matemática e imaginação - edward kasner

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Biblioteca de Cultura Científica EDWARD KASNER JAMES NEWMAN Matemática Imaginação e

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Page 1: Matemática e Imaginação - Edward Kasner

Biblioteca de Cultura Científica

EDWARD KASNER JAMES NEWMAN

Matemática

Imaginação e

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MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Um livro de haute vulgarisation — expressão que os autores tomam alegre­mente do vocabulário francês para qua­lificar o seu trabalho, que é uma apre­sentação da matemática em forma res­ponsavelmente bem-humorada, isto é, uma apresentação de seus mecanismos mais fundamentais e de seus avanços mais mo­dernos sem no entanto elidir-se a sua poderosa estrutura lógica e a sua rigo­rosa conceituação científica.

Trata-se, pois, de uma tentativa perfei­tamente vitoriosa de colocar à frente do leitor as relações matemáticas mais altas e que, ao longo dos séculos, consolida­ram-se numa ciência exemplar — a ciên­cia das ciências — de que o homem se tem valido para expressar os parâmetros permanentes do pensamento exato e es­pecificamente especulativo.

A originalidade do enfoque, a precisão e leveza da linguagem, a abundância de diagramas e a imaginosidade das ilustra­ções fazem com que este livro possa ser rotulado, sem exagero, como uma via­gem maravilhosa ao universo da ma­temática, um universo composto de mun­dos autênticos, visíveis, apreensíveis, mensuráveis e coordenados para servi­rem de ampla feira de prazer intelec­tual, levando o leitor a concluir, à me­dida que avança em sua leitura, que o pensamento matemático, a partir de cer­to limite, supera o seu próprio plano lógico para desaguar no reino da poe­sia, onde tudo é lei e liberdade, para além da própria intuição.

EDWARD KASNER foi Professor de Matemática na Universidade Colúmbia, de Nova York, tendo sido membro da Academia Nacional de Ciências dos Es­tados Unidos.

JAMES N E W M A N ensina na mesma Universidade, é redator-chefe da famo­sa revista Scientific American e autor de The World of Mathematics, obra monumental, em quatro volumes, reu­nindo escritos dos mais famosos mate­máticos de todos os tempos.

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M A T E M Á T I C A E I M A G I N A Ç Ã O

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B I B L I O T E C A D E C U L T U R A C I E N T Í F I C A

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EDWARD KASNER e JAMES NEWMAN

M A T E M Á T I C A E

I M A G I N A Ç Ã O

Tradução de

JORGE FORTES

Z A H A R E D I T O R E S

RIO DE JANEIRO

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Titula original: Mathematics and the Imagination

Traduzido da sexta impressão, publicada em 1961 por G. Bell and Sons, Ltd., Londres, Inglaterra.

Com desenhos e diagramas de RUFUS ISAACS

capa de É R I C O

1968

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por Z A H A R E D I T O R E S

que se reservam a propriedade desta tradução

Impresso no Brasil

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ÍNDICE

INTRODUÇÃO 13

I . N O V O S N O M E S E M L U G A R DOS V E L H O S 17

Palavras fáceis para idéias difíceis . . . Transcendental . . . Curva não-simples . . . Curva simples . . . Grupo simples . . . Bolchevistas e girafas . . . Turbinas . . . Giros e deslizes . . . Círculos e ciclos . . . Patocírculos . . . Relógios . . . Hexá-gonos e parexágonos. Radicais, hiper-radicais e ultra-radi-cais _ (não-políticos) . . . Novos números no Jardim de In­fância . . . Gugol e gugolplex . . . Milagre do livro que se eleva . . . O matescópio.

I I . ALÉM D O G U G O L 3 8

Contagem — a linguagem do número . . . Contar, casar e "Caminho de Jerusalém" . . . Números cardinais . . . Xadrez cósmico e gugóis . . . O contador de areia . . . Indução ma­temática . . . O infinito e sua progénie . . . Zenão . . . Cha­radas e discussões . . . Bolzano . . . Charada de Galileu . . . Cantor . . . Medindo o aparelho de medida . . . O todo não é maior que algumas de suas partes . . . O primeiro trans-finito — Álefe0 . . . Aritmética dos débeis mentais . . . O bom senso bate num tronco . . . Cardinalidade do contínuo . . . Extravagâncias de um matemático louco . . . A tartaruga sem máscara . . . Noção de ausência de movimento . . . Vida privada de um número . . . A casa construída por Cantor.

I I I . v , i, e (PIE) 72

Vendedores de louça e candelabros . . . Crepúsculo do bom senso . . . TI-, i, e . . . A quadratura do círculo e seus primos . . . Impossibilidade matemática . . . Bolsa de seda, orelha de porco, régua e compasso . . . Rigor mortis ... Equações algébricas e números transcendentais . . . Galois e epidemia grega . . . Duplicadores do cubo e trissecionadores do ân­gulo . . . Biografia de ^ · · - Infância: Arquimedes, a Bíblia, os egípcios . . . Adolescência: Vieta, Van Ceulen . . . Matu­ridade: Wallis, Newton, Leibnitz . . . Velhice: Dase, Richter, Shanks . . . Vítima da esquizofrenia . . . Presente para as

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6 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

companhias de seguro . . . (e) . . . Logaritmos ou artifícios do negócio . . . O Sr. Briggs fica surpreso . . . O Sr. Napier explica . . . Biografia de e: ou e, o presente do banqueiro . . . Glândula pituitária da Matemática: a função exponen­cial . . . (i) . . . O Ôvo, doutor em semântica . . . Números imaginários . . . A V — 1, ou "Onde estou?" . . . Biografia de i, o anfíbio que se fez a si mesmo . . . Omar Khayyam, Cardan, Bombelli e Gauss . . . i e a Rússia Soviética . . . Música de concerto da Matemática . . . Desjejum na cama; ou, Como se tornar um grande matemático . . . Geometria analítica . . . Representação geométrica de i . . . Plano com­plexo . . . Uma fórmula famosa, fé e humildade.

I V . G E O M E T R I A S D I V E R S A S — P L A N A E F A N T A S I A . . . 115 O peixe falante e S. Agostinho . . . Um novo alfabeto . . . Sumos sacerdotes e mambo jambo . . . Matemática pura e aplicada . . . Euclides e Texas . . . Alfaiates matemáticos . . . Geometria — um jogo . . . Fantasmas, batidas de mesa e o reino dos mortos . . . Lutadores da quarta dimensão . . . So­corro de Henry More . . . Quarta dimensão — uma nova fonte . . . Uma cura para a artrite . . . A sintaxe sofre um retrocesso . . . Dimensões e agregados . . . Fórmula da distância . . .

Escalando paredes em branco . . . Geometria quadridemensio-nal definida . . . Toupeiras e tesseratos . . . Uma fantasia quadridimensional . . . Romance da Terra Plana . . . O ga­lante Gulliver e as luvas . . . Vozes enganadoras e pegadas estranhas . . . Geometria Não-Euclidiana . . . Credos espa­ciais e chapéus . . . Espaço privado e público . . . Reescre­vendo nossos compêndios . . . O príncipe e os boécios... O flexível quinto . . . Os matemáticos se unem — nada a per­der a não ser as cadeias . . . Lobachevsky quebra um elo . . . Riemann quebra outro . . . Xadrez e duplo xadrez em Ma­temática . . . Á tratriz e a pseudo-esfera . . . Grandes círcu­los e ursos — O cético persiste e é pisoteado . . . Geo­désicas . . . Adventistas do Sétimo Dia . . . Curvatura . . . Torres Eiffel de Lobachevsky e Túneis Holandeses de Riemann.

V . PASSATEMPOS DOS TEMPOS PASSADO E P R E S E N T E 155 Bolotas quebra-cabeças e carvalhos matemáticos . . . Carlos Magno e palavras cruzadas . . . Mark Twain e "a filha do fazendeiro" . . . A sintaxe dos quebra-cabeças . . . Carolyn Flaubert e o camaroteiro . . . Um lobo, um bode e um pé de _ couve . . . Esposas e ciumentos . . . Trens e desvios . . . Poisson, o desajustado . . . Altas finanças, ou o bebedor inter­nacional de cerveja . . . Leões e jogadores de pôquer . . . O sistema decimal . . . Prova dos nove . . . Buda Deus e o sistema binário . . . A marcha da cultura; ou, Rússia, pá­tria do sistema binário . . . As argolas chinesas . . . A torre de Hanói . . . O ritual de Benares . . . Nim, Sissa Ben Dahir

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Í N D I C E 7

e Josephus . . . Bismarck banca o chefão . . . A praga do "jogo dos 15" . . . A aranha e a mosca . . . Um pesadelo do parentes . . . O quadrado mágico . . . Pense em um número de 1 a 10 — O ultimo teorema de Fermât . . . O legado per­dido da Matemática.

V I . P A R A D O X O PERDIDO E P A R A D O X O RECUPERADO . . 188

Grandes paradoxos e parentes afastados . . . Três espécies de paradoxos . . . Paradoxos estranhos mas verdadeiros . . . Rodas que se deslocam mais depressa em cima que em baixo . . . A família ciclóide . . . A maldição dos transportes; ou, Como as locomotivas não se podem decidir . . . Reforma da Geometria . . . Confusões seguintes . . . Conjuntos de pontos — M i l e Uma Noites da Matemática . . . Hausdorff engendra um grande conto . . . Os Srs. Banach e Tarski esfregam a lâmpada mágica . . . O Barão de Munchhausen é barrado por uma ervilha . . . Falsidades matemáticas . . . Confusão em uma bolha; ou, Dividindo por zero . . . O infinito — perturbador por excelência . . . Falsidades geométricas . . . Paradoxos lógicos — o folclore da Matemática . . . Dialética enganadora do caçador e do príncipe; do barbeiro intros­pectivo; de um número com um certo número de sílabas; deste livro e Confúcio; do ilustre Bertrand Russell . . . Cila e Caribde; ou, O que fará a pobre Matemática?

V I I . ACASO E P R O B A B I L I D A D E 215

O indício do taco de bilhar . . . Um pouco de giz, muita falação . . . Watson se vê apanhado pela dedução provável . . . Acha tudo absurdamente simples . . . Ostras apaixonadas, patos valsadores, e o silogismo . . . O crepúsculo da probabi­lidade . . . Comportamento interessante de uma modesta moe­da . . . Necessidade biológica e um par de dados . . . O que é probabilidade? . . . Uma relação de pontos de vista: um meteorologista, um contrabandista, um jogador de bridge . . . O ponto de vista subjetivo — baseado na razão insuficiente, contém um elemento de verdade . . . Os estúpidos de Marte . . . O ponto de vista estatístico . . . O que acontece prova­velmente acontecerá . . . Eurítmica experimental; ou, jogan­do moedas . . . Freqüências relativas . . . Aventuras dos dan­çarinos . . . Scheherezade e John Wilkes Booth — um desa­fio à estatística . . . O vermelho e o preto . . . Charles Pierce prediz o tempo... Qual a distância do "distante"? . . . He­ródoto explica . . . O cálculo da probabilidade... Os be­nefícios do jogo . . . De Méré e Pascal . . . O Sr. Jevons omite uma confissão . . . O estudo da probabilidade — o próprio guia de vida . . . Dados, moedas, permutações e combinações . . . Medindo as probabilidades . . . D'Alembert deixa cair a bola . . . O Conde Buffon brinca com uma agu­lha . . . O ponto . . . Uma bola preta e uma bola branca . . . O teorema do binômio . . . O cálculo da probabilidade reexa-

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a M A T E M Á T I C A E IMAGINAÇÃO

minado . . . Verificado que repousa em hipóteses . . . La-place não precisa de hipóteses . . . Repreende Napoleão, que precisa . . . O Marquês de Condorcet tem grandes esperan­ças . . . M . le Marquis omite um fato e perde a cabeça . . . Fourier da Velha Guarda . . . Dr. Darwin da Nova . . . O silogismo relega um substituto . . . Sócrates pode não morrer . . . Dispense a velha lógica e chame a nova.

Sete pontes sobre uma caneca de cerveja . . . Euler tirita . . . É aquecido por notícias de casa . . . Inventa a topologia . . . Dissolve o dilema dos passeadores dominicais . . . Ber­ços e pitagóricos . . . Talimãs e figuras excêntricas . . . A posição é tudo em topologia . . . Da Vinci e Dali . . . Inva­riantes . . . Transformações . . . O chapéu imutável . . . Com­petição pela Copa do Califa; ou. Alijando competidores com a ciência . . . O teorema do Sr. Jordan . . . Apenas parece idiota . . . Círculos deformados . . . Fatos esquisitos sobre o Times Square e a cabeça de um balonista . . . Conduta ex­cêntrica de muitos cavalheiros distintos de Princeton . . . Sua paixão por biscoitos . . . Seu trabalho com roscas . . . Modéstia forçada de leitores e autores . . . O anel . . . Reci­tal choroso em um pissoir de Paris . . . "Quem cambaleou quantas vezes em torno das paredes de que?" . . . Dentro e fora da rosca . . . Cirurgia gástrica — da rosca à salsicha com um simples corte . . . Biscoitos N-dimensionais . . . A faixa de Mobius . . . Tão preto quanto se pinta . . . Fomenta descontentamento industrial . . . Nunca tome partido . . . Ruí­na tanto do pintor quanto da lata de tintas . . . Os anéis de ferro . . . "CotiHion" matemático; ou, Como ficarei livre de meu parceiro? . . . Topologia — pináculo da perversidade; ou, Tirando o colete, sem tirar o paletó . . . De volta à Terra — coloração de mapas . . . Problemas das quatro cores . . . O teorema de Euler . . . A lei universal mais simples . . . O quebra-cabeça de Brouwer . . . A procura de invariantes.

O cálculo e o cimento . . . Significado de variação e razão de variação . . . Zenão e o cinema . . . Local da "Flecha Voa­dora" — pára em todos os pontos . . . Geometria e Genética . . . Os homens aritméticos cavam poços . . . Uma lastimável coisa análoga ao "boomerang" . . . rlistória do cálculo . . · Kepler . . . Fermat . . . História de um grande retângulo ••• Newton e Leibnitz . . . Arquimedes e o limite . . . Encolhi­mento e inchação; ou, " O círculo vai ao limite?" . . . Pe­queno dicionário de Matemática e Física . . . Idílio militar; ou, A velocidade da bomba . . . O cálculo trabalhando . . . A derivada . . . Altas derivadas e raio de curvatura . . . Lou­vável erudição de engenheiros de automóvel . . . A terceira derivada como um amortecedor . . . A derivada encontra sua

VIII. GEOMETRIA ELÁSTICA 253

IX. VARIAÇÃO E VARIABILIDADE 283

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Í N D I C E 9

companheira . . . Integração . . . Kepler e os buracos de barril . . . Medindo comprimentos; ou, O retardo bocejante . . . Métodos de aproximação . . . Medindo áreas limitadas

por curvas . . . Método das faixas retangulares . . . A 1 definida . . . 1 indefinida . . . Uma o inverso da outra . . . Esboço de história e a descendência do homem; ou, y = e* . . . Curvas adoentadas e orquidáceas . . . O floco de neve . . . Perímetros infinitos e selos postais . . . Antifloco-de-neve . . . Espécime patológico supercolossal — a curva que enche es­paços . . . A inacreditável curva de linhas cruzadas.

M A T E M Á T I C A E IMAGINAÇÃO 335

BIBLIOGRAFIA 341

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A R. G.

sem cujo auxílio desinteressado e compreensão não existiria este livro

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A G R A D E C I M E N T O

Estamos em dívida com muitos livros, demasiados para enumerá-los todos. Alguns deles são relacionados na bibliografia selecionada.

E queremos agradecer, particularmente, os servi­ços do Sr. Don Mittleman, da Universidade de Co-lúmbia, cujo auxílio na preparação do manuscrito foi generoso e incalculável.

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I N T R O D U Ç Ã O

A moda em livros, na última década, voltou-se, cada vez mais, para a ciência popular. Até mesmo os jornais, suple­mentos dominicais e revistas cederam espaço à Relatividade, Física Atômica e às mais novas maravilhas da Astronomia e Química. Embora sintomático do crescente desejo de sa­ber o que está acontecendo nos Moratórios e observatórios, assim como nos assustadores conclaves de cientistas e ma­temáticos, isso não impede que uma grande parte da ciência moderna permaneça obscurecida por um aparentemente im­penetrável véu de mistério. Está prevalecendo, amplamente, a sensação de que a ciência, qual a mágica e a alquimia da Idade Média, é praticada e só pode ser entendida por um pequeno grupo esotérico. O matemático ainda é encarado como o eremita que pouco sabe dos modos de vida fora de sua cela, que passa o tempo compondo incríveis e incom­preensíveis teorias em um estranho, mutilado e incompreen­sível jargão.

Contudo, pessoas inteligentes, cansadas com a marcha nervosa de sua própria existência — o impacto penetrante dos acontecimentos do dia — estão ansiosas para conhecer as realizações de vidas mais vagarosas, mais contemplativas, re­guladas por um relógio mais compassado, mais moroso que o seu próprio. A ciência, particularmente a Matemática, em­bora afigure-se menos prática e menos real que as notícias contidas nos últimos despachos radiofônicos, parece estar cons­truindo o edifício permanente e estável, em uma época em que todos os outros ou estão ruindo ou sendo despedaçados. Isso não quer dizer que a ciência não está, também, passan­do por modificações revolucionárias. Mas acontece em silên­cio e honrosamente. O que já não é útil foi rejeitado, mas

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14 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

somente após madura deliberação, e o edifício tem subido, constantemente, baseado nas realizações criadoras do passado.

Assim, de certa forma, a popularização da ciência é um dever a ser executado, um dever para dar coragem e con­forto aos homens e mulheres de boa vontade, em todos os lugares, que estão, gradualmente, perdendo a fé na vida racional. Em muitas ciências, o véu de mistério está, aos poucos, sendo retirado. A Matemática, em grande parte, per­manece ainda velada. O que a maior parte dos livros de Matemática popular tem tentado fazer é discuti-la filosofi­camente ou tornar claro o assunto que já foi aprendido, mas fá está esquecido. Nosso propósito, ao escrever, foi um pou­co diferente. "Haute vulgarisation" é o termo aplicado pelos franceses ao feliz resultado que nem ofende com sua condes­cendência nem se mantém obscuro em uma massa de ter­minologia técnica. Nosso objetivo foi estender o processo de Iwute vulgarisation" até aqueles postos avançados da Matemática que são mencionados apenas em sussurros, quan­do o são; e, mesmo assim, somente lhes pronunciam o nome; mostrar, por sua própria diversidade, algo do caráter da Ma­temática, de seu intrépido, desembaraçado espírito; como, tanto como ciência quanto como arte, continuou a conduzir as faculdades criadoras mesmo além da imaginação e da in­tuição. Na amplitude de um livro tão pequeno, só haverá instantâneos, não retratos. Contudo, esperamos que, mesmo neste caleidoscópio, possa haver estímulo para interesse pos­terior e maior conhecimento da mais orgulhosa rainha do mundo intelectual.

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M A T E M Á T I C A E I M A G I N A Ç Ã O

Não vou ao ponto de dizer que construir a his­tória do pensamento sem o profundo estudo das idéias matemáticas das sucessivas épocas é o mesmo que omitir Hamlet na peça que tem seu nome. Isto seria pedir demais. Mas é, certa­mente, semelhante a suprimir a parte de Ofélia. Esta comparação é singularmente exata. Forque Ofélia é absolutamente essencial para a peça, é muito encantadora — e um pouco louca. Reco­nheçamos que o propósito da Matemática é uma divina loucura do espírito humano, um refúgio contra a aguilhoante urgência dos acontecimentos

contingentes.

A L F R E D N O R T H W H I T E H E A D

Science and the Modem World

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I

N O V O S N O M E S E M L U G A R D O S V E L H O S

H Á CERTAS ÉPOCAS em que se faz faxina geral na Mate­mática. Alguns nomes velhos são postos de lado, outros são polidos e burilados; novas teorias, novas aquisições assumem um lugar e recebem um nome. Por isso, o que o nosso título realmente quer dizer é que há novas palavras na Matemá­tica; não são apenas nomes novos, mas novas palavras, novos termos que vieram, em parte, representar novos conceitos ou uma reformulação dos antigos na Matemática mais ou menos recente. Já há, certamente, muitas palavras na Matemática, tal como em outros assuntos. Realmente, há tantas palavras que hoje é mais fácil do que antigamente falar muito e não dizer nada. F o i principalmente por meio de palavras, reuni­das como as contas de um colar, que a metade da população do mundo foi levada a acreditar em coisas más e a sancio­nar maus procedimentos. Frank Vizetelly, o grande lexicó­grafo, estimou em 800 000 as palavras empregadas na lín­gua inglesa. Mas os matemáticos, geralmente muito modes­tos, não estão satisfeitos com essas 800000: vamos dar-lhes mais algumas.

Podemos viver sem novos nomes até que, à proporção que avançamos no conhecimento científico, surjam novas idéias e novas formas. U m aspecto peculiar à Matemática é que ela não usa nomes tão compridos nem tão difíceis como as outras ciências. Além disso, é mais conservadora que elas, aferrando-se, tenazmente, às palavras antigas. Os termos usa­dos por Euclides, em seus Elementos, são correntes na Geo­metria moderna. Mas os físicos jónicos julgariam a termino­logia da Física atual (usando-se uma expressão coloquial)

a

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18 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

grego puro. N a Química, substâncias sem nenhuma compli­cação, como o açúcar, a goma ou o álcool têm nomes como esses: ácido metüproperiilenodüdroxicmamenilacríHco ou 0--am^ossuHarrmnobenzoína ou protocatechuicaldeidometileno. Seria incômodo se tivéssemos de usar tais termos na conver­sação diária. Quem poderia imaginar um aristocrata da ciên­cia pedindo, num restaurante, 'Traga-me, por favor, o ácido (^anidrossulfaminobenzóico" quando o que êle quer é ape­nas açúcar para o café? A Biologia também possui destron-cadores de língua espetaculares. O propósito destas longas palavras não é assustar o exotérico, mas descrever, com cien­tífica concisão, o que o literato diria em meia página.

N a Matemática, há muitas palavras simples, como "gru­po" "família" "anel", "curva simples" "limite", etc. Mas, a essas palavras comuns, dão-se, muitas vezes, uma significa­ção muito técnica e peculiar.' De fato, eis uma definição de Matemática digna de um prêmio: A Matemática é a ciência que usa palavras fáceis para idéias difíceis. Nisto ela difere de qualquer outra ciência. Há 500 000 espécies conhecidas de insetos e cada uma delas tem um longo nome em latim. N a Matemática, somos mais modestos. Falamos em "cam­pos", "grupos", "famílias", "espaços", embora dando a essas palavras muito mais sentido do que têm na conversação nor­mal. À medida que seu emprego se torna cada vez mais técnico, o significado matemático de uma palavra não pode ser previsto por ninguém, da mesma maneira que não se pode­ria prever o vôo de uma "cápsula". Nenhuma pessoa po­deria adivinhar o que a palavra "grupo" quer dizer hoje quan­do usada pela Matemática. Contudo, é tão importante que cursos inteiros são dados sobre a teoria dos "grupos" e cen­tenas de livros são escritos a seu respeito.

Como os matemáticos se dão bem com palavras comuns, muitas ambigüidades interessantes têm surgido. Por exem­plo, a palavra "função" expressa, provavelmente, a idéia mais importante de toda a história da Matemática. Mas a maio­ria das pessoas, ouvindo-a, pensaria cjue "função" se refere a acontecimentos sociais noturnos, enquanto outras, com men­talidade menos social, lembrar-se-iam de seus próprios fíga­dos. A palavra "função" tem, no mínimo, uma dúzia de sig-

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NOVOS NOMES E M LUGAR DOS VELHOS 19

nificados, mas poucas pessoas suspeitam qual o significado matemático. Este (que desenvolveremos posteriormente) é expresso mais simplesmente por uma tábua. Esta tábua mos­tra a relação entre duas quantidades variáveis quando o va­lor de uma delas é determinado pelo da outra. Assim, uma quantidade variável pode indicar os anos entre 1800 e 1938, e a outra, o número de homens, nos Estados Unidos, que usam bigodes enormes; ou uma variável pode expressar, em decibéis, a quantidade de barulho feito por um orador polí­tico, e a outra, as unidades de pressão sanguínea de seus ouvintes. Quem poderia imaginar o sentido da palavra "anel" tal como tem sido usada em Matemática? F o i introduzido na Álgebra mais recente, há menos de vinte anos. A teoria dos anéis é muito mais moderna que a dos grupos. É en­contrada agora na maioria dos novos livros de Álgebra, e não tem ligação alguma com casamentos ou sinos.

Outras palavras comuns empregadas com sentido pecu­liar em Matemática são "domínio", integração", "diferencia­ção". O neófito não poderia perceber o que representam; só os matemáticos saberiam algo sobre elas. A palavra "trans­cendental", em Matemática, não tem o mesmo significado que em Filosofia. U m matemático diria: O número n, igual a 3,14159..., é transcendental, porque não é a raiz de nenhu­ma equação algébrica com coeficientes inteiros.

Transcendental é considerado, por alguns, como um no­me exagerado; mas foi inicialmente aplicado quando se pen­sava que os números transcendentais eram tão raros quanto os quíntuplos. O trabalho de Georg Cantor no reino do in­finito provou que, de todos os números em Matemática, os transcendentais são os mais comuns, ou, para usar a palavra em sentido ligeiramente diferente, os menos transcendentais. Falaremos disto mais tarde quando tratarmos de outro nú­mero transcendental famoso, e, a base dos logaritmos na­turais. A "epistemologia transcendental" de Emanuel Kant é que ocorre logo às pessoas mais educadas, quando se usa a palavra transcendental, mas em um sentido que nada tem a ver com Matemática. E , ainda, tome-se a palavra "evo­lução", usada em Matemática para se referir ao processo, que muitos de nós aprendemos no ginásio e logo esquecemos, pa-

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20 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

ra extrair raízes quadradas, cúbicas, etc. Spencer, em sua Filosofia, define evolução como "uma integração da matéria e uma dispersão de movimento de uma homogeneidade inde­finida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coe­rente", etc. Mas isso, felizmente, nada tem a ver, também, com a evolução matemática. Até no Tennessee, pode-se ex­trair uma raiz quadrada sem i r em contraposição à lei.

Como vemos, a Matemática usa palavras simples para idéias complicadas. U m exemplo de uma palavra simples usada de maneira complicada é a própria palavra "simples". "Curva simples" e "grupo simples" representam idéias im­portantes em Matemática Superior.

À curva acima não é simples. A curva simples é curva fechada que não apresenta cruzamento algum e que pode tomar o aspecto da F i g . 2. Há muitos teoremas importantes sobre essas figuras, que podem valorizar a palavra. Mais tarde, trataremos de uma parte original da Matemática, cha­mada "Geometria Elástica", e teremos muito mais a dizer so­bre curvas simples ou não. U m matemático francês, Jordan,

FIG. 1

FIG. 2

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NOVOS NOMES E M LUGAR DOS VELHOS 21

apresentou o teorema fundamental: todas as curvas simples têm um lado de dentro e um lado de fora. Isto é, todas as curvas simples dividem o plano em duas regiões, uma no interior da curva, outra no exterior.

Há alguns grupos em Matemática que são grupos "sim­ples". A definição de "grupo simples" é, realmente, tão difí­ci l que não pode ser apresentada aqui. Se quiséssemos ter uma idéia clara sobre o que é um grupo simples, teríamos, provavelmente, de despender um longo tempo pesquisando em muitos livros e, então, sem uma sólida base matemática, continuaríamos a não entender. Primeiro, teríamos de defi­nir o conceito de "grupo". Depois, teríamos de dar uma de­finição para subgrupos e, depois, para subgrupos autoconju-gados e, só então, poderíamos dizer o que é um grupo sim­ples. U m grupo simples é, simplesmente, um grupo sem ne­nhum subgrupo autoconjugado; simples, não é?

A Matemática é muitas vezes chamada, erroneamente, ciência do bom senso. N a realidade, ela pode transcender ao bom senso e ir , mesmo, além da imaginação e da intuição. Tornou-se um assunto bastante estranho e, talvez mesmo, as­sustador, sob o ponto de vista comum, mas qualquer um que nele penetre encontrar-se-á em uma verdadeira terra en­cantada, terra estranha, mas que tem sentido, e até mesmo bom senso. Sob o ponto de vista comum, a Matemática trata de coisas estranhas. Mostraremos que isso ocasionalmente acontece, mas, em geral, ela lida com coisas familiares de um modo estranho. Se alguém se olhar em um espelho comum, sejam quais forem seus atributos físicos, se achará engraçado, mas não estranho; um passeio no túnel de um parque de di ­versões e uma olhada num dos espelhos deformadores con­vencerão o indivíduo de que, sob outro ponto de vista, êle pode ser estranho, além de engraçado. É, principalmente, uma questão de hábito. U m camponês russo foi a Moscou pela primeira vez e visitou vários lugares. F o i ao jardim zoológico e v iu as girafas. Assim como nas fábulas de L a Fontaine, encontraremos uma moral em sua reação. "Olhe", disse êle, "o que os bolchevistas fizeram de nossos cavalos". E isso foi o que a Matemática moderna fêz da Geometria simples e da Aritmética simples.

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Há outras palavras e expressões, não tão familiares, que foram inventadas ainda mais recentemente. Tomemos, por exemplo, a palavra "turbina". É lógico que já está sendo usada em Engenharia, mas é uma palavra inteiramente nova em Geometria. O nome matemático se aplica a um deter­minado diagrama. ( A Geometria, digam o que disserem, é o estudo de diferentes formas, muitas delas belíssimas, pos­suindo harmonia, graça e simetria. É verdade que há gros­sos tratados de Geometria abstrata, e de espaço abstrato, em que não aparece nem u m diagrama, nem uma forma. É u m ramo muito importante da Matemática, mas não é a Geome­tria estudada pelos egípcios e pelos gregos. Quase todos nós, se é que jogamos xadrez, contentamo-nos em fazê-lo em um tabuleiro, com peças de madeira- mas há pessoas que jogam de olhos vendados e sem tocar no tabuleiro. É uma analogia bastante razoável para se dizer que a Geometria abs­trata é como xadrez de olhos vendados — é u m jogo sem objetivos concretos.) A seguir, vemos a figura de uma tur­bina, ou, melhor, duas delas.

Uma turbina consiste em um número infinito de "elemen­tos" arrumados em forma contínua. U m elemento não é apenas uma ponta; é uma ponta associada a uma direção — como uma limalha de ferro. U m a turbina é composta de um número mfinito desses elementos, arranjados de um modo peculiar: as pontas devem ser dispostas para formar um círcu­lo perfeito, e a inclinação das limalhas deve ter o mesmo

FIG. 3 — Turbinas.

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ângulo em todo o círculo. Há, portanto, um número infini­to de elementos com igual inclinação em relação às diversas tangentes ao círculo. No caso especial em que o ângulo for­mado pela direção do elemento com a da tangente fôr zero, o que acontecerá? A turbina será um círculo. E m outras palavras, a teoria das turbinas é uma generalização da teoria do círculo. Se o ângulo é de noventa graus, os elementos apontam para o centro do círculo. Neste caso especial tere­mos uma turbina normal (ver diagrama da esquerda).

Existe uma Geometria de turbinas, em vez de uma Geo­metria de círculos. É um ramo bastante técnico da Mate­mática que se encarrega dos problemas de sucessivos grupos de transformações relacionadas com equações diferenciais e Geometria diferencial. O grupo referente às turbinas recebeu o nome, bastante estranho, de "rotações e deslizes".

O círculo é uma das figuras mais antigas da Matemática. A linha reta é a mais simples das linhas, mas o círculo é a mais simples das linhas não-retas. É normalmente conside­rado como o limite de um polígono com um número infini­to de lados. Podemos ver que, quando uma série de polígo­nos é inscrita no círculo, tendo cada um deles mais lados que seu predecessor, os polígonos vao-se parecendo, cada vez mais, com um círculo. 1

F i e 4 — 0 círculo é o limite dos polígonos inscritos.

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J á era familiar aos gregos a idéia de que, à proporção que u m polígono regular tem maior número de lados, êle difere, cada vez menos, do círculo no qual está inscrito. Real­mente, talvez fosse possível a uma criatura onisciente ver o círculo como u m polígono com um número infinito de lados retos. 2 Contudo, por falta dessa completa onisciência, con­tinuaremos a ver o círculo como uma curva não-reta. Há várias generalizações do círculo muito interessantes, quando êle é visto sob esse aspecto. Há, por exemplo, o conceito ex­presso pela palavra "ciclo", que foi introduzido por um ma­temático francês, Laguerre. U m ciclo é u m círculo com uma seta, assim:

FIG. 5

Se pegarmos o mesmo círculo e pusermos uma seta na direção contrária, êle se tornará u m ciclo diferente.

Os gregos eram especialistas em formar problemas que nem eles nem as sucessivas gerações de matemáticos jamais conseguiram solucionar. Os três mais famosos destes pro­blemas — a quadratura do círculo, a duplicação do cubo e a trisseção de um ângulo — serão discutidos mais tarde. M u i ­tos matemáticos bem intencionados, auto-indicados e auto-divirúzados, e um conjunto mesclado de lunáticos e excên­tricos, desconhecendo não só História, como Matemática, for­necem, cada ano, uma colheita abundante de "soluções" pa­ra esses problemas insolúveis. Contudo, muitos dos clás­sicos problemas da antiguidade já foram solucionados. Por exemplo, a teoria dos ciclos foi usada por Laguerre para resolver o problema de Apolônio: sendo dados três círculos, achar outro círculo que toque nos três. Verifica-se que é apenas um problema de Geometria ginasial, embora envolva engenhosídade, e que qualquer aluno brilhante do ginásio pode resolvê-lo. Tem oito respostas, como nos mostra a F ig . 6 (a) .

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Todas podem ser traçadas com régua e compasso, e fo­ram encontrados muitos métodos de solução. Sendo dados três círculos, haverá oito círculos que toquem os três. Sen­do dados três ciclos, porém, apenas um ciclo, no sentido do

F i e 6(a) — As oito soluções do problema de Apolônio. Cada círculo em linha fina está em contato com 3 outros

em linha grossa.

movimento dos ponteiros do relógio, os tocará. (Dois ciclos se tocam somente quando suas setas estão na mesma direção, no ponto de contato.) Assim, usando a idéia dos ciclos, te­mos uma resposta definida, em lugar de oito. Laguerre tor­nou a idéia dos ciclos a base de uma elegante teoria.

Outra variação do círculo, introduzida pelo eminente matemático americano C. J. Keyser, é obtida retirando-se u m ponto do círculo. 3 Isto cria uma séria modificação na con­cepção. Keyser o chama de "patocírculo" (de círculo pa­tológico). Êle o empregou na discussão da lógica dos axiomas.

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Fizemos, também, outra modificação na noção do círcu­lo, a qual introduz outra palavra e u m novo diagrama. E m vez de tirar um ponto de um círculo, marquemos um ponto como ponto inicial. A isto chamaremos de "relógio". Tem

F i e 6(b) — As oito soluções de Apolônio reunidas em um diagrama.

sido usado na teoria das funções palígenas. "Polígena" é uma palavra recentemente introduzida na teoria das fun­ções complexas — cerca de 1927. Havia uma palavra i m ­portante, "monógena", introduzida no século X I X pelo famo­so matemático francês Augustin Cauchy, e usada na teoria clássica das funções. É empregada para indicar funções que têm uma única derivada em um ponto, como no cálculo d i ­ferencial. Mas a maioria das funções, no domínio dos com­plexos, tem um número infinito de derivadas em um ponto. Se uma função não é monógena, não pode nunca ser bígena ou trígena. A derivada ou tem um valor ou um número in ­finito de valores — ou monógena, ou polígena; nada inter­mediário. Monógeno significa uma razão de crescimen­to. Polígeno indica muitas razões de crescimento. A deri­vada completa de uma função polígena é representada por uma congruência (duplo infinito) de relógios, todos com di ­ferentes pontos iniciais, mas com a mesma velocidade uni-

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forme de rotação. Seria inútil tentar apresentar uma expli­cação simplificada destes conceitos. (O neófito tem de nos agüentar em pequenos trechos como este, em benefício de leitores de maior experiência matemática.)

FIG. 7 — 0 parexágono.

Foi bastante difícil passar pelo mtimo parágrafo e, se algum dos mares polígenos o arrancou do tombadilho, nós lhe lançaremos um salva-vida hexagonal. Podemos conside­rar como muito simples a palavra que foi introduzida na Geo­metria elementar para indicar certa espécie de hexágono. A palavra sobre a qual queremos fixar-lhe a atenção é "pare­xágono". Um hexágono comum tem seis lados arbitrários. Um parexágono é o tipo de hexágono em que qualquer lado é não só igual, mas paralelo ao lado oposto (ver Fig. 7).

Se os lados opostos de um quadrilátero são iguais e pa­ralelos, êle é chamado de paralelogramo. Pela mesma razão que nos fêz usar a palavra parexágono, um paralelogramo deveria ser chamado de parquadrilátero.

Eis um exemplo de um teorema sobre o parexágono: se­ja qualquer hexágono irregular, não necessariamente um pa-

FIG. 8 — ABCDEF é um hexágono irregular. A'B' C'D'E'F' é um parexágono.

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rexágono, A B C D E F . Tracemos as diagonais A C , B D , C E , D F , E A ? e F B , formando seis triângulos, A B C , B C D , C D E , D E F , E F A e F A B . Achemos os seis centros de gravidade A' B', C , D ' , E ' e F destes triângulos. (O centro de gra­vidade de um triângulo é o ponto em que o triângulo se equilibraria se fosse cortado em cartão e apoiado apenas nesse ponto; coincide com o ponto de interseção das media­nas.) Tracemos A ^ ' , B ' C , C D ' , D ' E ' , E T " e F ' A ' . Então, o novo hexágono interno será sempre um parexágono.

A palavra radical, grito de guerra favorito entre os re­publicanos, democratas, comunistas, socialistas, nazistas, fas­cistas, trotkistas, etc, tem um caráter menos exortativo e be­licoso em Matemática. Sob u m aspecto, todos conhecem seu significado: isto é, raiz quadrada, raiz cúbica, raiz quar­ta, raiz quinta, etc. Combinando uma palavra previamente definida com esta, podemos dizer que a extração de uma raiz é a evolução de um radical. A raiz quadrada de 9 é 3; a raiz quadrada de 10 é maior que 3, e a mais famosa e a mais simples de todas as raízes quadradas, o primeiro nú­mero incomensurável descoberto pelos gregos, a raiz quadra­da de 2, é 1 ,414— Há também radicais compostos —

expressões como -j- - ^ Í Õ . O símbolo de u m radical não é a foice e o martelo, mas um sinal com três ou quatro séculos de idade; e a idéia do radical matemático ainda é mais velha. O conceito do "Mper-radicaT, ou "ultra-radical", que significa algo maior que u m radical, mas menor que um transcendental, é de origem recente. Tem um símbolo que veremos dentro em breve. Antes, porém, temos de dizer al­gumas palavras sobre os radicais em geral. Há, em Mate­mática, certos números e funções que não se podem expres­sar na linguagem dos radicais e que, geralmente, não são bem entendidos. Algumas idéias, para as quais não há re­presentações concretas ou diagramáticas, são difíceis de ex­plicar. A maioria das pessoas acha impossível pensar sem palavras; é necessário dar-lhes uma palavra e um símbolo para fixar-lhes a atenção. Hiper-radical ou ultra-radical, pa­ra o qual não havia até agora nenhuma palavra, está dentro desta categoria.

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Encontramo-nos, pela primeira vez com estes ultra-radi-cais, não no México, mas ao tentar resolver equações do quinto grau. Os egípcios solucionaram equações do pri­meiro grau há, talvez, 4.000 anos. Isto é, descobriram que a solução da equação ax + b = 0, que é representada em

-b Geometria por uma linha reta, é x = . A equação do

a segundo grau ax2 -f- bx + c = 0 foi solucionada pelos hin-

— b =b -\/b2 — Aac A

dus e árabes com a fórmula x = · 2a

várias seções cónicas, o círculo, a elipse, a parábola e a hipérbole, são figuras geométricas de equações do segundo grau com duas variáveis.

Então, no século XVI, os italianos resolveram as equa­ções de terceiro e quarto graus, obtendo longas fórmulas que encerram raízes cúbicas e quadradas. Assim, pelo ano 1550, alguns anos antes de nascer Shakespeare, as equações dos primeiro, segundo, terceiro e quarto graus haviam sido solucionadas. Houve, então, uma demora de 250 anos, por­que os matemáticos estavam-se debatendo com a equação do quinto grau. Finalmente, Ruffini e Abel mostraram que as equações do quinto grau não podem ser resolvidas por meio de radicais. A equação geral do quinto grau não é, portanto, como a equação geral do segundo ou terceiro grau, ou de quarto grau. Contudo, ela apresenta um proble­ma de Álgebra que, teoricamente, pode ser resolvido com operações algébricas. Apenas, estas operações são tão difí­ceis que não podem ser expressas com os símbolos dos radicais. Estas novas coisas mais elevadas são denominadas "ultra-radicais", e elas também têm seus símbolos especiais (indicados na Fig. 9).

FIG. 9 — Retrato de dois ultra-radicais.

Com estes símbolos, combinados com radicais, podere­mos resolver as equações do quinto grau. Por exemplo, a solução de x5 -j- x = a pode ser escrita x ~ v2?*

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no x ss J7T, A. utilidade de nome e símbolo especiais é evidente. Sem eles, a solução da equação de quinto grau não poderia ser indicada em forma compacta.

* Podemos, agora, tratar de algumas idéias um pouco mais

fáceis do que aquelas com que nos ocupamos até agora. Elas foram apresentadas, algum tempo atrás, a um certo número de crianças do jardim d a infância. É assombroso como elas entenderam bem tudo o que lhes foi dito. D e fato, pode-se afirmar que as crianças do jardim da infância apreciam conferências de Matemática Superior, desde que os concei­tos matemáticos sejam claramente apresentados.

Estava chovendo e perguntaram às crianças quantas go­tas de chuva cairiam em Nova York. A resposta mais alta foi 100. Elas nunca haviam contado além de 100 e o que queriam mostrar, quando usaram esse número, era, mera­mente, algo muito, muito grande — tão grande quanto podiam imaginar. Perguntaram-lhes quantas gotas caíam no telha­do, quantas em Nova York e quantas em toda a cidade em 24 horas. Elas, rapidamente, adquiriram a noção da gran­deza desses números, embora não conhecessem os símbolos para eles. Estavam certas, em pouco tempo, de que o nú­mero de gotas de chuva era bastante maior que uma cente­na. Pediram-lhes que pensassem no número de grãos de areia de Coney Island e elas decidiram que o número de grãos e o de gotas de chuva eram mais ou menos os mesmos. Mas o importante é que elas se capacitaram de que o núme­ro era finito, não infinito. Sob este ponto de vista, demons­traram sua clara superioridade sobre muitos cientistas que, até hoje, usam a palavra infinito quando querem referir-se a um número grande, como u m bilhão de bilhões.

Do que tais cientistas, evidentemente, não se conven­cem é que contar é uma operação precisa. * Poderia ser

* Ninguém diria que 1 + 1 é "mais ou menos igual a 2". D a mesma maneira, é bobagem, dizer que um bilhão de bilhões não é um número finito, apenas porque é grande. Qualquer número que possa ser dito, ou concebido em termos de inteiro, é finito. Infinito significa algo muito diferente como veremos no capítulo sobre o gugol.

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admirável, mas não há nada vago ou misterioso nisto. Se contamos alguma coisa, a resposta só pode ser ou perfeita ou completamente errada; não há meio-têrmo. É como to­mar um trem. Ou o tomamos ou o perdemos; neste caso, tanto faz ter chegado um segundo atrasado como uma se­mana depois. Há versos famosos que ilustram essa idéia:

"Õ, o pouco mais, quanto vale! E o pouco menos, quantos mundos além!"

U m número grande é grande, mas é definido e é finito. É claro que, na poesia, o finito acaba pelos três mi l ; qual­quer número maior é infinito. E m muitos poemas, o poeta lhe falará do número infinito de estrelas. Mas, se existe hipérbole, esta é uma, porque ninguém, nem mesmo o poeta, já v iu mais de três m i l estrelas em uma noite clara, sem o auxílio de um telescópio.

Para os hotentotes, o infinito começa em três. * Per­guntemos a um hotentote quantas vacas possui e, se êle tem mais de três, dirá "muitas". O número de gotas de chuva que caem em Nova York também é "muitas". É um núme­ro finito muito grande, mas está longe do infinito.

E , agora, eis o nome de um número muito grande: "Gugol". * * A maioria das pessoas diria: " U m gugol é tão grande que não podemos mencioná-lo ou mesmo falar sobre êle; é tão grande que é infinito". Contudo, vamos falar so­bre êle, explicar o que é, exatamente, e mostrar que pertence à mesma família do número 1.

U m gugol é o seguinte número, escrito por uma criança do jardim da infância no quadro-negro:

100000000000000000000000000000000000000000000000000 00000000000000000000000000000000000000000000000000

A definição de um gugol é: 1 seguido de cem zeros. Ficou decidido, após cuidadosas pesquisas matemáticas no

* Contudo, para ser honesto, deve-se dizer que algumas tribos do Congo podem contar até um milhão ou mais.

* * Nem de longe se referindo a um autor russo.

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jardim da infância, que o número de gotas de chuva que cai em Nova York em 24 horas, ou mesmo em um ano ou um século, é muito menor que um gugol. N a verdade, o gugol é u m número maior que o maior dos números usados pela Física ou Astronomia. Todos estes números necessitam de menos que cem zeros. Ê lógico que esta informação está à disposição de qualquer um, mas parece ser um grande segre­do em muitos setores científicos.

U m a publicação científica de grande reputação revelou, recentemente, que o número de cristais de neve necessários para formar a Idade Glacial era de u m bilhão elevado à b i -lionésima potência. Isso é muito assustador, mas também muito estúpido. U m bilhão, elevado à bilionésima, aparece assim:

1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0 0 0 .

Uma estimativa muito mais razoável e um número muito menor seria 1 0 3 0 . N a realidade, estimou-se que se o uni ­verso inteiro, que concordamos ser um pouco maior que a Terra, fosse ocupado por prótons e eléctrons, de tal forma que não sobrasse nenhum espaço vazio, o número total de prótons e eléctrons seria 1 0 1 1 0 (isto é, 1 com 110 zeros depois). Infelizmente, assim que as pessoas falam de nú­meros grandes, ficam tresloucadas. Parecem ter a impres­são de que, como zero significa nada, podem adicionar a um número quantos zeros quiserem sem nenhuma conse­qüência séria. Temos de ser um pouco mais cuidadosos do que isso, ao falarmos de números grandes.

Voltando a Coney Island, o número de grãos de areia da praia é de aproximadamente 1 0 2 0 , ou, de forma mais des­critiva, 100000000000000000000. É um número grande, mas não tanto quanto o mencionado por uma divorciada em u m a recente questão de divórcio, quando disse pelo telefone que amava o homem "um milhão de u m bilhão de um bilhão de vezes e mais oito vezes ao redor do mundo". E r a o maior número que ela podia conceber e mostra o que pode surgir de um ninho de amor.

Embora as pessoas falem muito, a produção de palavras, desde que começou a tagarelice até os nossos dias, incluindo

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o balbuciar das crianças, as canções de amor e os debates do Congresso, atinge cerca de 1 0 1 6 . Isto significa dez mi­lhões de bilhões. Embora contradiga a impressão popular, este é muito maior que o número de palavras ditas em uma reunião de jogo de cartas de senhoras.

Grande parte da veneração que se tem pela autoridade da palavra escrita desapareceria se alguém tivesse de calcular o número de palavras que foram impressas desde que apa­receu a Bíblia de Gutenberg. É um número algo maior que 1 0 1 6 . Uma novela histórica popular, das mais recentes, cor­responde a várias centenas de bilhões de palavras.

O maior número visto em finanças (embora novos re­cordes estejam sendo obtidos) representa o total do dinheiro em circulação na Alemanha no máximo da inflação. Era menos que um gugol — apenas

496.585.346.000.000.000.000.

U m economista de renome se responsabiliza pela exatidão deste número. O número de marcos em circulação era quase igual ao de grãos de areia na praia de Coney Island.

O número de átomos de oxigênio em um dedal comum é muito maior. Representaria, talvez, 1000000000000000000-000000000. O número de eléctrons, consideravelmente me­nores que o átomo em tamanho, é muitas vezes maior. O número de eléctrons que passa pelo filamento de uma lâm­pada comum de cinqüenta watts em um minuto é igual ao número de gotas de água que caem nas cataratas de Niágara durante um século.

Pode-se também calcular o número de eléctrons não só em um quarto normal, mas, também, sobre a Terra toda, nas estrelas, na Via-Láctea e em todas as nebulosas. A razão de citar todos esses exemplos é dar ênfase ao fato de que, qualquer que seja o tamanho da coleção a ser conta­da, um número finito resolverá a questão. Teremos oportu­nidade, mais adiante, de tratar de coleções infinitas, mas as encontradas na natureza, embora muito grandes algumas vezes, são definitivamente finitas. U m cientista célebre de­clarou, recentemente, com toda a seriedade, que acreditava que o número de poros (pelos quais a folha respira) em

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todas as folhas de todas as árvores de todo o mundo seria, certamente, infinito. Não é preciso dizer que êle não era matemático. O número de eléctrons em uma única folha é muito maior que o de poros de todas as folhas de todas as árvores de todo o mundo. E , mesmo assim, o número de eléctrons de todo o universo pode ser encontrado por inter­médio da Física de Einstein. É muito menor que um gugol — talvez seja 10 com setenta e nove zeros, I O 7 9 , segundo a estimativa de Eddington.

Sábias palavras são ditas pelas crianças, pelo menos tão freqüentemente quanto pelos sábios. O nome "gugol" fo i in­ventado por uma criança (o sobrinho do Dr . Kasner, com no­ve anos de idade) quando lhe pediram para pensar em um nome para um número muito grande, especificamente, 1 com 100 zeros depois dele. O menino estava certo de que este número não era infinito e, portanto, igualmente convencido de que tinha de ter um nome. Ao mesmo tempo em que êle sugeriu "gugol" deu o nome a um número ainda maior: " G u ­golplex". U m gugolplex é muito maior que um gugol, mas ainda é finito, como o inventor se apressou a ressalvar. A primeira sugestão era que um gugolplex deveria ser 1 se­guido de tantos zeros quantos se pudesse escrever até can­sar. Mas, assim sendo, como as pessoas se cansariam de modos diferentes para escrever um gugolplex, não seria con­veniente considerar um lutador de boxe um matemático me­lhor que o Dr. Einstein só porque tem maior resistência. E n ­tão, o gugolplex é um número finito específico, com u m nú­mero de zeros, depois do 1, igual a um gugol. U m gugolplex é muito maior que um gugol, e até mesmo muito maior que um gugol de gugóis. U m gugol vezes um gugol seria 1 seguido de 200 zeros, enquanto o gugolplex seria 1 com um gugol de zeros. Você pode ter uma idéia do tamanho deste número muito grande, mas finito, pelo fato de não haver espaço suficiente para escrevê-lo se alguém fosse até a estrela mais afastada, passando por todas as nebulosas, colocando zeros em cada centímetro do caminho.

Pode-se pensar que um número tão grande não tenha nenhuma aplicação; mas quem pensar assim, não é mate­mático. Um número do tamanho de um gugolplex pode ser

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de grande utilidade nos problemas de combinações. Eis o tipo do problema onde êle poderia ser cientificamente em­pregado:

Consideremos que este livro é feito de carbono e nitro­gênio e de outros elementos. A resposta à pergunta "Quan­tos átomos há no livro?" seria, certamente, um número fini­to, embora menor que um gugol. Imaginemos, agora, que o livro está suspenso por um barbante, cuja extremidade você está segurando. Quanto tempo será necessário esperar para que o livro pule para a sua mão? Seria concebível que isto acontecesse? A resposta, em geral, seria "Não, a não ser que alguma força estranha o fizesse". Mas isto não está correto. A resposta certa é que isto quase certamente acontecerá uma vez em menos que um gugolplex de anos — talvez amanhã.

A explicação desta resposta pode ser encontrada na Química Física, na Mecânica Estatística, na teoria cinética dos gases e na teoria das probabilidades. Não podemos apre­sentar todos esses assuntos em poucas hnhas, mas tentare­mos. As moléculas estão sempre em movimento. O repouso absoluto das moléculas corresponderia a zero graus absoluto de temperatura, e zero graus absoluto de temperatura não só é inexistente como impossível de obter. Todas as molécu­las do ar em redor bombardeiam o livro. No momento, os bombardeios, de cima e de baixo, são quase iguais, e a gra­vidade mantém o livro em baixo. É necessário aguardar o momento oportuno em que haja um número enorme de mo­léculas bombardeando o livro por baixo e muito poucas de cima. Então a gravidade será sobrepujada, e o livro se ele­vará. Seria algo como o efeito conhecido em Física como movimento de Brown, que descreve o comportamento de pe­quenas partículas em um líquido quando dançam sob o im­pacto das moléculas. Seria análogo ao movimento de Brown numa vasta escala.

Mas a probabilidade de que isto venha a acontecer no futuro próximo ou em qualquer outra ocasião que mencio-

1 1 nemos esta entre — ou z—,—· Para termos uma

gugol gugolplex certeza razoável de que o livro se erguerá, deveríamos espe­rar de um gugol a um gugolplex de anos.

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Para trabalhar com eléctrons ou em problemas de com­binações, como o do livro, precisamos de números maiores do que os empregados normalmente. É por essa razão que nomes como gugol ou gugolplex, embora pareçam brinca­deira, são de real valor. Os nomes ajudam a fixar, em nosso raciocínio, que estamos lidando com números finitos. Repe­tindo: um gugol é 1 0 1 0 0 ; u m gugolplex é 10 elevado à po­tência gugol, podendo ser escrito 1 0 1 0 ° ° = 10gugol.

Vimos que o número de anos que alguém teria de es­perar para assistir ao milagre do livro que se eleva seria me­nor que u m gugolplex. Durante esse número de anos, a Terra pode ter-se congelado, tornando-se um planeta tão morto quanto a L u a , ou, talvez, se tenha desfeito em uma quantidade de meteoros e cometas. O verdadeiro milagre não é o livro elevar-se, mas podermos, com o auxílio da M a ­temática, projetar-nos no futuro e predizer, com exatidão, quando êle provavelmente se elevará, isto é, entre hoje e o ano gugolplex.

Mencionamos uma boa quantidade de novos nomes em Matemática — nomes novos para idéias novas e antigas. Há mais u m nome que se deve mencionar para concluir. Watson Davis , o repórter de ciência popular, deu-nos o nome "ma-tescópio". C o m o auxílio dos novos e magníficos microscó­pios e telescópios, o homem, a meio caminho entre as estre­las e os átomos, chegou um pouco mais perto de ambos. O matescópio não é um instrumento físico; é um instrumento puramente intelectual, a percepção cada vez maior que a Matemática nos dá da terra encantada que existe além da i n ­tuição e da imaginação. Os matemáticos, ao contrário dos filósofos, nunca dão a última palavra, mas, pacientemente, como os fabricantes dos grandes microscópios e dos grandes telescópios, vão polindo suas lentes. Neste livro, fá-lo-emos ver, através das novas e grandes lentes, o que os matemáti­cos conseguiram. Prepare-se para estranhas visões através d o matescópiol

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NOTAS

1. Ver o capítulo sobre PIE .

2. Ver o capítulo sobre M U D A N Ç A E M U T A B I L I D A D E — Seção de Cur­vas Patológicas.

3. N.B . — O diagrama tem de ser imaginado pelo leitor, pois está além das possibilidades de qualquer tipógrafo fazer um círculo em que se omite um ponto. U m ponto, não tendo dimensões, nunca poderá ser omitido. Assim, um círculo com um ponto a menos é mera concepção e não uma idéia que possa ser figurada.

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II

A L É M D O G U G O L

Se você não espera o inesperado, não o encon­trará; porque é penoso procurá-lo, e difícil.

H E R Á C L I T O

M A T E M Á T I C A bem pode ser uma ciência de proposições lógicas e austeras, em forma canónica precisa, mas, em suas iiiúmeras aplicações, serve de ferramenta e linguagem, a linguagem da descrição, do número e do tamanho. Descre­ve, economicamente e com elegância, as órbitas elípticas dos planetas tão prontamente quanto a forma e dimensões des­ta página ou de uma plantação de milho. O rodopio do eléctron não pode ser visto por ninguém; os mais poderosos telescópios só mostram uma pequena porção das estrelas e nebulosas distantes e longínguos recantos gelados do espa­ço. Mas, com o auxílio da Matemática e da imaginação, tudo que há de menor ou de maior — tudo, enfim, pode ser posto ao alcance do homem.

Contar é falar a linguagem dos números. Contar até um gugol, ou até dez, é parte do mesmo processo; o gugol é apenas mais complicado para pronunciar. O essencial, que se deve focalizar, é que o gugol e dez são afins, como as gigantescas estrelas e o eléctron. A Aritmética — a l i n ­guagem de contar — torna tudo afim, não só no espaço co­mo no tempo.

Para compreender o significado e a importância da M a ­temática, para bem apreciar seu valor e sua beleza, deve-se entender, primeiro, a Aritmética, porque, desde o princípio, a Matemática tem sido Aritmética, em roupagens simples

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ou mais elaboradas. A Aritmética tem sido a rainha e a aia das ciências, desde os tempos dos astrólogos da Caldeia e dos sumos sacerdotes do Egito até os dias presentes, da relatividade, quanta e máquina de somar. Os historiadores podem discutir o significado de papiros antigos; os teólo­gos, a exegese das Escrituras; os filósofos, a doutrina de Pitágoras; mas todos concordarão que os números existen­tes nos papiros, nas Escrituras e nas obras de Pitágoras são os mesmos números de hoje. Como Aritmética, a Matemá­tica já auxiliou o homem a fazer horóscopos e calendários, a predizer as cheias do Nilo , a medir campos e a altura das Pirâmides, a velocidade de uma pedra que cai de uma torre em Pisa e a de uma maçã que cai de uma árvore em Wools-thorpe, a pesar estrelas e átomos, a marcar a passagem do tempo e a achar a curvatura do espaço. E , embora a M a ­temática também seja cálculo, teoria da probabilidade, Ál­gebra matriz, ciência do infinito, ela ainda é a arte de contar.

Todos os que estiverem lendo este livro sabem contar; contudo, o que é contar? As definições dos dicionários são tão úteis quanto a definição de uma rede, dada por Johnson: "Série de interstícios reticulados". Aprender a comparar é aprender a contar. Os números vêm muito depois; são um artifício, uma abstração. Contar, confrontar, comparar são quase inatos no homem quanto seus dedos. Sem a faculda­de de comparar, como sem os dedos, não é provável que êle chegasse aos números.

Alguém que não saiba nada sobre o processo formal de contar ainda é capaz de comparar duas classes de obje­tos, de determinar qual é o maior, qual o menor. Sem ter nenhum conhecimento dos números, uma pessoa pode ter a certeza de que duas classes têm o mesmo número de ele­mentos; por exemplo, não se levando em conta reveses an­teriores, é fácil mostrar que temos o mesmo número de de­dos em ambas as mãos, confrontando, simplesmente, dedo com dedo de cada mão.

Para descrever o processo de confrontar, que é a base da contagem, os matemáticos usam um nome pitoresco. Eles

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chamam a isso colocar as classes em "correspondência recí­proca um a um", uma com as outras. N a verdade, isso é toda a arte de contar que é praticada pelos povos primitivos, por nós ou por Einstein. Alguns exemplos servirão para tornar bem claro este ponto.

N u m país monógamo, não é necessário contar tanto os maridos como as esposas para se ter o número de pessoas casadas. Se levarmos em conta alguns Lotários joviais, que não se conformam nem com os costumes nem com as leis, é suficiente contar os maridos ou as esposas. Há tantos nu­ma classe quanto na outra. A correspondência entre as duas classes é um a u m .

Há ilustrações mais úteis. Muitas pessoas estão reuni­das em uma grande sala onde devem ser colocadas cadeiras. A questão é: há cadeiras suficientes? Seria um trabalho exaustivo contar não só as pessoas como as cadeiras, desne­cessário neste caso. As crianças do jardim da infância co­nhecem um jogo chamado "Caminho de Jerusalém"; numa sala cheia de crianças e de cadeiras, há sempre uma cadeira a menos que o número de crianças. A um sinal, cada crian­ça corre para uma cadeira. A que ficar em pé "está fora". Retira-se uma cadeira e o jogo continua. Esta é a solução para o problema. É apenas necessário pedir a todas as pes­soas que se sentem. Se todos se sentarem e não houver cadeira vazia, é evidente que há tantas cadeiras quantas pes­soas. E m outras palavras, sem saber realmente o número de cadeiras ou pessoas, é possível saber que o número é o mesmo. As duas classes — cadeiras e pessoas — mostraram que eram iguais em número, por uma correspondência u m a um. A cada pessoa corresponde uma cadeira; a cada ca­deira, uma pessoa.

Para contar qualquer classe de objetos, este é o único método empregado. Uma classe contém as coisas que de­vem ser contadas; a outra classe está sempre à mão. Ê a classe dos inteiros, ou "números naturais", que, por conveniência, consideramos como sendo apresentados numa série: 1, 2, 3, 4, 5, 6, 1 . . . Confrontando, na correspondên­cia um a um, os elementos da primeira classe com os intei­ros, observamos um fenômeno comum, mas em absoluto

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menos admirável: o último inteiro necessário para completar os pares indica quantos elementos há.

Para tornar clara a idéia de contar, fizemos a suposição, não garantida, de que o conceito de número era compreen­dido por todos. Esse conceito pode parecer intuitivamente cla­ro, mas é necessária uma definição precisa. Embora a defini­ção possa parecer muito pior que uma doença, não é tão di­fícil quanto parece à primeira vista. Leia-a cuidadosamente e verificará que é não só explícita como econômica.

Sendo dada uma classe C, contendo certos elementos, é possível encontrar outras classes, de tal forma que os ele­mentos de cada uma possam ser confrontados, um a um, com os elementos de C. (Cada uma dessas classes é, então, cha­mada "equivalente a C".) Todas essas classes, incluindo C, qualquer que seja o caráter de seus elementos, possuem uma propriedade comum: todas têm o mesmo número cardinal, que é chamado número cardinal da classe C . 1

O número cardinal da classe C é, então, considerado como o símbolo representante do conjunto de todas as clas­ses que possam ser postas em correspondência um a um com C. Por exemplo, o número 5 é simplesmente o nome, ou símbolo, dado ao conjunto de todas as classes que possam ser postas era correspondência um a um com os dedos da mão.

A partir de agora, podemos referir-nos, sem ambigüi­dade, ao número de elementos de uma classe como o número cardinal desta classe ou, abreviando, como "sua cardinalida­de". A pergunta, "Quantas letras há na palavra matemática?', é a mesma que "Qual é a cardinalidade da classe cujos ele­mentos são as letras da palavra matemática?" Empregando o método da correspondência um a um, o gráfico seguinte responde a questão e ilustra o método:

M A T E M Á T I C A

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

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É necessário tomar bem claro que este método não é estranho nem esotérico; não foi inventado pelos matemáticos para fazer algo natural e fácil parecer artificial e compli­cado. É o método que empregamos para contar nosso tro­co e nossas galinhas; é o método apropriado para contar qualquer classe, de qualquer tamanho, de dez a um gugol­plex — e além.

Dentro em breve falaremos do "além", quando tratar­mos de classes que não são finitas. N a realidade, tenta­remos medir nossa classe medidora — os inteiros. A corres­pondência um a um deve, portanto, ser perfeitamente com­preendida porque uma revelação assombrosa nos aguarda: as classes infinitas também podem ser contadas, e pelos mes­mos meios. Mas, antes de tentar contá-las, pratiquemos u m pouco com números muito grandes — grandes, mas não i n ­finitos.

* "Gugol" já faz parte do nosso vocabulário: é um núme­

ro grande — um seguido de cem zeros. Ainda maior é o gugolplex: 1 com um gugol de zeros. A maioria dos núme­ros encontrados na descrição da natureza são muito meno­res, embora uns poucos sejam maiores.

Números enormes aparecem, freqüentemente, na ciência moderna. Sir Arthur Eddington declara que há, não apro­ximadamente, mas exatamente, 136-2 2 3 6 prótons, * e u m nú­mero igual de eléctrons, no universo. Embora não seja fá­ci l de visualizar, este número, como um símbolo no papel, ocupa um pequeno espaço. Não sendo tão grande quanto o gugol, êle é diminuto diante do gugolplex. Contudo, o número de Eddington, o gugol e o gugolplex são finitos.

* Creio que ninguém pensará que Sir Arthur os contou todos. Mas êle tem uma teoria para justificar sua declaração. Alguém pode­rá contestar Sir Arthur com uma teoria melhor, mas quem será o juiz? Eis aqui o número, por extenso: 15.747.724.136.275.002.577.605 653.961.-181.555.468.044.717.914.527.116.709.336.231.425.076.185.631.031.276 -exato, diz èle, até o último número.

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U m verdadeiro gigante é o número de Skewes, ainda maior que um gugolplex. Dá-nos informação sobre a distri­buição dos números primos 2 e aparece na seguinte forma:

10 34 1010

O u , por exemplo, o número total de possíveis jogadas em uma partida de xadrez é

1010 50

Falando-se de xadrez, o eminente matemático inglês, G . H . Hardy, mostrou que — se imaginarmos o universo inteiro como um tabuleiro de xadrez e os prótons nele existentes como peças do jogo, e se concordarmos chamar qualquer troca de posição de dois prótons de uma "jogada" nesta partida cósmica, então o número total de possíveis jogadas, para cúmulo da coincidência, seria o número de Skewes:

1010 10 34

Sem dúvida, a maioria das pessoas acredita que tais nú­meros são parte do maravilhoso avanço da ciência e que, há algumas gerações, para não dizer séculos atrás, ninguém poderia concebê-los, em sonho ou fantasia.

Há alguma verdade nessa idéia. Por um lado, os incô­modos métodos antigos de notação matemática tornavam difí­c i l a escrita de grandes números, se não impossível. Por ou­tro, o cidadão comum da atualidade encontra valores tão grandes, representando as despesas em armamento e as dis­tâncias cósmicas, que êle está bastante familiarizado e imu­ne aos grandes números.

Mas houve pessoas inteligentes nos tempos antigos. Os poetas de todas as épocas podem ter cantado as estrelas como infinitas em número, quando o máximo que eles po­diam ver era, talvez, três mi l . Mas, para Arquimedes, um número tão grande como um gugol, ou mesmo maior, não seria desconcertante. Isto êle o diz na introdução de O Contador de Areia, afirmando que um número é infinito ape­nas porque é enorme,

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Há pessoas, Rei Gélon, que pensam que o número de areia é infinito; e quando falo de areia, não me refiro apenas à exis­tente em Siracusa e no resto da Sicília, mas, também, à que se encontra em todas as regiões, habitadas ou. não. E ainda há outros que, sem considerá-lo infinito, julgam que ainda não tem nome o número que seja bastante grande para exceder a quantidade de areia. E está claro que aqueles que mantêm este ponto de vista, se imaginassem uma massa feita de areia, e em todos os outros respeitos, tão grande quanto a massa da Terra, cheia até uma altura igual à da mais alta das montanhas, ficariam muitas vezes mais longe de reconhecer que se pode expressar qualquer número que exceda a quantidade de areia assim empregada. Mas tentarei mostrar-lhe, por meio de pro­vas geométricas, que poderá acompanhar, que, dos números men­cionados por mim e constantes do trabalho que enviei a Zeuxipo, alguns excedem não só o número da massa de areia, igual em grandeza à Terra cheia do modo que descrevi, mas, também, o de uma massa igual, em grandeza, ao universo.

