a qual a palma da mão aponta na produção do sinal.

Ferreira Brito (1995, p. 41) enumera seis tipos de orientações da palma da mão na

Libras: para cima, para baixo, para o corpo, para a frente, para a direita ou para a

esquerda.

10 Retirado de Ferreira Brito (1990, p. 33).

Page 13: Libras Estudos Linguísticos

Figura 4: Orientações de Mão11

(e) Expressões não-manuais (ENM)

As expressões não-manuais (movimento da face, dos olhos, da cabeça ou do

tronco) prestam-se a dois papéis nas línguas de sinais: marcação de construções

sintáticas e produção de sinais específicos. As expressões não-manuais que têm função

sintática marcam sentenças interrogativas sim-não, interrogativas, topicalizações etc. As

expressões não-manuais podem também marcar referência específica, referência

pronominal, partícula negativa, advérbio ou aspecto. Expressões não-manuais da Libras

podem ser encontradas no rosto, na cabeça e no tronco. Deve-se salientar que duas

expressões não-manuais podem ocorrer simultaneamente, por exemplo, as marcas de

interrogação e negação.

LÍNGUAS ORAIS E LÍNGUAS DE SINAIS: APROXIMAÇÕES

11 Retirado de Marentette (1995, p. 204).

Page 14: Libras Estudos Linguísticos

Nas investigações sobre os universais linguísticos compartilhados entre línguas

orais e línguas de sinais, encontramos uma sistematização proposta em Fromkin &

Rodman (1993, p. 24-6) e abordada em Salles et al. (2003). Devemos salientar que, em

muitos casos, a comparação entre línguas de modalidades diferentes não é imediata nem

muito adequada, mas o objetivo é apresentar através disso uma breve descrição da

língua a partir de um contraste com as línguas orais, mais frequentemente estudadas.

Onde houver seres humanos, haverá língua(s)!

Todas as comunidades utilizam uma (ou mais) língua(s) – língua é um fato

social! A língua é a marca de uma cultura. Curiosamente apesar do grande número de

línguas existentes, metade da população mundial fala apenas quinze línguas. Assim, se

falarmos chinês mandarim, inglês, hindi e russo, poderemos nos comunicar com mais de

um bilhão de pessoas. (FROMKIN & RODMAN 1993, p. 337-341)

No Brasil, encontramos muitas línguas aqui existentes. Além da língua

portuguesa, temos as línguas indígenas, as línguas de sinais, as línguas de migração e

quilombolas. Se considerarmos as línguas indígenas veremos que, ao final do século

XV, havia em torno de 1.175 línguas indígenas faladas no Brasil. Atualmente restam

somente 180 línguas indígenas diferentes faladas no Brasil, as quais pertencem a mais

de 20 famílias linguísticas. (RODRIGUES, 1993).

Além da Libras, conhecida também como LSB (Língua de Sinais Brasileira) há

registros da existência, no Brasil, de uma outra língua de sinais entre índios Urubu-

Kaapor, habitantes da floresta amazônica (FERREIRA BRITO, 1990). Os índios

Urubu-Kaapor utilizam a denominada LSKB (Língua dos Sinais Kaapor Brasileira), que

não apresenta relação estrutural ou lexical com a Libras, devido à inexistência de

contato entre ambas.

Qualquer criança, nascida em qualquer lugar do mundo, de qualquer origem

racial, geográfica, social ou econômica, é capaz de adquirir qualquer língua à qual

está exposta!

Obviamente que crianças surdas expostas a uma língua de sinais irão adquirir

essa língua, visto que essa é uma língua que podem perceber/ compreender e produzir

Page 15: Libras Estudos Linguísticos

de forma espontânea, da mesma forma que crianças ouvintes adquirem a língua oral à

qual estão expostas.

Não há línguas primitivas!

As línguas são igualmente complexas e igualmente capazes de expressar

qualquer ideia: servem para dar vazão às emoções e sentimentos; para solicitar, para

ameaçar ou prometer; para dar ordens, fazer perguntas ou afirmações; para referir o

passado, presente e futuro; a realidades remotas em relação à situação de enunciação...

