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7/23/2019 Martins(1985)Reminiscencia Em Platao(R) http://slidepdf.com/reader/full/martins1985reminiscencia-em-plataor 1/24  BIBLOS —  Vol. LX1 (1985) ANTÓNIO MARTINS Universidade de Coimbra SOBRE A REMINISCÊ NCIA EM PLATÃO 0.1. Como é sabido, uma das metáforas usadas por Platão para se referir à possibilidade que o homem tem de aprender e de conhecer, de adquirir saber, é a da reminiscência. E se dizemos uma das metá foras, é porque não podemos esquecer, contrariamente ao que geral mente acontece, que Platão também explora outra via de esclarecimento da mesma questão através da doutrina da purificação, κ á θαρσις, exposta, no Sofista, pelo estrangeiro de Eleia (229b ss). Contudo, vamos debru- çar-nos sobre a metáfora da reminiscência neste breve apontamento tentando esclarecer o seu significado e relevância filosófica, a partir do texto chave do Ménon (80a-86c). Além deste, dois outros textos nos apresentam a aquisição de saber e o aprender como reminiscência: Fédon 72e-76e, Fedro 249b-e. Embora seja nítida a influência domi nante da imagética destes dois textos, sobretudo do passo do Fedro, em determinadas interpretações do pensamento platónico, cremos que a análise da questão da anamnese na obra platónica deve partir do  Ménon  para o Fédon e Fedro e não ao contrário. Seguimos, assim, a sequência da cronologia real destes diálogos  Ménon, ... Fédon, ... Fedro)  ao darmos prioridade a uma interpretação do trecho do Ménon. A linguagem metafórica e o enquadramento mítico em que a remi niscência surge nestes textos podem ser tidos como algo que favorece a interpretação tradicional do dualismo platónico. De facto, a tradição de estudos e comentários da obra platónica que interpretam a afirma ção de Sócrates no Ménon (81d4) como uma descrição daquilo que, literalmente, acontece quando um homem conhece algo que não sabia antes, é longa e muito representativa. Interpretação literal que se estende, geralmente, às afirmações sobre o ciclo das reincarnações da alma e está, quase sempre, associada a uma interpretação também (pretensamente) literal dos três símiles da República. Cingindo-nos agora, aos textos que tratam da reminiscência, procuraremos mostrar

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BIBLOS mdash Vol LX1 (19 85)

ANTOacuteNIO MARTINS

Universidade de Coimbra

SOBRE A REMINISCEcircNCIA EM PLATAtildeO

01 Como eacute sabido uma das metaacuteforas usadas por Pla tatildeo para

se referir agrave possibilidade que o homem tem de aprender e de conhecerde adquir ir saber eacute a da reminiscecircncia E se dizemos uma das metaacute

foras eacute porque natildeo podemos esquecer contrariamente ao que geral

mente acontece que Platatildeo tambeacutem explora outra via de esclarecimento

da mesma questatildeo atraveacutes da doutrina da purificaccedilatildeo κaacuteθαρσις exposta

no Sofista pelo estrangeiro de Eleia (229b ss) Cont ud o vamos debru-

ccedilar-nos sobre a metaacutefora da reminiscecircncia neste breve apontamento

tentando esclarecer o seu significado e relevacircncia filosoacutefica a partir

do texto chave do Meacutenon (80a-86c) Aleacutem deste dois out ros textos

nos apresentam a aquisiccedilatildeo de saber e o aprender como reminiscecircncia

Feacutedon 72e-76e Fedro 249b-e Embora seja niacutetida a influecircncia domi

nante da imageacutetica destes dois textos sobretudo do passo do Fedro

em determinadas interpretaccedilotildees do pensamento platoacutenico cremos que a

anaacutelise da questatildeo da anamnese na obra platoacutenica deve partir do Meacutenon

para o Feacutedon e Fedro e natildeo ao contraacute rio Seguimos assim a sequecircncia

da cronologia real destes diaacutelogos ( Meacutenon Feacutedon Fedro) ao

darmos prioridade a uma interpretaccedilatildeo do trecho do Meacutenon

A linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico em que a remi

niscecircncia surge nestes textos podem ser tidos como algo que favorece a

interpre taccedilatildeo tradicional do dualismo platoacutenico De facto a trad iccedilatildeo

de estudos e comentaacuterios da obra platoacutenica que interpretam a afirma

ccedilatildeo de Soacutecrates no Meacutenon (81d4) como uma descriccedilatildeo daquilo que

literalmente acontece quando um homem conhece algo que natildeo sabia

antes eacute longa e mui to representativa Interpretaccedilatildeo literal que se

estende geralmente agraves afirmaccedilotildees sobre o ciclo das reincarnaccedilotildees da

