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64 Documento Maurício Tragtenberg Fernando C. Prestes Motta Professor do Departamento de Administração Geral e Recursos Humanos da FGV-EAESP. E-mail: [email protected] MAURÍCIO TRAGTENBERG: DESVENDANDO IDEOLOGIAS Maurício Tragtenberg não foi apenas um grande so- ciólogo, foi também um dos fundadores mundiais da teoria crítica das organizações, hoje um campo prolífero em vários países. A produção acadêmica de Maurício guarda uma grande especificidade: em primeiro lugar, quebra o tabu de trabalhar Marx e Weber em um mesmo texto; em segundo lugar, rompe com o marxismo orto- doxo, em direção a um marxismo “autogestinário”, em que a influência de várias tendências se faz sentir, inclu- sive as anarquistas. Marx é para Maurício o teórico por excelência da estrutura, da base econômica, enquanto Weber é por ex- celência o teórico da superestrutura política e ideológi- ca da sociedade. Antes de Tragtenberg, e dos primeiros que lhe seguiram os passos, isso era uma blasfêmia. Uma tese, por exemplo, tinha que ser totalmente e exclusiva- mente weberiana. Esse duplo uso fica claro, por exem- plo, no mais importante de seus livros, Burocracia e ide- ologia, publicação de sua tese de doutoramento na USP, que rompe com inúmeros preconceitos e lança as se- mentes de muitas teorizações posteriores (Tragtenberg, 1974). O livro trata das teorias administrativas como ideo- logias da burocracia e funda esta última no modo de pro- dução asiático. Pouquíssimas pessoas tinham teorizado sobre esse modo de produção, e o estudo de Maurício abriu caminho para que muitos trabalhassem nessa li- nha de reflexão. Os capítulos mais importantes do livro são todos os seus capítulos. Maurício trabalha na linha de erudição que lhe era própria, tanto no “Modo de Pro- dução Asiático” quanto em “As Harmonias Administra- tivas de Saint-Simon a Elton Mayo”, assim como no capítulo sobre Weber, sobre a “Crise da Consciência Liberal Alemã” e em “Burocracia: da Mediação à Do- minação”. Foi um grande golpe na mainstream da teoria organizacional e a semente da teoria crítica no Brasil. Outros livros de Maurício Tragtenberg sobre parti- cipacionismo e sobre educação também são relevantes para a teoria organizacional. É interessante lembrar A delinqüência acadêmica: o poder sem saber e o saber sem poder e o ensaio “A escola como organização com- plexa”. Em alguns desses trabalhos, aparece o Maurí- cio mais acadêmico, em outros, o Maurício mais mili- tante. Sempre, porém, o Maurício estudioso e erudito (Tragtenberg, 1976, 1979). O que nem sempre fica claro é o Maurício bondoso, que distribuía referências bibliográficas entre os cole- gas e alunos, até quando estes não as pediam. Por vezes, as referências vinham acompanhadas do nome da livra- ria e da localização em suas estantes. MARCOU A TODOS O MAURÍCIO BONDOSO, QUE DISTRIBUÍA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ENTRE OS COLEGAS E ALUNOS, ATÉ QUANDO ESTES NÃO AS PEDIAM. RAE - Revista de Administração de Empresas Jul./Set. 2001 São Paulo, v. 41 n. 3 p. 64-68

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Mauricio Tragdenberg foi sociólogo e um dos fundadores mundiais da teoria crítica das organizações.

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64 RAE • v. 41 • n. 3 • Jul./Set. 2001

Documento

Maurício Tragtenberg

Fernando C. Prestes MottaProfessor do Departamento de Administração Geral

e Recursos Humanos da FGV-EAESP.E-mail: [email protected]

MAURÍCIO TRAGTENBERG:DESVENDANDO IDEOLOGIAS

Maurício Tragtenberg não foi apenas um grande so-ciólogo, foi também um dos fundadores mundiais dateoria crítica das organizações, hoje um campo prolíferoem vários países. A produção acadêmica de Maurícioguarda uma grande especificidade: em primeiro lugar,quebra o tabu de trabalhar Marx e Weber em um mesmotexto; em segundo lugar, rompe com o marxismo orto-doxo, em direção a um marxismo “autogestinário”, emque a influência de várias tendências se faz sentir, inclu-sive as anarquistas.