Os gregos tinham idéias bem definidas sobre o infinito. D a mesma maneira que lhes devemos nossa habilidade e nosso saber, também deles nos veio muito da nossa sofisti­cação a respeito do infinito. N a verdade, se tivéssemos man­tido a clareza de vista deles, muitos problemas e paradoxos ligados ao infinito jamais teriam aparecido.

Acima de tudo, temos de nos compenetrar que "muito grande" e Inf ini to" são inteiramente diferentes. * Usando o método da correspondência u m a um, os prótons e eléctrons do universo podem ser, teoricamente, contados tão facilmen­te quanto os botões de u m paletó. Suficientes e mais do que suficientes para esta tarefa, ou para a de contar q u a l ­quer coleção f inita, são os inteiros. Mas medir a totalidade dos inteiros é outro problema. Medir tal classe exige u m ponto de vista elevado. Além de ser, como pensou o mate­mático alemão Kronecker, trabalho para Deus, o que requer coragem para avaliar, a classe dos inteiros é infinita — o

* Não há um ponto onde o muito grande começa a ser infinito. Podemos escrever um número tão grande quanto queiramos; êle não estará mais perto do infinito que o número 1 ou o 7. Certifique-se de que compreendeu claramente esta distinção e terá dominado muitas das sutilezas do transfinito.

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que é muito mais inconveniente. É pior do que heresia me­dir nossa própria vara de medir incomensurável.

Os problemas do infinito desafiaram a mente humana e ativaram sua imaginação como nenhum outro na história do pensamento. O infinito se apresenta tanto estranho como fainiliar; algumas vezes, além de nossa compreensão; ou­tras, natural e fácil de perceber. Ao conquistá-lo, o homem quebrou os grilhões que o prendiam à Terra. Todas as suas faculdades foram mobilizadas para essa conquista — sua ca­pacidade de raciocínio, sua veia poética, seu desejo de saber.

No estabelecimento da ciência do infinito está envolvi­do o princípio da indução matemática. Ta l princípio afirma o poder do raciocínio por repetição. Êle simboliza quase todo o pensamento matemático, tudo o que fazemos quando construímos agregados complexos com elementos simples. É, como observou Poincaré, "ao mesmo tempo necessário ao matemático e irredutível à lógica". Sua apresentação do princípio é a seguinte: "Se uma propriedade é verdadeira para o número um, e se estabelecermos que o é para n -f- 1, * desde que seja para n, ela será verdadeira para todos os números". A indução matemática não se deriva da expe­riência, antes é uma propriedade inerente, intuitiva, quase mstintiva, da mente. "O que tivermos feito uma vez, pode­mos fazer novamente".

Se podemos escrever números até dez, um milhão, um gugol, somos levados a crer que não há parada, não há fim. Convencidos disto, não precisamos ir mais além; a mente apreende o que ela nunca havia experimentado — o próprio infinito. Sem nenhum sentido de descontinuidade, sem trans­gredir os cânones da lógica, o matemático e filósofo lançou, de um golpe, a ponte sobre o abismo entre o finito e o infinito. A Matemática do Infinito é uma perfeita afirma­ção do poder natural de raciocinar por repetição.

Onde n é um inteiro qualquer.

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Se "infinito" significa "sem f im, sem limite", simples­mente não finito", provavelmente todos entenderão. Nenhu­ma dificuldade surge quando não se exige uma definição precisa. Contudo, apesar do epigrama que classifica a M a ­temática como a ciência na qual não sabemos o que esta­mos falando, temos de, ao menos, concordar em falar sobre a mesma coisa. Aparentemente, mesmo os de temperamen­to científico podem discutir asperamente, até o ponto da difamação mútua, sobre assuntos que variam do marxismo e do materialismo dialético à teoria dos grupos e ao princí­pio da dúvida, apenas para descobrir, quase ao atingirem a exaustão e o colapso, que estão do mesmo lado do campo. Tais discussões são geralmente o resultado de terminologia vaga; presumir que todos estão familiarizados com a precisa definição matemática de "infinito" é construir nova torre de Babel.

Antes de apresentar uma definição, talvez seja melhor darmos uma olhada para trás e ver como os matemáticos e filósofos de outras eras trataram o problema.

O infinito tem um duplo aspecto — o infinitamente gran­de e o infinitamente pequeno. Discussões e demonstrações sucessivas, de força aparentemente apodítica, foram apresen­tadas, suplantadas e mais uma vez ressuscitadas para apro­var ou desaprovar sua existência. Poucos argumentos foram, na realidade, refutados — cada um foi sepultado sob uma avalanche de outros. O resultado favorável é que o proble­ma nunca se tornou mais claro. *

A guerra começou na antiguidade com os paradoxos de Zenão; e nunca mais cessou. Ótimos pontos eram debatidos com um fervor digno dos primeiros mártires cristãos, mas sem chegar à décima parte da agudeza dos teólogos medie­vais. Hoje, alguns matemáticos pensam que o infinito fo i

* Ninguém escreveu tão brilhante e espirituosamente sobre este assunto como Bertrand Russell. Veja, particularmente, seus ensaios no volume Mysiicüm and Logic.

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reduzido a um estado de vassalagem. Outros ainda estão imaginando o que êle é.

Os quebra-cabeças de Zenão podem auxiliar a trazer o problema a u m foco mais próximo. Zenão de Eléia, como pode ser lembrado, disse coisas inquietantes sobre o movi­mento, referindo-se a uma flecha, Aquiles e uma tartaruga. Esses estranhos companheiros foram usados em benefício da doutrina d a Filosofia eleática — que todo o movimento é u m a ilusão. F o i sugerido, provavelmente por "críticos frus­trados", que "Zenão tinha a língua na bochecha quando fez seus enigmas". Independente do motivo, eles são imensu-ràvelmente sutis e, talvez, ainda aguardem solução. *

U m paradoxo — a Dicotomia — estabelece que é impos­sível cobrir qualquer distância dada. O argumento; primei­ro, metade da distância deve ser atravessada; depois, metade d a distância restante; depois, metade da que falta, e assim por diante. Segue-se que alguma porção da distância a ser coberta sempre ficará faltando e, portanto, o movimento é impossível! A solução deste paradoxo assim se afigura:

F I G . 10

As sucessivas distâncias a cobrir formam uma série geométri­ca infinita:

sendo cada termo a metade do antecedente. Embora esta série tenha um número infinito de termos, sua soma é finita

* E m verdade, uma variedade de explicações foram dadas para os paradoxos. E m última análise, as explicações para os enigmas re­pousam na interpretação dos fundamentos da Matemática. Matemá­ticos como Brouwer, que rejeitam o infinito, não aceitariam, provavel­mente, nenhuma das soluções dadas.

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e igual a 1. E aí está, segundo se diz, a falha da Dicotomia. Zenão supôs que todo o total composto de um número infi­nito de partes deve, êle também, ser infinito; no entanto, acabamos de ver um número infinito de elementos que for­mam um total finito: 1.

O paradoxo da tartaruga diz que Aquiles, correndo atrás da tartaruga, deve, primeiro, atingir o lugar de onde ela começou: — mas a tartaruga já partiu. Esta comédia, po­rém, se repete indefirjidamente. Quando Aquiles chega a cada ponto da corrida, a tartaruga, tendo estado ali , já par­tiu. Aquiles está tão impossibilitado de apanhá-la quanto um cavaleiro de u m carrossel, o que lhe está à frente.

Finalmente: a flecha em vôo deve estar em movimento em cada instante do tempo. Mas, em cada instante, ela deve estar em algum lugar do espaço. Mas, se a flecha deve es­tar sempre em um lugar, não pode, em cada instante, estar também em trânsito, porque, estar em trânsito é não estar em nenhum lugar.

Aristóteles e outros santos menores, em quase todas as eras, tentaram destruir esses paradoxos, mas não com muito crédito. Três professores alemães conseguiram sucesso onde os santos falharam. A o terminar o século X I X , parecia que Bolzano, Weierstrass e Cantor tinham feito o infinito des­cansar, e, com èle, os paradoxos de Zenão.

O método moderno de tratar os paradoxos não é abando­ná-los como meros sofismas, indignos de uma atenção mais séria. A história da Matemática, na realidade, mostra urna defesa poética à posição de Zenão. Zenão foi , algum tem­po, o que disse Bertrand Russell: "Uma vítima notável da falta de julgamento da posteridade". Aquele errado estava certo. Tratando do infiiiitamente pequeno, Weierstrass mos­trou que a flecha em movimento está realmente sempre em repouso, e que vivemos no imutável mundo de Zenão. O trabalho de Georg Cantor, que encontraremos em breve, mos­trou que se pensarmos que Aquiles pode alcançar a tartaruga, temos de preparar-nos para um paradoxo ainda maior do que qualquer um dos concebidos por Zenão: O TODO NÃO É M A I O R Q U E QUALQUER U M A DAS PARTES!

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O infinitamente pequeno foi um aborrecimento durante mais de dois m i l anos. Quando muito, as inúmeras opiniões que provocou mereceram o lacônico veredicto dos jurados escoceses: "Não provado". Até o aparecimento de Weier-strass, o avanço total era uma confirmação do argumento de Zenão contra o movimento. E as piadas eram ainda melhores. Leibnitz, conforme Carlyle, cometeu o erro de querer expli­car o infinitesimal a uma Rainha — Sofia Carlota da Prús­sia. E la declarou-lhe que o comportamento de seus corte­sãos a tornara tão familiarizada com o infinitamente pe­queno que não necessitava de um tutor matemático para explicá-lo. Mas os filósofos e matemáticos, de acordo com Russell, "tendo um menor conhecimento das cortes, conti­nuaram a discutir esse assunto, embora não tivessem feito nenhum progresso".

Berkeley, com a sutileza e o humor necessários a um bispo irlandês, fêz agudos ataques ao infinitesimal, durante a adolescência do cálculo, os quais tinham o melhor ferrão, finamente espirituoso e escolástico. Podia-se falar, pelo menos com fervor poético, do infinitamente grande, mas, por favor, o que era o infinitamente pequeno? Os gregos, com pouco menos do que sua contumaz sagacidade, introduzi­ram-no com a observação de que um círculo difere, infmi-tesimalmente, de um polígono com um grande número de lados iguais. Leibnitz usou isto como fundamento do cálculo infinitesimal. Mas, mesmo assim, ninguém sabia o que era. O infinitesimal tinha propriedades admiráveis. Não era zero, mas menor que qualquer quantidade. Não se lhe podia atri­buir nenhuma quantidade ou medida, mas um número apre­ciável de mfinitesimais forma uma quantidade definida. In­capaz de descobrir-lhe a natureza, mas afortunadamente ca­paz de dispensá-la, Weierstrass sepultou-a junto ao flogisto e outros erros acalentados em certas ocasiões.

O infinitamente grande ofereceu uma resistência mais obstinada. Seja o que fôr, é uma erva forte. Assunto de resmas de disparates, sagrados e profanos, foi pela primeira vez discutido completa e logicamente, sem o benefício de

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preconceitos de tipo clerical, por Bernhard Bolzano. Die Paradoxien ães UnendLichen, um pequeno volume notável, apareceu, postumamente, em 1851. Ta l como a obra de outro sacerdote austríaco, Gregor Mendel, cujo famoso tra­tado sobre os princípios da hereditariedade apenas por acaso escapou do olvido, este livro importante, encantadoramente escrito, não causou grande impressão nos contemporâneos de Bolzano. É a criação de uma intehgência clara, poderosa e penetrante. Pela primeira vez, em vinte séculos, o infinito foi tratado como um problema científico, e não teológico.

Tanto Cantor quanto Dedekind devem a Bolzano os fun­damentos do tratamento matemático do infinito. Entre os muitos paradoxos que êle enfrentou e explicou, um, do tem­po de Galileu, mostra uma fonte de confusão típica:

Trace-se um quadrado — ABCD. Com o ponto A como centro e um lado como raio, descreva-se um quarto de círcu­lo, interceptando-se o quadrado em B e D. Trace-se P R paralela a AD, cortando A B em P, C D em R, a diagonal A C em Í V e o quarto de círculo em M .

Por u m teorema geométrico muito conhecido, pode-se mostrar que, se PN, PM e PR são raios, a relação seguinte é verdadeira:

2 2 2 ff\

Faça-se PR aproximar-se de A D . Então, o círculo com raio PN torna-se cada vez menor e o anel formado pelos círculos com P M e PR como raios torna-se, correspondente­mente, cada vez menor. Finalmente, quando PR se identi­fica com A D , o raio PN desaparece, deixando o ponto A , en­quanto o anel entre os círculos PM e PR se estreita até à pe­riferia, com AD como raio. D a equação (1) pode-se con­cluir que o ponto A ocupa uma área igual à da circunferên­cia do círculo com AD como raio.

Bolzano verificou que há, apenas, uma aparência de paradoxo. As duas classes de pontos, uma composta de u m único membro, o ponto A, e outra, dos pontos na circunfe­rência de círculo de raio A B , ocupam, exatamente, área do mesmo valor. A área de ambas é zero ! O paradoxo surge

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do conceito errôneo de que o número de pontos em uma configuração dada é indicação da área que ocupa. Os pontos, finitos ou infinitos em número, não têm dimensões e não podem, portanto, ocupar uma área.

FiG. 11 — Retire-se o triângulo A P M da figura. Não é difícil ver que seus três lados são respectivamente iguais aos dos

três círculos.

Então Ri2 - #22 =

ou TRI2 - TTRO2 = *Ri2

ou as duas áreas hachuradas são iguais.

Paradoxos semelhantes se empilharam através dos sécu­los. Nascidos da união das idéias vagas com as reflexões filosóficas vagas, foram nutridos em raciocínios bolorentos. Bolzano fez a l impeza da maior parte da lama, preparando o caminho para Cantor. É a Cantor que a Matemática do infinitamente grande deve sua maioridade.

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52 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO Georg Cantor nasceu em S. Petersburgo em 1845, seis

anos antes do aparecimento do livro de Bolzano. Embora nascido na Rússia, viveu a maior parte de sua vida na Ale­manha, onde ensinou na Universidade de Halle. Enquanto Weierstrass estava ocupado com o infinitesimal, Cantor deu--se ao trabalho, aparentemente mais formidável, do pólo opos­to. Pode-se ridicularizar a existência do infinitamente pe­queno, mas quem se atreve a rir do infinitamente grande? Certamente, Cantor não o fêz! A curiosidade teológica ini­ciou seu trabalho, mas o interesse matemático veio suplan­tar qualquer outro.

Tratando da ciência do infinito, Cantor verificou que u primeiro requisito era definir termos. Sua definição da "classe infinita", que parafrasearemos, repousa em um para­doxo. UMA. CLASSE INFINITA TEM A PROPRIEDADE SINGULAR DE QUE O TODO NÃO É MAIOR QUE ALGUMAS DE SUAS PARTES. Esta proposição é tão essencial para a Matemática do Infinito quanto a de que o TODO É MAIOR QUE QUALQUER DE SUAS PARTES o é para a Aritmética finita. Quando nos lembramos que duas classes são iguais se seus elementos podem ser coloca­dos em correspondência um a um, a última proposição se toma óbvia. Zenão não poderia discordar dela, apesar de seu ceticismo a respeito do óbvio. Mas o que é óbvio para o finito é falso para o infinito; nossa extensa experiência com o finito é enganadora. Uma vez que, por exemplo, a classe dos homens e a dos matemáticos são, ambas, finitas, qual­quer pessoa, verificando que alguns homens não são mate­máticos, concluiria, corretamente, que a classe dos homens é a maior das duas. Pode também concluir que o número de inteiros, pares e ímpares, é maior que o número de in­teiros pares. Mas vemos, pelos pares abaixo, que se en­ganaria:

Sob cada inteiro, par ou ímpar, podemos escrever seu dobro -— um inteiro par. Isto é, colocamos cada um dos ele-

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ALÉM DO GUGOL 53

mentos da classe de todos os inteiros, pares e ímpares, em correspondência um a um com os elementos da classe com­posta apenas dos inteiros pares. Este processo pode ser continuado até o gugolplex e além.

Ora, a classe dos inteiros é infinita. Nenhum inteiro, por maior que seja, pode descrever sua cardinalidade (ou numerosidade). Contudo, já que é possível estabelecer uma correspondência um a um entre a classe dos números pares e a dos inteiros, conseguimos contar a classe dos números pares, tal como contamos uma coleção finita. Estando as duas classes perfeitamente confrontadas, podemos concluir que têm a mesma cardinalidade. Que sua cardinalidade é a mesma, nós sabemos, da mesma forma que sabíamos que o número de cadeiras e o de pessoas na sala eram iguais quan­do todas as cadeiras estavam ocupadas e ninguém havia fica­do em pé. Assim, chegamos ao paradoxo fundamental de todas as classes infinitas: — Há partes componentes de uma classe infinita que são exatamente tão grandes quanto a própria classe, o TODO NÃO É MAIOR QUE ALGUMAS DE SUAS PARTES!

A classe composta pelos inteiros pares é diminuída quan­do comparada com a de todos os inteiros, mas, evidentemen­te, a diminuição não tem o menor efeito em sua cardinali­dade. E, ainda mais, não há quase limite para o número de vezes que este processo pode ser repetido. Por exemplo, há tantos números quadrados e cúbicos quantos são os in­teiros. Os pares apropriados são:

Na verdade, de qualquer classe enumerável, pode-se sempre retirar uma quantidade enumeràvelmente infinita de classes enumeràvelmente infinitas, sem afetar a cardinalidade da classe original.

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Às classes infinitas, que podem ser postas em corres­pondência um a um com os inteiros e, assim, "contadas", Cantor chamou* de contáveis, ou enumeràvelmente infinitas. Já que todos os conjuntos finitos são contáveis, e podemos dar a cada um deles um número, é natural que tentemos ampliar essa noção e dar à classe de todos os inteiros um número que represente sua cardinalidade. Contudo, é óbvio, pela descrição da "classe infinita", que nenhum inteiro co­mum seja adequado para descrever a cardinalidade de toda a classe de inteiros. Com efeito, seria o mesmo que pedir a uma cobra que se engolisse inteira. Assim, foi criado o primeiro dos números transfinitos para descrever a cardina­lidade das classes infinitas contáveis. Etimologicamente an­tigo, matematicamente novo, 55 (álefe), a primeira letra do alfabeto hebraico, foi o sugerido. Contudo, Cantor decidiu, finalmente, usar o símbolo composto $0 (Álefe-Nulo). À pergunta "Quantos números inteiros existem?" seria correto responder, "Há £0 inteiros".

Como suspeitasse que haveria outros números transfini­tos, na realidade um número infinito de transfinitos, e que a cardinalidade dos inteiros seria o menor deles, Cantor afi­xou ao primeiro £ um pequeno zero como índice. A cardi­nalidade de uma classe enumeràvelmente infinita é, portan­to, referida como 0 (Âlefe-nulo). Os números transfini­tos antecipados formam uma hierarquia de álefes: ^0, iU>

Tudo isto pode parecer muito estranho, e é perfeitamen­te desculpável que o leitor, nesta altura, já esteja completa­mente confuso. Mas, se acompanhou o raciocínio anteceden­te, ponto por ponto, e se dê ao trabalho de reler, pode ver que nada do que se disse é repugnante ao pensamento cor­reto. Tendo estabelecido o que significa contar no domínio finito, e o que significa o número, decidimos estender o pro­cesso de contar às classes infinitas. No que respeita ao nosso direito de seguir tal procedimento, julgamo-nos com o mesmo direito, por exemplo, daqueles que decidiram que o homem rastejou na superfície da Terra bastante tempo e que tinha chegado a hora de voar. Temos o direito de nos aventu­rarmos no mundo da$ idéias, assim como o temos çle esten-

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der nossos horizontes no universo físico. Uma única restri­ção nos é imposta nessas aventuras de idéias: que respeite­mos as regras da lógica.

Após estender o processo de contar, ficou logo evidente que nenhum número finito poderia descrever, adequadamen­te, uma classe infinita. Se qualquer número da Aritmética comum descreve a cardinalidade de uma classe, esta deve ser finita, mesmo que não haja bastante tinta, espaço ou tempo para escrever tal número. Precisaremos, então, de uma es­pécie de número inteiramente nova, não encontrada em qual­quer parte da Aritmética finita, para descrever a cardinalida­de de uma classe infinita. Assim, à totalidade dos inteiros foi dada a cardinalidade "álefe". Suspeitando que haja ou­tras classes infinitas com uma cardinalidade maior que a da totalidade dos inteiros, supusemos toda uma hierarquia de álefes, da qual o número cardinal da totalidade dos inteiros foi chamado Álefe-Nulo para indicar que era o menor dos transfinitos.

Tendo feito um interlúdio, sob a forma de sumário, vol­temos, mais uma vez, a investigar os álefes, para verificar se, com um conhecimento mais mtimo, eles não podem tornar-se mais fáceis de compreender.

A Aritmética dos álefes tem uma semelhança mínima com a dos inteiros finitos. A falta de modéstia no comportamen­to de £o é típica.

Um simples problema de adição aparece assim:

« o + l = No « o + gugo 1 = No No + No = No

As tábuas de multiplicação seriam fáceis de ensinar e ainda mais fáceis de aprender:

1 X No = No 2 X No = « o 3 X No = No n X No = No

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onde n representa qualquer número finito.

E, também, (N 0) 2 = No X No = No

E, portanto, (No)n = No

quando n é um inteiro finito.

Parece não haver variação no tema; a monotonia pare­ce inevitável. Mas tudo é muito enganador e traiçoeiro. Va­mos obtendo o mesmo resultado, pouco importando o que fazemos com ^o, quando, de repente, tentamos

(No)*ü

Esta operação, por fim, cria um novo transfinito. Mas, antes de entrarmos em considerações sobre êle, há mais coi­sas a dizer sobre as classes contáveis.

O bom senso diz que há mais frações que inteiros, por­que, entre dois inteiros quaisquer, há um número irifinito de frações. Ah! O bom senso é artigo estrangeiro na terra do infinito. Cantor descobriu uma simples, mas elegante, prova de que as frações racionais formam uma seqüência enumeràvelmente infinita, equivalente à classe dos inteiros. Daí, esta seqüência deve ter a mesma cardinalidade. *

* Foi sugerido que, neste ponto, o cansado leitor pusesse o livro de lado, com um suspiro — e fosse ao cinema. O único lenitivo que podemos oferecer é declarar que esta demonstração, como a seguinte, sobre a não-contabilidade dos números reais, é dura. Você pode ranger os dentes e tentar tirar delas o que puder, ou, convenientemen­te, omiti-las. O essencial a obter disto é que Cantor descobriu que as frações racionais são contáveis, mas que o conjunto dos números reais não o ê. Assim, apesar do que lhe diz o bom senso, não há mais frações do que inteiros e há mais números reais entre 0 e 1 do que elementos em toda a classe de inteiros.

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O conjunto de todas as frações racionais é arranjado, em iim quadro, não na ordem de grandeza crescente, mas na de numeradores e denominadores ascendentes:

FIG. 12 — Quadro de Cantor.

Já que cada fração pode ser escrita como um par de intei­ros, isto é, % como (3,4), a familiar correspondência um a um com os inteiros pode ser realizada. Isso é ilustrado abai­xo, pelas setas.

1 2 3 4 5 6 7 8 9

l I 1 l 1 t l l i-(1,1) (2,1) (1,2) (1,3) (2,2) (3,1) (4,1) (3,2) (2,3)

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Cantor também descobriu, por meio de uma demonstra­ção (técnica demais para nos interessar aqui) baseada na "altura'' das equações algébricas, que a classe de todos os números algébricos, números que são as soluções de equa­ções com coeficientes inteiros, do tipo:

aoXn + a\Xn~l + . . · + + an = 0 é enumeràvelmente infinita.

Mas Cantor percebeu que havia outros transfinitos, que havia classes que não eram contáveis, que não podiam ser postas em correspondência um a um com os inteiros. E um dos seus maiores triunfos veio quando êle conseguiu mostrar que há classes com uma cardinalidade maior que $o.

E esta classe é a dos números reais, composta de núme­ros racionais e irracionais. * E ela contém tanto os irracio­nais que são algébricos como os que não o são. Estes últi­mos são chamados números transcendentais.4

Dois importantes números transcendentais já existiam no tempo de Cantor: JT, razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro, e e, base dos logaritmos naturais. Pouca coisa mais se sabia a respeito da classe dos transcen­dentais: era um enigma. O que Cantor tinha de provar, para mostrar que a classe dos números reais era não-enume-rável (isto é, grande demais para ser contada pela classe dos inteiros), era o fato improvável de que a classe dos transcendentais era não-enumerável. Uma vez que os núme­ros racionais e os algébricos são conhecidos como enume­ráveis, e que a soma de qualquer número enumerável de classes enumeráveis é, também, uma classe enumerável, a única classe restante que poderia fazer a totalidade dos nú­meros reais não-enumerável era a classe dos transcendentais.

Êle era capaz de considerar tal prova. Se se conseguir mostrar que a classe dos números reais entre 0 e 1 é não-

* Números irracionais são os que não podem ser expressos por frações racionais. Por exemplo, y ' ? \/3> e, A classe dos núme­ros reais ê constituída de racionais como 1, 2, 3, \, e de irracio­nais como os acima citados,

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-enumerável, segue-se, a fortiori, que todos os números são não-enumeráveis. Empregando um artifício muitas vezes usado em Matemática Superior, a reductio ad absurdum, Can­tor supôs que era verdadeiro o que êle supunha falso e, en­tão, mostrou que essa suposição levava a uma contradição. Êle supôs que os números reais entre 0 e 1 eram contáveis e que podiam, portanto, fazer pares com os inteiros. Ten­do provado que esta suposição levava a uma contradição, seguia-se que sua oposta, ou seja, de que os números reais não podiam fazer pares com os inteiros (e, daí, não serem contáveis), era verdadeira.

Para contar os números reais entre 0 e 1, é preciso que eles sejam todos expressos de uma maneira uniforme e que seja conseguido um método de escrevê-los em ordem, para que possam fazer pares, um a um, com os inteiros. A pri­meira condição pode ser conseguida, porque é possível ex­pressar qualquer número real como uma dízima periódica. Assim, por exemplo: 5

i — 0 3333 . - Ã - = 0,2142857121428571... 3 ' 14

1 y2~ 1,414... n r f n r r

— 0,1111111... -J— = = 0,707...

Mas a segunda condição nos desafia. Como fazer os pares? Que sistema poderemos encontrar que garanta o apa­recimento de todos os decimais? Encontramos um método de garantir o aparecimento de todas as frações racionais. É bem verdade que não poderíamos escrever, realmente, todos eles, assim como não o faríamos em relação a todos os intei­ros; mas o método de aumentar numeradores e denominado­res foi tão explícito que, se tivéssemos um tempo infinito para fazê-lo, poderíamos realmente ter lançado todas as fra­ções e ter a certeza de não haver esquecido nenhuma delas. Ou, dizendo de outra maneira: poderíamos ter certeza e determinar, após haver feito o par de uma fração com um inteiro, qual seria a próxima fração, e a outra, a outra, e assim por diante.,,

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Por outro lado, quando um número real, expresso por uma dízima periódica, faz par com um inteiro, que método existe para determinar qual o decimal seguinte, em ordem, que deverá aparecer? Você apenas tem de perguntar a si mesmo qual será a primeira dízima a fazer par com o intei­ro 1, e você terá uma idéia da dificuldade do problema. Can­tor, porém, supôs que tal par existe, sem tentar apresentar sua forma explícita. Seu esquema foi: Com o inteiro 1 faz par a dízima 0,aia 2a 3 . . . , com o inteiro 2, 0 ,bib 2 b 3 . . . , etc. Cada uma das letras representa um algarismo da dízima, tal como aparece nela. O quadro final dos pares de dízimas e inteiros seria:

Este foi o quadro de Cantor. Mas fica imediatamente evidente que êle mostrava, gritantemente, a própria contra­dição que se estava procurando. Vale a pena repetir o deta­lhe: tendo conseguido uma forma geral para um quadro que supomos incluiria todas as dízimas, verificamos, apesar de todos os esforços, que algumas poderão ser omitidas. Isto foi indicado por Cantor com sua famosa "prova da diagonal". As condições para encontrar uma dízima omitida no quadro é simples. Ela deve diferir da primeira dízima do quadro, em seu primeiro algarismo; da segunda, em seu segundo alga­rismo; da terceira, no terceiro; e assim por diante. Mas, aí, ela deve diferir de qualquer dízima de todo o quadro em pelo menos um algarismo. Se (como mostra a figura) traçar­mos uma diagonal por todo o quadro modelo e escrevermos uma nova dízima, na qual cada algarismo deve diferir de

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cada um interceptado pela diagonal, esta nova dízima não pode ser encontrada no quadro.

A nova dízima poderia ser escrita assim: 0, a i £x 2 cc3 a 4 a 5 . . . ;

onde ax é diferente de ax; cc2, de lo?, cc3, de C3; a4, de d±; a 5, de es, etc. Da mesma maneira, será diferente de cada uma das dízimas, pelo menos em um algarismo, e da enésima pelo menos no enésimo algarismo. Isto prova, de modo con­clusivo, que não há meio de incluir todos os decimais em um possível quadro, nenhum modo de fazer pares deles com os inteiros. Portanto, tal como Cantor queria provar:

1. A classe dos números transcendentais não só é infinita, mas também não contável, isto é, não-enumeràvelmente infinita.

2. Os números reais entre 0 e 1 são infinitos e não contáveis. 3. A fortiori, a classe de todos os números reais é não-enume-

rável.

Cantor designou um novo cardinal transfinito para a classe não-contável dos números reais. Foi um dos álefes, mas qual deles ainda não está definido até hoje. Suspeita--se que este transfinito, chamado o "cardinal do contínuo", que é representado por c ou C, é idêntico a #1. Mas ainda não se conseguiu uma prova aceitável pela maioria dos ma­temáticos.

A Aritmética de C é muito semelhante à de %0. A tábua de multiplicação tem a mesma monótona qualidade, digna

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de confiança. Mas, quando C é combinado com ^o, este é completamente absorvido. Assim:

C + Ko = C C - K o = C C X N o = C e até C X C = C

E, novamente, almejamos uma variação do tema quando che­gamos ao processo da involução. Contudo, por enquanto, continuamos desapontados, porque C « ° = C. Mas, assim como (^o)*° não é iguala ^o, Cc também não é igual a C.

Podemos, agora, resolver nosso problema anterior de invo­lução, porque, na realidade, Cantor verificou que ( o) = C. Do mesmo modo, Ce faz surgir um novo rransfmito, maior que C. Este transfrnito representa a cardinaHdade da classe de funções de um valor. É, também, um dos & mas, nova­mente, não sabemos qual deles. É, muitas vezes, repre­sentado como F. 6 De modo geral, o processo da involução, quando repetido, continua a gerar transfinitos cada vez maiores.

Assim como os inteiros servem de padrão de medida pa­ra as classes com a cardinaHdade ^o, a classe dos números reais serve de padrão para aquelas cuja cardinaHdade é C. Na verdade, há classes de elementos geométricos que não podem ser medidas de outro modo senão pela classe dos nú­meros reais.

Partindo da noção geométrica de um ponto, a idéia evo­luiu para a afirmação de que, em qualquer segmento linear dado, há um número infinito de pontos. Os pontos em um segmento linear são, também, como dizem os matemáticos, "densos em todos os lugares". Isto quer dizer que, entre dois pontos quaisquer, há uma infinidade de outros. O conceito de dois pontos justapostos não tem, portanto, senti­do algum. Esta propriedade de ser "denso em todos os lu­gares" constitui uma das características essenciais de um contínuo. Cantor, referindo-se à "cardinaHdade do contí­nuo" reconheceu que ela se aphca tanto à classe dos núme­ros reais como à dos pontos em um segmento Hnear. Ambas são densas em todos os lugares e ambas têm a mesma car-

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dinalidade, C. Em outras palavras, é possível fazer pares dos pontos de um segmento linear com os números reais.

As classes com cardinalidade C possuem uma proprie­dade semelhante à das classes com cardinalidade Jtfo: elas podem ser diminuídas sem afetar, em nada, sua cardinalida­de. Com relação a isto, observamos, de um modo bastante impressionante, outra ilustração do princípio da Aritmética transfinita de que o todo não é maior que muitas de suas partes. Por exemplo, pode-se provar que há tantos pontos em uma linha com 30 centímetros de comprimento quantos em outra de um metro. O segmento linear AB da Fig. 13 é três vezes maior que a linha A'B'. Contudo, é possível colocar a classe de todos os pontos do segmento AB em uma correspondência um a um com a dos pontos do segmento A'B'.

L

FIG. 13

Seja L a interseção das linhas AAf e BB'. Então, se, a cada ponto M de AB, corresponde um ponto M' de A!B', que está na linha L M , estabelecemos a correspondência pro­curada entre a classe dos pontos em A'Bf com os em AB. Ê fácil ver intuitivamente, e provar geometricamente, que isso é sempre possível e que, portanto, a cardinalidade das duas classes de pontos é a mesma. Então, uma vez que A'B' é menor que AB, pode ser considerado como uma parte real de AB e estabelecemos, novamente, que uma classe infinita pode conter, como partes reais, subclasses equivalentes a ela.

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Há outros exemplos assustadores, em Geometria, que ilustram o poder do contínuo. Embora seja bastante assus­tadora a declaração de que uma linha de um centímetro de comprimento contém tantos pontos quantos existem em ou­tra que envolva o equador, ou que se estenda da Terra à mais distante das estrelas, é simplesmente fantástico pensar que uma Unha com um mihonésimo de centímetro tem tantos pontos quantos existem no espaço triclimensional de todo o universo. Mas é verdade. Quando os princípios da teoria dos transfiiütos de Cantor é entendida, tais proposições deixam de parecer extravagâncias de um matemático louco. Os des­propósitos, como disse Russell, "tornam-se, então, não me­nos absurdos que os antípodas, que se acreditava andarem de cabeça para baixo". Mas aóhnitindo que o tratamento do infinito é uma forma de loucura matemática, somos forçados a aceitar, como o fez o Duque em Measure for Measure:

Se ela é louca — e não penso diferente — Sua loucura tem estranha moldura de razão, E tal dependência de coisa em coisa, Como nunca vi em outra loucura.

* Até agora, evitamos, deliberadamente, uma definição da

"classe infinita''. Mas, finalmente, nosso equipamento tor­na-nos capazes de apresentá-la. Vimos que uma classe infi­nita, com cardinalidade C, ou maior, pode ser diminuída de formas sem conta, sem afetar sua cardinalidade. Em re­sumo, o todo não é maior que muitas de suas partes. Ora, esta propriedade não existe, em absoluto, nas classes fini­tas; pertence, apenas, às infinitas. Então, é um método sin­gular para determinar se uma classe é finita ou infinita. As­sim, eis nossa definição: Uma classe infinita é aquela que pode ser colocada em correspondência recíproca um a um com um próprio subconjunto de si mesma.

Munidos desta definição e de algumas idéias que en­contramos, podemos reexaminar alguns dos paradoxos de Ze­não. O de Aquiles com a tartaruga pode ser expresso da seguinte maneira: Aquiles e a tartaruga, correndo na mes­ma direção, devem, cada um, ocupar o mesmo número de

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posições distintas durante a corrida. Contudo, para Aqui­les alcançar sua oponente, mais vagarosa e determinada, êle tem de ocupar mais posições que a tartaruga, no mesmo pe­ríodo de tempo. Uma vez que isso é manifestamente im­possível, podemos jogar na tartaruga.

Mas não nos apressemos. Há melhores maneiras de eco­nomizar do que meramente contar o troco. De fato, afinal, devemos apostar em Aquiles, porque êle provavelmente ga­nhará a corrida. Embora não tenhamos pensado nisto, aca­bamos de provar que êle pode alcançar a tartaruga, ao mos­trarmos que uma linha com um miHonésimo de centímetro tem tantos pontos quantos a que se estende da Terra à mais longínqua das estrelas. Em outras palavras, os pontos no pequeno segmento linear podem ser postos em correspondên­cia um a um com os da grande linha, porque não há ne­nhuma relação entre o número de pontos da linha e o com­primento desta. Mas isto revela o erro de pensar que Aqui­les não pode alcançar a tartaruga. A declaração de que Aqui­les deve ocupar tantas posições distintas quantas a tarta­ruga está correta. Da mesma forma, a afirmação de que êle deve percorrer uma distância maior que a tartaruga, num mesmo tempo. A única declaração incorreta é a dedu­ção de que, como deve ocupar o mesmo número de posições que a tartaruga, êle não pode ir além, enquanto assim o fi­zer. Embora as classes dos pontos em cada linha, que cor­respondem às diferentes posições de Aquiles e da tartaru­ga, sejam equivalentes, a linha que representa o canrinho de Aquiles é muito mais longa que a representante do da tar­taruga. Aquiles pode ir muito mais além da tartaruga, sem tocar, sucessivamente, mais pontos.

Para a solução do paradoxo sobre a flecha em vôo, preci­samos dizer umas palavras sobre outro tipo de contínuo. Ê conveniente, e certamente usual, olhar o tempo como um con­tínuo. O contínuo do tempo tem as mesmas propriedades do espaço: os instantes sucessivos em qualquer porção do tempo, tal como os pontos de uma linha, podem ser postos em correspondência um a um com a classe dos números reais; entre quaisquer dois instantes de tempo, podem ser interpolados uma infinidade de outros; o tempo também tem

5

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a propriedade matemática exposta anteriormente — é denso em toda parte.

O argumento de Zenão era que, em cada instante de tempo, a flecha estava em algum lugar, ou posição, e, as­sim, não podia estar, em qualquer momento, em movimento. Embora a afirmação de que a flecha tem de estar, a qual­quer momento, em algum lugar seja verdadeira, a conclusão de que, por isso, não pode estar-se movendo é absurda. Nos­sa tendência natural para aceitar este absurdo vem de nossa firme convicção de que o movimento é inteiramente dife­rente do repouso. Não nos confundimos com a posição de um corpo em repouso — sentimos que não há mistério no estado de repouso. Deveríamos sentir o mesmo quando con­siderando um corpo em movimento.

FIG. 14 — Nas horas indicadas, a Estátua da Liberdade está no ponto mencionado, enquanto os passageiros do táxi esta­

rão vendo as paisagens mostradas à direita.

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Quando um corpo está em repouso, está em uma posi­ção em um determinado instante de tempo e, um instante depois, ainda se conserva na mesma posição. Quando está em movimento, há uma correspondência um a um entre cada instante de tempo e cada nova posição. Para ficar bem cla­ro, devemos apresentar duas tabelas: uma descreverá um corpo em repouso; a outra, um em movimento. A tabela do "repouso" contará a história e a geografia da Estátua da Liberdade, enquanto a do "movimento" descreverá a Odis­séia de um automóvel.

As tabelas indicam que, a qualquer instante de tempo, corresponde uma posição da Estátua da Liberdade e do táxi. Há uma correspondência um a um de espaço e tem­po, tanto para o repouso como para o movimento.

Não haverá nenhum paradoxo escondido no problema da flecha quando olhamos nossa tabela. Na verdade, seria estranho haver lacunas na tabela; se fosse impossível, a qual­quer momento, determinar exatamente qual é a posição da flecha.

A maioria das pessoas juraria pela existência do movi­mento, mas não estamos acostumados a pensar nele como algo que faz que um objeto ocupe diferentes posições em diferentes instantes de tempo. Estamos capacitados a pen­sar que o movimento dota um objeto da estranha proprie­dade de não estar, continuamente, em parte alguma. Limi­tados por nossos sentidos, que nos impedem de perceber que um objeto em movimento ocupa, simplesmente, uma po­sição após a outra, e o faz bastante rapidamente, criamos uma ilusão a respeito da natureza do movimento e a trans­formamos em um conto de fadas. A Matemática nos ajuda a analisar e tomar claro o que percebemos, até um ponto em que somos forçados a reconhecer, se não queremos mais ser guiados por contos de fada, que vivemos ou no mundo imu­tável do Sr. Russell ou num mundo em que o movimento não é mais que uma forma de repouso. É a mesma história contada mais rapidamente. A do repouso é: "Está aqui". A do movimento: "Está aqui, está ali". Só pelo fato de, neste particular, parecer com o fantasma do pai de Hamlet,

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não há razão para duvidar de sua existência. A maioria de nossas crenças estão presas a fantasmas menos substanciais. O movimento talvez não seja fácil de compreender pelos nossos sentidos, mas, com o auxílio da Matemática, sua es­sência pode ser afinal compreendida.

No princípio do século XX, era geralmente aceito que o trabalho de Cantor tomou claro o conceito do infinito, a tal ponto que se podia falar e tratá-lo da mesma maneira que se fazia com qualquer outro conceito matemático respeitá­vel. A controvérsia, que surge sempre que filósofos mate­máticos se encontram, em publicações ou pessoalmente, mos­tra que este era um ponto de vista errado. Em seus termos mais simples, esta controvérsia, no que se refere ao infinito, se centraliza nas perguntas. Existe o infinito? Existe algo como uma classe infinita? Tais perguntas quase não têm sentido, salvo se o termo matemático "existência" for expli­cado primeiro.

Em seu famoso "Agony in Eight Fits", Lewis Carroll per­seguiu o "snark". * Ninguém conhecia o "snark" ou sabia muito a respeito dele, a não ser que êle existia e que era melhor manter-se afastado de um "boojum". * O infinito pode ser um "boojum", também, mas sua existência, em qual­quer forma, é motivo de dúvida considerável. "Boojum" ou variedade de jardim, o infinito certamente não existe den­tro do mesmo sentido em que dizemos "Existem peixes no mar". Da mesma forma, a declaração "Existe um número chamado 7" se refere a alguma coisa que tem existência dife­rente dos peixes do mar. "Existência", no sentido matemá­tico, é inteiramente diferente da existência de objetos no mundo físico. Uma bola de bilhar pode ter como uma de suas propriedades, além da brancura, convexidade, dureza, etc, uma relação da circunferência com o diâmetro, envol­vendo o número n. Podemos concordar que tanto a bola

• Criações fictícias do autor citado (Nota do Tradutor).

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de bilhar quanto n existem; devemos também concordar que a bola de bilhar e n levam diferentes tipos de vidas.

Já houve tantos pontos de vista em relação ao problema da existência, desde Euclides e Aristóteles, quantos foram os filósofos. Nos tempos atuais, as várias escolas de Filosofia Matemática, a escola logística, os formalistas, os intuicionis-tas, todos têm discutido a essência pouco menos que crista­lina do ser matemático. Todas essas disputas estão além de nossa compreensão, nosso objetivo, ou nossa intenção. Uma companhia, ainda mais estranha que a tartaruga, Aquiles e a flecha, tinha defendido a existência das classes infinitas — defendeu-a no mesmo sentido em que defenderia a exis­tência do número 7. Os formalistas, que consideram a Ma­temática um jogo sem significação, mas que o jogam com não menos gosto, e a escola logística, que considera a Ma­temática como um ramo da Lógica — ambos ficaram ao lado de Cantor e defenderam os álefes. A defesa se apoia na noção da autoconsistência. "Existência" é a expressão meta­física, unida às noções de ser e outros fantasmas ainda piores que o "boojum". Mas a expressão "proposição autoconsis-tente" se assemelha à linguagem da Lógica e tem seu odor de veneração. Uma proposição que não seja autocontradi-tória é, de acordo com a escola logística, uma declaração de existência verdadeira. Partindo deste ponto, a maior parte da Matemática de Cantor sobre o infinito é inatacável.

Novos problemas e novos paradoxos, contudo, foram des­cobertos, partindo de partes da estrutura de Cantor, por cau­sa de certas dificuldades já inerentes à Lógica clássica. Têm seu foco no uso da palavra "todas". Os paradoxos encontra­dos na conversação comum, tais como "Todas as generalida­des são falsas, inclusive esta", constituem um problema real nos fundamentos da Lógica, como o de Epimênides, tão logo surgem. No de Epimênides, um cretense declara que todos os cretenses são mentirosos, o que, se verdadeiro, torna o declarante um mentiroso por dizer a verdade. Para se livrar deste tipo de paradoxo, a escola logística inventou a "Teo­ria dos Tipos". A teoria dos tipos e o axioma da redutibili-dade, em que se baseia, devem ser aceitos como axiomas, pa­ra evitar paradoxos desta espécie. Para conseguir isto, é

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necessária uma reforma da Lógica clássica, o que já se está fazendo. Como a maioria das reformas, não é totalmente satisfatória — mesmo para os reformadores — mas, por meio da sua teoria dos tipos, o último vestígio de inconsistência foi retirado da casa construída por Cantor. A teoria dos transfinitos ainda pode ser um grande disparate para mui­tos matemáticos, mas é, certamente, consistente. A séria acusação feita por Henri Poincaré em seu aforismo, "La lo-gistique nest plus stérile: elle engendre la contradiction", foi rebatida, com sucesso, pela doutrina logística no que se refere ao infinito.

Aos álefes de Cantor, podemos, então, atribuir a mesma existência dada ao número 7. Uma declaração de existên­cia livre de autocontradição pode ser feita em relação a am­bos. Para isto, não existe nenhuma razão válida para con­fiar mais no finito do que no infinito. Tanto é permissível desfazer-se do infinito como rejeitar as impressões dos pró­prios sentidos. Fazê-lo não é nem mais nem menos cientí­fico. Numa análise final, isso é questão de fé e gosto, mas não como se rejeita a crença em Papai Noel. As classes in­finitas, julgadas dentro dos padrões finitos, geram paradoxos muito mais absurdos e muito menos agradáveis que a cren­ça em Papai Noel; mas, quando submetidas a padrões apro­priados, perdem sua aparência esquisita e se comportam tão previsivelmente quanto qualquer inteiro finito.

Finalmente, em seu próprio ambiente, o infinito ocupou um lugar respeitável, ao lado do finito, tão real e justo como digno de confiança, embora de caráter inteiramente diferen­te. Seja o que for o infinito, não é mais um elefante branco.

NOTAS

1. Distiriguimos os cardinais dos números ordinais, que indicam a relação de um elemento de uma classe com os outros, com refe­rência a algum sistema de ordem. Assim, falamos do primeiro Faraó do Egito, ou do quarto inteiro, em sua ordem habitual, ou do terceiro dia da semana, etc. Estes são exemplos de ordinais.

2. Para definição dos números primos, ver capítulo sobre PIE.

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Esta série é dita CONVERGENTE PARA U M LTMITE — 1. A discussão deste conceito é transferida para os capítulos sobre PIE e cálculo.

Um número transcendental é aquele que não é raiz de uma equa­ção algébrica com coeficientes inteiros. Ver PIE.

Toda dízima exata, tal como 0,4, tem uma forma de dízima pe­riódica 0,3999.. .

Uma interpretação geométrica simples da classe de todas as fun­ções de um valor é a seguinte: associe uma côr do espectro a cada ponto do segmento linear. A classe F é então composta de todas as combinações de cores que se possa conceber.

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III

P I E (TC, i, e)

T R A N S C E N D E N T A L E I M A G I N Á R I O

Para atingir a Verdade, é necessário, uma vez na vida, duvidar de tudo — tanto quanto possível.

DESCARTES

T ALVEZ a ciência pura se inicie onde acaba o bom senso; talvez, como diz Bergson, "A inteligência é caracterizada por uma natural falta de compreensão da vida". 1 Mas não te­mos paradoxos para pregar, nem epigramas para vender. Ape­nas, o estudo da ciência, particularmente da Matemática, mui­tas vezes conduz à conclusão de que se precisa tão-sòmente dizer que uma coisa é inacreditável, impossível, e a ciência provará que se está errado. O bom senso nos diz, clara­mente, que a Terra é plana e imóvel, que os chineses e os antípodas andam suspensos pelos pés, como candelabros, que as linhas paralelas nunca se encontram, que o espaço é infi­nito, que os números negativos são tão reais quanto vacas negativas, que —1 não tem raiz quadrada, que uma série infi­nita deve ter uma soma infinita, e que deve ser possível, com régua e compasso apenas, construir um quadrado com área exatamente igual à de um círculo dado.

Até que ponto fomos levados pelo bom senso para chegar a essas conclusões? Não muito longe! E algumas das de­clarações parecem bem plausíveis, até mesmo inevitáveis. Se­ria errado dizer que a ciência provou que eram todas falsas. Podemos ainda nos apegar à hipótese de Euclides de que as

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T?m (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 73

paralelas nunca se encontram e se mantêm sempre equidistan­tes, contanto que nos lembremos que é apenas uma hipótese, mas as declarações sobre a quadratura do círculo, a raiz quadrada de —1 e sobre a série infinita são de uma cate­goria diferente.

Não se pode quadrar o círculo com régua e compasso. —1 tem uma raiz quadrada. Uma série irrfinita pode ter uma soma finita. Três símbolos, n, i, e, permitiram aos ma­temáticos provar estas declarações; três símbolos que repre­sentam os frutos de séculos de pesquisas matemáticas. Como se comportam em relação ao bom senso?

O mais famoso problema de toda a história da Matemá­tica é o da "quadratura do círculo". Dois outros problemas que desafiaram os geómetras gregos, a "duplicação do cubo" e a "triseção de um ângulo", podem, a título de interesse, ser brevemente tratados com o primeiro, embora apenas a qua­dratura do círculo envolva o valor n.

Na infância da Geometria, descobriu-se que era possí­vel medir a área de uma figura cercada por rinhas retas. Na verdade, a Geometria foi desenvolvida com este mesmo pro­pósito — medir os campos do vale do Nilo, onde, todos os anos, com as enchentes do rio, desapareciam todas as mar­cas colocadas pelos fazendeiros para indicar os campos que eram seus e quais os do vizinho. A medição de áreas deli­mitadas por linhas curvas apresentava dificuldades maiores, e foi feito um esforço para reduzir cada problema deste tipo ao da medida de áreas com Emites retos. É claro que, se pudermos construir um quadrado com a área de um círculo dado, medindo-se a área do quadrado, teremos a do círculo. A expressão "quadrar um círculo" tira seu nome desta apro­ximação.

O número n é a relação entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro. A área de um círculo de raio r é dada pela fórmula nr2. Ora, a área de um quadrado com um lado A é A 2 . Assim, a expressão algébrica: A 2 — nr2

expressa a equivalência em área entre um quadrado dado e um círculo. Tirando as raízes quadradas de ambos os

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74 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

membros desta equação, teremos A — r \/nr. Como r é uma quantidade conhecida, o problema de quadrar o círculo se resume, na realidade, na determinação 2 do valor de rc.

Uma vez que os matemáticos conseguiram calcular n com exatidão extraordinária, o que significa a declaração "É impossível quadrar o círculo"? Infelizmente, esta questão ain­da está encoberta por muitos equívocos. Mas estes desapa­receriam se o problema fosse entendido.

A quadratura do círculo é proclamada impossível, mas o que significa "impossível" em Matemática? O primeiro bar­co a vapor a cruzar o Atlântico levava, como parte de sua carga, um livro que "provava" que era impossível um barco a vapor cruzar qualquer coisa, e muito menos o Atlântico. Muitos dos sábios de duas gerações atrás "provaram" que seria impossível para sempre inventar uma máquina prática para o vôo do mais pesado que o ar. O filósofo francês, Au­guste Comte, demonstrou que seria sempre impossível para a mente humana descobrir a constituição química das es­trelas. No entanto, não muito depois desta declaração, apli­cou-se o espectroscópio à luz das estrelas e sabemos, agora, mais a respeito de sua constituição química, inclusive das distantes nebulosas, do que sobre o que temos dentro de nosso armário de remédios. Apenas como ilustração, o hé­lio foi descoberto no Sol antes de o ser na Terra.

Os museus e as repartições de patentes estão cheios de canhões, relógios e máquinas de descaroçar algodão, já ob­soletos, cada um deles contradizendo predições de que sua invenção seria impossível. Um cientista, quando diz que uma máquina ou projeto é impossível, apenas revela as limi­tações de sua época. Independente das intenções do profeta, a predição não tem nenhuma das qualidades da profecia. "É impossível voar até a Lua" não tem sentido, enquanto "Não descobrimos ainda um meio de voar até a Lua" é diferente.

Declarações sobre impossibilidades na Matemática são de caráter inteiramente diferente. Um problema de Matemática que não possa ser solucionado nos séculos vindouros não é sempre impossível. "Impossível", em Matemática, significa

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PIE (7T, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 75

teoricamente impossível, e não tem nada a ver com o estado atual do conhecimento humano. "Impossível", em Matemáti­ca, não caracteriza o processo de transformar uma orelha de porco em bolsa de seda, ou uma bolsa de seda em orelha de porco; êle realmente caracteriza uma tentativa de provar que 7 vezes 6 são 43 (apesar do fato de pessoas fracas em Arit­mética conseguirem, muitas vezes, o impossível). Pelas re­gras da Aritmética, 7 vezes 6 são 42, tal como, pelas regras do xadrez, um peão tem de fazer pelo menos 5 movimentos antes de se transformar em rainha.

Enquanto não se apresentar uma prova teórica de que um problema não pode ser solucionado, deve-se procurar uma solução, por mais improvável que seja o sucesso. Durante séculos, a construção de um polígono regular de 17 lados foi corretamente considerado difícil, mas falsamente tida como impossível, porque, em 1796, um rapaz de dezenove anos, Gauss, conseguiu descobrir uma construção elementar. 3 Por outro lado, muitos problemas famosos, tais como o Ultimo Teorema de Fermat, 4 têm desafiado os matemáticos, até ho­je, apesar de pesquisas heróicas. Para determinar se temos o direito de dizer que a quadratura do círculo, a triseção do ângulo ou a duplicação do cubo são impossíveis, temos de encontrar provas lógicas, que envolvam razões puramente ma­temáticas. Logo que tais provas sejam apresentadas, conti­nuar a busca de uma solução será o mesmo que procurar um bípede de três pernas.5

• Tendo estabelecido o que os matemáticos compreendem

como impossível, a simples declaração de que "É impossível a quadratura do círculo" ainda permanece sem sentido. Pa­ra dar-lhe significação, devemos especificar como podemos quadrar o círculo. Quando Arquimedes disse, "Dêem-me um ponto de apoio e levantarei o mundo", êle não estava-se vangloriando de sua força física, mas enaltecendo o princí­pio da alavanca. Quando se declara que não se pode qua­drar o círculo, o que se quer dizer é que isto não pode ser jeito com régua e compasso apenas, embora, com o auxílio de um integrador ou de curvas superiores, a operação se torne possível,

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76 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Repitamos o problema: quer-se coiistruir um quadrado com área igual à de um círculo dado, por meio de um plano teórico exato, usando apenas dois instrumentos: a ré­gua e o compasso. Chamamos de régua um instrumento com uma borda reta, para traçar uma linha reta, e não para me­dir comprimentos. Compasso é um mstrumento com o qual podemos traçar um círculo com qualquer centro e qualquer raio. Estes instrumentos devem ser usados um número fini­to de vezes; então, não podem ser empregados limites ou processos convergentes, com um número infinito de opera­ções. 6 A construção, por motivos puramente lógicos, ba­seando-se unicamente nos axiomas e teoremas de Euclides, deve ser absolutamente exata.

Os conceitos de "limite" e "convergência" são mais bem explicados adiante,7 mas justifica-se uma palavra sobre eles.

Consideremos a série familiar

+ 2 + 4 8 + 16 + 32 + " *

FIG . 15 — Um número infinito de termos, com uma soma finita. Se a largura do primeiro bloco é de um pé, o do segundo, % pé; a do terceiro, % de pé; a do quarto, %, e assim por diante, um número infinito de blocos poderá ficar sobre uma barra com 2 pés de comprimento, isto é:

, . 1 1 1 1

14 4- j- — -4 (_ . . , = 2 , £ 4 T 8 T 16 +

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 77

A soma dos 5 primeiros termos desta série é 1,9375; a dos dez primeiros, 1,9980...; a dos 15 primeiros, 1,999781... O que se constata imediatamente é que esta série tende a se estrangular, isto é, os termos adicionais que se sucedem tor­nam-se tão pequenos que mesmo um vasto número deles não fará a série aumentar além de um limite finito. Neste caso, o limite é 2. Estas séries que se estrangulam são ditas que "convergem"8 para um "limite".

A analogia geométrica dos conceitos de limite e con­vergência é igualmente útil. Um círculo pode ser conside­rado como o limite dos polígonos com número crescente de lados que podem ser sucessivamente inscritos ou circunscri­tos a êle, e sua área é o limite comum dos dois conjuntos de polígonos.

Isto não é uma definição rigorosa de limite e conver­gência, mas, muitas vezes, o rigor matemático serve apenas para fazer aparecer outra espécie de rigor — o rigor mortis da faculdade criadora da Matemática.

Voltando à quadratura do círculo: os gregos e os mate­máticos posteriores procuraram a construção exata com régua e compasso, mas sempre falharam. Como veremos adiante, todas as construções de régua e compasso são equivalentes geométricos de equações algébricas de primeiro e segundo grau, e de combinações de tais equações. Mas o matemáti­co alemão Lindemann provou, em 1882, que n é um número transcendental e, portanto, qualquer equação que seja satis­feita por êle não pode ser algébrica e, muito menos, dos primeiro e segundo graus. Daí se conclui que tem sentido a declaração de que "A quadratura do círculo é impossível com régua e compasso apenas".

Quanto aos outros dois problemas, graças, em parte, ao trabalho do "maravilhoso rapaz . . . que pereceu na prima­vera da vida", Galois, apresentado quando êle tinha 16 anos de idade, já ficou estabelecido, há cerca de um século, que a duplicação do cubo e a triseção do ângulo também são impossíveis com régua e compasso. Trataremos deles bre­vemente.

Há uma lenda entre os gregos de que o problema da du­plicação do cubo se originou de uma visita ao oráculo de

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Delfos. Havia uma epidemia na época, e o oráculo disse que ela só cessaria se se duplicasse o tamanho de um altar cúbico de Apolo. Os pedreiros e arquitetos cometeram o erro de duplicar o lado do cubo, mas isto tornou o volume oito vezes maior. É lógico que o oráculo não ficou satis­feito, e os matemáticos gregos, reexaminando o problema, começaram a perceber que a resposta certa corresponderia não a duplicar o lado, mas multiplicá-lo pela raiz cúbica de 2. Isto não poderia ser feito geometricamente com régua e compasso. Eles, finalmente, comeguiram, usando outros ins­trumentos e curvas superiores. O oráculo foi aplacado e a epidemia desapareceu. Você pode crer ou não na história, mas não pode "duplicar o cubo". 9

A triseção de um ângulo recebeu muita atenção dos jornais durante os últimos anos porque continuam a surgir monografias onde se declara haver sido encontrada a solução completa do problema. As fraudes contidas em tais "solu­ções" são de quatro espécies: são, muitas vezes, soluções meramente aproximadas, mas não exatas; outros instrumen­tos, e não apenas régua e compasso, são, às vezes, emprega­dos, intencionalmente ou não; há uma fraude lógica na pro­va procurada; e, muitas vezes, são considerados apenas al­guns ângulos especiais e não quaisquer deles. Um ângulo pode ser bisseeionado, mas não trissecionado, pela Geome­tria elementar, uma vez que o primeiro problema envolve apenas raízes quadradas, enquanto o segundo lida com raí­zes cúbicas que, como mostramos, não podem ser construí­das com régua e compasso.

• A dificuldade na quadratura do círculo, como vimos, es­

tá na natureza do número n. Este número notável, como Lindermann provou, não pode ser raiz de uma equação algé­brica com coeficientes inteiros. 1 0 Não pode, portanto, ser expresso por operações racionais, ou pela extração de raízes quadradas, e, como somente estas operações podem ser tra­duzidas em uma construção equivalente com régua e com­passo, é impossível a quadratura do círculo. A parábola é uma curva mais complicada que o círculo, mas, já o sabia Arquimedes, qualquer área limitada por uma parábola e

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 79

uma linha reta pode ser determinada por operações racio­nais e, daí, ser "possível a quadratura da parábola".

A prova de Lindemann é por demais técnica para nos interessar aqui. Se, porém, consideramos a história e o de­senvolvimento de 7i, ficaremos em melhores condições para entender sua finalidade, sem ser obrigados a suplantar suas dificuldades.

Se um triângulo é inscrito em um círculo (Fig. 16), a área do triângulo inscrito será menor que a do círculo:

FIG . 16 — 0 círculo como limite dos polígonos inscritos e circunscritos.

A diferença entre a área do círculo e a do triângulo cor­responde às três porções escuras do círculo. Consideremos, agora, o mesmo círculo, com um triângulo circunscrito a êle (Fig. 16). A área do triângulo circunscrito será maior que a do círculo. As três partes escuras do triângulo represen­tam, agora, a diferença de área. Podemos, facilmente, ver que, se o número de lados da figura inscrita fôr duplicado, a área do hexágono resultante será menor que a do círculo, porém mais aproximada da deste que a do triângulo inscrito. De modo semelhante, se o número de lados do triângulo cir­cunscrito fôr duplicado, a área do hexágono circunscrito ainda será maior que a do círculo, mas, novamente, mais

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80 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

aproximada da deste que a do triângulo circunscrito. Por métodos bem conhecidos, simples e geométricos, empregando apenas régua e compasso, o número de lados dos polígonos inscritos e circunscritos pode ser duplicado tantas vezes quan­tas se quiser. A área dos polígonos sucessivamente inscritos aproximar-se-á da do círculo, mas sempre será um pouquinho menor; a área dos polígonos circunscritos também se aproxi­mará da do círculo, mas permanecerá sempre um pouqui­nho maior do que ela. O valor de aproximação comum às duas é a área do círculo. Em outras palavras, o círculo é o limite destas duas séries de polígonos. Se o raio do círculo for igual a 1, sua área, que é ?ir2, será simplesmente n.

Este método de aumentar e diminuir os polígonos para computar o valor de n era conhecido por Arquimedes que, empregando polígonos de 96 lados, mostrou que n é menor

1 10 ^ , . que 3— e maior que 3—. Em algum lugar, entre os dois

valores está a área do círculo. A aproximação de Arquimedes para n é consideravelmen­

te mais certa que a dada na Bíblia. No livro dos Reis e nos Paralipômenos, TI é dado como valendo 3. Os matemáticos egípcios deram um valor algo mais apurado — 3,16. A dí­zima familiar — 3,1416, usada em nossos livros escolares, já era conhecida no tempo de Ptolomeu, em 150 A.C.

Teoricamente, o método de Arquimedes de calcular n aumentando o número de lados dos polígonos pode ser inde­finidamente estendido, mas os cálculos necessários se torna­rão, muito breve, inconvenientes. Apesar disso, durante a Idade Média, tais cálculos foram zelosamente realizados.

Francisco Vieta, o mais eminente matemático do século XVI, embora não fosse um profissional, deu um grande avan­ço ao cálculo de n9 determinando seu valor até à décima casa decimal. Além de descobrir a fórmula:

2

e um produto indefinido, e muitas outras descobertas ma­temáticas importantes, Vieta prestou serviço ao Rei Henrique

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IV da França, na guerra com a Espanha, decifrando cartas interceptadas da Coroa espanhola para seus governadores nos Países Baixos. Os espanhóis ficaram tão impressionados que atribuíram a descoberta da chave da cifra a poderes mági­cos. Não foi esta a primeira nem a última vez que os esfor­ços dos matemáticos foram rotulados de necromancia.

Em 1596, o matemático alemão Ludolph van Ceulen, por muito tempo residente na Holanda, calculou 35 casas de­cimais para o valor de n. Em vez do epitáfio "morto aos 40, enterrado aos 60", próprio para os casos em que a função cerebral cessa exatamente quando se diz que a vida começa, van Ceulen, que trabalhou em n quase até o dia de sua mor­te, com a idade de 70 anos, pediu que os 35 algarismos de TI, que êle havia calculado, fossem inscritos como um epitáfio condizente para seu túmulo. E isto foi feito realmente. O valor dado por êle para n é, em parte, 3,14159 26535 89793 23846 . . . Em memória deste acontecimento, os alemães ainda chamam este número de ludolfiano. Propomos que TI seja denominado número arquimediano.

O número n atingiu a maturidade com a invenção do "cálculo" por Newton e Leibnitz. O método grego foi aban­donado e ficou em moda o artifício puramente algébrico das frações contínuas, produtos e séries infinitas convergentes. O inglês John Wallis (1616-1703) contribuiu com um dos pro­dutos mais famosos:

T - 2 v 2 v 4 y 4 v 6 * 6 y 8 v 8 X 2 ~ I X 3 X 3 X 5 X 5 X 7 X 7 X 9 X ' · ·

A série infinita de Leibnitz, ao contrário do produto de Wallis para n, é uma soma:

i - 1 . l 4 . i - i 4 . i - i 4 . i - i j . 4 3 ^ 5 7" +"9 11 13 15^ " ' Os sucessivos produtos e somas dos termos destas sé­

ries dão valores para n tão aproximados quanto se quiser. Estes processos, típicos dos poderosos métodos de aproxima­ção, usados em Matemática como nas outras ciências, embo­ra muito menos incômodos que o método empregado pelos

6

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82 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

gregos, ainda exigem grande quantidade de cálculo. Os pro­dutos da série de Wallis são:

1 ' 1 * 3 3' 1 A 3 A 3 9 ' 1 X 3 X 3 X 5 " 45'

Fie. 17 — Produto de Wallis.

Ü = 1,57 . . . 2 3i 2 2 4 4 6

= X X X X X . . 2 1 3 3 5 5

Tomando as sucessivas somas da série de Leibnitz, ob­temos :

1 _ 2 1 i 1 =

1 1 1 I 1 1 - 7 6 1, 3 3 , 3 -t- 5 1 5 , 3 + 5 ? 1 Q 5 , etc.

Depois de levarmos em conta os primeiros 50 termos des­tas séries, os 50 seguintes não proporcionarão um valor mais preciso para n3 porque as séries convergem muito lentamen­te. A série mais rapidamente convergente

é muito mais útil e é freqüentemente empregada na Mate­mática moderna. Sua relação com n foi estabelecida por Machin (1680-1752). Usando séries muito mais ràpidamen-

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te convergentes, Abraham Sharp, em 1699, calculou n até à 71.a casa decimal. Dase, um calculador relâmpago empre­gado por Gauss, conseguiu ir à 200.a casa, em 1824. Em 1854, Richter calculou 500 casas e, finalmente, em 1873, um matemático inglês, Shanks, conseguiu uma curiosa espécie de imortalidade ao determinar o valor de n até à 707.a casa decimal. Mesmo hoje, seriam necessários 10 anos de cálculo para determinar n até à 1000.a casa. Contudo, isto não nos parecerá uma perda de tempo se levarmos em conta os bi­lhões de horas perdidas por milhões de pessoas que fazem palavras cruzadas ou jogam bridge, para não dizer nada dos debates políticos.

FIG. 18 — Série de Leibnitz. - = 0,795...

4 3 5 7 ^ 9 11 ^

É -lógico que o resultado de Shanlcs não tem nenhum uso concebível em ciência aplicada. Nem mesmo no mais preciso trabalho são necessárias mais do que 10 casas deci­mais no valor de n. O famoso astrônomo e matemático ame­ricano, Simon Newcomb, observou uma vez que "Dez casas decimais são suficientes para dar o valor da circunferência da Terra com aproximação de fração de polegada, e trinta ca­sas dariam a medida da circunferência de todo o universo visível, com aproximação de uma quantidade imperceptível com o mais poderoso telescópio".

Então, por que tanto tempo e tanto esforço foram des­pendidos no cálculo de TI? São duas as razões. Primeira,

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porque, estudando as séries infinitas, os matemáticos têm es­perança de poder encontrar alguma indicação de sua natureza transcendental. Segunda, pelo fato de n, relação puramente geométrica, poder fazer surgir tantas relações aritméticas — tantas séries infinitas, com aparentemente pouca ou nenhuma relação com a Geometria — que era uma fonte inesgotável de maravilhas e eterno estímulo para atividade matemática.

Quem poderia imaginar — isto é, quem, a não ser um matemático — que o número que expressa uma relação fun­damental entre um círculo e seu diâmetro poderia aparecer sob a forma da curiosa fração que Lorde Brouncker (1620--1684) apresentou a John Wallis?