alma e estaacute quase sempre associada a uma interpretaccedilatildeo tambeacutem(pretensamente) literal dos trecircs siacutemiles da Repuacuteblica Cingindo-nos

agora aos textos que tratam da reminiscecircncia procuraremos mostrar

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509 SOBRE A REMINISCEcircNCIA EM PLATAtildeO

os limites de uma interpretaccedilatildeo demasiado literal e imediata desses

textos Segundo a interpretaccedilatildeo tradicional da posiccedilatildeo platoacutenica

a alma teria contemplado numa existecircncia anterior antes de ter encar

nado em determinado corpo as ideias de todas as coisas ideias que ela

vai relembrar recordar quando devidamente estimulada Uma pri

meira dificuldade desta concepccedilatildeo tradicional da reminiscecircncia eacute queela absolutiza determinadas expressotildees metafoacutericas do Fedro e esquece

que no Meacutenon natildeo se fala de uma reminiscecircncia ( ν microνησις ) das ideias

O miacutenimo que se pode dizer eacute que o texto eacute omisso neste ponto Agrave pri

meira vista Soacutecrates parece apoiar-se principalmente nas concepccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas da reincarnaccedilatildeo e da metempsicose Out ra dificul

dade seacuteria da interpretaccedilatildeo tradicional demasiado literal reside no

seguinte facto eacute que eacute o proacuteprio texto platoacutenico que se distancia da

literalidade da metaacutefora da anamnese (Meacutenon 86b6 ss Feacutedon 72e4114d ss Fedro 257a) Esta dificuldade remete-nos para questotildees her

menecircuticas centrais como a da recta interpretaccedilatildeo da linguagem meta

foacuterica em geral do uso e sentido da metaacutefora no discurso filosoacutefico e

neste caso de saber como interpretar a metaacutefora e o mito nos diaacutelogos

platoacutenicos Natildeo eacute aqui o lugar de aprofundar e explicitar esta pro

blemaacutetica Quando dissermos mais adiante algo sobre alguns pres

supostos da nossa leitura de Platatildeo retomaremos este assunto dentro

dos limites impostos pela natureza deste apontamento

Apesar das dificuldades apontadas a interpretaccedilatildeo literal dominou

a cena natildeo soacute no campo da filo logia como no da filosofia Soacute na filo

sofia moderna eacute que surge a ideia de interpretar a reminiscecircncia como

expressatildeo de um saber a priori Interpretada racionalmente a remi

niscecircncia natildeo poderia querer dizer outra coisa que natildeo fosse o facto de

que na alma tinham que existir conceitos que natildeo poderiam ter a sua

origem na experiecircncia mas que jaacute tinham que existir como preacute-dados

antes de toda e qualquer experiecircncia Este tipo de interpretaccedilatildeo foi

muito divulgado pelos neokantianos tornando-se desde entatildeo moeda

corrente em anaacutelises filosoacuteficas do texto platoacutenico Por exemplo

Moravscik constroacutei todo o seu estudo da anamnese em torno da questatildeo

de saber se laquothe recollection thesis is best classified as empirical hypothe-

sis a priori truth or mere metaphorraquo Contudo foi Leibniz e natildeo

Kant quem primeiro interpretou a reminiscecircncia platoacutenica no sentido

de um a priori loacutegico Nos Nouveaux Essais refere-se expressamente

ao Meacutenon pretendendo ver no episoacutedio da aula de geometria a expressatildeo

1 Mor avc sik em Vlasto s G (1971) 69

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BIBLOS 510

mais pur a da posiccedilatildeo platoacutenica a respeito da reminiscecircnc ia Preacute-

-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma seriam mero ornamento rigorosa-

mente exterior e alheio agrave posiccedilatildeo platoacutenica 2 Curiosamente Kan t

natildeo aproveita esta sugestatildeo de Leibniz limitando-se a ver na doutrina

da reminiscecircncia o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso 3

Conveacutem natildeo esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofiagrega deixava bas tante a desejar Na Ale manha depois de Leibniz

seraacute preciso esperar por Hegel para encontrarmos algueacutem que conheccedila

dire ctamen te e em pro fund idade os textos filosoacuteficos dos gregos Mai s

perto de noacutes seratildeo os neokantianos de Marburg designadamente

P Na tor p quem vai re to mar a sugest atildeo de Leibniz De entre os filoacute

sofos contemporacircneos que seguem esta linha de interpretaccedilatildeo apesar

de jaacute natildeo partilhar os pressupostos sistemaacuteticos daqueles autores

merece especial referecircncia N Hartmann 4

Se a interpretaccedilatildeo demasiado literal nos parece insatisfatoacuteria

porque se limita a sol etrar determinadas frases de diaacutelogos platoacutenicos

retiradas do seu contexto originaacuterio sem conseguir dar um conteuacutedo

filosoacutefico minimamente plausiacutevel agrave reminiscecircncia a sugestatildeo de Leibniz

po r outro lado ao reduz ir a reminiscecircncia a um saber a pr ior i natildeo soacute

diminui o possiacutevel alcance da reminiscecircncia como dificilmente se har

moniza com o seu caraacutecte r metafoacuterico Esta como outr as tentati vas

de dar um conteuacutedo filosoacutefico positivo agrave reminiscecircncia peca por excesso