Nenhum outro sistema de comunicação humana parece ter sequer de longe o mesmo

grau de flexibilidade e versatilidade. Por exemplo, o vocabulário de qualquer língua

pode ser expandido a fim de incluir novas palavras (ou sinais) para expressar novos

conceitos. Na Libras, o sinal de CELULAR foi criado no contexto de surgimento dessa

tecnologia. Podemos citar muitos outros: internet, deletar, youtube, email, facebook...12

Figura 5: CELULAR

Na criação desses novos sinais, observamos também arbitrariedade da língua, ou

seja, as palavras e os sinais apresentam uma conexão arbitrária entre forma e

significado. A arbitrariedade, no que diz respeito à língua, não se restringe à ligação

entre forma e significado. Aplica-se também, consideravelmente, a grande parte da

estrutura gramatical das línguas, na medida em que as línguas diferem gramaticalmente

umas das outras.

As línguas mudam ao longo do tempo: as novas gerações não utilizam a

mesma língua de sinais de gerações passadas. Mudança e variação linguística ocorrem

em todas as línguas. Na Libras, observamos mudança no uso dos sinais conforme a

época: na figura a seguir, o primeiro sinal refere controle remoto (utilizado atualmente);

12 Agradeço aos surdos que contribuíram com as ilustrações de sinais.

Page 16: Libras Estudos Linguísticos

o segundo, expressa a mudança de canal de televisão, girando o botão (utilizado no

passado).

Figura 6: sinais para referir “canal de televisão”.

Para exemplificar a variação linguística, podemos citar a pesquisa de Diniz

(2010), que realizou uma análise de três documentos históricos da Libras, para

identificar mudança fonológica e lexical. A autora investigou o primeiro documento ao

fazer referência à Libras – Iconographia dos Signaes dos Surdos-Mudos, de 1875, sendo

uma reprodução fiel do dicionário de sinais francês; o dicionário Linguagem das Mãos,

produzido pelo padre Eugênio Oates, em 1969; e o terceiro, Dicionário Digital da

Libras do Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES), produzido por

profissionais do INES, em 2006. A partir da análise desses três dicionários, a autora

classificou a mudança dos sinais em categorias (a) os que permanecem idênticos, não

sofrendo alterações em sua articulação; (b) os que sofreram alterações, mudando

completamente o modo de realização dos sinais. Dentre os fatores internos,

identificados na pesquisa, que contribuíram para a ocorrência de variações, destacam-se:

facilidade de articulação e acuidade visual no espaço de sinalização. Os fatores

socioculturais que contribuíram para mudança de sinais são: influência de outras línguas

de sinais, empréstimos linguísticos, influência da língua portuguesa e de situações de

bilinguismo. (DINIZ, 2010)13

13 DINIZ, Heloise Gripp. A história da língua de sinais brasileira (LIBRAS): um estudo descritivo de mudanças fonológicas e lexicais. Dissertação de Mestrado. Florianópolis: CCE/UFSC, 2010.

Page 17: Libras Estudos Linguísticos

Tais mudanças nas línguas estão relacionadas com a produtividade ou

criatividade de um sistema linguístico, que possibilita a construção e interpretação de

novos enunciados. Os sistemas linguísticos possibilitam a seus usuários construir e

compreender um número infinito de enunciados que jamais viram antes. O que é

impressionante na produtividade das línguas, na medida em que é manifesta na estrutura

gramatical, é a extrema complexidade e heterogeneidade dos princípios que a mantêm e

constituem. Para Chomsky (1986)14, essa complexidade e heterogeneidade, entretanto,

são regidas por regras; isto é, dentro dos limites estabelecidos pelas regras da gramática,

que são em parte universais e em parte específicos de determinadas línguas; assim, os

falantes nativos de uma língua têm a liberdade de agir criativamente, construindo um

número infinito de enunciados. O conceito de criatividade regida por regras é muito

próximo do de produtividade e teve grande importância para o desenvolvimento da

teoria gerativa.