_ _4 r ~ 1 4 - 1 »

2 4- V_ 2 4-5^

2 4- 7 2 . . . Mas são justamente estas relações entre as séries infini­

tas e n que ilustram a profunda conexão que existe entre quase todas as formas matemáticas, geométricas ou algébri­cas. É por mera coincidência, por mero acidente que n é definido como a relação entre um círculo e seu diâmetro. Seja qual for a forma que tratarmos a Matemática, n é parte integrante dela. 1 1 Em seu Budget of Paradoxes, Augustus De Morgan mostrou quão pouco a definição habitual de n sugere sua origem. Êle estava explicando a um atuário quais eram as possibilidades de, ao fim de um determinado tempo, estar viva uma certa parte de um grupo de pessoas e citou a fórmula empregada pelos atuários, que envolve n. Ao explicar o significado geométrico de n, o atuário, que vinha ouvindo com interesse, interrompeu e exclamou, "Meu amigo, deve haver algum engano. O que tem um círculo que ver com o número de pessoas vivas ao fim de detercoinado tempo?"

Recapitulando brevemente, o problema da quadratura do círculo se apresenta como uma construção impossível, com apenas régua e compasso. As únicas construções possíveis com tais instrumentos correspondem às equações algébricas

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de primeiro e segundo graus. Lindemann provou que n não é apenas raiz de equação algébrica de primeiro ou se­gundo grau, mas que também não é raiz de qualquer equa­ção algébrica (com coeficientes inteiros), seja qual fôr o grau; por isso n é transcendental. E isso é o fim de qual­quer esperança de provar este clássico problema do modo pretendido. Eis uma impossibilidade matemática.

• Quando os filósofos gregos verificaram que a raiz qua­

drada de 2 não é um número racional, 1 2 celebraram a des­coberta sacrificando 100 bois. Uma descoberta muito mais importante, como a de que n é um número transcendental, merece sacrifício maior. Mais uma vez os matemáticos ven­ceram o bom senso. n} um número finito — relação entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro — só é preci­samente expresso como a soma ou o produto de uma série infinita de números completamente diferentes e aparente­mente sem nenbuma relação entre si. A área da mais sim­ples de todas as figuras geométricas, o círculo, não pode ser determinada por meios finitos (euclidianos).

e No século XVII, talvez o maior de todos, para o de­

senvolvimento da Matemática, apareceu um trabalho que, na história da ciência inglesa, só é suplantado pelo monumental Principia de Sir Isaac Newton. Em 1614, John Napier, de Merchiston, publicou seu Mirifici Logarithmorum Canonis Descriptio ("Uma Descrição da Admirável Tábua de Loga­ritmos"), o primeiro tratado sobre logaritmos.13 A Napier, que também inventou a vírgula decimal, devemos uma inven­ção tão importante para a Matemática quanto os números arábicos: o conceito de zero e o princípio da notação de po-posição. 1 4 Sem eles, a Matemática não teria, provavelmente, avançado além do estágio a que atingira 2 000 anos antes. Sem os logaritmos, os cálculos realizados diariamente, com facilidade, por qualquer matemático bisonho, esgotariam as energias dos maiores matemáticos.

Como e e os logaritmos têm a mesma árvore genealógi­ca e cresceram juntos, podemos, por enquanto, voltar nossa

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atenção para os logaritmos, para entender alguma coisa so­bre a natureza do número e.

Sendo necessários cálculos assombrosos para construir as tábuas trigonométricas para Navegação e Astronomia, Na-pier se propôs inventar algum artifício que facilitasse tais cálculos. Embora os contemporâneos, como Vieta e Ceulen, rivalizassem na execução de quase inacreditavelmente difí­ceis tarefas aritméticas, eram trabalhos de amor, exaltados es­forços de auto-sacrifício, de penosa dedicaç/ão, com tudo isso muitas vezes perdido por causa de um pequeno descuido.

Napier conseguiu atingir seu objetivo, abreviando as operações de multiplicação e divisão, operações "tão funda­mentais em sua própria natureza que parece impossível sim­plificá-las". Contudo, por meio dos logaritmos, qualquer problema de multiplicação e divisão, por mais complicado que seja, se reduz a outro, relativamente simples, de adição e subtração. Multiplicar e dividir gugóis e gugolplexes torna--se tão fácil quanto somar uma simples coluna de números.

Tal como muitas das profundas e fecundas invenções em Matemática, a idéia básica era tão simples que nos ad-rniramos de não haver sido pensada antes. Cajori conta que Henry Briggs (1556-1631), professor de Geometria em Ox­ford, "ficou tão cheio de admiração pelo livro de Napier que largou seus estudos em Londres para ir prestar homenagem ao filósofo escocês. Briggs se atrasou na viagem, e Napier queixou-se a um amigo comum, "Ah, John, o Sr. Briggs não viráí" Neste exato momento bateram à porta, e Briggs en­trou. Levaram quase um quarto de hora se abraçando, sem dizer uma palavra. Por fim, Briggs começou: "Senhor, fiz esta longa viagem exclusivamente para vir conhecê-lo pes­soalmente e saber por que razões de talento ou engenhosi-dade o senhor foi o primeiro a pensar nestes excelentes auxi­liares da Astronomia, os logaritmos; mas, meu caro, tendo sido descobertos pelo senhor, eu me admiro como ninguém o fêz antes, agora que sabemos que seria tão fácil".

A concepção de Napier dos logaritmos era baseada em uma engenhosa e bem conhecida idéia: uma comparação en-

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tre 2 pontos em movimento, um dos quais gera uma pro­gressão aritmética e o outro, uma geométrica.

As duas progressões: Aritmética: 0 1 2 3 4 5 6 7 8 . . . Geométrica: 1 2 4 8 16 32 64 128 256....

guardam, entre si, esta relação interessante: se os termos da progressão aritmética são considerados como expoentes (po­tências) de 2, os termos correspondentes na progressão geo­métrica representam a quantidade resultante da operação in­dicada. Assim, 1 5 2« = 1, 2i = 2, 22 = 4, 23 = 8, 2* = 16, 2S = 32, etc. Além disso, para determinar o valor do pro­duto 2 2 X 23, basta somar os expoentes, obtendo 22 4- 3 = 25, que é o produto procurado. Chamando-se 2 de hase, cada termo da progressão aritmética é o L O G A R I T M O do termo cor­respondente na progressão geométrica.

Napier explicou esta noção geometricamente da seguin­te maneira: um ponto S move-se ao longo de uma linha re­ta, AB, com uma velocidade, em cada ponto Si, proporcional à distância restante SaB. Outro ponto R move-se ao longo de uma linha sem fim, CD, com uma velocidade uniforme, igual à velocidade inicial de S. Se os dois pontos partem de A e C ao mesmo tempo, o logaritmo do número medido pela distância SJ3 é medido pela distância Cfíi.

Fie 19 — Interpretação dinâmica dos logaritmos por Napier.

Por este método, à proporção que SiB diminui, seu logaritmo CRi aumenta. Mas logo se tornou evidente que seria vantajoso definir o logaritmo de 1 como zero e fazer o logaritmo crescer com o número. Napier modificou seu sis­tema dentro desta idéia.

Um dos frutos da instrução superior é a possibilidade de ver que um logaritmo nada mais é que um número que

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88 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

se pode encontrar em uma tábua. Temos de ampliar o cur­rículo. Se a, b e c são três números ligados pela equação a1 = c, então b, expoente de a, é o logaritmo base a de c. Em outras palavras, o logaritmo base a de um número é a potência a que a deve ser elevado para obter este número. No exemplo, 23 = 8, o logaritmo de 8, na base 2, é 3. Em IO2

= 100, o logaritmo de 100, na base 10, é 2. A for­ma concisa de expressar isso é: 3 = log2 8 e 2 = logi 0 100. A simples tabela abaixo dá todas as propriedades essenciais dos logaritmos:

(1) Ioga (Ò X c) = Ioga b + Ioga C.

(2) Ioga 0 j = Ioga b - Ioga C.

(3) Ioga b< = CX Ioga b.

(4) logayT= Q l o g a * .

As equações (1) e (2) indicam como multiplicar ou cuvidir dois números; só é necessário somar ou subtrair os logaritmos respectivos. O resultado obtido é o logaritmo do produto ou do quociente. As equações (3) e (4) mos­tram que, com o auxílio de logaritmos, as operações de po­tenciação e radiciação podem ser substituídas pelas mais simples de multiplicação e divisão.

Grandes tábuas de logaritmos foram logo construídas na base 10 e na base natural e ou neperiana. Estas tábuas fo­ram disseminadas tão amplamente que os matemáticos de toda a Europa puderam usar logaritmos muito pouco tem­po após sua invenção. Kepler foi um dos que não só viu as tábuas de Napier, mas, êle próprio, auxiliou seu desenvolvi­mento; foi, assim, um dos primeiros da legião de cientistas cujas contribuições ao saber humano foram grandemente fa­cilitadas pelos logaritmos.

Qs dois sistemas de logaritmos nas duas bases, 10 e e (as bases Briggs e natural, respectivamente), são os princi­pais ainda em uso, predominando o de base e.16 Como n, o número e é transcendental e, ainda como TI, é o que P. W. Bridgman chama de "um programa de procechmento",

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PIE (ir, 1, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 89

mais que um número, já que não poderá ser jamais expres-' so perfeitamente (1) por um número finito de algarismos, (2) como a raiz de uma equação algébrica com coeficientes inteiros, (3) como uma dízima periódica. 1 7 Êle só pode ser expresso, com precisão, como o limite de uma série infinita convergente ou de uma fração contínua. A mais simples e mais familiar das séries infinitas que dão o valor de e é:

1 1 1 1 1 1 1 e = 1 + n + 2 ! + 3 ! + 4! + 5! + 6! + 7 ! - - - 1 8

Desta forma, seu valor poderá ser tão aproximado quan­to se queira, adicionando-se outros termos da série. Até à décima casa decimal, e = 2,718281285. Uma olhada na tabela abaixo mostrará como uma série convergente infinita se comporta, à proporção que são adicionados mais e mais termos.

= 2

= 2,5

= 2,6666666...

= 2,7083334...

= 2,7166666...

= 2,7180555...

= 2,7182539...

= 2,7182787...

= 2,7182818...

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90 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

E, depois de mais alguns termos, e aparece assim: 2,7182818284590452353602874...

Euler, que, sem dúvida nenhuma, possuía o toque de Midas em Matemática, não só inventou o símbolo e e cal­culou seu valor até à 23.a casa decimal, como deu várias ex­pressões muito interessantes, das quais essas duas são as mais importantes:

(1) e = 2 + 1

1 + 1 2 + 2

3 + 3 4 + 4

5 + 5 . . .

(2) V~= 1 + 1

1 + 1 1 + 1

1 + 1 5 + 1

1 + 1

1 + 1

1 + 1 9 . . .

Não foi apenas a necessidade de tábuas de navegação que provocou o desenvolvimento dos logaritmos. Os altos negócios, particularmente bancários, também tiveram sua parte. Uma série notável, cujo valor limite é e, surge na preparação das tabelas de juros compostos. Esta série é

/ l \n obtida com o desenvolvimento de (1 -\—\ ? quando n se torna mfinito. A origem desta expressão é interessante.

Suponha que seu banco paga 3% de juro, ao ano, sobre os depósitos. Se estes juros são adicionados ao fim de cada ano, por um período de três anos, o valor total de seu cré-

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PIE (ir, Í, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 91

dito, supondo-se um capital original de NCr$ 1.000,00 será cal­culado pela fórmula (1 + 0,03)3 para cada cruzeiro novo. Se os juros são compostos semestralmente, depois de um perío­do de três anos, o total do principal com os juros será

f i + Vxs

\ 2 / por cruzeiro novo.

Mas imagine que você teve a incrível sorte de encon­trar um banco filantrópico que decida pagar 100% de juro por ano. Então o total de seu crédito ao fim de um ano será (1 + l ) 1 ou seja NCr$ 2.000,00. Se os juros são com­postos semestralmente, o total será baseado na fórmula / I N 1 * 2

11 + y ou NCrf 2.250,00. Se forem compostos cada qua­tro meses, (1 - f f ) 1 X 4 = ou NCrf 2.430,00. Parece claro que, quanto mais rapidamente os juros são compostos, tanto mais dinheiro você terá no banco. Com um pouco mais de ima­ginação, você pode conceber a possibilidade do banco filan­trópico decidir compor os juros continuamente, ou seja, a cada instante do ano. Quanto você terá, então, em dinheiro no fim do ano? Sem dúvida, uma fortuna. Pelo menos, isso é o que você suspeitaria, mesmo descontando o que sabe a respeito de bancos. Na verdade, você poderia tornar-se não um milionário, nem um bilionário, porém mais próximo do que poderia ser chamado de um ' ínfinitário". Mas . . . aca­be com essas ilusões de grandeza porque o processo de com­por juros continuamente, a cada instante, gera uma série infinita que converge para o limite e. O total do depósito, depois deste ano héctico, com sua aparente promessa de ini­maginável riqueza, não chegaria a NCr$ 2.720,00. Porque, se

alguém se der ao trabalho de desenvolver ^1 + , à pro­

porção que n se torna muito grande, 1 0 os valores sucessivos

assim obtidos se aproximam do valor de e, e, quando n se

torna infinito, 1 + dá, realmente, a série infinita para e:

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92 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

4!

Além de servir de base para os logaritmos naturais, e é um número muito útil em toda a Matemática e nas ciên­cias aplicadas. Nenhuma outra constante matemática, nem mesmo n, é mais Intimamente chegada aos problemas huma­nos. Em Economia, Estatística, na teoria das probabilida­des e na função exponencial, e tem auxiliado a fazer uma coisa e fazê-lo melhor que qualquer outro número descober­to até agora. Tem desempenhado um papel saliente em au­xiliar os matemáticos a descrever e prever o que, para o homem, é o mais importante de todos os fenômenos naturais — o do crescimento.

A função exponencial, y = e?, é o instrumento usado, de uma ou outra forma, para descrever o comportamento de tudo o que cresce. Para isso, é singularmente apropriada: é a única junção de x com uma variação em relação a x igual à própria função. 2 0 Devemos lembrar que uma função é uma tabela que dá a relação entre duas variáveis, onde uma va­riação em uma delas corresponde a alguma variação na ou­tra. O custo de uma quantidade de carne é uma função de seu peso; a velocidade de um trem, uma função da quanti­dade de carvão consumida; a quantidade da transpiração, uma função da temperatura. Em cada uma dessas ilustra­ções, uma mudança na segunda variável (peso, carvão con­sumido, temperatura) é correlacionada com uma alteração da primeira variável (custo, velocidade, volume de transpi­ração). O simbolismo da Matemática permite que relações funcionais sejam simples e concisamente expressas. Assim, y = x} y = x2, y = sen x, y = cos x, y = e? são exem­plos de funções.

Uma função não é apenas adequada para descrever o comportamento de um projétil em sua trajetória, de um volume de gás sob variações de pressão, de uma corrente elétrica em um fio, mas também de outros processos que admitem variação, tais como o crescimento de população, o

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 93

crescimento de uma árvore, o desenvolvimento de uma ame­ba ou, como acabamos de ver, o aumento de capital e juros. O que é peculiar a cada processo orgânico é que a razão de crescimento é proporcional ao estado de crescimento. Quan­to maior for uma coisa, tanto mais depressa crescerá. Em condições ideais, quanto maior for a população de um país, tanto mais rapidamente crescerá. A variação de velocidade de muitas reações químicas é proporcional à quantidade de substâncias reagentes que estiverem presentes. A quantida­de de calor transmitida por um corpo aquecido ao meio am­biente é proporcional à temperatura. A velocidade com que a quantidade total de uma substância radioativa diminui a cada instante, devido às emanações, é proporcional à quan­tidade total existente no instante considerado. Todos estes fenômenos, que são, ou parecem ser, processos orgânicos, podem ser precisamente descritos por uma forma de função exponencial (das quais a mais simples é y = ex), porque ela tem a propriedade de que sua razão de variação é pro­porcional à razão de variação de sua variável.

Um universo em que faltassem e e n não seria inconce­bível, como disse alguma alma antropomórfica. Dificilmen­te se pode imaginar que o sol deixasse de nascer ou as marés de fluir, se faltassem e e n. Mas sem estes dois arte­fatos matemáticos, o que sabemos do sol e das marés, na verdade toda a nossa capacidade de descrever todos os fe­nômenos naturais, físicos, biológicos, químicos ou estatís­ticos, seria reduzido a dimensões prirnitivas.

i

Alice estava criticando o Ôvo pela liberdade com que êle usava as palavras; "Quando uso uma palavra", respon­deu o Ôvo, em tom irônico, "ela significa exatamente o que eu quero que signifique — nem mais, nem menos". "O pro­blema", disse ela, "é saber se você pode fazer uma palavra

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94 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

significar tantas coisas diferentes". "O problema", respon­deu o Ôvo, "é saber quem pode mais; isso é tudo".

Aqueles que se atrapalham (e há muitos) com a pala­vra "imaginário", tal como é usada em Matemática, deve­riam meditar sobre o que disse o Ôvo. Mas, tudo isto, é lógico, não é muita coisa. Em Matemática, palavras fami­liares recebem, repetidamente, significados técnicos. Mas, como disse Whitehead, tão propriamente, isso é confuso ape­nas para inteligências menos desenvolvidas. Quando uma palavra é definida precisamente, e tem apenas um signifi­cado, não há mais razões para criticar seu uso do que para comentar o uso de um nome próprio. Nossos nomes de batismo podem não ser apropriados a nós, podem não agra­dar nossos amigos, mas causam muito poucos mal-entendi­dos. A confusão aparece quando a mesma palavra contém vários significados.

A Semântica, ciência muito em moda hoje em dia, é devotada ao estudo do uso apropriado das palavras. Mas há muito maior necessidade da Semântica em outras ciências do que na Matemática. Realmente, a maior parte dos pro­blemas do mundo surgem hoje do fato de que suas perso­nalidades mais volúveis são definitivamente anti-semânticas.

Um número imaginário é uma idéia matemática preci­sa. Introduziu-se na Álgebra de modo muito semelhante aos números negativos. Poderemos ver mais claramente como os números imaginários passaram a ser usados se conside­rarmos o desenvolvimento dos seus progenitores — os nega­tivos.

Os números negativos apareceram como raízes de equa­ções desde que existem as equações, ou melhor, desde que os matemáticos se meteram com a Álgebra. Todas as equações da forma ax -f- b = 0, onde a eh são maiores que zero, têm uma raiz negativa.

Os gregos, para quem a Geometria era uma alegria e a Álgebra um mal necessário, rejeitaram os números negativos. Incapazes de enquadrá-los em sua Geometria, incapazes de

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PIE (TT, Í, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 95

representá-los em figuras, os gregos não os consideravam co­mo números, em absoluto. Mas a Álgebra precisava deles para crescer. Mais sábios que os gregos, mais do que Omar Khayyam, 2 1 os chineses e hindus reconheceram os números negativos mesmo antes da era cristã. Não sendo tão conhe­cedores de Geometria, não tiveram nenhum escrúpulo com números que não podiam representar em figuras. Há uma repetição desta indiferença pelo desejo de representar concre­tamente idéias abstratas nas teorias contemporâneas da Físi­ca Matemática (relatividade, mecânica dos quanta, etc.) que, embora compreensíveis como símbolos no papel, desafiam diagramas, figuras ou metáforas adequadas para explicá-las em termos de experiência comum.

Gardan, eminente matemático do século XVI, jogador, e patife ocasional, a quem a Álgebra muito deve, foi o pri­meiro a reconhecer a verdadeira importância das raízes ne­gativas. Mas sua consciência científica o recriminou a ponto dele chamá-las "fictícias". Raphael Bombelli, de Bolonha, pros­seguiu de onde Cardan abandonara. Este falara a respeito das raízes quadradas dos números negativos, mas não com­preendeu o conceito dos imaginários. Em um trabalho pu­blicado em 1572, Bombelli mostrou que as quantidades ima­ginárias eram essenciais para a solução de muitas equações algébricas. Êle viu que as equações da forma x2 + a — 0, onde a é qualquer número maior que 0, não poderiam ser resolvidas exceto com o auxílio dos imaginários. Procurando resolver uma simples equação como x2 + 1 = 0, há duas al­ternativas. Ou a equação não tem sentido, o que é absurdo, ou i é a raiz quadrada de — 1, o que é igualmente absur­do. Mas a Matemática medra nos absurdos, e Bombelli as­sim a ajudou, aceitando a segunda alternativa.

Trezentos e cinqüenta anos já se passaram desde que Bombelli fêz sua escolha. Filósofos, cientistas e aqueles com uma qualidade intelectual de menor diapasão, conhecida co-

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96 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

mo puro bom senso, criticaram, em cada vez maior "ãlimi-nuendo", o conceito dos imaginários. Todas essas sumida­des estão mortas, a maioria delas esquecida, enquanto os números imaginários florescem malvada e desenfreadamente por todos os campos da Matemática.

Âs vezes, até os mestres sorriem. Leibnitz pensou: "Os números imaginários são um ótimo e maravilhoso refúgio pa­ra o Espírito Santo, uma espécie de anfíbio entre o ser e o não ser". Até o poderoso Euler disse que números como a raiz quadrada de menos um "nem são nada, nem menos que nada, o que, necessariamente, os faz imaginários, ou impos­síveis". Êle estava absolutamente certo, mas o que omitiu é que os imaginários eram úteis e essenciais para o desenvol­vimento da Matemática. E , assim, eles conseguiram um lugar no domínio dos números, com todos os direitos, pri­vilégios e imunidades que lhes são inerentes. Com o tempo, os pavores e enjôos em relação à sua essência desaparece­ram e, assim, o julgamento de Gauss é o julgamento do mo­mento:

Nossa Aritmética geial, ultrapassando, agora, em extensão, a Geometria dos antigos, é, totalmente, uma criação dos tem­pos modernos. Tendo sua origem na noção dos inteiros abso­lutos, foi, gradualmente, ampliando seu domínio. Aos inteiros, juntaram-se as frações; às quantidades racionais, as irracionais; ao positivo, o negativo; e ao real, o imaginário. Este avanço, contudo, foi sempre realizado, a princípio, com passos teme­rosos e hesitantes. Os primeiros algebristas chamaram as raízes negativas das equações de falsas raízes, e este era realmente o caso quando o problema com que se relacionavam era esta­belecido de tal forma que o caráter da quantidade procurada não admitia o oposto. Mas, assim como na Aritmética geral ninguém hesitaria em admitir as frações, embora haja tantas coisas contáveis para as quais uma fração não tem sentido, não poderíamos negar aos números negativos os direitos dados aos positivos, simplesmente porque inúmeras coisas não admitem o oposto. A realidade dos números negativos é suficientemente justificada porque, em inúmeros outros casos, encontram inter­pretação adequada. Isto foi admitido há muito tempo, mas as quantidades imaginárias, antigamente, e ocasionalmente agora, chamadas de impossíveis, em oposição às quantidades reais —

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PIE (ir, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 97

ainda são antes toleradas que inteiramente aclimatadas; pare­cem mais ser um jogo inexpressivo com símbolos, ao qual é negado, sem hesitação, um substrato imaginável, mesmo por aqueles que não podiam depreciar a rica contribuição que este jogo de símbolos tem dado ao tesouro das relações das quan­tidades reais. 2 2

Os números imaginários, como a Geometria quadridi-mensional, desenvolveram-se com extensão lógica de certos processos. O processo de extrair raízes é chamado de evo­lução. É um nome apropriado, porque os números imagi­nários surgiram, literalmente, da extensão do processo de extrair raízes. Se V"7, V H têm sentido, porque não o têm V—4, V—7, V—11? Se x2 — 1 = 0 tem uma solução, por que não x2 + 1 = 0? O reconhecimento dos imagi­nários era muito parecido com os Estados Unidos reconhe­cendo a União Soviética — a existência era inegável, tudo o que faltava era a sanção formal e a aprovação.

V - 1 é o imaginário mais conhecido. Euler represen­tou-o pelo símbolo "i", que ainda é usado. 2 3 Ê inútil preo­cupar-se com a questão "Qual o número que, multiplicado por si mesmo, fica igual a —1?" Como todos os outros nú­meros, i é um símbolo que representa uma idéia abstrata, mas muito precisa. Obedece a todas as regras da Aritmé­tica, adicionando-se a convenção de que i X i <= —1. Sua obediência a estas regras e seus múltiplos usos e aplicações justificam sua existência apesar do fato de que pode ser uma anomalia.

As leis formais para operação com i são fáceis:

As leis dos sinais são:

(+1) X (+1) _ +11 f ( - l ) X (+1) = - 1 (+1) X (-1) - - l j {(-1) x (-1) - +1

7

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98 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

* Daí podemos construir uma tabela conveniente:

A tabela mostra que as potências ímpares de i são iguais a —i, ou + í , e as potências pares são iguais a —1 ou +1.

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PIE (TT, t, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 99

A expansão do uso dos imaginários conduziu a números complexos da forma a -f- ib, onde a e b são números reais (diferentes dos imaginários). Assim 3 -f- 4i, 1 — 7i, 2 -f- 3i são exemplos de números complexos.

O extenso campo frutífero da teoria das funções é uma conseqüência clireta do desenvolvimento dos números com­plexos. Embora este seja um assunto muito técnico e espe­cializado, teremos ocasião de mencionar novamente os nú­meros complexos quando explicarmos a representação geomé­trica dos imaginários. Para este fim, temos de voltar, por um momento, à idéia matemática que, como disse Boltzmann uma vez, parece tão inteligente quanto o homem que a in­ventou — a ciência da Geometria Analítica.

A música de concerto é diferente da música pura, que deve sua coerência à estrutura, enquanto a primeira procura contar uma história. De certa forma, a Geometria Analítica pode ser distinguida da Geometria dos gregos como a mú­sica de concerto da música pura. A Geometria, prática em sua origem, foi cultivada e desenvolvida, em seu próprio interesse, tanto como uma disciplina lógica quanto como um estudo da forma. A Geometria foi uma manifestação de luta por um ideal. Formas que eram belas, harmoniosas e simétricas eram apreciadas e avidamente estudadas. Mas os gregos cultivavam o prático até onde possuísse um as­pecto belo; além daí, sua Matemática foi embaraçada por sua estética.

Foi deixada a Descartes a tarefa de escrever a música de concerto da Matemática, de inventar uma Geometria que contasse uma história. Quando dizemos que cada equação algébrica tem uma figura, estamos descrevendo a relação en­tre a Geometria Analítica e a Álgebra. E , assim como a música de concerto é tão importante e tão cheia de signi­ficação, em si mesma, quanto as histórias que ilustra, assim também a Geometria Analítica tem sua própria dignidade e importância — é uma disciplina matemática independente.

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100 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Os padres jesuítas eram, muitas vezes, bastante sábios: em sua escola em La Flêche, permitiram ao jovem René Des­cartes, por causa de sua saúde delicada, ficar na cama, to­dos os dias, até o meio-dia. O que McGuffey profetizou sobre o futuro de tal criança não é difícil de imaginar. Mas Descartes não ficou completamente perdido. Na realidade, seu delicioso hábito de ficar na cama até o meio-dia produ­ziu, pelo menos, um fruto notável. A Geometria Analítica lhe veio uma manhã quando êle estava deliciosamente na cama.

Essa idéia de uma Geometria coordenada é poderosa, embora simples de entender. Considerem-se duas hnhas (ei­xos) em um plano: xxf, yif, interceptando-se, em ângulo re­to, em um ponto R:

v

EIXO

D

OS

YY

EIXO

D

OS

YY

po ^

m'

; X R EIXO DOS XX X'

Y

FIG. 20 — O ponto P tem as coordenadas (m, m').

Qualquer ponto, no plano inteiro, pode ser singularmen­te determinado por sua distância perpendicular às linhas x^ e ytf. O ponto P, por exemplo, pelas distâncias m e m'. As­sim, um par de números representando distâncias ao longo de xx? e yvf determinará qualquer ponto do plano e, vice--versa, cada ponto do plano determina um par de números. Estes números são chamados de coordenadas do ponto.

Todas as distâncias em xxf, medidas para a direita de R, são chamadas positivas; para a esquerda, negativas. Da mes-

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PDS (TT, 1, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 101

ma maneira, todas as distâncias medidas em yy' acima de R são positivas; todas abaixo, negativas. O ponto de inter­seção, a origem, é designado pelas coordenadas (0, 0). O modo convencional de escrever as coordenadas é colocar, em primeiro lugar, a distância do eixo dos yy' (isto é, a distân­cia ao longo do eixo dos xx/) e, depois, a distância do eixo dos xx? ao longo do eixo dos yy'; assim: (0, 0), (4, 3), (-1, 5), (6, 0), (0, 6), (-6, - 5 ) , (3, -3,), (-8, 0), (0, —8) são as coordenadas dos pontos da Fig. 21.

y' •

7 1 ó /° ó)

/ 4 ) 3

-(4,3)

2

,<- 8,0 ) 1 (0.0) 6,0 )

-í •-7 -6 -5 -4 -3 -2 -1 -°1 1 2 3 4 5 ' & 7 8

-2

-3 , ( 3,-3]

-4 ->

-5 f-6 -6

-7

-8 (0 )

-9 I I

•X'

y

FIG. 21 — Os eixos coordenados no plano real.

Juntando-se esta noção com a de uma função, não é difícil ver como uma equação pode ser representada num plano, na Geometria Analítica. Quando x e y são relacio­nados funcionalmente, a cada valor de x corresponde um valor para y, determinando, os dois valores, um ponto no plano. A totalidade de tais pares de números, isto é, todos os valores de y correspondentes a todos os valores de x>

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102 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

quando reunidos por uma curva uniforme, como nas figuras 22 (a, b, c), formam o retrato geométrico de uma equação.

Y'

Y

FIG. 22(a) — Representação gráfica da equação y = *2.

Y'.

FIG. 22(b) — Representação gráfica da equação y = sen x. Esta é a famosa curva ondulada usada para representar muitos fenômenos regulares e perió­dicos, isto é, correntes elétricas, movimento pendular, radiotransmissão, ondas de som e de luz, etc. (Sobre a significação de sen x, ver nota 2 do capítulo so­

bre cálculo).

Empregando a Geometria coordenada, como representa­

ríamos um número imaginário como V—1? Um teorema

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 103

FIG. 22(c) — Representação gráfica da equação y = eP. Esta curva mostra a propriedade comum a todos os fenômenos de crescimento: a velocidade de crescimento é proporcional ao estado de crescimento.

da Geometria elementar, referente à média geométrica, nos dá a solução (ver Fig. 23).

No triângulo retângulo ABC, a perpendicular AD divi­de BC em duas partes: BD e DC. O comprimento da per­

no. 23 - Comprimento AD = V BD X DC = mé­dia geométrica de BD e DC.

pendicular AD é igual a V B D x DC, e é denominado a mé­dia geométrica de BD e DC (Fig. 23).

Um agrimensor norueguês, Wessel, e um guarda-livros parisiense, Argand, no fim do século XVIII e princípio do XIX, descobriram, independentemente, que os números ima-

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104 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

ginários podiam ser representados pela aplicação desse teo­rema. Na Fig. 24, a distância S, da origem R até + 1, é a média geométrica do triângulo limitado pelos lados L e V, sendo a base formada pela parte do eixo dos xx*, de —1 a 1.

Então S s* y ' — l . + l = - \ / ^ \ — {

Y'

1+2

-.-2

Y

FIG . 24 — Interpretação geométrica de t.

Eis, então, uma representação geométrica de um núme­ro imaginário.

Partindo dessa idéia, Gauss construiu todo o plano com­plexo. No plano complexo, cada ponto representado por um número complexo da forma x -f- iy corresponde ao pon­to no plano determinado pelas coordenadas x e y. Em ou­tras palavras, um número complexo pode ser encarado como um par de números reais com a adição do número i. O emprego de í só é feito na execução de operações de multi­plicação e divisão. Suponhamos uma linha que una o ponto (a -f- íb) à origem R. Então, a multiplicação por —1 é equivalente à rotação de 180° desta Unha em torno da c-ri-

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PIE (ir, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 105

gem e à mudança do ponto de (-f a -j- ih) para (— a — ib). O efeito de multiplicar um número por i é tal que, quando executada duas vezes a multiplicação, obtém-se i 2 , o que é equivalente à multiplicação por —1. Então, a multiplicação por i é apenas uma rotação de 90°.

Fie 25 — A multiplicação por i é uma rotação de 90°. Seja P = (a +· ib). Então, P X i = (a +- ib) X i

= (a X i) + (b X i X i) = ia 4 b- — 1 = - i + to

= <?·

Os números complexos podem ser somados, subtraídos, multiplicados e divididos, como se fossem números reais. As regras formais destas operações (sendo a mais interes­sante a substituição de —1 por i2) são ilustradas pelos exem­plos abaixo:

(1) x 4- iy = x' 4- iy' se, e apenas se x = x* e y = y' (2) (x 4- iy) + (*' + iy') = (x 4- *') 4- í(y 4- y')

(3) (* 4- iy) - (xf + iy') = (* - *') 4- z(y - / ) (4) (* 4- iy) (*' 4- iy) = - jg/) 4- í(*/ 4- .>*')

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106 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

A Figura 26 mostra o plano que está na Figura 21, com a diferença que, nas coordenadas de cada ponto, substituímos x e y pelo número complexo x + iy-

Fie 26 — O plano complexo.

Em virtude das propriedades peculiares de i, os núme­ros complexos podem ser usados para representar tanto gran­deza como direção. Com seu auxílio, muitas das noções mais essenciais da Física, como velocidade, força, aceleração, etc, podem ser convenientemente representadas.

Agora já dissemos bastante para indicar a natureza ge­ral de i, sua finalidade e importância em Matemática, seu desafio e vitória final sobre os apreciados dogmas do bom senso. Intrépidos com sua aparência paradoxal, os matemá­ticos usaram-no da mesma forma que n e e. O. resultado foi tornar possível a construção de todo o edifício da mo­derna ciência física. *

* Podemos apresentar um bálsamo para o leitor que, tão brava­mente, vem acompanhando as páginas de Geometria Analítica e núme­ros complexos. O curso médio de Geometria Analítica (excluindo os números complexos) é de seis meses. É um pouco demais, portanto, esperar que possa ser aprendida em cerca de cinco páginas. Por outro lado, se a idéia básica foi apresentada (de que cada número, cada equação da Álgebra, pode ser representado graficamente), os deta­lhes cruciantes podem ser deixados para aventureiros mais intrépidos.

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PIE (ir, t, g) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 107

Uma coisa permanece. Há uma fórmula famosa — tal­vez a mais compacta e famosa de todas as fórmulas — desenvolvida por Euler, partindo da descoberta do matemá­tico francês De Moivre: e1*" -\- 1 = 0. Elegante, concisa e cbeia de significação, podemos apenas reproduzi-la, mas não devemos parar para perguntar suas implicações. Ela interessa tanto ao místico quanto ao cientista, ao filósofo, ao matemático. Para cada um deles tem um significado especial. Embora conhecida por mais de um século, a fór­mula de De Moivre pareceu a Benjamin Peirce, um dos maiores matemáticos de Harvard do século XIX, algo co­mo uma revelação. Tendo descoberto a fórmula um de­terminado dia, êle dirigiu aos seus alunos uma observação que encerra, em qualidade dramática e apreciação, o que lhe falta em conhecimento e sofisticação: "Senhores", disse êle, "isso é certamente verdade, é absolutamente paradoxal; não podemos entendê-lo, e não sabemos o que significa, mas provamo-lo e, portanto, sabemos que deve ser a ver­dade".

Quando tanta humildade e tanta visão existirem por to­da parte, a sociedade será governada pela ciência e não por seus componentes mais espertos.

A P Ê N D I C E NASCIMENTO DE U M A CURVA

(1) Consideremos a curva y = x2. Tomando alguns valores para x e determinando os correspondentes de y, po­demos colocar os resultados em uma tabela:

X y

0 0 1 1 2 4 3 9 4 16

Isto é, 22 = 4, 32 = 9, etc. Locando estes pontos no plano coordenado, obtemos a Fig. A.

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108 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

(2) E os valores negativos de x? Vemos, por exem­plo, que (— 2) 2 == —2 X — 2 = 4. Isto é, evidentemente, verdadeiro para quaisquer valores de x; então, a cada ponto locado na Fig. A, corresponde outro ponto que é sua ima­gem no espelho, sendo o eixo OY este espelho. Locando-se estes pontos, obtemos uma segunda figura (Fig. B).

FIG. B

(3) A disposição dos pontos sugere que tracemos uma curva através deles. (Fig. C.)

Mas esta curva também abrange outros pontos que surgem em nossa tabela funcional. Vamos fazer um tçs.te, colocando na tabela alguns valores fracionários de x._

F I G . A

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 1Ô9

X y

1 1 2 4.

H 2i 2,3 5,29 2,7 7,29

FIG. C

Se locarmos estes novos pontos, podemos ver que to­dos eles estão sobre a curva (Fig. D ) . Na verdade, se con­tinuarmos, verificaremos que todos os pontos que apare-

FIC. D

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110 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

çam na tabela estarão na curva; a totalidade de tais pon­tos formará a curva conhecida como a parábola.

/

A parábola é formada pelo secionamento de um cone por um plano paralelo à geratriz oposta.

Você pode fazer uma parábola pa­ra você mesmo, com o auxílio de uma lanterna, mantendo-a de tal forma que a parte superior do facho luminoso fique paralela ao

chão.

Um jato de água forma uma pa­rábola. Da mesma forma o faz a trajetória de um projétil. Mas a curva feita por um barbante, preso nas pontas, mas não esticado, não é uma parábola, mas uma catenária.

PARALELO /

PARALELO AO CHÃO

FIG. E

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 111

NOTAS

Henri Bergson, Creative Evolution. Determinar, geometricamente, a raiz quadrada de uma distância dada é um problema simples.

FIG. 27 — Seja AB a distância dada. Prolonguemo-la até C, de tal forma que BC = 1. Tracemos um semicírculo, tendo AC como diâmetro. Levantemos uma perpendicular em B, encontrando o semicírculo em D. BD é a raiz quadrada de L que foi pedida.

Gauss fez um exaustivo estudo para determinar quais os outros polígonos que podiam ser construídos com régua e compasso. Os gregos podiam construir polígonos regulares de 3 e 5 lados, mas não os de 7, 11 ou 13 lados. Gauss, com maravilhosa precocidade, deu a fórmula que mostrava quais os polígonos que podiam ser construídos pelo modo clássico. Pensava-se que só se podiam construir assim os polígonos cujo número de lados podia ser ex­presso pelas formas: 2» 2« X 3, 2" X 5, 2n X 15 (onde n é inteiro). A fórmula de Gauss provou que os polígonos com um número primo de lados podiam ser construídos da seguinte ma­neira: seja P o número de lados e n qualquer inteiro até 4; então: P = 22n + i . Se n fôr igual a 0, 1, 2, 3, 4, P = 3, 5, 17, 257, 65537. Quando n é maior que 4, não há números primos conhe­cidos da fórmula 22« + 1.

(Um número primo é aquele que só é divisível por si pró­prio e pela unidade. Assim, 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17 são exemplos de números primos. Uma famosa demonstração de Euclides, que aparece em seus Elementos, mostra que a quantidade de números primos é infinita. (Ver pág. 187, nota 21).

Um fato interessante é que, de todos os polígonos possíveis com número de lados primos, só os cinco dados são os que sabe­mos poder ser construídos com régua e compasso. Ver cap. 5.

Até 1775, a Academia de Paris era tão assediada por soluciona-dores da quadratura do círculo, da triseção do ângulo e da du-

L

J3

A B C

1

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MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

plicação do cubo que teve de publicar uma resolução de que não aceitaria mais nenhuma solução. Mas, nessa época, apenas se suspeitava da impossibilidade dessas soluções, não tendo sido ainda demonstrada matematicamente; assim, a ação arbitrária da Academia só pode ser explicada na base da autoconservação.

6. Para o cômputo de TT foram usados limites e processos convergen­tes, com um número infinito de operações, como veremos adiante.

7. Ver o capítulo sobre cálculo. 8. Muitas séries infinitas são divergentes, isto é, a soma da

série excede qualquer inteiro. Uma série divergente típica é l + 2~t~Í~r"±"T~5~t" - · · Esta série parece diferir muito pou­co da série convergente apresentada no texto e somente as mais sutis operações matemáticas revelarão se uma série é convergente ou divergente.

9. Um quadrado pode ser duplicado constniindo-se outro sobre a diagonal do quadrado dado, mas um cubo não pode ser duplica­do porque envolve a raiz quarada de 2 e esta, como TT, não é raiz de nenhuma equação algébrica de primeiro ou segundo grau e, por isso, não pode ser construída com régua e compasso. No espaço quadriclimensional, a figura que corresponde ao cubo, cha­mada "tesserato" (ver o capítulo sobre Geometrias Diversas), pode ser duplicada com régua e compasso, porque a raiz quarta de 2, que é a necessária, pode ser escrita como a raiz quadrada da raiz quadrada de 2.

10. O que se quer dizer com "raiz de uma equação algébrica com coeficientes inteiros"? Uma palavra pode ser suficiente para dar uma sacudidela na memória daqueles que fizeram um curso de Álgebra elementar. A raiz de uma equação é o valor com que se deve substituir a incógnita da equação para que esta seja satis­feita. Assim, na equação x — 9 = 0, a raiz é 9, porque, quando substituímos x por 9, a equação é satisfeita. Da mesma maneira, —4 e 4 são as raízes da equação x2 — 16 — 0, porque, quando se substitui x por qualquer um dos dois valores, satisfaz-se a equação. Equações ''algébricas" são aquelas sobre que acaba­mos de falar. Há, também, equações trigonométricas, diferenciais e outras, e o termo "algébricas'' tem por fim distmguir as equa­ções da forma

aaxn + a i * " - 1 + aix*-* 0 n _ l X -f C n = fj.

Os coeficientes de uma equação são os números que apare­cem antes da incógnita ou incógnitas. Na equação

3X1 + I7x* + V2x s - ix -f- TT = 0 3, 17, V2, i e TT são os coeficientes. Este é um exemplo de uma equação algébrica com coeficientes excêntricos. Ao definir uma equação algébrica (ver pág. 58) especificamos que n deve ser um inteiro positivo e que os a sejam inteiros.

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PIE (TT, i, e) TRANSCENDENTAL E IMAGINÁRIO 113

11. Ver o Problema da Agulha de Buffon no capítulo de Probabili­dade.

12. A V2, quando escrita sob a forma decimal, é tão complicada quanto TT, porque não se repete, nunca termina e não existe lei conhecida que dê a sucessão de seus algarismos- contudo, este decimal complicado pode ser facilmente obtido com exatidão por uma construção com régua e compasso. É a diagonal de um quadrado cujo lado é 1.

13. Jobst Bürgi, de Praga, preparou tábuas de logaritmos antes que aparecesse a Descriptio de Napier. Bürgi, contudo, deixou de publicar suas tábuas antes de 1620 porque, como êle explicou, esta­va ocupado com outro problema.

14. De acordo com o princípio de notação de posição, o valor de um algarismo depende de sua posição em relação aos outros alga­rismos no número em que aparecem.

15. As regras de operações com expoentes na multiplicação e na di­visão são:

A) Multiplicação

am X an = am+n; assim, a* X a1 = a 3 + i = a6; ou, a3 X a2 = (fl.fl-a) X (a.a) = 0 5

B) Divisão a™ — = n a*

Mas, se m é igual a n,

an

f l = a 3-3 = aa = ?

Então, concordamos que a° = 1.

16. Como e possui certas propriedades singulares, de grande valor em muitos ramos da Matemática, particularmente o cálculo, por causa da relação entre as funções logarítmica e exponencial, e é a base "natural" do sistema logarítmico.

8

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114 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

17. A primeira demonstração de que e é transcendental (isto é, não é raiz de nenhuma equação algébrica com coeficientes inteiros) foi feita pelo ilustre matemático francês Hermite, em 1873, nove anos antes de aparecer a demonstração de Lindemann do caráter transcendental de ir. L>esde aquela época, muitos outros conse­guiram simplificar a demonstração de Hermite. O método geral consiste em "supor que e é a raiz de uma equação algébrica, f{e) — 0, e mostrar que se pode escolher um multiplicador M tal que, quando ambos os membros da equação são multiplicados por Aí, (o valor de) Mf(e) se reduz à soma de um inteiro dife­rente de zero e um número entre 1 e 0, provando, assim, que a suposição de que e é raiz de uma equação algébrica é insusten­tável". Ver TJ. G. Mitchell e M . Strain, em Osíris, Studies in History of Science, Vol. I.

18. O símbolo ! quando usado em Matemática não indica surpresa ou admiração, embora, neste caso, êle não esteja mal colocado, por­que a simplicidade e a beleza desta série é admirável. ! significa "fatorial do número depois do qual i está". O fatorial de um número é o produto de seus componentes; assim, 1! = 13

21 = 1 X 2 , 3! = 1 X 2 X 3 , 4! = 1 X 2 X 3 X 4, 5! = 1 X 2 X 3 X 4 X 5 .

19. Na realidade, n precisa apenas ser igual a 1000 (isto é, juros computados três vezes por dia) para dar NCr$ 2.720,00.

20. A derivada de y — e? é igual à própria função. Para uma dis­cussão posterior de derivada e dos problemas envolvendo varia­ções, ver capítulo sobre cálculo.

21. Omar Khayyam, além de ser o autor do muito conhecido "Rubáiyát", foi também um matemático eminente, mas cuja visão profética sobre os números negativos foi falha.

22. Traduzido em Dantzig, Number, the Language of Science (Nova York; Macmillan), 1933, pág. 190.

23. Sugeriram que os símbolos apropriados para as duas constantes

e e i fossem ^ para e, e Ç para i, a fim de evitar confusão.

Mas os impressores se recusaram a fazer novos tipos e os velhos símbolos permaneceram. Mais freqüentemente do que se pensa, considerações como essas determinam o caráter da notação ma­temática.

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IV

G E O M E T R I A S D I V E R S A S — P L A N A

E F A N T A S I A

Dizem que o hábito é uma segunda natureza. Quem sabe se a natureza não é apenas um primeiro hábito?

PASCAL

F, NTKE AS nossas convicções mais estimadas, nenhuma é mais preciosa que nossas crenças a respeito de espaço e tempo, mas, também, nenhuma é mais difícil de explicar. O peixe falante da fábula de Grimm teria grande dificuldade em ex­plicar como se sentia por estar sempre molhado, não tendo, jamais, experimentado o prazer de estar seco. Teríamos dif i ­culdade semelhante em falar sobre o espaço, por não saber­mos nem o que é, nem como é não estar nele. Espaço e tempo estão "muito em nós, mais cedo ou mais tarde" para que nos possamos desligar deles e descrevê-los objetivamente.

"O que é o tempo?", perguntou Santo Agostinho. "Quem o pode explicar fácil e rapidamente? Quem, mesmo em pen­samento, pode compreendê-lo, ou mesmo pronunciar u m a palavra a respeito dele? Mas, ao falarmos, a que nos referi­mos com mais familiaridade e conhecimento do que ao tem­po? E , certamente, compreendemos quando falamos dele; compreendemos, também, quando ouvimos outra pessoa falar dele. Então, o que é o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas, se quero explicar a quem me pergunta, não sei". 1

O mesmo poderia ser dito a respeito do espaço. E m ­bora não se possa definir o espaço, não há grande dificul-

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116 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

dade em meclir distâncias e áreas, em nos movimentarmos, em estabelecer vastas rotas, ou em ver através de milhões de anos-luz. Por toda parte, há uma evidência flagrante de que o espaço é o nosso meio ambiente e não nos apresenta pro­blemas insuperáveis.

Mas este livro não pretende ser um tratado filosófico nem, ao estilo alemão, um Manual da Introdução à Teoria do Espaço em 14 volumes. Nossa intenção é explicar do modo mais simples, mais geral, não o espaço físico percebido pelos sentidos, mas o espaço do matemático. Para esse fim, todas as noções preconcebidas devem ser postas de lado e o alfabeto aprendido novamente.

Neste capítulo, propomos discutir dois tipos de Geome­tria — quadridimensional e não-euclidiana. Nenhum destes assuntos está além da compreensão do não-matemático que se preparou para fazer um pequeno raciocínio direto. Para dizer a verdade, ambas já foram descritas, como a teoria da relatividade (com a qual são de algum modo relacionadas), em alto e complicado palavreado. Sumos sacerdotes de qual­quer profissão encontram primorosos rituais e linguagem obs­cura, apenas para encobrir sua inaptidão e amedrontar os não-iniciados. Mas a corrupção desse clero não nos deve deter. As idéias básicas da Geometria quadridimensional e da não-euclidiana são simples, e é isso que queremos provar.

Euclides, ao escrever seus Elementos, não encontrou grandes obstáculos. Começando com certas idéias funda­mentais (supostamente compreendidas por qualquer um) apresentadas como postulados e axiomas, construiu sobre es­tas fundações. Este método ideal de desenvolver um sistema lógico nunca foi aperfeiçoado, embora, ocasionalmente, tenha sido negligenciado ou esquecido com tristes resultados.

Embora os Elementos de Euclides constituam um em­preendimento intelectual imponente, deixaram de fazer uma distinção importante entre dois tipos de Matemática — pura e aplicada — distinção esta que só apareceu com o moder-

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GEOlUOmilAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 117

no desenvolvimento teórico da Matemática, da Lógica e da Física.

Uma Geometria que trata do campo da experiência é Matemática aplicada. Se ela nada diz a respeito deste cam­po, — se, em outras palavras, é um sistema de noções, ele­mentos e classes abstratas, com regras de combinação obe­decendo as leis da Lógica formal, é Matemática pura. Suas proposições são da seguinte forma: Se A é verdadeiro, então B é verdadeiro, sejam A e B o que forem. 2 Se se aplicar um sistema de Matemática pura ao mundo físico, seus re­sultados podem ser encarados como simples sorte ou como evidência adicional da profunda conexão entre as formas da natureza e as da Matemática. Contudo, em qualquer caso, este fato essencial deve ser sempre levado em consideração — os resultados de um sistema lógico nem diminuem nem aumentam sua validade.

Como Matemática aplicada, a Geometria de Euclides é uma boa aproximação, dentro de um campo restrito. Bas­tante boa para ajudar a fazer um mapa de Rhode Island, já não o é para um mapa do Texas ou dos Estados Unidos, ou para a medida de distâncias atômicas ou astrais. Como um sistema de Matemática pura, suas proposições são verdadei­ras de modo bastante geral. Isto é, têm validade apenas como proposições lógicas, se tiverem sido corretamente de­duzidas de axiomas. Então, é possível a existência de ou­tras Geometrias, com postulados diferentes — na realidade, tantas outras quantas os matemáticos queiram inventar. Tu­do o que é necessário é reunir algumas idéias fundamentais (classes, elementos, regras de combinação), declará-las in­definíveis, assegurar-se de que não são autocontraditórias e está preparado o terreno para um novo edifício, uma nova Geometria. Se esta nova Geometria dará resultados, se se tornará tão útil aos levantamentos topográficos ou à navega­ção, como a euclidiana, se suas idéias fundamentais se ele­vam a um padrão de verdade, além da autoconsistência, isto não interessa, em absoluto, ao matemático. Êle faz as rou­pas; quem couber nelas que as use. Em outras palavras, o matemático estabelece as regras do jogo; quem quiser pode

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118 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

jogar, contanto que as observe. Não há nenhuma razão pa­ra, depois, se queixar que o jogo não deu lucro.

Se quisermos fazer a um sistema matemático o maior dos elogios, dizendo que êle participa da mesma generali­dade e tem a mesma validade que a Lógica, podemos cha­má-lo de jogo. Uma Geometria quaóhidimensional é um jogo: assim como a de Euclides. Opor-se à Geometria qua-dridimensional, na base de que há apenas três dimensões, é um absurdo. O xadrez pode ser jogado tão bem pelos que acreditam em camaradas ou ditadores como pelos que se apegam à glória vã de reis e rainhas. Que sentido tem dei­xar de jogar xadrez porque reis e rainhas pertencem ao pas­sado e porque, de qualquer modo, eles nunca se comportam como peças de xadrez — não, nem mesmo os bispos. Que mérito existe em reclamar que o xadrez é um jogo sem ló­gica, porque não se pode conceber um cidadão ser coroado como rainha, somente por se ter movido para a frente em cinco lances.

Estes exemplos talvez sejam ridículos, mas não o são mais que algumas queixas dos covardes que dizem que três dimensões formam o espaço e que o espaço faz três dimen­sões, "e é tudo o que se sabe na Terra e é tudo o que se precisa saber". E , se podemos varrer os dúbios de nossa frente, podemos também fazer o mesmo com os que estão atrás — isto mesmo, de proa à popa. Porque não há prova, no sentido científico, de que o espaço é tridimensional, ou, para esse fim, de que seja quadri, quinti, sex, ou qualquer outra coisa que não n-dimensional. Não se pode demons­trar que o espaço é tridimensional pela Geometria conside­rada como Matemática pura, porque esta só se interessa por sua autoconsistência e não por espaço ou qualquer outra coi­sa. E nem é este o terreno da Matemática aplicada, que, em geral, não pergunta a natureza do espaço, mas presume sua existência. Tudo o que aprendemos da Matemática apli­cada é que é conveniente, mas não obrigatório, considerar o espaço dos nossos sentidos como tridimensional,

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GEOMETRIAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 119

Contra a objeção de que uma quarta dimensão está além da imaginação, podemos responder que o que hoje é considerado bom senso, ontem era raciocínio obscuro — se não enorme especulação. Para o homem primitivo, ima­ginar a roda ou um painel de vidro deve ter requerido mui­to mais força que, para nós, conceber uma quarta dimensão.

Alguém ainda pode observar: "Você me diz que a Geometria quadridimensional é um jogo. Acreditarei. Mas parece ser um jogo que não se relaciona com coisa alguma real, com absolutamente nada do que experimentei até ago­ra". Podemos responder, de modo socrático, com outra per­gunta. Se uma Geometria quadridimensional não trata de nada real, o que a Geometria plana de Euclides considera? Algo mais real? Certamente não! Ela não descreve o es­paço acessível aos nossos sentidos, que explicam em termos de vista e tato. Fala de pontos que não têm dimensões, linhas que não têm largura, planos que não têm espessura — tudo abstrações e idealizações que não se assemelham a nada do que experimentamos ou encontramos".

A noção de uma quarta dimensão, embora precisa, é muito abstrata e, para a grande maioria, além da imaginação e no puro reino da concepção. O desenvolvimento desta idéia é devido tanto ao nosso um tanto infantil afã por con­sistência como por qualquer coisa mais profunda. Dentro da mesma luta por consistência e generalidade, os matemá­ticos fizeram aparecer os números negativos, imaginários e transcendentais. Uma vez que nunca foram vistas menos três vacas, nem a raiz quadrada de menos uma árvore, não foi sem alguma luta que estas idéias, agora bastante comuns, foram introduzidas em Matemática. A mesma luta se repe­tiu para introduzir uma quarta dimensão, e ainda há céticos no campo da oposição.

Todas as alegorias e ficções foram propostas para lison­jear e adular os dúbios, para tornar mais saborosa a idéia da quarta dimensão. Houve romances que descreviam co­mo era impossível um mundo em três dimensões para cria-

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120 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

toras de um bidimensional; houve histórias de fantasmas, batidas de mesa e reino dos mortos. Houve necessidade de ilustrações do mundo dos vivos, que eram ainda menos com­preensíveis que a quarta dimensão, para que fosse obtida uma vitória parcial. Daí não se devia deduzir que um ab­surdo maior foi apresentado em apoio a um menor.

Começando, como sempre, com Aristóteles, demonstrou--se, repetidamente, que uma quarta dimensão era irrimaginá-vel e impossível. Ptolomeu mostrara que se podiam traçar no espaço três linhas mutuamente perpendiculares, mas que uma quarta, perpendicular a elas, não teria dimensão. Ou­tros matemáticos, não querendo arriscar uma heresia maior do que se pôr contra a Bíblia — isto é, contradizer Euclides — aconselharam que, ir além das três dimensões, era ir "con­tra a natureza". E o matemático inglês John Wallis, de quem se poderia, mais propriamente, esperar coisas melhores, re­feriu-se a esta '"fantasia", uma quarta dimensão, como "um Monstro na Natureza, menos possível que uma Quimera ou um Centauro".

Sem saber, um filósofo, Henry More, veio a favor, em­bora os matemáticos de hoje docilmente reconhecessem seu apoio. Sua sugestão não foi uma bênção pura. Espíritos, fantasmas, disse More, certamente têm quatro dimensões. Mas Kant assestou um formidável golpe ao apresentar suas noções mtuitivas de espaço, que eram mrlcilmente compatí­veis com uma Geometria quadridimensional ou com uma não--eucHdiana.

No século XIX, muitos matemáticos eminentes esposa­ram a causa aparentemente sem esperanças e vejam só — uma nova fonte matemática. O grande trabalho de Riemann, Das Hipóteses que Sustentam os Fundamentos da Geometria, juntamente com as obras de Cayley, Veronese, Möbius, Plücker, Sylvester, Bolyai, Grassmann, Lobachevslcy, fizeram uma revolução na Geometria. A Geometria de quatro e mais dimensões tornou-se parte indispensável da Matemática, re­lacionada com muitos outros ramos.

Quando finalmente apareceram, pois por alguma razão misteriosa sempre aparecem, usos diretos e aplicações da Geo-

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GEOMETRIAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 121

metria quadridimensional à Física matemática, ao mundo fí­sico, quando a criança desprezada foi finalmente reconheci­da e rebatizada "Tempo, a quarta dimensão!", a alegria fez a taça transbordar. Coisas curiosas e maravilbosas foram ditas. A quarta dimensão poderia resolver todos os horro­rosos mistérios do universo e, em última análise, poderia de­monstrar ser um método de cura da artrite. Mas, no meio do júbilo geral, os matemáticos se esqueceram de que alguns deles a ela se referiam como "a quarta dimensão", como se, em vez de ser meramente uma idéia solta nas pontas de seus lápis, apenas a quarta numa classe de possibilidades infinitas, ela era uma realidade física, como um novo elemento. Daí a lamentável confusão que se espalhou da Matemática à Gra­mática, dos princípios do 2 -\- 2 à ciência dos usos apropria­dos dos artigos definido e mdefinido.

O físico pode considerar o tempo como a quarta dimen­são, mas não o matemático. O físico, como outros cientistas, pode achar que sua máquina mais moderna tem, exatamen­te, o lugar certo para alguma nova engenhoca matemática; isto não interessa ao matemático. O físico pode pedir em­prestado, todos os dias, aos cuidados dos matemáticos, novas partes para sua máquina sempre mutável. Se elas servem, o físico diz que são úteis, que são verdadeiras, porque há um lugar para elas no modelo do novo mundo que está cons­truindo. Quando já não servem mais, êle a joga fora ou "destrói toda a máquina e constrói uma nova, assim como estamos prontos para comprar um carro novo quando o ve­lho já não anda bem". 3

O uso de chamar o tempo de uma dimensão mostra a necessidade de explicar o que se deve entender por essa pa­lavra incômoda. Por este modo, também chegaremos a uma imagem mais nítida da Geometria quadridimensional.

Em vez de nos referirmos a "um espaço" ou a "espaços" usaremos um termo mais geral e mais na moda — agregado. 4

Um agregado se assemelha, aproximadamente, a uma classe.

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122 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Um plano é uma classe composta de todos os pontos unica­mente determinados por duas coordenadas. É, portanto, um agregado bidimensional,

Fie 28(a) — Um agregado bidimensional. Cada ponto precisa de um par de números para individualizá-lo.

* = (3, 2) B - ( - 5 § , 4) C - (*,,) D « (0, -3) E - (0, 0)

FIG. 28(b) — A mesma idéia pode ser estendida a um agregado tridimensional (espaço). Cada ponto re­

quer 3 números para individualizá-lo. Assim: P = (x, y, s)

O espaço estudado na Geometria Analítica tridimensio­nal pode ser encarado como um agregado tridimensional, por­que são necessárias, exatamente, três coordenadas para fixar qualquer ponto nele. De modo geral, se forem necessários

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GEOMETRIAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 123

n números para especificar, para individualizar cada um dos membros de um agregado, seja um espaço, ou outra classe qualquer, êle é chamado um agregado n-dimensional.

Assim, para a palavra dimensão, com suas inúmeras co­notações misteriosas e incrustações hngüísticas, surge, para substituí-la, uma idéia simples — a de uma coordenada. E , em lugar da palavra física espaço, o matemático introduz um conceito mais preciso de classe, um agregado.

Agora é possível, como conseqüência desses refinamen­tos, introduzir uma idéia já familiar, por nossa discussão so­bre a Geometria Analítica, que servirá para caracterizar, es­pecialmente, os agregados do espaço. Usaremos algum ra­ciocínio geométrico.

O teorema de Pitágoras estabelece que, num triângulo re-tângulo, a hipotenusa é igual à raiz quadrada da soma dos quadrados dos catetos.

FIG. 29 — 0 teorema de Pitágoras. Para qualquer triângulo retângulo:

c2 = a1 + b* Então, 52 = 31 -|. 4a

13* = 12* + 5a

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124 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Quando isso é levado à Geometria Analítica bidimensio­nal, o resultado é a bem conhecida fórmula da distância, pela

FIG. 30 — O teorema de Pitágoras em três dimensões. P = a* -f b* + c*

Porque d2 = c1 + (#)* e ( e)2 = + 6»

qual a distância entre dois pontos quaisquer do plano, ten­do respectivamente, as coordenadas (x, y) e (x?, y')> é

(1) Bidimensional (2) Tridimensional FIG. 31

(1) Distância AB = V(* - J Q * + (j -/)»

(2) Distância AB = V(* ~ + 0> ~ jO* + (* ~

Da mesma maneira, na Geometria Analítica tridimensio­nal, a distância entre dois pontos que tenham as coordena­das (x, y, z) e (xf, tf, zf), respectivamente, é

V ( * ~ * T + (j> -/)* + (* -

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Tanto em duas como em três dimensões, o conceito de distância, para o matemático como para o leigo, é o mesmo. O leigo se satisfaz com uma percepção intuitiva; o matemá­tico exige uma formulação exata. Mas, em outras dimen­sões, o leigo é detido por uma parede branca — as limita­ções naturais de seus sentidos; o matemático transpõe a pa­rede, usando fórmulas como escadas. A distância em quatro dimensões não significa nada para o leigo. Na realidade, para quê? Mesmo um espaço quadridimensional está total­mente além da imaginação comum. Mas o matemático, que faz repousar sua concepção em bases inteiramente diferentes, não se detém nos limites da imaginação, mas, apenas, nas limitações de suas faculdades lógicas.

Assim sendo, não há razão para não estender a fórmula acima para 4, 5, 6,... ou n dimensões. Assim, num agrega­do euclidiano, a distância de um elemento, isto é, um ponto com coordenadas (x, y, z, u) de um elemento com coorde­nadas (xf, tf, z!, u') é

V(x - x'Y + (y-y'Y + {z- z'Y + (i* -

Este método nos permite definir, em termos de Geome­tria Analítica, um agregado euclidiano de 2, 3, 4, . . . ou n dimensões. Uma definição semelhante pode ser dada para os agregados de outras Geometrias, em cujos casos alguma outra fórmula de distância possa ser aplicada. Escolhemos a Geometria Analítica e usamos a fórmula de distância de Pitágoras para clistinguir os agregados euclidianos.

Uma definição condensada de um agregado euclidiano de três ou quatro dimensões, em termos de Geometria Ana­lítica diz: 5

1. Um agregado euclidiano tridimensional é a classe de todos os números triplos: (x, y,z), (x,,yf,z').> (x", y", z"), etc, em que a cada dois deles se pode designar unicamente uma medida (chamada distância entre eles) definida pela fórmula

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Certas subclasses desta classe são chamadas pontos, linhas, planos, etc. Os teoremas derivados destas defini­ções constituem um sistema matemático chamado "Geometria Analítica das Três Dimensões".

2. Um agregado euclidiano quadridimensional é a classe de todos os números quádruplos: (x, y, z, u), {xf, tf, z', u'), (%", y", z", u"), etc, a quaisquer dois dos quais pode ser singularmente atribuída uma medida (chamada a distância entre eles) definida pela fórmula

V ( * - x ' ) 2 + (y — i / ) 2 + — + ( « - « ' ) 2 .

Certas classes desta classe são chamadas pontos, linhas, planos e MperpMnos. A Geometria Analítica euchdiana qua­dridimensional é o sistema formado pelos teoremas resultan­tes destas definições.

Note-se que nada foi dito, em nenhuma destas defini­ções, sobre espaço; nem o espaço dos nossos sentidos de per­cepção, nem o espaço físico, nem o do filósofo. Tudo o que fizemos foi definir dois sistemas de Matemática, lógicos e autoconsistentes, que podem ser jogados como xadrez, ou charadas, de acordo com regras preestabelecidas. Aquele que encontrar qualquer semelhança entre seu jogo de xadrez ou charadas e a realidade física de sua experiência é um privilegiado para pregar moral e capitalizar sua sugestão.

Mas, tendo estabelecido que estamos no reino da con­cepção pura, além dos mais elásticos limites da imaginação, quem fica satisfeito? Até o matemático gostaria de morder o fruto proibido, de ter a sensação do que seria penetrar, por um momento, na quarta dimensão. Ê difícil ficar a cavar como uma toupeira daqui em diante, para ouvir alguém falar de uma quarta dimensão, tomar nota cuidadosamente, e, en­tão, continuar a arar, sem pensar mais no assunto. E , para piorar o problema, os livros de ciência popular fizeram tudo tão ridiculamente simples — relatividade, quanta, etc. — que ficamos envergonhados com nossa incapacidade de concreti­zar uma quarta dimensão, a não ser como tempo.

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Já foram feitas tentativas de representações gráficas de figuras quadridimensionais: não se pode dizer que esses es­forços foram coroados de qualquer grande sucesso. A Fig. 31(a) ilustra o análogo quadridimensional de um cubo tridi­mensional, um hipercubo ou tesserato: nossas dificuldades em traçar tal figura não são, em nada, diminuídas pelo fato de que uma figura tridimensional só pode ser desenhada em perspectiva numa superfície bidimensional — como esta pá­gina —, enquanto um objeto quadridimensional, em uma pá­gina bidimensional, é apenas uma perspectiva de uma "pers­pectiva".

FIG. 31(a) — Dois aspectos do tesserato.

Contudo, como a2 é a área de um quadrado; a3, o volu­me de um cubo; temos a certeza de que a 4 descreve algo, seja o que este algo fôr. Só por analogia podemos racioci­nar que este "algo" é um hipervolume (ou conteúdo) de um tesserato. Raciocinando mais além, podemos deduzir que o tesserato é limitado por 8 cubos (ou células), tem 16 vérti­ces, 24 faces e 32 lados. Mas visualizar um tesserato é ou­tra estória.

Por sorte, sem ter de se basear em diagramas destorci­dos, podemos usar outros meios, empregando objetos fami­liares para ajudar nossa imaginação claudicante a perceber uma quarta dimensão.

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Os dois triângulos A e B da Fig. 32 são exatamente iguais.

FIG. 32

Geometricamente, diz-se que são congruentes, * signi­ficando que, com um movimento apropriado, um pode per­feitamente se superpor ao outro. Evidentemente, este mo­vimento pode ser realizado em um plano, isto é, em duas di­mensões, simplesmente deslizando o triângulo A para cima do triângulo B. ** Mas e os triângulos C e D da Fig. 33?

FIG. 33

I Um é a imagem reflexa do outro. Parece não haver razão para C não se superpor a D, deslizando ou girando no plano. Por estranho que pareça, isto não pode ser feito. C ou D devem ser retirados do plano, de duas para uma ter­ceira dimensão, para se realizar a superposição. Temos de levantar C, girá-lo, colocá-lo de volta no plano e, então, po­deremos superpor a D.

