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Em 2011, Marvão teve cinco divórcios e dois casamentos. Números que não fazem o retrato do concelho, diz quem vive. A lOO quilómetros de distância, Vila de Rei celebrou 15 casamentos no mesmo ano, levando o número de divór- cios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país, 6,7 RAQUEL ALBUQUERQUE TEXTO NUNO FERREIRA SANTOS FOTOGRAFIA

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Page 1: Marvão fazem diz - ClipQuick · freguesias do concelho de Marvão. É dia do ... todos os dias. É lá que trabalha num escritório de advogados, depois de ter estudado Direito

Em 2011, Marvão teve cinco divórcios e dois casamentos.Números que não fazem o retrato do concelho, diz quem lávive. A lOO quilómetros de distância, Vila de Rei celebrou15 casamentos no mesmo ano, levando o número de divór-cios por 100 casamentos a ser o mais baixo no país, 6,7

RAQUEL ALBUQUERQUE TEXTO NUNO FERREIRA SANTOS FOTOGRAFIA

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Varvão

e Vila de Rei estão se-

parados por 100 kms. Nasestatísticas que compararamo número de divórcios e decasamentos em 2011, em ca-da município do país, os doisconcelhos ficaram separadospor mais. Marvão foi o que te-ve mais divórcios por 100 ca-samentos no continente. Vila

de Rei foi o que teve menos. Ambos têm umnúmero semelhante de habitantes: Marvãotem 3512, Vila de Rei tem 3452. Têm uma popu-lação envelhecida e, de acordo com os Censos

publicados no ano passado, tiveram quase o

mesmo número de nascimentos em 2011: 20bebés em Marvão, 19 em Vila de Rei.

O recenseamento de 2011 também deu os

últimos números do estado civil em Portugal:em cada 100 portugueses, 40 são solteiros, 47são casados, sete são viúvos e seis são divorcia-dos. No âmbito de um projecto de investigaçãoem jornalismo computacional (REACTION),o PÚBLICO recolheu os dados sobre o estadocivil de todos os censos. Recuar até ao primei-ro, de 1864, é olhar para outra realidade: em100 portugueses, 63 eram solteiros, 31 eramcasados e seis eram viúvos.

Os divorciados só viriam a ser contados em1911, eram 2685. Num século, passaram paracerca de 594 mil e a forma como se vê um di-vórcio mudou. Também mudou o casamento:

hoje tem mais valor emocional e menos valorinstitucional. Assim, ao longo desse tempo,aumentaram os divórcios, diminuíram os ca-

samentos, sobretudo os católicos.E por trás da diminuição dos casamentos

está uma geração mais urbanizada, menos tra-dicional, nascida entre os anos 1970 e 80. Foiela que travou o casamento e acelerou a uniãode facto. "Não há hoje um destino traçado quepasse obrigatoriamente pelo casamento", re-sume a socióloga Maria das Dores Guerreiro,professora do Instituto Universitário de Lisboa

(ISCTE-lUL).Conquistou-se a liberdade individual e o di-

reito a escolher, o que não significa, no entanto,que se goste menos dos outros ou que se seja

mais egoísta, pelo contrário. "As pessoas estãomais libertas, com uma proximidade mais ge-nuína, sem sacrifícios", diz Maria João Valente

Rosa, directora da Pordata.

Quisemos perceber como é que nas peque-nas localidades os números se cruzam com as

percepções de quem lá vive, mesmo que esses

números, de um só ano, não tenham de re-flectir uma tendência ou um comportamento.Fomos conhecer quem se casou e se divorciouem Marvão e Vila de Rei. E, apesar da distância

que separa os dois concelhos nas estatísticas,percebemos que há mais para além disso queos aproxima.

MARVÃO

Mulheres casadas num piso, homens casados

noutro: esta noite, cada um vai levar os seus

pratos e talheres para o Grupo Desportivo Are-nense, em Santo António das Areias, uma das

freguesias do concelho de Marvão. É dia do

Jantar das Casadas e dos Casados. A tradição jávem dos anos 40, quando um dia um grupo de

homens, "à roda de um petisco de farinheirasassadas", decidiu organizar um jantar, a reali-zar-se no primeiro domingo a seguir ao Carna-val. As mulheres não entrariam. Nem elas, nemnenhum rapaz solteiro. Só estavam autorizadosos casados da freguesia, abrindo excepção aosdivorciados e viúvos, porque esses, um dia, jásouberam o que é um casamento.