As relações significado e significante são arbitrárias

Nas línguas de sinais, os sinais são arbitrários e imotivados, apesar da aparente

semelhança entre sinal e referente. Nas línguas orais e de sinais temos, portanto, a

arbitrariedade do signo, pois o significante é arbitrário em relação ao significado.

Algumas pessoas consideram a língua de sinais uma língua icônica ao considerar

sinais como CASA, ÁRVORE e CARRO.

Figura 7: CASA

14 CHOMSKY, Noam. Knowledge of Language. Its nature, origin and use. New York: Praeger Publishers, 1986.

Page 18: Libras Estudos Linguísticos

Figura 8: ÁRVORE

Muitos exemplos como esses são considerados como sinais icônicos

(pictográficos). No entanto, pode-se dizer que um sinal não é imediatamente ou

naturalmente identificado, já que cada língua pode abordar um aspecto visual diferente

em relação, por exemplo, ao mesmo objeto, diferenciando os sinais de língua para

língua. O que pode ocorrer é uma exploração do espaço de enunciação na realização de

alguns sinais, relacionando a questões culturais (por exemplo, o sinal AMAR pode ter o

coração/ tórax como ponto de articulação).

Acrescente-se a isto o fato de que toda arbitrariedade é uma convencionalidade,

pois quando um grupo de pessoas seleciona um traço visual como uma característica do

sinal, outro grupo pode selecionar outro traço para identificá-lo. Assim, pode-se dizer

que a aparência exterior de um sinal é enganosa, já que cada língua pode abordar um

aspecto visual diferente em relação, por exemplo, ao mesmo objeto, diferenciando a

representação lexical de língua para língua. (KARNOPP, 1994)

As línguas incluem segmentos (partes que a compõem)

Nas línguas faladas encontramos o conjunto das vogais e das consoantes. Elas

são combinadas para formar morfemas e palavras, por exemplo, se juntarmos os

segmentos sonoros /m/, /a/, /p/ podemos formar a palavra /mapa/. Elementos como

/a/, /m/, /p/ podem ser definidos através de um conjunto de propriedades ou traços,

pertencentes às línguas faladas. Assim, podemos encontrar uma classe de vogais e uma

classe de consoantes.

Nas línguas de sinais encontramos os seguintes segmentos que compõem os

sinais: configuração de mão, locação, movimento, orientação de mão e expressões não-

manuais. Se juntarmos alguns desses elementos podemos formar morfemas e sinais,

conforme exemplo a seguir:

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Figura 9: TOMAR (com copo)15

Essas unidades são combinadas para formar elementos significativos ou

palavras, os quais por sua vez formam um conjunto infinito de sentenças possíveis.

Todas as gramáticas contêm regras para formação de palavras e sentenças.

Um processo recorrente de formação de palavras na Libras é a derivação e a

composição. Um dos exemplos de derivação é a incorporação de numeral, nos sinais,

ONTEM, ANTEONTEM, 1HORA, 2HORAS, 3HORAS, 4HORAS, UM-MÊS, DOIS-

MESES, TRÊS-MESES, QUATRO-MESES...

15 Exemplo retirado de Quadros e Karnopp (2004, p. 51).

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Figura 10: Sinais para um, dois, três e quatro meses16

As línguas apresentam categorias gramaticais (ex.: nome, verbo)

Uma das principais funções da morfologia é a mudança de classe, isto é, a utilização da ideia de uma palavra em uma outra classe gramatical. Forma-se um novo sinal para poder utilizar o significado de um sinal já existente num contexto que requer uma classe gramatical diferente. (QUADROS; KARNOPP 2004, p. 96)

16 Figura retirada de Quadros e Karnopp (2004, p. 107).

UM-MÊS DOIS-MESES

TRÊS-MESES QUATRO-MESES

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Figura 11: Sinais para nomes e verbos17

Categorias semânticas encontradas nas línguas: fêmea ou macho, animado ou

humano, etc.

