mayla lenzi goerisch

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A SOCIEDADE DE CONSUMO E AS MUDANÇAS NOS HÁBITOS ALIMENTARES: RELAÇÕES ENTRE DESENVOLVIMENTO TECNOLÓGICO, PROPAGANDA E ALIMENTAÇÃO NO BRASIL. 1940-2000 Autora: Mayla Lenzi Goerisch Orientador: Carlos Roberto Antunes dos Santos Palavras-chave: tecnologia- hábitos alimentares- propaganda Este trabalho teve por objeto de estudo a compreensão das alterações sofridas na produção de alimentos, pelo notável desenvolvimento tecnológico no século XX e a investigação do papel da propaganda na formação de hábitos alimentares condizentes com a lógica de produção industrial. O estudo dos hábitos e práticas alimentares insere-se no campo da História e Cultura da Alimentação, e vem chamando a atenção não só de historiadores e acadêmicos, mas de pessoas interessadas em aprender e conhecer mais sobre a realidade alimentar, diretamente relacionada com suas vidas. Se a alimentação é considerada, como define Garine 1 , “um fato social total”, os estudos relacionados à alimentação merecem uma abordagem ampla, envolvendo a participação de historiadores, sociólogos, economistas, ambientalistas, pensadores, especialistas nas áreas biológicas, pessoas ligadas a movimentos sociais e saberes populares. Como observa Santos 2 , “os projetos que tem sido desenvolvidos no campo da História da Alimentação apontam na direção dos estudos e pesquisas multidisciplinares, com a integração sendo o único modo de enfrentar o problema de maneira positiva e construtiva(...)”. Neste sentido identificamos nossa pesquisa com a abordagem dos estudos culturais 3 , pela sua abertura e versatilidade teórica, espírito reflexivo e importância da crítica, entendida como o questionamento acerca do que tradições, discursos hegemônicos e práticas sociais, podem contribuir e inibir dentro dos contextos culturais. Deste ponto de vista, Johnson 4 explica que os estudos culturais são um processo, uma espécie de alquimia para produzir conhecimento útil: qualquer tentativa de codificá-los pode paralisar suas reações. Portanto, apesar de se ter o cuidado para construir uma pesquisa fundamentada em estudos especializados, não devemos temer em usar nosso espírito reflexivo, principalmente quando tratamos de contextos nos quais estamos inseridos e que dizem respeito ao nosso cotidiano. O caráter utilitário, de buscar conhecimentos que vivifiquem a experiência, motivou a escolha do tema, que se justifica na curiosidade/necessidade em saber mais sobre o que comemos. O primeiro passo foi pensar que o fato de comprarmos nossos alimentos no supermercado (hábito tão consolidado em nossa cultura e que tem pouco mais de 50 anos) nos revela que nossa alimentação passa pela indústria. Neste sentido veio a pergunta: como a humanidade chegou a este nível de industrialização? É possível traçar um panorama da evolução técnica desde as suas origens até a contemporaneidade, tendo como pano de fundo a alimentação? Tentamos buscar estas respostas fazendo, no primeiro capítulo da monografia, um retrospecto do desenvolvimento técnico, para que pudéssemos entender com clareza, como foi possível ao homem ter sua vida tão mediada pela tecnologia, e quais as conseqüências disso para sua alimentação. Para nos auxiliar nesta tarefa, utilizamos o 1 GARINE, Igor. Unie anthropologie alimentaire des Français? Ethnol. Fr, 1980 n. 10 p. 227-238. apud AMORIN, Suely Teresinha Shmidt. Alimentação infantil, marketing e poder econômico: mudanças e permanências no Brasil (1960- 1985). Curitiba, 2004. Dissertação de Doutorado em História. Universidade Federal do Paraná, p. 2 SANTOS, Carlos R. A.Por uma história da alimentação. História: Questões e Debates. Ano 14, n. 26/27, 1997, p. 155 3 JOHNSON, Richard. O que é, afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 10 4 Ibid

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  • A SOCIEDADE DE CONSUMO E AS MUDANAS NOS HBITOS ALIMENTARES: RELAES ENTRE DESENVOLVIMENTO

    TECNOLGICO, PROPAGANDA E ALIMENTAO NO BRASIL. 1940-2000

    Autora: Mayla Lenzi Goerisch Orientador: Carlos Roberto Antunes dos Santos Palavras-chave: tecnologia- hbitos alimentares- propaganda

    Este trabalho teve por objeto de estudo a compreenso das alteraes sofridas na produo de alimentos, pelo notvel desenvolvimento tecnolgico no sculo XX e a investigao do papel da propaganda na formao de hbitos alimentares condizentes com a lgica de produo industrial.