Mais tarde, um grupo de mulheres decidiunão ficar para trás. Eram poucas, "até porquenesse tempo não era muito comum as mulhe-res saírem de casa", mas também elas criaramum jantar e escolheram uma ementa. E assimserá hoje.

É Emília Machado quem escreve sobre as tra-

dições de Marvão. É funcionária da câmara,mas é também uma espécie de relações públi-cas no concelho. Ali conhecerá praticamentetodos os habitantes: eram 3512 em 2011, segun-do os Censos do Instituto Nacional de Estatísti-ca (INE). Em tempos, Marvão chegou a ter maisde 7 mil habitantes. Hoje, faltam-lhe jovens co-

mo a quase todos os municípios do interior(nasceram 20 bebés em 2011, embora 40% doshabitantes tenham mais de 60 anos).

Entre a população do concelho, 1834 pes-soas são casadas. Só que no total das quatrofreguesias, durante os 365 dias de 2011, houve

apenas dois casamentos. É o reduzido núme-ro de casamentos, comparado com os cincodivórcios registados, que leva Marvão a ser oconcelho do continente com mais divórcios

por 100 casamentos (o rácio é de 250 divórcios

por cada 100 casamentos, só ultrapassado pe-lo concelho de Nordeste nos Açores, com umrácio de 300).

Rapidamente se descobre de quem são os

dois casamentos do ano: Vera e José MiguelMagro foram um deles. O outro casal foi viver

para Portalegre, onde muita gente de Marvãotrabalha. Vera e José recebem-nos em casa, coma filha Matilde de três meses. Vivem num dos

pisos da casa dos pais de Vera, naturais de Mar-vão. É também uma "vantagem económica":não pagam renda e têm ajuda dos avós com a

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bebé. A casa fica numa pequena localidade den-tro do concelho, à qual se chega por estradasestreitas passando por campos onde pastamovelhas. Não se vê quase ninguém.

Matilde vai interrompendo a conversa dos

pais e tanto um como outro estão ainda a tentardecifrar cada um dos choros da filha. "Pensá-mos em casar quando a vida estabilizou. Quemnamora acho que tem sempre aquele sonhode casar." Namoraram 14 anos e casaram-sea 30 de Julho de 2011. Um ano antes, tinhamcomeçado a pensar no casamento. Se dá tra-balho? "Bastante", diz Vera. "E qualquer coisa

custa umas centenas de euros: o aluguer do

espaço, o catering, os brindes", lembra José.Um ano antes, pensaram também em comprarcasa em Portalegre, só que o preço fê-los mu-dar de ideia. "Aqui temos outra qualidade devida. Temos mais tempo e um ordenado dá

para mais."Vera faz o caminho entre Marvão e Portalegre

todos os dias. É lá que trabalha num escritóriode advogados, depois de ter estudado Direitoem Lisboa. José trabalha em Marvão, na áreada restauração. "Aqui há trabalho, não há em-

prego. Há trabalho para andar no campo, nãohá é trabalho de secretária." Vera discorda. Atémesmo para quem não procura um "trabalhode secretária" há cada vez menos. "É uma zo-na rural, há uma única fábrica, há empresaspequenas. Não há perspectivas se um jovemquiser trabalhar cá."

Ambos cresceram no concelho e têm vistoos amigos e conhecidos a casarem-se. "Muitagente passa por uma experiência a dois, atédevido a condições económicas, e deixam ocasamento para mais tarde." Deixar o casa-mento para mais tarde ou não casar faz parteda evolução das conjugalidades, como refereMaria das Dores Guerreiro, socióloga e profes-sora do Instituto Universitário de Lisboa (ISC-TE-lUL). Quem está em causa é a "geração damodernidade avançada", dos anos 1970 e 80,jovens com valores modernos, baseados emnovos modelos de constituir família, que ten-dem a apostar na formação individual, não só

académica, mas também afectiva, descreve asocióloga. Testar uma vivência a dois, "na quala sexualidade está mais presente", faz partedas tendências.

