mecanismos de reparo de dna

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MECANISMOS DE REPARO Eduardo Montagner Dias Apesar de mutações genéticas serem de extrema importância para a evolução de uma espécie, a sobrevivência do indivíduo depende da estabilidade do seu genoma. A estabilidade resulta não só de um acurado mecanismo de replicação, mas também de mecanismos que reparem os danos que ocorrem continuadamente no DNA. Entende-se por reparo a capacidade da maquinaria celular de corrigir os erros causados por mutações. Muitos danos sofridos pelo DNA podem ser reparados porque a informação genética é preservada em ambas as fitas da dupla-hélice, de tal forma que a informação perdida em uma fita pode ser recuperada a partir da fita complementar. Os mecanismos existentes e conhecidos de reparação do DNA lesado são provavelmente universais e uma célula pode ter vários sistemas capazes de atuar ao mesmo tempo no DNA lesado. Como os sistemas de reparação são mais bem compreendidos e estudados na Escherichia coli, muitos mecanismos discutidos farão referência a esta bactéria. Reparo por fotorreativação enzimática Um dos mecanismos de reparo melhor estudados é a remoção dos dímeros de pirimidina, formados pela exposição do DNA à luz ultravioleta. Este dímero não se encaixa bem na estrutura de dupla-hélice e, assim, a replicação e a expressão gênica são bloqueadas até que a lesão seja removida. Esse tipo de lesão pode ser reparado de diferentes formas. A forma mais direta envolve enzimas que simplesmente revertem a modificação química que originou o dano. Dímeros de pirimidina são o alvo universal da enzima fotoliase , que se liga ao dímero e catalisa uma segunda reação fotoquímica, desfazendo o anel formado pela luz UV e refazendo as bases pirimídicas individuais. Esse processo é chamado fotorreativação e envolve as seguintes etapas: inicialmente, a enzima reconhece e liga-se ao dímero (mesmo na ausência de luz visível); depois, a absorção de luz fornece energia para converter o dímero em monômero de pirimidina; por fim, a enzima dissocia-se do DNA. A reação depende do gene que codifica a fotoliase e ocorre especificamente em procariotos. Reparo de bases alquiladas A base nitrogenada primariamente afetada pelos agentes alquilantes é a guanina. Na E. coli, esta lesão é removida pela enzima O 6 -metilguanina- metiltransferase , que reconhece a alteração no DNA e remove o grupamento metila causador da mutação. A mesma enzima também pode remover grupamentos metila dos fosfatos que possivelmente interrompem a cadeia de DNA. Uma característica importante dessa reação é que cada grupamento metila removido consome uma enzima O 6 -metilguanina-metiltransferase, a qual não pode ser recuperada para nova utilização.

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Page 1: Mecanismos de Reparo de DNA

MECANISMOS DE REPARO

Eduardo Montagner Dias

Apesar de mutações genéticas serem de extrema importância para a evolução de uma espécie, a sobrevivência do indivíduo depende da estabilidade do seu genoma. A estabilidade resulta não só de um acurado mecanismo de replicação, mas também de mecanismos que reparem os danos que ocorrem continuadamente no DNA. Entende-se por reparo a capacidade da maquinaria celular de corrigir os erros causados por mutações. Muitos danos sofridos pelo DNA podem ser reparados porque a informação genética é preservada em ambas as fitas da dupla-hélice, de tal forma que a informação perdida em uma fita pode ser recuperada a partir da fita complementar. Os mecanismos existentes e conhecidos de reparação do DNA lesado são provavelmente universais e uma célula pode ter vários sistemas capazes de atuar ao mesmo tempo no DNA lesado. Como os sistemas de reparação são mais bem compreendidos e estudados na Escherichia coli, muitos mecanismos discutidos farão referência a esta bactéria.