Marx é para Maurício o teórico por excelência daestrutura, da base econômica, enquanto Weber é por ex-celência o teórico da superestrutura política e ideológi-ca da sociedade. Antes de Tragtenberg, e dos primeirosque lhe seguiram os passos, isso era uma blasfêmia. Umatese, por exemplo, tinha que ser totalmente e exclusiva-mente weberiana. Esse duplo uso fica claro, por exem-plo, no mais importante de seus livros, Burocracia e ide-

ologia, publicação de sua tese de doutoramento na USP,que rompe com inúmeros preconceitos e lança as se-mentes de muitas teorizações posteriores (Tragtenberg,1974).

O livro trata das teorias administrativas como ideo-logias da burocracia e funda esta última no modo de pro-dução asiático. Pouquíssimas pessoas tinham teorizadosobre esse modo de produção, e o estudo de Maurícioabriu caminho para que muitos trabalhassem nessa li-nha de reflexão. Os capítulos mais importantes do livrosão todos os seus capítulos. Maurício trabalha na linhade erudição que lhe era própria, tanto no “Modo de Pro-dução Asiático” quanto em “As Harmonias Administra-tivas de Saint-Simon a Elton Mayo”, assim como nocapítulo sobre Weber, sobre a “Crise da ConsciênciaLiberal Alemã” e em “Burocracia: da Mediação à Do-minação”. Foi um grande golpe na mainstream da teoriaorganizacional e a semente da teoria crítica no Brasil.

Outros livros de Maurício Tragtenberg sobre parti-cipacionismo e sobre educação também são relevantespara a teoria organizacional. É interessante lembrar Adelinqüência acadêmica: o poder sem saber e o sabersem poder e o ensaio “A escola como organização com-plexa”. Em alguns desses trabalhos, aparece o Maurí-cio mais acadêmico, em outros, o Maurício mais mili-tante. Sempre, porém, o Maurício estudioso e erudito(Tragtenberg, 1976, 1979).

O que nem sempre fica claro é o Maurício bondoso,que distribuía referências bibliográficas entre os cole-gas e alunos, até quando estes não as pediam. Por vezes,as referências vinham acompanhadas do nome da livra-ria e da localização em suas estantes.

MARCOU A TODOS

O MAURÍCIO BONDOSO,QUE DISTRIBUÍA REFERÊNCIAS

BIBLIOGRÁFICAS ENTRE OS

COLEGAS E ALUNOS, ATÉ

QUANDO ESTES NÃO AS PEDIAM.

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No início dos anos 70, tive um esgotamento que tor-nava difícil a tarefa de dar aulas. Maurício soube, orga-nizou um grupo de professores do qual faziam parteLiliana Segnini e Lúcia Bruno, e o curso foi dado.

Também nem sempre fica claro o Maurício provoca-dor. Certa vez, eu era professor da Escola de Adminis-tração de Empresas de São Paulo da Fundação GetulioVargas e fazia também o doutorado. Tinha, como Mau-rício, um contato muito grande com os alunos de gradu-ação. Alguns deles me disseram que faziam um cursomuito interessante com Tragtenberg. Resolvi assistir auma aula. Acho que escolhi um mau dia, pois o profes-sor passou uma “bronca” nos alunos, por causa do nú-mero de faltas, e o clima não era dos mais amigáveis.De qualquer forma, logo que a aula começou, resolvidiscordar dele citando Gramsci. Maurício me olhou edisse: “Você não leu Proudhon nem Bakounine, como éque quer discordar?” Proudhon foi o objeto da minhatese de doutorado e Maurício estava na banca. A notafoi dez.

É muito difícil indicar as influências de Maurício emminha obra. Às vezes, a influência parece muito forte,outras vezes, quase nenhuma. Freqüentemente, come-çávamos a nos interessar por um determinado tema, semque tivéssemos nenhum contato prévio. No entanto, exis-te uma marca indiscutível de sua influência na maioriados meus trabalhos – que varia de intensidade, mas queestá sempre presente. Felizmente posso dizer que a marcamais intensa está no livro que mais aprecio, intituladoOrganização e poder: empresa, Estado e escola.