O desemprego e a precariedade laborai ouuma formação académica mais prolongadatambém podem ser motivos para deixar ocasamento para mais tarde, reflectindo-se na"transição mais tardia dos jovens para a vidaadulta" (a idade média do casamento passoude 32 anos, em 2006, para 33 em 2012, segundodados do Instituto dos Registos e Notariado).Já para quem decide não casar, há outros fac-tores. Atribuir menos valor ao casamento, seja

como instituição, como sacramento, contratoou compromisso, é um deles. Outro é a liberda-de individual. "Se o casamento for entendidocomo uma perda de liberdade, então estar semvínculo e sem coabitação plena pode ser umaforma de a salvaguardar", diz a socióloga.

Olhar assim para o casamento é uma rup-tura com o tradicionalismo dos valores, dafamília e do casamento, dos anos 1950 e 60da sociedade portuguesa. Foi precisamentenessa altura, a 23 de Abril de 1955, que MariaHelena ejoão Lourenço se casaram. Estão jun-tos há 58 anos, hoje têm 78 e 84. Como é quese mantém um casamento tão longo? "Olhe,hoje arranhamo-nos, amanhã beijamo-nos.Sempre nos entendemos, um dia chateia-se

um, no outro dia o outro."São caseiros de uma quinta na encosta do

Marvão, onde só se chega com indicações pre-cisas. Ainda vão buscar água à fonte e põem-naem dois cântaros de barro, na cozinha. A casaé pequena e, mesmo à entrada, na sala onde

passam grande parte dos dias, têm uma mesaredonda com uma toalha, pesada, até ao chão.Estão pouco mais de três graus e as brasas porbaixo da mesa são como um íman. Nas paredeshá armários de madeira, sem portas, onde as

loiças de cores e tipos diferentes estão pousa-das e as chávenas penduradas em pregos. Háuma ou outra moldura (de um casamento oudos quatro netos da única filha), uma televisãoe várias panelas e cafeteiras de alumínio, im-

pecavelmente areadas, penduradas na parede.Cozinham numa divisão pequena, sem janelas:têm um forno a lenha, bancos pequenos, umcarrinho com cebolas e batatas.

Hoje custa-lhes andar e o único passeio dodia-a-dia de Maria Helena é até ao "mirante",como lhe chama, um miradouro dentro da

quinta, com bancos de pedra. João Lourenço,pelo contrário, ainda sobe de vez em quandoà vila de Marvão, "a cavalo", ou seja, de carro.Quando se casaram, tinham pouco mais de20 anos e, quando hoje relembram a idade,resumem tudo em duas frases: "Eu ainda souuma criança, ele é um jovem." João corrige,"ela é uma menina". Durante anos, lavraram,cavaram, trataram da horta e da cavalariça da

quinta. Em casa, era a mulher quem trabalhava."Fazia tudo para ele poder trabalhar por fora."Mas hoje o casamento dos jovens é diferente."Brigam e cada um vai para o seu canto. Tam-bém não vale a pena casarem-se para se sepa-rarem", diz Maria Helena. "0 divórcio agora é

porta sim, porta não. Por acaso eu até pensavaque ninguém se divorciava aqui, mas pareceque não. Eles é que sabem, é a vida deles, nãosomos nós que temos com isso."

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uma população "muitíssimo enve-lhecida" que o pároco de Marvão,Luís Marques, de 69 anos, vê noconcelho. Haver menos jovens é a

primeira razão que aponta para os

poucos casamentos. Mas, se houves-

se mais jovens, haveria mais casa-mentos? "Acho que já não. A culpa é

da legislação que temos. É mais fácil

para os jovens não casarem, porquelhes dá os mesmos direitos. Não gastam tantodinheiro e se quiserem divorciam-se." Para o

padre, o que se perde é "a célula base de todaa sociedade humana": a família. "Antigamente,quando um casal pensava no divórcio, interro-

gava-se quase dez vezes. Mas o divórcio entrouna vida das pessoas. Hoje é com pesar que os

velhinhos nos dizem que o seu neto já se divor-

ciou, são eles que mais sofrem."Em 2011, registaram-se em Marvão cinco di-

vórcios e 149 pessoas divorciadas, segundo oINE. É um número pequeno quando compara-do com o total de cerca de 594 mil divorciados

em todo o país (59% são mulheres, 41% são

homens). Adelaide Martins, de 43 anos, é umadas pessoas divorciadas do concelho. "Nasci,cresci, fui baptizada, casei-me e divorciei-meem Porto da Espada", uma aldeia numa das

quatro freguesias do concelho. É lá que está to-dos os fins-de-semana, escapando da cidade de