Segundo Ilari (2002, p. 39-40), para entendermos o significado das palavras,

dispomos de dois recursos: através da análise componencial ou por protótipos.

A análise componencial parte do princípio de que a significação das palavras

pode ser identificada em unidades menores (chamados de “componentes” ou “traços

semânticos”) e que as unidades encontradas na análise de uma determinada palavra

reaparecem em outras palavras. Seria possível, assim, verificar o que duas ou mais

palavras têm em comum, por exemplo: Quadrado = [+ figura geométrica], [+ plana], [+

côncava], [+ com quatro lados], [+ lados iguais], [+ ângulos iguais]. Alguns desses

traços podem ser utilizados na caracterização de outras palavras como o triângulo,

losango, retângulo, etc.

Na análise por protótipos, identificamos indivíduos que representam melhor

toda uma categoria e procuramos entender os demais a partir desse protótipo. Por

17 Retirado de Quadros e Karnopp (2004, p. 97).

TELEFONAR TELEFONE

SENTAR CADEIRA

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exemplo, para organizar a categoria dos pássaros, podemos tomar como referência o

pardal e comparar os demais animais a partir desse protótipo.

Tanto nas línguas orais quanto nas línguas de sinais observamos que ocorre a

utilização tanto da análise componencial quanto da análise por protótipos para a

identificação de aspectos nocionais do significado das palavras ou dos sinais. Podemos

exemplificar a análise componencial, na Libras, com os sinais para QUADRADO e

RETÂNGULO; e o sinal de MESA para exemplificar uma potencial análise por

protótipos.

As línguas possuem formas para indicar tempo passado, negação, pergunta,

ordem, etc.

Quadros e Karnopp (2004) afirmam que a negação, por exemplo, é um processo

produtivo na língua de sinais brasileira. Há alguns sinais que podem incorporar a

negação através da alteração de um dos parâmetros. Nos exemplos a seguir, o

movimento é alterado, acarretando, assim, o aparecimento da incorporação da negação

ao sinal.

Figura 12: Exemplos de incorporação de negação18

18 Retirado de Quadros e Karnopp (2004, p. 110).

TER NÃO-TER

GOSTAR NÃO-GOSTAR

Page 23: Libras Estudos Linguísticos

As pessoas são capazes de produzir e compreender um conjunto infinito de

sentenças

Nas línguas de sinais, o estudo da estrutura da frase tem evidenciado que os

aspectos espaciais determinam as relações gramaticais. Segundo Quadros e Karnopp

(2004), no espaço em que são realizados os sinais, o estabelecimento nominal e o uso do

sistema pronominal são fundamentais para as relações sintáticas. Qualquer referência

usada no discurso requer o estabelecimento de um local no espaço de sinalização

(espaço definido na frente do corpo do sinalizador) observando várias restrições. Esse

local pode ser referido através de vários mecanismos espaciais, por exemplo19:

· Sinal produzido em um determinado local. Exemplo: CASA (de João) e CASA

(de Pedro); Sinal produzido simultaneamente com direcionamento da cabeça e dos

olhos (e talvez do corpo) para uma locação particular. Exemplo: CASA; IX(casa); Uso

de um verbo direcional (com concordância) incorporando os referentes previamente

introduzidos no espaço. Exemplos:

CARRO CL(carro passou um pelo outro);

(eu)IR(casa);

(el@)<aOLHARb>(el@);

(el@<aENTREGARb>do(el@)

PARA FINALIZAR...

Com essa introdução aos estudos da linguística das línguas de sinais,

procuramos descrever aspectos gramaticais da Libras e introduzir uma comparação

entre as línguas orais e as línguas de sinais, com o objetivo de refletirmos sobre as

aproximações entre línguas de modalidades diferentes.

19 Ilustrações para os exemplos apresentados podem ser encontradas em Quadros e Karnopp (2004), no capítulo 4.