    O estudo dos hbitos e prticas alimentares insere-se no campo da Histria e Cultura da Alimentao, e vem chamando a ateno no s de historiadores e acadmicos, mas de pessoas interessadas em aprender e conhecer mais sobre a realidade alimentar, diretamente relacionada com suas vidas.

    Se a alimentao considerada, como define Garine1, um fato social total, os estudos relacionados alimentao merecem uma abordagem ampla, envolvendo a participao de historiadores, socilogos, economistas, ambientalistas, pensadores, especialistas nas reas biolgicas, pessoas ligadas a movimentos sociais e saberes populares. Como observa Santos2, os projetos que tem sido desenvolvidos no campo da Histria da Alimentao apontam na direo dos estudos e pesquisas multidisciplinares, com a integrao sendo o nico modo de enfrentar o problema de maneira positiva e construtiva(...).

    Neste sentido identificamos nossa pesquisa com a abordagem dos estudos culturais3, pela sua abertura e versatilidade terica, esprito reflexivo e importncia da crtica, entendida como o questionamento acerca do que tradies, discursos hegemnicos e prticas sociais, podem contribuir e inibir dentro dos contextos culturais. Deste ponto de vista, Johnson4 explica que os estudos culturais so um processo, uma espcie de alquimia para produzir conhecimento til: qualquer tentativa de codific-los pode paralisar suas reaes. Portanto, apesar de se ter o cuidado para construir uma pesquisa fundamentada em estudos especializados, no devemos temer em usar nosso esprito reflexivo, principalmente quando tratamos de contextos nos quais estamos inseridos e que dizem respeito ao nosso cotidiano.

    O carter utilitrio, de buscar conhecimentos que vivifiquem a experincia, motivou a escolha do tema, que se justifica na curiosidade/necessidade em saber mais sobre o que comemos. O primeiro passo foi pensar que o fato de comprarmos nossos alimentos no supermercado (hbito to consolidado em nossa cultura e que tem pouco mais de 50 anos) nos revela que nossa alimentao passa pela indstria. Neste sentido veio a pergunta: como a humanidade chegou a este nvel de industrializao? possvel traar um panorama da evoluo tcnica desde as suas origens at a contemporaneidade, tendo como pano de fundo a alimentao?

    Tentamos buscar estas respostas fazendo, no primeiro captulo da monografia, um retrospecto do desenvolvimento tcnico, para que pudssemos entender com clareza, como foi possvel ao homem ter sua vida to mediada pela tecnologia, e quais as conseqncias disso para sua alimentao. Para nos auxiliar nesta tarefa, utilizamos o

    1 GARINE, Igor. Unie anthropologie alimentaire des Franais? Ethnol. Fr, 1980 n. 10 p. 227-238. apud AMORIN,

    Suely Teresinha Shmidt. Alimentao infantil, marketing e poder econmico: mudanas e permanncias no Brasil (1960-1985). Curitiba, 2004. Dissertao de Doutorado em Histria. Universidade Federal do Paran, p. 2 SANTOS, Carlos R. A.Por uma histria da alimentao. Histria: Questes e Debates. Ano 14, n. 26/27, 1997, p. 155

    3 JOHNSON, Richard. O que , afinal, Estudos Culturais? Belo Horizonte: Autntica, 2006, p. 10

    4 Ibid

  • conceito de tcnica formulado por Ortega y Gasset5, que consiste na capacidade humana de reformar a natureza, conseguindo que nela existam coisas que no se encontram dadas, possibilitando a realizao de necessidades e proporcionado ao homem bem estar. Sob esta perspectiva, o homem no apenas habita, faz a moradia, no simplesmente alimenta-se, cozinha.