Portalegre, onde trabalha, na secção de Armase Explosivos da Polícia de Segurança Pública(PSP), e para onde foi viver quando se casouem 1996. 0 ex-marido era um colega de escola."Tínhamos uns 16 anos quando nos conhece-

mos, namorámos quase dez." Foi também dezanos depois de se terem casado, já com umafilha de cinco, que lhe pediu o divórcio. "Haviaoutra. Ainda aguentei dois anos, mas não valiaa pena." Nessa altura tinha 27 anos, distantedaquela que é hoje a idade média do divórcio(42 anos, segundo o Instituto dos Registos eNotariado).

Até então havia um só divórcio na família."Foi uma bomba, ninguém estava à espera.O nosso casamento era visto como exemplarporque sempre camuflei o que se estava a pas-sar. Bem basta o que eu sofria." Os primeirostempos não foram fáceis. "Era-me difícil dormirà noite, vinha-me tudo à cabeça." Agora vivecom a filha e está numa relação há três anos.Casar-se outra vez? "Não, não ia dar o mesmo

passo para sofrer."Os números de casamentos e divórcios em

Marvão surpreendem José Manuel Pires, ve-reador da câmara. "Não se encaixam com anossa maneira de ser aqui." Atrair populaçãojovem é um dos objectivos que os têm levadoa investir na "parte social e cultural" do conce-

lho. "Investir num apoio ao casamento não fazsentido porque as pessoas recebem o subsídioe vão-se embora quando podem." Das opiniõesque recolheu sobre os dados do INE, destacauma. "Chamaram-me a atenção para o factode a Conservatória ter só dois funcionários, o

que pode levar as pessoas a recorrer às conser-vatórias vizinhas."

Assim foi com Cláudia e Rui Mimoso, de 27e 26 anos. São ambos de Marvão, onde cresce-ram e se conheceram aos 16 anos. Namoraramdesde então e esperaram que as vidas melho-rassem para se casarem, o que aconteceu emAgosto de 2012. 0 registo do casamento ficouem Portalegre, apenas por uma questão prá-tica: é lá que Cláudia trabalha. Mas viriam acasar-se na igreja da freguesia de São Salvadorde Aramenha.

Cláudia e Rui surpreendem-se em saber quesó houve dois casamentos em 2011. Muitos dos

amigos casam-se, embora alguns ainda este-

jam solteiros, sobretudo rapazes. "As raparigasdeslocam-se para estudar e arranjam homemfora daqui", explica Cláudia. Pelo contrário,quem não se surpreende com o número decasamentos é o fotógrafo que o casal escolheu.Nuno Borda dÁgua é conhecido na zona e, paraquem depende do número de casamentos parao negócio, não restam dúvidas. Se em 2006fotografava 20 casamentos por ano, no anopassado já só foram cinco. "Há muito menoscasamentos também porque há menos genteaqui", aponta.

Já o número de divórcios não desperta gran-de surpresa no casal e a opinião é clara. "Quemcomenta o divórcio dos outros é quem não temnada para fazer na vida." Dionísia Fernandes,de 37 anos, comprova-o. Quando um dia regres-sou a Santo António das Areias, aos 27, sozinhacom dois filhos, ouviu muita coisa. Ninguém sa-

bia o que tinha acontecido, mas isso não evitou

que não se falasse do assunto. "Custava sempreouvir. As pessoas comentavam: 'Não tem ver-gonha de fugir do marido com dois filhos'?"Dionísia era vítima de violência. Tinha casadoaos 21, em Marvão, onde nasceu e só então foiviver com o marido para perto de Portalegre.Quando conseguiu sair de casa, com a ajudado irmão, regressou a casa dos pais, tinham osfilhos dois e seis anos.

"Viemos com a roupa que tínhamos vestida,mais nada". Agora os filhos têm 11 e 16 anos, vi-

vem com a mãe numa casa que entretanto con-

seguiu alugar. Arranjou trabalho e conseguiuver o processo de divórcio terminado dois anos

depois de ter saído de casa. Hoje é diferente:vive em união de facto há seis anos. Já quanto àideia de voltar a casar, não tem dúvida. "Não é

preciso um casamento para sermos felizes."