Na trilha aberta por Claude Lefort – que, em Ele-mentos de uma crítica da burocracia, sustenta que estaúltima é um grupo social que faz prevalecer um certotipo de organização, consoante o estado da técnica eda economia, que só é o que é em função de uma ativi-dade social e que implica um sistema de condutas sig-nificativas –, procuro explorar a hipótese de que a tec-noburocracia é uma classe social constitutiva do capi-talismo, que vive para a manutenção e ampliação deseu próprio poder, que faz prevalecer um tipo de orga-nização em constante mutação, com marcos claros nasdiversas formas de cooperação que caracterizam o ca-pitalismo: manufatura e indústria (Marx) e automação(Naville); que tem seu campo de existência determina-do pelas condições gerais de produção e pela gestãodos processos particulares de fabrico (João Bernardo);que apresenta uma certa homologia com a organizaçãopré-capitalista derivada da cooperação simples (Marx,Tragtenberg), isto é, com a burocracia patrimonial(Weber, Balazs); que tem na teoria das organizaçõesconvencional (mainstream), produzida nos países desen-

volvidos, a expressão ideológica mais clara de sua práti-ca e que se reproduz enquanto classe, primordialmente,via capital cultural objetivado e capital social (Bourdieu),de onde decorre o valor de posição da escola, tanto pelaestratégia de reprodução quanto pela naturalidade desua dominação (Lefort, 1970).

Entendo que o método da análise é fundamentalmentemarxista, fazendo de Marx uma leitura autonomista e,para tanto, recorrendo a pensadores como João Bernardo,Mário Tronti, Antonio Negri, Claude Berger e outrosmenos comprometidos com Marx, como Castoriadis eGuattari. Entretanto, como, a meu ver, o marxismo ain-da não desenvolveu instrumentos adequados à análisesuperestrutural, recorro, para esse fim, e só nesse aspec-to, a autores como Weber, Bourdieu e outros (Motta,1986). Ainda assim, a utilização de referenciais teóri-cos tão diversos é pelo menos tão heterodoxa quanto otema tratado.

Maurício dizia que só os medíocres procuram discí-pulos. De fato, ele não os teve, mas teve amigos que mar-cou profundamente. Notam-se essas marcas no percursode vários intelectuais que tiveram ou não contato diretocom ele. Entre elas, uma especialmente forte está na-quilo que considero a verdadeira tese de seu livro Buro-cracia e ideologia, expressa da seguinte maneira: “ATeoria Geral da Administração é ideológica, na medidaem que traz em si a ambigüidade básica do processoideológico, que consiste no seguinte: vincula-se às de-terminações sociais reais, enquanto técnica (de trabalhoindustrial, administrativo, comercial) por mediação dotrabalho e afasta-se dessas determinações sociais reais,compondo-se num universo sistemático organizado, re-fletindo deformadamente o real, enquanto ideologia”(Tragtenberg, 1974, p. 89).

Recentemente, no XXIV Enanpad, em 2000, AnaPaula Paes de Paula apresentou um ensaio baseado nes-sa tese, procurando mostrar, entre outras coisas, a atua-

Maurício Tragtenberg: desvendando ideologias

MAURÍCIO DIZIA QUE SÓ

OS MEDÍOCRES PROCURAM

DISCÍPULOS. DE FATO, ELE

NÃO OS TEVE, MAS TEVE

AMIGOS QUE MARCOU

PROFUNDAMENTE.

©2001, RAE - Revista de Administração de Empresas/FGV/EAESP, São Paulo, Brasil.

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Maurício Tragtenberg

lidade daquilo que Maurício fez com relação à EscolaClássica e à Escola de Relações Humanas, teorias doinício do século, análise dos anos 70.

Paes de Paula revisita o pensamento de Tragtenberg,formulando quatro teses que utiliza como referênciaspara analisar o que chama “novas” teorias administrati-vas e realidades organizacionais. É a partir de tais tesesque procura demonstrar que tanto o “fordismo” quantoo “toyotismo” refletem interesses socioeconômicos do-minantes, além de possuírem caráter ideológico – já quesuas idéias e práticas endossam tais interesses –, aomesmo tempo em que amenizam as tensões entre capi-tal e trabalho, perpetuando o que Maurício chama deideologia da “harmonia administrativa”, que ele vê nas-cer em Saint-Simon, no século XIX.