Diz mais e sob ret udo diz o que natildeo estaacute no texto Em bo ra o texto

platoacutenico como qualquer texto com um miacutenimo de qualidade seja

dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma

pluralidade sempre renovada de interpretaccedilotildees haacute no entanto limites

que a letra do texto impotildee e nos impedem de aceitar qualquer inter

pretaccedilatildeo e de as colocar ao mesmo niacutevel Limites que tem que se

respei tar sob pena de o texto se to rn ar mer o pret exto Agrave primeira

vista parece que estamos condenados a ter que optar por uma inter-

pretaccedilatildeo li tera lis ta que nos apresenta a remin iscecircnc ia como uma doutrinafilosoficamente ambiacutegua e de interesse meramente arqueoloacutegico ou por

uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica que actualiza a ideia de reminiscecircncia mas

nos faz pagar o preccedilo de uma reduccedilatildeo efectiva do alcance da metaacutefora

2 Leibni z G W Nouveaux Essais in Gerhard t Die Philosophischen Schrif-

ten V 74 ss 45 1 s3

Cf Ka nt I laquoWelc hes sind die For tsc hr itt e die die Met aph ysi k seit Leibn izund Wolf in Deu tsc hla nd gem ach t ha t in Weisch edel W (Hr sg ) WE R KE I I I

Schriften zur Metaphysik und Logik (Wiesbad Insel 1958)

laquo Hart man n N Kleine Schriften II (Berlin 1957) 48-85

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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe

ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez

a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que

procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto

naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s

do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo

do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da

obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma

minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de

sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta

numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva

do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa

leitura

02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma

atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se

como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu

autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos

interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura

peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for

a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente

mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con

traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de

forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por

isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia

Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica

tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)

deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o

Soacutecrates histoacuterico

Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico

entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel

da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade

os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto

da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel

passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se

Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no

diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na

nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees

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BIBLOS 512

preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que

desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti

cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar

o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo

da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias

retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora

Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se

pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da

reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )

quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo

Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase

sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de

nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona

das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta

Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge

como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo

que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas

Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica

de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o

caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que

embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a

linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico

Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar

de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a

linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de

explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do

parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo

soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo

ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos

Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode

mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo

totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute

foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que

essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita

mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a

metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e

usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-

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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e

corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou

interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto

de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado

natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co

nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma

tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real

tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do

confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem

a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon

O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas

explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa

leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel

no presente contexto

1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c

O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri

meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto

com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como

laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi

nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia

No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido

de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus

olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute

porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos

julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci

samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a

experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar

a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir

que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber

que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar

uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os

intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem

a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do

seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco

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mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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509 SOBRE A REMINISCEcircNCIA EM PLATAtildeO

os limites de uma interpretaccedilatildeo demasiado literal e imediata desses

textos Segundo a interpretaccedilatildeo tradicional da posiccedilatildeo platoacutenica

a alma teria contemplado numa existecircncia anterior antes de ter encar

nado em determinado corpo as ideias de todas as coisas ideias que ela

vai relembrar recordar quando devidamente estimulada Uma pri

meira dificuldade desta concepccedilatildeo tradicional da reminiscecircncia eacute queela absolutiza determinadas expressotildees metafoacutericas do Fedro e esquece

que no Meacutenon natildeo se fala de uma reminiscecircncia ( ν microνησις ) das ideias