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Contudo, os números mostram que o casa-mento de divorciados em Portugal tem contra-riado a diminuição dos primeiros casamentos.O recasamento aumentou 52% em 15 anos, sen-do os homens quem mais volta a casar após umdivórcio. Conceber a hipótese de se reconstituir

após um divórcio está associado ao "dilatar da

vida", na opinião da demógrafa e directora da

Pordata, Maria João Valente Rosa. Uma espe-rança média de vida maior faz com que se ima-

ginem mais projectos. "Isto enriquece a vida

Cláudia e Rui Mimoso, de 27e 26anos. Conheceram-se aosl6anose namoraram desde então até secasarem, em 2012. Também de Marvãosão Vera e José Miguel (com a filhaMatilde, de três meses). O casamentodeles foi u m dos dois celebrados em2011. No plano anterior, AdelaideMartins, de 43 anos, é uma dasdivorciadas do concelho. O divórcio éassunto sobre o qual se evita falar

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de cada um. Deixa de haver a ideia de que nãovale a pena dar este passo porque não tenhofuturo. Sabemos que podemos ter muito futu-

ro, que ainda há uma possibilidade e que umarelação não tem necessariamente de ser únicae para a vida."

Os cinco divórcios de 2011 não são surpreen-dentes para quem vive em Marvão. E não vêemnesse número, nem nos dois casamentos, umretrato do concelho. Os dados de um só ano são

incapazes de reflectir uma tendência. "Os com-

portamentos vêem-se a longo prazo", sublinhaAnália Torres, do Instituto Superior de CiênciasSociais e Políticas (ISCSP) e autora de dois livrossobre o casamento e o divórcio em Portugal. O

mesmo argumento é apontado para explicar a

quebra dos divórcios em Portugal em 3%, em2011 face a 2010 (a primeira desde 2005). Mui-tos motivos podem estar por trás dessa osci-

lação: isolar um não é correcto. "A crise podejogar nos dois sentidos", refere Maria das DoresGuerreiro, explicando que tanto pode forçaros casais a ficarem juntos, como motivar a se-

paração ao despertar tensões. Outros motivoscomo a alteração nas leis do divórcio, sublinhaAnália Torres, estão também geralmente asso-ciados aos movimentos bruscos, de subida oudescida, dos divórcios.

Deixar o tempo falar é o que as sociólogas su-

gerem. E a tradição do jantar dos casados, destanoite em Santo António das Areias, contrariaos números. Lá se juntam homens e mulheres,de alguma forma ligados a um casamento. Ter-minados os dois jantares, vem o "ponto alto"da noite: os homens oferecem farinheira co-

zida às mulheres (feita pelas cozinheiras queeles contrataram), as mulheres oferecem-lhesarroz-doce. Lêem uns versos uns aos outrose a festa continua. Abrem o baile para quemquiser entrar. Até mesmo para os solteiros deoutras freguesias.

VIL7\ DE REI

Perde-se a rede no telemóvel quando se mer-gulha no vale onde está Água Formosa, umaaldeia de xisto no concelho de Vila de Rei. É lá

que vive Celeste e José António, de 81 e 78 anos.Celeste explica tudo com detalhes, ainda portelefone: "Assim que vê a tabuleta à esquerda,vira à direita, estamos cá mesmo em baixo." E

acrescenta: "Se é para falar sobre os casamen-tos de hoje em dia, posso dizer já que agoraé tudo pela lei do ajuntamento, já poucos se

casam."Há 12 anos, deixaram Lisboa e regressaram

ao sítio onde Celeste nasceu. Ir para a terra domarido em Trás-os-Montes foi posto de parte:"É tão longe de Lisboa que o meu filho nuncamais lá iria na vida." Viveram durante muitosanos em Lisboa, onde os filhos nasceram, "fo-ram criados e casados". "Regressar à terra" erao que fazia mais sentido para os dois. Quandoali chegaram, a casa era pouco mais do queum palheiro, "arrumámos tudo o melhor quepudemos". Hoje têm a casa arranjada, umahorta, três galinhas e o som permanente da