Da mesma forma, a burocracia também adaptou-seàs condições da época, tornando-se mais flexível paraatender às demandas mais recentes da tecnologia e domercado, criando novos instrumentos de controle e tor-nando-se mais sofisticada enquanto aparelho ideológi-co reprodutor da dominação, dando origem, desse modo,a uma nova noção de burocracia – a burocracia “flexí-vel” –, e não a uma organização pós-burocrática ou pós-moderna.

O pensamento de Maurício Tragtenberg revela-seextremamente forte para a análise da evolução da so-ciedade e da economia mundial após a hegemonia do“taylorismo” e da escola de relações humanas, bem comodos modelos administrativos gerados nesses anos.“Fordismo” e “Toyotismo” refletem os interesses domi-nantes além de exibirem um claro caráter ideológico.Elaboram, como indiquei, idéias e práticas que legiti-mam esses interesses e tornam mais amenas as tensões

entre capital e trabalho que caracterizam toda a históriado capitalismo. Do mesmo modo, seguindo a linha deSaint-Simon, Taylor e Fayol e Elton Mayo, perpetuam aideologia da “harmonia administrativa”.

Paes de Paula sublinha o fato de as idéias “toyotistas”serem um desenvolvimento de teorias administrativasantigas, sendo inadequado para elas o adjetivo “pós-fordistas”. Tais idéias e teorias obedecem a um princí-pio genético. Da mesma forma que as idéias, modelos eteorias, a burocracia adaptou-se aos novos tempos, comojá afirmei, tornando-se mais flexível para fazer face àsmudanças na tecnologia e no mercado, aperfeiçoando ecriando instrumentos de controle e tornando-se um apa-relho ideológico de dominação na sociedade extrema-mente sofisticado e originando a “burocracia flexível”,noção que nos ajuda a pensar nas transformações porque passa tal fenômeno desde Max Weber, mesmo que aleitura atenta desse sociólogo mostre que o fenômenoem sua essência seja o mesmo.

A propagação da falácia da “desburocratização”,que tanto encantou burocratas de todos os níveis e es-calões, seja na área pública, seja na área privada, aoconcentrar-se no formalismo e impessoalidade, carac-terísticas do tipo ideal de Max Weber, desviou a aten-ção para o que há de mais precioso no seu pensamentoem termos de sociologia da dominação, isto é, a buro-cracia como dominação. Trata-se de uma nova opera-ção ideológica que busca a maximização da “harmoniaadministrativa”.

A atualidade do pensamento de Tragtenberg é a atu-alidade de todas as suas qualidades intelectuais e huma-nas. Essencial a sua luta contra a dominação e a explo-ração. É por esta razão que sua obra é tão necessáriapara refletir sobre as possibilidades de emancipaçãohumana e sobre as possibilidades de construção de umasociedade igualitária e justa. Da mesma maneira, sua obraé essencial para se pensar a verdadeira democratizaçãodas relações de trabalho.

A História está sempre nos colocando novas realida-des, a Ciência e a tecnologia nos atropelam com seusavanços, a construção de uma sociedade democrática ésempre algo almejado, mas difícil. A questão da liber-dade, há séculos desafiando e encantando os estudiosos,começa a ganhar um novo interesse, diante de todos osnovos fenômenos. A emancipação virá após alcançar-mos novos e mais altos patamares científicos e tecnoló-gicos? A resposta a essa questão é muito mais complexado que muitas formas de compreensão de nossa realida-de parecem sugerir. Para Paes de Paula, ela depende detranscender a noção de democracia como consenso, pen-sando-a como conflito, como uma participação verda-

O PENSAMENTO DE MAURÍCIO

TRAGTENBERG REVELA-SE

EXTREMAMENTE FORTE PARA

A ANÁLISE DA EVOLUÇÃO DA

SOCIEDADE E DA ECONOMIA

MUNDIAL APÓS A HEGEMONIA

DO “TAYLORISMO” E DA ESCOLA

DE RELAÇÕES HUMANAS.

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deira no processo de tomada de decisões, bem como napartilha de poder.

