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BIBLOS mdash Vol LX1 (19 85)
ANTOacuteNIO MARTINS
Universidade de Coimbra
SOBRE A REMINISCEcircNCIA EM PLATAtildeO
01 Como eacute sabido uma das metaacuteforas usadas por Pla tatildeo para
se referir agrave possibilidade que o homem tem de aprender e de conhecerde adquir ir saber eacute a da reminiscecircncia E se dizemos uma das metaacute
foras eacute porque natildeo podemos esquecer contrariamente ao que geral
mente acontece que Platatildeo tambeacutem explora outra via de esclarecimento
da mesma questatildeo atraveacutes da doutrina da purificaccedilatildeo κaacuteθαρσις exposta
no Sofista pelo estrangeiro de Eleia (229b ss) Cont ud o vamos debru-
ccedilar-nos sobre a metaacutefora da reminiscecircncia neste breve apontamento
tentando esclarecer o seu significado e relevacircncia filosoacutefica a partir
do texto chave do Meacutenon (80a-86c) Aleacutem deste dois out ros textos
nos apresentam a aquisiccedilatildeo de saber e o aprender como reminiscecircncia
Feacutedon 72e-76e Fedro 249b-e Embora seja niacutetida a influecircncia domi
nante da imageacutetica destes dois textos sobretudo do passo do Fedro
em determinadas interpretaccedilotildees do pensamento platoacutenico cremos que a
anaacutelise da questatildeo da anamnese na obra platoacutenica deve partir do Meacutenon
para o Feacutedon e Fedro e natildeo ao contraacute rio Seguimos assim a sequecircncia
da cronologia real destes diaacutelogos ( Meacutenon Feacutedon Fedro) ao
darmos prioridade a uma interpretaccedilatildeo do trecho do Meacutenon
A linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico em que a remi
niscecircncia surge nestes textos podem ser tidos como algo que favorece a
interpre taccedilatildeo tradicional do dualismo platoacutenico De facto a trad iccedilatildeo
de estudos e comentaacuterios da obra platoacutenica que interpretam a afirma
ccedilatildeo de Soacutecrates no Meacutenon (81d4) como uma descriccedilatildeo daquilo que
literalmente acontece quando um homem conhece algo que natildeo sabia
antes eacute longa e mui to representativa Interpretaccedilatildeo literal que se
estende geralmente agraves afirmaccedilotildees sobre o ciclo das reincarnaccedilotildees da
alma e estaacute quase sempre associada a uma interpretaccedilatildeo tambeacutem(pretensamente) literal dos trecircs siacutemiles da Repuacuteblica Cingindo-nos
agora aos textos que tratam da reminiscecircncia procuraremos mostrar
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509 SOBRE A REMINISCEcircNCIA EM PLATAtildeO
os limites de uma interpretaccedilatildeo demasiado literal e imediata desses
textos Segundo a interpretaccedilatildeo tradicional da posiccedilatildeo platoacutenica
a alma teria contemplado numa existecircncia anterior antes de ter encar
nado em determinado corpo as ideias de todas as coisas ideias que ela
vai relembrar recordar quando devidamente estimulada Uma pri
meira dificuldade desta concepccedilatildeo tradicional da reminiscecircncia eacute queela absolutiza determinadas expressotildees metafoacutericas do Fedro e esquece
que no Meacutenon natildeo se fala de uma reminiscecircncia ( ν microνησις ) das ideias
O miacutenimo que se pode dizer eacute que o texto eacute omisso neste ponto Agrave pri
meira vista Soacutecrates parece apoiar-se principalmente nas concepccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas da reincarnaccedilatildeo e da metempsicose Out ra dificul
dade seacuteria da interpretaccedilatildeo tradicional demasiado literal reside no
seguinte facto eacute que eacute o proacuteprio texto platoacutenico que se distancia da
literalidade da metaacutefora da anamnese (Meacutenon 86b6 ss Feacutedon 72e4114d ss Fedro 257a) Esta dificuldade remete-nos para questotildees her
menecircuticas centrais como a da recta interpretaccedilatildeo da linguagem meta
foacuterica em geral do uso e sentido da metaacutefora no discurso filosoacutefico e
neste caso de saber como interpretar a metaacutefora e o mito nos diaacutelogos
platoacutenicos Natildeo eacute aqui o lugar de aprofundar e explicitar esta pro
blemaacutetica Quando dissermos mais adiante algo sobre alguns pres
supostos da nossa leitura de Platatildeo retomaremos este assunto dentro
dos limites impostos pela natureza deste apontamento
Apesar das dificuldades apontadas a interpretaccedilatildeo literal dominou
a cena natildeo soacute no campo da filo logia como no da filosofia Soacute na filo
sofia moderna eacute que surge a ideia de interpretar a reminiscecircncia como
expressatildeo de um saber a priori Interpretada racionalmente a remi
niscecircncia natildeo poderia querer dizer outra coisa que natildeo fosse o facto de
que na alma tinham que existir conceitos que natildeo poderiam ter a sua
origem na experiecircncia mas que jaacute tinham que existir como preacute-dados
antes de toda e qualquer experiecircncia Este tipo de interpretaccedilatildeo foi
muito divulgado pelos neokantianos tornando-se desde entatildeo moeda
corrente em anaacutelises filosoacuteficas do texto platoacutenico Por exemplo
Moravscik constroacutei todo o seu estudo da anamnese em torno da questatildeo
de saber se laquothe recollection thesis is best classified as empirical hypothe-
sis a priori truth or mere metaphorraquo Contudo foi Leibniz e natildeo
Kant quem primeiro interpretou a reminiscecircncia platoacutenica no sentido
de um a priori loacutegico Nos Nouveaux Essais refere-se expressamente
ao Meacutenon pretendendo ver no episoacutedio da aula de geometria a expressatildeo
1 Mor avc sik em Vlasto s G (1971) 69
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mais pur a da posiccedilatildeo platoacutenica a respeito da reminiscecircnc ia Preacute-
-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma seriam mero ornamento rigorosa-
mente exterior e alheio agrave posiccedilatildeo platoacutenica 2 Curiosamente Kan t
natildeo aproveita esta sugestatildeo de Leibniz limitando-se a ver na doutrina
da reminiscecircncia o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso 3
Conveacutem natildeo esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofiagrega deixava bas tante a desejar Na Ale manha depois de Leibniz
seraacute preciso esperar por Hegel para encontrarmos algueacutem que conheccedila
dire ctamen te e em pro fund idade os textos filosoacuteficos dos gregos Mai s
perto de noacutes seratildeo os neokantianos de Marburg designadamente
P Na tor p quem vai re to mar a sugest atildeo de Leibniz De entre os filoacute