água da ribeira a correr ali perto. Estão os dois

Dionísia Fernandes tem 37 anos e,depois de se ter casado aos 21 emMarvão, divorciou-se e vive agoracom os dois filhos. Está numa união defacto há seis anos e não tenciona voltara casar-se porque não é isso que lhetrará felicidade. Maria Helena e JoãoLourenço estão juntos há 58 anos.Como é que se mantém um casamentotão longo? "Olhe, hoje arranhamo-nos,amanhã beijamo-nos"

Investir num

apoio aocasamentonão faz sentidoporque as

pessoasrecebem osubsídio evão-se embora

quandopodem",sublinbaovereador JoséManuel Pires,da Câmara deMarvão

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sentados lado a lado, no sofá da sala, pequenae com pouca luz, onde têm a televisão. Quasesempre se sobrepõem um ao outro quando fa-

lam: vale uma cotovelada de vez em quandopara acertar o ritmo. "Agora estou a falar", dizCeleste. E se o marido se alarga mais no voca-bulário, leva outra. "Deixa-me falar, mulher",é a resposta.

"Um casamento de 51 anos dá para tudo.Tem altos e baixos." Casaram-se quando Ce-leste tinha 30 anos, José António 27. Celeste

precisou de uma semana para aceitar o pedi-do de namoro do futuro marido. Três mesesmais tarde casaram-se porque estava quase a

chegar o tempo da Quaresma e Celeste não

queria que o casamento coincidisse com essa

época. "Achávamos que casávamos para a vi-da." Hoje, sabem que é diferente. "Os jovens

só se juntam, mas assim os pais também nãofazem despesa."

Mesmo que só tenha sido registado um únicodivórcio em Vila de Rei, em 2011, segundo os

dados do Instituto Nacional de Estatística (INE),Celeste e José António dizem que hoje os jovensse separam muito e por pouco. "Há pais paraquem é um escândalo os filhos divorciarem-se." Como é também "um desgosto os filhosnão se casarem".

A visão que partilham coincide com os da-dos do último recenseamento. O número de

pessoas a viver em união de facto passou de

aproximadamente 381 mil em 2001 para 730mil em 2011. Ao mesmo tempo, a percentagemde bebés nascidos fora do casamento passoude 23,8% para 42,8% nesses dez anos (se re-

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cuarmos a 1970, era de apenas 7,2%). A idadeda maioria das pessoas em união de facto estáentre os 25 e os 44 anos. E, do total, 69% têmestado civil legal de solteiro.

Só que mesmo assim Vila de Rei teve 15 casa-mentos em 2011, levando o número de divór-cios por 100 casamentos a ser o mais baixo nopaís (6,7). 0 concelho tem uma particularidadequanto ao casamento. Há 13 anos que a câmaradá um incentivo a quem se casa, com o objecti-vo de fixar os jovens no concelho e contrariaro envelhecimento da população (cerca de 46%dos habitantes têm mais de 60 anos). O apoiocomeçou por ser de mil euros, actualizados

para 750 no ano passado. É dado a casais, he-terossexuais ou homossexuais, com uma médiade idades inferior a 45 anos, mesmo que nãotenham casado no concelho. O casal terá é de

comprometer-se em manter a sua residênciaem Vila de Rei pelo menos durante cinco anos.Se não o fizer, tem de devolver o dinheiro.

Um dos requisitos da candidatura é o registode casamento, pelo que quem esteja em uniãode facto não pode concorrer. "Olhamos parao casamento como a base fundamental da fa-

mília, embora o objectivo seja procurar que as

famílias fiquem cá", explica Paulo César, ve-reador da câmara. Não se fala em divórcio noregulamento e o vereador diz que nenhum dos124 casais que o receberam se divorciou.

"Em 2011, mudámos o paradigma do in-centivo. Como é mais importante o passo do

primeiro filho, baixámos o apoio ao casamen-to." O apoio à natalidade é de 750 euros peloprimeiro filho, 1000 pelo segundo e 1250 pelo

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Andreia Domingose Luís Silvaconheceram-senumbailaricoem Vila de Rei.Estão casadosdesde 2011 —

"o casamentofazia parte dosobjectivos devida". Na fotografiaà esquerda,Celeste e JoséAntónio, de 81 e 78anos, regressaramà terra de Celeste,Vila de Rei, há 12

anos, já depois deu ma vida passadaem Lisboa, ondeos filhos nascerame "foram criados ecasados"

terceiro e seguintes (incluindo para casais queoptem pela adopção ou que estejam em uniãode facto). A condição principal mantém-se: a

fixação dos pais com a criança durante cincoanos. "É uma ajuda ou prémio para fazer vida

aqui", diz Paulo César. A criação de empregofoi outra das medidas.