Ora, se uma terceira dimensão é essencial para a solu­ção de problemas bidimensionais, uma quarta dimensão tor­naria possível a solução de problemas de três dimensões, inso-

* Ver o capítulo sobre paradoxos para uma definição exata. °* Realmente, "deslizar para cima" seria impossível num mun­

do físico de duas dimensões.

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lúveis de outra maneira. Mas, afirmamos, estamos no reino da fantasia, e é preciso frisar que uma quarta dimensão não está disponível para fazer de todos nós outros Houdinis. Con­tudo, em pesquisas teóricas, uma quarta dimensão é de im­portância capital e parte da urdidura e trama da Matemática e da Física teóricas modernas. É bastante difícil encontrar, e estariam deslocados, exemplos escolhidos nestes assuntos, mas alguns mais simples, nas menores dimensões, podem tornar-se interessantes.

Se vivêssemos num mundo de duas dimensões, tal como descrito graficamente por Abbott em seu famoso romance, Terra Viana, nossa casa seria uma figura plana, como na Fig. 34. Entrando pela porta A, estaríamos protegidos contra nos­sos inimigos e amigos, logo que se fechasse a porta, mesmo sem teto sobre nossas cabeças, e sendo as paredes e janelas

FIG. 34 — Isto não é uma planta, mas uma casa verdadeira na Terra Plana.

apenas linhas. Para passar por cima destas Hnhas, seria ne­cessário sair do plano para uma terceira dimensão e, é lógi­co, ninguém, no mundo bidimensional, poderia imaginar co­mo fazer isso, tal como não sabemos como escapar de um cofre de banco por meio de uma quarta dimensão. Um gato tridunensional poderia espreitar um rei bidimensional, mas êle nunca seria o mais esperto.

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Quando chega o inverno na Terra Plana, seus habitantes usam luvas. Mãos tridimensionais são assim:

FIG. 35

e luvas, assim:

FIG. 36

Em Terra Plana, as mãos são assim:

FIG. 37

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GEOMETRIAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 131

e as luvas, assim:

FIG. 38

A ciência moderna ainda não inventou uma saída para o homem que se vê com duas luvas da mão direita, em vez de uma direita e outra esquerda. Em Terra Plana, existi­ria o mesmo problema. Mas, lá, Gulliver, olhando seus ha­bitantes da eminência de uma terceira dimensão, veria logo que, tal como no caso dos triângulos da Fig. 33, tudo o que seria necessário para tornar uma luva direita em esquerda era levantá-la e girá-la. É lógico que ninguém em Terra Plana iria ou poderia levantar um dedo para fazer isto, já que envolve uma dimensão extra.

Se, portanto, pudéssemos ser transportados para uma quarta dimensão, não haveria limites para os milagres que poderíamos realizar — começando com a reabilitação de to­dos os pares de luvas descasados. Levante uma luva direita do espaço tridimensional para um quadridimensional, gire-a e traga-a de volta, e ela se torna uma luva esquerda. Ne­nhuma cela de prisão manteria um Gulliver quadridimen­sional — ameaça muito maior que um simples homem invi­sível. Gulliver poderia apanhar um nó e desatá-lo sem to­car nas pontas ou cortá-lo, apenas transportando-o para v~~" quarta dimensão e fazendo passar a corda sólida atravé um buraco extra.

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Ou poderia separar dois elos de uma cadeia sem que­brá-los. Tudo isto e muito mais pareceriam absurdamente simples para êle, e êle olharia nosso desamparo com a mes­ma piedade ou divertimento com que olhamos as miseráveis criaturas de Terra Plana.

Nosso romance deve acabar. Se houver ajudado nossos leitores a fazer uma quarta dimensão mais real e satisfeito uma sede antropomórfica comum, terá cumprido sua finali­dade. De nossa parte, temos de confessar que as fábulas nunca tornaram os fatos mais compreensíveis.

Uma idéia, originalmente associada a fantasmas e espí­ritos, precisa, para servir a ciência, estar o mais afastada pos­sível de raciocínios emaranhados. Deve ser clara e corajo­samente enfrentada, se se quer descobrir sua verdadeira es­sência. Mas ainda é mais estúpido rejeitá-la e ridicularizá--la do que glorificá-la ou colocá-la em um santuário. Ne­nhum conceito saído de nossas cabeças ou penas marcou maior avanço em nosso pensamento, nenhuma idéia religio­sa, filosófica ou científica rompeu tão violentamente com a tradição e com o conhecimento usualmente aceito, como a idéia de uma quarta dimensão.

Eddington apresentou-a muito bem: 6

Por mais bem sucedida que seja a teoria de um mundo qua­dridimensional, é difícil ignorar uma voz interior que nos sus­surra: "No fundo de sua mente, você sabe que uma quarta di­mensão é um absurdo". Imagino a trabalheira que deve ter tido esta voz no passado da Física. Que absurdo é dizer que esta mesa em que estou escrevendo é uma coleção de eléctrons mo-vendo-se com velocidade prodigiosa em espaços vazios, que, em relação às dimensões eletrônicas, é tão vasto quanto os es­paços entre os planetas do sistema solar! Que absurdo é dizer que o ar está tentando esmagar meu corpo com uma pressão de 14 libras por polegada quadrada! Que absurdo é pensar que o grupo de estrelas, que estou vendo pelo telescópio, obviamen­te agora, é uma visão de uma era há 50.000 anos passados! Não nos deixemos enganar por esta voz. Está desacreditada...

Encontramos uma pegada estranha nas margens do des­conhecido. Descobrimos teorias profundas, uma após a outra,

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para encontrar sua origem. Afinal conseguimos reconstruir a criatura que fêz a pegada. Eis aí! Somos nós mesmos.

Demos ênfase ao fato de que a Geometria pura está se­parada do espaço físico que percebemos em torno de nós, e, agora, estamos preparados para trabalhar uma idéia que é ligeiramente mais difícil. Não há dificuldade, porém, em, irúcialmente, fazer uma distinção, algo diferente, entre o espaço como concebemos normalmente e os agregados espa­ciais da Matemática. Esta distinção talvez ajude a tornar nosso novo conceito — as Geometrias não-euchdianas — pa­recer menos estranho.

Estamos muito acostumados a pensar que o espaço é infinito, não no sentido técnico matemático das classes infi­nitas, mas simplesmente significando que o espaço é sem li­mites — sem fim. É certo que a experiência não nos ensina nada sobre isso. Os limites de um cidadão raramente vão muito além da ponta de seu braço direito. As fronteiras de uma nação, como os contrabandistas aprenderam, não vão além de um limite de 20 quilômetros.

A maior parte do que sabemos sobre a mfinidade do es­paço nos vem pelo ouvir dizer e a outra parte pelo que pensamos ver. Assim, as estrelas parecem estar a milhões de quilômetros, embora, em uma noite escura, uma vela, a 1 km de distância, possa dar a mesma impressão. E ainda mais, se nos considerássemos do tamanho de um átomo, uma ervi­lha a 3 cm de distância pareceria muito maior e muito mais distante que o sol.

A diferença entre o espaço do indivíduo e o "espaço pú­blico" cedo se torna aparente. Nosso conhecimento sobre o espaço não o mostra nem infinito, nem homogêneo ou isotró-pico. Não o reconhecemos infinito porque rastejamos, pula­mos e voamos em apenas pequenas porções. Não o vemos homogêneo, porque um arranha-céu à distância parece mui­to menor que a ponta de nosso nariz; e a pena do chapéu de uma senhora à nossa frente nos corta a visão da tela do cinema. E não o sabemos isotrópico, isto é, "não possui as

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mesmas propriedades em todas as direções", 7 porque há pon­tos cegos em nossa visão, e nosso sentido de vista não é nunca igualmente bom em todas as direções.

A noção de espaço físico ou "público", que abstraímos de nossa experiência individual, se destina a nos libertar de nossas limitações pessoais. Dizemos que o espaço físico é infinito, homogêneo, isotrópico e euclidiano. Estes cumpri­mentos são prontamente feitos a uma entidade ideal, sobre a qual muito pouco é realmente sabido. Se perguntássemos a um físico ou astrônomo, "O que pensa sobre o espaço?", êle poderia responder: "Para realizar medidas experimentais e descrevê-las com a maior conveniência, o cientista físico decide tendo em vista certas convenções a respeito de seu aparelho de medida e das operações realizadas por êle. São, estritamente falando, convenções em relação a objetos físi­cos e operações físicas. Contudo, para finalidades práticas, é conveniente dar a eles uma generalidade além de qualquer conjunto especial de objetos ou operações. Eles se tornam, então, como dizemos, propriedades do espaço. Isso é o que se quer dizer por espaço, que podemos definir, em resumo, como a construção abstrata possuindo aquelas propriedades dos corpos rígidos que são independentes de seu conteúdo material. O espaço físico é aquele em que se baseia quase toda a Física e é, naturalmente, o espaço dos trabalhos de todos os dias". 8

Por outro lado, os espaços, ou mais genericamente, os agregados que o matemático considera, são construídos sem qualquer referência a operações físicas, tais como medidas. Possuem tão-sòmente as propriedades expressas nos postula­dos e axiomas da Geometria particular em questão, assim como as propriedades dedutíveis deles.

Pode muito bem ser que os postulados são, eles mes­mos, sugeridos, em parte ou no todo, pelo espaço físico de nossa experiência, mas devem ser encarados como adultos e independentes. Se as experiências vierem a mostrar que algumas ou todas as nossas idéias sobre o espaço físico estão erradas (como a teoria da relatividade de fato o fêz), tere-

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mos de reescrever todos os nossos textos de Física, mas não nossa Geometria.

Mas este modo de encarar o conceito de espaço, tanto quanto a Geometria, é relativamente recente. Nunca houve um movimento mais arrebatador, em toda a história da ciên­cia, do que o desenvolvimento da Geometria não-euclidiana, movimento que abalou os fundamentos da crença secular de que Euclides havia apresentado verdades eternas. Compe­tente e precisa como um instrumento de medição desde os tempos dos egípcios, intuitiva e cheia de bom senso, consa­grada e cultivada como um dos mais ricos legados intelec­tuais da Grécia, a Geometria de Euclides permaneceu, por mais de vinte séculos, em majestade única, resplendente e irrepreensível. Certamente coroada com divindade, se Deus, como disse Platão, alguma vez tivesse de usar Geometria, teria de procurar Euclides para pedir-lhe as regras necessá­rias. Os matemáticos que, ocasionalmente, tinham duvida­do, logo depois expiaram sua heresia fazendo oferendas voti­vas sob a forma de novas provas de reafirmação de Euclides. Até Gauss, o "Príncipe dos Matemáticos", não se atreveu a apresentar críticas, com receio dos insultos vulgares dos "boécios".

De onde vieram as dúvidas? De onde, a inspiração dos que tiveram coragem de profanar o templo? Os postulados de Euclides não eram auto-evidentes, claros como a luz do dia? E os teoremas, tão inatacáveis quanto dois mais dois serem quatro? O centro da tempestade cada vez mais avas­saladora, que surgiu, afinal, no século XDÍ, foi o famoso quin­to postulado, sobre as linhas paralelas.

Este postulado pode ser anunciado da seguinte forma: "Por um ponto de um plano, pode-se traçar uma, e apenas uma, linha paralela a outra linha dada".

Há alguma evidência de que o próprio Euclides não achava este postulado "tão auto-evidente" quanto os demais.8

Filósofos e matemáticos, com a intenção de justificá-lo, ten­taram mostrar que era, na realidade, um teorema e, portanto, dedutível de seus próprios dados. Todas essas tentativas fra-

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cassaram pela simples e boa razão de que Euclides, muito mais sábio do que os que se lhe seguiram, já havia reconhe­cido, claramente, que o quinto postulado era apenas uma hipótese e, daí, não podia ser matematicamente demonstrado.

Mais de dois mil anos depois de Euclides, um alemão, um russo e um húngaro conseguiram esmagar dois "fatos" indiscutíveis. O primeiro, de que o espaço obedecia a Eu­clides; o segundo, de que Euclides obedecia ao espaço. Acre­ditamos em Gauss, com fé pura. Embora não conhecendo a extensão de suas investigações, mas em deferência à sua gran­deza, bem como à sua integridade, acolhemos sua declaração de que chegou, independentemente, a conclusões semelhan­tes às do húngaro, Bolyai, alguns anos antes do pai de Bolyai informá-lo do trabalho de seu filho.

Lobachevsk}', o russo, e Bolyai, ambos na década de 1830, apresentaram ao apático mundo científico suas teorias no­táveis. Eles argumentaram que o perturbador postulado não podia ser demonstrado, não podia ser deduzido dos outros axiomas, porque era apenas um postulado. Qualquer outra hipótese sobre paralelas poderia ser colocada em seu lugar, e uma Geometria diferente — tão consistente e exata como "verdadeira" — surgiria. Todos os outros postulados de Eu­clides seriam mantidos; somente em lugar do quinto deveria ser feita uma substituição: "Por qualquer ponto do plano, podem passar duas linhas paralelas a outra dada".

Da noite para o dia, os matemáticos quebraram suas ca­deias, e uma nova linha de pesquisa, prática e teoricamente rica em resultados, foi iniciada.

Na figura abaixo estão duas linhas paralelas:

FIG. 39

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GEOMETRIAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 137 Como será possível, perguntará você, que outra linha, di­ferente de BC, mas paralela a DE, possa ser traçada pelo ponto A? A resposta é que o leitor está falando do plano físico e de linhas traçadas com um lápis. Está-se prenden­do aos fantasmas do bom senso, em vez de raciocinar em termos de Geometria pura. Você poderá ir mais além e di­zer que, em seu sistema, na Geometria euclidiana, qualquer outra hnha, diferente de BC, encontrará DE, se for sufi­cientemente prolongada. Nós responderemos que esta regra é válida para o seu jogo — não para o nosso, a Geometria lobachevsldana. Nenhum de nós, se formos matemáticos, está falando de espaço físico, mas, mesmo que estivéssemos, há mais razões para crer que estejamos mais certos que você.

A Geometria de Lobachevslcy pode ser apresentada da seguinte forma: na Fig. 40, a hnha AB é perpendicular a CD; se a permitirmos girar em torno de A, em sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, ela interceptará CD em vários pontos, à direita de B, até que atinja a posição limite EF, quando se toma paralela a CD. Continuando a rotação, co­meçará a interceptar CD à esquerda de B. Euclides supôs que só havia uma posição da hnha, ou seja EF, em que ela era paralela a CD. Lobachevslcy supôs que há duas destas posições, representadas por A'B' e CD' e mais, que todas as linhas existentes no interior do ângulo 0, embora não para­lelas a CD, nunca encontrariam esta hnha, por mais que fossem prolongadas.

A' E C

•D' •F B'

C D

B

FIG. 40

Ora, isso é uma hipótese, e não há motivo para argu­mentar, pelo diagrama acima, que é evidente que, se A'B' e C'Dr forem prolongadas suficientemente, irão, finalmen-

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te, interceptar C D . Se, como salientou o Professor Cohen, apoiarmo-nos inteiramente em nossa intuição sobre o espa­ço, que é finita, haverá sempre um ângulo 8 que se torna cada vez menor, à proporção que nosso espaço se amplia, mas que nunca se extingue, e todas as linhas que estiverem dentro de 9 deixarão de interceptar a linha dada. 1 0

O que acontece com a Geometria de Euclides, quando seu postulado das paralelas é substituído pelo de Lobachevsky? Muitos de seus importantes teoremas, que, de nenhum modo dependem do quinto postulado, são mantidos. Assim, em ambas as Geometrias:

1. Se duas linhas retas se interceptam, os ângulos opos­tos são iguais:

FIG. 41 — Ângulo 1 = Ângulo 2 (porque cada um = 180° - Ângulo 3).

2. Em um triângulo isosceles, os ângulos da base são iguais:

FIG. 42 - Se AB = AC, então o Ângulo 1 = Ângulo 2.

Page 139: Matemática e Imaginação - Edward Kasner

GEOMETRIAS DIVERSAS - PLANA E FANTASIA 139 3. De um ponto, só se pode traçar uma perpendicular

a uma linha reta.

FIG. 43 — Pelo ponto A, uma, e só uma, perpen­dicular pode ser traçada sobre CD.

Por outro lado, vários teoremas muito importantes da Geometria de Euclides são modificados quando se substitui o quinto postulado, com resultados surpreendentes. Assim, na Geometria euclidiana, a soma dos ângulos de qualquer triângulo é igual a 180 graus, enquanto, na Geometria de Lobachevsky, a soma dos ângulos de qualquer triângulo é menor que 180 graus. As linhas paralelas, na Geometria eu-chdiana, nunca se cortam e permanecem, por mais que sejam prolongadas, a uma mesma distância. As hnhas paralelas, na Geometria de Lobachevsky, nunca se encontram, mas se apro­ximam assintòticamente — isto é, a distância entre elas dimi­nui a proporção que elas se prolongam.

Apenas para citar mais um interessante teorema: dois triângulos, na Geometria euclidiana, podem ter os mesmos ângulos, mas áreas diferentes; isto é, um pode ser a amplia­ção do outro. Mas, na Geometria de Lobachevsky, à pro­porção que um triângulo aumenta de área, a soma de seus ângulos diminui; assim, somente triângulos de áreas iguais podem ter os mesmos ângulos. (Ver Fig. 47(b).)

O brilhante Eiemann, em sua conferência inaugural Das Hipóteses que Sustentam os Fundamentos da Geometria, pro­pôs outro substituto para o quinto postulado de Euclides, diferente dos de Lobachevsky e Bolyai. A hipótese é: "Por um ponto do plano, não se pode traçar nenhuma linha para­lela a uma linha dada". Em outras palavras, qualquer par

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de Hnhas de um plano devem interceptar-se. Deve-se notar que isto contradiz a suposição tácita de Euclides que uma hnha reta pode ser infinitamente prolongada. Em relação a isto, Riemann frisou a importante distinção entre infinito e ilimitado: assim, o espaço pode ser finito, embora ilimitado. Deslocando-nos em qualquer direção dada, como os ponteiros do relógio, poderemos fazê-lo, sem parar, refazendo sempre nossas pegadas. Como se pode esperar, a hipótese de Rie­mann também afeta os teoremas de Euclides que se baseiam no quinto postulado. Não só a Geometria de Euclides, co­mo a de Lobachevsky, estabelecem que, por um ponto do plano, só se pode traçar uma perpendicular a uma reta dada. Mas, na de Riemann, qualquer número de perpendiculares pode ser traçado de um ponto apropriado, sobre uma linha reta dada. Ainda mais, a soma dos ângulos de qualquer triângulo é maior que 180 graus na Geometria de Riemann, e os ângulos aumentam à proporção que o triângulo também aumenta. (Ver Fig. 47(a).)

Temos, assim, três sistemas de postulados: o de Eucli­des, o de Lobachevsky e o de Riemann. Deles desenvolve­ram-se três Geometrias: a primeira, euclidiana; as outras duas, não-eucHdianas. As Geometrias não-euchdianas muito devem, como é lógico, aos postulados e métodos de Eucli­des. Quanto aos postulados, diferem apenas quanto ao das paralelas. Os teoremas são bastante diferentes em vários as­pectos.

Um pouco atrás estabelecemos o critério para qualquer sistema matemático — seus postulados devem ser consisten­tes, não devem conduzir a contradições. Mas como podere­mos descobrir se as Geometrias não-euchdianas de Loba­chevsky e Riemann são consistentes? Sobre este assunto, podem perfeitamente perguntar como podemos estar certos de que os postulados de Euclides não provocarão contradi­ções? Evidentemente, poderemos empilhar teoremas sobre teoremas sem encontrar nenhuma, mas isto não prova que, em alguma época futura, uma possa aparecer. Não será pos-

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sível que estejamos em situação semelhante ao de verificar uma hipótese da Física ou de qualquer outra ciência expe­rimental?

Por sorte, os matemáticos descobriram um artifício que satisfaz suas consciências sobre isto. Consiste em mostrar, por exemplo, em Geometria não-euclidiana, que um conjunto de entidades que existem na Geometria euclidiana satisfaria os teoremas não-euclidianos. Supõe-se que estas entidades são, elas mesmas, 'livres de contradições e que, na realidade, in­corporam integralmente os axiomas",11 e que estes são, por­tanto, apresentados sem inconsistências. Tomemos exemplos das duas Geometrias, de Lobachevsky e de Rieman, para ilus­trar o que se quer dizer.

A Fig. 44 mostra uma superfície gerada pela revolução de uma curva conhecida como tratriz, em torno de uma li­nha horizontal.

FIG. 44 — A pseudo-esfera.

A própria tratriz pode ser obtida da seguinte maneira: em um par de eixos mutuamente perpendiculares, tal como na Geometria cartesiana, imaginemos uma corrente sobre o eixo YY'. A uma das extremidades desta corrente está pre­so um relógio; a outra extremidade coincide com o ponto de origem 0. Mantenha-se a corrente tensa e puxe-se a extre­midade livre, lentamente, ao longo do eixo dos XX, para a direita de 0. Repita-se isto para a esquerda. O curso do relógio, em qualquer dos casos, gera uma tratriz. Se esta

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142 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO curva girar, agora, em torno da linha XX', forma-se uma "su­perfície de dupla trompa", como a chama E. T. Bell.

A esta superfície, Beltrami chamou de pseudo-esfera. Verificamos que a Geometria que se aplica à pseudo-esfera é a de Lobachevsky. Por exemplo, na pseudo-esfera, por um ponto dado, podem-se traçar duas hnhas paralelas a uma terceira, que delas se aproxima, assintòticamente, sem nunca interceptá-las. 1 2 Portanto, a Geometria de Lobachevsky é

FIG. 45(a) — Uma maneira de gerar uma tratriz. A locomotiva de brinquedo L está amarrada ao relógio W, ficando o barbante perpen­dicular aos trilhos. Quando a locomotiva começa a puxar, o caminho

feito pelo relógio é -uma tratriz.

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satisfeita por uma entidade da Geometria euclidiana, concor­dando com o critério de consistência.

FIG. 45(b) — A tratriz é, também, a curva que é perpen­dicular a uma família de círculos iguais, com seus centros

sobre uma linha reta.

A Geometria de Riemann é aplicável a um objeto muito familiar — a esfera. Pode-se ver na Fig. 46 que um plano que passa pelo centro de uma esfera corta a superfície em um círculo máximo.

FIG. 45(c) — A curva formada por uma corrente caindo livremente é chamada de catenária. Se as tangentes à catenária (linhas que apenas a tocam) são traçadas, a curva perpendicular a elas e que encontra a catenária em

seu ponto mais baixo é, também, uma tratriz.

Embora a Terra seja achatada nos pólos, podemos con­siderá-la, para efeito desta discussão, como esférica. To-

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dos os círculos que passam pelos Pólos Norte e Sul, na super­fície da Terra, são círculos máximos (longitude), mas, com exceção do equador, os círculos das latitudes não o são. L i ­nhas retas, traçadas na superfície da Terra, são sempre partes

FIG. 46

de círculos máximos, e mesmo que duas destas linhas sejam perpendiculares a uma terceira (o que, na Geometria eucli­diana, significaria que são paralelas), elas se cortarão, sem-

FIG. 47(a) — O triângulo A é pequeno, comparado com a esfera; portanto, é quase um triângulo plano e a soma

de seus ângulos está próxima de 180 graus. Mas, deixando-o crescer até o triângulo B, cujos lados es­tão em três grandes círculos perpendiculares, a soma dos

ângulos será: 90° + 90° + 90° = 270°. No triângulo C , ainda maior, cujos ângulos são todos

obtusos, a soma é maior que 270°.

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pre, em um par de pólos. Portanto, os elementos de uma Geometria que satisfaça a superfície da Terra são idênticos aos da Geometria de Riemann. Por exemplo, um triângulo traçado na superfície da Terra terá ângulos que somam mais de 180 graus e, quanto maior o triângulo, tanto maior será a soma dos ângulos.

FIG. 47 (t>) — Isto é o reverso do que acontece em uma esfera, Fig. 47(a). Na pseudo-esfera, quanto maior o

triângulo, tanto menor será a soma dos ângulos.

Além disso, duas linhas retas traçadas na superfície da Terra, se prolongadas suficientemente, envolverão, sempre, uma área. É conveniente, neste momento, relembrar a im­portante distinção observada por Riemann, de que uma su­perfície pode ser finita, mas ilimitada, e, daí, retas traçadas na superfície da Terra poderem ser infinitamente prolonga­das, embora a superfície não seja, evidentemente, infinita, mas meramente ilimitada. As propriedades riemannianas da esfera são divertidamente estabelecidas por esta charada:

Um grupo de esportistas, tendo armado um acampa­mento, saíram para caçar ursos. Andaram 15 km para o sul, depois 15 km para leste, quando viram um urso. Carregan­do a caça, voltaram para o acampamento e verificaram que, ao todo, tinham caminhado 45 km. De que cor era o urso?

10

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Nossa breve discussão sobre Geometria não-euclidiana já faz surgirem na mente do leitor muitas perguntas fora de nossa jurisdição, mas a literatura, mesmo a popular, é tão extensa que qualquer um, suficientemente interessado e curio­so, não precisa estar implorando respostas.

Contudo, talvez seja apropriado considerarmos uma per­gunta muito natural que pode tomar a seguinte forma: "Em uma esfera, duas linhas retas, embora paralelas em certo tre­cho, devem certamente (se devidamente prolongadas) inter­ceptar-se e envolver uma área. Porque, então, chamar tais linhas de "retas"? Elas não são, na realidade, curvas?"

De saída, é óbvio que o fato de uma linha ser reta, ou não, depende da definição de "reta". Em Matemática, veri­ficou-se que era conveniente formular tal definição somente com relação à superfície considerada. Um modo de definir uma hnha reta é dizer que é a menor distância entre dois pontos. Por outro lado, todos sabem, face a muitas expe­riências feitas por exploradores aeronáuticos, em recentes oca­siões, que a rota mais curta entre dois pontos da superfície da Terra pode ser traçada seguindo-se o arco do grande círculo que passa por ambos. De modo bastante conveniente, há sempre um grande círculo que passa em cada dois pontos da superfície de uma esfera.

O grande círculo, portanto, em uma esfera, correspon­de à linha reta do plano — é a menor distância entre dois pontos. Curvas apropriadas podem ser encontradas para ou­tros tipos de superfícies como, por exemplo, a pseudo-esfe-ra, ou uma superfície em forma de sela, que exercerão a mesma função. Generalizando esta noção, uma curva que se­ja a menor distância entre dois pontos (análoga à linha reta no plano) em qualquer espécie de superfície é chamada uma geodésica daquela superfície. Quando procuramos entida­des que satisfizessem a Geometria de Lobachevslcy e de Rie­mann, estávamos realmente procurando superfícies cujas geo­désicas obedecessem aos postulados das paralelas destas Geo­metrias.

No plano, se adotarmos a hipótese de Euclides, um par de geodésicas se encontram em um ponto, a não ser que

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GEOMETRIAS DIVERSAS — PLANA E FANTASIA 147

sejam paralelas, quando não se cortam nunca. Numa esfe­ra, um par de geodésicas (arcos de grandes círculos), mesmo sendo paralelas, sempre se encontram em dois pontos e, por­tanto, a esfera obedece à Geometria de Riemann. Numa pseudo-esfera, obedecendo à Geometria de Lobachevsky, geo­désicas paralelas podem aproximar-se assintòticamente, mas nunca se interceptam.

FIG. 48 — Curvatura.

As geodésicas de uma superfície são determinadas por sua curvatura. Curvatura não é fácil de explicar, embora todos nós tenhamos uma noção intuitiva do que seja. Um plano tem curvatura 0. Uma superfície como a de uma es­fera ou de um elipsóide a tem positiva, enquanto a superfície em forma de sela ou a pseudo-esfera são consideradas como de curvatura negativa. Podemos imaginar superfícies mais complicadas, partes das quais têm curvatura positiva, enquan­to outras a têm negativa e outras, ainda, curvatura 0. As geodésicas de uma superfície, assim como sua Geometria mais apropriada, dependem desta curvatura — positiva, negativa ou 0. Daí a Geometria de uma superfície de curvatura ne­gativa constante ser lobachevskiana; a de uma superfície de curvatura positiva constante, riemanniana, e a de uma super­fície de curvatura 0, euclidiana.

POSITIVO NEGATIVO.

ZERO

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Tudo o que foi dito a respeito de Geometria não-euclidia­na, embora bastante evidente quando se fala de Geometria, tende a se tornar obscuro quando aplicado aos acontecimen­tos diários. Somos inclinados a ter pena dos habitantes de um mundo bidimensional, não só por sua ignorância, como por suas limitações físicas. Eles nem sequer sonham em fazer coisas que são banais para nós. Mas tendemos a demonstrar as mesmas limitações intelectuais ao apresentar nosso pró­prio mundo a nós mesmos. Na realidade, vamos mais longe, pois, deliberadamente, rejeitamos nossa própria experiência. Nossa experiência é que o espaço é finito, mas ilimitado, e que as linhas retas que podemos traçar na superfície onde vivemos não podem, jamais, ser retas e sim curvas. ( É ló­gico que a curvatura da Terra é diferente de 0.) Mas conti­nuamos a confundir infinidade com ilimitação, a rejeitar a última, que constitui nosso real conhecimento espacial, para abraçar a primeira, amparados em razões religiosas e esté­ticas. E, embora toda pessoa inteligente saiba que a super­fície da Terra é curva e qualquer navegador pratique a na­vegação pelo grande círculo, a maioria de nós se comporta como Adventistas do Sétimo Dia ao argumentar que nossas linhas retas são traçadas em um plano com curvatura 0 — ou seja, em um mundo plano. Daí vai apenas um passo para crer que o quinto postulado de Euclides é sagrado e que qual­quer substituto é "contra a natureza". Uma pequena curva­tura, mais do que um pequeno conhecimento, tem suas van­tagens.

Embora saibamos bastante mais sobre a superfície onde habitamos do que sobre o espaço em que vivemos, não te­mos nenhuma escolha entre os absurdos de nossas crenças sobre qualquer um deles. A Geometria de Euclides que con­sidera superfícies de curvatura 0, no mais estrito sentido (sem olharmos a conveniência para operações matemáticas), não se adapta à superfície em que vivemos, nem tampouco a de Rie­mann. Sem nenhuma dúvida, nossas Geometrias, embora suge­ridas pela percepção de nossos sentidos, não dependem deles.

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As Geometrias que incutimos são apenas três de um número infinito de outras possíveis. Qualquer Geometria, se­jam quais forem seus postulados (desde que não conduzam a contradições), será tão "verdadeira" quanto a de Euclides. Para cada superfície, por mais complexa que seja sua curva­tura, há uma Geometria que lhe sirva peculiarmente. É verdade que começamos nossas Geometrias como estruturas puramente lógicas, mas, tal como em outros ramos da Mate­mática, verificamos que a Natureza se antecipou a nós, e que uma superfície, muitas vezes, está esperando por nossa capa­cidade de invenção. Por esta razão, a Matemática não-eu-clidiana encontrou campos de aplicação altamente importan­tes na curiosa mixórdia da Física moderna.

Enquanto consideramos as aplicações das Geometrias não-euclidianas bidimensionais a superfícies familiares, o fí­sico matemático estuda a aplicação das Geometrias não-eu­clidianas com mais dimensões e agregados espaciais de mais dimensões. Ao tentar descobrir experimentalmente em que espaço realmente vivemos, os cientistas obtiveram resultados que os levaram a crer que o espaço é antes curvo que reto. Tendo-nos emancipado da idéia primitiva de que vivemos em uma superfície plana, não é tão difícil aceitar o espaço curvo.

Há um ponto final: se considerarmos as Geometrias de Euclides, Lobachevsky e Riemann como Matemática aplica­da e não como pura; se perguntarmos qual delas é mais apro­priada para o espaço que nos cerca mais imediatamente e para a superfície em que vivemos, qual será nossa resposta? Só a experimentação e a mensuração podem responder a esta pergunta. O que se vê é que a Geometria de Euclides é a mais conveniente e, em conseqüência, a que continuare­mos a usar para construir nossas pontes, túneis, edifícios e rodovias. As Geometrias de Lobachevsky, ou de Riemann, se devidamente utilizadas, serviriam da mesma forma. 1 3 Nos­sos arranha-céus se manteriam, assim como nossas pontes, túneis e rodovias; nossos engenheiros, não. A Geometria de Euclides é mais fácil de ensinar, enquadra-se mais rapida­mente no bom senso mal orientado, e, acima de tudo? é mais

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fácil de usar. E , afinal de contas, estamos mais interessados no que se refere a viver, e não na Lógica.

Contudo, nossas perspectivas foram ampliadas e nossa visão esclarecida. A Matemática nos ajudou a ir além des­sas impressões sensoriais que, podemos agora dizer, "nunca nos enganam, embora sempre nos mintam".

NOTAS

1. S. Agostinho, Confissões. 2. Exemplo de Matemática pura (Morris Raphael Cohen e Ernest

Nagel, An Introduction to Logic and Scientific Method, Nova York: Harcout Brace, 1936, págs. 133-139):

Considerem-se as proposições seguintes, que são os axiomas de um tipo especial de Geometria.

Axioma 1. Se A e B são pontos distintos em um plano, há, pelo menos, uma linha contendo tanto A quanto B.

Axioma 2. Se A e B são pontos distintos em um plano, não há mais de uma linha contendo tanto A quanto B.

Axioma 3. Quaisquer duas linhas de um plano têm, ao me­nos, um ponto do plano em comum.

Axioma 4. Existe, pelo menos, uma linha em um plano. Axioma 5. Qualquer linha contém, no mínimo, três pontos

do plano. Axioma 6. Todos os pontos de um plano não pertencem à

mesma linha. Axioma 7. Nenhuma linha contém mais que três pontos do

plano. Estes axiomas parecem, claramente, referir-se a pontos e li­

nhas em um plano. De fato, se omitirmos o sétimo, eles são as hipóteses feitas por Veblen e Young para a "Geometria proje-tiva" em um plano, no seu tratado padrão neste assunto. Não é necessário ao leitor saber coisa alguma sobre Geometria projeti-va para entender a discussão que se segue. Mas o que são pon­tos, linhas e planos? O leitor pensa que sabe o que são. Pode "traçar" pontos e linhas com lápis e régua, e talvez convencer-se de que os axiomas estabelecem, verdadeiramente, as propriedades e relações dessas coisas gométricas. Isso é extremamente duvidoso, porque as propriedades de marcas em um papel podem divergir notoriamente das postuladas. Mas, de qualquer modo, a pergun­ta se estas marcas reais estão, ou não, de acordo com aquelas, diz respeito à Matemática aplicada; não à pura. Os próprios axio­mas, devemos notar, não indicam que pontos, linhas etc. "real­mente" são. Para descobrir as conseqüências destes axiomas, não

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é essencial saber o que entendemos por pontos, linhas e planos. Estes axiomas dão origem a muitos teoremas, não em virtude da representação visual que o leitor lhe possa dar, mas por sua for­ma lógica. Pontos, Hnhas e planos podem ser quaisquer enti­dades, indeterminadas de qualquer modo, exceto pelas relações estabelecidas nos axiomas.

Suprimamos, portanto, toda referência explícita a pontos, li­nhas e planos, eliminando, assim, qualquer apelo à intuição es­pacial ao derivar muitos teoremas dos axiomas. Suponha-se, en­tão, que, em lugar da palavra "plano", empregamos a letra S; em vez de "ponto", usamos a expressão "elemento de S". Ob­viamente, se o plano (S) é visto como uma coleção de pontos (elementos de S), uma linha pode ser vista como uma classe de pontos (elementos) que é uma subclasse dos pontos do plano (S). Substituiremos, portanto, a palavra "linha" pela expressão "classe L". Nosso conjunto original de axiomas se transforma, então, em:

Axioma 1'. Se A e B são elementos distintos de S, existe, pelo menos, uma classe L contendo tanto A quanto B.

Axioma 2'. Se A e B são elementos distintos de S, não há mais de uma classe L contendo tanto A quanto B.

Axioma 3'. Quaisquer duas classes L têm, ao menos, um elemento de S em comum.

Axioma 4'. Existe, pelo menos, uma classe L em S. Axioma 5'. Qualquer classe L contém, no mínimo, três ele­

mentos de S. Axioma 6'. Todos os elementos de S não pertencem à mes­

ma classe L. Axioma 7'. Nenhuma classe L contém mais de três ele­

mentos de S. Neste conjunto de hipóteses nenhuma referência explícita é

feita a qualquer assunto específico. As únicas noções que se exigem para estabelecê-las são de caráter absolutamente geral. As idéias de "classe", "subclasse", "elementos de uma classe", a relação de "pertencer a uma classe" e a relação inversa de "uma classe conter elementos", a noção de "número", são partes do equipamento básico da lógica. Se, portanto, conseguirmos des­cobrir as implicações destes axiomas, não será por causa das pro­priedades de espaço propriamente. (Na realidade, nenhum destes axiomas pode ser encarado como proposições; nenhum deles é, por si mesmo, verdadeiro ou falso. Porque os símbolos S, classe L, A e B, e outros, são variáveis. Cada uma das variáveis indica qual­quer uma classe de entidades possíveis, com a única restrição de que deve "satisfazer", ou estar de acordo com, as relações for­mais estabelecidas nos axiomas. Mas, até que sejam dados valo­res específicos aos símbolos, os axiomas são funções proposicio­nais e, não, proposições.)

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Nossas "hipóteses", portanto, consistem em relações conside­radas como verdadeiras dentro de termos indefinidos. Mas o lei­tor notará que, embora nenhum termo seja explicitamente defini­do, uma definição implícita é feita a respeito deles. Eles podem ser qualquer coisa, contanto que o que eles simbolizem esteja de acordo com as relações estabelecidas entre eles. Este procedi­mento caracteriza a moderna técnica matemática. Em Euclides, por exemplo, são dadas definições explícitas de pontos, linhas, ân­gulos etc. No tratamento moderno da Geometria, estes elemen­tos são definidos implicitamente pelos axiomas. Como vere­mos, este procedimento toma possível dar uma variedade de in­terpretações aos elementos mdefinidos e, assim, apresentar uma identidade de estrutura em diferentes conjuntos concretos. . . .

IDENTIDADE ESTRUTURAL OU ISOMORFISMO

Queremos mostrar, agora, que um conjunto abstrato, como o discutido na seção anterior, pode ter mais de uma representação concreta, e que estas representações diferentes, embora extrema­mente diferentes em conteúdo material, serão idênticas em estru­tura lógica.

Suponhamos que haja uma firma bancária com sete sócios. Para conseguirem informações referentes a vários investimentos, decidiram formar sete comissões, estudando, cada uma, um cam­po especial. Concordaram, ainda, que cada sócio seria o presi­dente de uma comissão, pertencendo, cada um, a três comissões, e só três. É a seguinte a organização das comissões, sendo o pri­meiro dos membros o presidente:

Ferrovias nacionais Adams Brown Smith Obrigações municipais Brown Murphy Ellis Obrigações federais Murphy Smith Jones Investimentos sul-americanos Smith Ellis Gordon Indústria de aço nacional Ellis Jones Adams Investimentos continentais Jones Gordon Brown Utilidades públicas Gordon Adams Murphy

Um exame desta organização mostra que ela "satisfaz" os sete axiomas se a classe S é interpretada como sendo a firma bancária; seus elementos, os sócios e as classes L, as várias comissões ·..

Parafraseando: Outra interpretação ilustra as mesmas sete relações formais. No diagrama, há sete pontos, estando cada três deles em sete

diferentes linhas, uma das quais "quebrada". Se cada ponto re­presenta um elemento de S e cada conjunto de três pontos em uma mesma hnha uma classe L} então todas as sete hipóteses são satisfeitas. Assim, por exemplo, a relação de três termos entre

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Adams, Brown e Srnith, que os fêz ficar na mesma comissão, é válida para os pontos A, B, D, que estão na mesma linha por causa dela. De modo geral, o que se pode deduzir das hipó­

teses, em relação a A, será válido para o Sr. Adams; o que se deduzir para B, vale para o Sr. Brown; etc.

3. Forsyth, Geometry of Four Dimensions. 4. Deve-se dar ênfase a que um agregado, tal como usualmente de­

finido, é despido de qualquer atributo, exceto de ser uma classe. Por esta razão, é fácil pensar em muitas espécies familiares de agregados que não têm nenhuma relação com espaço ou Geometria. Um agregado tridimensional seria uma classe de elementos, cada um dos quais necessitando, exatamente, de três números para iden­tificá-lo — para distingui-lo de todos os outros elementos da clas­se. Pensemos em um cilindro contendo uma quantidade de três gases que foram completamente misturados de forma que o vo­lume de gás, ou qualquer porção dele, é apenas determinado por três números, x, y, %, cada um representando a percentagem dos três respectivos gases na mistura. Ou, num outro exemplo: um grupo de pessoas pode ser considerado como um agregado. Se verificarmos que são necessários e suficientes cinco números para mcüvidualizar cada um, ou seja, x mostra a idade; y, a con­ta bancária; z, o número do telefone; u, a altura; v, o peso, en­tão eles constituem um agregado qumtidimensional. Outros exem­plos de agregados podem ser descobertos: (a) — quadridimen­sional: partículas de ar, 3 dimensões para fixar-lhes a posição no espaço, 1 para indicar sua densidade; (b) — quadridimensional: todas as esferas concebíveis no espaço, 3 dimensões para fixar--Ihes a posição dos centros, 1 para indicar seus raios.

5. Nõbeling, "Die vierte Dimension und der krumme Raum", em Krise und Neuaufbau, Leipzig: Deuticke, 1933.

6. Eddington, Space, Time and Gravitation. 7. Lindsay e Margenau, Foundation of Physics. 8. Op. cit. 9. Young, Fundamental Concepts of Álgebra and Geometry, Nova

York: Macmülan, 1911.

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10. Morris Raphael Cohen, Reason and Nature. 11. Cohen e Nagel, Introduction to Logic and Scientific Method, Nova

York: Harcourt Brace, 1934.

12. O diagrama mostra, mais ou menos detalhadamente, o que se quer dizer. Uma perpendicular é traçada sobre a linha G da pseudo--esfera; devem ser traçadas duas paralelas à linha G, passando pelo ponto O. Marque-se a distância S em G, terminando em Q. A

FIG. 49

partir de Q eleve-se uma perpendicular a G. Se, então, com centro em O e raio S, traçamos um círculo, êle cortará QT em S x e S 2. Estes dois pontos, com o ponto O, determinam as duas paralelas B. G, Fx e P 2 . Todas as linhas que passarem por O, fazendo um ângulo menor que Q, não interceptarão G, embora não sejam paralelas a ela. Este diagrama é encontrado em Có­leras, Vom Punkt zur vierten Dimension, Viena: Zsolnay, 1935.

13. Estas Geometrias são indispensáveis para a Física do átomo e das estrelas, nas regiões do espaço que não fazem parte de nossa experiência imediata.

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V

P A S S A T E M P O S D O S T E M P O S P A S S A D O E P R E S E N T E

O trabalho consiste em qualquer coisa que um corpo é obrigado a jazer, e a brincadeira consiste em qualquer coisa que um corpo não é obrigado a fazer.

MARK TWAIN

J Á S E D I S S E que "Não é divertindo-se que uma pessoa apren­de" 1 e, em resposta, " É apenas divertindo-se que uma pes­soa pode aprender". Esteja onde estiver a verdade, talvez entre estes extremos, é inegável que as recreações matemáti­cas são um desafio à imaginação e um poderoso estímulo à atividade matemática. A teoria das equações, da probabili­dade, o cálculo infinitesimal, a teoria dos conjuntos de pon­tos, da topologia — todos são frutos produzidos por semen­tes plantadas no solo fértil da imaginação criadora — todos surgiram de problemas apresentados, inicialmente, sob a forma de charada.

Quebra-cabeças e paradoxos têm sido populares desde a antiguidade, e, distraindo-se com esses passatempos, os ho­mens aguçaram suas inteligências e estimularam sua enge-nhosidade. Mas não foi só para se distrair que Kepler, Pas­cal, Fermat, Leibnitz, Euler, Lagrange, Hamilton, Cayley e muitos outros dedicaram tanto tempo aos quebra-cabeças. As pesquisas em Matemática recreativa surgiram do mesmo de­sejo de saber, foram guiadas pelos mesmos princípios e exi­giram o empenho das mesmas faculdades que as pesquisas

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que produziram as descobertas mais profundas em Matemáti­ca e na Física Matemática. Além disso, nenhum ramo de atividade intelectual é mais apropriado para discussão que os quebra-cabeças e os paradoxos.

• O campo é enorme. Os quebra-cabeças já eram feitos

desde o tempo dos egípcios e talvez antes. Dos pronuncia­mentos enigmáticos do oráculo de Delfos, por toda a época de Carlos Magno, até a idade de ouro das palavras cruza­das, os paradoxos e os quebra-cabeças, tal como criaturas terrenas, assumiram todas as formas e se multiplicaram. Po­demos apenas examinar algumas espécies dominantes, as que sobreviveram, em uma modalidade ou outra, e continuam a prosperar em forma aerodinâmica.

A maioria dos quebra-cabeças famosos inventados antes do século XVII podem ser encontrados no primeiro grande livro especializado, Les problèmes plaisants et délectables, qui si font par les nombres, de Claude-Gaspard Bachet, Sieur de Meziriac. Embora tenha aparecido em 1612, dois anos antes do trabalho de Napier sobre os logaritmos, ainda é um livro delicioso e uma fonte inesgotável de informações. Mui­tas coleções têm aparecido desde então, 2 e o próprio vo­lume de Bachet já foi aumentado para quase cinco vezes o seu tamanho original.

Tudo o que esperamos fazer é seguir o ilustre exemplo de Mark Twain em situação semelhante. Êle tentou redu­zir todas as anedotas a uma dúzia de formas primitivas e elementares (sogra, filha do fazendeiro, etc). Procurare­mos apresentar alguns dos quebra-cabeças típicos, que ilus­tram as idéias básicas de onde evoluíram. Restringir-nos--emos a adivinhações e problemas, reservando outro capítulo para alguns dos mais célebres paradoxos da Lógica e da Ma­temática. Embora não seja sempre fácil distinguir um que­bra-cabeça de um paradoxo, para nossos fins é suficiente con­siderar o primeiro como um jogo ou um problema engenho­so, e um paradoxo, como uma demonstração ou declaração aparentemente ardilosa e autocontraditória.

*

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Os quebra-cabeças parecem difíceis, muitas vezes, por­que não são fáceis de interpretar em termos precisos. Ao tentar a solução de um problema, o método das tentativas e erros é não só mais natural, mas geralmente mais fácil que o ataque matemático. É sabido, em geral, que muitas vezes, as equações algébricas mais formidáveis são mais sim­ples de resolver que problemas formulados em palavras. Es­tes têm de ser traduzidos em símbolos, e os símbolos colo­cados em equações apropriadas para que o problema possa ser resolvido.

Quando Flaubert era muito jovem, escreveu à irmã, Ca-rolyn, dizendo: "Agora que você está estudando Geometria e Trigonometria, vou dar-lhe um problema. Um navio está atravessando o oceano. Deixou Boston com uma carga de lã. Pesa 200 toneladas. Destina-se a Le Havre. O mastro principal está quebrado, o camaroteiro está no tombadilho, há 12 passageiros a bordo, o vento sopra de lés-nordeste, o relógio indica três horas e um quarto da tarde. Estamos no mês de maio. Que idade tem o capitão?" Flaubert não estava apenas implicando; estava expressando uma queixa, compartilhada pelo enorme e respeitável grupo de "errados para quebra-cabeças", de que o quebra-cabeça normal não só confunde como oprime com palavras supérfluas. 3 Por esta razão, os problemas a seguir foram despidos de todos os elementos não-essenciais para mostrar sua infra-estrutura ma­temática. E entendemos por "estrutura matemática" não obri­gatoriamente algo expresso em números, ângulos ou hnhas, mas a relação interna essencial entre os elementos componen­tes do problema. Porque, no fundo, isso é tudo o que a aná­lise matemática pode revelar, tudo o que a Matemática sig­nifica, em si mesma.

• Entre os problemas mais antigos estão os que se refe­

rem a transportar pessoas e seus pertences através de um rio em condições de algum modo penosas. Alcuin, o amigo de Carlos Magno, sugeriu um problema que, desde então, tem sido reformulado e complicado de muitas maneiras. Um viajante chega à margem de um rio com tudo o que tem:

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158 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

um lobo, um bode e um pé de couve. O único bote dispo­nível é muito pequeno e só pode carregar o viajante e um dos seus pertences. Infelizmente, se deixados juntos, o bode comerá a couve e o lobo jantará o bode. Como poderá o viajante transpor o rio levando o que tem, sem perder seus animais e o vegetal?4 A solução pode ser achada com o auxílio de uma caixa de fósforos, representando o bote, e quatro pedaços de papel, seus ocupantes.

Uma versão mais esmerada deste problema foi sugerida no século XVI por Tartaglia. Três lindas mulheres chega­ram ao rio, acompanhadas por seus ciumentos maridos. O pequeno barco que os tem de transportar só comporta duas pessoas. Para evitar qualquer situação comprometedora, as viagens têm de ser feitas de tal forma que nenhuma mulher fique com um homem sem que seu marido esteja presente. Onze travessias serão necessárias. Apenas cinco são sufi­cientes para dois casais, mas, com quatro ou mais casais, nas condições estabelecidas, a travessia é impossível.

Problemas semelhantes são feitos com manobras ferro­viárias. Na Fig. 50, há uma locomotiva, L, e dois carros de carga, W x e W 2 . A parte comum dos trilhos dos dois des-

FIG. 50

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vios em que estão W i e W 2 , DA, é bastante comprida para conter W i ou W 2 , mas não ambos, nem a locomotiva L. As­sim, um carro em D A pode ser manobrado para qualquer desvio. A tarefa do maquinista é inverter as posições de Wi e W 2 . Como poderá fazer? Embora este problema não apresente dificuldades especiais, o mesmo tema, em forma mais complexa, pode exigir do maquinista talentos matemá­ticos de alto grau.

A família de Simeon Poisson tentou fazer dele tudo, de cirurgião a advogado, sendo esta última escolha na base de que não servia para coisa melhor. Uma ou duas destas pro­fissões êle tentou, com inaptidão singular, mas, afinal, encon­trou sua vocação. Em uma viagem, alguém apresentou-lhe um problema semelhante ao que se segue. Resolvendo-o imediatamente, êle constatou qual a sua mclinação e, daí em diante, dedicou-se à Matemática, tornando-se um dos maiores matemáticos do século XIX. 5

Dois amigos, que tinham um jarro com oito medidas de vinho, desejavam dividir, igualmente, a bebida. Tinham também dois outros jarros vazios, cabendo, em cada um deles, cinco medidas e, no outro, três. O diagrama mostra como fizeram para dividir o vinho em duas porções de qua­tro medidas cada uma. 6

Isto nos faz lembrar outro "problema de derramar", não tão tipicamente germano, mas um bom exercício de rigor ló­gico e refrigerante.

O QUEBRA-CABEÇA INTERNACIONAL DA CERVEJA

Em certa cidade da fronteira do México com os Estados Uni­dos, ocorre uma situação cambial particular. No México, o dólar americano vale somente noventa centavos da moeda de lá, enquanto, nos Estados Unidos, o valor do dólar mexicano é de apenas noventa centavos americanos. Um dia, um vaqueiro entra em um bar mexicano e pede dez centavos de cerveja. Paga com um dólar mexicano, recebendo de troco um dólar ame-

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160 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO ricano, que valia exatamente noventa centavos, lá. Depois de beber, o vaqueiro cruza a fronteira e, em outro bar, pede outra cerveja de dez centavos. Êle paga com o dólar americano, rece­bendo um mexicano como troco. Êle o leva de volta para o

FIG. 51 — Solução para o problema dos três jarros.

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outro lado da fronteira e fica repetindo o processo, bebendo cer­veja, alegremente, o dia inteiro e acabando tão rico como no princípio, com um dólar.

Pergunta-se: Quem pagou a cerveja? Moral: Visite o México ensolarado em suas férias.

A natureza ilusória de tantos truques aritméticos repou­sa, como mostramos, em sua estrutura, não em seu conteú­do. Com um filtro, que isole as idéias essenciais de dúzias de outras inúteis, qualquer pessoa se transformará num má­gico. Um pequeno e tolo enigma, muitas vezes repetido en­tre matemáticos, nos vem à lembrança. "Como se podem ca­çar leões em um deserto?" é a pergunta. Já que bá tanta areia e tão poucos leões, pegue, simplesmente, um filtro, dei­xe passar a areia, e eis os leões! Um filtro assim ou, então, talvez um bisturi, é necessário para atingir os radimentos. Quando toda a verborragia foi retirada, o esqueleto do que­bra-cabeça sucumbe à simples Aritmética ou à Álgebra. Os truques de salão, como adivinhar números escolhidos por ou­tros, ou cartas que alguém selecionou, parecem admirável ca­pacidade de "percepção extra-sensorial". Mas, depois que aprendemos a separar os leões da areia, fica comparativamen­te simples enjaulá-los.

Truques de cartas são normalmente quebra-cabeças arit­méticos disfarçados. Geralmente são suscetíveis à análise ma­temática e não são, como se pensa em geral, realizados pela perícia manual. Um princípio importante, facilmente esque­cido, é que "o partir um baralho de cartas nunca altera as posições relativas das cartas, desde que, se necessário, con­sideremos a carta de cima como seguindo imediatamente a de baixo do baralho". 7 Desde que se compreenda isto, mui­tos truques deixam de nos iludir.

Sete jogadores de pôquer começaram a jogar com um baralho novo. De acordo com a tradição, o baralho foi cortado, sem embaralhar, na primeira partida. Quem dava as cartas, pretendendo roubar, tirava as segunda e quarta cartas de baixo do baralho. Isto foi notado por todos, tal como êle pretendia. Contudo, quando os outros jogadores u

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pegaram as suas cartas, relutaram em pedir que as cartas fossem dadas de novo, por verificarem, todos, que tinham um full hand. Mas, ainda com medo que o que tinha dado as cartas tivesse um jogo melhor, insistiram em que êle substi­tuísse suas cartas pelas cinco primeiras do baralho. Fingin­do indignação, êle aquiesceu — e ganhou com um straight flush. Tente fazê-lo. Em noventa e nove por cento dos casos você conseguirá tapear os amigos — mas, assim, você não pode tapear um homem honesto.

Freqüentemente, os truques aritméticos de adivinhar um número escolhido por outra pessoa dependem do "sistema de notação". Quando um número é expresso no sistema decimal, tal como 3.976, o que êle realmente significa é

(3 X 103) + (9 X 102) _|_ (7 x lOi) + (6 X 10°) .

A tabela 8 abaixo mostra outros números escritos na ba­se 10.

E X E M P L O 10» 101 I O 2 10» 10«

469 = 9 X 10° + 6 X 10» + 4 X 10*

469 - 9 + 60 + 400

7901 = 1 X 10" 4- 0 X 101 + 9 X 10* + 7 X 101

7901 1 + 0 + 900 + 7000

30,000 = 0 X 10» + 0 X Í0i 0 X 10» + 0 X 10* -h 3 X10<

30,000 = 0 + 0 + 0 + 0 + 30.000

21148 - 8 X 10° + 4 X 101 + 1 X 10a + 1 X 10» + 2X10«

21148 = 8 + 40 + 100 + 1000 •+ 20 000

Dentre a enorme variedade de problemas baseados no uso do sistema decimal, eis alguns interessantes:

Um processo útil para verificar a multiplicação é chama­do de "prova dos nove".

Consideremos 1.234 X 5.678 = 7.006.652. Somemos os algarismos do multiplicador, do multiplicando e do produto, obtendo, respectivamente, 10, 26 e 26. Como cada um dê-

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les é maior que 9, somemos mais uma vez os algarismos das somas iniciais, * obtendo 1, 8 e 8. (Se, após a primeira re­petição, ainda obtivermos somas maiores que 9, somaremos os algarismos mais uma vez.) Tomemos, então, o produto dos inteiros correspondentes ao multiplicador e ao multipli­cando, isto é, 1 X 8, e comparemos com o inteiro corres­pondente à soma dos algarismos do produto, que também é 8. Já que são iguais, o resultado da multiplicação original está correto.

Usando a mesma regra, verifiquemos se o produto de 31.256 por 8.427 é 263.395.312. As somas dos algarismos do multiplicando, multiplicador e produto são, respectivamente, 17, 21 e 34; repetindo, a soma destes algarismos é 8, 3 e 7. O produto dos dois primeiros é 24 e a soma destes algaris­mos é 6. Mas a soma dos algarismos do produto é 7. En­tão, temos dois restos diferentes, 6 e 7, o que indica que a multiplicação não está certa.

Intimamente ligado à regra da "prova dos nove" está o truque seguinte, que revela uma propriedade notável, co­mum a todos os números.

Escolhamos qualquer número e rearranjemos seus alga­rismos em qualquer ordem que nos agrade para formar ou­tro número. A diferença entre os dois números é sempre divisível por 9 . 9

Outro tipo de problema dependente do sistema decimal de notação é encontrar números que são iguais ao produto de seus inversos por números inteiros. Entre tais números, com 4 algarismos, estão 8.712, igual a 4 vezes 2.178, e 9.801, igual a 9 vezes 1.089.

A notação binária ou diádica (usando base 2) não é con­ceito nada novo, tendo sido encontrada em um livro chinês, supostamente escrito cerca de 3.000 anos antes de Cristo. Quarenta e seis séculos depois, Leibnitz reencontrou as ma­ravilhas do sistema binário e encantou-se com êle, como se

* Assim: 10 = 1 + 0 = 1 26 = 2 + 6 = 8, etc.

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fosse uma nova invenção — algo parecido com o habitante de uma cidade do século XX que, ao ver um relógio de sol, e receber uma explicação sobre êle, observou apavorado: "O que ainda irão inventar?" No uso de apenas dois símbolos, Leibnitz viu no sistema binário algo de grande significação mística e religiosa: Deus poderia ser representado pela uni­dade, e o vazio por zero e, uma vez que Deus criou todas as formas do nada, a combinação do zero com o um podia ser feita por significar o universo inteiro. Ansioso por fazer os pagãos conhecerem tal jóia da sabedoria, Leibnitz comuni­cou-a ao Jesuíta Grimaldi, presidente do Tribunal de Mate­mática da China, na esperança de que êle pudesse, assim, mostrar ao imperador chinês o erro de se apegar ao budismo, em vez de adotar um Deus que podia criar do nada um universo.

Enquanto o sistema decimal requer dez símbolos: 0, 1, 2, 3, 4, . . . , 9, o binário usa apenas dois: 0 e 1. Abaixo estão os primeiros 32 inteiros, no sistema binário.

DECIMAL BINÁRIO DECIMAL BINÁRIO

1 = 1 17 10001 2 = 10 18 = 10010 3 = 11 19 10011 4 = 22 = 100 20 = 10100 5 = 101 21 = 10101 6 = 110 22 = 10110 7 = 111 23 = 10111 8 — 23 = 1000 24 11000 9 = 1001 25 11001

10 = 1010 26 = 11010 11 = 1011 27 = 11011 12 1100 28 == 11100 13 — 1101 29 = 11101 14 = 1110 30 = 11110 15 1111 31 = 11111 16 24 = 10000 32 = 25 = 100000

Como 2o = 1, podemos facilmente perceber que qual­quer número pode ser expresso como a soma de potências de 2, tal como qualquer número do sistema decimal pode ser expresso como a soma de potências de 10. Por exemplo, o

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PASSATEMPOS DOS TEMPOS PASSADO E PRESENTE 165

número expresso no sistema decimal como 25, o é, no siste­ma binário, usando somente os dois símbolos 1 e 0, por 11001.

Como os números podem ser mais rapidamente escritos no sistema decimal que no binário, aquele é mais convenien­te, embora, sob todos os outros pontos de vista, o último seja tão preciso e eficiente quanto êle. Até as frações existem na notação binária. A fração V3> por exemplo, representada por um decimal indeterminado, 0,33333..., também o é por um binário indeterminado na notação binária, 0,01010101 . . . 1 0

O sistema binário torna facilmente compreensíveis as soluções de problemas como estes:

I. Em muitos lugares da Rússia, os camponeses em­pregaram, até há pouco tempo, o que parece ser um estra­nho método de multiplicação. Em essência, estava ainda em uso na Alemanha, França e Inglaterra e é semelhante ao mé­todo usado pelos egípcios 2.000 anos antes da era cristã.

Pode ser ilustrado por um exemplo: Para multiplicar 45 por 64, formamos duas colunas. Na parte superior da pri­meira, colocamos 45 e, na da outra, 64. Multiplicamos, su­cessivamente, uma coluna por 2 e dividimos a outra pelo mesmo número. Quando um número ímpar fôr dividido por 2, abandonamos a fração restante. O resultado será:

Divrom MULTIPLICAR

45 64 22 128

(A) 11 256 5 512 2 1024 1 2048

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Tiremos da segunda coluna, os números opostos aos nú­meros ímpares da primeira. Somando-os obteremos o produ­to desejado:

45 64 , 64 = 20 X 64 22 128 = 2i X 64 11 256 256 = 22 X 64 5 512 , , 512 = 23 X 64 2 1024 = 24 X 64 1 2048 ,, 2048 = 25 X 64

2880 45 X 64

A relação entre este método e o sistema binário pode ser observada, escrevendo 45 na notação binária.

45 — (1 X 2») + (0 X 2*) + (1 X 23) + (1 X 2») + (0 X 2i) X (1 X 20)

= 101101 = 32 + 0 + 8 + 4 + 0 + 1

E daí 45 X 64 = (2 5 + 2 3 + 2 2 + 2 ° ) X 64

— (25 X 64) + (23 x 64) + (22 x 64) + (2° X 64).

Já que 2 4 e 2 1 não aparecem na expressão binária para 45, os produtos (2 4 X 64) e (2 1 X 64) não estão incluídos nos números a serem somados em (B). Então, o que o campo­nês faz, ao multiplicar 45 por 64, é multiplicar sucessiva­mente 2 5, 2 3, 2 2, 2 o por 64 e depois somar.

II. Outro problema bastante conhecido, já mencionado por Cardan, consiste em retirar um certo número de argolas de uma barra. O quebra-cabeça pode ser mais bem anali-

FiG. 52 — 0 quebra-cabeça chinês das argolas.

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sado com o uso do sistema binário, embora a manipulação efetiva das argolas seja sempre extremamente difícil.

As argolas na barra estão ligadas de tal forma que, em­bora a da extremidade possa ser removida sem dificuldade, qualquer outra delas só pode ser colocada ou retirada quan­do a seguinte, em direção à extremidade (A na figura), es­tiver na barra e todas as outras estiverem fora. Assim, para remover a quinta argola, a primeira, segunda, terceira de­vem estar fora da barra e a quarta, nela. Se a posição de to­das as argolas, na ou fora da barra, fôr escrita na notação binária, 1 designando uma argola que está fora e 0 uma que está na barra, a determinação matemática do número de movimentos necessários para remover um determinado nú­mero de argolas não é muito difícil. A solução, sem o au­xílio da notação binária, à proporção que aumenta o número de argolas, estaria completamente além da capacidade ima­ginativa de qualquer um.

III. O problema da Torre de Hanói é, em princípio, semelhante. O jogo consiste em uma tábua com três cavilhas, como mostra a Fig. 53.

Em uma das cavilhas há um número de discos de vá­rios tamanhos, arrumados de tal forma que o maior fique em baixo e os outros, uns sobre os outros, em ordem decrescen­te de tamanho, até que o menor esteja em cima. O pro­blema é transferir todo o conjunto de discos para uma das outras cavilhas, movendo apenas um disco de cada vez, não

FIG. 53

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sendo permitido que nenhum disco fique sobre outro me­nor que êle mesmo. Se a mudança de um disco, de uma cavilha para outra constitui uma transferência, a tabela se­guinte mostra o número de transferências necessárias para vários números, até n discos:

TABELA DE TRANSFEBENCIÀS H

DISCOS TRANSFERENCIAS

1 1 2 3 3 7 4 15 5 31 6 63 7 127

n 2 » - l

Há uma história encantadora a respeito deste brinquedo: 1 2

No grande templo de Benares, sob a cúpula que marca o centro do mundo, há uma placa de latão, na qual estão fixadas três agulhas de diamante, com um cúbito de altura e da espes­sura do corpo de uma abelha. Em uma destas agulhas, ao criar o mundo, Deus colocou sessenta e quatro discos de ouro puro, ficando o maior sobre a placa e os demais por tamanho decres­cente até o topo. Isso é a Torre de Brama. Dia e noite, sem cessar, os sacerdotes mudam os discos de uma agulha para outra, de acordo com as imutáveis leis determinadas por Brama, que exigem que cada sacerdote de serviço não mova mais de um disco de cada vez e que o disco deva ser colocado em uma agulha de tal forma que nenhum disco fique sobre outro menor. Quando os sessenta e quatro discos tiverem sido transferidos da agulha em que Deus, ao criar o mundo, os colocou, para outra agulha, a torre, o templo, e os brâmanes com eles, trans-formar-se-ão em pó e, com um trovão, o mundo desaparecerá.

O número de transferências necessárias para se realizar a profecia é 26* — 1, isto é, 18.446.744.073.709.551.615. Se os sacerdotes realizarem uma transferência cada segundo e trabalharem 24 horas em cada um dos 365 dias do ano, 1 3

serão necessários 58.454.204.609 séculos e mais cerca de 6 anos, para realizar o trabalho, presumindo-se que não co-

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metam nenhum erro — porque um pequeno engano estra­garia todo o seu trabalho.

IV. Outro jogo pode ser mencionado em ligação com o sistema binário Nim. Neste jogo, duas pessoas jogam, al­ternadamente, com uma certa quantidade de fichas coloca-

FiG. 54 — 0 diagrama mostra como forçar a vitória no jogo de Nim. Suponhamos que cada jogador, em sua vez, tenha de tirar, no mínimo, um fósforo e pode apanhar, no máximo, cinco. A regra diz que o jogador que ficar com o último fósforo perderá. Imaginemos então, por exemplo, que o monte inicial seja de 21 fósforos. Neste caso, o que jogar primeiro pode forçar a vitória, dividindo, mentalmente, os fósforos em grupos de 1, 6, 6, 6 e 2 (como em B). Como êle joga primeiro, apanha 2 fósforos. Daí em diante, seja qual fôr o número de fósforos que o outro apanhar, êle tirará o complemento para 6. Isso é mostrado em A: se o segundo jogador apanha 1, o primeiro tira 5; se o segundo apanha 2, o primeiro, 4; e assim por diante. Cada um dos três grupos de 6 acaba deste „modo, e o segundo jogador

fica com o último fósforo. Se houvesse 47 fósforos, por exemplo, o agrupamento teria sido: 1, 6, 6, 6, 6, 6, 6, 6 e 4. As regras para qualquer outra variação de Nim podem

ser facilmente formuladas.

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das em vários montes. Em sua vez, o jogador apanha um dos montes, ou quantas fichas quiser em um deles. O que apanhar a última ficha perde. Se o número de fichas em cada monte for expresso no sistema binário, o jogo poderá ser, rapidamente, analisado matematicamente. O jogador que conduza a um certo número de fichas em cada monte poderá ser o vencedor.1 4

É interessante observar que o número 2 6 4 — *?\ 18.446.744.073.709.551.616 — representado no sistema biná­rio por um número com 64 algarismos — aparece na solução de um quebra-cabeça ligado à origem do jogo de xadrez.

De acordo com uma velha lenda, prometeram ao Grão--Vizir Sissa Ben Dahir um presente por ter inventado o xa­drez para o Rei da Índia, Shirhâm. Como este jogo usa um tabuleiro de 64 quadrados, Sissa disse ao rei: "Majestade, dê-me um grão de trigo para colocar no primeiro quadrado; dois, para o segundo; quatro, para o terceiro; oito, para o quarto e, assim, ó Rei, deixe-me cobrir cada um dos qua­drados do tabuleiro". " E é só isso que queres, Sissa, 'seu bobo?", exclamou o Rei, admirado, " ó Rei", respondeu Sissa, "pedi mais trigo do que tendes em vosso reino inteiro; ou melhor, mais trigo do que existe em todo o mundo; ou ainda melhor, o bastante para cobrir toda a superfície da Terra a uma altura da vigésima parte de um cúbito" . 1 5 Ora, o número de grãos de trigo que Sissa pediu é 2 6 4 — 1, exata­mente o mesmo número de transferências necessárias para se realizar a profecia de Benares relatada anteriormente.