sofos contemporacircneos que seguem esta linha de interpretaccedilatildeo apesar
de jaacute natildeo partilhar os pressupostos sistemaacuteticos daqueles autores
merece especial referecircncia N Hartmann 4
Se a interpretaccedilatildeo demasiado literal nos parece insatisfatoacuteria
porque se limita a sol etrar determinadas frases de diaacutelogos platoacutenicos
retiradas do seu contexto originaacuterio sem conseguir dar um conteuacutedo
filosoacutefico minimamente plausiacutevel agrave reminiscecircncia a sugestatildeo de Leibniz
po r outro lado ao reduz ir a reminiscecircncia a um saber a pr ior i natildeo soacute
diminui o possiacutevel alcance da reminiscecircncia como dificilmente se har
moniza com o seu caraacutecte r metafoacuterico Esta como outr as tentati vas
de dar um conteuacutedo filosoacutefico positivo agrave reminiscecircncia peca por excesso
Diz mais e sob ret udo diz o que natildeo estaacute no texto Em bo ra o texto
platoacutenico como qualquer texto com um miacutenimo de qualidade seja
dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma
pluralidade sempre renovada de interpretaccedilotildees haacute no entanto limites
que a letra do texto impotildee e nos impedem de aceitar qualquer inter
pretaccedilatildeo e de as colocar ao mesmo niacutevel Limites que tem que se
respei tar sob pena de o texto se to rn ar mer o pret exto Agrave primeira
vista parece que estamos condenados a ter que optar por uma inter-
pretaccedilatildeo li tera lis ta que nos apresenta a remin iscecircnc ia como uma doutrinafilosoficamente ambiacutegua e de interesse meramente arqueoloacutegico ou por
uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica que actualiza a ideia de reminiscecircncia mas
nos faz pagar o preccedilo de uma reduccedilatildeo efectiva do alcance da metaacutefora
2 Leibni z G W Nouveaux Essais in Gerhard t Die Philosophischen Schrif-
ten V 74 ss 45 1 s3
Cf Ka nt I laquoWelc hes sind die For tsc hr itt e die die Met aph ysi k seit Leibn izund Wolf in Deu tsc hla nd gem ach t ha t in Weisch edel W (Hr sg ) WE R KE I I I
Schriften zur Metaphysik und Logik (Wiesbad Insel 1958)
laquo Hart man n N Kleine Schriften II (Berlin 1957) 48-85
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da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe
ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez
a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que
procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto
naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s
do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo
do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da
obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma
minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de
sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta
numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva
do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa
leitura
02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma
atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se
como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu
autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos
interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura
peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for
a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente
mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con
traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de
forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por
isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia
Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica
tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)
deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o
Soacutecrates histoacuterico
Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico
entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel
da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade
os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto
da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel
passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se
Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no
diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na
nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees
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preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que
desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti
cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar
o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo
da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias
retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora
Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se
pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da
reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )
quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo
Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase
sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de
nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona
das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta
Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge
como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo
que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas
Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica
de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o
caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que
embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a
linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico
Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar
de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a
linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de
explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do
parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo
soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo
ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos
Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode
mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo
totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute
foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que
essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita
mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a
metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e
usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-