Deve-se considerar também que a dificuldade de seconquistar a emancipação no interior das organizaçõestem provocado sua busca no âmbito extra-organizacio-nal. Visões alternativas da emancipação humana vão ga-nhando espaço como a sociedade do “ócio criativo” e aideologia do “empreendedorismo”, mas elas precisamser pensadas com cautela. A primeira entende que tere-mos todo o tempo livre para o ócio e a criatividade, gra-ças ao desenvolvimento da Ciência e da tecnologia. Fun-damenta-se na noção de Marx, segundo a qual o desen-volvimento das forças produtivas poderia tornar o tra-balho uma atividade lúdica. Maurício também usou Marxpara tratar da mesma questão, sendo porém mais fiel àperspectiva marxista. A tecnologia, segundo ele, não se-ria suficiente para libertar o trabalhador. A emancipa-ção refere-se diretamente ao modo como as forças soci-ais se relacionam, que pode resultar tanto em opressãoquanto em libertação.

A segunda visão, do “empreendedorismo”, vê a li-berdade no autogerenciamento. É a idealização do tra-balho autônomo. Técnicas e idéias anteriormente cir-cunscritas ao treinamento empresarial são agora dispo-níveis a qualquer interessado, exacerbando o individua-lismo e criando uma falsa sensação de liberdade. Essaideologia contribui para a desmobilização política, afas-tando-nos das vias de democratização.

A opressão não encontra qualquer lugar na obra deTragtenberg. Não conheço crítica mais tenaz. Hierarquiasexplícitas e disfarçadas não encontram guarida. É bempossível que o maior legado de sua obra seja a esperan-ça por trás do alerta para as armadilhas ideológicas quenos desviam da liberdade, pela “falácia da harmonia”(Paes de Paula, 2000). As formas ritualistas, pobres emconteúdo, seja na escola, na empresa ou na sociedade, opoder sem saber e o saber sem poder, eram tratados deforma irônica e mordaz por Maurício, que procuravasempre as relações sociais reais escondidas na ideologiae em seus mecanismos.

Nas palavras de Liliana Segnini (1999), “a denúnciadas formas de opressão, dominação e exploração e a pro-cura do conhecimento que funda a solidariedade tece-ram a vida de Maurício, como intelectual ou amigo, paiou companheiro, professor ou militante”. Ciência e com-promisso eram para ele sinônimos, entendido o com-promisso como ético, como busca da transformação domundo. Era intransigente nesse sentido: nunca cooptoua ciência que não tivesse como horizonte a elevação dacondição humana, a dignidade do homem.

Indignava-se diante da ideologia do poder e inovava

nas formas de reflexão, bem como no tratamento teóri-co, para denunciar os impedimentos e para que os se-res humanos tomassem em suas mãos as decisões re-ferentes aos seus destinos. Sua própria vida foi assimconstruída desde a infância no Rio Grande do Sul, atéSão Paulo, onde passou toda a sua vida adulta.

Neto de imigrantes judeus vindos da Ucrânia, Mau-rício Tragtenberg tinha na memória de sua família osprogroms e viveu a realidade da pequena propriedadee da cultura de subsistência, cujo excedente era vendi-do na cidade. Com outras famílias judias, participou,ainda criança, de uma experiência baseada no apoiomútuo e na solidariedade, cuja inspiração vinha da re-volução “autogestionária maknovista” na Ucrânia. Fo-ram valores que sempre o acompanharam e que trans-mitiu aos que tiveram a felicidade de com ele convi-ver.

Era um apaixonado pelo conhecimento, lia sistema-ticamente e apreciava a discussão crítica. Não cursou aescola de forma regular, mas, por indicação de AntônioCândido, pôde apresentar uma monografia à Faculdadede Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universida-de de São Paulo. Com isso, tornou-se historiador. Diziaque era o que era graças às “universidades” que cursara,isto é, às discussões de leituras que começaram à luz devela no Sul, em meio aos camponeses, quando liamBakounine, Kropotkine, Tolstoi e tantos outros.

Na verdade, essa prática jamais foi abandonada e seprolongou com sapateiros, vidraceiros, motorneiros emuitos outros do PCB e do PSB, além de anarquistas,professores e jornalistas – enfim, com quem lhe possi-bilitasse acesso a uma boa leitura ou a um bom debate.Nessa trajetória, foi de especial importância a famíliaAbramo, como Maurício sempre destacou.

Como cientista social, que foi, de fato, como aca-bou sendo conhecido, Tragtenberg foi professor, pes-quisador e jornalista. Ministrou aulas em várias esco-

Maurício Tragtenberg: desvendando ideologias

A ATUALIDADE DO PENSAMENTO

DE TRAGTENBERG É A ATUALIDADE

DE TODAS AS SUAS QUALIDADES

INTELECTUAIS E HUMANAS.ESSENCIAL A SUA LUTA CONTRA

A DOMINAÇÃO E A EXPLORAÇÃO.