Outro modo notável de fazer aparecer 2 6 4 é o cômputo do número de ancestrais de qualquer pessoa, desde o início da era cristã — cerca de 64 gerações atrás. Neste espaço de tempo, considerando que cada pessoa tem 2 pais, 4 avós, 8 bisavós, etc, e não admitindo combinações incestuosas, cada um tem, no mínimo, 2 6 4 ancestrais, ou um pouco menos que dezoito e meio quintilhões de parentes, só em hnha reta. Um pensamento bastante deprimente.

• O problema de Josephus é um dos mais famosos e, se­

guramente, um dos mais antigos. Êle geralmente toma a for-

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ma de uma história de um certo número de pessoas a bordo de um navio, algumas das quais devem ser sacrificadas para evitar que o navio afunde. Dependendo da época em que a versão do quebra-cabeça foi escrita, os passageiros eram cristãos e judeus, cristãos e turcos, sábios e vagabundos, ne­gros e brancos, etc. Alguma alma mais esperta, com certo conhecimento de Matemática, sempre arranja um jeito de preservar o grupo favorito. Tendo arrumado todos em círculo, e começando a contar a partir de um ponto, cada enésima pes­soa deveria ser lançada ao mar — sendo n um inteiro especi­ficado. A arrumação do círculo pelo matemático era tal que os cristãos, os sábios ou os brancos — em outras pala­vras, o grupo presumido superior — eram salvos, enquanto os restantes eram jogados ao mar de acordo com o Preceito Áureo.

FIG. 55. C = Cristão T = Turco

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Originalmente, a história se referia a Josephus, que se encontrou em uma caverna com outros 40 judeus, destinados à auto-extinção para se livrarem de destino pior às mãos dos romanos. Josephus resolveu salvar o pescoço. Êle co­locou todos em círculo e os fez concordar que cada terceira pessoa, contando-se continuamente, volta após volta, deveria morrer. Pondo-se no 16.° lugar e a outra alma previdente em 31.°, no círculo de 41, êle e seu companheiro, sendo os últimos a ficar, conseguiram, convenientemente, evitar a es­trada do martírio.

Uma versão posterior deste problema coloca 15 turcos e 15 cristãos a bordo de um navio destroçado por uma tem­pestade e que certamente afundará, a não ser que a metade dos passageiros abandone o navio. Depois de arrumarem to­dos em círculo, os cristãos, ad majorem Dei gloriam, propu­seram que cada nona pessoa fosse sacrificada.

Assim, cada infiel foi devidamente eliminado, todos os verdadeiros cristãos, foram salvos. 1 6

Entre os japoneses, o problema de Josephus assume ou­tra forma: trinta filhos, 15 do primeiro matrimônio e 15 do segundo, concordam que a herança do pai deles é muito pe­quena para ser dividida entre todos. Por isso, a segunda es­posa propõe que todos os filhos se disponham em um círculo, para determinar, por eliminação, qual o herdeiro do marido. Sendo uma prudente matemática, tanto quanto uma madras­ta proverbialmente má, ela arruma os filhos de tal forma que um dos seus seja certamente o escolhido. Depois que 14 dos filhos do primeiro matrimônio foram eliminados, o único restante, sendo, evidentemente, um matemático mais brilhante que a madrasta, propõe que a contagem recome­ce, mas, agora, na direção contrária. Convencida de sua vantagem e, por isso, disposta a ser generosa, ela consente, mas verifica, para seu desalento, que todos os seus 15 filhos foram ehminados, tornando-se herdeiro aquele que sobrou do primeiro matrimônio. 1 7

Soluções mais complicadas para versões mais difíceis e generalizadas do problema de Josephus foram dadas por Eu­ler, Schubert e Tait.

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FIG. 56 — 0 problema de Josephus, do livro de Miyalce Kenryu: Shojutsu. (De Smith e Mikami, A History of Japanese Mathematics.)

Nenhuma discussão sobre quebra-cabeças, por mais bre­ve que seja, pode deixar de mencionar o mais conhecido dos muitos inventados por Sam Lloyd. "O jogo dos 15", "o que­bra-cabeças do patrão", "le Jeu de Taquin" são alguns dos nomes que recebeu. Durante muitos anos depois de seu apa­recimento em 1878, este quebra-cabeça gozou de uma popu­laridade, especialmente por toda a Europa, maior do que a do bridge, atualmente. Na Alemanha, era jogado nas ruas, nas fábricas, nos palácios reais e no Reichstag. Os patrões eram obrigados a colocar avisos proibindo seus empregados de usar o "jogo dos 15" durante as horas de trabalho, sob pena de demissão. Os eleitores, não tendo esse privilégio, ti­nham de ficar vendo seus representantes, devidamente elei­tos, distraírem-se com o "jogo do patrão" no Reichstag, en­quanto Bismarck brincava de Patrão. Na França, o "Jeu de

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Taquin" era jogado nos "boulevards" de Paris e em todas as aldeolas, dos Pireneus à Normandia. O "Jeu de Taquin" era um flagelo da humanidade, de acordo com um jornalista fran­cês contemporâneo, — pior que o fumo e o álcool — "res­ponsável por inúmeras dores de cabeça, nevralgias e neu­roses".

Por algum tempo, a Europa ficou maluca com "o jogo dos 15". Arranjavam-se torneios, e altos prêmios eram ofe­recidos pela solução de problemas aparentemente simples. Mas o mais estranho é que ninguém jamais ganhou qual­quer destes prêmios, e os problemas aparentemente simples permaneceram sem solução.

O "jogo dos 15" (figura abaixo) consiste numa caixa quadrada e fina, de madeira ou metal, que contém 15 pe-

FIG. 5 7 — 0 Jogo dos 15 (também Quebra-Cabeça do Patrão ou Jeu de Taquin) em posição normal.

quenos blocos quadrados numerados de 1 a 15. Há, na rea­lidade, espaço para 16 blocos na caixa, de modo que os 15 podem ser movidos e trocar de lugar. O número de posi­ções concebíveis é 16! = 20.922.789.888.000. Um problema consiste em arrumar os blocos de uma determinada manei­ra, partindo de uma posição inicial dada, que é, freqüente­mente, a posição normal ilustrada na Fig. 57.

Pouco depois da invenção do quebra-cabeça, dois mate­máticos americanos18 provaram que, de qualquer posição ini­cial dada, apenas metade de todas as posições concebíveis

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pode ser realmente conseguida. Portanto, há sempre aproxi­madamente dez trilhões de posições que o possuidor de um "jogo dos 15" pode atingir e dez trilhões que êle não pode.

Pelo fato de haver posições impossíveis, podemos facil­mente compreender por que prêmios tão generosos foram ofe­recidos por Lloyd e outros, já que os problemas pelos quais tais prêmios eram estabelecidos sempre correspondiam a po­sições impossíveis. E é penoso pensar nas dores de cabeças, nevralgias e neuroses que poderiam ter sido evitadas — para nada dizer a respeito dos benefícios para o Reichstag — se The American Journal of Mathematics tivesse circulado tão amplamente como o próprio jogo. Mesmo com apenas dez trilhões de soluções possíveis, ainda haveria bastante diver­são para cada um.

Na posição normal (Fig. 57), o espaço vazio fica no canto direito inferior. Ao fazer uma análise matemática do quebra-cabeça, é conveniente considerar que a rearrumação dos blocos consiste em nada mais que mover o espaço vazio em um caminho específico, certificando-se, sempre, de que termine seu trajeto no canto direito inferior da caixa. Pa­ra isto, deverá mover-se para o mesmo número de espaços para a esquerda quanto para a direita e tantos para cima como para baixo. Em outras palavras, o espaço vazio deve mover-se em um número par de espaços. Se, partindo da posição normal, pode-se conseguir a posição desejada de acordo com aquele requisito, é uma posição possível; de outro modo, é impossível.

Baseado neste princípio, o método de determinar se uma posição é possível ou não é muito simples. Na posição nor­mal, cada bloco numerado aparece em sua própria ordem numérica, isto é, em relação aos espaços, hnha por hnha, da esquerda para a direita, nenhum número precede qualquer outro menor que êle mesmo. Para se chegar a uma posição diferente da normal, a ordem numérica dos blocos deve ser mudada. Alguns números, talvez todos, precederão outros menores que eles mesmos. Toda situação em que um nú­mero preceder outro menor que êle é chamada de inversão.

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Por exemplo, se o número 6 precede os números 2, 4 e 5, há uma inversão a que damos o valor 3, porque 6 está antes de três números menores que êle. Se a soma dos valores de todas as inversões em uma certa posição é par, a posição é possível — isto é, pode ser obtida, partindo-se da posição normal. Se a soma dos valores das inversões é ímpar, a po­sição é impossível e não pode ser atingida partindo-se da con­figuração normal.

A posição indicada na Fig. 58 pode ser conseguida, par­tindo-se da posição normal, já que a soma dos valores das inversões é seis — um número par.

FIG. 58

Mas a posição mostrada na Fig. 59 é impossível, porque, como se pode ver com facuidade, a soma dos valores das in­versões realizadas é ímpar:

FIG. 59

As figuras 60 (a, b, c) mostram três outras posições. Serão possíveis ou impossíveis de obter, partindo-se da or­dem normal?

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PASSATEMPOS DOS TEMPOS PASSADO È PRESENTE Í7Í

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15

FIG. 60 (a, b, c).

O PROBLEMA DA ARANHA E DA MOSCA

Quase todos nós aprendemos que a linha reta é a me­nor distância entre dois pontos. Se se supõe que esta afir­mação vai ser aplicada na Terra em que vivemos, torna-se falsa e inútil. Como vimos em capítulo anterior, os mate­máticos do século XIX Riemann e Lobachevsky sabiam que a afirmação, se é verdadeira, só se aplica a superfícies espe­ciais. Não o é a uma superfície esférica, na qual a menor distância entre dois pontos é o arco do grande círculo. Como a forma da Terra se aproxima de uma esfera, a me­nor distância entre dois pontos, em qualquer lugar da super­fície da Terra, nunca é uma linha reta, mas uma parte do arco do grande círculo. (Ver página 146.)

Contudo, para todos os fins práticos, mesmo na super­fície da Terra, a menor distância entre dois pontos é dada pela linha reta. Isto é, para medir distâncias comuns com uma trena ou um metro, o princípio está substancialmente certo. Mas, para distâncias mesmo além de algumas cente­nas de pés, deve-se levar em consideração a curvatura da Terra. Quando foi recentemente fabricada uma vara de aço de mais de 600 pés de comprimento, numa grande fá­brica de automóveis de Detroit, verificou-se que a medição exata de seu comprimento era impossível sem se observar a curvatura da Terra. Já mencionamos que a determinação de uma geodésica é muito difícil em superfícies complexas. Mas podemos apresentar um quebra-cabeça para mostrar co­mo este problema é decepcionante, mesmo no caso mais sim­ples — a superfície plana.

12

11 7 4 8 13 1 2 5 10 3 9 15 12 14 6

2 4 6 8 10 11 12 13 3 5 7 9 15 1 14

? o

? o

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178 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Numa sala de 30 pés de comprimento, 12 de largura e 12 de altura, há uma aranha no centro de uma das paredes menores, a 1 pé do teto; e existe uma mosca na parede opos­ta, a 1 pé do chão. A aranha tem certas intenções com re­lação à mosca. Qual é o menor caminho possível, pelo qual deve ir a aranha para atingir sua presa? Se se deslo-

FiG. 61 — A aranha, ao ver seu delicado convite recusado pela mosca, prepara-se para ir jantar, pelo menor caminho.

Qual itinerário é a geodésica da faminta aranha?

car diretamente para baixo, pela parede, depois, em Hnha reta, pelo chão e, em seguida, subir diretamente pela outra parede, ou seguir um caminho semelhante pelo teto, a dis­tância será de 42 pés. Certamente é impossível imaginar iti­nerário menor! Mas, se cortarmos uma folha de papel que, dobrada apropriadamente, faça um modelo da sala (Fig. 61), e unirmos os pontos que representam a aranha e a mosca

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P A S S A T E M P O S D O S T E M P O S P A S S A D O E P R E S E N T E 179

por uma Unha reta, obteremos uma geodésica. O compri­mento dela é de apenas 40 pés, ou seja, 2 pés menos do que o caminho "óbvio", seguindo linhas retas.

Há várias maneiras de se cortar a folha de papel e, cor­respondentemente, há diversos caminhos possíveis, mas o de 40 pés é o menor; e bastante interessante, como se pode ver no corte £>, na Fig. 61, é que este caminho faz que a ara­nha passe por 5 das 6 faces da sala.

Este problema nos revela, graficamente, o que vimos, en­faticamente, dizendo até agora — nossas noções intuitivas so­bre espaço nos conduzem a erro quase invariavelmente.

P A R E N T E S C O S

Ernest L e g o u v é , 1 9 o bem conhecido dramaturgo fran­cês, conta em suas memórias que, quando estava nas ter­mas de Plombières, apresentou o seguinte problema aos seus companheiros de banhos: "É possível que dois homens, sem nenhum parentesco entre si, tenham a mesma irmã?" "Não, é impossível", respondeu um notário, imediatamente. Um advogado, que não era tão afoito em dar sua resposta, deci­diu, depois de alguma reflexão, que o notário estava certo. A partir daí, todos os outros concordaram, rapidamente, que era impossível. "Mas, mesmo assim, é possível", observou Legouvé, "e vou dizer-lhes os nomes destes dois homens. Um deles é Eugene Sue e o outro sou eu mesmo". Em meio às exclamações de espanto e pedidos para que se explicasse, êle chamou o empregado das termas e pediu-lhe o quadro--negro em que este costumava anotar os que vinham para os banhos. Escreveu:

— significa casado(a) com; | significa filho(a) de; Sr.a Sue—Sr. Sue Sr.* Sauvais —Sr. Sue Sr.a Sauvais ~ Sr. Legouvé

• 1 1 , Eugene Sue Flore Sue Ernest Legouvé

"Então, como vêem", concluiu, "é perfeitamente possível que dois homens tenham a mesma irmã, sem ter nenhum parentesco entre si".

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A maioria dos quebra-cabeças de que tratamos até agora exigem quatro fases para sua solução:

1. Seleção dos fatos essenciais. 2. Representação destes fatos em símbolos apropriados. 3. Estabelecimento de equações com estes símbolos. 4. Resolução das equações.

Para a solução de problemas de parentesco, duas destas fases devem ser modificadas. Um simples diagrama substitui a equação algébrica; deduções do diagrama substituem a solução algébrica. Mas, sem os símbolos e diagramas, os problemas podem tornar-se extremamente confusos.

Alexander MacFarlane, um matemático escocês, desen­volveu uma "álgebra de parentescos", que foi publicada nos documentos da Sociedade Real de Edimburgo, mas os pro­blemas a que aplicou seus cálculos poderiam ser facilmente resolvidos sem eles. MacFarlane usou os conhecidos versos:

Irmãos e irmãs não os tenho,

Mas o pai deste homem é o filho de meu pai,

como cobaia para seus cálculos, embora o método do dia­grama dê uma solução muito mais rápida.

Um velho conto de fadas indiano cria uma intrincada sé­rie de parentescos que, provavelmente, se tornaria demasia­do complicada, mesmo para a álgebra de MacFarlane. Um rei, destronado por seus parentes, foi obrigado a fugir com a mulher e a filha. Durante a fuga, foram atacados por la­drões; ao se defender, o rei foi morto, mas a esposa e a filha conseguiram fugir. Chegaram, logo depois, a uma flo­resta na qual um príncipe do país vizinho estava caçando em companhia do filho. O príncipe (viúvo) e seu filho (solteiro aproveitável), vendo as pegadas da mãe e da filha, decidiram segui-las. O pai declarou que casaria com a mu­lher com maiores pegadas — indubitavelmente a mais velha — e o filho disse que casaria com a de pegadas menores, que era certamente a mais moça. Mas, ao regressar ao castelo, pai e filho descobriram que os pés menores eram da mais velha e os grandes pertenciam à filha. Apesar disso, domi-

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nando seu desapontamento, casaram-se como haviam plane­jado. Depois dos casamentos, a mãe, nora de sua filha, e a filha, sogra de sua própria mãe, ambas tiveram filhos — filhos e filhas. A tarefa de desembaraçar os parentescos re­sultantes deixamos ao leitor, bem como a explicação dos ver­sos abaixo, encontrados em um velho túmulo de Alencourt, perto de Paris:

Aqui jaz o filho; aqui jaz a mãe; Aqui jaz a filha; aqui jaz o pai; Aqui jaz a irmã; aqui jaz o irmão; Aqui jaz a esposa e também o esposo. Mas só há três pessoas aqui.

* Na famosa pintura de Albrecht Dürer, "Melancolia",

aparece algo sobre o qual se tem escrito mais do que sobre qualquer outra forma de distração matemática. È o qua­drado mágico.

O quadrado mágico consiste na disposição de inteiros em um quadrado de tal forma que, quando somados por filas, dia­gonais ou colunas, dão sempre o mesmo total. Quadrados mágicos existem, no mínimo, desde o tempo dos árabes. Grandes matemáticos, como Euler e Cayley, acharam-nos di­vertidos e dignos de serem estudados. Benjamin Franklin admitiu, mais ou menos desculpando-se, que passou algum tempo de sua juventude com essas "tolices" — tempo "que", apressou-se a acrescentar, "eu poderia ter empregado de for­ma mais útil". Os matemáticos nunca pretenderam conside­rar os quadrados mágicos mais do que um chvertimento, qual­quer que fosse o tempo que tivessem empregado neles, em­bora o estudo contínuo devotado a esta forma de quebra--cabeça possa, incidentalmente, ter lançado alguma luz na relação entre os números. Seu principal interesse ainda é místico e recreativo.

Há outras formas de quebra-cabeças de considerável in­teresse que não foram tratadas aqui porque tratamos delas mais amplamente em seu lugar apropriado. 2 0 Entre elas, há

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182 M A T E M Á T I C A E I M A G I N A Ç Ã O

problemas relacionados com a teoria da probabilidade, co­loração de mapas, e superfícies unilaterais de Möbius.

Apenas um grande grupo de problemas está restando — os relacionados com a teoria dos números. A moderna teo­ria dos números, representada por uma enorme literatura, prende a atenção de todos os matemáticos sérios. Ê um ramo de estudo em que muitos teoremas, embora excessiva­mente difíceis de demonstrar, podem ser simplesmente enun­ciados e facilmente compreendidos por qualquer pessoa. Tais teoremas são, portanto, mais amplamente conhecidos entre leigos educados do que teoremas de importância muito maior em outros ramos da Matemática, teoremas que requerem co­nhecimentos técnicos para poderem ser entendidos. Todos os livros sobre recreações matemáticas estão cheios de sim­ples ou engenhosos, sagazes ou maravilhosos, fáceis ou difí­ceis quebra-cabeças baseados no comportamento e nas pro­priedades de números. O espaço só nos permite mencionar um ou dois destes teoremas importantes sobre os números, os quais, apesar de sua profundidade, podem ser facilmente com­preendidos.

Desde que Euclides provou 2 1 que a quantidade de nú­meros primos é infinita, os matemáticos têm procurado um teste que pudesse determinar se um dado número é primo ou não. Mas ainda não se encontrou o teste aplicável a todos os números. É bastante curioso haver razões para acre­ditar que certos matemáticos do século XVII, que dedica­ram muito tempo à teoria dos números, tinham meios para reconhecer os números primos, desconhecidos para nós. O matemático francês Mersenne e seu ainda maior contempo­râneo Fermat tinham um processo misterioso de determinar os valores de p, pelos quais 2P — 1 é um número primo. Ainda não ficou bem claramente determinado até onde eles conseguiram desenvolver seu método, ou, na verdade, qual, exatamente, era o método que empregavam. Da mesma for­ma, ainda causa admiração ter Fermat respondido, sem um momento de hesitação, a uma carta onde se lhe perguntava se 100895598169 era primo, dizendo que era o produto de 898423 e 112303, e que cada um destes números era primo. 2 2

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P A S S A T E M P O S D O S T E M P O S P A S S A D O E P R E S E N T E 183

Sem uma fórmula geral para todos os números primos, um matemático, mesmo hoje, pode levar anos procurando a res­posta correta.

Um dos mais interessantes teoremas da teoria dos núme­ros é o de Goldbach, que diz que todos os números pares são a soma de dois números primos. É fácil de se entender; e há toda razão para crer que é verdade, pois ainda não se en­controu um número par que não fosse a soma de dois núme­ros primos; contudo, ninguém ainda conseguiu achar uma demonstração válida para todos os números pares.

Mas, talvez, a mais famosa de todas essas proposições ti­das como verdadeiras, mas nunca demonstradas, é "O Últi­mo Teorema de Fermat". Na margem de sua cópia do Dio­fanto, Fermat escreveu: "Se n é um número maior que dois, não há números inteiros, a, b, c tais que an -j- bn = cn. En­contrei uma demonstração absolutamente admirável, que esta margem é pequena demais para conter". Que pena! Su­pondo-se que Fermat tivesse realmente uma demonstração, e seus talentos matemáticos eram de tal ordem que é certa­mente possível que a tivesse, teria economizado horas sem fim a sucessivas gerações de matemáticos, se houvesse en­contrado espaço naquela margem. Quase todos os grandes matemáticos, depois de Fermat, tentaram encontrar a demons­tração, mas nenhum logrou qualquer sucesso.

São conhecidos muitos pares de inteiros, cujas somas dos quadrados também é um quadrado, como:

32 4- 4 2 = 52; ou 62 + 82 = IO2.

Mas nunca se encontraram três inteiros cuja soma dos cubos de dois deles seja igual ao cubo do terceiro. E a afirmati­va de Fermat era que isto era verdade para todos os intei­ros quando a potência à qual fossem elevados fosse maior que 2. Extensos cálculos têm mostrado que o teorema de Fermat é verdadeiro para valores de n até 617. Mas Fer­mat referiu-se a qualquer n maior que 2. De todas suas grandes contribuições à Matemática, o legado mais célebre é um quebra-cabeça que três séculos de investigação mate-

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184 M A T E M Á T I C A E I M A G I N A Ç Ã O

mática ainda não resolveram e que os céticos acreditam que o próprio Fermat nunca resolveu.

U m tanto relutantes, temos de abandonar os quebra-ca­beças. Relutamos, porque só pudemos dar uma vista de olhos em um assunto rico e interessante e porque os quebra-ca­beças, de certa forma, mais do que qualquer outro ramo da Matemática, refletem sua eterna juventude, seu espírito in­quisidor e não deturpado. Quando um homem deixa de imaginar, de perguntar e de se divertir, acabou-se. Os que­bra-cabeças são feitos com as coisas com as quais o mate­mático, não menos que uma criança, brinca, sonha e ima­gina, porque são feitos com coisas e circunstâncias do mundo em que êle vive.

NOTAS

1. Anatole France, Le Crime de Sylvestre Bonnard.

2. W. W. R. Ball, Mathematical Recreations and Essays, l l . a ed., Nova York, Macmillan, 1939.

W. Lietzmann, Lustiges und MerkuHirdiges von Zahlen und For-men, Breslau, Hirt, 1930.

Helen Abbot Merrill, Mathematical Excursions, Boston, Bruce Humphries, 1934.

W. Ahrens, Mathematische Unterhaltungen und Spiele, Leipzig, B. G. Teubner, 1921, vols. I e II.

H . E. Dudeney, Amusements in Mathematics, Londres, Thomas Nelson, 1919.

E. Lucas, Récréations Mathématiques, Paris, Gautier-Villars, 1883--1894, vols. I, II, III e IV.

3. Eis um exemplo do tipo de quebra-cabeça, muito em moda anti­gamente, que, embora aparentemente prolixo, só contém fatos essenciais:

OS ARTESÃOS

Havia três homens, João, Jacó e José, cada um dos quais tinha duas ocupações. Estas os classificam, cada um em duas delas, como: motorista, contrabandista, músico, pintor, jardineiro e bar­beiro.

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P A S S A T E M P O S D O S T E M P O S P A S S A D O E P R E S E N T E 185

Dos fatos abaixo, determinar quais as duas ocupações de cada um deles: 1. O motorista ofendeu o músico ao rir de seus cabelos longos. 2. Tanto o músico quanto o jardineiro costumavam ir pescar

com João. 3. O pintor comprou uma garrafa de gim do contrabandista. 4. O motorista namorava a irmã do pintor. 5. Jacó devia ao jardineiro Cr$ 50,00. 6. José ganhou tanto de Jacó como do pintor no jogo de malha.

4. Há dois modos diferentes, ambos simbolizados na tabela seguinte:

PRIMEIRA SOLUÇÃO SEGUNDA SOLUÇÃO L — lobo C = couve B = bode —> = travessia

1. LBG 1. LBC

2. LC B —> B 2. L C B-» B

3. LC B 3. L C <- B

4. C L—> LB 4. L BC

5. BC <-B L 5. LB <"B 1 c

6. B ~> C L C 6. B 1

1 L C

7. B <— L C 7. B <- " 1 L C

8. B - » LBC 8. 1

B - » ! LBC i

5. Pelo menos é o que diz seu biógrafo, Arago. Não só a quali­dade do trabalho de Poisson foi extremamente elevada, mas a produção foi enorme. Além de ocupar várias posições oficiais importantes, êle produziu mais de 300 trabaüios em uma vida relativamente curta (1781-1840). "La vie, cest le travou", estava escrito na casa de Poisson, embora, por estranho que pareça, foi um quebra-cabeça que o levou a uma vida dedicada a trabalhos incessantes.

6. Encha o jarro de 5 medidas com o vinho do de 8 e vire 3 medidas do jarro de 5, no de 3. Ponha de volta as 3 medidas no jarro de 8. Vire as 2 medidas restantes do jarro de 5, no de 3. Encha novamente o jarro de 5. Como há 2 medidas no jarro de 3, uma medida adicional encherá este jarro. Vire uma quantidade de vinho do jarro de 5 suficiente para encher o de 3 medidas. O jarro de 5 terá, então. 4 medidas. Vire, agora, 3 medidas do jarro de 3, no de 8, o que, com 1 que lá existe, fará que fiquem, no jarro de 8, as 4 medidas.

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7. W. W. R. Ball, op. cit. 8. Outras bases foram sugeridas. Há razões para crer que os ba­

bilônios utilizaram a base 60, e, em épocas mais recentes, o "uso da base 12 foi aconselhada com bastante ênfase.

9. Hall e Knight, Higher Álgebra. 10. Arnold Dresden, An Invitation to Mathematics, Nova York, Henry

Holt & Co., 1936. 11. W. Ahrens, op. cit. 12. W. W. R. Ball, op. cit. 13. (Dando margem para os anos bissextos — Ed.) 14. Ver W. Ahrens, op. cit., e Bouton, Annals of Mathematics, série 2,

vol. IH (1901-1902), págs. 35-39, para a demonstração matemá­tica de Nim.

15. A vigésima parte de um cúbito é aproximadamente uma polegada. 16. A regra geral para a solução de todos os problemas deste tipo

pode ser encontrada em P. G. Tait, Collected Scientific Tapers, 1900.

17. Smith & Mikarni, A History of Japanese Mathematics, pág. 83. 18. Jokasori & Story, American Journal of Mathematics, vol. 2 (1879). 19. Ahrens, op. cit., volume 2. 20. Existem ainda quebra-cabeças que, embora muito divertidos e

enganadores, não apresentam nenhuma idéia matemática que não tenha ainda sido considerada — por isso, foram omitidos. Podemos, contudo, dar três exemplos, escolhidos justamente por­que eles são, muitas vezes, resolvidos incorretamente:

a) Um copo está cheio, pela metade, de vinho e outro, tam­bém pela metade, de água. Tire, do primeiro copo, uma colher cheia de vinho e ponha este na água. Da mistura, tire uma colher cheia e vire-a no vinho. A quantidade de vinho existente no copo com água é agora maior ou menor que a quantidade de água no copo com vinho? Para aca­bar com todas as discussões: são iguais.

b) O quebra-cabeça seguinte atrapalhou os delegados a uma distinta assembléia de peritos em quebra-cabeça, não há mui­to tempo. Um macaco está pendurado na extremidade de uma corda que passa por uma roldana e é equilibrada por um peso amarrado na outra extremidade. O macaco resolve subir na corda. O que acontecerá? Os astutos decifradores de quebra-cabeças se embrenharam em toda sorte de con-jeturas e especulações, desde a dúvida de que o macaco pudesse subir na corda até a rigorosas "demonstrações ma­temáticas" de que êle não poderia. (Não podemos resistir à vontade vergonhosa e provavelmente supérflua de dar a solução — o peso sobe, assim como o macaco!)

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PASSATEMPOS DOS TEMPOS PASSADO E PRESENTE 187

c) Imaginemos um pedaço de barbante com 25.000 milhas de comprimento, bastante grande para envolver o globo terres­tre, exatamente, no equador. Tomamos o barbante e, co­modamente, o passamos em torno da Terra, pelos oceanos, desertos e florestas. Infelizmente, quando conseguimos rea­lizar nossa tarefa, verificamos que, ao fazer o barbante, co­meteram um pequeno engano, porque êle é exatamente uma jarda longo demais.

Para compensar o erro, decidimos amarrar as duas pon­tas e distribuir essas 36 polegadas igualmente por todas as 25.000 milhas. Naturalmente (pensamos) isso nunca será notado. Quanto pensa você que o barbante ficará acima do chão em qualquer ponto, simplesmente pelo fato de que é 36 polegadas longo demais?

A resposta correta parece incrível, porque o barbante ficará 6 polegadas acima da superfície em todas as 25.000 milhas.

Para que você possa sentir isso melhor, pergunte a você mesmo: Andando em tomo da superfície terrestre, quanto sua cabeça se deslocará mais que seus pés?

21. A prova de Euclides de que há uma quantidade infinita de nú­meros primos é uma demonstração elegante concisa. Se P é um número primo qualquer, pode-se sempre encontrar outro número primo maior que P. Calcule-se P/ + 1. Este número, obvia­mente maior que P, não é divisível por P ou por qualquer núme­ro menor que P. Existem apenas duas alternativas: 1) Não é divisível de todo; 2) é divisível por um número primo que está entre P e P! + 1. Mas qualquer uma destas alternativas prova a existência de um número primo maior que P. Q.E.D.

22. Ball, op. cit.

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VI

P A R A D O X O P E R D I D O

E P A R A D O X O R E C U P E R A D O

Como são curiosos os meios dos paradoxos — Como zombam alegremente do bom senso.

W . S. GILBERT

' J [ ' A L V E Z o maior de todos os paradoxos é haver paradoxos na Matemática. Não nos surpreendemos ao descobrir incon­sistências nas ciências experimentais, que, periodicamente, so­frem tais modificações revolucionárias que, embora há pou­co tempo atrás acreditássemos ser descendentes dos deuses, hoje visitamos um jardim zoológico com o mesmo interesse amigo com que vamos à casa de parentes distantes. Da mesma forma, a chstinção fundamental e com séculos de idade entre a matéria e a energia está-se desvanecendo, en­quanto a Física da relatividade está esmigalhando nossos con­ceitos básicos sobre o tempo e o espaço. Na realidade, o tes­tamento da ciência está tão continuamente em fusão que a heresia de ontem é o evangelho de hoje e o fundamento de amanhã. Parafraseando Hamlet — o que era um paradoxo antigamente, já não o é mais, porém, pode vir a sê-lo nova­mente. No entanto, como a Matemática constrói sobre o antigo, mas não o abandona, como é a mais conservadora das ciências, como seus teoremas são deduzidos de postulados pelos métodos da Lógica, apesar de sofrer modificações revo­lucionárias, não imaginamos que seja uma matéria capaz de engendrar paradoxos.

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PARADOXO PERDIDO E PARADOXO RECUPERADO 189

Não obstante, M três tipos distintos de paradoxos que surgem na Matemática. Há proposições contraditórias e ab­surdas, que surgem de raciocínios falsos. Há teoremas que parecem estranhos e incríveis, mas que, por serem logica­mente inatacáveis, têm de ser aceitos mesmo que transcen­dam a intuição e a imaginação. A terceira e mais importante classe consiste nos paradoxos lógicos que aparecem em liga­ção com a teoria dos agregados, e que deram como resulta­do um reexame dos fundamentos da Matemática. Estes pa­radoxos lógicos criaram confusão e consternação entre lógi­cos e matemáticos e fizeram surgir problemas relativos à na­tureza da Matemática e da Lógica que ainda não encon­traram uma solução satisfatória.

PARADOXOS ESTRANHOS MAS VERDADEIROS

Esta seção será dedicada a proposições aparentemente contraditórias e absurdas, mas que são, contudo, verdadei­ras. 1 Anteriormente, examinamos os paradoxos de Zenão. A maioria deles foi explicada através das séries infinitas e da Matemática transfinita de Cantor. Há, porém, outros relacionados com o movimento, mas, ao contrário dos de Zenão, eles não consistem em demonstrações lógicas de que o movimento é impossível. Mas mostram graficamente quão falsas podem ser nossas idéias sobre o movimento; quão fa­cilmente, por exemplo, alguém pode ser enganado pela tri­lha de um objeto em movimento.

Na Fig. 62, há duas moedas idênticas. Se rolarmos a moeda à esquerda ao longo da metade da circunferência da outra, seguindo o caminho indicado pela seta, podemos su­por que, em sua posição final, quando atingir a extrema di­reita; ela estará com a cabeça invertida e não na posição pa­ra cima. Em outras palavras, depois de girarmos uma moe­da em um semicírculo (metade de sua circunferência), a ca­beça em uma das faces da moeda, estando para cima no iní­cio, deve estar, agora, para baixo. Mas, quando realizarmos

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190 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

a experiência, veremos, que a posição final será a indicada na Fig. 62, tal como se a moeda tivesse sido girada uma volta completa em torno de sua circunferência.

FIG. 62

O enigma seguinte é semelhante. O círculo da Fig. 63 fêz uma revolução completa ao rolar de A para B. A distância AB é, portanto, igual ao comprimento da circunferência do círculo. O círculo menor, dentro do maior, fêz também uma

F I G . 63

revolução completa ao percorrer a distância C D . Como esta é igual à distância AB e, cada uma delas, é aparentemente igual à circunferência do círculo que rolou sobre ela, esta­mos diante do absurdo evidente de que a circunferência do círculo menor é igual à do maior.

Para explicar estes paradoxos, e muitos outros de natu­reza semelhante, temos de voltar nossa atenção, por um mo­mento, para uma curva famosa — o ciclóide. (Ver Fig. 64).

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PARADOXO PERDIDO E PARADOXO RECUPERADO 191

O ciclóide é o caminho traçado por um ponto fixo na circunferência de uma roda, enquanto esta rola, sem deslize, sobre uma hnha reta fixada.

FIG. 64 — 0 ciclóide.

Na Fig. 65, enquanto a roda gira sobre a linha MN, os pontos A e B descrevem um ciclóide. Depois da roda com­pletar metade de uma revolução, o ponto Ax estará em As, e Bi em B 3 . Nesta situação, nada indica que o ponto A e o ponto B não se tenham deslocado na mesma velocidade, já que é evidente que percorreram a mesma distância. Mas, se examinarmos os pontos intermediários Ao e Bo, que indi­cam as posições respectivas de A e B depois de um quarto de volta da roda, está claro que, no mesmo tempo, A deslo­cou-se uma distância maior que B. Esta diferença é com­pensada no segundo quarto de volta em que B, deslocando-se

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192 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

de B2 para B3, cobre a mesma distancia coberta por A, ao se mover de A i para A%; é óbvio que a distância, ao longo da curva, de B» para B3 é igual ao comprimento de A i para A 2 . Assim, em meia revolução, tanto A quanto B atraves­saram a mesma distância.

FIG. 65 — Quando a roda em movimento está na po­sição pontilhada, ela completou um quarto de volta, e A deslocou-se de A x para A 2 , mas B foi somente de B1 para B 2 . O circulo sombreado mostra a roda após

completar três quartos de revolução.

Esse estranho comportamento do ciclóide explica o fato de, quando uma roda está em movimento, a parte mais dis­tante do chão, a qualquer instante, move-se, realmente, na horizontal mais depressa que a parte em contato com o chão. Pode-se mostrar que quando o ponto da roda que está em contato com o solo começa a se movimentar, êle se desloca cada vez mais depressa, atingindo sua velocidade horizontal máxima quando sua posição é a mais afastada do solo.

Outra propriedade interessante do ciclóide foi descoberta por Galileu. No capítulo sobre Pie, mostramos que a área de um círculo só pode ser expressa com o auxilio de n, o número transcendental. Gomo o valor numérico de TI SÓ pode ser aproximado (embora esta aproximação possa ser a maior possível, conforme o número de termos da série in­finita que se queira tomar), a área do círculo também só pode ser expressa como uma aproximação. De forma bas­tante notável, porém, com o auxílio de um ciclóide, podemos construir uma área exatamente igual à de um círculo dado. Baseado no fato de que o comprimento de um ciclóide, de ponta a ponta, é igual a quatro vezes o do diâmetro do círculo gerador, pode-se mostrar que a área limitada pela

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parte do ciclóide entre as duas pontas e a linha reta que as une é igual a três vezes a área do círculo. E daí se conclui que o espaço limitado (sombreado na Fig. 66) em cada lado do círculo ao centro é exatamente igual à área do próprio círculo.

FIG. 66 — Quando o círculo em movimento está na posição indicada, as áreas escuras de cada lado são

exatamente iguais à área do círculo.

O paradoxo resultante da pseudodemonstração de que a circunferência de um pequeno círculo é igual à de um maior pode ser exphcado com o auxílio de outro membro da famí­lia do ciclóide — o ciclóide alongado (Fig. 67).

M N

FIG. 67 — 0 ciclóide alongado é gerado pelo ponto P no círculo menor, enquanto o círculo maior se

desloca ao longo da linha MN.

Um ponto interior de uma roda que se desloca em uma hnha reta descreve um ciclóide alongado. Assim, um pon­to na circunferência de um círculo menor, concêntrico a um maior gerará esta curva. O círculo pequeno da Fig. 63 exe­cuta somente uma revolução completa ao se deslocar de C para D, e um ponto na circunferência deste círculo descre­verá um ciclóide alongado. Mas, comparando o ciclóide alon­gado com o ciclóide, vemos que o círculo pequeno não co-

13

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briria a distância CD apenas executando uma revolução, tal como acontece com o círculo maior. Parte da distância é coberta pelo círculo enquanto êle rola, mas, simultaneamente, está sendo carregado para a frente pelo círculo maior, ao se mover de A para B. Isto pode ser verificado mais claramen­te quando observamos o centro do círculo maior na Fig. 63. O centro de um círculo, sendo um ponto matemático e não tendo dimensões, não gira em absoluto, mas é carregado por toda a distância de A a B pela roda.

Em relação aos problemas que surgem quando uma roda rola sobre uma linha reta, discutimos a trajetória (cami­nho) de um ponto na circunferência da roda e verificamos que este trajeto é um ciclóide. Além disso, é interessante mencionar a trajetória traçada por um ponto fora da circun­ferência de uma roda, tal como o ponto mais externo dos flanges de uma roda usada nos trens ferroviários. Este pon­to não está realmente em contato com o trilho sobre o qual

FIG, 68 — O ciclóide encurtado. Um ponto no flange da roda de um trem em mo­vimento gera esta curva. A parte do trem que se move para trás, quando êle vai para frente, está

sombreada na roda.

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a roda rola. A curva gerada é chamada de ciclóide encur­tado (Fig. 68) e explica o curioso paradoxo de que, a todo instante, um trem nunca se move totalmente na direção em que a locomotiva o está puxando. Há sempre partes do trem que se deslocam na direção oposta (como, por exem­plo, a cruzeta e o puxavante da locomotiva).

Entre as inovações da Matemática no último quarto de século, nenhuma sobrepujou em importância o desenvol­vimento da teoria dos conjuntos de pontos e a teoria de funções de uma variável real. Baseado unicamente nos no­vos métodos de análise matemática, conseguiu-se, na Geo­metria, maior exatidão e generalidade do que se poderia imaginar que a ciência obtivesse inteiramente por meios in­tuitivos. Descobriu-se que todas as idéias geométricas con­vencionais poderiam ser reformuladas com maior precisão apoiando-se na teoria dos agregados e nas novas e poderosas armas da análise. Na Geometria elástica, como veremos, as curvas são definidas de tal modo a abandonar qualquer ape­lo ingênuo à intuição e à experiência. Uma simples curva fechada é definida como o conjunto de pontos que possui a propriedade de dividir o plano exatamente em duas re­giões: uma interior e uma exterior, onde interior e exterior são precisamente formulados por métodos analíticos sem refe­rência às nossas habituais noções de espaço. Justamente por estes meios, figuras muito mais complexas do que se estudou até agora foram desenvolvidas e investigadas. Na verdade, embora a Geometria Analítica seja hmitada a contornos que podem ser descritos por equações algébricas, cujas variáveis são as coordenadas dos pontos da configuração, a nova aná­lise tornou possível o estudo das formas que não podem ser descritas por nenhuma equação algébrica. Algumas delas encontraremos na seção de Curvas Patológicas.

Prolongados estudos foram também feitos sobre certas classes de pontos como os pontos no espaço — e a noção de dimensionalidade foi novamente reexaminada. Em relação a este estudo, uma das grandes realizações dos recentes anos foi dar a cada configuração um número: 0, 1, 2 ou 3, para indicar sua dimensionahdade. A crença estabelecida era que isto era assunto simples e óbvio que não exigia análise ma-

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temática e podia ser solucionado mtui ti vãmente. Assim, um ponto seria considerado como tendo zero dimensão, uma li­nha ou uma curva — uma dimensão, um plano ou uma su­perfície — duas, e um sólido — três dimensões. Temos de concordar que o problema de determinar se um objeto tem 0, 1, 2 ou 3 dimensões não parece muito formidável. Contu­do, um paradoxo notável que foi apresentado é por si mes­mo suficiente para mostrar que não é este o caso em abso­luto e que nossas idéias intuitivas sobre dimensionahdade, bem como sobre área, estão não só falhando em precisão, mas são, muitas vezes, completamente mal orientadas.

O paradoxo apareceu quando se tentava verificar se um número (chamado uma medida) poderia ser especificamente aplicado a qualquer figura no plano de tal forma que as três condições seguintes estariam satisfeitas: 1) sendo usada a palavra "congruente" no mesmo sentido em que foi apren­dida na Geometria elementar, 2 duas figuras congruentes de­veriam ter a mesma medida; 2) se uma figura fosse dividi­da em duas partes, a soma das medidas dadas a cada uma das duas partes deveria ser exatamente igual à medida dada à figura original; 3) como modelo de determinação do mé­todo de estabelecer uma medida para cada figura no plano, concordou-se que a medida 1 seria dada ao quadrado cujo lado teria o comprimento de uma unidade.

Qual é este conceito de medida? Pelo que se disse, pa­recia lógico que a medida a ser dada a cada figura no plano nada mais seja que a área desta figura. Em outras pala­vras, o problema é saber se a área de qualquer figura no plano, independente de sua complexidade, pode ser devida­mente deteiminada. Não é certamente necessário dizer que isto foi idealizado como um exercício geral e teórico e não como a vasta e obviamente impossível tarefa de realmente medir todas as figuras concebíveis. O problema deveria ser considerado resolvido se uma demonstração teórica fosse apre­sentada de que qualquer figura só poderia ter uma única me­dida. Deve-se notar que a finalidade principal era manter esta investigação livre dos tradicionais conceitos da Geome­tria clássica — a noção de área compreendida pelos proces-

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sos antigos era tabu e os costumeiros métodos de determina­da especificamente excluídos; o raciocínio tinha de ser ana­lítico (por meio de conjunto de pontos), em vez de geomé­trico. Dentro de tais restrições, demonstrou-se que, por mais complexa que fosse a figura, independente do número de vezes em que seus limites se cruzem ou recruzem, uma única medida pode ser-lhe atribuída.

Depois, veio o colapso. Pois descobriu-se o assombroso fato de que o problema, quando estendido às superfícies, era não só insolúvel como conduzia aos mais surpreendentes pa­radoxos. Verdadeiramente, estes mesmíssimos métodos, que deram tantos resultados nas investigações no plano, quando aplicados à superfície de uma esfera mostraram-se inadequa­dos para determinar uma única medida.

Isto significa que a área de uma esfera não pode ser determinada sem dúvida? A fórmula convencional 4nr2 não dá, corretamente, a área de uma esfera? Infehzmente, não nos podemos permitir responder a estas perguntas detalha­damente porque, para fazê-lo, seríamos levados muito longe e seria necessário um grande conhecimento técnico. Admi­timos que a área de uma superfície esférica, tal como deter­minada pelos métodos clássicos, é 4nr2. Mas os antigos mé­todos careciam de generalidade; não eram adequados para a determinação de áreas de figuras complexas; e, além disso, já tínhamos avisado que o ingênuo conceito de área deveria ser deliberadamente omitido em nossas tentativas de medida. Enquanto o avanço na teoria das funções e os novos métodos de análise superaram algumas dessas dificuldades, introduzi­ram novos problemas intimamente relacionados com o infi­nito e, como os matemáticos já haviam verificado há muito tempo, a presença deste conceito não é, em absoluto, uma bênção sem jaça. Embora tenham permitido aos matemáti­cos dar largas passadas para frente, estas foram sempre da­das na sombra da incerteza. Pode-se continuar a usar fór­mulas como 4nr2, pela simples razão de que elas satisfa­zem; mas, se se quer acompanhar o intrépido e incansável espírito matemático, temos de fazer face à desagradável al­ternativa de abandonar a lógica para preservar os conceitos

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clássicos ou de aceitar os resultados paradóxicos da nova análise e jogar o bom senso pela janela.

As condições para atribuir uma medida a uma superfície são semelhantes às fixadas para a medida de figuras em um plano: 1) a mesma medida deve ser dada a superfícies con­gruentes; 2) a soma das medidas dadas a cada uma das par­tes componentes de uma superfície deve ser igual à medida atribuída à superfície original; 3) se S indica a inteira su­perfície de uma esfera de raio r, a medida dada a S deve ser 4nr2.

O matemático alemão Hausdorff demonstrou que este problema é insolúvel, isto é, que apenas uma medida não pode ser atribuída às porções da superfície de uma esfera de tal forma que as condições acima sejam satisfeitas. Êle mos­trou que, se a superfície de uma esfera fosse dividida em três partes distintas e separadas: A, B, C, de forma que A seja congruente a B e B a C, um estranho paradoxo se apre­senta, altamente reminiscente e, realmente, relacionado com vários paradoxos da Aritmética transfinita. Pois Hausdorff provou que não só A é congruente a C (tal como esperado), mas também que A é congruente a B -j- C. Quais serão as implicações deste resultado assustador?

Se se atribui uma medida a A, a mesma medida deve ser dada a B e a C, porque A é congruente a B, e B é con­gruente a C, e A é congruente a C. Mas, por outro lado, como A é congruente a B -f- C, a medida dada a A teria, também, de ser igual à soma das medidas dadas a B e C. Obviamente, isto só seria possível se as medidas atribuídas a A, B e C fossem todas iguais a 0. Mas isso é impossível pela condição 3), de acordo com a qual a soma das medidas das partes da superfície de uma esfera deve ser igual a 4;ir2. Então, como é possível atribuir uma medida?

Sob um ponto de vista ligeiramente diferente, vemos que, se A, B e C são congruentes a cada um dos outros e, juntos, constituem a superfície total da esfera, a medida de cada um deles deve ser a medida de um terço da medida total da esfera. Mas, se A é não só congruente a B e C, mas tam­bém a B -f- C (tal como Hausdorff provou), a medida atri-

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buída a A e a d e B - f - C devem, cada uma, ser iguais à metade da superfície da esfera. Assim, qualquer que seja o ponto de vista, a atribuição de medidas a partes da su­perfície de uma esfera nos envolve em contradição sem es­perança.

Dois distintos matemáticos poloneses, Banacb e Tarski, estenderam as implicações do paradóxico teorema de Haus-dorff ao espaço tridimensional com resultados tão espanto­sos e inacreditáveis que nada semelhante foi jamais visto em toda a Matemática. E as conclusões, embora rigorosas e im­pecáveis, são quase inacreditáveis, seja para o matemático, seja para o leigo.

Imaginemos dois corpos no espaço tridimensional: um muito grande, como o sol; outro, muito pequeno, como uma ervilha. Chamemos o sol de S e a ervilha de S'. Lembre­mos, agora, que não nos estaremos referindo às superfícies destes dois objetos esféricos, mas às integrais esferas sólidas, tanto do sol como da ervilha. O teorema de Banach e Tarski diz que a operação seguinte pode ser, teoricamente, realizada:

Dividamos o sol S em um enorme número de pequenas partes. Cada uma delas deve ser distinta, separada, e a totalidade delas deve ser finita em número. Então, podem ser designadas como $i, s2, ss, · · · sn e, juntas, estas pequenas partes constituirão toda a esfera S. De modo semelhante, S' — a ervilha — deve ser dividida em um igual número de partes mutuamente exclusivas — s/

1, $ ' 3 , · · · ^ cpe, , r e u " nidas, constituirão a ervilha. Então, a proposição diz que, se o sol e a ervilha foram cortados de forma conveniente, de tal modo que a pequena porção si do sol é congruente à pequena parte s\ da ervilha; s 2 congruente a ^ 2 ; -?3, a s's, até sn con­gruente a $fn, este processo acabará não só com todas as pe­quenas partes da ervilha, mas com todas as pequenas partes do sol, também.

Em outras palavras, tanto o sol como a ervilha podem ser divididos em um número finito de partes separadas, de tal forma que cada parte singular de um é congruente a uma única parte da outra, e, também, que, depois de se forma-

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rem os pares de cada pequena porção da ervilha com uma pequena parte do sol, não sobrará nenhuma parte do sol, *

Apresentando esta gigantesca bomba em termos de fogo de artifício: Existe uma forma de dividir uma esfera tão grande como o sol em partes separadas, de tal forma que nenhuma destas partes tenha qualquer ponto em comum com qualquer outra e, contudo, sem comprimir ou destorcer qual­quer parte, todo o sol poderá, de uma vez, ser colocada, co­modamente, no nosso bolso do colete. E, ainda mais, a ervi­lha pode ter suas partes componentes arranjadas de tal forma que, sem expansão ou distorção, não tendo qualquer parte nada em comum com nenhuma outra, elas encheram, solida­mente, todo o universo, não deixando nenhum espaço vazio, seja no interior da ervilha, seja no universo.

Certamente não há conto de fadas, nem fantasia das Mil e Uma Noites, nem sonhos febris que se possam comparar com este teorema de dura e lógica Matemática. Embora os teoremas de Hausdorff, Banach e Tarski não tenham, até o presente, tido aplicação prática, nem mesmo por aqueles que esperam aprender a arrumar seus pertences, cada vez em maior número, numa maleta de fim de semana, os teo­remas se apresentam como um desafio magnífico à imagina­ção e como um tributo à concepção matemática. 3

Diferentes dos paradoxos até agora considerados, há aqueles que são, mais apropriadamente, referidos como falsi­dades matemáticas. Elas aparecem tanto na Aritmética co­mo na Geometria e podem surgir, algumas vezes, embora não muitas, até nos mais elevados ramos da Matemática co-

* Reconhecemos que isto é, certamente, uma simples corres­pondência um a um entre os elementos de um conjunto que faz o sol e os de outro conjunto que faz a ervilha. O paradoxo está no fato de que cada elemento faz par com um que é completamente con­gruente a êle (mesmo com risco de repetir: congruente significa idêntico em tamanho e forma) e de que há elementos suficientes no conjunto formando a ervilha para fazer par exatamente com os ele­mentos que fazem o sol.

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mo, por exemplo, no cálculo e nas séries infinitas. A maior parte das falsidades matemáticas são tão triviais que nem merecem atenção; contudo, o assunto pode despertar consi­deração porque, além do aspecto divertido, mostra como uma cadeia de raciocínio matemático pode ser inteiramente vicia­da por um argumento enganador.

FALSIDADES ARITMÉTICAS

I. Uma demonstração de que 1 é igual a 2 é familiar à maioria das pessoas. Pode ser estendida a quaisquer dois números ou expressões. O erro comum a tais fraudes está na divisão por zero, operação estritamente proibida. Isto porque as regras fundamentais da Aritmética exigem que todos os processos aritméticos (adição, subtração, multipli­cação, divisão, evolução, involução) devem conduzir a um único resultado, obviamente, este requisito é essencial, por­que as operações de Aritmética teriam pequeno valor, ou significação, se os resultados fossem ambíguos. Se 1 -f- 1 fosse igual a 2 ou 3; se 4 X 7 fosse igual a 28 ou 82; se 7 -;- 2 fosse igual a 3 ou 3Já, a Matemática seria o Cha-peleiro Louco das ciências. Tal como a leitura da sorte ou a frenologia, seria um assunto apropriado para ser explora­do no cais de Coney Island.

Como os resultados da operação de divisão têm de ser únicos, a divisão por 0 deve ser excluída, porque o resultado de tal operação pode ser qualquer coisa que você deseje. Em geral, a divisão é definida de tal forma que, se a, b e c são três números, a — b = c, somente quando c X b = a. Tendo em vista esta definição, qual é o resultado de 5 — 0? Não pode ser nenhum número entre zero e infinito, porque nenhum número, multiplicado por zero, será igual a 5. En­tão 5 — 0 não tem sentido. E mesmo 5 - r 0 = 5 - f 0 é uma expressão sem significação.

É certo que são raramente apresentadas falsidades resul­tantes da divisão por 0 em forma tão simples que possam ser imediatamente reconhecidas. O exemplo seguinte mostra

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como surgem os paradoxos quando fazemos uma divisão por uma expressão cujo valor é 0:

Suponhamos que A + B = C e que A = 3 e B = 2. Multipliquemos ambos os membros da equação

A + B = C por (A + B). Obtemos A 2 + 2AB + B 2 = C ( A -f B). Rearrumando os termos, temos

A 2 -f AB — AC = — AB — B 2 + BC. Fatorando (A + B — C), teremos

A ( A + B — C) = — B(-f A + B — C). Dividindo os dois membros por (A -\- B — C) , isto é,

medindo por zero, teremos A = — B ou A -f- B = 0, o que é evidentemente absurdo.

II. Ao extrair uma raiz quadrada, é preciso relembrar a regra algébrica que uma raiz quadrada de um número po­sitivo é igual a dois números, um negativo e outro positivo. Assim, a raiz quadrada de 4 tanto é — 2 como -j- 2 (que se pode escrever: V 4 = ± 2), e a raiz quadrada de 100 é igual a -f- 10 e — 10 (ou, ^/WÕ = ± 10). Deixando-se de observar tal regra, ocorrerá a seguinte contradição: 4

a) (n -f l ) 2 = n 2 + 2n -f 1 b) (n -h l ) 2 — (2n + 1) = n 2

c) Subtraindo-se n(2n -f- 1) de ambos os termos e fa­torando, teremos

d) (n -f l ) 2 — (n + l)(2n + 1) = n 2 — n(2n + 1) e) Somando-se &(2n + l ) 2 a ambos os termos de (d)

teremos (n -f l ) 2 — (n + l)(2n 1) + ^(2n + l ) 2 —

n 2 — n(2n + 1) + ^(2n + l ) 2 , que pode ser escrito sob a forma

/) [ ( » + 1) — K(2n + l ) ] 2 = [ n — 8(2n + l ) ] 2 . Extraindo-se a raiz quadrada de ambos os membros:

g) « + 1 — K(2n + i ; ) = n — ai(2n + 1) e, portanto,

h) n — n -f- 1.

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III. O leitor poderá, por si mesmo, desembaraçar-se na seguinte falsidade aritmética: 5

(1) V a X Vfr = V a X b verdadeiro

(2) V ^ T X V ^ T = V ( - l ) X (-1) · · verdadeiro

(3) Então, ( V 1 7 ! ) 2 = isto é, - 1 = 1 ?

IV. O paradoxo seguinte é um dos que não pode ser resolvido com o uso da Matemática elementar: suponhamos que log (— 1) = x. Então, pela lei dos logaritmos,

log ( - 1 ) 2 = 2 X log (-1) = 2x.

Mas, por outro lado, log (— l ) 2 = log (1), que é igual a 0. Então, 2x = 0. Portanto, log (— 1) = 0, o que, ob­viamente, não é o caso. A explicação está no fato de que a função que representa o log de um número negativo, ou com­plexo, não tem um só valor, mas muitos valores. Quer dizer que, se fôssemos organizar a tabela funcional habitual para o logaritmo de números negativos e complexos, teríamos uma infinidade de valores correspondentes a cada número. 6

V . O infinito, em Matemática, é sempre incontrolável, salvo se fôr tratado adequadamente. Exemplos disto foram encontrados no desenvolvimento da teoria dos agregados e outros mais, nos paradoxos da Lógica. Pode-se apresentar aqui um desses exemplos.

Assim como a Aritmética transfinita tem suas próprias leis, diferentes das da Aritmética finita, são necessárias re­gras especiais para operar com séries infinitas. A ignorân­cia destas regras, ou sua inobservância, provocará inconsistên­cias. Por exemplo, consideremos a série equivalente ao lo­garitmo natural de 2:

L o g S - l - 4 + i - i + | - i . . .

Se rearranjarmos estes termos, como o faríamos na Aritmética finita, teremos:

L o g 2 - ( l + A + | + i . . . ) - + + i +

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Então

= 0.

Então, log 2 = 0.

Por outro lado, log2 = 1 — ~ + 0,69315,

O ^ 2 1 3 4 ' 5 6 '

resposta que pode ser obtida em qualquer tábua de loga­ritmos.

Rearranjando os termos de forma ligeiramente diferente: l o l i * X . 1 , 1 1 . 1 , 1 1

log2 = H - T - r + r + r - r + r + i r - T - - -

= |-X 0,69315 ou, em outras palavras,

l ° g 2 = | x l o g 2 . Uma série famosa, que perturbou Leibnitz, é enganado-

ramente simples:

Emparelhando diferentemente os termos, teremos uma varie­dade de resultados; por exemplo:

(1 - 1 ) + (1 - 1) + (1 - 1) + . . . - o, mas 1— (1 — 1) + (1 — 1) . . . = 1.

FALSIDADES GEOMÉTRICAS

As ilusões de óptica referentes a figuras geométricas são responsáveis por muitas decepções. Vamo-nos restringir às falsidades resultantes de erros de argumentação matemática e não às de limitações fisiológicas.7 Uma "demonstração" geométrica bem conhecida é a de que todo triângulo é isós-

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ceies. Supõe-se que a bissetriz de um ângulo do triângulo e a perpendicular que divide ao meio o lado oposto a esse ân­gulo interceptam-se em um ponto dentro do triângulo.

Outra demonstração similarmente falsa é que um ângulo reto é igual a um ângulo maior que o reto. 8

FIG. 69

Na Fig. 69, ABCD é um retângulo. Se H é o ponto mé­dio de CB, traça-se por H uma linha em ângulo reto com CB, que dividirá ao meio DA em J e é perpendicular a ela. De A, traça-se a hnha AE, fora do retângulo e igual a AB e DC. Ligue-se C a E, e seja K o ponto médio desta linha. Em K, trace-se uma perpendicular a CE. Não sendo CB para­lela a CE, as hnhas tiradas de H e K encontrar-se-ão no pon­to O. Tracem-se OA, OE, OB, OD e OC. É claro que os triângulos ODC e OAE são iguais sob todos os aspectos. Co­mo KO é a perpendicular que divide CE ao meio e, portanto, qualquer ponto em KO é equidistante de C e E, OC é igual a OE. Da mesma maneira, como HO é a perpendicular que divide CB e DA ao meio, OD é igual a OA. Como AE foi construída igual a DC, os três lados do triângulo ODC são respectivamente iguais aos do triângulo OAE. Então, os dois triângulos são iguais e, portanto, o ângulo ODC é igual ao ângulo OAE. Mas o ângdo ODA é igual ao ângulo OÁD, porque o lado AO é igual ao lado OD no triângulo OAD, e os ângulos da base do triângulo isósceles são iguais. Por­tanto, o ângulo JDC, que é igual à diferença de ODC e ODJ, é igual a JAE, que é a diferença entre OAE e OAJ. Mas o

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ângulo JDC é um ângulo reto e, assim, o ângulo JAE é maior que um ângulo reto e, portanto, o resultado é contraditório. Você pode achar a fraude? Sugestão: tente traçar a figura exatamente.

PARADOXOS LÓGICOS

Como as lendas e folclores, os paradoxos lógicos tiveram seus predecessores na antiguidade. Tendo-se ocupado com Filosofia e com os fundamentos da Lógica, os gregos formu­laram algumas adivinhações lógicas que, nos tempos moder­nos, voltaram a afligir matemáticos e filósofos. Os sofistas se tornaram especialistas em perguntas para confundir e des­nortear seus oponentes nos debates, mas a maioria deles per­maneceu no raciocínio fugidio e nos truques dialéticos. Aris­tóteles os arrasou quando apresentou os fundamentos da Ló­gica clássica — uma ciência que desgastou e sobreviveu a to­dos os sistemas filosóficos da antiguidade e que, em sua maior parte, é perfeitamente válida hoje.

Mas havia enigmas perturbadores que se mantiveram tenazmente indecifráveis. 9 A maioria deles é provocada pelo que se chamou "o círculo vicioso da fantasia", que é "devi­do ao esquecimento do princípio fundamental de que o que se refere a um todo não pode, êle mesmo, ser parte deste todo". 1 0 Exemplos simples disto são as frases pontificais, familiares a todos, que parecem ter grande significação, quan­do na realidade não a têm tais como: "nunca diga nunca" ou "todas as regras têm exceções", ou "toda generalização é falsa". Apresentaremos alguns dos paradoxos lógicos mais avançados, contendo a mesma falsidade básica e, então, dis­cutiremos sua importância sob o ponto de vista do mate­mático.

A) A invasão dos terrenos de caça de um poderoso príncipe era punível com a morte, mas o príncipe, posterior­mente, decretou que qualquer indivíduo que fosse apanhado em sua reserva teria o privilégio de decidir se seria enforca­do ou decapitado. Permitia ao culpado fazer uma declara-

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ção — se fosse falsa, seria enforcado; se verdadeira, seria de­capitado. Um velhaco lógico conseguiu, para si, essa dupla prerrogativa — de ser enforcado, se não tivesse sido; de ser decapitado, se tivesse sido — ao declarar: "Serei enforcado". Este era um dilema que não estava previsto, porque o inva­sor argumentou: "Agora, se me enforcarem, estarão deso­bedecendo às ordens do príncipe, porque minha declaração é verdadeira, e devo ser decapitado; mas, se me decapitarem, também desobedecerão às ordens, porque, então, o que eu disse será falso e eu deveria ser enforcado". Como na histó­ria de Frank Stockton sobre a dama e o tigre, você que de­cida. Mas o invasor, provavelmente, não teve melhor fim às mãos do carrasco do que se fosse entregue a um filósofo, porque, até este século, os filósofos não têm muito tempo para perder com essas achvinhações infantis — principalmen­te com as que êle não pode resolver.

B) O barbeiro da aldeia faz a barba de todos os mo­radores que não se barbeiam a si mesmos. Mas essa norma muito em breve vai envolvê-lo em um apuro dialético, aná­logo ao do carrasco. Êle irá barbear-se? Se o fizer, estará, então, barbeando alguém que se barbeia a si mesmo e que­brará a norma. Se não se barbear, ficará barbado e, da mes­ma maneira, não obedecerá à norma, porque deixou de bar­bear uma pessoa da aldeia que não se barbeia a si mesma.

C) Pense no fato de que todos os inteiros podem ser expressos na língua portuguesa sem o emprego de símbolos. Assim, a) 1400 pode ser escrito: mil e quatrocentos, ou b) 1.769.823: um milhão, setecentos e sessenta e nove mil, oito­centos e vinte e três. É evidente que alguns números exigem mais sílabas que outros; em geral, quanto maior o inteiro, tanto mais sílabas são necessárias para expressá-lo. Assim, o item a) precisou de 6 sílabas, e o b), de 24. Ora, pode--se estabelecer que alguns números necessitam de 27 sílabas ou menos, enquanto outros precisarão de mais de 27 sílabas. Além disso, não é difícil mostrar que, entre os inteiros que necessitam exatamente 27 sílabas para serem expressos na língua portuguesa, deve haver um que seja o menor de todos.

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Ora, "é fácil ver" 1 1 que "O menor inteiro que não pode ser expresso com menos de vinte e sete sílabas" é uma frase que se refere, especificamente, a um determinado inteiro expres­so com vinte e sete sílabas. Mas a declaração tem 26 síla­bas! Temos, então, uma contradição, porque o menor intei­ro que se pode indicar com vinte e sete sílabas pode ser ex­presso com vinte e seis!

D ) A forma mais simples do paradoxo lógico que sur­ge do uso indiscriminado da palavra "todos" pode ser vista na Fig. 70.

FIG. 70

O que se pode dizer da afirmação número 3? 1 e 2 são falsas, mas 3 é não só um lobo com pele de cordeiro, como um cordeiro fantasiado de lobo. Não é nem uma coisa nem outra: não é nem falsa nem verdadeira.

Vemos um aprimoramento no famoso paradoxo de Rus­sell referente à classe de todas as classes que não são mem­bros de si próprias. O fio da meada é, de certa forma, ilu­sório e deve ser acompanhado com cuidadosa atenção:

E) Usando a palavra classe em seu sentido habitual, podemos dizer que há classes de mesas, livros, pessoas, núme­ros, funções, idéias, etc. Por exemplo, a classe de todos os Presidentes dos Estados Unidos tem como membros todas as pessoas, vivas ou mortas, que tiverem sido Presidente dos Estados Unidos. Qualquer coisa do mundo, exceto uma pes­soa que tenha sido ou é Presidente dos Estados Unidos, in-

1 - Este livro tem 597 pági­nas.

2 - O Autor deste l iv roé Con­fúcio.

3 - As afirmativas de números 1. 2 e 3 são todas falsas.

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clusive o próprio conceito da classe, não é membro desta classe. Isto, portanto, é um exemplo de uma classe que não é membro de si mesma. Da mesma forma, a classe de to­dos os membros da Gestapo, ou polícia secreta alemã, que inclui muitos, mas não todos, os patifes da Alemanha; ou a classe de todas as figuras geométricas de um plano limitado por hnhas retas; ou a classe de todos os inteiros de um a quatro mil, inclusive, tem como membros as coisas ali des­critas, mas as classes não são membros delas próprias.

Ora, se consideramos uma classe como um conceito, en­tão a classe de todos os conceitos do mundo é, ela própria, um conceito e, assim, é uma classe que é membro de si mes­ma. E também a classe de todas as idéias apresentadas ao leitor neste livro é uma classe que se contém a si mesma como membro, porque a menção desta classe é uma idéia que trazemos à atenção do leitor. Fixando esta distinção no pensamento, podemos dividir todas as classes em dois tipos: as que são membros de si mesmas e as que não são mem­bros de si mesmas. Na realidade, podemos formar uma clas­se que é composta de todas as classes que não são membros de si próprias (note-se o uso perigoso da palavra "todas"). A pergunta é a seguinte: esta classe (composta das classes que não são membros de si mesmas) é, ou não, membro de si mesma? Tanto a resposta afirmativa quanto a negativa nos envolve em uma contradição sem esperança. Se a clas­se em questão é membro de si mesma, não o será por defi­nição, porque deveria conter apenas as classes que não são membros de si mesmas. Mas, se não é membro de si mes­ma, tem de ser, pela mesma razão.