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plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e
corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou
interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto
de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado
natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co
nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma
tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real
tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do
confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem
a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon
O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas
explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa
leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel
no presente contexto
1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c
O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri
meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto
com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como
laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi
nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia
No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido
de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus
olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute
porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos
julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci
samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a
experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar
a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir
que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber
que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar
uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os
intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem
a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do
seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco
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mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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BIBLOS 516
preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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509 SOBRE A REMINISCEcircNCIA EM PLATAtildeO
os limites de uma interpretaccedilatildeo demasiado literal e imediata desses
textos Segundo a interpretaccedilatildeo tradicional da posiccedilatildeo platoacutenica
a alma teria contemplado numa existecircncia anterior antes de ter encar
nado em determinado corpo as ideias de todas as coisas ideias que ela
vai relembrar recordar quando devidamente estimulada Uma pri
meira dificuldade desta concepccedilatildeo tradicional da reminiscecircncia eacute queela absolutiza determinadas expressotildees metafoacutericas do Fedro e esquece
que no Meacutenon natildeo se fala de uma reminiscecircncia ( ν microνησις ) das ideias
O miacutenimo que se pode dizer eacute que o texto eacute omisso neste ponto Agrave pri
meira vista Soacutecrates parece apoiar-se principalmente nas concepccedilotildees
oacuterfico-pitagoacutericas da reincarnaccedilatildeo e da metempsicose Out ra dificul
dade seacuteria da interpretaccedilatildeo tradicional demasiado literal reside no
seguinte facto eacute que eacute o proacuteprio texto platoacutenico que se distancia da
literalidade da metaacutefora da anamnese (Meacutenon 86b6 ss Feacutedon 72e4114d ss Fedro 257a) Esta dificuldade remete-nos para questotildees her
menecircuticas centrais como a da recta interpretaccedilatildeo da linguagem meta
foacuterica em geral do uso e sentido da metaacutefora no discurso filosoacutefico e
neste caso de saber como interpretar a metaacutefora e o mito nos diaacutelogos
platoacutenicos Natildeo eacute aqui o lugar de aprofundar e explicitar esta pro
blemaacutetica Quando dissermos mais adiante algo sobre alguns pres
supostos da nossa leitura de Platatildeo retomaremos este assunto dentro
dos limites impostos pela natureza deste apontamento
Apesar das dificuldades apontadas a interpretaccedilatildeo literal dominou
a cena natildeo soacute no campo da filo logia como no da filosofia Soacute na filo
sofia moderna eacute que surge a ideia de interpretar a reminiscecircncia como
expressatildeo de um saber a priori Interpretada racionalmente a remi
niscecircncia natildeo poderia querer dizer outra coisa que natildeo fosse o facto de
que na alma tinham que existir conceitos que natildeo poderiam ter a sua
origem na experiecircncia mas que jaacute tinham que existir como preacute-dados
antes de toda e qualquer experiecircncia Este tipo de interpretaccedilatildeo foi
muito divulgado pelos neokantianos tornando-se desde entatildeo moeda
corrente em anaacutelises filosoacuteficas do texto platoacutenico Por exemplo
Moravscik constroacutei todo o seu estudo da anamnese em torno da questatildeo
de saber se laquothe recollection thesis is best classified as empirical hypothe-
sis a priori truth or mere metaphorraquo Contudo foi Leibniz e natildeo
Kant quem primeiro interpretou a reminiscecircncia platoacutenica no sentido
de um a priori loacutegico Nos Nouveaux Essais refere-se expressamente
ao Meacutenon pretendendo ver no episoacutedio da aula de geometria a expressatildeo
1 Mor avc sik em Vlasto s G (1971) 69
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BIBLOS 510
mais pur a da posiccedilatildeo platoacutenica a respeito da reminiscecircnc ia Preacute-
-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma seriam mero ornamento rigorosa-
mente exterior e alheio agrave posiccedilatildeo platoacutenica 2 Curiosamente Kan t
natildeo aproveita esta sugestatildeo de Leibniz limitando-se a ver na doutrina
da reminiscecircncia o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso 3
Conveacutem natildeo esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofiagrega deixava bas tante a desejar Na Ale manha depois de Leibniz
seraacute preciso esperar por Hegel para encontrarmos algueacutem que conheccedila
dire ctamen te e em pro fund idade os textos filosoacuteficos dos gregos Mai s
perto de noacutes seratildeo os neokantianos de Marburg designadamente
P Na tor p quem vai re to mar a sugest atildeo de Leibniz De entre os filoacute
sofos contemporacircneos que seguem esta linha de interpretaccedilatildeo apesar
de jaacute natildeo partilhar os pressupostos sistemaacuteticos daqueles autores
merece especial referecircncia N Hartmann 4
Se a interpretaccedilatildeo demasiado literal nos parece insatisfatoacuteria