O miacutenimo que se pode dizer eacute que o texto eacute omisso neste ponto Agrave pri

meira vista Soacutecrates parece apoiar-se principalmente nas concepccedilotildees

oacuterfico-pitagoacutericas da reincarnaccedilatildeo e da metempsicose Out ra dificul

dade seacuteria da interpretaccedilatildeo tradicional demasiado literal reside no

seguinte facto eacute que eacute o proacuteprio texto platoacutenico que se distancia da

literalidade da metaacutefora da anamnese (Meacutenon 86b6 ss Feacutedon 72e4114d ss Fedro 257a) Esta dificuldade remete-nos para questotildees her

menecircuticas centrais como a da recta interpretaccedilatildeo da linguagem meta

foacuterica em geral do uso e sentido da metaacutefora no discurso filosoacutefico e

neste caso de saber como interpretar a metaacutefora e o mito nos diaacutelogos

platoacutenicos Natildeo eacute aqui o lugar de aprofundar e explicitar esta pro

blemaacutetica Quando dissermos mais adiante algo sobre alguns pres

supostos da nossa leitura de Platatildeo retomaremos este assunto dentro

dos limites impostos pela natureza deste apontamento

Apesar das dificuldades apontadas a interpretaccedilatildeo literal dominou

a cena natildeo soacute no campo da filo logia como no da filosofia Soacute na filo

sofia moderna eacute que surge a ideia de interpretar a reminiscecircncia como

expressatildeo de um saber a priori Interpretada racionalmente a remi

niscecircncia natildeo poderia querer dizer outra coisa que natildeo fosse o facto de

que na alma tinham que existir conceitos que natildeo poderiam ter a sua

origem na experiecircncia mas que jaacute tinham que existir como preacute-dados

antes de toda e qualquer experiecircncia Este tipo de interpretaccedilatildeo foi

muito divulgado pelos neokantianos tornando-se desde entatildeo moeda

corrente em anaacutelises filosoacuteficas do texto platoacutenico Por exemplo

Moravscik constroacutei todo o seu estudo da anamnese em torno da questatildeo

de saber se laquothe recollection thesis is best classified as empirical hypothe-

sis a priori truth or mere metaphorraquo Contudo foi Leibniz e natildeo

Kant quem primeiro interpretou a reminiscecircncia platoacutenica no sentido

de um a priori loacutegico Nos Nouveaux Essais refere-se expressamente

ao Meacutenon pretendendo ver no episoacutedio da aula de geometria a expressatildeo

1 Mor avc sik em Vlasto s G (1971) 69

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BIBLOS 510

mais pur a da posiccedilatildeo platoacutenica a respeito da reminiscecircnc ia Preacute-

-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma seriam mero ornamento rigorosa-

mente exterior e alheio agrave posiccedilatildeo platoacutenica 2 Curiosamente Kan t

natildeo aproveita esta sugestatildeo de Leibniz limitando-se a ver na doutrina

da reminiscecircncia o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso 3

Conveacutem natildeo esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofiagrega deixava bas tante a desejar Na Ale manha depois de Leibniz

seraacute preciso esperar por Hegel para encontrarmos algueacutem que conheccedila

dire ctamen te e em pro fund idade os textos filosoacuteficos dos gregos Mai s

perto de noacutes seratildeo os neokantianos de Marburg designadamente

P Na tor p quem vai re to mar a sugest atildeo de Leibniz De entre os filoacute

sofos contemporacircneos que seguem esta linha de interpretaccedilatildeo apesar

de jaacute natildeo partilhar os pressupostos sistemaacuteticos daqueles autores

merece especial referecircncia N Hartmann 4

Se a interpretaccedilatildeo demasiado literal nos parece insatisfatoacuteria

porque se limita a sol etrar determinadas frases de diaacutelogos platoacutenicos

retiradas do seu contexto originaacuterio sem conseguir dar um conteuacutedo

filosoacutefico minimamente plausiacutevel agrave reminiscecircncia a sugestatildeo de Leibniz

po r outro lado ao reduz ir a reminiscecircncia a um saber a pr ior i natildeo soacute

diminui o possiacutevel alcance da reminiscecircncia como dificilmente se har

moniza com o seu caraacutecte r metafoacuterico Esta como outr as tentati vas

de dar um conteuacutedo filosoacutefico positivo agrave reminiscecircncia peca por excesso

Diz mais e sob ret udo diz o que natildeo estaacute no texto Em bo ra o texto

platoacutenico como qualquer texto com um miacutenimo de qualidade seja

dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma

pluralidade sempre renovada de interpretaccedilotildees haacute no entanto limites

que a letra do texto impotildee e nos impedem de aceitar qualquer inter

pretaccedilatildeo e de as colocar ao mesmo niacutevel Limites que tem que se

respei tar sob pena de o texto se to rn ar mer o pret exto Agrave primeira

vista parece que estamos condenados a ter que optar por uma inter-

pretaccedilatildeo li tera lis ta que nos apresenta a remin iscecircnc ia como uma doutrinafilosoficamente ambiacutegua e de interesse meramente arqueoloacutegico ou por

uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica que actualiza a ideia de reminiscecircncia mas

nos faz pagar o preccedilo de uma reduccedilatildeo efectiva do alcance da metaacutefora