Nunca se dá ênfase demasiada ao fato de que os parado­xos lógicos não são truques tolos e frívolos. Não foram in­cluídos neste livro para fazer o leitor rir, a não ser as limi­tações da Lógica. Os paradoxos são como as fábulas de La Fontaine que são apresentadas para parecer histórias inocen­tes de raposas e uvas, sapos e pedras. Porque, assim como todos os conceitos éticos e morais foram habilmente intro­duzidos em sua criação, todo o raciocínio lógico e matemá-

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tico, filosófico e especulativo está entremeado com estes pe­quenos gracejos.

A Matemática moderna, ao tentar evitar os paradoxos da teoria dos agregados, defrontou-se com as alternativas de adotar um ceticismo aniquilador em relação a qualquer racio­cínio matemático, ou de reconsiderar e reconstruir não só os fundamentos da Matemática como também os da Lógica. Deve-se tornar bem claro que os paradoxos podem surgir de raciocínio aparentemente legítimo sobre a teoria dos agrega­dos, podem aparecer em qualquer parte da Matemática. As­sim, mesmo que a Matemática pudesse ser reduzida à Lógi­ca, tal como quiseram Frege e Russell, qual seria a vantagem, uma vez que a própria Lógica é insegura? Ao propor sua "Teoria dos Tipos", Whitehead e Russell, no Principia Ma-thematica, conseguiram evitar as contradições por meio de um artifício formal. As proposições que eram gramatical­mente corretas, mas contraditórias, foram classificadas como sem significação. Além disso, formularam um princípio que estabelece, especificamente, qual a forma que deve ter uma proposição para ser considerada como significativa; mas isto resolveu apenas pela metade a dificuldade, porque, embora as contradições pudessem ser reconhecidas, os argumentos que a elas conduziam não podiam ser invalidados sem afetar cer­tas partes da Matemática já aceitas. Para suplantar essa di­ficuldade, Whitehead e Russell estabeleceram o axioma da redutibilidade que, porém, é demasiado técnico para ser apre­sentado aqui. Mas permanece o fato de que o axioma não é aceitável para a grande maioria de matemáticos e de que os paradoxos da Lógica, tendo dividido os matemáticos em facções inalteravelmente opostas, uma à outra, ainda têm de ser destruídos. 1 2

Tem sido sempre dada grande ênfase à característica do matemático de procurar apresentar seus teoremas na forma mais geral. Neste particular, os objetivos do matemático e do lógico são os mesmos — formular proposições e teoremas na forma: se A é verdadeiro, B é verdadeiro, onde A e B re­ferem-se a coisas muito mais importantes que apenas cou-

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ves e reis. Mas se isto é um objetivo elevado demais, tam­bém é perigoso, da mesma forma que o é o conceito do infi­nito. Quando o matemático diz que tal ou qual proposição é verdadeira para uma coisa, pode ser interessante e é certa­mente digno de confiança. Mas, quando êle procura esten­der a proposição a todas as coisas, embora seja muito mais interessante, também é muito mais perigoso. Na transição do um para tudo, do específico para o geral, a Matemática tem feito seu maior progresso, e sofreu seus mais sérios re­veses, dos quais os paradoxos da Lógica constituem a parte mais importante. Porque, para que a Matemática avance com segurança e confiança, deve, primeiro, pôr em ordem seus problemas em casa.

NOTAS

1. Estritamente falando, as proposições matemáticas não são nem verdadeiras nem falsas; são apenas deduzidas dos axiomas e pos­tulados que são apresentados. Se aceitamos estas premissas e usamos argumentos lógicos legítimos, obtemos proposições legí­timas. Os postulados não se caracterizam por ser verdadeiros ou falsos; nós simplesmente concordamos em obedecê-los. Mas te­mos usado a palavra verdadeiro sem nenhuma de suas implicações filosóficas para referirmo-nos a proposições logicamente deduzidas de axiomas normalmente aceitos.

2. Dois conjuntos de pontos (configurações) são chamados congruen­tes se, a cada par de pontos P e Q de um conjunto, corresponde, unicamente, um par de pontos P* e Q' do outro conjunto, de tal forma que a distância entre P' e Q' seja igual à distância entre P e Ç .

3. Na versão dada aos teoremas de Hausdorff, Banach e Tarski, fize­mos uso liberal da lúcida explanação dada por Karl Menger em seu trabalho: "Pode-se Resolver a Quadratura do Círculo?", em Alte Probleme — Neue Lõsungen, Viena, Deuticke, 1934.

4. Lietzmann, Lustiges und Merkwürdiges von Zablen und Formen, Breslau, Ferd. Hirt, 1930.

5. Ball, op. cit. 6. Weismann, Einführung in das mathematische Deriken, Viena, 1937. 7. As ilusões ópticas a seguir, embora não sejam, propriamente, parte

de um livro de Matemática, podem despertar algum interesse — pelo menos para a imaginação.

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FIG. 71 - As três linhas horizontais são paralelas?

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F I G 72 — O quadrado branco é evidentemente maior que o preto. Ou é menor?

FIG. 73 - As duas regiões sombreadas têm a mesma área.

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FIG. 74 — Qual dos dois lápis é o maior? Meça-os e verifique.

FIG. 75 — 0 que vê você? Agora olhe outra vez.

8. Ball, op. cit.

9. O enigma de Epimênides, por exemplo, referente ao cretense que disse que todos os cretenses eram mentirosos (cap. II).

10. Ramsay, Frank Plumpton. Artigos sobre "Matemática" e "Lógica", Enciclopédia Britânica, 13.a edição.

11. Esta expressão pode, talvez, ser compreendida no sentido em que Laplace a usou. Quando êle escreveu sua monumental Méca-nique Celeste, usou abundantemente a expressão, "É fácil ver"", muitas vezes como introdução a uma fórmula matemática a que êle chegara somente após meses de trabalho. O resultado foi que os cientistas que liam seu trabalho quase invariavelmente re­conheciam a expressão como um sinal de perigo, de que algo difícil encontrariam pela frente.

12. Como foi mostrado no capítulo referente ao gugol, há os segui­dores de Russell que estão satisfeitos com a teoria dos tipos ©

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com o axioma da redutibilidade; há os intuicionistas, chefiados por Brouwer e Weyl, que rejeitam o axioma e cujo ceticismo sobre o infinito em Matemática conduziu-os ao ponto de rejeitar grandes partes da Matemática moderna como desprovidas de sen­tido, porque estão interligadas com o infinito; e há os formalis­tas, liderados por Hilbert, que, embora em oposição às crenças dos intuicionistas, diferem consideravelmente de Russell e da escola logística. É Hilbert que considera a Matemática um jogo sem sentido, comparável ao xadrez, e criou a metamatemática, que tem como programa a discussão deste jogo sem sentido e de seus axiomas.

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VII

A C A S O E P R O B A B I L I D A D E

Era uma vez um macaco inteligente Que sempre soprava um fagote Porque, dizia êle, "Pode ser Que dentro de bilhões de anos Eu certamente conseguirei Tocar alguma canção".

SIR ARTHUR KDDINGTON

5 HERLOCK HOLMES tinha permanecido sentado em silêncio por algumas horas com seu longo e esguio tronco curvado sobre instrumentos químicos em que tinha estado a preparar um pro­duto particularmente malcheiroso. Com a cabeça caída sobre o peito, parecia, sob meu ponto de vista, um estranho e magro pássaro, com uma triste plumagem cinzenta e um negro rufo de penas na cabeça.

— Então, Watson — disse êle, repentinamente — você não se propõe investir em ações sul-africanas?

Dei uma demonstração de espanto. Acostumado, como es­tava, com as curiosas faculdades de Holmes, esta súbita intro­missão em meus mais íntimos pensamentos era completamente inexplicável.

— Como é que você sabe disto? — perguntei. Êle rodou em seu banco, com um tubo de ensaio fumegan­

te na mão, e um brilho de satisfação em seus olhos profundos. — Ora, Watson, confesse que foi surpreendido — disse êle. — Fui. — Tenho de fazer você assinar uma declaração sobre isto. — Por quê? — Porque dentro de cinco minutos você estará dizendo que

tudo é tão absurdamente simples. — Garanto que não direi nada disto. — Ora, veja, meu caro Watson — êle colocou o tubo no

suporte e começou a falar com o ar de um professor dirigindo-se

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à classe — não é, na realidade, muito difícil associar uma série de deduções, cada uma dependente de sua antecessora e cada uma bem simples por si mesma. Se, depois disso, fizermos de­saparecer todas as deduções intermediárias e apresentarmos ao auditório apenas o ponto de partida e a conclusão, poderemos produzir um efeito assombroso, embora possivelmente não muito honesto. Ora, não foi nada difícil, com uma inspeção em seus dedos indicador e polegar da mão esquerda, ter a certeza de que você não se propõe investir seu pequeno capital nas minas de ouro.

— Não vejo ligação alguma. — É possível que não; mas posso, rapidamente, mostrar-lhe

uma ligação muito mrima. Eis os elos retirados de uma cadeia muito simples. 1. Havia giz entre seus dedos polegar e indi­cador da mão esquerda, quando você voltou do clubes ontem à noite. 2. Você põe giz aí quando joga bilhar, para dar mais estabilidade ao taco. 3. Você só joga bilhar com Thurston. 4. Você me disse, há quatro semanas, que Thurston tinha uma opção em uma propriedade sul-africana, que expiraria dentro de um mês e que êle queria associá-lo no negócio. 5. Seu livro de cheques está fechado em minha gaveta e você não me pediu a chave. 6. Você não pretende fazer o mvestimento de seu dinheiro deste modo.

— Absurdamente simples! — exclamei. — É verdade! — disse êle, um pouco irritado. — Todo pro­

blema se torna bastante infantil, uma vez que seja explicado a v o c ê . . . 1

• Esta citação das aventuras de Sherlock Holmes, famoso

detetive particular, é uma excelente caricatura do raciocínio por dedução provável. Este método de raciocínio, embora se assemelhe ao procedimento formal do silogismo, é menos rí­gido, menos enquadrado em normas exatas. Por isso, é mais apropriado para o raciocínio diário.

Exemplos deste tipo de raciocinar: *

A. Um fóssil não pode ser enganado no amor. Uma ostra pode ser enganada no amor. Portanto, ostras não são fósseis.

B. Os patos não valsam. Os oficiais nunca deixam de valsar. Toda minha criação é de patos. Portanto, minha criação não é de oficiais,

* Cohen e Nagel, op. cit.

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têm grande força de persuasão. É claro, exato e preciso, ga­rantindo ao nosso pensamento o máximo de validade formal. Assim como em Matemática, certas suposições fundamentais são feitas e delas são deduzidas as conclusões. Mas a maio­ria de nossos pensamentos não são matemáticos, a maior par­te de nossas crenças não são certas, apenas prováveis. Como Locke escreveu, "Em quase tudo o que nos interessa, Deus nos deu apenas o vislumbre, se é que assim posso dizer, da Probabilidade, correspondente, suponho, ao estado de Me­diocridade de Provação em que Êle houve por bem nos co­locar aqui".

É, portanto, uma relação de probabilidade, não de cer­teza, que obtemos da maioria de nossas premissas e conclu­sões. Temos certeza de que uma moeda cairá após ser jogada para o ar. Temos, da mesma forma, certeza de que não po­deremos tirar uma bola preta de uma urna que só contém bolas brancas. Mas a maior parte do que acreditamos não chega a atingir a certeza, embora variem de intensidade de crença. Assim, podemos estar quase certos de que uma moeda comum não dará "cara" 100 vezes seguidas. Ou va­gamente supomos que ganharemos o grande prêmio dos pró­ximos sweepstakes.

Talvez seja possível exphcar esta atitude. Algumas coi­sas acontecem no mundo de acordo com leis naturais, que (a não ser que acreditemos em milagres) operam inexoravel­mente. Assim, por causa da gravitação, as moedas caem. O sol aparecerá amanhã porque os planetas seguem órbitas re­gulares. Todos os homens são mortais porque a morte é uma necessidade biológica. E assim por diante.

Mas sabemos muito pouco a respeito da maioria dos fe­nômenos que nos cercam. Não conhecemos as leis a que obedecem, nem, na verdade, se obedecem a alguma lei. Al­guém que seja dado a pregar moral a respeito das hmitações humanas não deve ir além de casos triviais para evitar con­firmações assustadoras. Podemos predizer os movimentos de planetas a milhões de milhas no espaço, mas ninguém pode predizer se cairá "cara ou coroa" numa moeda ou a combi­nação em um par de dados, Acontecimentos desta espécie

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e outros sem conta atribuímos ao acaso. Mas acaso é me­ramente um eufemismo de ignorância. Dizer que um acon­tecimento é determinado pelo acaso é declarar que não sa­bemos como êle é determinado.

Contudo, mesmo dentro do reino do acaso, sentimos uma certa regularidade, uma certa simetria — uma ordem dentro da desordem — e, assim, a respeito de acontecimentos que atribuímos ao acaso, formamos uma gradação de crença ra­cional. A teoria da probabilidade considera o que é parado­xalmente chamado de 'leis do acaso". Parte de sua analise crítica é uma tentativa de formular regras sobre o quando e como a Matemática pode ser empregada para medir a razão de probabilidade. Contudo, devemos tornar bem clara a sig­nificação de probabilidade, antes de ser possível passar a uma consideração de suas regras.

Embora a maioria de nossos julgamentos seja baseada na probabilidade e não na certeza, raramente dedicamos um pensamento cuidadoso à mecânica de tal método de raciocí­nio. No laboratório, nos negócios, como jurados ou na mesa de "bridge", os julgamentos são feitos por dedução prová­vel. Poucos possuem o poder de um Sherlock Holmes ou podem fazer tais deduções sucessivas. Contudo, em quase to­do o raciocínio diário, todos somos chamados a representar o papel de detetive amador, lógico e matemático.

Quando o dia está nebuloso e quente, dizemos "prova­velmente vai chover". O meteorologista pode precisar de evi­dências melhores antes de se aventurar a tal predição. Êle quererá saber a pressão barométrica, as isóbares e tabelas de precipitação. Mas o homem comum faz sua predição com muito menos coisas. Dinheiro fácil, abundante e misteriosa­mente ganho durante a época da proibição nos Estados Uni­dos (julgamos mesmo sem consultar o pessoal de Bradstreet) foi fruto, provavelmente, da venda ilícita de bebidas. E o homem que recebe alguns pontapés por baixo da mesa de "bridge" pode deduzir que está, provavelmente, errando no leilão, seja êle negociante ou cientista.

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E assim raciocinamos em assuntos que vão do mais tri­vial ao mais importante, fazendo uso freqüente de palavras e expressões como: "provável" e "a probabilidade é", sem, porém, ter uma idéia precisa do que significa probabilidade. Contudo, não é por necessidade de definições. É verdade que cientistas práticos têm, geralmente, deixado a tarefa de definir e interpretar a probabilidade aos filósofos, convenci­dos, talvez, do aforismo gaulês de que a ciência está conti­nuamente progredindo porque nunca está certa de seus re­sultados. Mas, enquanto os cientistas se satisfazem em de­senvolver os usos da probabilidade matemática e em aperfei­çoar seus métodos, os filósofos e matemáticos têm, repetida­mente, tentado defini-la.

Dentre muitas opiniões e teorias conflitantes, salientam--se três principais interpretações.

O ponto de vista subjetivo da probabilidade, embora algo fora de moda, manteve, em certa época (particularmente du­rante o último século), uma posição bastante respeitável. Um dos seus principais adeptos e expositores foi Augustas De Morgan, o célebre lógico e matemático. Êle pensava que probabilidade se referia a um estado de espírito, ao grau de certeza ou incerteza que caracteriza nossas crenças. Este não é um ponto de vista inteiramente errôneo; as principais dificuldades que acarreta, como veremos, aparecem quando tentamos justificar um cálculo de probabilidade baseado nes­tes fundamentos.

Uma proposição ou é falsa, ou é verdadeira,2 mas nos­sos conhecimentos são, na maior parte das vezes, tão limita­dos que se torna impossível estarmos racionalmente certos, seja da verdade, seja da falsidade. Para ter uma crença ra­cional, devemos possuir algum conhecimento a ela concer­nente. Ocasionalmente, tal conhecimento pode ser suficien­te para justificar nossa certeza de que a proposição é verda­deira ou falsa. Assim, podemos estar certos de que Sócra­tes não era cidadão americano; e podemos, igualmente, es­tar certos de que Hitler deveria ter permanecido como pin-

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tor de paredes. Por outro lado, entre os extremos da certe­za, há toda uma gama de variações de crenças correspondentes aos graus de nosso conhecimento.

De certo modo, é indubitavelmente certo que nossas cren­ças racionais são subjetivas. Contudo, se estivermos conven­cidos da verdade ou falsidade objetivas de todas as propo­sições, não podemos, se quisermos ser racionais, permitir--nos ser guiados pela mera intensidade de crença. Por ques­tão de princípios, são infinitamente preferíveis as conclusões falsas, mas baseadas em conhecimento limitado e raciocínio correto, do que resultados corretos, obtidos com raciocínio falso. Somente assim é que nos aproximamos da era da razão.

Além disso, pensamos que, se a relação de probabilidade deve ser tratada matematicamente, deve fornecer-nos melhor material para avaliação do que mera força de crença. Na maior parte dos casos, não se pode dar um valor numérico à relação de probabilidade e, contudo, só pode ser considera­da pelo matemático quando puder ser medida e contada. Se a probabilidade deve servir para descrever certos aspec­tos do mundo em termos de fração, deve poder ser expressa como um número. Quando uma coisa não pode acontecer, sua probabilidade é 0; se houver certeza de acontecer, sua probabilidade é 1. Qualquer probabilidade entre estes dois extremos será expressa por uma fração entre zero e um. Mas, para formar esta fração, há necessidade de medida e conta­gem, e como poderá o matemático medir "intensidade de crença'? Isto, no mínimo, é um problema de psicólogo. Mes­mo que fosse inventado um aparelho para medir intensidade de crença, seu valor seria pouco maior que o do revelador de mentiras, esta jóia da jurisprudência. As pessoas variam amplamente em suas crenças baseadas no mesmo conjunto de fatos. O que é perfeitamente evidente para um homem é absolutamente sem razão para outro; e nossas crenças, mui­tas vezes vagamente concebidas e frouxamente estabelecidas, estão muito interligadas às nossas -emoções e aos nossos pre­conceitos para que se justifique levar em consideração umas sem os outros,

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Uma das dificuldades provindas do ponto de vista sub­jetivo da probabilidade resulta do princípio de razão insufi­ciente. Este princípio, base lógica em que repousa o cálculo da probabilidade de acordo com o ponto de vista subjetivo, estabelece que se ignoramos completamente as diferentes ma­neiras pelas quais um acontecimento pode ocorrer e, por isso, não temos base razoável para preferência, consideraremos co­mo ocorrendo de um modo ou de outro. Desde que foi apre­sentado pela primeira vez por James BernoulH, este princípio tem sido exaustivamente analisado pelos matemáticos. Gomo se apoia na ignorância, podíamos concluir que o cálculo da probabilidade era mais preciso quando empregado por aque­les que tivessem uma "ignorância igualmente equilibrada". Por mais que os homens se aproximem deste ideal, os filóso­fos e matemáticos se têm ainda em maior estima e, por isso, o princípio foi deixado de lado.

Contudo, êle contém uma parte da verdade e nenhum cálculo da probabilidade consistente pode ser desenvolvido sem, de algum modo, depender dele. Êle tem, principal­mente, um critério negativo, no sentido de que não se pode dizer que dois acontecimentos são igualmente prováveis se há razões para preferir um ao outro.

Quando o princípio de razão insuficiente é usado sem grande precaução, faz surgirem contradições. Dois exem­plos: vejamos o caso de um macaco, ao qual se deu um certo número de cartas, cada uma com uma palavra inglesa es­crita nela. Há igual probabilidade de que, qualquer que seja o modo pelo qual êle arrume as cartas, forme, ou não, uma frase inglesa, com algum sentido? Pelo princípio da razão insuficiente, isto poderia ocorrer, embora seja eviden­temente absurdo. Ou, não havendo nenhuma evidência re­levante de que Marte seja habitado ou não, poderíamos con­cluir que é de /2 a probabilidade de "Marte ser habitado ex­clusivamente por estúpidos" e "Marte ser habitado exclusi­vamente por cupins". Mas isto nos coloca ante o caso im­possível de três alternativas exclusivas todas igualmente pos­síveis ou n ã o . 3

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Uma teoria muito mais viável e amplamente aceita e que evita muitas destas dificuldades é a freqüência relativa ou interpretação estatística. Em grande parte, este ponto de vista é responsável pela ampliação do emprego da probabi­lidade, não só em Física e em Astronornia, como também em Biologia, Ciências Sociais e nos negócios. A interpreta­ção estatística se aproxima do ponto de vista de Aristóteles, q ue o provável é o que normalmente acontece. Probabili­dade é considerada como a freqüência relativa em que um acontecimento ocorre em uma certa classe de acontecimentos. Assim, a probabilidade de um acontecimento é expressa co­mo uma razão matemática definida que é liipotèticamente atribuída ao acontecimento. A hipótese pode ser verificada racionalmente (mostrando, por exemplo, baseados em nossos conhecimentos das causas mecânicas, que uma moeda ou um par de dados deve cair de certa forma) ou experimental­mente, mostrando que a moeda ou o par de dados cai, de fato, daquela forma.

Suponhamos que joguemos a moeda, de qualquer ma­neira. Não possuindo nenhuma informação especial, não há razão para predizer como irá cair, se "cara" ou "coroa". Se fôr jogada um grande número de vezes e a relação entre caras e coroas fôr anotada, suponhamos que as seguintes fre­qüências tenham sido obtidas:

TENTATIVAS RESULTADOS

15 6 caras; 9 coroas 20 9 caras; 11 coroas 30 16 caras; 14 coroas 40 21 caras; 19 coroas 80 41 caras; 39 coroas

150 74 caras; 76 coroas

Observamos que a razão de caras em relação ao número total de tentativas, à proporção que o número destas aumen­ta, se aproxima, cada vez mais, da fração & Isto representa a freqüência relativa da classe de caras, na classe maior das tentativas. Avançamos, então, para uma predição geral em um grande número de situações particulares e supomos que o futuro será consistente em relação ao passado.

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ACASO E PROBABILIDADE

Contudo, consideremos, por um momento: que justificati­va existe para tal suposição? Tendo executado nossa expe­riência e determinado a freqüência relativa, dizemos, agora, que a probabilidade de obter cara é %. Evidentemente, esta declaração é uma hipótese. Experiências posteriores pode­rão servir para reforçar nossa crença nesta hipótese ou obri­gar-nos a modificá-la ou a abandoná-la. A suposição (ba­seada em nossa experiência) é que, em um grande número de casos, aparecerão caras tantas vezes quanto coroas. Se os resultados não corroboram a hipótese, concluímos que a moe­da talvez seja mais pesada de um lado que do outro. Mas é importante recordar que, como a demonstração não é ló­gica e sim experimental, ela nunca é completa, é sempre su­jeita a experiências posteriores. Uma prova lógica só é possível se são conhecidas todas as causas que afetam um acontecimento. Obviamente, esta situação não pode surgir fora da própria Matemática. Assim, a verificação de uma hipótese pela experiência só pode mostrar que, na prática, a freqüência relativa se aproxima da probabilidade predita — que nossas suposições nascem de nossa experiência.

É oportuno mostrar como o método lógico ou dedutivo de demonstração difere do experimental. "O processo de indução, básico em todas as ciências experimentais, é ba­nido para sempre da Matemática rigorosa..."4 Para se provar uma proposição em Matemática, mesmo um enorme número de exemplos de sua validade não seria suficiente, já que uma única exceção seria o bastante para anulá-la. As proposições matemáticas só são verdadeiras se não conduzi­rem a contradições. Mas, fora da Matemática, em todas as outras atividades humanas, tal restrição teria um efeito para­lisante. O processo científico se apoia na mesma convenien­te regra de bolso que nos guia nos assuntos práticos: uma hipótese é válida se nos conduz a resultados corretos mais freqüentemente do que a errados; as verificações experimen­tais são definitivas — até que a experiência seguinte venha a modificá-las.

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FIG. 76

A solução da maioria dos criptogramas depende, em larga escala, de certo conhecimento estatístico, tanto quanto de deduções sutis. Holmes tirou seu método de solução de um já referido por Edgar Allan Poe em The Gold Bug.

Tendo verificado, contudo, que os símbolos substituíam as letras e tendo aplicado as regras que nos guiam em todas as formas de mensagens secretas, a solução foi bastante fácil. A primeira mensagem que me foi submetida era tão curta que me foi impossível dizer, com confiança, que o símbolo "J se re­feria à letra E. Como você sabe, o E é a letra mais comum do alfabeto inglês e sua predominância é de tal forma que, mesmo em uma curta frase, podemos esperar encontrá-la mais freqüentemente. Dos quinze símbolos da primeira mensagem,

"A Aventura dos Dançarinos", da qual foi selecionado o incidente do início deste capítulo, pode servir, mais uma vez, para mostrar como o método estatístico serve à dedução provável.

Holmes se vê frente a um criptograma composto de várias mensagens (Fig. 76).

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quatro eram iguais e, portanto, era razoável que êle fosse con­siderado como o E. É verdade que, em alguns casos, a figura tinha uma bandeira e em outros, não; mas era provável, pelo modo que as bandeiras eram distribuídas, que eram usadas para dividir a frase em palavras. Aceitei isto como uma hipótese

e anotei que E era representado pelo símbolo ^ .

Mas, então, surgiu a verdadeira dificuldade da investiga­ção. A ordem das letras inglesas, depois do E, não é, em ab­soluto, muito marcante e qualquer preponderância que possa apresentar-se na média de uma página impressa pode ser inver­tida em uma única e curta frase. Falando de um modo geral, T, A, O, I, N, S, H, R, D e L é a ordem numérica em que tais letras aparecem, mas T, A, O e 1 estão mais ou menos em­parelhadas e seria um trabalho sem fim tentar cada combina­ção até que se obtivesse algum sentido. Esperei, por isso, por mais material. Em minha segunda entrevista com o Sr. Hílton Cubitt, êle me deu duas outras frases curtas e urna mensagem que parecia — por não haver bandeiras — ser uma única pala­vra. Os símbolos são esses. Ora, na palavra independente, eu já tinha achado dois E, a segunda e a quarta letras em uma palavra de cinco. Poderia ser "sever" (arrancar) ou '"kvcr" (ala­vanca) ou "never" (nunca). Parece não haver dúvida de que a última, como resposta a um apelo, é a mais provável e as circunstâncias apontavam como sendo uma resposta escrita pela senhora. Aceitando isto como correto, podemos agora dizer

que os símbolos $ ·-[ ^ substituem as letras N, V e R.

Mesmo assim, eu estava em grande dificuldade, mas um feliz pensamento me fêz descobrir muitas outras letras. Ocor­reu-me que, se estes apelos vieram, como eu pensava, de alguém muito mtimo da senhora, no início de sua vida, uma combina­ção que contivesse dois E com três letras entre eles poderia muito bem ser o nome "ELSIE". Examinando esta possibili­dade, verifiquei que tal combinação formava a terminação da mensagem que tinha sido repetida três vezes. Era, certamente, algum apelo a "Elsie". Deste modo consegui meus L, S e i -Mas que apelo seria esse? Havia apenas quatro letras na pa­lavra que precedia "Elsie" e a última era E. Certmente a palavra devia ser "COME" (venha). Tentei todas as outras quatro letras que combinassem com E no final, mas não achei nenhuma que servisse no caso. Assim eu já sabia como eram o C, O e M , e estava em condições de atacar a primeira men­sagem mais uma vez, dividindo-a em palavras e colocando pontos em lugar dos símbolos ainda desconhecidos. Dessa for­ma, ela surgiu dessa maneira:

. M .ERE ..E SL.NE

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226 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Ora, a primeira letra só podia ser A, o que foi uma aesco-berta muito útil, já que ocorre não menos de três vezes nesta curta frase e o H é também aparente na segunda palavra. En­tão, teremos

AM HERE A.E SLANE. Ou, enchendo os espaços vazios do nome, AM HERE ABE SLANEY (Estou aqui Abe Slaney).

Apesar dos brilliantes sucessos obtidos pelo método esta­tístico, ele se presta a sérias objeções. Embora algumas das dificuldades possam ser remediadas sem prejudicar grande­mente sua utilidade, outras não podem ser tão facilmente postas de lado.

O conceito do limite, que tem papel tão importante em muitos ramos da Matemática, também é usado em Estatís­tica, embora seu emprego aqui seja dificilmente defensável, porque este conceito aparece apropriadamente apenas em ligação com processos infinitos. O estatístico o usa para de­clarar que as freqüências se aproximam de uma razão limite, mas o estatístico, bem como o físico, não lida com infinito — antes com fenômenos que, embora vastos e complexos, são finitos e limitados. O fato de uma experiência produzir o mesmo resultado mil vezes não é prova de que os resultados seguintes serão consistentes. Até Scbeherezade pode contar uma história desfavorável na milésima segunda noite. Fre­qüências relativas dificilmente podem ser consideradas como aproximando-se de um limite matemático. O conceito de limite tal como usado na teoria da freqüência relativa guarda, de modo geral, a mesma relação com o conceito matemático de limite que o raciocínio por dedução provável com o si­logismo.

Fazem-se, muitas vezes, referências à probabilidade de acontecimentos passados, embora tal probabilidade, em termos de freqüência relativa, não tenha, aparentemente, nenhuma significação. "É improvável que John Wilkes Booth tivesse escapado dos soldados federais após o assassinato de Lincoln"; ou "Henrique VIII não estava, provavelmente, tão interessado em fazer a Reforma, quando se separou do Papa, como em

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ACASO E PROBABILIDADE 227

ficar livre de Catarina de Aragão". Como seriam avaliadas tais declarações se a probabilidade é a freqüência relativa de um acontecimento dentro de uma classe de acontecimentos? Na verdade, seja o acontecimento passado ou futuro, o que se quer dizer por probabilidade de um único acontecimento?

Qualquer que seja a interpretação de probabilidade, este problema é perturbador. Talvez seja a triste necessidade a responsável pela opinião mais aceita de que a probabilidade não tem nenhuma significação quando aplicada a um único acontecimento, seja passado ou futuro.

De acordo com a interpretação estatística, a probabili­dade só pode referir-se a um único acontecimento em rela­ção a uma classe de acontecimentos semelhantes. Mas isto, muitas vezes, conduz à confusão. Todos concordarão em que o raciocínio seguinte é absurdo: em uma certa comuni­dade, o registro de nascimentos dos últimos 10 anos indicava uma razão de 51 crianças do sexo feminino para 50 do mascu­lino. As primeiras 35 crianças nascidas em determinado mês foram todas meninas. O Sr. Jones, pai em perspectiva, es­tá, portanto, bem certo de que tudo indica que sua mulher o presenteará com um varão, por causa da 'lei das médias". *

Por outro lado, existe um mal-entendido muito comum e da mesma natureza ao qual muitos se apegam intuitiva­mente, de que, se X consegue cinco setes em várias jogadas sucessivas de dados, sua probabilidade de conseguir outro sete é menor do que a de obter outro qualquer número. É difícil acreditar que a probabilidade matemática, a probabi­lidade de um acontecimento futuro, quando os acontecimen­tos são independentes, não é afetada pelo que já aconteceu.

Em nossa vida diária, nós, instintiva e deliberadamente, rejeitamos este princípio. Quando a lógica diz "Você deve", respondemos várias vezes "Agora não". Charles S. Peirce, o famoso pragmático, ilustra este ponto de maneira soberba: "Se um homem tivesse de escolher entre tirar uma carta de

* Para não deixar o leitor em suspenso, podemos dizer que Jo­nes está em situação tão incerta quanto se fosse o primeiro a chegar ao hospital.

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um baralho com 25 cartas vermelhas e uma preta, ou de outro com 25 cartas pretas e uma vermelha; e se o fato de tirar uma carta vermelha o transportasse para a fehcidade eterna e o de sacar uma preta o destinasse a penas sem fim, seria tolice negar que êle teria de preferir o baralho com maior quantidade de cartas vermelhas, embora, pela nature­za do risco, êle não pudesse repetir a tentativa. Não é fácil conciliar isto com nossa análise de concepção de acaso. Mas suponhamos que êle tivesse escolhido o baralho com mais cartas vermelhas e tivesse tirado a preta. Que consolo teria? Êle poderia dizer que agiu de acordo com a razão, mas isto mostraria apenas que sua razão não tinha valor nenhum. E, se êle tivesse achado a carta vermelha, como poderia enca­rar esse fato de outro modo que não o de um feliz incidente? Êle não poderia dizer que, se tivesse tirado do outro baralho, poderia sair a carta errada, por causa de uma proposição hi­potética tal como: "Se fosse A, então B' não significa nada, com referência a um único caso". 5

Finalmente, uma breve alusão a uma interpretação de probabilidade, atribuída, em geral, a Peirce, a qual parece evitar algumas das dificuldades inerentes às interpretações já examinadas. 6

Peirce assegura que a probabilidade não se refere aos acontecimentos, mas às proposições. Com algumas modifi­cações, este ponto de vista é apresentado também por John Maynard Keynes em seu notável A Treatise on Probability (Tratado de Probabilidade). De acordo com Peirce, a pro­babilidade não tem nada a ver com intensidade de crença ou com freqüências estatísticas. "Em vez de falar de um acontecimento como "cara", a verdadeira teoria da freqüên­cia discute proposições tais como: esta moeda cairá com cara para cima em uma tentativa". A probabilidade desta propo­sição ser verdadeira deve ser a mesma que a freqüência re­lativa pela qual o acontecimento "cara" ocorre em uma série de tentativas.

Esta interpretação de probabilidade está em melhor po­sição para tratar dos acontecimentos isolados. A declaração "Provavelmente choverá amanhã" significa que as proposi-

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ACASO E PROBABILIDADE 229

ções sobre o estado do tempo, temperatura, pressão baromé­trica etc. insinuam de modo favorável, mais vezes do que desfavoravelmente, proposições do tipo "Provavelmente cho­verá amanhã". Em outras palavras, se, pelos nossos conheci­mentos sobre o tempo, concluirmos essa última proposição, estaremos certos mais vezes do que errados.

Antes de passarmos à consideração de alguns dos teo­remas do cálculo da probabilidade, ainda há uma precaução. Tudo o que se disse até agora conduz sem dúvida a um fato: Nenhuma proposição contém qualquer verdade provável ex­ceto em relação a outro conhecimento. Dizer que uma pro­posição é provável, quando o conhecimento em que se baseia é obscuro ou inexistente, é absurdo. Ê preciso esclarecer que, muitas vezes, fazemos declarações sobre probabilidade sem menção clara sobre qual o ramo do conhecimento a que nos estamos referindo. Isso é tão perrnitido quanto dizer que São Francisco está distante 3.000 milhas, quando é evidente que o que isto significa é que "São Francisco está distante 3.000 milhas de Nova York". Tal como já se frisou, é mais louvável aderir a uma declaração que se manifesta errada, posteriormente, contanto que a evidência de onde tiramos nos­sa conclusão seja a melhor que possuímos, do que apresen­tar uma proposição falsa, baseada em raciocínio falso ou fatos incorretos. Heródoto diz: "Não há nada mais vantajoso para um homem do que receber bons conselhos de si mesmo; por­que mesmo se o acontecimento se apresenta ao contrário das próprias esperanças, a decisão está certa, embora a sorte a tenha feito ineficaz; sempre que um homem age ao contrário de um bom conselho, mesmo tendo sorte, êle consegue o que não tem direito de esperar e, por isso, sua decisão não deixou de ser falsa".

O CÁLCULO DA PROBABILIDADE

Quando moderado, o jogo possui virtudes inegáveis. Contudo, apresenta um curioso espetáculo, repleto de contra­dições. A indulgência com seus prazeres sempre foi maior que a palidez do medo do fogo do Inferno; e os grandes

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230 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

laboratórios e respeitáveis palácios dos seguros apresentam--se como monumentos a uma ciência nascida dos copos do jogo de dados.

O Chevalier de Méré, eufemisticamente chamado de "fi­lósofo do jogo" do século XVII, quis uma informação sobre a distribuição das combinações no jogo de dados. Dirigiu suas perguntas a um dos mais hábeis matemáticos de todos os tempos — o gentil e devotamente religioso Blaise Pascal. Pascal, por sua vez, escreveu para um ainda mais célebre matemático, o Conselheiro da Câmara Municipal de Tou­louse, Pierre de Fermat, e, na correspondência que daí se ori­ginou, a teoria da probabilidade viu a luz do dia pela pri­meira vez.

Pascal não podia abster-se de fazer uma leve censura a De Méré, não porque fosse um jogador, mas pela razão mais séria de não ser De Méré um matemático: "Cor, il a três bon esprit", (escreveu a Fermat) "mais il nest pas géomètre; cest comme vous savez un grand défaut". Na verdade, o Chevalier merecia ainda pior, porque a resposta à sua per­gunta interferiu de tal forma em seus negócios que êle apro­veitou a ocasião para escrever uma diatribe sobre a inutüi-dade de todas as ciências, em particular da Aritmética. E este foi o destino do primeiro cartel cerebral.

O interesse na probabilidade aumentou, encorajado pe­las pesquisas de eminentes matemáticos como Leibnitz, James Bernoulli, De Moivre, Euler, o Marquês de Condorcet e, acima de todos, Laplace. O trabalho deste último, sobre a teoria analítica da probabilidade, levou o cálculo ao ponto em que Clerk Maxwell poderia dizer que é "Matemática pa­ra homens práticos" e Jevons dizer liricamente (citando, sem o saber, Bishop Butler) que a Matemática da probabilidade é "o próprio guia da vida e dificilmente poderemos dar um passo ou tomar uma decisão sem, correta ou incorretamente, fazer uma estimativa da probabilidade". E estas opiniões foram apresentadas antes mesmo que o cálculo tivesse con­seguido seus mais brilhantes sucessos em Física e Genética, bem como em outras esferas mais práticas. 7 Foi realmente

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ACASO E PROBABILIDADE 231

notável, como escreveu Laplace, que "uma ciência que co­meçou com considerações sobre o jogo se tivesse elevado até os mais importantes assuntos do saber humano".

Para desenvolver um cálculo da probabilidade, é neces­sário fazer certas suposições ideais. Particularmente porque um grande número de coisas às quais desejaríamos aplicá-lo não são mensuráveis, devemos ser duplamente cuidadosos pa­ra que os axiomas e postulados que formulemos sejam preci­sos, de forma que o hmite de sua aplicação seja facilmente apreendido. Já dissemos que a probabilidade matemática de um acontecimento está entre 0 e 1. A probabilidade de um acontecimento impossível é 0 e a de um acontecimento certo é 1.

Temos, agora, de definir o que significa "eqüiprovável" (igualmente provável). É uma tarefa bastante difícil; para nossos propósitos, podemos encurtar o caminho empregando uma definição aproximada.

Dois acontecimentos contingentes serão considerados eqüi-prováveis se, seja pela ausência de qualquer evidência ou após considerar todas as evidências relevantes, não se pode esperar um dos acontecimentos, de preferência ao outro.

Talvez o leitor perceba uma incongruência. Mas êle não foi alertado de que nenhuma probabilidade pode ser es­timada onde não haja conhecimento apropriado e relevante? Contudo, aqui é dito que duas proposições, ou acontecimen­tos, podem ser igualmente prováveis, mesmo que não se te­nha nenhum conhecimento sobre eles. Mas aí está a indi­cação! Um pequeno conhecimento é perigoso. Absoluta­mente nenhum é muito mais satisfatório. Para nossos pro­pósitos, invocamos o princípio da razão insuficiente, de acor­do com o qual, na ausência de qualquer conliecimento sobre os dois acontecimentos, eles são considerados igualmente pos­síveis. O leitor deve ter em mente que nossa definição é aproximada — muito aproximada. E, também, que é pos­sível saber que duas quantidades são iguais, sem saber o que são. Assim, uma pessoa pode saber, por um conheci-

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mento generalizado dos jogos, que, no xadrez, os dois lados começam com forças iguais, sem saber, porém, que forças são elas ou qualquer outra coisa a respeito do jogo.

Se supomos, portanto, que uma moeda é simétrica, é eqüiprovável que caia cara ou coroa, pois não há nenhuma outra razão que justifique antecipar um resultado ou o outro.

Se houver um número de modos eqüiprováveis de um acontecimento ocorrer e um número de modos eqüiprováveis de não ocorrer êle, a probabilidade de ocorrência de um acon­tecimento é a razão entre o número de modos em que o acontecimento pode ocorrer e o número total de modos pelos quais êle pode e não pode ocorrer. A moeda pode cair cara ou coroa. A probabilidade de cair cara é, portanto, a relação

^ a r a = 32. Em geral, se chamarmos os modos Cara + Coroa pelos quais os acontecimentos podem ocorrer de favoráveis e os em que eles não podem ocorrer de desfavoráveis, a pro-

F habilidade de um acontecimento é a fração ^=—;—— ·

F + D O ramo da Matemática que considera permutações e

combinações é que trata com o número de diferentes modos em que o acontecimento pode acontecer. É o estudo da pos­sibilidade matemática e fornece o enquadramento ideal para a Matemática da probabilidade.

Os problemas típicos de permutações e combinações têm um aspecto insípido e monótono. Em primeiro lugar, é difí­cil crer que as informações obtidas na resolução de proble­mas deste tipo possam ser de muita valia em outros estu­dos: "Quatro viajantes chegaram a uma cidade em que há 5 hospedarias. De quantos modos eles podem ser alojados, cada um em um hotel?" Nem parece que uma teoria que é usada para determinar de quantos modos diferentes se po­dem arrumar as letras da palavra Mississippi 8 seria útil para determinar seja a física dos átomos, seja os prêmios de se­guro. Apesar de tudo, os teoremas da análise combinatória são a base do cálculo da probabilidade. Temos de saber co­mo calcular o número total de modos diferentes em que um

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ACASO E PROBABILIDADE 233

acontecimento pode ocorrer, antes de querer predizer como êle possivelmente ocorrerá.

Nossa moeda, já bastante usada, nos dá novamente um exemplo. Suponhamos que ela é jogada três vezes sucessi­vas. Os resultados possíveis são:

FIG. 77 — Resultados possíveis ao se jogar uma moeda três ve­zes. As setas indicam os casos de duas caras e uma coroa.

Estes oito resultados possíveis respondem a todas as pergun­tas que podem ser feitas nas permutações e combinações. Mas, além disso, quaisquer outras que surjam no cálculo da probabilidade também podem ser respondidas consultando-se o diagrama. Assim, a probabilidade de obter 3 vezes cara,

a relação -=—;—=r, é —. A probabilidade de obter duas vê-F -f- D 8

zes cara e 1 coroa é a relação dos casos 2, 3 e 5 em todos os

casos possíveis, isto e,

Ora, está claro que a enumeração de todos os casos pos­síveis torna-se, além de fastidiosa, difícil, à proporção que o número deles aumenta. Por essa razão, o cálculo contém muitos teoremas tirados da análise combinatória, que torna desnecessária a enumeração direta.

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ACONTECIMENTOS M U T U A M E N T E EXCLUSIVOS

I. Como existem quatro ases em um baralho, a proba­bilidade de se tirar um ás das 52 cartas é ~ = Mas qual é a probabilidade de se tirar um ás ou um rei de um baralho em uma única tentativa? Esta é a probabilidade de acontecimentos mutuamente exclusivos ou alternativos; se um dos acontecimentos ocorre, o outro não. Um teorema do cálculo estabelece que a probabilidade de ocorrência de um entre muitos acontecimentos mutuamente exclusivos é a soma das probabilidades de cada um dos acontecimentos iso­lados. A probabilidade de tirar um ás ou um rei é, portanto,

13 ' 13 13

Qual a probabilidade de se obter seja um 6 ou um 7 ao se lançar um par de dados? Podemos enumerar os casos favoráveis a 6 ou 7 e, depois, verificar os resultados com o teorema.

11 "ãe*

Se tivéssemos usado o teorema, teríamos achado a soma

das probabilidades separadas, isto é, -Jr + e, logicamen­te, obtido o mesmo resultado.

ACONTECIMENTOS INDEPENDENTES

II. Dois acontecimentos são chamados independentes um do outro se a ocorrência de um não tem, de nenhum

Há 36 combinações possíveis dos dados e 11 são favorá­veis ao acontecimento; assim, a probabilidade de obter 6 ou 7 é

PRIMEIRO DADO SEGUNDO DADO PRIMEIRO DADO SEGUNDO DADO 1 5 1 6 2 4 2 5 3 VI 3 3 VII 4 4 2 4 3 5 1 5 2

6 1

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ACASO E PROBABILIDADE 235

modo, ligação com a do outro. Uma moeda é jogada duas vezes sucessivas. Qual é a probabilidade de se obter 2 caras? O teorema apropriado estabelece que a probabilida­de da ocorrência simultânea de dois acontecimentos indepen­dentes é o produto das probabilidades separadas de cada um dos acontecimentos. A probabilidade de se obter 2 ca­ras é, portanto, -|- X -j- = E , como vimos anterior­mente, pela enumeração direta, a probabilidade de se ter 3 caras sucessivas é 1 / 8 . Verificando pelo teorema, obtemos

FIG. 78 — Cada quadrado representa um resultado eqüipro­vável. Por exemplo, o quadrado marcado A representa tirar um 4 com um dado e 5 com o outro. Das 36 possibilidades,

cinco dão como resultado um 6, e seis dão um 7.

Considere-se, agora, um problema ligeiramente diferen­te na forma:

Ao se jogar uma moeda duas vezes, qual é a probabili­dade de se ter, pelo menos, uma vez cara? Este problema

VI VII VI VII

VI VII VI VII

VI VII A VII

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pode ser resolvido facilmente, sem enumeração, verificando--se a probabilidade do acontecimento desejado não acontecer e subtraindo-se esta fração de 1. Como a probabilidade de se obter duas coroas, que é a única alternativa de obten­ção de pelo menos uma cara, é J£, a probabilidade de se ter pelo menos uma cara é 1 — = %.

D'Alembert, em seu artigo sobre a probabilidade na fa­mosa Encyclopédie, revelou que êle não tinha entendido o teorema de multiplicar probabilidades independentes. Du­vidou que a probabilidade ultimamente mencionada fosse %, raciocinando que, se uma cara aparecesse na primeira tenta­tiva, o jogo terminara e não havia necessidade de uma segun­da. Enumerando apenas três casos possíveis: cara, coroa--cara e coroa-coroa, êle chegou à probabilidade de V 3 . O que êle deixou de considerar foi que a primeira alternativa era, em si mesma, tão possível quanto a de obter uma coroa.

Embora DAlembert consistentemente entendesse mal os fundamentos da probabilidade, algumas de suas idéias pre­nunciaram a interpretação estatística. Sugeriu que, fazendo--se experiências, poderiam ser obtidas aproximações das pro­babilidades desejadas.

Muito antes que a onda de entusiasmo pela estatística varresse a Europa, nos meados do século XDC, as experiên­cias sugeridas por D'Alembert foram realizadas. O natura­lista do século XVIII, Conde Buffon, realizou muitas delas, sendo a mais famosa seu "Problema das Agulhas". Uma superfície plana é cortada por hnhas paralelas (como na Fig. 79), sendo H a distância entre elas. Tomando uma agulha, cujo comprimento L é menor que H, Buffon deixou-a cair so­bre a superfície riscada. Êle considerou favorável a tenta­tiva em que a agulha caía sobre uma hnha, e desfavorável quando ela ficava entre duas hnhas. A descoberta interes­sante que fêz foi que a razão entre sucessos e fracassos era uma expressão em que aparecia n. Na realidade, se L fôr

igual a H, a probabilidade de um sucesso é Quanto

maior o número de tentativas, tanto mais próximo o resul-

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ACASO E PROBABILIDADE 237

tado se torna do valor de n, mesmo até à terceira casa decimal.

Experiências primorosas foram realizadas em 1901 por um matemático italiano, Lazzerini, que realizou 3.408 tenta­tivas a TI dando um valor igual a 3,1415929, com erro de apenas 0,0000003. Alguém dificilmente poderia esperar en-

FIG. 79 — 0 Problema da Agulha do Conde Buffon.

contrar melhor exemplo da interligação de toda a Matemá­tica. Até agora já vimos n de três maneiras: como razão entre a circunferência de um círculo e seu diâmetro; como hmite de séries infinitas; como medida de probabilidade.

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PROBABILIDADE COMPOSTA

III. O teorema que trata da probabilidade de aconte­cimentos independentes pode, algumas vezes, ser vantajo­samente aplicado em casos onde as probabilidades não são realmente independentes.

Uma bolsa contém uma bola branca (B) e duas pretas (P); a probabilidade de se tirar uma bola preta é de V3; uma bola branca, V3 . Suponhamos que se façam duas reti­radas sucessivas da mesma bolsa, recolocando-se a bola de­pois de cada retirada. Ora, a probabilidade de tirar duas

B sucessivas ^ j X | = | ; a de tirar duas P sucessivas,

~ X -| = -i- . Mas, se depois de cada retirada as bolas não forem recolocadas, as retiradas não são mais inde­pendentes, mas dependentes umas das outras. Depois de cada tentativa, a nova probabilidade deve ser calculada, para formar a correta probabilidade composta. Depois de se tirar uma bola, a probabilidade de se tirar duas

P sucessivas, sem se recolocar, é -| X -i- = ~ . A probabili­dade da segunda retirada depende do que aconteceu com a primeira. Isso é mostrado pelo fato de que a probabilidade de se tirar duas B sucessivas é 0, se não se fizer a recoloca­ção, enquanto será 1 / 9 se a B fôr recolocada após a primeira tentativa.

IV. Até agora consideramos a probabilidade de acon­tecimentos que são mutuamente exclusivos, dependentes e independentes. Se esses fatores forem variados e combina­dos, novos e interessantes métodos surgirão.

Uma bolsa contém 6 B e 6 P. Se tirarmos uma bola, dois acontecimentos são eqüiprováveis — ser B ou P. Isto pode ser escrito da seguinte forma: a) (1) B, (2) P = 21

Os resultados possíveis em duas retiradas são: b) (1) BB, (2) BP, (3) PB, (4) PP = 22

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ACASO E PROBABILIDADE 239

Em três retiradas, há oito resultados possíveis: c) (1) BBB (3) BPP (5) PBP (7) PPB

(2) BPB (4) BBP (6) PBB (8) PPP = 23

Em quatro retiradas, há dezesseis: d) (1) BBBB (5) PBBB (9) PBPB (13) PPPB

(2) BBBP (6) BBPP (10) BPBP (14) PPBP (3) BPBB (7) BPPB (11) PBBP (15) PBPP (4) BBPB (8) PPBB (12) BPPP (16) PPPP

= 24

Então, de modo geral, em n retiradas há 2n resultados possíveis.

Mas esta informação é a indicação para um método mais valioso! Vamos buscar um importante teorema em outro ra­mo da Matemática — o teorema do binômio.

Suponhamos que B simbolize a retirada de uma bola branca e P de uma preta. Desenvolvendo a expressão (B -f-P) 2 , obteremos:

B2 _|_ 2BP + P 2.

Ora, esta expressão algébrica retrata, de forma compac­ta, o que foi explicitamente mostrado em b) acima, isto é: todos os resultados possíveis de duas retiradas de uma bol­sa que contenha o mesmo número de bolas brancas e pretas.

Assim: 9 1) BB = £ 2 (2) BP (3) PB (4) PP = P 2

Três retiradas de tal bolsa são representadas pela ex­pressão:

B 3 4_ 3B2P + 3 B P 2 + Ps porque, novamente:

(1) BBB = B3

= 2BP

(2) BBP (3) BPB (4) PBB

= 3 B 2 P

(5) PPB (6) PBP (7) BPP

= 3 B P 2

(8) PPP = P 3

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Há, portanto, oito resultados possíveis, um de tirar três Bran­cas, três de tirar duas Brancas e uma Preta, três de tirar duas Pretas e uma Branca e uma de tirar três Pretas.

As probabilidades respectivas são: JL JL JL e L 8 ' 8 ' 8 8 '

Para n retiradas sucessivas, o teorema do binômio dá: 1 0

(B + P)n = B» + n B ^ P + n^n Bn~2P2

Pode-se ainda mostrar outra aplicação do teorema do binômio: Uma bolsa contém 3 Brancas e 2 Pretas. Depois de cada retirada, a bola é recolocada. Qual é a probabili­dade de se obter 3 B e 2 P em 5 tentativas?

Ora, para cada retirada, a probabilidade de uma B = 3/5; de uma P = V 5 . Fazendo-se o desenvolvimento:

(B -f p)« = B 5 + 5B^P -f 10B3P2 -f 10B2P3

+ 5BP 4 - f P 5 .

O resultado, a probabilidade que estamos querendo, é B 3 P 2 , já que representa 3 B e 2 P. Há 10 destes resultados possíveis, uma vez que o coeficiente do termo B 3 P 2 é 10. A probabilidade desejada, que é composta, deve portanto

ser: 10 X ( f ) 3 X ( f ) 2 =

Deve ter ficado ainda mais evidente, agora, como são limitados os casos em que o cálculo das probabilidades é aplicável. Em nenhum dos muitos exemplos que aparecem na página 218, por mais apropriadamente que tenham ilus­trado o conceito de probabilidade, nosso aparelhamento ma­temático pode ter alguma aplicação. Na verdade, o cálculo da probabilidade, tal como todos os outros ramos da Mate­mática, não pode ser encarado como na fonte de informa­ções do mundo físico. Além disso, falando matematicamen­te, é possível definir o que seja eqüiprovável, mas é, sem dú­vida, impossível encontrar dois acontecimentos no mundo físi­co que sejam realmente eqüiprováveis.

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Eqüiprobabilidade, no mundo físico, é simplesmente uma hipótese. Podemos proceder com o máximo cuidado e usar os mais precisos instrumentos científicos para verificar se uma moeda é simétrica. Mesmo que fiquemos satisfeitos a respeito disso, e que a evidência seja conclusiva, nosso co­nhecimento, ou melhor, nossa ignorância, sobre o enorme nú­mero de outras causas que afetam a queda da moeda é tão vasto que o fato dela ser simétrica se transforma em mero detalhe. Assim, a declaração de "cara e coroa são eqüipro-váveis" é, no máximo, uma suposição.

Contudo, o cálculo da probabilidade só é vantajoso de­pois que tivermos feito tal suposição — uma suposição que, como todas as hipóteses na ciência, deve justificar sua exis­tência por sua utilidade e que temos de estar preparados para modificar ou rejeitar, quando a experiência deixar de confirmá-la.

Seguindo este procedimento, a Matemática da probabili­dade tem obtido notável sucesso na ciência e no comércio. Nos séculos XVIII e XIX, quando a ciência e a filosofia es­tavam quase totalmente sob o encanto das idéias mecâni­cas, supunha-se, entusiasticamente, que o cálculo da probabi­lidade suplementaria toda "ignorância e fraqueza da mente humana". O cálculo iria ajudar a iluminar as regiões do conhecimento que o farol da ciência ainda não houvesse ilu­minado muito brilhantemente.

É facilmente compreensível que uma filosofia dogmáti­ca de materialismo fosse popular num mundo que havia tes­temunhado a parada de conquistas científicas, de Kepler e Galileu a Newton e Laplace. O conceito materialista é ba­seado em uma fé ingênua na regularidade predominante e na ordem periódica dos fenômenos naturais, desde o com­portamento dos átomos até nosso próprio comportamento ao nos levantarmos pela manhã. Os homens esperavam, e a his­tória da ciência, até recentemente, os encorajava a acreditar, que a ciência explicaria todos os milagres e descobriria todos os segredos; que o futuro estava contido no passado e, por isso, a êle se assemelharia; e que, conseqüentemente, as expe­riências do passado auxiliariam a predizer o futuro.

16

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MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Como um dos maiores expoentes deste ponto de vista, Laplace depositava esperanças muito mais altas nos limites do conhecimento que o modesto crepúsculo de mediocridade, no qual Locke pensou que o cérebro humano teria de tatear para sempre.

"Temos, por isso", escreveu Laplace, "que encarar o pre­sente estado do universo como resultante do estado anterior e como causa do que virá. Se tivéssemos, por um instante, uma inteligência que pudesse compreender todas as forças que animam a natureza e a respectiva situação dos seres que a compõem — uma inteligência suficientemente vasta para poder submeter esses dados a uma análise, — ela iria abarcar em uma mesma fórmula os movimentos dos maiores corpos do universo e os dos menores átomos; para ela, nada seria incerto, e o futuro, assim como o passado, estaria presente a seus olhos". 1 1

Quando Napoleão perguntou a Laplace onde, em sua monumental Mécanique celeste, havia qualquer referência à Divindade, dizem que eles respondeu: "Majestade, não tenho necessidade desta hipótese". Ouvindo Napoleão contar esta história, Lagrange observou "Esta, Majestade, é uma hipótese maravilhosa". A Física moderna, assim como toda a ciência moderna, é tão humilde como Lagrange e tão agnóstica quan­to Laplace. Não professando nenhum Deus, não se atribui nem a onisciência divina, nem a possibilidade de vir a atin­gi-la.

Esperava-se, então, nos séculos XVIII e XIX, que uma Utopia em moral e na política, bem como nas Ciências Físi­cas, não estava muito distante. Se as leis naturais exatas desses assuntos ainda não haviam sido descobertas, não ha­via dúvida de que elas existiam. Enquanto isso, o cálculo da probabilidade iria suprindo a deficiência. Embora os fe­nômenos sociais ainda não tivessem sido dominados em de­talhe, como os movimentos de muitos planetas, estava-se cer­to de que apresentariam a mesma regularidade, quando es­tudados em grande escala. A probabilidade seria um expe-

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diente temporário, uma folha de requisição militar que os cientistas iriam preencher em seu devido tempo.

As esperanças eram enormes e, entre os que esperavam o máximo, estava o Marquês de Condorcet. Êle pensava que a teoria da probabilidade poderia ser aplicada eficazmente nos julgamentos dos tribunais, para diminuir o perigo das decisões errôneas. Para este fim, êle propôs que um grande aumento de juízes em todos os tribunais forneceria uma gran­de quantidade de opiniões independentes que, quando com­binadas, garantiriam a verdade, neutralizando os pontos de vista extremamente opostos e prejudiciais. Infelizmente, Con­dorcet deixou de levar em consideração muitos outros fato­res. E o menor deles seria a lógica da guilhotina. Pois foi a ela, bastante irônica e tragicamente, que o julgamento de um tribunal revolucionário, composto de muitos juízes, man­tendo todos eles os mesmos pontos de vista extremados, even­tualmente o condenou.

Na atmosfera menos aquecida do século XIX, alguns dos pontos de vista de Condorcet foram sustentados se não em moral e política, pelo menos na ciência e na indústria. A visão estatística da natureza mudou o mapa da ciência, nos séculos XIX e XX, tanto, talvez, quanto as invenções e des­cobertas de laboratório. Na verdade (e isto não pode ser frisado com muita intensidade), a visão estatística penetrou de tal forma no pensamento científico moderno, assim como nos métodos, que foi muito mais longe do que Condorcet poderia ter imaginado. Mas o materialismo básico de sua época, que acompanhava esta fé na probabilidade, desvane­ceu-se em grande parte.

Em vez de servir de expediente, de substituto das leis naturais ainda não reveladas, a dedução estatística veio em tempo para suplantá-las quase completamente. Isto signi­fica uma mudança na interpretação da realidade física, com­parável, em importância intelectual, à Renascença. Com isto em mente, os físicos modernos muitas vezes se referem à Renascença da Física Moderna.

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MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Em sua grande obra sobre Teoria Analítica do Calor, Fourier apresentou o princípio que melhor exemplifica aqui­lo a que já nos referimos como ponto de vista clássico da Fí­sica — na realidade de todas as leis naturais. "As causas primárias são desconhecidas por nós, mas se sujeitam a leis simples e constantes, que podem ser descobertas pela obser­vação e cujo estudo é objeto da filosofia natural". E pros­seguiu: "O estudo profundo da natureza é a mais fértil fonte das descobertas matemáticas.. . Não pode haver lin­guagem mais simples, mais livre de erros e de pontos obscu­ros, o que quer dizer, mais credenciada para apresentar as relações das coisas naturais. . . Reúne fenômenos os mais diversos e descobre as analogias ocultas que os unem".

O cientista de hoje, em particular o físico, concordaria plenamente com a última parte desta citação. Concordaria que a Matemática é a linguagem ideal para expressar os re­sultados de suas observações e até mesmo as incertezas de suas predições. Mas discordaria totalmente de Fourier quan­do êle diz que as leis que governam os fenômenos naturais são "simples e constantes".

Em vez de sustentar a opinião de que a natureza obede­ce a leis certas e perfeitas, que é atribuição do cientista des­cobrir e explicar, o físico se contenta, hoje em dia, em fazer hipóteses e realizar experiências, em manter uma espécie de livro conta-corrente científico, com o auxílio do qual, de vez em quando, êle faz um balanço. Este balanço não tem re­lação alguma com verdades eternas. Êle se refere apenas ao passivo e ativo correntes. Em vez de apoiar sua fé na desco­berta de uma ordem geral predominante, regular e periódi­ca, êle se contenta em esperar que haja um método ocasio­nal na loucura do mundo físico, que, no geral, se não no específico, haja alguma aparência de um esquema.

O velho dogmatismo materialista parecia impedir poste­riores especulações metafísicas sobre a natureza da realida­de e era "confortável e completo". Êle tinha "a força com­pulsiva da velha Lógica". O aspecto do mundo era rude, e os mistérios do universo, suas aparentes incertezas, eram con­fissões de nossa própria ignorância, de nossas limitações.

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Quando dissemos que a queda de uma moeda era determi­nada pelo acaso, "considerávamos isto como uma confissão de incerteza, devida à nossa própria ignorância e não às incer­tezas da natureza".

Mas a nova Física e a nova Lógica mudaram nosso mo­do de ver tão profundamente quanto mudaram nossa distin­ção básica entre a matéria e a energia. "Começamos com preconceitos contra a probabilidade, considerando-a como um paliativo e a favor da causalidade", e acabamos conven­cidos de que o aspecto do mundo "não era rude, mas en­crespado" e que nossas leis científicas mais exatas eram me­ras aproximações, suficientes para nossos sentidos imperfei­tos. Assim, em lugar do silogismo e das regras da lógica formal, nossas idéias sobre o universo físico devem ser me­didas inteiramente pelas regras da dedução provável. Po­demos traduzir "Sócrates é um homem; todos os homens são mortais, portanto Sócrates é mortal", declaração relativa ao mundo de fato, sob a forma "Sócrates provavelmente morre­rá, porque, até agora, pelo que sabemos, todos os homens antes dele morreram". "As incertezas do mundo são agora atribuídas não às incertezas de nossos pensamentos, mas, an­tes, ao caráter do mundo que nos envolve. É um ponto de vista mais sensível, mais maduro e mais compreensível." 1 2

Agora relembramos as comoventes palavras de Charles Peirce: "Todos os problemas humanos repousam nas proba­bilidades, e isso é verdadeiro para tudo. Se o homem fosse imortal, êle poderia estar perfeitamente certo de ver o dia em que tudo em que êle tinha confiado trairia sua confian­ça e, em poucas palavras, de chegar, eventualmente, à mi­séria sem esperança. Haveria o colapso, por fim, como há para toda boa sorte, para toda dinastia, para toda civiliza­ção. Em lugar disso, temos a morte.

"Mas o que, sem a morte, aconteceria a todos os ho­mens, com ela, sucederá a algum homem . . . Parece-me que estamos sendo levados a isto; que a Lógica exige, inexora­velmente, que nossos interesses não sejam limitados. Não se podem restringir ao nosso próprio destino, mas devem englo­bar toda a comunidade",

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APÊNDICE

Uma discussão sobre a teoria da probabilidade não se pode permitir a omissão de algumas aplicações. Elas são, porém, geralmente muito técnicas, mas o leitor mais per­severante achará interessantes estas poucas, escolhidas ao acaso.

TEORIA CINÉTICA DOS GASES E CURVA DE PROBABILIDADE DE ERRO

A lei dos gases foi encontrada experimentalmente pelo físico e químico inglês Robert Boyle (1627-1691), cujo tra­balho mais importante usa o título: O Químico Cético: ou Dúvidas e Paradoxos Químico-Físicos, incluindo as experiên­cias pelas quais os Espagiristas vulgares estão acostumados a tentar convencer que seus Sal, Enxofre e Mercúrio são os verdadeiros Princípios das Coisas. Sua lei dos gases estabe­lece que a pressão de um gás é inversamente proporcional ao volume. Assim: Pressão X Volume = Constante. Mas qualquer volume de gás é composto de um vasto número de moléculas em movimento, cada uma das quais tendo uma velocidade proporcional à sua energia. Naturalmente, as co­lisões moleculares ocorrem em grande número a cada ins­tante. Estimou-se que no "ar comum cada molécula colide com alguma outra molécula cerca de 3.000 milhões de vezes cada segundo e se movimenta numa distância de cerca de

1 6 Q 0 0 0 de polegada entre colisões sucessivas". *

Supondo-se que essas colisões ocorram com perfeita elas­ticidade, isto é, que nenhuma energia se perca, pode-se de­duzir, com base nas idéias de troca, que a qualquer instante haverá algumas moléculas se movimentando em todas as di­reções e em todas as velocidades. Matematicamente, foi mos-

* Sir James Jeans, The Universe Around Us (Nova York, Mac-rnillan, 1929),

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trado, primeiro por Clausius e mais tarde por Maxwell e Boltzmann, que P = V 3 nrriV2, onde P é a pressão; n, o número de moléculas por unidade de volume; m, a massa de cada uma, e V 2 , o valor médio do quadrado da velocidade.

Maxwell aplicou ao problema da distribuição de veloci­dade entre as moléculas a lei dos erros de Gauss (de grande importância em muitos ramos de pesquisas), derivada da teoria da probabilidade.

A curva de erros normal (ver Fig. 80) pode ser obtida pelo desenvolvimento do binômio ( § -f- J ) n quando n —» 0 0 .

FIG. 80 — Curva de probabilidade normal.

Esta curva mostra que em uma observação comum, pequenos erros ocorrem com maior freqüência que os grandes.

"A teoria (cinética) mostra que as moléculas sujeitas a colisões ao acaso podem ser divididas em grupos, movendo--se cada grupo dentro de certos limites de velocidade, de um modo indicado no diagrama".* (Ver Fig. 81.) A seme­lhança desta curva com a curva de erros normal é óbvia.

* Sir William Dampier, A History of Science and its Rehtions with Philosophy and Religion (Nova York, Macmillan, 1936).

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FIG. 81 — Velocidade das moléculas de um gás.

"A ordenada horizontal mede a velocidade, e a vertical mede o número de moléculas que se movem com ela. A velocidade mais provável é tomada como -unidade. Pode-se ver que o número de moléculas que se movem com uma ve­locidade apenas três vezes a velocidade mais provável é qua­se desprezível. Curvas semelhantes podem ser traçadas para mostrar a distribuição dos tiros em um alvo, ou os erros de uma medida física, dos homens grupados de acordo com altura ou peso, duração de vida, ou capacidade medida por exames..." *

ESTATÍSTICA EM ANTROPOLOGIA O astrônomo belga, L . A. J. Quételet (1796-1874) mos­

trou que a teoria da probabilidade pode ser aplicada aos pro­blemas humanos. Assim, a mesma distribuição é observada nos giros da roleta, ou na distribuição dos tiros em torno de um alvo, como nas medidas torácicas dos soldados escoceses ou nas velocidades das moléculas de um gás. **

° Sir William Dampier, op. cit. 0 9 Ibid.

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Fie. 82 — Esta curva de distribuição mostra as medidas torá­cicas dos soldados escoceses. Incidentalmente, ela também serve para descrever fenômenos tão diversos como os seguintes: 1. Distribuição de idades de pensionistas de uma grande em­

presa. 2. Giros da roleta. 3. Dispersão dos tiros em torno de um alvo.