Reparo por fotorreativação enzimática

Um dos mecanismos de reparo melhor estudados é a remoção dos dímeros de pirimidina, formados pela exposição do DNA à luz ultravioleta. Este dímero não se encaixa bem na estrutura de dupla-hélice e, assim, a replicação e a expressão gênica são bloqueadas até que a lesão seja removida. Esse tipo de lesão pode ser reparado de diferentes formas. A forma mais direta envolve enzimas que simplesmente revertem a modificação química que originou o dano. Dímeros de pirimidina são o alvo universal da enzima fotoliase, que se liga ao dímero e catalisa uma segunda reação fotoquímica, desfazendo o anel formado pela luz UV e refazendo as bases pirimídicas individuais. Esse processo é chamado fotorreativação e envolve as seguintes etapas: inicialmente, a enzima reconhece e liga-se ao dímero (mesmo na ausência de luz visível); depois, a absorção de luz fornece energia para converter o dímero em monômero de pirimidina; por fim, a enzima dissocia-se do DNA. A reação depende do gene que codifica a fotoliase e ocorre especificamente em procariotos.

Reparo de bases alquiladas

A base nitrogenada primariamente afetada pelos agentes alquilantes é a guanina. Na E. coli, esta lesão é removida pela enzima O6-metilguanina-metiltransferase, que reconhece a alteração no DNA e remove o grupamento metila causador da mutação. A mesma enzima também pode remover grupamentos metila dos fosfatos que possivelmente interrompem a cadeia de DNA. Uma característica importante dessa reação é que cada grupamento metila removido consome uma enzima O6-metilguanina-metiltransferase, a qual não pode ser recuperada para nova utilização.

Page 2: Mecanismos de Reparo de DNA

Reparo por excisão de bases

Ocorre quando a remoção da base defeituosa é feita pela clivagem da ligação base nitrogenada – desoxirribose, seguida pelo preenchimento da região com a base correta por ação da DNA-polimerase. Um exemplo comum de reparo por excisão de base é o que acontece na correção da desaminação da citosina à uracila. O sistema de reparação reconhece a uracila como uma base estranha ao DNA. Primeiramente, a uracila-DNA-glicosilase hidrolisa a ligação entre a uracila e a molécula de desoxirribose. Nesse estágio, a cadeia de DNA está intacta, mas a base é perdida. A enzima AP endonuclease reconhece, então, essa fenda e cliva a cadeia em regiões adjacentes à base perdida. A DNA-polimerase insere novamente uma citosina, de acordo com a orientação fornecida pela fita complementar não-danificada, que contém uma guanina. Finalmente, a integridade da fita corrigida é restaurada pela DNA-ligase. Existem outras glicosilases que reconhecem e removem hipoxantina, 3-metil-adenina e purinas com anel imidazol aberto por radiação ionizante ou pH elevado.

Reparo por excisão de nucleotídeos (REN)

Ocorre quando a remoção da base defeituosa é feita pela incisão endonucleolítica nos dois lados da lesão, com liberação dos nucleotídeos, seguida pelo preenchimento da região por ação da DNA-polimerase. Em todos os organismos onde já foi estudado, o processo de REN consiste em cinco etapas:

1. Reconhecimento da lesão por um complexo multienzimático; 2. Incisão da fita anormal em ambos os lados da lesão a alguma distância

desta; 3. Excisão do segmento contendo a lesão; 4. Síntese de um novo segmento de DNA utilizando a fita não-danificada

como molde, por ação da DNA-polimerase; 5. Ligação/restauração da molécula de DNA por ação da enzima DNA-ligase.

A extensão média do fragmento de DNA removido é de 12 nucleotídeos, razão pela qual esse modelo é chamado de reparação de regiões curtas. Em caso de grandes quantidades de lesões, em que a substituição envolve de 1500 a 9000 nucleotídeos, o modelo é conhecido como reparação de regiões longas. A diferença entre esses dois modelos de reparação é que o primeiro é uma função constitutiva da célula, enquanto o segundo deve ser induzido por lesões no DNA – pelo menos no que diz respeito à célula bacteriana.

O modelo proposto para o sistema de REN em mamíferos é o seguinte: 1. As proteínas XPB, XPD e XPA estão envolvidas na detecção da lesão,

sendo que as duas primeiras percorrem a hélice e a segunda reconhece a lesão;

2. Após encontrar a lesão, o DNA do local do dano é desnaturado e as endonucleases XPF e XPG fazem a dupla incisão na cadeia;

3. O oligonucleotídeo contendo a lesão é removido pelas DNAs-polimerases δ e ε e pelos seus cofatores PCNA e RF-C, que também são responsáveis pelo passo seguinte;