2 Leibni z G W Nouveaux Essais in Gerhard t Die Philosophischen Schrif-

ten V 74 ss 45 1 s3

Cf Ka nt I laquoWelc hes sind die For tsc hr itt e die die Met aph ysi k seit Leibn izund Wolf in Deu tsc hla nd gem ach t ha t in Weisch edel W (Hr sg ) WE R KE I I I

Schriften zur Metaphysik und Logik (Wiesbad Insel 1958)

laquo Hart man n N Kleine Schriften II (Berlin 1957) 48-85

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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe

ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez

a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que

procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto

naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s

do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo

do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da

obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma

minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de

sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta

numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva

do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa

leitura

02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma

atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se

como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu

autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos

interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura

peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for

a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente

mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con

traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de

forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por

isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia

Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica

tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)

deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o

Soacutecrates histoacuterico

Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico

entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel

da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade

os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto

da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel

passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se

Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no

diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na

nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees

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BIBLOS 512

preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que

desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti

cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar

o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo

da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias

retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora

Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se

pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da

reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )

quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo

Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase

sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de

nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona

das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta

Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge

como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo

que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas

Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica

de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o

caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que

embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a

linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico

Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar

de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a

linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de

explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do

parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo

soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo

ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos

Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode

mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo

totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute

foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que

essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita

mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a

metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e

usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-

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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e

corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou

interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto

de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado

natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co

nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma

tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real

tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do

confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem

a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon

O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas

explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa

leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel

no presente contexto

1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c

O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri

meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto

com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como

laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi

nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia

No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido

de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus

olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute

porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos

julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci

samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a

experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar

a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir

que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber

que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar

uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os

intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem

a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do

seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco

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BIBLOS 514

mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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BIBLOS 510

mais pur a da posiccedilatildeo platoacutenica a respeito da reminiscecircnc ia Preacute-

-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma seriam mero ornamento rigorosa-

mente exterior e alheio agrave posiccedilatildeo platoacutenica 2 Curiosamente Kan t

natildeo aproveita esta sugestatildeo de Leibniz limitando-se a ver na doutrina

da reminiscecircncia o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso 3

Conveacutem natildeo esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofiagrega deixava bas tante a desejar Na Ale manha depois de Leibniz

seraacute preciso esperar por Hegel para encontrarmos algueacutem que conheccedila

dire ctamen te e em pro fund idade os textos filosoacuteficos dos gregos Mai s

perto de noacutes seratildeo os neokantianos de Marburg designadamente

P Na tor p quem vai re to mar a sugest atildeo de Leibniz De entre os filoacute

sofos contemporacircneos que seguem esta linha de interpretaccedilatildeo apesar

de jaacute natildeo partilhar os pressupostos sistemaacuteticos daqueles autores

merece especial referecircncia N Hartmann 4

Se a interpretaccedilatildeo demasiado literal nos parece insatisfatoacuteria

porque se limita a sol etrar determinadas frases de diaacutelogos platoacutenicos

retiradas do seu contexto originaacuterio sem conseguir dar um conteuacutedo

filosoacutefico minimamente plausiacutevel agrave reminiscecircncia a sugestatildeo de Leibniz

po r outro lado ao reduz ir a reminiscecircncia a um saber a pr ior i natildeo soacute

diminui o possiacutevel alcance da reminiscecircncia como dificilmente se har

moniza com o seu caraacutecte r metafoacuterico Esta como outr as tentati vas

de dar um conteuacutedo filosoacutefico positivo agrave reminiscecircncia peca por excesso

Diz mais e sob ret udo diz o que natildeo estaacute no texto Em bo ra o texto

platoacutenico como qualquer texto com um miacutenimo de qualidade seja

dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma

pluralidade sempre renovada de interpretaccedilotildees haacute no entanto limites

que a letra do texto impotildee e nos impedem de aceitar qualquer inter

pretaccedilatildeo e de as colocar ao mesmo niacutevel Limites que tem que se

respei tar sob pena de o texto se to rn ar mer o pret exto Agrave primeira

vista parece que estamos condenados a ter que optar por uma inter-

pretaccedilatildeo li tera lis ta que nos apresenta a remin iscecircnc ia como uma doutrinafilosoficamente ambiacutegua e de interesse meramente arqueoloacutegico ou por

uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica que actualiza a ideia de reminiscecircncia mas

nos faz pagar o preccedilo de uma reduccedilatildeo efectiva do alcance da metaacutefora