ESTATÍSTICAS E ACONTECIMENTOS PASSADOS *

Um dos mais antigos problemas de probabilidade se re­fere à diminuição gradual da probabilidade de um aconteci­mento passado, à proporção que aumenta a duração da tra­dição pela qual êle é estabelecido. A mais famosa solução

* John Maynard Keynes, A Treatise on Frohability (Nova York e Londres: Macrnillan, 1921), capitulo XVI, pag. 184,

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para êle é, talvez, a exposta por Craig em sua Theólogiae Christianae Principia Mathematica, publicada em 1699. Êle prova que as desconfianças sobre qualquer história variam na razão dupla do tempo que se passou desde o princípio da história, de um modo que tem sido descrito como uma es­pécie de paródia dos Principia de Newton. "Craig", diz Todhunter, "concluiu que a fé nos Evangelhos, enquanto de­pendeu da tradição oral, expirou cerca do ano 880 e que, enquanto dependesse da tradição escrita, terminaria no ano 3150. Peterson, adotando uma lei de diminuição diferente, concluiu que a fé terminaria em 1789!"

No Buãget of Paradoxes, De Morgan cita Lee, o orienta­lista de Cambridge, quando diz que escritores maometanos, em resposta ao argumento de que o Alcorão não possui a evidência apresentada pelos milagres cristãos, afirmaram que, como a evidência dos milagres cristãos se torna mais fraca a cada dia, chegará uma época, afinal, em que não consegui­rá garantir que eram realmente milagres: daí a necessidade de outro profeta e de outros milagres.

ESTATÍSTICAS DE BAIXAS DE ATAQUES AÉREOS

O Professor J. B. S. Haldane, em uma comunicação a Nature (29 de outubro de 1938), discutiu a Matemática da proteção contra ataques aéreos. Um comentário mais seve­ro sobre a sociedade contemporânea seria difícil de encon­trar, embora seja friamente imparcial e puramente científico em tom e finalidade. Eis uma parte dele:

Tendo em vista a discussão que vem sendo feita em rela­ção a este assunto, parece desejável ter-se alguma medida quan­titativa do grau de proteção dada por um determinado abrigo. Para delimitar o problema, podemos considerar apenas os riscos de morte e restringirmo-nos, também, às bombas de alto ex­plosivo. As incendiárias já se demonstraram como perigo de vida desprezível na Espanha, e o gás também é desprezível exceto para bebês e para aqueles cujas máscaras não estejam bem adaptadas.

Consideremos um determinado tipo de bomba, a de 250 kg, por exemplo, que é comumente usada nas áreas centrais das cidades espanholas, e um bomem em dada situação, seja na rua, seja num abrigo. Seja n o número esperado de bombas que

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ACASO E PROBABILIDADE 251

caiam na vizinhança (1 km 2, por exemplo), durante uma guerra; a distribuição das bombas nesta área é suposta igual, já que a pontaria é má no bombardeio de cidades. Seja p a probabi­lidade de que uma única bomba caindo no ponto (x, y) desta área vá matá-lo. Então, a probabilidade de que êle venha a ser morto durante o transcurso da guerra é P = J n/A pàxãy, integração sendo tomada sobre toda a vizinhança da área A.

Os valores de n e de p serão, logicamente, diferentes para cada tipo de bomba, e os diferentes resultados assim obtidos devem ser somados. Além disso, o homem estará em diferentes lugares durante a guerra e, portanto, outra soma é necessária. Finalmente, P deve somado para toda a nação.

A política de evacuação se destina a reduzir o valor de n, mesmo que possa aumentar o de p, como quando uma criança é evacuada de uma casa relativamente sólida para um débil casebre. A política de dispersão dentro de uma área perigosa não reduz, certamente, nem n nem p. Ela meramente assegura que nenhuma bomba matará um grande número de pessoas, embora aumente a probabilidade de que qualquer bomba consi­derada matará pelo menos uma. Também se podem salvar al­gumas vidas igualando o número de feridos a ser tratados em diferentes hospitais; e o efeito psicológico de ter havido 20 mor­tos em cada uma de 10 áreas talvez seja menor que o de haver 200 mortes em uma única área. Mas, como se pode realmente aumentar o valor médio de p encorajando-se o povo a ficar em um certo número de débeis construções em vez de um único edifício forte, isto, no mínimo, tanto poderá aumentar o número de baixas como diminuí-lo. O argumento de que não se deve concentrar um grande número de pessoas em um só lugar para evitar que uma única bomba não mate centenas é visivelmente fantasioso quando aplicado a uma guerra em que o total de baixas será grande. É, porém, verdade que um pequeno grupo de homens-chave, cada um dos quais possa substituir o outro, não deve permanecer junto.

NOTAS

1. A. Conan Doyle, The Return of Sherlock Holmes, "The Adven-ture of the Dancing Men".

2. Também pode acontecer que as estruturas de certas frases que parecem proposições não sejam nem verdadeiras nem falsas, mas sem sentido. Há, por exemplo, funções proposicionais como "x é um y". Mas não nos dizem respeito agora.

3. O seguinte paradoxo, que surge do princípio da razão insuficien­te, é citado por Keynes, de um matemático alemão Von Kries (Keynes, A Treatise on Probability, Londres, Maçmillan, 1921).

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252 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Suponhamos que sabemos que o volume específico de uma subs­tância está entre 1 e 3; mas não temos nenhuma informação so­bre o valor exato. O princípio da indiferença justificará que coloquemos o volume específico entre 1 e 2; ou será o mesmo se o pusermos entre 2 e 3. A densidade específica de uma subs­tância é a recíproca do volume específico; se o volume específico é V, a densidade específica é l/V; então, sabemos que a densi­dade específica deve estar entre 1 e Novamente, pelo princí­pio da razão insuficiente, tanto pode estar entre 1 e V 3 como entre V 3 e 1 / 3 ; mas, sendo o volume específico uma função da densidade específica, se a última estiver entre 1 e 2 / & o primeiro estará entre 1 e 1 V 2 e, se a última estiver entre 2/a e 1 / 3 , o primeiro estará entre I V 2 e 3. Daí pode-se concluir, que o volume específico tanto pode estar entre l e i V 2 como entre 11/2 e 3, o que é diferente de nossa suposição inicial de que po­deria estar entre 1 e 2, como entre 2 e 3.

4. Dantzig, Numher, the Language of Science, pág. 67. 5. Charles S. Peirce, Chance, Love, and Logic. 6. Para uma discussão lúcida e admiravelmente vivificante, deste e

de outros problemas de probabilidade, ver Cohen e Nagel, An Introduction to Logic and Scientific Method, Nova York, Harcourt Brace, 1936.

7. Ver o Apêndice deste capítulo. 8. Como ponto de interesse, há 34.650 modos de se arranjarem as

letras das palavras "Mississippi". 9. O leitor não deve perturbar-se com o fato de que BP e PB sejam

representadas simplesmente como 2BP. 2BP simplesmente signi­fica que houve duas retiradas, em cada uma das quais há uma bola Preta e uma Branca, sem levar em consideração a ordem em que aparecem.

10. Sem se preocupar em relembrar a fórmula geral, pelo uso do fa­moso triângulo de Pascal, pode-se ter, imediatamente, os coefi­cientes de qualquer desenvolvimento binomial:

1 12 1

1 3 3 1 1 4 6 4 1

1 5 10 10 5 1 1 6 15 20 15 6 1

1 7 21 35 35 21 7 1 1 8 28 56 70 56 28 8 1

Pelo exame desta disposição triangular, o leitor pode verificar, por si mesmo, como cada nova hnha é formada.

11. Laplace, Essai philosophique sur la probabilité. 12. Citado de C. G. Darwin, Presidential Address to the Britüh

Associationf 1938,

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VIII

G E O M E T R I A E L Á S T I C A

Ela e - s - t - i - c - a . DE TJM ANÚNCIO POPULAR

J~~JAVIA SETE pontes cruzando o rio Pregel, que corria, sinuo­samente, através da pequena cidade universitária alemã de Konigsberg. Quatro delas ligavam as margens opostas à pe­quena ilha de Kneiphof. Uma ponte ligava Kneiphof à ou­tra ilha; as outras duas ligavam esta às duas margens do rio. Estas sete pontes do século XVIII forneceram o material para um dos célebres problemas da Matemática.

Problemas triviais semelhantes deram origem ao desenvol­vimento de muitas teorias matemáticas. A probabilidade gri­tou de dentro dos copos de dados dos jovens nobres da Fran­ça; a Geometria Elástica fermentou no ar gemütliche das ta­vernas de Konigsberg. O povo simples da Alemanha não era jogador, mas gostava de dar seus passeios. Por cima de seus canecões de cerveja perguntaram: "Como poderá alguém planejar seu passeio na tarde de domingo de tal forma que pas­se por todas as sete pontes sem voltar a cruzar qualquer uma delas?"

Sucessivas tentativas conduziram à suposição de que isto era impossível, mas uma demonstração matemática não se baseia nem em suposições nem em tentativas.

Muito longe, em S. Petersburgo, o grande Euler tiritava no meio de honrarias e dinheiro, como matemático da corte de Catarina a Grande. E Euler, saudoso e cansado de tanta pompa e circunstância, veio a saber, de uma forma algo es-

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254 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO tranha, deste problema de sua terra natal. E êle o resolveu com sua habitual agudeza. E assim nasceu a Topologia ou Analysis Situs, quando êle apresentou sua solução ao proble­ma das pontes de Konigsberg perante a Academia Russa em S. Petersburgo, em 1735. Esta célebre memória provou que o passeio pelas sete pontes, tal como estabelecido pelo pro­blema, era impossível.

Euler simplificou o problema substituindo a terra (na Fig. 83) por pontos, e as pontes por linhas ligando estes pontos. Uma vez feita esta simplificação, a Fig. 84 pode ser traçada em um movimento contínuo do lápis, sem levantá-lo do pa­pel? Isto seria o equivalente a atravessar, fisicamente, as sete pontes em uma jornada. Matematicamente, o problema se re­duz ao de atravessar um diagrama. Um "diagrama", como o

termo é aqui usado, é simplesmente uma configuração consis­tindo em um número finito de pontos, chamados vértices, e de uma quantidade de arcos. Os vértices são as extremida­des dos arcos e nenhum arco tem qualquer ponto comum com outro, salvo, talvez, um vértice comum. Um vértice é par ou ímpar, conforme o número de arcos que o formem seja par ou ímpar.

Um diagrama é atravessado passando-se por todos os ar­cos exatamente uma vez. Euler descobriu que isto pode ser feito, começando e acabando no mesmo ponto, se o diagra­ma contém somente vértices pares. Além disso, descobriu que se um diagrama contém, no máximo, dois vértices ímpares,

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GEOMETRIA ELÁSTICA 255

ele também pode ser atravessado, mas não é possível voltar ao ponto de partida. Em geral, se o diagrama contém 2n

VÉRTICE A

FIG. 84 — Um diagrama com quatro vértices e sete arcos, mostrando as pontes de Konigsberg.

vértices ímpares, onde n é qualquer inteiro, exigirá exatamen­te n passagens distintas para atravessá-lo. 1

A Fig. 84 é um diagrama das sete pontes de Konigsberg. Como todos os quatro vértices são ímpares, isto é, cada um é a extremidade de um número ímpar de arcos, 2n = 2 X 2, e, portanto, serão necessárias duas passagens para atravessar o diagrama — uma simples passagem não será suficiente.

Se, como na Fig. 85, um arco adicional fôr traçado de A a C, representando outra ponte, e o arco BD fôr retirado, to­dos os vértices se tornam pares; A, B e C, da 4.a ordem, e D, da 2.a ordem, e o diagrama pode ser atravessado em uma única passagem. Se o arco BD não fôr retirado, o caminhante pode fazer o seu passeio, cruzar todas as pontes apenas uma vez, mas verificará que não pode terminar no ponto onde come-

FIG. 85 — Um diagrama com quatro vértices e oito arcos.

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256 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO çou. Assim, se começar em D, terminará em B, e vice-versa. (Nota: êle deve começar o passeio em um vértice ímpar.)

O problema das sete pontes é o representante de um gru­po de problemas, alguns vindo da antiguidade. Eles exem­plificam a dificuldade de apreender mentalmente as verdadei­ras propriedades geométricas de todas as figuras, com exce­ção das mais simples.

FIG. 86

Na história da mágica e da superstição, a figura apresen­tada acima (Fig. 86) desempenhou um importante papel co­mo um talismã contra todas as espécies de azar. Conhecida pelos maometanos e hindus, pitagóricos e cabalistas, foi, mui­tas vezes, esculpida nos berços dos recém-nascidos para afu­gentar o mal, enquanto, em países mais práticos, foi pintada nas estrebarias dos animais. É possível atravessar esta estre­la, voltando ao ponto de partida, com um único movimento do lápis.

A regra de Euler explica por que a Fig. 87 não pode ser atravessada com um único movimento, porque há 5 vértices, 4 dos quais são pontos terminais de três arcos, ou, em outras palavras, são de ordem ímpar, e, portanto, são necessárias duas passagens.

FIG. 87

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O pentágono da Fig. 88, muito mais complicado na apa­rência, pode ser atravessado em uma única passagem. Come-

FIG. 88

çando-se do ponto A, a passagem seria, sucessivamente, pelos pontos ABCDEFGHJDKFAGHCJKEA.

Até a Fig. 89 permite uma simples passagem, por exemplo: ABCcc'CDEee'EFAaa'AbBDdEfFBb'Cd'DFfA.

FIG. 89

17

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258 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO Batalhando com o problema das sete pontes, Euler fêz

muito mais do que meramente resolver um quebra-cabeça. Êle reconheceu a existência de certas propriedades fundamen­tais das figuras geométricas, de modo nenhum relacionadas ou dependentes de forma e tamanho. Estas propriedades são função apenas da posição das linhas e pontos de uma figura. Na linha ABC, por exemplo, o fato do ponto B estar entre os pontos A e C é, justamente, tão importante quanto o fato da hrjha ABC ser reta ou curva ou ter um determinado com­primento. E também (Fig. 90), quando um ponto interior

FIG. 90 — A linha que une o ponto interior A ao exterior B corta o triângulo em C. Independente do modo pelo qual a linha é traçada, ela deve cortar o triângulo em

algum ponto.

de um triângulo é ligado a um ponto exterior, a linha que os une deve cortar um lado do triângulo — fato que é tão importante quanto o da soma dos ângulos de um triângulo ser igual a 180°. É o estudo de tais propriedades, as quais per­manecem inalteradas quando a figura é destorcida, que cons­titui a ciência da Topologia, Topologia é uma Geometria de lugar, de posição (que responde pelo nome de Analysis Si-tus), para diferenciá-la das Geometrias métricas de Euclides, Lobachevsky, Riemann, etc, que tratam de comprimentos e ângulos.

Em topologia nunca perguntamos "Qual é o comprimen­to?" "A que distância?" "De que tamanho?"; mas "Onde?" "Entre o quê?", "Dentro ou fora?" Um viajante, em uma estrada desconhecida, não perguntaria "A que distância está a

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fazenda Jones?", se não soubesse a direção, porque a respos­ta "A sete milhas daqui" não o ajudaria. Seria mais lógico que perguntasse "Como posso ir até à fazenda Jones?" En­tão, uma resposta como "Siga por esta estrada até uma bifur­cação, depois siga pela direita", diria a êle exatamente o que êle queria saber. Como esta resposta não fala em distâncias nem menciona se o caminho é reto ou curvo, pode parecer não ser Matemática, mas guarda com a primeira resposta a mes­ma relação que a Topologia mantém com a Geometria mé­trica.

A topologia é uma Geometria não-quantitatíva. Suas pro­posições seriam tão verdadeiras para figuras feitas de borra­cha quanto para figuras rígidas encontradas na Geometria mé­trica. Por esta razão, ela foi pitorescamente chamada de Geo­metria Elástica.

A Geometria era um assunto em grande moda no século XIX. O século XVIII havia sido dedicado ao cálculo e à análise. O XIX pertenceu em grande parte aos geómetras. Era inevitável que a Topologia, então em sua infância, rece­besse a sua parcela de atenção.

O primeiro tratado sistemático apareceu em 1847; foi a obra do matemático alemão Listing intitulada Vorstudien zur Topologie. A Topologia ainda hoje se interessa pela mesma coisa que a concebida quando Euler a inventou, embora a sua linguagem, como convém a uma ciência adulta, se tenha tornado mais complicada. Ela é agora definida como o estu­do das propriedades dos espaços, ou suas configurações, in­variantes ante as contínuas transformações uma a uma; con­tinua a ser o estudo da posição e relação recíproca das partes de uma figura sem levar em conta a forma ou o tamanho. Na verdade, embora a Topologia se tivesse nutrido inicial­mente de pontes, ela agora se alimenta de biscoitos e roscas como também de outros objetos mais curiosos e menos di-geríveis.

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260 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO Até para uma olhada em um ou dois teoremas deste ra­

mo bizarro da Matemática é necessária uma introdução a uma nova terminologia.

Poincaré mostrou que as proposições da Topologia t ê m um aspecto singular: "Elas continuariam verdadeiras, mesmo se as figuras fossem copiadas por um desenhista bizonho que trocasse grosseiramente todas as proporções e substituísse l i ­nha retas por linhas mais ou menos sinuosas". 2 Em lingua­gem matemática, os teoremas não são alterados por qualquer transformação contínua ponto por ponto. A Fig. 91 é u m exemplo de um triângulo plano, traçado por um exímio dese-

FIG. 91 — Um triângulo plano. FIG. 92 — Seu gêmeo surrealista.

nhista; a Fig. 92, seu contorcido gêmeo surrealista. Contudo, topològicamente, a 92 é uma cópia perfeita da 91. As linhas retas são curvas, os ângulos mudados e contorcidos e as medidas dos lados alteradas; mas persistem propriedades geo­métricas comuns às duas figuras. Estas propriedades, que permaneceram inalteradas pela distorção, são invariantes. 3

Na Fig. 91, o ponto D fica entre os pontos A e C; e JE, entre A e B. Na Fig. 92, esta ordem foi preservada. A ordem dos pontos é, portanto, invariante com a transformação que provocou esta distorção. A Fig. 91 podia ter sido transfor­mada de outra forma. Se tivesse sido cortada de um pedaço de borracha e o triângulo de borracha torcido, esticado e des­torcido de todos os modos possíveis, sem rasgar, a ordem dos pontos continuaria ainda invariante.

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Os invariantes de corpos rígidos em movimento comum são ainda mais habituais, mas estamos tão familiarizados com eles que nunca lhes damos muita atenção. Mas nossa existên­cia seria inimaginável sem eles. Um corpo rígido não sofre modificação em tamanho ou forma quando se movimenta. Suas propriedades métricas são invariantes. Em termos simples, o movimento comum não tem efeito destorcivo. O chapéu, com­prado em Londres, ainda serve quando transportado para Nova York. Uma vara de medir tem o mesmo comprimento depois de levado do alto da montanha ao fundo do mar. Uma chave entra na fechadura, esteja a porta fechada ou aberta. Um navio parece menor no horizonte, mas ninguém iria declarar que êle encolhe à proporção que se afasta. E a poltrona do filósofo continua a ser-lhe cômoda em qualquer canto da sala, independente das mudanças de posição e da filosofia dele.

Estes invariantes nós aceitamos. Para o matemático, po­rém, coisas óbvias servem como indícios valiosos e êle, rara­mente, dispensa o óbvio como sem importância. Êle cuida­dosamente anota que a forma e o tamanho dos corpos rígidos não são afetados pelo movimento, e relata, em termos técni­cos, que as propriedades métricas dos corpos rígidos são inva­riantes sob a transformação do movimento. Êle, depois, con­sidera os corpos que não são rígidos e que realmente mudam de tamanho e forma quando se movem, e procura seus inva­riantes geométricos. A Topologia abarca estes invariantes e os integra em um sistema matemático.

• De acordo com uma lenda antiga, um Califa Persa, que

tinha uma linda filha, estava tão perturbado com o número

FIG. 93 — Unir 1 ao 1, 2 ao 2 e 3 ao 3, por linhas que não se interceptem.

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262 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO de pretendentes a ela que se viu forçado a estabelecer provas de qualificação para selecionar os finalistas. Apresentou um problema aos candidatos à mão da filha (Fig. 93): unir os números correspondentes das figuras simétricas com linhas que não se interceptassem.

Isto foi simples. Mas a filha do Califa não podia ser conquistada tão facilmente, porque o pai dela insistiu que os pretendentes sobreviventes unissem os números correspon­dentes mostrados na Fig. 94.

FIG. 94 — Procurar ligar os números correspondentes com linhas que não se interceptem.

A não ser que o Califa tenha cedido, supomos que a filha morreu solteirona, porque este problema não tem solução. Duas linhas podem ser traçadas unindo dois números corres­pondentes, mas a terceira não pode ser desenhada sem cru­zar uma das duas. Novamente podemos ver por que o ma­temático nunca rejeita o óbvio. O problema da Fig. 93 é fácil. O da Fig. 94 parece igualmente fácil, mas, na realidade, é impossível. Em que pontos essenciais eles diferem?

Desde o século XLX, o físico Kirchhoff reconheceu a im­portância das investigações em Topologia para conseguir uma solução para os problemas relacionados com a reunião e en­trelaçamento dos fios ou outros condutores de corrente elé­trica. E é bastante curioso que muitos efeitos importantes em Física foram encontrados, desde então, exatamente aná­logos à relação espacial apresentada no problema do Califa.

A primeira ação real no ataque sistemático a todos estes problemas foi feita no século XIX pelo matemático francês Jordan. Seu teorema é tão fundamental e importante para a Topologia como o teorema de Pitágoras o é para a Geome-

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GEOMETRIA ELÁSTICA 263

tria métrica. Não tem nenhuma semelhança com qualquer teorema matemático anteriormente apresentado. Êle diz, sim­plesmente, que "Toda curva fechada em um plano, que não se cruza a si mesma, divide o plano em um interior e um exterior".

Sem dúvida, isto lhe parece idiota ou maravilhoso. Os matemáticos labutaram durante séculos para produzir tal ra­tinho? Mas o teorema de Jordan só parece idiota porque, quando expresso em termos formais, mostra-se tão óbvio que mricilmente compensa repetir. Na verdade, é um teorema maravilhoso, por ser tão simples, tão modesto e tão impor­tante.

Uma curva que divide o plano em um interior e um ex­terior é chamada simples. Esta é uma curva simples:

FIG. 95

Mas estas não são:

FIG. 97

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264 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO As curvas das figuras 96a, 96b e 97 não se enquadram na

definição de Jordan de união simples. A primeira tem dois interiores e um exterior; a segunda, vários interiores e um ex­terior; a área envolvida pela curva menor na terceira tam­bém é considerada "exterior" e não interior. Temos de con­cordar que o teorema de Jordan parece trivial quando aplica­do a figuras fáceis. Mas não é fácil acreditar que a curva da Fig. 2, apesar de sua tortuosa aparência e caráter labirín­tico, tem apenas um interior. Por mais estranho que pareça, tal curva pode ser considerada como um círculo deformado. Isto poderia ser muito simplesmente demonstrado se ela fosse feita com um pedaço de barbante ou um elástico, pois, en­tão, poderia ser retransformada em um círculo, meramente esticando as voltas e pregas. Na Geometria métrica, o círculo é definido como o lugar geométrico de todos os pontos equi­distantes de um ponto dado, o que significa que todos os raios de um círculo são de igual comprimento. Mas, em Topologia, "igual comprimento" não tem significação. Então, o círculo é visto como uma curva com a propriedade fundamental de di­vidir o plano todo em um exterior e um interior. Qualquer curva, por mais deformada que esteja, mas que tenha esta propriedade, pode ser encarada como o equivalente topoló-gico de um círculo. Daí se conclui que qualquer curva sim­ples em um plano ê topològicamente equivalente a um círculo.

• O teorema de Jordan, quando aplicado em três dimensões,

estabelece que qualquer superfície fechada, qualquer agrega­do bidimensional que não se corta a si mesmo, divide o es­paço em um interior e um exterior.

Pense na sala onde você está sentado. O ar na sala, to­dos os móveis, e você, são interior. O resto do universo todo, do Vesúvio ao âmago da Terra, da Praça da República aos anéis de Saturno e muito além, é exterior. O gás de um balão é interior, enquanto tudo o mais, em todas as direções possíveis inclusive as esperanças e medo na cabeça do balo-nista, é exterior. O sistema circulatório de um corpo é um agre­gado bidimensional difícil de visualizar. Contudo é simples­mente unido. Divide o espaço em um interior e um exterior.

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GEOMETRIA ELÁSTICA 265

No interior corre a corrente sanguínea, no exterior há célu­las sem conta que se torcem e entrelaçam com os canais san­guíneos e, além, o universo inteiro.

A restrição de que um agregado bidimensional não se cruze a si mesmo não faz lembrar de nenhum que o faça. Mas esses agregados são o centro de atração no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, onde eruditos e famosos matemáticos fazem discursos estranhos, quase como o Wal-rus de "Alice", sobre biscoitos, nós e roscas.

Este biscoito é um objeto interessante, não só por suas propriedades gastronômicas, mas também pelas patológicas. É um exemplo de um agregado bidimensional, que não obe­dece ao teorema de Jordan, porque se cruza a si mesmo. Mas

FIG. 97 (a, b, c, d) — Não são criações de Walt Disney nem reproduções da divina forma humana por Picasso, mas objetos

de sérias elucubrações matemáticas em Princeton.

o biscoito é muito difícil para nosso modesto equipamento matemático. Devemos contentar-nos com agregados que obe­deçam ao teorema de Jordan. Eles já dão bastante trabalho.

A Fig. 98 mostra um anel — porção do plano limitada por dois círculos concêntricos. Um anel é uma figura que não é simplesmente unida porque seus limites consistem em duas curvas, em vez de uma só. Como poderemos distinguir o exterior do interior?

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266 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

FIG. 98

Muitas das dificuldades que temos experimentado para explicar e analisar problemas de espaço nascem das limita­ções de linguagem reveladas por aquela pergunta. Somos levados a nos compadecer daquele cavalheiro embriagado que estava cambaleando em torno de uma coluna cilíndrica num "boulevard" de Paris, chorando amargamente. "Por favor", perguntou um passante curioso, "o que é que há?" "Estou em­paredado", lamentou-se o bêbado, "emparedado".

Termos puramente relativos, tais como "exterior" e "inte­rior", podem confundir o matemático tanto quanto o melan-

FIG. 99 — 0 homem está andando no sentido contrário ao do movimento dos ponteiros do relógio no limite de uma curva.

À sua esquerda é interior; à direita, exterior.

eólico 'boulevardier". O único recurso é concordar com uma definição formal. Uma analogia familiar vem prontamente ao pensamento: todas as partes da Cidade de Nova York que

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ficam de um lado da Quinta Avenida são chamadas de "Leste", enquanto todas as partes do lado oposto são denominadas "Oeste".

Intuitivamente, todos sabem a diferença entre o interior e o exterior de um círculo. Mas esta noção mtuitiva pode ser traduzida em termos precisos? Como ninguém tem a menor dificuldade em distinguir a direita da esquerda, e o sentido do movimento dos ponteiros de um relógio ou o sentido con­trário também não causam confusão,. "exterior" e "interior" podem ser novamente definidos, usando-se tais noções. Assim, por exemplo, começando pela circunferência de círculo e usando o sentido contrário ao do movimento dos ponteiros de um relógio, "interior" é definido como a região à esquerda; "exterior", a região à direita.

A aplicação desta definição a um agregado nao-simples-mente unido, tal como um anel, precisa de um pequeno arti­fício.

FIG. 100 — Interior e exterior de um anel secionado.

Assim, enquanto interior e exterior parecem ter pequena significação em relação ao anel (Fig. 98), a simples opera­ção de cortá-lo transforma o anel em um novo agregado (Fig. 100), ao qual a definição é totalmente aplicável. O matemá­tico concorda que as regiões que são "interior", depois que o anel é cortado, eram "interior" antes disto; e as que eram "exterior", depois do corte, eram "exterior" antes. A rosca apre­senta o mesmo problema, em três dimensões, que o anel em duas. "O buraco faz parte do exterior ou do interior da ros­ca?" Se nos apoiarmos integralmente na experiência obtida

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268 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO na mesa do café, podemos dizer que é o interior. Mas os fa­tos apreendidos até agora podem fazer surgir algumas dúvidas. O que acontece é que o buraco no interior da rosca é exterior. É evidente que a primeira impressão não é uma ilusão de

FIG. 100 (a) — Uma curva triplamente unida. São necessá­rios três cortes para torná-la simplesmente unida.

óptica. A conclusão de que o buraco é exterior é puramente conceptual e deve ser encarada como a conseqüência lógica de certas definições.

Tal como, em duas dimensões, qualquer agregado sim-plesmente-unido é o equivalente a um círculo; em três di­mensões, qualquer superfície simplesmente-unida é equiva­lente a uma esfera. Por uma deformação gradual, sem rom­per, qualquer objeto tridimensional simplesmente-unido pode ser transformado em uma esfera. Uma rosca não pode ser as-

FIG. 101 — A rosca se transforma em uma salsicha.

sim transformada, porque o que acontece é que a rosca não é simplesmente unida. Mas uma operação semelhante à exe­cutada anteriormente com o anel — um simples corte — trans­forma a rosca em uma salsicha, que é simplesmente unida e é o equivalente topológico de uma esfera.

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O biscoito, e os outros objetos apresentados a seguir (Fig. 102), são alguns dos agregados mais difíceis estudados em To­pologia. Nenhum deles é simplesmente-unido, nenhum pode ser transformado em uma esfera. Mas, com um número sufi­ciente de cortes, é possível transformar o mais tortuoso deles em um equivalente a uma esfera.

FIG. 102 — Agregados topológicos sobrenaturais — parentes sublimados do biscoito em forma de nó.

O número de cortes necessários para efetuar esta trans­formação não é determinado ao acaso, mas exatamente, e de­pende da união do agregado. Uma regra geral pode ser for­mulada para ser aplicada tanto aos objetos fantásticos como

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270 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO aos fáceis. Tal como em todas as pesquisas matemáticas, so­mente regras desta natureza revelarão o princípio básico; por isso, os topologistas não se satisfazem com considerações de agregados tridimensionais, por mais complicados e proibitivos que sejam. Eles vão muito além dos Hmites da imaginação e descobrem teoremas válidos até para biscoitos n-dimensionais.

Uma das curiosidades da Topologia é a faixa de Möbius. Ela é fácil de (xmstruir. Prepare um longo retângulo (ABCD) de papel (Fig. 103), dê-lhe uma meia torção e una as extre­midades de tal forma que C coincida com B, e D com A (Fig. 104). Esta é uma superfície unilateral e, se um pintor con­cordar em pintar apenas um lado dela, a união feita vai in­terferir, porque, ao pintar um lado, êle acabará pintando os dois lados. 4 Se a faixa não houvesse sido torcida antes de

Fies. 103, 104 — A faixa de Möbius — uma unilateral superfície bilateral,

unir as extremidades, o resultado teria sido um cilindro — que é, evidentemente, uma superfície feilateral. Contudo, uma meia torção eliminou um dos lados. Incrível? Você pode convencer-se por si mesmo. Trace uma reta pelo centro da faixa, estendendo-a até encontrar o ponto de partida. Agora, separe as extremidades da faixa e você verificará que ambos

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GEOMETRIA ELÁSTICA 271

os lados estão cobertos pela reta, embora, ao traçá-la, você não tenha cruzado nenhuma aresta. Se você quisesse fazer o mes­mo com um cilindro, teria de cruzar uma das arestas para ir de um lado para o outro. Embora todos os ditames do bom senso indiquem que a faixa, com a meia torção, tem duas ares­tas limítrofes, você provou que só tem uma. Quaisquer dois pontos de uma Faixa de Möbius podem ser unidos simples­mente começando em um dos pontos e traçando um caminho até o outro sem levantar o lápis ou cruzar qualquer limite.

É uma grande distração e há real interesse em que você faça, por si mesmo, uma faixa assim. Quando você tiver es­tudado as propriedades acima descritas, corte-a com a tesou­ra, ao longo de uma hnha traçada pelo centro. O resultado será espantoso! E você poderá continuar a torcer e cortar mais algumas vezes para mais outras surpresas.

FIG. 105

Dois anéis de ferro entrelaçados são mostrados na Fig. 105. Está perfeitamente evidente que não podem ser separados, a não ser que um deles seja quebrado. Mas, sendo perfeita­mente evidente, como poderemos prová-lo? Antes da invenção da Topologia, nenhuma das ferramentas matemáticas exis­tentes era apropriada para tal trabalho. Somente a criação de ferramentas especiais tornou possível dar uma demonstra­ção analítica de um fato tão evidente.

Eis um problema semelhante. Amarre um pedaço de bar­bante aos seus pulsos. Faça o mesmo, com outro pedaço, aos pulsos de um companheiro, de tal forma que o segundo pe­daço passe pelo que está nos seus pulsos (Fig. 106).

Você acha que pode separar-se de seu parceiro sem que­brar o barbante? Embora isto pareça o mesmo que o pro-

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272 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO blema de separar os- dois anéis, que concordamos ser impossí­vel, no caso dos barbantes podemos fazê-lo. Tente.

FIG. 106

Com um topologista e uma tesoura à mão (para os aci­dentes), tente tirar o colete sem tirar o casaco. Não é neces­sária uma quarta dimensão. Lembre-se, apenas, das condi­ções do problema. O casaco pode estar desabotoado, mas em nenhum momento, durante a retirada do colete, seus braços podem sair das mangas do casaco.

FIG. 107 — Esta é a marca registrada de um conhecido fa­bricante de cerveja. Os três anéis têm esta estranha relação uns com os outros: se se retirar um dos anéis, verificaremos que os outros dois estão separados. Então, os anéis não estão unidos dois a dois, mas os três estão. Ou mais sim­plesmente, cada dois não estão unidos, mas cada um mantém

os outros dois.

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A Topologia é um dos membros mais jovens da família matemática, mas ainda é considerada o filbo-problema. En­quanto alguns matemáticos se contentavam em se concen­trar em biscoitos, nós e roscas de analysis situs, um determi­nado grupo de pediatras matemáticos focalizou sua atenção no Problema das Quatro Cores. Em certa época do século XIX, pensava-se que a criança tinha sido curada e seu pro­blema resolvido, mas eram esperanças vãs e o quebra-cabeça das quatro cores continua a atrapalhar os melhores topolo-gistas.

Alguma vez na vida, cada um de nós teve alguma expe­riência em colorir mapas. Mapas que mostravam o Santo Império Romano, os estados agrícolas do país, ou o esface­lamento da Europa pelo Tratado de Versalhes são penosa­mente delineados em todos os dias de aula. Recentemente, o negócio se tornou mais hético que nunca. Bons lápis de cera e uma boa borracha devem estar sempre à mão. Os estudantes descobrem logo no início de sua carreira carto­gráfica que, se se deve colorir o mapa, países que tenham fronteira comum, tais como a França e a Bélgica, devem ser coloridos diferentemente, para poderem ser d^tínguidos em um relance. A generalização desta idéia conduziu à per­gunta: "Quantas cores são necessárias para colorir um mapa,

Fies . 108, 109, 110

18

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274 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO com qualquer número de países, de forma que nenhum país tenha a mesma cor do que lhe seja fronteiriço?" Este pro­blema tem trazido complicações aos cartógrafos durante mui­tos anos.

A Fig. 108 mostra uma ilha marítima. Pertence a dois países. São necessárias três cores para este mapa — uma para o mar e uma para cada um dos dois países.

Para pintar a ilha da Fig. 109 são precisas quatro cores. O mapa com maior número de regiões, como na Fig. 110, também só precisa de quatro cores. Não é difícil encontrar a razão, já que o país ao centro, marcado com o 1, pode ter a mesma côr que o mar, sem causar corifusão.

As Figs. 111 e 112, respectivamente, precisam de três e quatro cores, embora contenham muito mais países que qual­quer dos mapas anteriores.

FIG. 111 — Uma ilha possuída por cinco países, precisando de apenas três cores para o mapa.

FIG. 112 — Uma ilha com de­zenove países. Apenas quatro co­res são necessárias para o mapa.

É muito natural que se suponha que, à proporção que os mapas se tornam mais comphcados, indicando mais paí ­ses, novas cores serão necessárias para distinguir dois terri­tórios adjacentes. Estranho como pareça, os matemáticos v i ­ram ser impossível, até agora, fazer um mapa plano para o qual não sejam suficientes quatro cores. Ao mesmo tempo, ninguém ainda pôde demonstrar que quatro cores seriam suficientes para qualquer mapa.

O problema clássico é referente ao número de cores ne­cessárias para um mapa esférico com qualquer número de

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regiões. Embora se tenha mostrado que quatro cores são necessárias e cinco suficientes, ainda não foi satisfeito o re­quisito padrão da Matemática, que é achar uma condição tanto necessária quanto suficiente.

Paradoxalmente, o problema ainda não foi resolvido pa­ra uma esfera ou para uma superfície plana, embora o tenha sido para superfícies mais complicadas, como o toro (rosca) ou a esfera com alças.

A. B. Kempe, matemático e advogado inglês, autor do célebre livreto com o título provocativo, Como Traçar uma Linha Reta, apresentou uma demonstração, em 1879, de que quatro cores são não só necessárias como suficientes para a confecção de qualquer mapa em uma esfera. Infelizmente, hoje se sabe que a demonstração de Kempe contém um erro lógico fatal.

O fato de serem suficientes cinco cores para qualquer mapa traçado em uma esfera ou em um plano é, em si mes­mo, notável. A demonstração está no ainda mais notável teorema de Euler sobre os sólidos simplesmente-unidos e que estabelece que a soma dos vértices e das faces de qualquer destes sólidos é igual ao total de arestas mais duas:

V + F = A + 2

O teorema de Euler é a mais simples declaração sobre sólidos. A idéia básica já era familiar a Descartes, mas sua demonstração era desconhecida até Euler.

Sabemos-que qualquer sólido tridunensional simplesmen-te-unido é o equivalente topológico de uma esfera. Deste fato e do teorema de Euler, vem uma conseqüência interes­sante. Considere um cubo ôco, feito de borracha. É limi­tado por seis faces, doze arestas e oito vértices. Encha este cubo com ar até que êle se assemelhe a uma esfera. As faces do cubo são, então, regiões da esfera; as arestas do cubo, fronteiras destas regiões; e os vértices, pontos em que estas regiões se encontram. A execução do colorido da es­fera é, como se vê, governada pelo teorema de Euler. Por­que, se cada região representa um país; cada hnha curva, a fronteira entre dois países; e cada vértice, o ponto de jun-

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276 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO ção de três países; o número de países mais o número de pontos em que três países se encontram é igual ao número de fronteiras -f- dois. Desse modo vemos como o teorema de Euler se aplica a figuras curvas.

Para um sólido com um buraco, como a rosca, o teo­rema falha. Na verdade, êle é falho para qualquer sólido não-simplesmente-unido. Em resumo, o teorema de Euler é aplicável em Topologia somente quando cada uma das fa­ces da figura é simplesmente-unida e a superfície inteira é simplesmente-unida.

Entre os que deram contribuições essenciais à Topologia, um dos maiores é L. J. Brouwer, o holandês. Particular­mente para a teoria dos conjuntos de pontos, os teoremas topológicos de Brower tornaram-se de importância signi­ficativa. Mas não estamos interessados, aqui, em suas contribuições técnicas. Em 1910, êle publicou um problema, baseado em uma idéia do matemático japonês Yoneyama, que mostra, lindamente, as dificuldades e sutilezas da Topo­logia. A solução deste problema talvez não o satisfaça, mas não pode deixar de desafiar sua imaginação.

A Fig. 113 é um mapa de três países. Os pontos mar­cados 1 e 2 são bastante singulares, pois, em ambos, os três

FIG. 113 — Os três países, A, B, C, encontram-se nos pontos 1 e 2.

países se encontram. Tais pontos são raros em qualquer mapa, qualquer que seja sua complicação, porque não há muitos exemplos geográficos de três países se encontrando

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GEOMETRIA ELÁSTICA 277

em um único ponto. Mas, mesmo que houvesse muitos des­tes pontos, se fosse um mapa raro, seu número seria sempre pequeno, comparado com a totalidade dos pontos ao longo da fronteira. É razoavelmente certo que um ponto frontei­riço, escolhido ao acaso, em qualquer mapa, seja o local em que se encontram, no máximo, dois países.

FIG. 114 — Os países A, B, C são separados por corredores desocupados e D é uma teria abandonada.

Ora, Brouwer imaginou um exemplo, completamente ina­creditável à primeira vista, de um mapa de três países, em que qualquer ponto ao longo da fronteira de cada país é um lugar de encontro dos três países.5

Veja o mapa da Fig. 114. Nenhuma das nações tem fronteira com qualquer dos

seus vizinhos, e a parte branca do mapa tem por fim repre­sentar território abandonado. Dentro do espírito do Lebens-raum, o país A decide estender sua esfera de influência so­bre a terra abandonada, ocupando uma parte substancial.

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278 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Assim, estabelece um corredor que não toca em parte al­guma de seus vrzinhos, mas não deixa nenhum ponto do res­tante da terra abandonada a mais de um km de algum ponto do país A, depois de aumentado. Êle, agora, se estende pelo mapa, como na Fig. 115.

FIG. 115

O país B, em vez de aplicar sanções, decide apossar-se de um pedaço, antes que seja tarde. Com um constrangi­mento apropriado, mas com um olho na maior potência de seu vizinho, B estende um corredor a meio km de cada pon­to da restante terra abandonada. Este corredor altera o mapa para a forma da Fig. 116.

É lógico que o país C não ficou para trás. Estendeu um corredor que fica a um terço de km de todos os pontos da restante terra abandonada, mas, como os outros dois corre­dores, não toca em nenhum outro país, senão no seu pró­prio. O novo mapa é mostrado na Fig. 117.

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FIG. 116

Agora, todos deviam estar bastante contentes. Ao con­trário, isto foi só o princípio. O país A ficou com o menor corredor. A situação intolerável tem de ser remediada so-jort. Êle se decide por um novo corredor que se estende pelo território restante e que se aproxima de qualquer ponto deste território a um quarto de km (Fig. 118).

O país B apossa-se de um corredor que se aproxima dos pontos do território ainda desocupado de um quinto de km; o corredor do país C passa a ficar a um sexto de um km e o carrossel continua a girar. Cada vez mais corredores! Ja­mais havendo qualquer contato entre eles, embora conti­nuem a ficar cada vez mais próximos, mais próximos, i_ i_ i i 1 1 í

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de um quilômetro. Podemos supor, para que este febril programa se com­

plete em um tempo finito ("Plano Bienal"), que o primeiro

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280 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

FIG. 117

corredor do país tenha sido ocupado em um ano; o primeiro de B, em meio ano; o primeiro de C, em um quarto de ano; o segundo do país A, em um oitavo do ano; e assim por diante, precisando, cada corredor, para ser ocupado, da me­tade do tempo necessário para seu imediato predecessor. O total do tempo transcorrido faz surgir, então, a série familiar:

1 + T + T + Í + I T + ^ + • · · = 2 -Assim, ao fim de dois anos, a terra anteriormente aban­

donada foi inteiramente ocupada e nenhuma pontinha ficou sem dono. Sobre cada centímetro quadrado, drapeja a ban­deira de um dos três países, seja A, B ou C.

E como será o mapa que deve mostrar estas fronteiras? Na realidade, é impossível de ser traçado, mas suponlmmos que procuramos conceber como seria êle se pudéssemos de­senhá-lo. Este mapa imaginário resulta de pedaços de sóbria Matemática e de pura fantasia. Porque todos os pontos fron-

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teiriços do mapa serão o lugar de encontro, não de dois, mas de todos os três países!

FIG. 118

* Num mundo aparentemente dinâmico, incessantemente

mudando e de constantes novidades, a procura de coisas imu­táveis constitui um dos principais objetivos da ciência. Os filósofos, desde os tempos pré-socráticos, têm procurado a essência imutável da realidade. Hoje, esta tarefa é do cien­tista.

Em Topologia, como nos outros ramos da Matemática, toma a forma de pesquisa dos invariantes. Repetidamente, durante esta busca, surge a necessidade de abandonar a in­tuição pela transcendente imaginação. Os invariantes de 4, 5, 6 e n dimensões são pura concepção. Enquadrá-los em nossas vidas, encontrar uso para eles no laboratório, dar-lhes forma para emprego nas ciências aplicadas parece impossível.

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282 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO Nada conhecemos que se lhes compare, nem mesmo um so­nho no qual tomem parte.

Contudo o que é conseguido pelos matemáticos, devagar, penosamente, peça por peça, no mundo sobrenatural do além-do-faz-de-conta, é, na realidade, parte do mundo coti­diano, das marés, das cidades, dos homens, dos átomos, dos eléctrons e das estrelas. De repente, o que vem da terra de n dimensões se torna útil na terra de três. Ou, talvez, descubramos que, afinal de contas, nós vivemos em uma terra de n dimensões. É a recompensa para a coragem e diligência, para o fino, livre, poético e imaginativo sentido comum ao matemático, ao poeta e ao filósofo. É a reali­zação da visão da ciência.

NOTAS

1. Para duas passagens distintas, o lápis tem de ser levantado do papel uma vez; para três passagens distintas, duas vezes; para n passagens distintas, n — 1 vezes.

2. Poincaré, Science et hypothèse. 3. Invariante é um nome inventado por um matemático inglês Syl-

vester, que foi chamado de Adão matemático, por causa dos muitos nomes que êle introduziu na Matemática. Os termos "invarian­te", "cliscriminante", "hessiano", "jacobiano" são todos dele. De fato, êle empregou caracteres hebraicos em alguns de seus tra­balhos matemáticos, o que, segundo Cajori, fêz que o matemá­tico alemão Weierstrass o abandonasse horrorizado.

Os invariantes surgem em outros ramos da Matemática. A teoria dos invariantes algébricos, desenvolvida por Clebsch, Sylves-ter e Cayley, se esconde na memória de todos os que estudaram equações do 2.° grau. O discriminante da equação ax2 — bx — c = 0, por exemplo, é o caso clássico de um invariante algé­brico. Uma equação do 2.° grau que sofra uma transformação linear mantém imutável uma certa relação entre seus coeficientes, expressa pelo discriminante, b2 — áac. O discriminante da equação transformada se mantém igual ao da equação original, multipli­cado por um fator que depende apenas dos coeficientes da trans­formação.

4. Ver capítulo 4, pág. 121, e nota 4, pág. 153. 5. Osgood, Advance Calculus. 6. Baseamo-nos, aqui, na versão do problema apresentada pelo re-

nomado matemático vienense, o falecido Hans Hahn, porque é mais satisfatória e mais clara que a própria apresentação de Brouwer.

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IX

V A R I A Ç Ã O E V A R I A B I L I D A D E

— O C Á L C U L O

A roda sempre roãopiante das variações, em que giram todas as coisas mortais.

SEENSER

As pessoas costumavam pensar que, quando uma coisa varia, está num estado de variação e que, quando uma coisa se move, está num estado de movimento. Sabe-se, agora, que isso é um erro.

"O UALQÜER PESSOA que entenda do assunto concordará que

mesmo a base em que se apoia a explicação científica da na­tureza é compreensível apenas àqueles que aprenderam, pelo menos, o cálculo diferencial e integral..." Estas palavras de Felix Klein, o renomado matemático alemão, são o eco das convicções de todos os que estudaram Ciências Físicas. É impossível avaliar e interpretar a interdependência das quan­tidades físicas apenas em termos de Álgebra e Geometria; é impossível ir além dos mais simples fenômenos observados, apenas com o auxílio dessas ferramentas matemáticas. Na construção das teorias físicas, o cálculo é mais do que o cimento que une os diversos elementos da estrutura, é o implemento utilizado pelo construtor em todas as fases da construção.

Por que será este ramo da Matemática peculiarmente apropriado para a formulação precisa dos fenômenos natu-

BEHTRAND RÜSSEÜ

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284 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO rais? Que poderes devem ser atribuídos ao cálculo, que não são, também, compartilhados pela Geometria e pela Ál­gebra?

Nossa impressão mais comum do mundo, errada ou não, é seu aspecto sempre variável. A natureza, assim como os artefatos que inventamos para dominá-la, parece estar em um fluxo constante. Mesmo os "absolutos" — espaço e tem­po — se contraem e dilatam incessantemente. A noite e o dia repetidamente se sucedem, estabelecendo as vicissitudes das estações do ano. Em todos os lugares há movimento, flu­xo, ciclos de nascimento, morte e regeneração. Em todos os lugares o padrão se movimenta.

Por alguma estranha razão, os assuntos já considerados, os muitos domínios da Matemática já explorados, descuida­ram-se deste dinamismo. Com exceção da função exponen­cial, não falamos na razão de variação de uma quantidade co­nhecida ou desconhecida. Na verdade, nosso equipamento, até agora, não poderia trabalhar este conceito. Por sorte, todos os problemas eram essencialmente estáticos. As Geo­metrias quadridimensional e não-euclidiana trataram de con­figurações invariáveis; quebra-cabeças e paradoxos foram resolvidos com o auxílio de engenhosidade, Lógica e Arit­mética estática; a Topologia procurou os aspectos invarian­tes das formas geométricas, independente de forma e tama­nho; e os conceitos desenvolvidos nos capítulos sobre Pie, Gugol e Probabilidade estavam, com uma ou duas exceções, livres do ingrediente da variação. A conclusão inevitável é que o único meio indispensável para o ataque à vasta maio­ria dos fenômenos foi negligenciado — que nossa investiga­ção se confinou a um aspecto periférico da cena mundial.

A palavra "cálculo" significava, originalmente, uma pe­drinha; adquiriu outra conotação. O cálculo pode ser enca­rado como o ramo da pesquisa matemática que trata de va­riação e razão de variação. O conforto com que uma pessoa dirige um automóvel se tornou possível, pelo menos em par­te, graças ao cálculo, Embora os planetas continuassem em

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 285 suas órbitas, mesmo sem o cálculo, Newton precisou do cálcu­lo para provar que elas são elipses. Encolhendo, do celes­tial ao atômico, a solução da mesmíssima equação usada por Newton para descrever o movimento dos planetas determina a trajetória de uma partícula alfa que bombardeia um nú­cleo atômico. * Por meio da fórmula que relaciona a dis­tância atravessada por um coipo em movimento com o tem­po transcorrido, a velocidade do corpo, bem como sua ace­leração, a qualquer instante, é determinada pelo cálculo.

Qualquer dos exemplos acima, simples ou complexos, en­volvem variação e razão de variação. Sem sua enunciação matemática exata, nenhum dos problemas descritos teria sen­tido e muito menos solução. Por isso, foi criada uma teoria matemática que toma conhecimento das imanentes e ubíquas variações de padrão e que se encarrega de examiná-las e ex­plicá-las. Esta teoria é o cálculo.

Mas não declaramos anteriormente, com tanta ênfase, que vivemos em um mundo sem movimento? E não mostramos, tão exaustivamente, empregando os paradoxos de Zenão, que o movimento é impossível, que a flecha está, na realidade, em repouso? A que atribuímos esta aparente inversão de po­sição?

Ainda mais, se cada nova invenção matemática se ba­seia em fundamentos há tanto tempo estabelecidos, como é possível tirar das teorias da Álgebra e da Geometria está­ticas uma nova Matemática capaz de resolver problemas que envolvem entidades dinâmicas?

Em primeiro lugar, não houve inversão de posição. Con­tinuamos firmemente entrincheirados na crença de que este é um mundo no qual o movimento e a variação são casos es­peciais do estado de repouso. Não há estado de variação, se variação implica um estado qualitativamente diferente do repouso; o que compreendemos como variação é meramen-

* L·so é válido apenas para as partículas alfa que se movem com velocidades relativamente pequenas.

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286 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO te, como indicamos anteriormente, uma sucessão de muitas imagens estáticas diferentes, percebidas em intervalos de tempo comparativamente curtos. Um exemplo pode ajudar a esclarecer a idéia. Embora, no cinema, uma série de fi­guras estáticas seja projetada na tela, uma após a outra, de

FIG. 119 — Cada aumento de peso verga a vara um pouco mais.

forma rápida, diferindo cada figura apenas ligeiramente da que a precede, não há a menor dúvida na mente do espec­tador mais inteligente de que o movimento está sendo retra­tado na tela. Uma apresentação de variação, absolutamente convincente, é feita por uma série de imagens totalmente es-

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VARIAÇÃO E VASIABTXIDADE — O CALCULO 287

táticas. Vamos continuar com um exemplo mais técnico. Uma vara de aço é presa, por uma extremidade, na horizontal, man­tendo um peso na outra extremidade. O sistema estando em repouso, diz-se que o conjunto de elementos que o com­põem estão em equilíbrio. Se, quando o examinamos de­pois de algum intervalo de tempo, observamos o mesmo ar­ranjo, a vara mantendo a mesma posição; está claro que não houve variação. Se, porém, há uma nova posição da vara, houve, obviamente, uma variação. É evidente que o equi­líbrio só pode ter sido perturbado, e a posição da vara alte­rada, com uma variação no peso. Não é difícil convencer-mo-nos de que qualquer peso adicional curvaria a vara ain­da mais e que tais aumentos, se feitos gradualmente, e tão rápidos quanto no cinema, dariam a impressão de que a vara está em movimento. Por outro lado, se estivermos cientes destes aumentos de peso, concluiremos que o que realmente observamos não é movimento e sim meramente uma corre­lação de aumento de curvatura com quantidade de peso e que, para diferentes pesos, há diferentes posições da vara.

Intuitivamente convencidos de que há continuidade no comportamento de um corpo em movimento, uma vez que, realmente, não vemos a flecha passar por todos os pontos em seu vôo, há uma tendência preponderante de considerar a idéia de movimento como algo essencialmente diferente do repouso. Mas esta abstração resulta de limitações fisio­lógicas; não é, de modo algum, justificada pela análise lógi­ca. O movimento é uma correlação entre posição e tempo. Variação é, meramente, outro nome para função, outro as­pecto da mesma correlação.

O cálculo, como descendente da Geometria e da Álge­bra, pertence à família estática e não adquiriu outras ca­racterísticas que não as já possuídas por seus pais. As mu­tações não são possíveis em Matemática. Assim, inevitavel­mente, o cálculo tem as mesmas propriedades estáticas da tábua de multiplicação e da Geometria de Euclides. O cálculo não é senão outra interpretação, embora tenhamos de admiti-la como engenhosa, deste mundo imóvel.

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288 MATEMÁTICA Ê IMAGINAÇÃO O desenvolvimento histórico do cálculo não seguiu li­

nhas tão claras. As discussões filosóficas referentes ao signi­ficado do assunto só vieram depois que sua utilidade tinha sido inquestionavelmente estabelecida. Antes disso, os filó­sofos não o considerariam digno de ataque. Infelizmente, não podemos contar (embora tivesse sido divertido) as arma­dilhas que cada filósofo e analista matemático, de Newton a Weierstrass, armou para seu adversário — e prontamente caiu nela êle próprio. Podemos, porém, delinear os passos que precederam a teoria tal como é aceita atualmente.

O cálculo não difere de qualquer outra teoria matemá­tica; não surgiu já adulto do gênio de um único homem. An­tes se desenvolveu da consideração de numerosas questões apresentadas e sucessivamente respondidas pelos predeces­sores de Newton e Leibnitz, "Toda grande época no pro­gresso da ciência é precedida de um período de prejjaração e previsão . . . As concepções, transformadas em ação nes­tes grandes períodos, ficaram longo tempo em preparação" , 1

O advento da Geometria Analítica deu um poderoso estí­mulo à invenção do cálculo, porque a representação gráfica de uma função revelou fatos muito interessantes. Kepler

FIG, 120 — A razão de variação de uma quantidade variável é menor no ponto máximo que em qualquer outro lugar.

notou que, à proporção que uma quantidade variável se apro­xima de seu valor máximo, sua razão de variação se torna menor do que em qualquer outro valor. Ela continua a di-

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 289

minuir até que, no valor máximo da variável, a razão de variação é zero.

No diagrama acima, os valores adotados para uma quan­tidade variável são medidos pela distância da reta (eixo dos x) à curva. O valor máximo da quantidade variável (a maior distância do eixo dos x à curva) é obtido no ponto assinalado por A; movendo-se ligeiramente, seja para a di­reita, seja para a esquerda de A, para o ponto B, por exem­plo, a variação do valor da quantidade variável é muito pe­quena e é medida por P. Se nos deslocamos a partir de qualquer outro ponto E, para a direita ou para a esquerda, a mesma distância de A a B, de tal sorte que EF seja igual a AB, a variação do valor da quantidade variável na vizi­nhança de E é medida por Ç. Mas, obviamente, esta segun­da largura, Ç, é maior que a primeira, P. Nisto, que é a contribuição de Kepler, temos a ilustração geométrica do princípio de máximo e mínimo: a razão de variação de uma quantidade variável é menor na vizinhança de seu máximo (ou mínimo) valor do que em qualquer outro ponto. De fato, nos valores máximo e mínimo, a razão é zero.

FIG. 121 — Usando uma escala, o perímetro do retângulo é, claramente, de 4 unidades.

Pierre de Fermat, que partilha com Descartes a distin­ção de haver descoberto a Geometria Analítica, foi um dos

19

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290 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

primeiros matemáticos a imaginar um método geral aplicá­vel para a solução de problemas que envolvem máximos e mínimos. Seu método, usado desde 1629, é, substancialmen­te, o aplicado hoje a problemas deste tipo. Seja traçar um retângulo tal que a soma de seus lados seja quatro polega­das e que a área * seja máxima. Se chamarmos um dos la­dos do retângulo máximo de x, o lado adjacente, como pode ser visto na Fig. 121, será 2 — x; e a área do retângulo será x (2 — x), Se o lado x fôr aumentado da pequena quanti­dade E, o lado 2 — x terá de ser diminuído de E, para se manter um perímetro constante. A nova área será então (x -f- E) (2 — x — E) . Como a área original era a máxima, es­ta ligeira alteração na relação entre os lados só pode ter

F G G

F E E

n D C C

B B A A

A A B B

C C D D

C

E E F

G G F

FIG. 122 — O perímetro de cada ura dos sete retângulos, AAAÁ, BBBB, CCCC, etc, é o mesmo. Mas, obviamente,

o retângulo de área máxima é o quadrado DDDD.

9 A área de um retângulo é o produto dos lados adjacentes.

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 291 produzido uma pequena variação na área. Então, conside­rando as duas áreas aproximadamente iguais, temos

x (2 - x) — (sc + £ ) (2 - x - E) donde

2x - X 2 =« 2* - x2 - Ex + 2E - Ex - E2.

Subtraindo 2x — x% de ambos os membros desta equação e fatorando:

0 = SE — 2Ex — E 2

0 — E (2 — 2x — E) .

Mas E não é igual a zero, portanto o outro fator (2 — 2x — E) deve ser zero:

0 — 2 — 2x — E.

À proporção que vão diminuindo os valores dados a E (isto é, à medida que o retângulo alterado se aproxima cada vez mais do retângulo máximo original) a expressão do se­gundo membro da equação se aproxima, cada vez mais, da expressão que se obtém ao fazer E igual a zero, ou seja, 2 — 2x. Resolvendo a equação resultantej

0 — 2 — 2a verificamos que x •= 1; ou, em termos do problema origi­nal, o retângulo de área máxima é um quadrado.

Convém notar que a área do retângulo é uma função dos comprimentos dos lados, e esta função pode ser repre­sentada por uma curva (Fig. 123).

O ponto mais alto desta curva está em x — 1. Este é o máximo da função. Para usar uma rude analogia, como este ponto não está "subindo" nem "descendo", uma bolinha de aço ficaria em equilíbrio ou uma régua se equilibraria, tam­bém, em tal ponto. Quando pensamos em uma reta estar "equilibrada" neste ponto, esta reta será chamada de tan­gente à curva.2 O fato interessante é que a tangente à curva em seus pontos de máximo e mínimo é sempre hori­zontal (Fig. 124). Voltaremos mais tarde a esta idéia, tão importante no cálculo.

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292 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Y

FIG. 123 — A curva é uma parábola que representa as áreas de todos os retângulos cujo perímetro seja de 4 unidades. Eleve-se uma perpendicular em qualquer ponto n, ao longo do eixo dos x da curva. O comprimento desta perpendicular será a área do retângulo, um lado do qual será igual a «· A área máxima corresponde ao ponto A do diagrama, isto é, a perpendicular tirada em x = 1. Então, o retângulo de área máxima, com um perímetro igual a 4, tem um lado igual

a l e , portanto, é um quadrado.

FIG. 124 — As linhas horizontais são tangentes às máxima e mínima relativas à curva.

Sir Isaac Newton e o Barão Gottfried Wilhelm von Leib­nitz dividem, na história da Matemática, a honra de serem os descobridores independentes do cálculo diferencial e in­tegral. Suas pretensões conflitantes fizeram surgir uma con­trovérsia que assolou a Europa por mais de um século. Esta

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VAHIAÇÃO E VAHIABELIDADE — O CALCULO 293 invenção monumental, feita simultaneamente por estes ho­mens, se recomenda, agora, à nossa atenção.

* Uma pequena chama, acesa por Arquimedes e seus pre­

decessores, adquiriu um novo brilho no clima intelectual­mente hospitaleiro do século XVII para lançar sua luz sobre todo o futuro da ciência. O fértil conceito de limite reve­lou seus poderes pela primeira vez no desenvolvimento do cálculo diferencial.

Já travamos conhecimento com o limite de uma quanti­dade variável, A seqüência de números 0,9, 0,99, 0,999, 0,9999, . . . converge para o valor limite 1. A série

l + ^ + ^ + T " 7 " ! ^ " ! - ··· converge para o valor limi­te 2. Os exemplos geométricos também são familiares. Se um polígono regular fôr inscrito em um círculo, a diferença entre o perímetro do polígono e a circunferência do círculo pode ser tornada tão pequena quanto se quiser, apenas es­colhendo um polígono com um número suficiente de lados. A figura limite é o círculo; a área limite, a área do círculo.

Nestes exemplos, não há dificuldade em determinar o limite; mas isso é a exceção, não a regra. Normalmente, um procedimento matemático formidável é necessário para de­terminar o limite de uma quantidade variável. Considere­mos o seguinte: tracemos um círculo com raio igual a um; inscrevamos, nele, um triângulo equilátero; no triângulo ins­crevamos outro círculo; no segundo círculo, um quadrado. Continuemos, com um círculo nesse quadrado e, depois, com um pentágono regular no círculo. Repitamos este procedi­mento, cada vez aumentando de um o número de lados do polígono regular.

À primeira vista, podemos supor que os raios dos círcu­los, cada vez menores, se aproximam do zero com seu valor limite. Mas isso não é a realidade; os raios convergem para um valor limite definido, diferente de zero. Como um indí­cio explicativo, só é necessário relembrar que o processo de diminuição, em si, se aproxima de um limite à proporção

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294 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

que os círculos e os polígonos inscritos se tornam aproxima­damente iguais. O valor limite dos raios é dado pelo produto infinito: 2

Raio — cos - X cos- X cos- X . . . X COS; — 3 4 5 (n - 2)

Fie. 125 — Os raios, cada vez menores, se aproximam de um limite aproximadamente igual a V12 do raio do primeiro círculo.

Relacionado bem de perto com este problema é o dos polígonos circunscritos aos círculos, em vez de serem ins­critos.

Aqui, pareceria que os raios deveriam crescer além de qualquer limite, tornar-se infinitos. Isto também é ilusório, pois os raios dos círculos resultantes se aproximam de um valor limite dado pelo produto infinito:

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 295

FIG. 126 — Os raios, cada vez maiores, se aproximam de um limite aproximadamente 12 vezes o do círculo original.

Ê bastante interessante observar que os dois raios limi­tes são relacionados de forma que um seja o recíproco do outro.

E chega de limite de uma quantidade variável. Passe­mos ao limite de uma função, relembrando, brevemente, o significado de função. * Vemos, muitas vezes, que duas quan­tidades variáveis são de tal forma relacionadas que, para ca­da valor de um, corresponde um valor de outra. Sob esta condição, as duas quantidades variáveis são consideradas co­mo função uma da outra, ou funcionalmente relacionadas. Assim, a força de atração (ou repulsão) entre dois ímãs é uma função da distância entre eles. Quanto maior a dis­tância entre os ímãs, tanto menor a força; quanto menor a distância, tanto maior a força. Se se permite à distância

* Embora já tivéssemos feito isto antes, a noção de função é tão importante, tão dominante em toda Matemática, que compensa repetir.

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296 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

ter valores arbitrários, ela pode ser considerada como uma variável independente. A força, então, se torna a variável dependente, dependendo da distância (e da relação funcio-

y = f(x) = x + 3 Então, f(5) = 5 + 3 = 8

y = /(*) ao maior inteiro menor que * 4.

FIG. 127 — Retratos de três diferentes funções.

nal) e só pode ser determinada quando são dados valores à variável independente. Em relações funcionais, a letra x

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 297

normalmente indica a variável independente; a letra y, a variável dependente. A dependência "y é uma função de x" é escrita, simbolicamente:

A representação gráfica de um ponto já foi discutida na seção de Geometria Analítica. A equação y = f(x) deter­mina o valor de y para cada valor de x. Cada par de va­lores que satisfaça esta equação é considerado como as coor­denadas cartesianas de um ponto no plano; a curva que re­presenta a função é composta de todos esses pontos.

Ao discutir o conceito "limite de uma função", vamos

estudar, especificamente, a função y = —, representada, graficamente na Fig. 128.

y - /(*).

FIG, 128 — Diagrama da função y — ^-

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298 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO O valor da função, no ponto x = \ é y = f (%) —2.

Este valor é graficamente representado pela distância do ponto no eixo dos x, % unidade para a direita da origem, até à curva. Da mesma forma, o valor da função em cada ponto ao longo da curva é representado por sua distância do eixo dos x.

Para a função y = -j, tomemos dois pontos vizinhos, x — ü e x = Já. Enquanto a variável dependente se move, ao longo do eixo dos x, do ponto x — % para x = \ a variá­vel dependente é "forçada" ao longo da curva, do ponto y = / ()í) = 4 para ij = / (M) = 2. Em outras palavras, en­quanto a variável independente x se aproxima de um limite, que tem o valor \ a variável dependente, a função, se apro­xima de um limite que é o valor 2. De modo geral, quando uma variável independente x se aproxima de um valor A, sua variável dependente y (a função de x) se aproxima de um valor B. Assim, o limite de f(x), quando x se aproxima de A, é B. É a isto que se chama "limite de uma função".

Relembrando o exemplo da vara de aço, curvada pelo peso, podemos construir um dicionário de termos paralelos.

MATEMÁTICA

Variável independente, x. Variável dependente, y. Função é a relação entre * e J/.

Aumento ou diminuição de * (isto é, variação).

Aumento ou dirninuição de y (isto é, variação).

Valor limite de y (a função de * ) igual a um número.

FÍSICA

Quantidade de peso. Valor da curvatura da vara de aço. Função é a relação entre o peso

e o grau de curvatura. Aumento ou diminuição do peso

(isto é, variação). Aumento ou diminuição do grau

de curvatura da vara de aço (isto é, variação).

Valor limite do grau de curvatu­ra (função do peso) igual a uma posição.

Tendo em mente os conceitos de limite, função e limi­te de uma função, resta-nos definir uma idéia englobando todos três — "razão de variação".

Consideremos a determinação da velocidade de um cor­po em movimento em um determinado instante. Uma bom-

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 299

ba é lançada por um dirigível estacionário a uma altitude de 400 pés. Cinco segundos se escoarão até que ela atinja o

solo. Sua velocidade média é, portanto, segun os _^ gQ ^ 400 pés

por segundo. Daí, a razão média de variação de distância, em relação ao tempo, ser 80. Sabemos, porém, de acordo com os mais elementares conhecimentos da Física, que um corpo adquire velocidade enquanto cai. Durante a queda,

FIG. 129 — O diagrama mostra a distância coberta pelo pro­jétil ao fim de 1, 2, 3, 4 e 5 segundos.