porque se limita a sol etrar determinadas frases de diaacutelogos platoacutenicos
retiradas do seu contexto originaacuterio sem conseguir dar um conteuacutedo
filosoacutefico minimamente plausiacutevel agrave reminiscecircncia a sugestatildeo de Leibniz
po r outro lado ao reduz ir a reminiscecircncia a um saber a pr ior i natildeo soacute
diminui o possiacutevel alcance da reminiscecircncia como dificilmente se har
moniza com o seu caraacutecte r metafoacuterico Esta como outr as tentati vas
de dar um conteuacutedo filosoacutefico positivo agrave reminiscecircncia peca por excesso
Diz mais e sob ret udo diz o que natildeo estaacute no texto Em bo ra o texto
platoacutenico como qualquer texto com um miacutenimo de qualidade seja
dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma
pluralidade sempre renovada de interpretaccedilotildees haacute no entanto limites
que a letra do texto impotildee e nos impedem de aceitar qualquer inter
pretaccedilatildeo e de as colocar ao mesmo niacutevel Limites que tem que se
respei tar sob pena de o texto se to rn ar mer o pret exto Agrave primeira
vista parece que estamos condenados a ter que optar por uma inter-
pretaccedilatildeo li tera lis ta que nos apresenta a remin iscecircnc ia como uma doutrinafilosoficamente ambiacutegua e de interesse meramente arqueoloacutegico ou por
uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica que actualiza a ideia de reminiscecircncia mas
nos faz pagar o preccedilo de uma reduccedilatildeo efectiva do alcance da metaacutefora
2 Leibni z G W Nouveaux Essais in Gerhard t Die Philosophischen Schrif-
ten V 74 ss 45 1 s3
Cf Ka nt I laquoWelc hes sind die For tsc hr itt e die die Met aph ysi k seit Leibn izund Wolf in Deu tsc hla nd gem ach t ha t in Weisch edel W (Hr sg ) WE R KE I I I
Schriften zur Metaphysik und Logik (Wiesbad Insel 1958)
laquo Hart man n N Kleine Schriften II (Berlin 1957) 48-85
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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe
ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez
a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que
procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto
naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s
do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo
do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da
obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma
minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de
sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta
numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva
do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa
leitura
02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma
atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se
como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu
autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos
interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura
peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for
a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente
mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con
traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de
forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por
isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia
Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica
tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)
deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o
Soacutecrates histoacuterico
Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico
entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel
da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade
os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto
da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel
passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se
Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no
diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na
nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees
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preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que
desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti
cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar
o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo
da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias
retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora
Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se
pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da
reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )
quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo
Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase
sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de
nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona
das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta
Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge
como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo
que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas
Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica
de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o
caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que
embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a
linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico
Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar
de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a
linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de
explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do
parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo
soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo
ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos
Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode
mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo
totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute
foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que
essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita
mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a
metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e
usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-
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plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e
corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou
interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto
de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado
natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co
nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma
tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real
tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do
confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem
a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon
O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas
explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa
leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel
no presente contexto
1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c
O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri
meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto
com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como
laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi
nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia
No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido
de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus
olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute
porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos
julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci
samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a
experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar
a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir
que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber
que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar
uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os
intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem
a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do
seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco
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mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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BIBLOS 524
o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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BIBLOS 510
mais pur a da posiccedilatildeo platoacutenica a respeito da reminiscecircnc ia Preacute-
-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma seriam mero ornamento rigorosa-
mente exterior e alheio agrave posiccedilatildeo platoacutenica 2 Curiosamente Kan t
natildeo aproveita esta sugestatildeo de Leibniz limitando-se a ver na doutrina
da reminiscecircncia o subproduto de certo tipo de fanatismo religioso 3
Conveacutem natildeo esquecer que o conhecimento que Kant tinha da filosofiagrega deixava bas tante a desejar Na Ale manha depois de Leibniz
seraacute preciso esperar por Hegel para encontrarmos algueacutem que conheccedila
dire ctamen te e em pro fund idade os textos filosoacuteficos dos gregos Mai s
perto de noacutes seratildeo os neokantianos de Marburg designadamente
P Na tor p quem vai re to mar a sugest atildeo de Leibniz De entre os filoacute
sofos contemporacircneos que seguem esta linha de interpretaccedilatildeo apesar
de jaacute natildeo partilhar os pressupostos sistemaacuteticos daqueles autores
merece especial referecircncia N Hartmann 4
Se a interpretaccedilatildeo demasiado literal nos parece insatisfatoacuteria
porque se limita a sol etrar determinadas frases de diaacutelogos platoacutenicos
retiradas do seu contexto originaacuterio sem conseguir dar um conteuacutedo
filosoacutefico minimamente plausiacutevel agrave reminiscecircncia a sugestatildeo de Leibniz
po r outro lado ao reduz ir a reminiscecircncia a um saber a pr ior i natildeo soacute
diminui o possiacutevel alcance da reminiscecircncia como dificilmente se har
moniza com o seu caraacutecte r metafoacuterico Esta como outr as tentati vas
de dar um conteuacutedo filosoacutefico positivo agrave reminiscecircncia peca por excesso
Diz mais e sob ret udo diz o que natildeo estaacute no texto Em bo ra o texto
platoacutenico como qualquer texto com um miacutenimo de qualidade seja
dotado de uma parcela de ambiguidade que possibilita e justifica uma
pluralidade sempre renovada de interpretaccedilotildees haacute no entanto limites
que a letra do texto impotildee e nos impedem de aceitar qualquer inter
pretaccedilatildeo e de as colocar ao mesmo niacutevel Limites que tem que se
respei tar sob pena de o texto se to rn ar mer o pret exto Agrave primeira
vista parece que estamos condenados a ter que optar por uma inter-
pretaccedilatildeo li tera lis ta que nos apresenta a remin iscecircnc ia como uma doutrinafilosoficamente ambiacutegua e de interesse meramente arqueoloacutegico ou por
uma interpretaccedilatildeo filosoacutefica que actualiza a ideia de reminiscecircncia mas
nos faz pagar o preccedilo de uma reduccedilatildeo efectiva do alcance da metaacutefora
2 Leibni z G W Nouveaux Essais in Gerhard t Die Philosophischen Schrif-
ten V 74 ss 45 1 s3
Cf Ka nt I laquoWelc hes sind die For tsc hr itt e die die Met aph ysi k seit Leibn izund Wolf in Deu tsc hla nd gem ach t ha t in Weisch edel W (Hr sg ) WE R KE I I I
Schriften zur Metaphysik und Logik (Wiesbad Insel 1958)
laquo Hart man n N Kleine Schriften II (Berlin 1957) 48-85
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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe
ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez
a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que
procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto
naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s
do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo
do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da
obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma
minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de
sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta
numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva
do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa
leitura
02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma
atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se
como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu
autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos
interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura
peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for
a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente
mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con
traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de
forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por
isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia
Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica
tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)
deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o
Soacutecrates histoacuterico
Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico
entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel
da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade
os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto
da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel
passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se
Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no
diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na
nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees
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BIBLOS 512
preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que
desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti
cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar
o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo
da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias
retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora
Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se
pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da
reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )
quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo
Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase
sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de
nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona
das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta
Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge
como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo
que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas
Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica
de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o
caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que
embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a
linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico
Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar
de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a
linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de
explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do
parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo
soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo
ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos
Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode
mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo
totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute
foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que
essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita
mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a
metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e
usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-
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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e
corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou
interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto
de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado
natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co
nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma
tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real
tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do
confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem
a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon
O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas
explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa
leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel
no presente contexto
1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c
O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri
meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto
com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como
laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi
nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia
No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido
de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus
olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute
porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos
julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci
samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a
experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar
a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir
que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber
que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar
uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os
intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem
a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do
seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco
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BIBLOS 514
mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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BIBLOS 516
preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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511 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
da reminiscecircncia impedindo-nos simultaneamente de interpretar coe
ren temente o texto pla toacuten ico dos diaacutelogos na sua globalid ade Talvez
a saiacuteda para este impasse esteja precisamente numa interpretaccedilatildeo que
procure um preenchimento posi tivo da intenccedilatildeo platoacutenica natildeo tanto
naquilo que eacute dito explic itamente como naquilo que se nega Mai s
do que uma tese positiva a metaacutefora da reminiscecircncia seria indicadorque permitiria uma orientaccedilatildeo numa via de diferenciaccedilatildeo e determinaccedilatildeo
do saber Isto estaacute int imamen te ligado a caracteriacutesticas peculiares da
obra platoacutenica Sem termos a pretensatildeo de abo rda r de uma forma
minimamente adequada esta problemaacutetica natildeo queremos deixar de
sublinhar alguns traccedilos que nos parece deverem ser tidos em conta
numa leitura do texto platoacutenico Mais do que a abo rdag em exaustiva
do tema interessa-nos a clarificaccedilatildeo de alguns pressupostos da nossa
leitura
02 O primeiro pon to a ter em con ta eacute que Platatildeo assume uma
atitude criacutetica e distante perante os seus proacutepr ios textos Trat a-se
como eacute sabido de diaacutelogos na sua esmagadora maioria em que o seu
autor natildeo figura nem se identifica imediatamente com qualquer dos