    Com o desenvolvimento da tcnica, a viso do homem sobre seu poder de reformar a natureza na direo de seus desejos vai modificando-se, dado que as necessidades e entendimentos do que o bem estar tambm se modificam. Flandrin6, Montanari7 e Armesto8 so autores que nos auxiliam a reconhecer estas mudanas, desenvolvimentos, usos e representaes da alimentao nos diferentes contextos histricos. Suas pesquisas detalhadas e profundas, apoiadas numa extensa gama de documentos, nos permitiram vislumbrar sob o vis da alimentao, como a tcnica sistematizou-se em tecnologia e o que isso determinou aos hbitos alimentares.

    O segundo captulo desta pesquisa tratar especificamente da alimentao no contexto tecnolgico contemporneo, aonde se verificam importantes transformaes no modo de produo e consumo de alimentos no Brasil. Para atingir o objetivo de compreender o estado da alimentao neste contexto, nos apoiamos em autores que procurassem mostrar as realidades do modo de produo industrial, estando diretamente engajados ao tema: Shiva9, agricultora indiana (que tambm fsica e filsofa), alertar para os perigos da monocultura, que reduz no s a variedade das culturas alimentares, mas tambm das formas de expresso tradicionais e locais, centralizando os meios de produo e construindo um sistema de agricultura no renovvel, extremamente danoso ao meio ambiente. Os jornalistas Pollan10 e San Martin11, atravs de suas investigaes de campo, nos mostraro as realidades medonhas dos sistemas de agricultura e pecuria industrial, bem como os desdobramentos destas prticas no contexto do trabalho rural brasileiro. Jos Lutzemberger12, ambientalista, ir expor a questo da dicotomia Homem/Natureza, expressa pelo desenvolvimento cientfico e como esta forma de pensar e agir tem posto em risco a sustentao natural do planeta. Gilberto Dupas13, economista e Jean Baudrillard, socilogo, discutiro a questo da nova sociedade de consumo que sustenta uma indstria baseada na constante inovao e sucateamento de bens e hbitos, que encontrar no sculo XX, o contexto ideal para estabelecer-se. Noam Chomsky14, ativista poltico e professor, apontar para a questo do domnio hegemnico do capital industrial na definio de polticas pblicas, analisando como a busca pela lucratividade privada no contexto neoliberal tem inibido o desenvolvimento independente dos pases, trazendo nefastas conseqncias para os pases do Terceiro Mundo.

    No terceiro captulo trataremos do uso intensivo da propaganda para educar a populao a adquirir hbitos condizentes com a sustentao da lgica industrial. Para isso utilizaremos como fonte de pesquisa, anncios publicitrios publicados em revistas populares brasileiras, como Cruzeiro, Selees e Manchete, abrangendo as dcadas de 1940 1980 e VIP e Cludia de 1990 2000. Escolhemos estas revistas, pois achamos que elas definiam importantes aspectos das pocas: a Selees e a Cruzeiro so revistas direcionadas famlia, contm uma esttica tradicional e as propagandas so em sua maioria desenhadas. J a Manchete contm muitas fotos, caracterizando os anos 70,