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300 M A T E M Á T I C A E IMAGINAÇÃO

a bomba não se movimentou a uma razão constante de 80 pés por segundo; a velocidade com a qual ela caiu variou de ponto para ponto, aumentou a cada instante sucessivo (sem levarmos em consideração a resistência do ar). Su­ponhamos, para fins de simplificação, que limitemos nosso interesse à velocidade da bomba no momento exato em que atinge o solo. Evidentemente, sua velocidade durante o úl­timo segundo antes de atingir o solo dará uma boa aproxi­mação da velocidade no momento da percussão. Sendo a distância, coberta durante o último segundo, de 144 pés, a razão de variação de distância, em relação ao tempo, é 144. Se tomarmos, agora, intervalos de tempo cada vez me­nores, podemos esperar obter aproximações cada vez maiores da velocidade do projétil no momento do impacto. No úl­timo meio segundo, a distância coberta foi de 76 pés; a ve­locidade, portanto, foi de 152 pés por segundo. A tabela relaciona os intervalos de tempo, a distância percorrida nes­tes intervalos e a velocidade média em cada intervalo. Po­de-se ver, facilmente, que, à proporção que o intervalo de tempo se aproxima de zero, obtemos a aproximação da velo­cidade do corpo no instante em que atinge o solo.

Estas aproximações se avizinham de um valor limite, 160 pés por segundo, que é definido como a velocidade instantâ­nea da bomba ao atingir o solo ou, o que é a mesma coisa, sua razão de variação de distância em relação ao tempo na­quele instante.

Podemos discutir o mesmo exemplo sob o ponto de vista algébrico. A distância percorrida por um corpo que cai é dada pela função y = 16 x2, onde y é a distância e x é o tempo transcorrido. Desta fórmula, meramente substituindo x por 5 (segundos), veremos que y é igual a 400 (pés).

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O C Á L C U L O 301

Como faremos uso desta fórmula para achar a velocidade ao fim de cinco segundos? Fixemos nossa atenção em um pequeno intervalo de tempo exatamente antes do objeto atin­gir o solo e no pequeno intervalo de distância atravessado neste período de tempo. Chamaremos es te pequeno inter­valo de tempo de Ace° e a distância percorrida neste pe­ríodo chamaremos de At/. Conhecendo o valor de A Í , escolhido arbitrariamente, o problema é achar o valor de At/. No início do intervalo de espaço, Ay, o tempo exato percor­rido desde que o corpo deixou o dirigível foi de (5 — Ax)

76/^seg. 152 pés por segundo

39/ X seg. 156 pés por segundo

21/7 s e g-= 158 pés por

segundo

FIG. 130

1,598/ seg. = 159,8 pés por segundo

* Leia-se "delta x" e não "delta vezes porque A é apenas um símbolo, uma direção de como executar uma certa operação, isto é, tomar uma pequena parte de x.

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302 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

segundos. A distância percorrida no tempo (5 — Ax) se­gundos é (400 — AÍ/) pés. Nossa relação funcional indica que

Distância «=» 16 (Tempo transcorrido) 2 . Então, para toda a queda: 400 = 16 (5) 2,

e, para a trajetória incompleta, (400- Ai/) = 16 ( 5 - A i ) 2 .

Isto pode ser simplificado para:

400 - 16(5 - Ax) 2 = 400 - 16(25 - 10Ax + Ax2) = Ay 400 - 400 + 160Ax - 16Ax2 = àj 160Ax - 16Ax2 = Ay.

A última equação dá a distância At/ em termos de Ax uni­dades. Para encontrar a velocidade média durante todo o intervalo de tempo Ax, devemos formar a fração

, . , 7 , , Intervalo de tempo Velocidade media = =—=—— : —

Intervalo de distância ° U w , -A A 'A- 160A* - 16Ax2

Velocidade media = = — = -. Ax Ax

Av Então — = 160 - 16Ax.

Ax Ora, à medida que o intervalo de tempo Ax se torna menor, isto é, à proporção que tomamos aproximações cada vez maiores da velocidade no instante em que o corpo atinge o solo (havendo transcorrido 5 segundos), o limite da razão At// Ax (== 160 - 16 Ax) é 160. Em outras palavras, quando Ax se aproxima de zero em valor, a função de Ax (a expressão 160 — 16 Ax) se aproxima de 160. Assim, a velocidade instantânea, ao fim de cinco segundos, é 160 pés por segundo. Indicamos que a razão At//Ax se aproxima de um limite, escrevendo seu valor limite como dy/dx. Em termos técnicos L i m AZ _ Q

Ax->0 Ax dx que se lê "O limite de Ay/Ax, quando Ax tende para ze­ro, é dy/dx".

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VARIAÇÃO E VABIABILIDADE — 0 CÁLCULO 303

Vamos fazer uma pausa, por um momento, para arru­mar nossa bagagem. O que conseguimos? Pode parecer trivial que, com toda a complexa maquinaria à nossa dis­posição, tenhamos apenas conseguido determinar a veloci­dade instantânea de um corpo cadente quando êle atinge o solo. Contudo, se nossa façanha é trivial, então o mo­vimento é igualmente trivial, porque conseguimos, cons­cientemente ou não, apanhar a flecha de Zenão em seu vôo e estabelecer a invariabüidade de nosso universo. Com o auxílio dos conceitos de limite e função, tornamos significativa a noção de variação e razão de variação. Va­riação é uma tabela funcional. Com um elemento (variá­vel independente) em um lado da tabela variando, o ele­mento correspondente (variável dependente) mostra, do ou­tro lado da tabela, uma variação correlativa. O quociente de variação, isto é, a razão limite das duas variações, é cha­mado de razão de variação. Todas as divagações, os misté­rios e incertezas indissoluvelmente ligados à idéia de movi­mento são, assim, afastados ou, mais propriamente, transfor­mados em alguns aspectos, precisos e definíveis, da idéia de função. O limite de uma função é exemplificado muito sim­plesmente pela razão At//Ax, quando Ax tende para ze­ro. É fácil ver que à.y/Ax é uma função de AX, em ou­tras palavras, que esta razão é uma função da variável in­dependente Ax. Quando damos valores arbitrários para Az, sua variável dependente, At/, recebe um correspondente con­junto de valores e, como vimos, esta razão tende para um limite. Daí se conclui que não somente revelamos a signi­ficação do limite de uma função como já fizemos um uso prático deste conceito.

É possível, agora, definir o processo fundamental do cálculo diferencial, computando o limite de uma função, ou, o que é a mesma coisa, determinando sua derivada. Porque, com efeito, a razão de variação de uma função é, ela mes­ma, uma função desta função, e, chegando ao limite da ra­zão de variação, a derivada, estamos atingindo o centro do mecanismo de nossa função primitiva.

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304 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Suponhamos que queremos determinar a razão de varia­ção de uma função y — f(x) em um ponto arbitrário xa. A variação média na função f(x) em um intervalo que se estende de Xo a xo -f- Ax é a diferença de valor da função y = f(x) EOS pontos extremos, x0 e Xo + Ax, dividida pela distância entre estes dois pontos extremos, (x0 + Ax) — Xo-Então,

yo = /(xo) e j/o -f At/ = f(xo + Ax).

Daí, uma variação em uma função, do ponto de vista pura­mente algébrico, é dada por A_y = /(xo + Ax) — /(*o), e a razão média de variação de uma função, obtida dividin­do-se a variação, Ay, pela distância do intervalo em que esta

variação é tomada, AX, é = + A*) - / ( * " ) . Ax Ax

Para se obter melhores aproximações para a razão de varia­ção instantânea no ponto Xo, é apenas necessário usar me­nores intervalos, isto é, deixar Ax aproximar-se de zero.

J „ T J - / ( * 0 + A x ) - /(Xo) Quando Ax tende para zero, a expressão —

Ax se aproxima, tão perto quanto se queira, da razão de varia­ção instantânea em xo- Assim, no limite, quando Ax tende para zero, o quociente /(*<> "T~ ~ /(•*<>) tende para um

Ax valor limite, representado por dy/dx. É isto que é deno­minado derivada da função f(x) no ponto x0. Mas, como x0

é um ponto arbitrário, pode-se dizer que a derivada repre­senta a razão de variação instantânea de uma função quando a variável independente percorre um conjunto inteiro de valores.

A bem da clareza, pode ser útil tuna interpretação geo­métrica da derivada. Cronologicamente, a interpretação geo­métrica precedeu a analítica. Um dos principais problemas do século XVII foi o de traçar uma tangente a uma curva em um ponto arbitrário. Foi resolvido pelo predecessor e mestre de Newton em Cambridge, Isaac Barrow. Com base

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VAKIAÇAO E VARIABILTfiADË — Ó CALCULO

FIG. 131

Consideremos os pontos Pi e P 2 desta curva; suas coor­denadas x são representadas por xQ e x0 + Ax, onde A i é a distância entre as projeções dos dois pontos no eixo dos *. As coordenadas y dos pontos Pi e P 2 são, então, determina­das pela equação da curva e são f(xo) e f(xo + A ï ) res­pectivamente. A inclinação 2 da linha que une Pi a P 2 (tan­gente do ângulo 0 ) é exatamente o quociente

J(xo + Ax) -/{>,)

Ax Quando deixamos Ax se aproximar de zero, o ponto P2 é descolocado ao longo da curva, aproximando-se de Pi, e a inclinação da linha (o quociente acima) se aproxima de seu valor limite que é a da tangente à curva no ponto Pi. Mas a inclinação da tangente neste ponto é numericamente igual a

20

nas pesquisas geométricas de Barrow, Newton desenvolveu o conceito de razão de variação em linhas analíticas. A ín­tima ligação entre a Álgebra e a Geometria, resumida no fa­to de que cada equação tem um diagrama, e cada diagrama tem uma equação, frutificou mais uma vez. No plano car­tesiano, suponhamos que o diagrama da função y = f(x) seja a curva da Fig. 131.

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306 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

dy/ limite Ay ây\ .xf já que bx-^Q ~ — ~£~y Em outras palavras, a incli­nação da tangente em qualquer ponto ao longo de uma cur­va é idêntica à derivada neste ponto. Ora, de outro modo, a inclinação da tangente a uma curva dá a direção que a curva está tomando (isto é, se está subindo ou descendo) e, assim, sua razão de variação. Portanto, o equivalente geo­métrico da derivada é a inclinação da tangente.

Podemos agora relembrar nossa declaração de que os valores para os quais uma função atinge seus máximo e mí­nimo correspondem aos pontos da curva nos quais a tangente é horizontal. A inclinação de uma linha horizontal é, evi­dentemente, zero. Como a derivada é idêntica à tangente, podemos concluir que os valores máximo e mínimo de uma função são aqueles para os quais a derivada da função é igual a zero. Muitos problemas interessantes podem ser resolvi­dos desse modo.

O problema anteriormente discutido de determinar o re­tângulo com a maior área e maior perímetro fica dentro dessa categoria. Um dos lados do retângulo é denominado x, o adjacente 2 — x, e a área, y, x(2 — x). Como a área é uma função de x, sua derivada será igual a zero quando a função atingir seu valor máximo. Para achar o retângulo de área máxima por meio do cálculo, efetuamos as seguintes operações: 1) Diferenciamos a função, isto é, achamos sua derivada; 2) fazemos a derivada igual a zero; 3) acha­mos x na equação resultante.

l . a Fase:

y = *(2 - x) y + Ay = (x + Ax)(2 - x - Ax)

(y + Ay) -y = {x + Ax)(2 - x - Ax) - x(2 - x) Ay = 2x — x2 — xAx + 2Ax — xAx — Ax2 — 2x -\- x5

Ay = 2Ax - 2xAx — Ax2

A? ~ - 2 - 2x - Ax Ax

Limite &y _ dy À * - * 0 * * dx

dy e ~ = 2-2x

dx

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 307

2.a Fase; 3.a Fase:

2 - 2x — 0

2 — 2*

1 - x

Isto verifica o resultado obtido anteriormente sem o auxílio do cálculo; o retângulo de área máxima, com o perímetro de 4, é um quadrado cujos lados são iguais a 1.

Exemplos mais complicados, extraídos dos campos da Química, Economia, Física etc, exigem maior sofisticação em relação à técnica matemática, mas não no que diz respeito a idéias.

J. = 2 - 2x — 0 ax

Considerando-se a derivada em qualquer ponto do inter­valo em que é definida, vimos que ela é, por sua vez, uma função da variável independente. A diferenciação não pre­cisa parar aí, porque a função derivada pode também ter uma derivada, a segunda derivada da função original. A

d2y notação para a segunda derivada de y = j(x) é — .

ax2

A enésima derivada de uma função é obtida diferenciando-a n

d"v vezes, Seu símbolo é — · O que significam essas deri-

dxn

vadas maiores?

Normalmente, é possível dar à segunda derivada uma interpretação física e geométrica. Se a função y — f(x) representa a distância percorrida por um corpo que cai no tempo x, a primeira derivada representa a razão de variação de distância, em relação ao tempo. A segunda derivada é a razão de variação da razão de variação da distância em re­lação ao tempo, e é comumente conhecida como a aceleração

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308 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

do corpo. Para um corpo que cai, a distância y =» 16 x* deve ser diferenciada uma vez para se obter a velocidade e uma vez mais para se obter a aceleração. Os detalhes mate­máticos das duas diferenciações são:

(I) y = 16x2

y + Ay = 16(x + Ax)3

0 + Ay) -y = 16(x + Ax)2 - 16x2

= 16(x2 + 2xAx + Ax2) - 16x2

= 16x2 + 32xAx + 16Ax2 - 16x2

Ay = 32xAx + 16Ax2

Ay Ax

Limite Ay dy Ax —• 0 Ax ~~ dx

= 32x + 16Ax

dx = 32x.

(II)

Ax

W

- 32x

= 32 (x+Ax)

= 32 (x+Ax) - 32x

= 32 Ax

= 32

Limite \dxj d^y Ax-*0 Ax dx2

^ = 32 dx2 J

A segunda derivada é uma constante, o número 32. Esta constante é chamada de constante gravitacional de um cor-

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VARIAÇÃO E VAHIABILrDADE — O CALCULO 309

po que cai devido à atração gravitacional da Terra. Ela simboliza o notável fato de que qualquer corpo, independente de sua massa, jogado de uma altura de 16 pés acima do solo (e desprezando a resistência do ar), atingi-lo-á em um segundo, movendo-se a uma velocidade de 32 pés por se­gundo no instante do impacto.

Quanto à interpretação geométrica da segunda deriva­da: para curvas traçadas em um plano, a cada instante, a curvatura é diretamente proporcional à segunda derivada. Pa­ra determinar a curvatura de um arco dado, traça-se o círcu­lo que melhor se enquadra neste arco.

FIG. 132

O raio deste círculo é o raio da curvatura, e sua recíproca é a curvatura.

Vejamos como isso é aplicado, por exemplo, à linha re­ta. A curvatura de uma linha reta é zero. Qualquer função, cujo diagrama é uma linha reta, é representada por uma equação da forma y = mx + b, onde m e b são constantes.

Diferenciando, teremos ãy/dx = m. Quando m é di­ferenciado, sua razão de variação ou derivada é igual a zero, uma vez que m é uma constante. Assim, a primeira deriva­da nos diz que a inclinação de uma linha reta é uma cons­tante; a segunda derivada, que sua curvatura é zero.

Não existem interpretações física e geométrica simples das terceira, quarta ou mais elevadas derivadas. Apa­recem, porém, derivadas mais altas em muitos problemas de Física. Os engenheiros de automóvel estão interessados em terceiras derivadas, porque elas dão informações sobre a qualidade de direção de um carro. Engenheiros de estru-

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turas, que lidam com a elasticidade de vigas, a força das colunas e com as fases da construção em que há tração e pressão, acham indispensáveis as primeira, segunda, tercei­ra e quarta derivadas; e existem inúmeros outros exemplos nos campos das Ciências Físicas e aplicações estatísticas às Ciências Sociais.

FIG. 133 — Diagrama da equação y = mx + b.

As questões resolvidas pelo cálculo integral apareceram em um período muito anterior ao das do cálculo diferencial. Mas isso não quer dizer que os artífices matemáticos usados em um precederam os do outro, porque os conceitos de limi­te, função e limite de uma função, tal como aparecem no cálculo, foram desenvolvidos ao mesmo tempo para os dois ramos. Mas o tipo de problema que o cálculo integral pro­cura resolver é mais fácil de propor e, daí, não surpreende que, entre os trabalhos dos matemáticos gregos, achemos pro­blemas que, agora, identificamos sob o título de integração,

Muito mais surpreendente é a íntima relação que existe entre as duas divisões do cálculo, a diferencial e a integral. Uma coisa é determinar a razão de variação de uma função

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 311

ou a inclinação da tangente a uma curva; calcular a área compreendida por uma curva dada parece ser um problema de natureza completamente diferente. Por mais maravilhosa que possa parecer a ligação entre estas investigações apa­rentemente sem conexão, isso é secundário em relação à sa­tisfação que o matemático experimenta com o caráter com­plementar destas duas poderosas ferramentas.

FIG. 134 — Quadratura da parábola. A área sombreada é igual a Vs da área do retângulo.

"A quadratura do círculo" desafiou os matemáticos gre­gos. Outro aspecto deste problema, talvez não o mais co­nhecido, mas de igual importância, é a retificação do círculo, Refere-se à determinação do comprimento da circunferência de um círculo, em termos de comprimento do raio. Embora nunca hajam dominado o círculo, eles parcialmente doma­ram a parábola. Nisto, como em outras coisas, usaram sua fértil engenhosidade. Conseguiram, por métodos profunda­mente belos, quadrar 0 a parábola, mas não retificá-la.3

Uma discussão sobre seus métodos mostrará mais o gê­nio de Arquimedes do que a teoria geral do cálculo integral. Sem dúvida, o plano de Arquimedes prefigurou a técnica do cálculo, mas, nos séculos comparativamente áridos que se seguiram, a semente que êle plantou encontrou pouco au­mento. Somente com o aparecimento de Kepler é que houve

* Quadrar a parábola, como vimos antes, significa calcular a área limitada por um segmento parabólico e uma linha reta.

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uma tentativa de lidar, sistematicamente, com a determina­ção das áreas e volumes de figuras curvilíneas. É triste men­cionar que seu incentivo foi menos a sede do saber que as necessidades comerciais da industria de matar a sede. "Kepler foi originalmente levado a fazer os cálculos . . . por um de­sejo de melhorar os métodos rudimentares, então em uso, de estimar o conteúdo dos barris de vinho e de outros recipien­tes. Enquanto comprava vinho, êle observou que os taber­neiros determinavam o conteúdo dos barris passando uma vara de medir pelo buraco no bojo do barril até às aduelas opostas sem levar em conta a curvatura destas. Rodando-se uma seção longitudinal do barril em torno de seu eixo, um corpo de volume igual ao do barril seria formado. O plano de Kepler foi dividir estes sólidos assim gerados em um nú­mero infinito de partes elementares e somá-los; e em sua Stereometria êle aplica este método a cerca de noventa casos especiais. Kepler considerava arcos infinitamente pequenos como linhas retas; planos infinitamente estreitos como linhas, e corpos infinitamente finos como planos. Sua concepção de grandezas infinitamente pequenas foi uma das que os antigos em geral evitavam, mas que, pouco depois, foi a base do método de Cavalieri".4

Talvez seja conveniente frisar, neste ponto, que, em nos­sa discussão do cálculo, evitamos, sistematicamente, qualquer referência ao infinito, grande ou pequeno. Graças a Weier-strass, o cálculo se apoia em compreensíveis e não-metafí-sicos fundamentos de limite, função e limite de uma função. Nada impede a extensão destes conceitos ao cálculo integral. Na verdade, o afastamento do infinitamente pequeno sig­nifica mais para o cálculo integral que para o diferencial. Foi justamente esse refinamento de pensamento que elevou o cálculo a uma ciência muito exata.

O trabalho de Cavalieri representou um avanço, ao de­monstrar maior generalidade e um método mais abstrato de tratamento que o de Kepler. Um dos principais teoremas ain­da usa seu nome. Se dois sólidos têm a propriedade de, quando cortados por planos, manterem as áreas resultantes

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 313

em proporção constante em toda a extensão, seus volumes estarão na mesma proporção.

O problema inicial, portanto, de determinar as áreas li­mitadas por curvas estava em via de ter uma solução até onde o mecanismo mdimentar o permitia. Mas o desenho do mecanismo não era apropriado para o cálculo do com­primento da hnha curva. Um artifício diferente era neces­sário.

Todos os problemas simples da Matemática participam de um aspecto comum: não se podem antecipar as dificul­dades que eles podem esconder. Certamente nada parece mais fácil que a medição do comprimento de uma linha. Pegue um pedaço de papel e marque dois pontos nele. Se você ligar estes dois pontos por uma linha reta, tudo o que é necessário para saber seu comprimento é uma régua. Nem precisamos ficar para trás por causa do retrógrado bocejo do discurso filosófico: que meios devem ser usados para me­dir o comprimento da régua; que meios devem ser usados para medir o instrumento de medida que medirá a régua, etc, etc. Está combinado que podemos medir o comprimen­to de uma linha reta. Suponhamos, porém, que liga­mos os dois pontos por uma curva; achar seu comprimento é uma história completamente diferente. Um dos meios de proceder podia ser apanhar um pedaço de barbante, adaptá--lo à curva e medir seu comprimento com uma régua. Mas isso nos faz regredir ao ponto de partida, porque parece que as únicas linhas que podemos medir são retas, Para me­dir o comprimento de uma linha curva, torna-se necessário, com efeito, estirá-la.

Agora, podemos ter outro meio sugerido para medir cur­vas. Temos lançado mão, principalmente neste capítulo, de métodos de aproximação. Assim, podemos dividir o arco em um certo número de pequenas partes e ligar as extremidades dos pequenos arcos com linhas retas. As pequenas linhas retas diferirão, em sua soma, menos da soma dos pequenos arcos do que uma única reta diferiria do comprimento da curva inteira,

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E m outras palavras, a soma dos comprimentos das peque­nas linhas retas será aproximadamente o comprimento da cur­va. Usando-se um número de linhas suficientemente grande (e fazendo-as individualmente pequenas), conseguiremos que a soma de seus comprimentos difira do comprimento da cur­va tão pouco quanto se queira. Quanto maior fôr o número de pequenas linhas, tanto mais precisa será a aproximação.

Fie. 135 — Aproximação do comprimento de uma curva por meio de linhas retas.

Se concebermos o número de linhas aumentando conti­nuamente, podemos dizer que sua soma tende para um li­mite — o comprimento da curva. Vamos tentar expressar isto em termos de limites e limites de funções.

Suponhamos que y = f(x) seja a equação da curva que une os dois pontos A e E em um plano cartesiano. Divida­mos o eixo dos x, sob a curva, em « partes iguais. A coorde­nada x do ponto inicial A é aQ; a coordenada x do ponto se­guinte é ay, a do terceiro ponto é a% e assim por diante, de forma que a coordenada x do último ponto é an ou B. A diferença entre dois valores adjacentes de x pode ser repre­sentada por A x; a diferença entre dois valores adjacentes de ty (obtidos levantando-se perpendiculares aos valores ad­jacentes no eixo dos x) é Ay. Na Fig. 136, cada par de pontos selecionados na curva limita uma hipotenusa de um

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 315

triângulo retângulo sombreado, cuja base é Ax e cuja altura é Ay. Assim, a hipotenusa de cada um destes triângulos se­rá uma aproximação ao comprimento da parte da curva que a limita. Daí, a soma das hipotenusas de todos os peque­nos triângulos se aproxima do comprimento da curva. Usan­do o teorema de Pitágoras, o valor de cada hipotenusa pode ser facilmente obtido. Aumentando o número de subdivisões,

FIG. 136 — Aproximação ao comprimento de uma curva por hipotenusas de triângulos retângulos. A base de cada triân­

gulo é Ax, sua altura é AH-

faremos uma aproximação mais precisa. Assim, quando Ax tende para zero, à proporção que os intervalos ao longo do eixo dos x se tornam cada vez menores, a soma das hipote­nusas dos triângulos se aproxima do limite, que é o compri­mento da curva. Deve-se salientar que o comprimento de cada pequena hipotenusa é uma função de seu correspon­dente Ax. *

Podemos passar agora à determinação da área limitada por uma curva, porque é neste problema que o cálculo inte­gral teve suas idéias vividamente estabelecidas.

Calcular a área de uma figura limitada por linhas retas, por mais irregular que seja, é relativamente simples. Só é necessário introduzir linhas auxiliares de tal forma que a fi­gura original seja partida em um certo número de triângu­los. Somando-se as áreas destes triângulos, obtém-se a área da figura original.

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Quando as linhas limítrofes de uma figura não são re­tas, mas curvas, este procedimento não é apropriado e deve--se, novamente, recorrer à aproximação. Se dividimos os lados curvos da figura em um grande número de partes, unin­do suas extremidades por hnhas retas, exatamente como fizemos antes, a figura resultante, um polígono limitado por

FIG. 137 — A área deste polígono irregular é determinada for­mando-se os triângulos indicados e calculando-se a área de

cada um deles.

lados retos, tem uma área que pode ser determinada por meios elementares. Aumentando-se o número de lados do polígono, sua área diferirá da da figura original tão pouco quanto o quisermos e, assim, dará uma aproximação tão gran­de quanto necessário.

Mas um meio mais eficaz de dividir uma figura curvi­línea é por meio de retângulos. Foi precisamente este o ar­tifício inventado por Arquimedes. A Fig. 138 mostra um círculo dividido em faixas retangulares. Conforme o méto­do de construir estas faixas, pode-se notar que não apenas uma, mas duas aproximações podem ser obtidas. A primei­ra dá a área dos retângulos inscritos no círculo; a segunda, a dos circunscritos. A discrepância entre as duas áreas retan-guladas torna-se cada vez menor à medida que o número de

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YABIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 317

retângulos aumenta; em outras palavras, que diminuem de largura. Seu limite comum, como a área interior aumenta e a exterior diminui, é a área do círculo.

FIG. 138 — Aproximação da área de um círculo pelo uso de retângulos.

Em vez de nos limitarmos a este exemplo especial, se discutirmos o problema geral de achar a área limitada por um segmento de uma curva arbitrária, o método que aca­bamos de descrever poderá tornar-se mais claro. Quere-

mos achar a área da parte sombreada da Fig. 139, Ela é limitada, em cima, pela curva y — /(*); em baixo, pela par­te do eixo dos x, de x — A a x = B; e, à direita e à es-

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querda, por linhas retas paralelas ao eixo dos y. Dividamos o eixo dos x em n subintervalos iguais, tal como na Fig. 136. Elevemos, em cada um dos pontos divisórios, uma perpendi­cular do eixo dos x à curva. Onde a perpendicular intercep­tar a curva, tracemos uma horizontal entre as verticais adja­centes. Para cada pequeno subintervalo, no eixo dos x, ha­verá dois retângulos: um sob a curva, o outro estendendo-se acima dela e contendo parte da área externa. Consideremos um subintervalo típico (ver Fig. 140).

FIG. 140

A área do retângulo menor ÂBCD é igual à base AB ve­zes a altura AD, sendo esta altura o valor da função do pon­to inicial do subintervalo, A; a área do retângulo maior A B E F é o produto da mesma base AB pela altura BE, valor da fun­ção no ponto terminal do subintervalo, B. A área sob a curva fica entre as áreas destes dois retângulos. Uma aproxima­ção excelente à área desejada é obtida tomando-se o valor médio dos dois retângulos. Repetindo este processo para cada subintervalo e achando a soma dos retângulos mé­dios, teremos a aproximação da área inteira sob a curva. Procurando novamente o auxílio do conceito de limite de uma função, podemos ver que à medida que aumentamos o número de subintervalos no eixo dos x, a soma das áreas correspondentes aproxima-se, evidentemente, da área da fi-

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VARIAÇÃO B VARIABILIDADE — O CÁLCULO 319

gura sombreada (Fig. 139). No limite, esta soma de muitos elementos de pequenas áreas é chamada de integral definida da função y ==• f{x) entre os valores de x = A e de x = B,

rB

ou na taquigrafia de Leibnitz é: í f(x)dx d A

Recapitulando brevemente: cada um dos subintervalos ao longo do eixo dos i é A i , que é a base de cada uma das pequeninas áreas retanguladas. A altura do retângulo mé­dio é representada por uma perpendicular traçada de um ponto típico no interior do intervalo Ax até a curva. Seu valor é, logicamente, f(x), A área de cada um destes re­tângulos médios é f{x)- Ax, e a soma destas áreas é a soma de tais produtos. Em simbolismo técnico, a área limite é escrita sob a forma fA

Bf(x)dx3 on^e dx substitui Ax,

já que A* —* 0.

* Nossa interpretação da integral definida é que é uma

área. Ter tal significação é possível, mas existem integrais de certas funções que têm sentido físico adicional. Princi­palmente porque a integral definida é um número, uma soma, assim como uma área. Sempre que, na ciência, uma função é somada até o limite, a integral definida pode participar. Uma das realizações do cálculo integral foi a determinação do momento de inércia de todos os sólidos. Além disso, é à integral definida que os engenheiros estruturais devem agra­decer a ponte Golden Gate, porque esta repousa mais sobre isso do que sobre concreto e aço. Dominar a força de nos­sas represas gigantescas, com suas faces curvas e desiguais, representa outro problema de integração de uma função. De-terminando-se a pressão da água em um ponto arbitrário e somando-a em toda a face da represa, a força total é obti­da. O centróide, isto é, o centro de gravidade de qualquer plano ou figura sólida, é facilmente calculado por meio do cálculo integral, quando aplicado à função específica que define esta figura. Tais exemplos podem ser multiplicados indefinidamente.

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Além do conceito de integral definida, com seus muitos usos e ricamente matizado campo de aplicação, há a noção de integral indefinida, de ainda maior valor para o matemá­tico. Seu principal interesse teórico é que êle nos habilita a exibir a espantosa relação entre a derivada e a integral.

Consideremos a função y ·= f(x). E m vez de limitar o inter­valo, como anteriormente, de x = A a x = B, imaginemos que êle se estende de x = A a x = xo, onde Xo pode ter qualquer valor. Dos diferentes valores de Xo, a integral definida tam­bém receberá valores diferentes. N a verdade, não teremos mais em consideração uma área hmitada, mas os requisitos para preparar uma tabela funcional. D e um lado, serão re­lacionados os valores sucessivos de x 0 ; do outro, os valores correspondentes da integral definida. Esta correspondência entre os valores de Xo e da integral definida é, por si mesma, uma função chamada "a integral definida" da função y = f(x). Eis o problema! A integral definida da função y = f(x) é um número determinado por um intervalo de comprimento definido e uma porção da curva y — f(x) de­finida sobre este intervalo. Quando se estende o intervalo, de u m ponto fixo a uma sucessão de outros, a cada um des­tes corresponde um valor da integral definida. Esta corres­pondência, esta função, é a integral indefinida da função ori­ginal y = f(x) e é simbolizada porff(x)dx.

Por aí podemos adivinhar o que os dois ramos aparen­temente diversos do cálculo têm em comum. A relação entre a diferenciação e a integração é reminiscente da Aritmética elementar. Ê a mesma relação que existe entre a adição e a subtração, a multipHcação e a divisão, a involução e a evo­lução. Uma operação é o inverso da outra. Começando com

a função y «=· /(x), na diferenciação obtemos . O que

obtemos ao integrar a função O tema do cálculo aí

está revelado, porque voltaremos à função original, y = f(x). A integral indefinida de uma função y = f(x) é outra função de x que representaremos por y = F(x). É lógico que a derivada de y = F (x ) e f(x). Cada função pode, portanto,

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 321

ser considerada como a derivada de sua integral e como a integral de sua derivada.

Já nos referimos, anteriormente, à função exponencial y = ex e ao seu emprego para descrever o fenômeno do cres­cimento. É a única função cuja razão de variação é igual à própria função. Diferenciando-se y = &*, obtém-se

= ex. Integrando-se, o resultado é o mesmo. Daí concluí­mos que a história da vida de qualquer organismo — ameba, homem ou árvore — de qualquer fenômeno que apresente propriedades de crescimento orgânico — é apropriadamente descrita pela integral de é". Esta estimulante concepção não é difícil de visualizar. A proporcionalidade entre a razão de crescimento e o estado de crescimento pode estar incorporada na função exponencial. Se ela é integrada, o crescimento total durante um certo período é dado pela integral definida, e o caráter geral do crescimento estabelecido sucintamente pela integral indefinida.

Concluindo, reexaminemos o problema do corpo que cai. Começamos com a distância que o corpo percorreu em um certo período de tempo e determinamos sua velocidade a cada instante pela diferenciação. A aceleração a cada ins­tante, por sua vez, foi obtida pela diferenciação da primeira derivada, encontrando a razão de variação da velocidade em relação ao tempo. Galileu e Newton fizeram a mesma coi­sa, mas em marcha a ré. Eles, sagazmente, adivinharam que a aceleração de um corpo caindo era uma constante, a cons­tante gravitacional. Integrando a função que simboliza esta hipótese, fizeram a clássica descoberta das leis do mo­vimento:

1) a velocidade de um corpo caindo é gt, onde g é a aceleração da gravidade, et, o tempo transcorrido desde que o corpo começou a cair.

2) a distância percorrida pelo corpo caindo é % í 2 .

Esta e outras leis do movimento, regulando qualquer partícula do universo, podem ser obtidas, simples e elegan-21

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322 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO temente, por meio do cálculo. Mas isto não é tudo, porque o cálculo não ajudou somente a desvendar alguns dos mais íntimos segredos da natureza; deu ao matemático muitos mundos mais para conquistar do que Alexandre jamais so­nhou.

A P Ê N D I C E

CURVAS PATOLÓGICAS

As curvas tratadas pelo cálculo são normais e sadias; não têm idiossincrasias. Mas os matemáticos não ficariam satis­feitos tendo apenas simples e robustas configurações. Além destas, sua curiosidade se estende a pacientes psicopatas; cada um dos quais com um caso individual, cada um dos quais sem nenhuma semelhança com qualquer outro; são as curvas patológicas da Matemática. Tentaremos examinar algumas em nossa clínica.

FIGS. 141, 142, 143 e 144 - O círculo é a curva limite de uma seqüência de curvas.

O triângulo eqüilátero é a curva C1

O hexágono regular, curva C 2 .

O dodecágono, C 3 . A figura de 24 lados, C 4 .

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CALCULO 323

Antes de fazê-lo, será necessário introduzir a idéia de uma curva como o limite de uma seqüência de polígonos. Ins­crevamos um triângulo equilátero em um círculo. Este triân­gulo pode ser considerado como uma curva — d . Seja C2 o hexágono regular obtido secionando-se os três arcos da Fig. 141 e unindo-se, em ordem, os seis vértices (Fig. 142).

Ca é o dodecágono regular formado pela seção dos seis arcos da Fig. 143 e pela união dos doze vértices, em ordem. Repitamos o mesmo processo, secionando, cada vez, os ar-

FIG. 145 — Primeiro estágio da Curva do Floco de Neve — Cv

cos e dobrando o número de lados. A curva tende para o limite que é o círculo. Assim, o círculo é considerado como a curva limite de uma seqüência de curvas ou polígonos.

1) A curva do floco de neve, Comecemos com um triângulo equilátero, tendo o lado uma unidade de compri­mento. Este triângulo é a curva & . (Fig. 145.)

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324 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Dividamos em três partes iguais cada lado do triângulo e, no terço médio de cada um, construamos um triângulo equilátero, apontando para fora. Apaguemos as partes co­muns aos triângulos antigo e novo. Esta curva poligonal simples é chamada de C2.

FIG. 146 — Segundo estágio da Curva do Floco de Neve — C 2 .

Dividamos em três partes iguais cada lado de C2 e, nova­mente, no terço médio de cada lado, construamos um triân­gulo equilátero apontando para fora. Apaguemos a parte das curvas comuns às figuras antiga e nova. Esta curva simples é Ca.

Repitamos este processo, como mostram as Figs. 148-150.

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE - 0 CALCULO 325

Qual é a curva limite desta seqüência de curvas? Por­que é chamada de Curva do Floco de Neve, e porque é considerada patológica?

Tira seu nome da forma que vai tomando nos sucessi­vos estágios de seu desenvolvimento. Seu caráter patoló-

FiG. 147 - Terceiro estágio - C 3 .

gico vem desta característica incrível: embora se possa con­ceber que a curva limite possa ser desenhada em um peda­ço de papel, é difícil imaginar que isso seja possível porque, embora a área seja finita, o comprimento de seu perímetro é infinito! Mas está claro que, a cada estágio da constra-

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326 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

ção, o perímetro aumenta e, como a seqüência dos núme­ros que representam o comprimento do perímetro a cada estágio não é convergente, isto é, não se estrangula, o perí­metro deverá crescer além de todos os limites. Confronta-

FIG. 148 — Quarto estágio — C 4 .

monos, portanto, com o fato singular de uma curva de com­primento infinito poder ser traçada em um pequeno pedaço de papel, digamos, um selo postal.

A demonstração é a seguinte: o perímetro do triângu­lo original era 3; o perímetro da curva C2 é 3 -f- 1; o de Cs,

3 + 1 + - ; o de C*, 3 -f 1 + i - + ^ . O perímetro de

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE - O CÁLCULO 327

Cn é 3 + 1 + £ + £ - K . . + f £ Então, à medida que n cresce, também cresce a seqüência, porque estamos lidan­do com uma série infinita que não converge.

FIG . 149 - Quinto estágio - C 5 ,

O fato da curva continuar cabendo no papel prova que a área do floco de neve é finita. Explicitamente, a área da curva final é 1 3 A vezes a do triângulo original. E, se isso não é bastante anormal, consideremos que não é possível di­zer, em qualquer ponto da curva limite, a direção que toma­rá, isto é, não existe a tangente.5

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328 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

2) A Curva Àntifloco de Neve é obtida traçando-se os triângulos para dentro, e não para fora, e tem muitas das propriedades de sua irmã. Seu perímetro é infinito, en­quanto sua área é finita, e não se pode traçar nenhuma tan­gente, em nenhum ponto. (Figs. 151-154.)

FIG. 150 — Sexto estágio — C 8 .

3) Outra curva patológica é a Curva Côncavo-Con-vexa. Tracemos um círculo (de raio —> 1) e escolhamos seis pontos sobre êle de forma a dividir a circunferência em seis partes iguais. Tomemos três arcos alternados e os giremos

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VAEIAÇÂO E VABIABILTDADE — O CÁLCULO 329

para dentro. O círculo original é Ci , a nova figura C2 (Figs. 155-156). O perímetro de C2 é igual ao de Cj., porque seu comprimento não se altera ao girarmos os três arcos para den­tro.

FIGS. 151, 152, 153, 154 - Os quatro primeiros estágios da Curva Antifloco de Neve.

FIG. 155 - A Curva Cóncavo-Convexa FIG. 156 - Estágio C 2 . — estágio Ci.

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330 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

A seguir, dividamos por três cada arco e giremos o do meio para fora, se estiver para dentro, ou para dentro, se estiver para fora. Esta é a nova curva, C 3 . Seu perímetro

FIG. 157 - Estágio C 3 . FIG. 158 - Estágio C 4 .

ainda é igual ao do círculo original; além disso, sua área é a mesma de Ca porque, alternadamente, somamos e subtraí­mos segmentos de áreas iguais (Fig. 157).

Repitamos este processo. A curva limite tem um perí­metro igual ao do círculo. Sua área é igual à de C2 que,

FIG. 159 - A Curva de Encher FIG. 160 - Estágio 2. Espaço — Estágio 1.

por sua vez, é igual à de um hexágono regular. Como a do Floco de Neve e do Antifloco de Neve, esta curva tam­bém tem suas características patológicas.

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VARIAÇÃO E VARIABILIDADE — O CÁLCULO 331

Enquanto a curvatura de um círculo é calculada sem di­ficuldade, a Curva Côncavo-Convexa apresenta urn aspecto diferente. Consideremos um ponto arbitrário sobre ela. E m que direção, para o centro ou em direção oposta, mediremos sua curvatura? Verificaremos que não há curvatura. A se­gunda derivada não existe.

4) Curvas para Encher Espaço. Um dos princípios car­dinais da Geometria é que um ponto não tem dimensões, e que uma curva é unidimensional e nunca pode, portanto,

FIG. 161 - Estágio 3. FIG. 162 - Estágio avançado

encher um espaço dado. Esta férrea convicção deve, tam­bém, ser destruída. Eis o supremo espécime patológico, a Curva de Encher Espaço, que não só ocupa o interior de um quadrado, mas engole o espaço de toda uma caixa cúbica.

FIGS. 163-164 - Os primeiros dois estágios de uma curva que enche toda uma caixa cúbica.

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332 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Os sucessivos estágios desta curva são ilustrados pelas Figs. 159-164. Selecionemos qualquer ponto no quadrado ou cubo. Pode mostrar-se que, eventualmente, quando a curva estiver completa, passará por este ponto. Como este racio­cínio se refere a todos os pontos, conclui-se, logicamente, que a curva deve encher todo o quadrado ou cubo.

5) A Curva de Linhas Cruzadas: Esta curva tem a propriedade de se cruzar, a si mesma,

em cada um de seus pontos. Estamos certos de que você não acredita em nós — e nunca acreditará — mas eis as instru­ções para construí-la:

FIG. 165

l . a fase: Inscreva um triângulo dentro de um triângulo, como na Fig. 165. Sombreie o triângulo interior.

FIG. 166

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VABIAÇÃO E VABIABILBOADE — O CÁLCULO 333

2. a fase: Continue o processo em cada um dos três triân­gulos restantes na Fig. 166.

3. a à enésima fase: Repita o processo indefinidamente (Fig. 167 é o 5.° estágio). Una, então, os pontos do triân­gulo original que permanecem sem sombreado e contorça o triângulo original, de forma que os três pontos A, B e C fi­quem juntos.

FIG. 167

Eis a Curva das Linhas Cruzadas.

NOTAS

1. Cajori, History of Fluxions. 2. Protocolo para a Trigonometria, para os que se esqueceram:

No triângulo retângulo abaixo, são as seguintes as relações tri­gonométricas (funções de um ângulo):

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334 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

Em outras palavras, as funções trigonométricas são as rela­ções entre os lados de um triângulo retângulo, uns com os outros, e dependem, por sua vez, dos ângulos.

O conceito de tangente tem aplicação imediata na Geometria Analítica e no cálculo. No diagrama abaixo, a inclinação da linha AB é a razão P/Q que nada mais é que a tangente do ângulo 0.

FIG. 169 — A inclinação de uma linha reta é a razão P/Q.

Mas a palavra tangente tem outro significado, muito diferente do acima. Este novo significado é essencial para o cálculo.

No plano cartesiano trace a curva ABC. Considere dois pon­tos ?x e P2, nesta curva, unidos por uma hnha reta que passe por eles. (Ver Fig. 131, pág. 305). À proporção que P 2 se des­loca ao longo da curva para P 1 ( a linha que une estes dois pontos se aproxima de um limite chamado tangente da curva ABC no ponto P\. A inclinação desta linha tangente no ponto P\ é a derivada da função, sendo sua representação a curva ABC.

3. O comprimento do segmento parabólico pode ser expresso apenas em termos de logaritmos e, conseqüentemente, não podia ser calculado por meio dos métodos elementares conhecidos pelos antigos.

4. Wolf, History of Philosophtj, Science and Technology in ihe Six-teenth and Seventeenth Centuries.

5. Assim, temos, em essência, uma função contínua, sem uma derivada.

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M A T E M Á T I C A E I M A G I N A Ç Ã O

Não há conclusão. O que se concluiu que pos­samos concluir a seu respeito? Não há sortes a tirar, nem conselhos a dar. Adeus.

WILLIAM JAMES

— Gatinho de Cheshire — começou ela, bas­tante timidamente ... — Você pode-me dizer, por favor, qual o caminho que devo tomar agora?

— Depende bastante para onde você quer ir — disse o Gato.

— Não rne importa muito — disse Alice. — Então, não importa qual o <&mmho que

você tome — disse o Gato. LEWIS CABROLL

O QUE É A Matemática? Um grande e variado conjunto de pensamentos, que vem crescendo desde os tempos mais antigos, procura responder esta pergunta. Mas, ao exami­ná-lo, as opiniões, que variam das de Pitágoras às teorias das mais recentes escolas da Filosofia Matemática, revelam o triste fato de que é mais fácil ser esperto do que claro. Principalmente nos últimos tempos, tem havido uma tendên­cia para apresentar aforismos em vez de respostas diretas; aforismos, estes, mfelizmente, que vertem pouca luz. No método de encarar o problema está o maior obstáculo para uma resposta satisfatória. Se alguém perguntasse, "O que é Biologia?", seria relativamente simples começar com uma definição etimológica e, então, agrupar a grande quantidade de informações contidas nas Ciências Biológicas. Depois, vi-

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336 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

ria uma conclusão de como todos os itens são sintetizados em uma ciência integrada. Até mesmo uma simples explanação, tal como " A Biologia estuda os cavalos, morcegos, margari­das e baleias", daria uma boa idéia do que se trata. Por outro lado, o estudo da Matemática — Aritmética, Álgebra, Geometria, Cálculo — não insinua, sobre sua natureza, nada mais que lidar com números e que é uma técnica útil. No que diz respeito aos números, nenhuma definição ainda foi dada que, em si, simplificasse a tarefa de definir a Matemá­tica.

Então, aqui na Matemática temos uma linguagem univer­sal, válida, útil, compreensível em qualquer lugar e tempo — em bancos e companhias de seguros, nos pergaminhos dos arquitetos que construíram o Templo de Salomão, e nas có­pias heliográficas das plantas dos engenheiros que, com seus cálculos sobre o caos, dominam os ventos. É uma discipli­na de dezenas de ramos, fabulosamente rica, literalmente sem limite em sua esfera de aplicação, carregada de honra­rias por um recorde inquebrável de realizações magníficas. É uma criação do pensamento, tanto mística quanto pragmá­tica em seu apelo. Austera e imperiosa como a Lógica, ain­da é suficientemente sensível e flexível para fazer face a cada nova necessidade. Contudo, este enorme edifício repousa sobre as fundações mais simples e mais primitivas, é forjado pela imaginação e pela lógica, partindo de um punhado de regras infantis. Apesar de nenhuma definição ter, até agora, abarcado sua finalidade e sua natureza, será possível que a pergunta "O que é a Matemática?" permanecerá sem resposta?

Não nos surpreende o fato da Matemática possuir um prestígio não-igualado por qualquer outro ramo objetivo do pensamento. Ela tornou possível tantos avanços nas ciên­cias; é, ao mesmo tempo, tão indispensável nos negócios prá­ticos e, tão simplesmente, a obra-prima da abstração pura que reconhecer sua proeminência entre as realizações inte­lectuais humanas nada mais é que um direito dela.

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MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO 337

Apesar desta proeminência, a primeira apreciação signi­ficativa da Matemática só ocorreu recentemente, com o ad­vento da Geometria não-euclidiana e quadridimensional. Is­to não quer dizer que não devemos valorizar o cálculo, a teoria da probabilidade, a Aritmética do infinito, a Topolo­gia e os outros assuntos que discutimos. Cada um deles ampliou a Matemática e aprofundou sua significação, assim como a nossa compreensão do universo físico. Contudo, ne­nhum deles contribuiu tanto para a introspecção matemática, para o conhecimento da relação entre as partes da Mate­mática, uma com as outras e com o conjunto, como as he­resias não-euchdianas.

Como um resultado do espírito valorosamente crítico que fêz surgir as heresias, sobrepujamos a noção de que as ver­dades matemáticas têm uma existência independente, e mes­mo separadas de nosso próprio pensamento. É mesmo es­tranho, para nós, que tal noção tivesse mesmo existido. Mas isso é o que Pitágoras pensaria — e Descartes também, e mais centenas de outros grandes matemáticos antes do século XDÍ. Hoje, a Matemática não tem limites; quebrou seus gri­lhões. Qualquer que seja sua essência, reconhecemos ser tão livre como o pensamento, tão tenaz quanto a imagina­ção. A Geometria não-euclidiana é a prova de que a Ma­temática, ao contrário da música das esferas, é o próprio trabalho manual do homem, sujeita apenas às limitações im­postas pelas leis do pensamento.

A Filosofia que responde pelo nome de positivismo ló­gico preparou um programa formidável: primeiro, eliminar a Metafísica de dentro da Filosofia; e, segundo, exibir as rela­ções mútuas entre as leis do pensamento (isto é, a Lógica) e a Matemática. Há alguns que pensam que o positivismo lógico realiza um avanço, superior ao proporcionado pela Geometria não-euclidiana, na avaliação da natureza da Ma­temática. Muito modestamente, expressou-se a esperança de que, aqui pelo menos, está uma doutrina que enfrenta, díre-

22

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338 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

tamente, essas dificuldades essenciais e inerentes, que blo­queiam a estrada para o cume.

Expurgando a Filosofia Matemática da metafísica, hou­ve (em nosso modo de julgar) uma vantagem real. A Mate­mática não será mais vista como a chave para a verdade, com V maiúsculo. Ela pode, agora, ser olhada como um lasti-màvelmente incompleto, embora enormemente útil, Baedecker numa das terras com menor quantidade de mapas. Alguns pontos de referência são fixos; uma parte da grande rede de estradas é compreensível; há sinalização para o viajante desnorteado.

Por outro lado, ninguém pode suprimir a sensação de que esta nova apreciação da Matemática é tão incompleta, tão isenta de côr, a ponto de ser quase trivial e inconseqüente. Olhando-a meramente como um punhado de proposições pri­mitivas e indefinidas, associadas a uma metodologia para fa­bricar mais algumas, alguma coisa do espírito, do sabor e côr da Matemática parece ter-se perdido. Embora aqueles que se opõem ao positivismo lógico concordem que serve para alguma finalidade, eles arremetem contra o embruteci­mento da dissertação, o estreitamento dos horizontes que êle, inevitavelmente, provoca. Participamos do sentimento de que a Matemática é mais que uma fábrica de tautologias; é um veículo para conduzir as mais altas aspirações do intelecto criador.

Em resumo, eis o que dizem os positivistas: a Lógica se preocupa com as regras formais de manipulação dos sím­bolos da linguagem; a Matemática, apenas com as equações; isto é, literalmente, declarações de equivalência de número. Todas as relações de significado interno e essencial consti­tuem o território da ciência matemática. Um ser oniscien­te não precisaria, portanto, nem da Lógica nem da Mate­mática, uma vez que as relações entre todas as entidades se­riam, para êle, auto-evidentes. Embora êle pudesse ainda achar úteis outras ciências, como a Biologia, por exemplo, para fornecer-lhe um catálogo dos seres vivos, ou de um ca­tálogo de telefones, para ajudá-lo a encontrar os amigos, suas

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MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO 339

necessidades de Lógica e Matemática teriam desaparecido. Porque, logo que todas as significações e todas as relações tivessem sido apresentadas, estas disciplinas seriam supérfluas.

Não há razão para pensar que, com tal interpretação, te­nhamos tirado também a vitalidade da Matemática, embora nos tenhamos castigado sem piedade e expulsado o confuso espírito da Metafísica? Não teremos perdido "o espírito da palavra"?

Como já mostramos, a criação da Geometria não-eucli­diana assinalou a realização de que a Matemática, de modo algum, depende de nosso ambiente. Embora exista muita semelhança entre o comportamento dos fecundos sknbolo-zinhos, que colocamos no papel ou agitamos em nossas cabe­ças, e os fenômenos que acontecem no mundo físico, a Mate­mática deve ser reconhecida como uma disciplina autôno­ma, restringida, apenas, pelas regras formais do pensamento. O desenvolvimento da Matemática é uma contrapartida da eterna luta por maior compreensão e maior liberdade: do particular ao geral; das configurações limitadas por linhas re­tas às curvas patológicas; das propriedades desta ou daquela figura específica às propriedades de todas as figuras; da di­mensão única às n dimensões; do finito ao infinito. A ima­ginação desempenhou um notável papel nesta marcha. Por­que a imaginação tem o valor pragmático de saltar à frente da morosa caravana do pensamento ordenado e, muitas ve­zes, rejeita a realidade, muito antes de seu ponderado senhor. Nisto está sua contribuição essencial a uma das mais estra­nhas colaborações de pensamento, a Matemática séria com a volúvel imaginação.

A Matemática é uma atividade governada pelas mesmas regras impostas às sinfonias de Beethoven, às pinturas de Da Vinci e à poesia de Homero. Assim como as escalas, as leis de perspectiva, as regras da métrica parecem não ter ar­dência, as regras formais da Matemática podem parecer sem

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brilho. Mas, ultimamente, a Matemática atinge pináculos tão altos quanto os atingidos pela imaginação' em seus mais audazes reconhecimentos. E isto esconde, talvez, o último dos paradoxos da ciência. Porque, em sua labuta prosaica, tanto a Lógica quanto a Matemática muitas vezes ultrapas­sam suas vanguardas e mostram que o mundo da razão pura é mais estranho que o mundo da pura fantasia.

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B I B L I O G R A F I A

Esta bibliografia descritiva contém uma quantidade de trabalhos de interesse semelhante ao do conteúdo deste livro. Não é (nem pretende ser) completa, autoritária nem exaustiva. É apenas uma expressão de gostos pessoais que pode ser útil ao leitor, ouja curiosi­dade foi estimulada.

ABBOTT, EDWIN A., Flatland — A Romance of Many Dimensions. Bos­ton, Little Brown, 1929.

O célebre livrinho sobre um mundo de duas dimensões.

AHKENS, W . , Mathematische Unterhaltungen und Spiele. Leipzig, B. G. Teubner, Vol, I, 1910; Vol. II, 1918.

Para os que sabem ler alemão, este trabalho será um raro festim. Embora partes dele sejam bastante técnicas, é um estudo exaustivo e definitivo dos quebra-cabeças, com uma riqueza de histórias, ane­dotas e esboços históricos correlatos.

BALL, W . W . ROUSE, Mathematical Recreations and Essays, 11.* Edi­ção. Nova York, Macmillan, 1939.

É um trabalho padrão, cheio de informações, mas arrumado mais como um manual que para uma leitura contínua. Ê indispensável para quem gosta de quebra-cabeças.

BELL, E. T., Men of Mathematics. Nova York, Simon and Schuster, 1937.

As diversas partes deste livro, referentes à Geometria não-eucli­diana, são de leitura estimulante e absorvente. Neste, como em outros assuntos de Matemática, Bell é claro; seu estilo, espirituoso e diver­tido. Há esboços biográficos dos principais matemáticos, de Zenão a Poincaré, algumas vezes valiosos; muitas vezes, deliciosos; sempre agradáveis para ler. A exposição das fases difíceis da Matemática è particularmente boa.

, The Queen of the Sciences. Nova York, G. E. Stechert, 1938.

Nova impressão de um encantador volumezinho, publicado, ori­ginalmente, para a Feira Mundial de Chicago, 1933. Simples, vale a pena ler,

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342 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

B L A C K , M A X , The Nature of Mathematics. Nova York, Harcourt Bra­ce, 1935. Um relato das Filosofias Matemáticas das três principais escolas

contemporâneas, conciso e claro, mas, de modo algum, fácil de ler.

BLISS, G. A., "Mathematical Interpretations of Geometrical and Phy­sical Phenomena", American Mathematical Monthly, Volume 40 (outubro, 1933). Um relato de boa leitura sobre a aplicação da Matemática aos

fenômenos físicos.

BRIDGMAN, PERCY W . , The Logic of Modem Physics. Nova York, Macmillan, 1927. Não é um livro de Matemática, mas uma exposição, clara como

o cristal, das modernas teorias físicas, das leis de causa e efeito, e da probabilidade, por um renomado físico.

B A L L . W . W . ROUSE, History of Mathematics, Nova York, Macmillan, 1925.

CAJORI, FLORIAN, History of Mathematics. Nova York, Macmillan, 1919.

Ambas são histórias padrão, da Matemática. O trabalho de Ca­jori é muito detalhado, mas nada comparável à monumental história da Matemática, em alemão, e em quatro volumes, escrita por Moritz Cantor. O trabalho de Ball, embora em alguns aspectos esteja ul­trapassado e seja discursivo, demonstra suficiente capacidade e, sendo menos detalhado, pode ser lido com mais satisfação, exigindo muito menos conhecimentos matemáticos.

CAJORI, FLORIAN, "History of Zeno's Arguments on Motion", Ameri­can Mathematical Monthly, Vol. XXII (1915), págs. 1-6, 292-297.

, A History of Elementary Mathematics. Nova York, Macmillan, 1917. Trabalho padrão, interessante, não muito técnico, informativo.

CANTOR, GEORG, Contributions to the Founding of the Theory of Trans-finite Numbers. Editado por P. B. Jordan. Chicago, Open Court, 1915. Uma tradução do trabalho de Cantor sobre o infinito, particular­

mente valioso como introdução histórica.

CAHSLAW, HORATIO S., The Elements of Non-Euclidean Plane Geo­metry and Trigonometry. Londres, Longmans Green & Co., 1916.

Um bom texto elementar sobre a Geometria não-euclidiana. Técnico.

C O H E N e NAGEL, Introduction to Logic and Scientific Method. Nova York, Harcourt Brace, 1934,

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B I B L I O G R A F I A 343

Um livro admirável sob todos os aspectos. Livro-texto por si mesmo., Capítulos lúcidos e agradáveis sobre todo o problema do método científico e um capítulo especial sobre a dedução provável, bem raciocinado, bem escrito.

COOLEY, GANS, KLINE e WAHLERT, Introduction to Mathematics, Nova York, Houghton Miflin Co., 1937.

Introdução clara e despretensiosa a muitos ramos avançados da Matemática, incluindo classes infinitas. É também apropriado para muitos outros tópicos tratados neste livro. Livro didático,

GOURANT, RICHARD, Differential and Integral Calculas. Vol, I, Lon­dres, Blackíe & Son, 1934.

Um texto excelente, com pouco comuns e bons exemplos das aplicações do cálculo.

DANTZIG, TOBIAS, Number, the Language of Science. Nova York, Macmillan, 1933.

Interessante relato, não-técnico, do desenvolvimento do conceito de número, indo até os transfinitos.

D E MOUGAN, AUGUSTOS, Budget of Paradoxes. Chicago, Open Court, 1940.

Coleção de cartas, histórias, anedotas, paradoxos e quebra-cabe­ças, todos relacionados com a Matemática.

DRESDEN, ARNOLD, An Invitation to Mathematics. Nova York: Henry Holt & Co., 1936.

Texto desusadamente digno de louvor sobre Matemática Superior, englobando a Geometria Analítica, a teoria dos números, o cálculo, a Geometria Projetiva, a Matemática do infinito. Um texto com idéia, muito bem executada, de tornar a Matemática atrativa; pressupõe um conhecimento da Álgebra e Geometria elementares.

EDDINGTON, Sm ARTHUR S., Space, Time and Gravítation. Cambridge University Press, 1920.

Brilhante discussão dos problemas da relatividade, incluindo ca­pítulos sobre "espécies de espaço" e "O que é Geometria?" Não é técnico, mas também não é, de modo algum, simples.

, New Pathways of Science. Nova York, Macmillan, 1935. Contém discussões interessantes sobre probabilidade, por um as­

trônomo famoso e escritor, igualmente famoso, sobre ciência popular. Além disso, o resto também tem valor, como tudo o que vem de Eddington.

ENRIQUES, FEDERIGO, Historie Development of Logic. Nova Yoik, Henry Holt, 1929.

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344 MATEMÁTICA E IMAGINAÇÃO

O melhor trabalho de sua espécie. "Princípios e estrutura da ciência, na concepção de pensadores matemáticos". Grandemente não--técnico, mas, às vezes, difícil.

GALILEU, Two New Sciences. Nova York, Macmillan, 1914.

Não é apenas um dos maiores livros de todos os tempos, mas perfeitamente fascinante. Contém, além de outras coisas, os pontos de vista de Galileu sobre o infinito. Para qualquer pessoa interessada na história da ciência ou da Matemática ou, para esse fim, para qualquer pessoa que goste de ler. Além disso, essa edição é uma bela peça de técnica editorial.

GRANVILLE, WILLIAM A., SMITH, P. F. e LONGLEY, W . R., Elements of the Differential and Integral Calculas. Boston, Ginn & Co., 1934. Bom compêndio elementar. Bem impresso, claro.

HAHDY, G. H., A Course of Purê Mathematics. 6.A Edição. Cambridge, Cambridge University Press, 1933.

Trabalho padrão, esta introdução elementar à Matemática Supe­rior é um tanto difícil, mas compensará tudo o que você nele investir em termos de esforço.

HOGBEN, LANCELOT T., Mathematics for the Million. Nova York, W . W . Norton, 1937. O " . . . E o Vento Levou" da Matemática. Bem escrito, interes­

sante, este não é, de modo algum, um livro fácil. A interpretação marxista da história da ciência e da Matemática, no estilo pungente de Hogden, domina o conjunto.

JEANS, Sm JAMES H., The Mysterious Uníverse. Nova York, Macmillan, 1930.

Lúcida exposição da ciência moderna. Sir James tem um dom inimitável de tornar fáceis as coisas difíceis, de tornar os números gigantescos tão simples de guardar quanto os telefônicos, de tomar tênues teorias científicas mais transparentes que um vidro invisível.

KEYNES, JOHN MAYNABD, A Treatise on Probability. Londres, Mac­millan, 1921.

Seria difícil encontrar um trabalho mais inteligente e mais com­pleto sobre a Filosofia e a Matemática da probabilidade, embora mui­tos trechos sejam apenas para treinados matemáticos. Partes dele, contudo, são facilmente compreendidas e o estilo, como o de Ber­trand Russell, é brilhante.

KEYSER, CASSIUS, J., Mathematical Philosophy. Nova York, Dutton, 1922.

Bem escrito, não muito técnico, claro. Além deste, o Professor Keyser escreveu muitos outros ensaios brilhantes sobre a Matemática e

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a humanização da Matemática, Merecia o título de Decano da Ma­temática — quando mais não fosse, apenas pelo fato de que nunca ocorreu a ninguém que Keyser, aos 78 anos, não é mais nenhum jovem.

KLEIN, FELDC, Elementary Mathematics from a Higher Stanãpoint. Nova York, Macmillan, 1932.

Um clássico da Matemática, embora seja um tanto difícil para o leigo em Matemática. Contém uma riqueza de material, incluindo uma discussão da Matemática transfinita,

LEVY, H Y M A N , Modem Science, Knopf, 1939.

Este volume dedica grandes partes às aplicações da Matemática às ciências. O Professor Levy possui dotes incomuns de simplificação. Altamente recomendado.

LIEBEH, LILLIAN R., e HUGH, G., Non-Euclidean Geometry. Nova York, Academy Press, 1931.

Um livrinho delicioso, com belas ilustrações, tomando os ele­mentos da Geometria não-euclidiana rapidamente compreensíveis.

MANNTNG, H. P., Non-Euclidean Geometry. Boston, Ginn & Co., 1901. Um breve, mas simples compêndio.

, The Fourth Dimension Simply Explained. Nova York, Munn & Co., 1910.

Coleção de ensaios sobre a quarta dimensão, apresentada em um concurso organizado pela The Scientific American. Muitos dos en­saios são divertidos, apresentando muita engenhosidade ao encontrar, no mundo tridimensional, figuras análogas da quarta dimensão.

MABK, THTKRING, NÕBELBJG, H A H N e MENGER, Krise und Neuaufbau in den exakten Wissensschaften. Viena, Franz Deuticke, 1937,

Coleção de ensaios alemães, por físicos e matemáticos muito co­nhecidos, tratando dos aspectos revolucionários da ciência moderna, Todos os que contribuíram para este esplêndido trabalho eram membros do célebre "Círculo Vienense". A conferência de Hans Hahn é uma apresentação interessante de alguns dos mais assustadores paradoxos da Matemática moderna.

MERZ, J. T., History of European Thought in the 19 Century. Edim­burgo, Blackwood & Sons, 4.a Edição, 1923. Neste trabalho monumental, sempre eminentemente ameno, está

um completíssimo tratamento do desenvolvimento da Matemática no século XLX - particularmente Estatística e a teoria da probabilidade.

PETRCE, CHARLES S., Chance, Looe and Logic. Nova York, Harcourt Brace Inc., 1923.

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Coleção de ensaios filosóficos, particularmente sobre a probabili­dade, por um dos mais renomados filósofos americanos — o fundador do pragmatismo.

PorNCAHÉ, HENHI, The Foundations of Science. Garrison, Nova York, The Science Press, 1913.

Vale a pena ler qualquer coisa escrita por Poincaré. A clareza de seu estilo torna todos os seus trabalhos não-técnicos facilmente compreensíveis para o leigo.

RUSSELL, BERTRAND, Introduction to Mathematical Philosophy. Lon­dres, Allen and Unwin, 1919. (N. do E.: Traduzido para o por­tuguês e publicado sob o título Introdução à Filosofia Matemá­tica, Zahar Editores, Bio, 2.a Edição, 1966.)

Trabalho padrão, mas, muitas vezes, difícil de compreender. Ne­nhuma discussão sobre este assunto é fácil, mas Russell é sempre agradável de ler.

, Mysticism and Logic. Nova York, Longmans Green, 1919. O ensaio "Mathematics and Metaphysicians" desta coleção está

no melhor estilo de Russell: brilhante, impudente e vistoso. Os pro­blemas das classes infinitas e os paradoxos de Zenão são particular­mente bem tratados. O ensaio "A Adoração de um Homem Livre" é uma das mais finas e nobres expressões de fé na ciência e na razão, na língua inglesa.

SMITH, DAVID E., History of Mathematics, Vols. I e II. Boston, Ginn & Co., Vol. I, 1923; Vol. II, 1925.

Boa história, profusamente ilustrada e muito apropriada para o não-profissional.

STEINHAUS, H., Mathematical Snapshots. Nova York, G. E. Stechert, 1938.

Destinada a revelar alguns dos mais incomuns aspectos da Mate­mática, incluindo os paradoxos matemáticos. Não exige treinamento matemático de espécie alguma.

SULLIVAN, J. W. N., Aspects of Science, 2.a Série. Londres, W. Collins Sons, 1926.

Ensaios estimulantes para o leigo, em uma variedade de assuntos, incluindo Matemática. Recomenda-se, pelo mesmo autor, Limitations of Science, Chatto and Windus, Londres, 1933.

SWANN, W. F. G., The Architecture of the Universe. Nova York, The Macmillan Co., 1934.

Um físico mostra como a probabilidade é usada no estudo da lei dos gases. Bem escrito, não-técnico.

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WHITEHEAD, ALFRED N., An Introduction to Maihematics, Nova York, Henry Holt, 1911.

Bem pode servir de modelo para todos os livros populares sobre Matemática. Nada tão bom apareceu antes ou depois de sua publi­cação. Destinado aos leigos, é simples, mas não condescendente; chistoso, mas livre de "epigramite"; perfeitamente claro, informativo, cheio de entusiasmo, bom humor e compreensivo. Trabalho de pri­meira ordem, sob todos os aspectos.

YOUNG, J. W . , Fundamental Concepts of Álgebra and Geometry. Nova York, Macmillan, 1911.

Coleção de conferências das mais agradáveis. Apropriada para os neófitos.

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Três livros fundamentais:

A B C D A R E L A T I V I D A D E

de BERTRAND RUSSELL

Os princípios da relatividade e suas conseqüências físicas e filosóficas, assim como as teorias gerais e especiais eins-teinianas, explicados em linguagem sim­ples, tornando-os acessíveis e mesmo atraentes ao leitor de cultura média, cujos conhecimentos de matemática sejam ape­nas rudimentares.

A E V O L U Ç Ã O D A F Í S I C A

de A. EINSTEIN e L. INFELD

Um esboço, em largos traços, das ten­tativas da mente humana de encontrar uma conexão entre o mundo das idéias e o mundo dos fenômenos, em busca de um conhecimento mais completo das leis que regem o Universo.

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I N T R O D U Ç Ã O À F I L O S O F I A D A M A T E M Á T I C A

de BESTRAND RUSSELL

Uma apresentação não-dogmática da filosofia matemática, não exigindo do leitor o domínio do simbolismo lógico.

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Z A II A R E D I T O R E S cultura a serviço do progresso social

RIO DE JANEIRO