2 Leibni z G W Nouveaux Essais in Gerhard t Die Philosophischen Schrif-

ten V 74 ss 45 1 s3

Cf Ka nt I laquoWelc hes sind die For tsc hr itt e die die Met aph ysi k seit Leibn izund Wolf in Deu tsc hla nd gem ach t ha t in Weisch edel W (Hr sg ) WE R KE I I I

Schriften zur Metaphysik und Logik (Wiesbad Insel 1958)

laquo Hart man n N Kleine Schriften II (Berlin 1957) 48-85

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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe

ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez

a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que

procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto

naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s

do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo

do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da

obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma

minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de

sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta

numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva

do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa

leitura

02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma

atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se

como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu

autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos

interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura

peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for

a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente

mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con

traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de

forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por

isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia

Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica

tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)

deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o

Soacutecrates histoacuterico

Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico

entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel

da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade

os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto

da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel

passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se

Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no

diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na

nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees

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BIBLOS 512

preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que

desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti

cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar

o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo

da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias

retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora

Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se

pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da

reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )

quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo

Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase

sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de

nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona

das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta

Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge

como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo

que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas

Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica

de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o

caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que

embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a

linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico

Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar

de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a

linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de

explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do

parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo

soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo

ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos

Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode

mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo

totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute

foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que

essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita

mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a

metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e

usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-

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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e

corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou

interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto

de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado

natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co

nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma

tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real

tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do

confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem

a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon

O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas

explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa

leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel

no presente contexto

1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c

O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri

meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto

com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como

laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi

nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia

No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido

de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus

olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute

porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos

julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci

samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a

experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar

a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir

que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber

que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar

uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os

intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem

a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do

seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco

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BIBLOS 514

mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe

ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez

a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que

procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto

naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s

do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo

do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da

obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma

minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de

sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta

numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva

do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa

leitura

02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma

atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se

como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu

autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos

interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura

peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for

a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente

mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con

traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de

forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por

isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia

Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica

tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)

deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o

Soacutecrates histoacuterico

Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico

entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel

da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade

os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto

da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel

passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se

Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no

diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na

nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees

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BIBLOS 512

preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que

desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti

cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar

o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo

da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias

retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora

Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se

pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da

reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )

quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo

Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase

sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de

nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona

das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta

Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge

como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo

que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas

Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica

de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o

caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que

embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a

linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico

Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar

de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a

linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de

explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do

parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo

soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo

ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos

Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode

mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo

totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute

foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que

essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita

mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a

metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e

usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-

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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e

corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou

interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto

de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado

natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co

nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma

tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real

tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do

confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem

a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon

O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas

explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa

leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel

no presente contexto

1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c

O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri

meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto

com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como

laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi

nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia

No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido

de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus

olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute

porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos

julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci

samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a

experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar

a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir

que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber

que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar

uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os

intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem

a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do

seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco

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BIBLOS 514

mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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BIBLOS 512

preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que

desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti

cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar

o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo

da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias

retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora

Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se

pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da

reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )

quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo

Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase

sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de

nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona

das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta

Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge

como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo

que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas

Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica

de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o

caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que

embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a

linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico

Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar

de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a

linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de

explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do

parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo

soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo

ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos

Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode

mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo

totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute

foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que

essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita

mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a

metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e

usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-

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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e

corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou

interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto

de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado

natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co

nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma

tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real

tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do

confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem

a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon

O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas

explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa

leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel

no presente contexto

1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c

O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri

meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto

com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como

laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi

nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia

No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido

de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus

olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute

porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos

julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci

samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a

experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar

a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir

que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber

que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar

uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os

intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem

a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do

seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco

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BIBLOS 514

mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e

corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou

interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto

de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado

natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co

nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma

tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real

tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do

confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem

a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon

O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas

explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa

leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel

no presente contexto

1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c

O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri

meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto

com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como

laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi

nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia

No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido

de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus

olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute

porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos

julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci

samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a

experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar

a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir

que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber

que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar

uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os

intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem

a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do

seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco

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BIBLOS 514

mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

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BIBLOS 514

mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor

natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla

raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica

na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade

que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife

rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe

riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser

feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto

ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe

riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de

uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre

tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema

destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de

aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema

No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se

a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer

ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser

explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da

conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon

eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente

Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade

que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma

explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de

facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per

ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que

lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo

correcta tem que satisfazer

Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude

laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo

sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a

convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto

de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude

diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que

ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido

puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele

faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de

imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica

Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O

seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar

em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da

virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-

ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente

em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com

um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento

preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo

de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu

mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre

as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um

verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem

a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te

parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de

Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar

quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe

natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem

natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)

Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute

a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que

natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo

discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades

natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui

rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife

rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates

introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta

ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para

o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo

de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo

τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo

de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se

tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter

mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese

eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli

giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres

conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade

Cf Eutidemo 277d ss

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

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BIBLOS 516

preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a

pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese

eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico

a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon

O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho

A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores

e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e

poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo

de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga

das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo

veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo

filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar

e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-

niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e

entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem

histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra

o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua

origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume

total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso

ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor

Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim

fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon

imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc

laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo

mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de

facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi

niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar

laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar

categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta

afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden

temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto

da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar

em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a

nossa leitura

Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de

saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada

literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se

recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte

sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada

disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo

literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o

menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma

interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira

gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto

de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado

meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir

discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-

vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude

O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa

a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s

tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um

impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a

continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo

da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo

poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este

meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela

fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico

e evitar o silecircncio

No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o

meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria

Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no

Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn

cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica

mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash

deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser

int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes

etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n

ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer

aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer

que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em

que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes

explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela

natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa

no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da

nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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BIBLOS 518

do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa

lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo

faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria

resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta

eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo

da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave

reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-

rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o

seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui

ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico

(preguiccediloso)

O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que

assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem

dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute

exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas

Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e

reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo

que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo

dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica

ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste

em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica

agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra

diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r

de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo

do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer

deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo

Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os

sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta

mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-

mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode

chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber

pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que

este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente

ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do

Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute

sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento

eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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519 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se

possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso

(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo

de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu

distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica

sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s

dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste

precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito

de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi

nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e

taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar

a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-

logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por

explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar

jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees

2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro

Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em

Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do

Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira

coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento

diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto

em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge

como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel

pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no

diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa

mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse

mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi

niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo

natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-

-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer

com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas

coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem

em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala

de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que

admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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BIBLOS 520

para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica

de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese

cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi

niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-

-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho

do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela

foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute

que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio

Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria

noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos

terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de

como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto

mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme

tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo

quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de

treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas

dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas

sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo

lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates

parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo

que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme

lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada

eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem

que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do

de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia

de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a

espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte

cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita

No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol

ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na

imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre

diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito

amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na

diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si

mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo

entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado

usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar

igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for

usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo

leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do

terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta

problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos

conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra

nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que

tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos

coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or

ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque

ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois

do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou

intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar

de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma

representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen

tos do processo cognitivo

Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon

insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto

de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber

de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em

algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende

ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos

aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora

da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu

minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o

homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa

poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos

de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres

cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema

siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve

a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio

Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera

cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo

(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes

eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo

do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo

vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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BIBLOS 522

no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo

queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente

a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute

tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a

proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro

que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute

veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados

como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em

implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi

cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute

chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo

de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das

ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila

que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)

Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma

hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias

No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que

tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que

ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute

ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar

ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma

teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia

estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa

mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo

da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo

permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo

que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um

niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia

real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente

aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis

tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o

jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren

dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides

aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim

parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-

o Cf Parmeacutenides 128e-135b

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal

modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples

meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao

discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas

reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas

No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um

discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso

semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates

diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma

que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por

natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser

vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta

visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute

divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte

risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi

niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria

foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r

a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender

as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade

das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se

reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando

seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos

existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c

sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia

agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste

passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar

a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte

imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua

lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam

para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem

inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu

discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan

ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois

aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender

7 Fedro 249b

8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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BIBLOS 524

o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos

realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios

partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia

vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9

No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli

nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave

letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos

trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo

platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo

nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica

mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar

sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo

uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik

laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag

mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do

saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico

Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel

a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se

insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber

nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre

vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito

episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem

plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -

quilo que se s a be1 1

Este justificar983085se prestar contas

legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo

e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais

Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se

atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se

pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva

9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo

Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2

Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta

a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates

referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo

(Platos Meno C U P 1961 p 53)