    5 ORTEGA Y GASSET, Jos. Meditao sobre a tcnica. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1991, p. 13

    6 FLANDRIN, Jean- Louis; MONTANARI, Massimo. Histria da Alimentao. So Paulo: Liberdade, 1998

    7 Ibid

    8 ARMESTO, Felipe F. Comida, uma histria. Rio de Janeiro: Record, 2004

    9 SHIVA, Vandana. Monoculturas da Mente. So Paulo: Gaia, 2003

    10 POLLAN, Michael. O dilema do onvoro: uma histria natural de quatro refeies. Rio de Janeiro: Intrnseca, 2006

    11 SAN MARTIN, Paulo. Agricultura suicida - Um retrato do modelo brasileiro. So Paulo: cone, 1985

    12 LUTZEMBERGER, Jos A. Fim do futuro? Manifesto ecolgico brasileiro. Porto Alegre: Contexto

    13 DUPAS, Gilberto. O mito do progresso. So Paulo: UNESP, 2006

    14 CHOMSKY, Noan. O lucro ou as pessoas? Neoliberalismo e ordem global. Rio de Janeiro:Bertrand,2006

  • menos dirigida famlia e sua temtica central so as atualidades. A VIP e a Claudia so marcos dos anos 1990, pois so extremamente direcionadas, uma para homens e outra para mulheres, sendo ambas muito interessantes para perceber os universos feminino e masculino, apartados da configurao tradicional familiar. De acordo com Alves15, na anlise de um documento preciso considerar no apenas o explicito no discurso, mas o que est subentendido, sua subjetividade. Foucault16 aponta que por mais simples e desinteressado que o discurso e suas conseqncias nos paream um enunciado sempre um acontecimento que nem a lngua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Embora o enunciado esteja ligado escrita ou a fala, conecta-se a uma memria e forma de registro; est sujeito a repetio, transformao, reativao, e nunca est desligado do objetivo de sua enunciao. A publicidade infantil mostrou-se uma fonte rica para observarmos estas proposies. Uma pesquisa do IDEC17 relata que o pblico infantil sofre uma exposio mdia de 30 mil mensagens publicitrias por ano, 80 por dia; estas mensagens, que em sua maioria so de produtos alimentcios, influenciam sobremaneira o cotidiano alimentar das crianas. Propagandas como a da bolacha Trakinas chegam deliberadamente as ensinar a manipular os pais, para que comprem o biscoito. Mais praticidade, melhor sabor, mais economia; a propaganda oferece sempre mais e melhor: como resume Lifschitz18, ao apropriar-se de coordenadas culturais a publicidade converge s necessidades humanas para uma lgica baseada na satisfao pela compra.

    O que se conclui a partir das questes levantadas pela presente pesquisa, que a alimentao, como diversos aspectos da vida cotidiana, est intimamente ligada ao advento industrial, que repousa sua lgica no sucateamento e incremento de novos hbitos de consumo, tendo em vista o crescente lucro privado. A industrializao, em nome de uma cultura do conforto tecnolgico, nos poupa ver e conhecer o que comemos, como produzido o alimento, seu impacto sobre o meio, sua verdadeira relao com a vida. Como aponta Weber19, a louvvel racionalidade, o desejvel progresso tecnolgico legitima a operao de um sistema hegemnico- nesse universo de tecnologia, a falta de liberdade se apresenta sob a forma de uma submisso aparelhagem tcnica que d mais conforto existncia e aumenta a produtividade no trabalho. Assim, a racionalidade tcnica no pe em causa a legitimidade da dominao; ao contrrio, ela a defende num contexto de uma sociedade racionalmente totalitria. A propaganda tem um importante papel nesta sociedade, pois fornece o substrato ideolgico para que as pessoas cooperem com um sistema que no tem beneficiado grande parte das pessoas do mundo. Segundo dados do Banco Mundial20 74% da populao do planeta vive na pobreza, desfrutando de pssimas condies estruturais, vivendo em violncia, insalubridade e dor. O princpio do progresso tecnolgico de satisfazer as necessidades do homem, trazendo-lhe bem estar, no tem sido desfrutado democraticamente, pelo contrrio, tem sido uma arma de excluso, pondo em risco a sade das pessoas e do meio ambiente. O que fica de mais importante a partir do que foi pesquisado nesta monografia, que entender a realidade exige enfrentar a crena comum dos discursos hegemnicos e da imposio de valores sobre o sentido da prpria liberdade e da felicidade. Para tanto, so necessrias a observao e a interpretao, s possveis atravs da capacidade de observar.

    15 ALVES, Paulo. Perspectivas acerca do mtodo e tcnica de anlise dos discursos. So Paulo. Histria, v.2,

    1983, p. 33-37 16

    FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Petrpolis: Vozes, 1972, p. 40 17

    Instituto de Defesa do Consumidor (online) www.idec.org.br/. Acessado em 31/10/08 18

    LIFSCHITZ, Javier Alejandro . O Alimento-signo nos novos padres alimentares. Revista Brasileira de Cincias Sociais, Rio de Janeiro, v. 27, p. 150-159, 1995 19

    WEBER, Max. Cincia e Poltica: duas vocaes. So Paulo: Cultrix, 1993 20

    DUPAS, Gilberto. O mito do progresso. So Paulo: UNESP, 2006, p. 151