Os casais mais jovens destacam a maior im-portância de arranjarem emprego. "Ninguémcasa com o valor do subsídio. Aceitamos debom grado e se calhar até pode ser uma moti-

vação para alguns, mas não é por aí", diz San-dra Carvalho (27) e Filipe Silva (30). Casaram-se em Setembro de 2011, três anos depois dese terem conhecido. Os pais de ambos eramdo concelho, embora Sandra tenha nascidoem Lisboa, onde estudou Gestão e Adminis-tração Pública. Candidatou-se a um concurso

de arrendamento de habitação a baixo custo,lançado pela câmara (o aluguer de uma casano concelho ronda os 250 euros) e mudou-se

para Vila de Rei quando conseguiu uma casa.Há dois anos que procurava trabalho e só re-centemente assinou um contrato de estágiopara os próximos nove meses. Pelo contrário,Filipe fez a tropa em Lisboa e, assim que saiu,

conseguiu trabalho nos bombeiros do concelhoonde hoje está.

Vivem no centro da vila, num apartamentoà medida dos dois e, a curto prazo, assim espe-ram, à medida de um filho também. Foi a faltade trabalho de Sandra que limitou esse passo."É que as fraldas são caras", ironiza.

Casaram pela Igreja, "cá quase todos oscasamentos são católicos", dizem. Só que os

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divorciados são contados nos recenseamen-tos portugueses. Nunca deixaram de aumen-tar desde então. A primeira lei do divórcio foi

promulgada ainda em 1910, pouco depois da

implantação da República. Contudo, com aassinatura da Concordata entre Portugal e aSanta Sé, em 1940, criava-se um obstáculo aodivórcio num casamento feito através da IgrejaCatólica. Só em 1975, após o 25 de Abril, a revi-são da Concordata abriria novamente caminhoao divórcio. E foi nessa altura que houve umaexplosão de divórcios e casamentos. "Aquiloque estava a acontecer era como uma pane-la de pressão. Havia relações artificiais que se

mantinham", refere Maria João Valente Rosa."Havia condicionantes do ponto de vista social.

Hoje naturalizaram-se as situações de divórcio,recasamento, filhos de outros casamentos. Is-

so já não é algo que nos faça corar e a pressãosocial é menor."

A opinião não é consensual. Pressão familiaré algo que Manuel Peixoto, psicólogo e terapeu-ta familiar, diz ainda existir hoje. "Há famíliasonde o divórcio acontece há três gerações, ou-tras onde nunca houve nenhum e isso tem umpeso tremendo." Também Rita Sassetti, advo-

gada especializada em Direito da Família, quehá mais de 20 anos lida diariamente com casosde divórcio, defende ainda existir estigma so-

cial, sobretudo em meios pequenos. "Há muita

gente que não se divorcia porque não quer quelhe apontem o dedo. Pessoas que estão sepa-radas, vivem em casas diferentes e deixam odivórcio para mais tarde. Muitas vezes aindamantêm a aliança no dedo."

Há uma maiordiversidadede escolha da

conjugalidadee são poucasas pessoasque assumemo casamentocomo umsacramento",comenta a

sociólogaAnãlia Torres

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Luiza e Luís Mendes,ela brasileira e aestudar em Lisboa,ele do concelhode Vila de Rei. O

casamento, em 2012,ficou registado emLisboa mas aguardamresposta camaráriapara a candidaturaao incentivo aocasamento. Os paisde Sandra Carvalho(27 anos) e FilipeSilva (30 anos), nafotografia à esquerda,eram do concelho deVila de Rei e os filhos,casados há um ano,vivem hoje no centroda vila