10 Mor avc si k J (1971) 681 1

Cf po r ex Feacutedon 76d

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando

esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue

representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos

parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da

obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos

na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel

O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do

A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita

relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos

no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta

foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje

ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema

siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum

valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do

saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter

pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a

este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis

tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas

ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias

indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos

trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo

das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo

que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo

nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto

filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute

nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo

loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar

a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe

apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da

lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar

positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l

mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa

vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do

conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser

possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam

beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de

conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia

Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos

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BIBLOS 526

a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

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Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento

saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto

de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica

Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico

Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste

toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as

da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta

fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e

de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli

nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento

hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um

consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que

co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica

com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his

toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo

diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a

estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha

um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa

mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis

com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber

Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel

com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da

referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como

algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo

Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos

os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun

ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual

3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia

platoacutenica

Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-

tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica

de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo

1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -

gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I

p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n

seca

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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

BIBLIOGRAFIA

ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)

165-174

C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)

E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)

FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)

GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213

GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his

Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)

HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)

J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)

K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)

MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)

P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck

(Cambridge Univ Press 1961)

Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)

Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)

ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta

physics 35 (1981) 337-349

STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48

laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345

THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349

W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)

Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias

ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae

experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda

secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica

Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia

no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se

refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do

para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo

que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo

de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat

postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-

ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos

tratar-se de Rep 614b)

A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar

a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo

Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra

possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no

saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade

daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens

que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam

os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois

de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se

no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a

todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais

demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius

disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais

atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de

mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio

somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo

que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er

oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons

truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico

O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter

ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida

1 3

laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um

(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia

facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

BIBLIOGRAFIA

ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)

165-174

C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)

E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)

FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)

GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213

GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his

Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)

HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)

J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)

K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)

MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)

P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck

(Cambridge Univ Press 1961)

Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)

Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)

ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta

physics 35 (1981) 337-349

STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48

laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345

THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349

W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)

Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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BIBLOS 528

co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem

pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento

provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem

deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios

Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo

nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente

Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute

ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada

pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num

ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do

progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido

como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade

tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem

desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob

pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor

Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica

que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de

dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso

diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a

reminiscecircncia 1 4

Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la

seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe

cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade

de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a

reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir

do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci

mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam

dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva

(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o

1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am

hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -

cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo

inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io

circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia

acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem

sit quod reminisciraquo CMA I 88-89

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

7232019 Martins(1985)Reminiscencia Em Platao(R)

httpslidepdfcomreaderfullmartins1985reminiscencia-em-plataor 2324

BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

BIBLIOGRAFIA

ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)

165-174

C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)

E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)

FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)

GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213

GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his

Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)

HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)

J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)

K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)

MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)

P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck

(Cambridge Univ Press 1961)

Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)

Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)

ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta

physics 35 (1981) 337-349

STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48

laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345

THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349

W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)

Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

Page 22: Martins(1985)Reminiscencia Em Platao(R)

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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O

que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic

preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto

Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-

volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar

este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia

Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido

em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute

motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute

colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo

humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma

conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e

natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi

nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem

Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece

aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque

cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo

platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz

mais do que explicitar o primeiro

No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca

retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma

Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova

que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir

novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-

toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes

alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o

escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada

sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num

processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca

prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa

no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16

1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te

quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-

nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam

sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t

ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum

Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex

Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae

hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere

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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

BIBLIOGRAFIA

ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)

165-174

C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)

E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)

FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)

GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213

GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his

Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)

HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)

J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)

K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)

MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)

P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck

(Cambridge Univ Press 1961)

Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)

Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)

ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta

physics 35 (1981) 337-349

STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48

laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345

THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349

W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)

Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)

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BIBLOS 530

Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir

do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber

bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o

processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um

conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7

De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica

em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo

do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r

o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a

possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse

completamente absorvida pela tradiccedilatildeo

Coimbra Outubro de 1983

actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae

ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-

per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m

esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum

Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam

Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam

ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-

que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se

ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

BIBLIOGRAFIA

ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)

165-174

C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)

E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)

FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)

GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213

GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his

Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)

HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)

J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)

K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)

MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)

P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck

(Cambridge Univ Press 1961)

Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)

Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)

ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta

physics 35 (1981) 337-349

STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48

laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345

THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349

W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)

Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O

BIBLIOGRAFIA

ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)

165-174

C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)

E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)

FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)

GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213

GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his

Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)

HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)

J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)

K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)

MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)

P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck

(Cambridge Univ Press 1961)

Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)

Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)

ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta

physics 35 (1981) 337-349

STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48

laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345

THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349

W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)

Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II

Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e

(Leipzig 1889)