Page 3: Mecanismos de Reparo de DNA

4. Ressíntese do DNA utilizando a fita não danificada como molde; 5. Ligação da extremidade 5’ da região recém-sintetizada à seqüência original,

pela DNA-ligase. Outro exemplo muito interessante de REN é o sistema de reparação global X genes ativos. Foi demonstrado em E. coli que, embora sítios distintos contenham o mesmo tipo de lesão, o sistema pode diferenciar um gene ativo de uma região não-codificadora; assim, os sítios críticos do genoma são os primeiros a ser reparados. Em mamíferos, onde a quantidade de DNA presente no núcleo é muito maior do que na E. coli, a reparação preferencial de seqüências transcritas também ocorre.

Reparo de bases malpareadas

Algumas bases incorretamente pareadas conseguem escapar da revisão realizada pela DNA-polimerase durante o processo de replicação. Por isso, na E. coli, a etapa final que confere precisão ao processo de replicação é de responsabilidade do sistema de correção de erro, que consiste em várias proteínas codificadas pelos genes mut. Esse sistema percorre o DNA recentemente sintetizado à procura de pares de base malpareadas e remove os segmentos de fita simples contendo nucleotídeos incorretos. Isso permite que a DNA-polimerase insira a base correta na lacuna formada. A dificuldade que surge, aparentemente, é a de distinguir qual das bases de um par erroneamente formado é a incorreta, porque ambas são componentes naturais do DNA. Se a remoção de uma das bases fosse ao acaso, haveria a probabilidade de 50% de a base correta ser removida e a mutação poderia ser perpetuada, ao invés de ser corrigida. Existe, porém, um sinal específico que direciona o sistema de excisão do erro exclusivamente para a fita recém-sintetizada: o reconhecimento de seqüências GATC próximas ao erro. GATC metiladas indicam a fita parental, enquanto que ausência de metilação nestas seqüências caracteriza a fita recém-sintetizada.

O sistema de correção detecta não somente pares únicos de bases malpareadas, mas também adições e deleções, o que reduz a incidência de mutações por modificação no módulo de leitura, além daquelas envolvendo substituição de bases.

Reparo por recombinação

No processo de reparação por recombinação, a fita complementar não-danificada é utilizada como molde na substituição do fragmento lesado. Algumas vezes, porém, esse molde não está disponível, por motivos diversos. A DNA-polimerase, então, é forçada a passar pela lesão sem replicar aquela região. Uma lacuna com um tamanho considerável é deixada na fita recém-sintetizada. Toda a informação do sítio danificado é perdida e somente pode ser recuperada pela utilização de uma outra molécula idêntica de DNA.

Como as células de organismos superiores são geralmente diplóides, elas possuem a mesma seqüência, ou praticamente a mesma, em cada um dos cromossomos homólogos. Uma fonte apropriada de DNA, portanto, pode ser encontrada na célula.

Page 4: Mecanismos de Reparo de DNA

Assim, como esquematizado na figura abaixo, após uma mutação, a fita 1 do homólogo A (1A) não está disponível; a fita 2 do homólogo A (2A) possui uma lacuna. As fitas 1 e 2 do homólogo A’ (1A’ e 2A’, respectivamente) estão íntegras. No reparo por recombinação, a fita 1A’ é permutada pela fita 2A, de modo que 1A’ sirva de molde para reconstrução de 1A; e 2A’ sirva de molde para 2A.

Na E. coli, é de fundamental importância a proteína RecA, pois só ela é

capaz de parear duas moléculas de DNA homólogas e catalisar as reações de trocas de fitas, permitindo reparação e recuperação de lesões.

Reparo através do sistema SOS

Uma vez que a célula pode regular a expressão gênica de acordo com sua necessidade, muitas enzimas envolvidas no reparo do DNA são induzidas pelo próprio defeito da molécula de DNA. As enzimas mais importantes desse processo são derivadas dos genes SOS, cuja expressão é induzida por um defeito severo o bastante a ponto de impedir a síntese de DNA. Estes genes dão origem a proteínas de reparo como, por exemplo, endonucleases de excisão, helicases, entre outras.