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Maurício Tragtenberg

las e estabelecimentos de ensino superior, bem comoem escolas públicas de 2º grau. Boa parte de sua vidaacadêmica relacionou-se com a Pontifícia Universida-de Católica de São Paulo, com a Universidade Estadu-al de Campinas e com a Fundação Getulio Vargas, emSão Paulo. A generosidade marcava sua relação comos alunos e com os colegas. Com freqüência, ao en-contrar um mestrando ou um doutorando, lembrava-sede seu tema de dissertação ou tese e acrescentava refe-rências bibliográficas.

Burocracia e ideologia, seu livro ao qual já me refe-ri e que, a meu ver, merece um destaque especial, foipublicado em 1973. Foi um trabalho pioneiro na cons-trução de uma abordagem crítica das instituições e or-ganizações burocráticas. Ali estão desvendadas as for-mas de dominação e exploração engendradas em dife-rentes momentos históricos com vistas ao exercício dopoder.

Como tive oportunidade de salientar, Maurício rom-peu nessa tese com limites teóricos anteriormente “sa-grados”, construindo um diálogo entre Marx e Weber.As formas de exploração encontraram possibilidadeexplicativa em Karl Marx. As formas de dominação en-contraram possibilidade explicativa em Max Weber, sejanas organizações capitalistas, seja nas então organiza-ções comunistas. Estudou o poder enquanto burocracia,de forma minuciosa, desde o modo de produção asiático,sobre o qual sua obra é pioneira no Brasil, até as propos-

GARCIA, Walter E. (Org.) . Educação brasi leiracontemporânea: organização e funcionamento. SãoPaulo : McGraw Hill do Brasil, 1976.

LEFORT, Claude. Que és la burocracia. Paris : RuedoIbérico, 1970.

MOTTA, Fernando C. Prestes. Organização e poder:empresa, Estado e escola. São Paulo : Atlas, 1986.

PAES DE PAULA, Ana Paula. Tragtenberg revisitado:as inexoráveis harmonias administrat ivas. In:ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃONACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃOEM ADMINISTRAÇÃO, 24., 2000, Florianópolis. Anais...Florianópolis : Anpad, 2000.

SEGNINI, Liliana Roelfsen Petrilli. Maurício Tragtenberg:intelectual intransigente e amigo generoso. Conferênciaproferida na ANPED, 1999. (Mimeo).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TRAGTENBERG, Maurício. Burocracia e ideologia. SãoPaulo : Ática,1974.

TRAGTENBERG, Maurício. A delinqüência acadêmica:o poder sem saber e o saber sem poder. São Paulo :Rumo, 1979.

TRAGTENBERG, Maurício. Administração, poder eideologia. São Paulo : Moraes, 1980.

tas participacionistas. Foi um dos mais profundos conhe-cedores da obra de Weber no país, sem se restringir a serum especialista.

Como relata Liliana Segnini (1999), nunca foi umintelectual ortodoxo. Jamais se contentou com respos-tas previamente elaboradas para problemas sociais com-plexos. Era comprometido com o trabalho do pensamen-to. Inquieto, foi um dos primeiros a analisar o regimesoviético como opressor. Para ele, o “stakanovismo” nãosignificava nada mais que a transposição do “taylorismo”e seus controles para a União Soviética, contexto que sepretendia “proletário”.

Em Administração, poder e ideologia, publicado em1980, analisou as propostas de co-gestão, que, ironica-mente, denominou “Alice no País das Maravilhas”, pois,concordando com Jenkis, o citava para afirmar: “cederum pouco de poder aos trabalhadores pode ser um dosmelhores meios de aumentar sua sujeição, se isto lhesder a impressão de influir sobre as coisas” (Tragtenberg,1980).

Finalmente, Maurício Tragtenberg foi um dos pri-meiros intelectuais do nosso país a romper com as orto-doxias marxistas, as quais passou a compreender comofonte de opressão. Todavia, jamais se distanciou das lei-turas dialéticas e libertárias de Marx. Era um intelectualheterodoxo. Seu único compromisso era com a justiçasocial, com a melhoria da condição humana (Segnini,1999). �