Em Vila de Rei, é possível não conhecerninguém divorciado. É o caso de Andreia Do-

mingos. Tem 26 anos, casou-se com Luís Silva

em 2011 e vivem numa casa que eles própriosdesenharam e decoraram. Na sala, junto à te-

levisão, têm os bonecos do bolo de casamento.Resumem em grande parte a sua história: a

noiva tem uma concertina nas mãos, o noivoum computador. É que Andreia está ligada à

música e a agenda está sempre preenchida.Durante a semana, trabalha num escritório,ao fim-de-semana actua em diferentes even-tos, como festas de arraial. Já Luís trabalha nacâmara e, como diz, passa "o dia todo no com-

putador". "Conhecemo-nos num 'bailarico' em2006 e namorámos cinco anos", conta Luís,antes de ser corrigido. "Não foram cinco, foram

quatro anos e meio." Casarem-se fazia parte

dos objectivos de vida. Portanto, resumem-norapidamente: "Foi acontecendo." Aliás, por ali,acham que quase todos acabam por seguir o

mesmo caminho.A opinião é diferente para quem organiza

casamentos na zona. Carlos Marcai é dono deduas quintas em cidades perto do concelho. Há30 anos que organiza eventos e tem a impres-são de receber ali cerca de 90% dos casamen-tos de Vila de Rei. "Não temos uma ocupaçãoinferior ao ano passado, temos é menos convi-dados por evento." E cada vez mais as pessoasprocuram os preços baixos. Nas suas quintascobra uma média de 70 euros por convidado,sem reflectir o aumento de 10% do IVA no clien-

te, lembra. "Estamos a ficar estrangulados e

milagres não há."

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Foi numa dessas quintas que Luiza e LuísMendes se casaram, já em 2012. Luiza, quenasceu no estado brasileiro de Espírito Santo,é um exemplo de quem sublinha a sua fé comomotivo para um casamento religioso. "Eu, quesou cristã, queria casar no civil como compro-misso mas no religioso também." Veio paraPortugal há oito anos e estuda GerontologiaSocial em Lisboa, com a ideia de ir trabalharpara Vila de Rei e abrir um negócio próprio. É

para lá que vai quase todos os fins-de-semana.Luís Mendes é natural do concelho e trabalhano "negócio da madeira". Vivem em casa dos

pais dele, até porque as cidades grandes nãoo atraem. "Quanto mais pequena, melhor."Para Luiza, é diferente. "Este é um lugar pe-queno, parado e senti a diferença no silêncioe no escuro." Mas vê vantagens, como vivercom menos stress.

Casaram-se nove meses depois de se conhe-cerem. Registaram o casamento em Lisboa,"por uma questão de tempo e de documentos",mas aguardam resposta da câmara à candidatu-ra para o apoio. "É bom recebê-10, mas não temmuito peso na decisão. Casar era uma questãonossa." Pensam em ter filhos. "Será um boca-dinho mais para a frente, mas não muito", até

pelas idades (Luiza tem 38 anos, Luís 45). E é

de forma aberta que Luiza, mais do que o ma-rido, encara a realidade do divórcio. "Aqui as

pessoas comentam tudo. Mas, se não dá certo,o que é que se pode fazer? Não podem conde-nar ninguém."

Essa opinião contrasta com as razões aponta-das pelos divorciados para não partilharem as

suas histórias. Se os casais mais jovens têm umavisão do divórcio mais livre e aberta, tambémeles partilham a conclusão de que não é umincentivo ao casamento, mesmo sendo umaboa ajuda, que os leva ao altar. Mesmo assim,Vila de Rei foi um dos poucos concelhos ondea população aumentou 2,9% de 2001 para 2011

e viu nascer 19 bebés em 2011. Só que quantoao apoio ao casamento, sublinha a demógrafaMaria João Valente Rosa, o que está em cau-sa não é financeiro. "O marco institucional docasamento deixou de ser necessário. Se não é

necessário, um incentivo financeiro pode ounão funcionar. O casamento não é um bem devalor económico, é emocional."

Para o pároco Manuel Nunes, continua a ha-

ver casais que se mantêm unidos. "Têm dificul-

dades, mas mantêm-se." Celeste e José Antóniosão um exemplo. Ao longo dos últimos 51 anos,perderam uma filha, que deixou um neto comseis meses. Passe o tempo que passar, isso dói-lhes. Se hoje estão ali bem? "Não me sinto piordo que em Lisboa", responde Celeste, que devez em quando sai para passear entre as poucascasas da aldeia apoiada em duas muletas. "Jáele está sempre na horta, monta e desmonta,depois senta-se num banco. E é muito amigodas três galinhas", conta a rir. José Antónioaproveita a pausa da mulher, para rematar aconversa. "Depois de tantos anos casados, ain-da consegue ter ciúmes."

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