Os dímeros de pirimidinas constituem um exemplo típico desse tipo de dano. Quando a forquilha de replicação encontra um dímero, a síntese pára e só é reiniciada a alguma distância além do dímero, ficando uma lacuna no DNA na qual a enzima de recombinação RecA se liga. Essa ligação ativa em RecA uma atividade enzimática completamente independente da recombinação: ela destrói o repressor dos genes SOS (repressor LexA). Dessa maneira, a proteína RecA promove reparação do material genético de duas formas: por recombinação, com troca das fitas, e por indução dos genes SOS.

Page 5: Mecanismos de Reparo de DNA

Reparo sujeito a erro

Existem ocasiões em que o dano no DNA é tão extremo que não há como os mecanismos celulares de reparo corrigirem de forma precisa a molécula. Nesses casos, a célula utiliza como último recurso o sistema de reparo sujeito a erro, no qual qualquer uma das quatro bases é inserida no local lesado, a fim de garantir a continuidade do processo de replicação. Devido ao fato de não haver a informação precisa (molde), o próprio mecanismo de reparo acaba sendo o causador de uma mutação, pois a chance de introduzir uma base incorreta na cadeia é grande. De qualquer forma, para a célula é preferível incorporar uma base incorreta e permitir que a replicação continue, do que não replicar mais. Na E. coli, esse sistema de reparação envolve dois genes principais: umuC e umuD. Esses genes são também genes SOS e, portanto, seus produtos estão em abundância somente após a célula ter o sistema SOS ativado. Devido a isso, a proteína RecA também é necessária no sistema de reparo sujeito a erro, a fim de comandar a indução dos genes umuC e umuD.

Reparo por união de extremidades não-homólogas

Quebras nas duas fitas de uma mesma molécula de DNA ocorrem nas células em diversas circunstâncias e constituem uma das principais ameaças à integridade do genoma. Se não forem reparadas, podem causar a morte celular e, em organismos multicelulares, podem causar o câncer. Uma grande variedade de agentes exógenos, incluindo a radiação ionizante e um número considerável de quimioterápicos (como a bleomicina), causam essas quebras, bem como agentes endógenos, a exemplo dos radicais livres. O principal mecanismo de reparação dessas quebras duplas, que ocorre comumente em mamíferos, é chamado de união de extremidades não-homólogas. Neste mecanismo, as extremidades de uma molécula de DNA, apesar de terem perdido alguns nucleotídeos por degradação espontânea, são justapostas para recombinar. O mesmo complexo enzimático realiza o processo de ligação entre as duas extremidades. Desta forma, a seqüência original de DNA acaba sendo alterada.

Reparo por união de extremidades homólogas

O segundo mecanismo reparador de quebras na dupla-fita é a união de extremidades homólogas. O processo é bem mais comum em bactérias e leveduras, e também mais preciso. Por este mecanismo, o cromossomo homólogo àquele lesado faz uma cópia da seqüência de nucleotídeos perdida com quebra da dupla-fita e transfere esta seqüência para o sítio de quebra no cromossomo lesado; este cromossomo lesado, então, tem sua seqüência original restaurada.

Page 6: Mecanismos de Reparo de DNA

Doenças Causadas por Deficiência de Reparo no Homem DOENÇA SENSIBILIDADE SUSCETIBILIDADE

AO CÂNCER SINTOMAS ENZIMA

OU PROCESSO AFETADO

Xeroderma pigmentoso

UV, purina alquilada

Carcinoma de pele Fotossensibilidade de pele e olhos

Reparo por excisão de nucleotídeos

Ataxia teleangiectasia

Radiação gama Linfoma Ataxia; dilatação de vasos sangüíneos na pele e olhos; aberrações cromossômicas.

Proteína cinase ATM, ativada por quebra nas duas fitas

Anemia de Fanconi

Agentes que fazem ligação cruzada

Leucemias Pancitopenia hipoblástica; anomalias congênitas

Reparo de DNA cruzado interfitas

Síndrome de Bloom

UV Leucemias Fotossensibilidade; mudanças faciais

DNA-helicase acessória para replicação

Bibliografia:

• Alberts B, Johnson A, Lewis J, Raff M, Roberts K, Walter P. Molecular Biology of the Cell. 4th edition, New York: Garland Science, 2002

• Zaha A, Ferreira HB, Passaglia LMP. Biologia Molecular Básica. 3ª edição, Porto Alegre: Mercado Aberto, 2003.