interlocutor es Deixemos agora de lado a ques tatildeo da estru tura
peculiar do diaacutelogo platoacutenico e sua funccedilatildeo especiacutefica Seja qual for
a posiccedilatildeo que tomarmos nesse diferendo uma coisa eacute certa e frequente
mente esquecida os diaacutelogos platoacutenicos natildeo nos apresentam mdash ao con
traacute rio do que acontece co m outr os textos da tr adi ccedilatildeo filosoacutefica mdash de
forma imediat a e decifrada dou tr ina s filosoacutef icas do seu au to r Por
isso noacutes evitaremos falar de uma teoria platoacutenica da reminiscecircncia
Na mesma linha quando fa lamos de Soacutecrates sem qualquer qualifica
tivo referimo-nos ao Soacutecrates platoacutenico (personagem dos diaacutelogos)
deixando em aberto a espinhosa questatildeo das relaccedilotildees entre este e o
Soacutecrates histoacuterico
Deixando de lado os problemas postos pela forma literaacuteria da obra platoacutenica queremos sublinhar a tensatildeo existen te no diaacutelogo platoacutenico
entre a ob ra escrita e a ficccedilatildeo literaacuter ia nela esboccedilada Eacute que ao niacutevel
da ficccedilatildeo literaacuteria pelo menos em certa medida deixam de ter validade
os limites da palavra escrita Ma s mais import an te ain da que o facto
da ora lidade eacute a forma co mo eacute configu rada esta ora lidade Nest e niacutevel
passam-se muitas coisas pergunta-se responde-se age-se reage-se
Seria interessante abordar aqui o papel do mito e da ironia no
diaacutelogo platoacutenico ateacute porque ambos estatildeo presentes nos textos que tra-tam da reminiscecircncia Co nt ud o isso levar-nos-ia dem asi ado longe na
nossa anaacutelise Ma s natildeo gostar iacuteamos de termi nar estas consideraccedilotildees
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BIBLOS 512
preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que
desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti
cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar
o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo
da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias
retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora
Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se
pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da
reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )
quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo
Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase
sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de
nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona
das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta
Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge
como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo
que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas
Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica
de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o
caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que
embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a
linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico
Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar
de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a
linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de
explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do
parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo
soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo
ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos
Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode
mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo
totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute
foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que
essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita
mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a
metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e
usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-
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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e
corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou
interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto
de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado
natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co
nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma
tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real
tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do
confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem
a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon
O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas
explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa
leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel
no presente contexto
1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c
O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri
meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto
com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como
laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi
nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia
No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido
de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus
olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute
porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos
julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci
samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a
experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar
a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir
que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber
que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar
uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os
intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem
a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do
seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco
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BIBLOS 514
mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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BIBLOS 518
do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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BIBLOS 524
o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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BIBLOS 512
preacutevias sem dizermos uma palavra sobre outra fi gura de esti lo que
desempenha papel importante na obra platoacutenica e nos interessa parti
cula rmen te a metaacutefora Sem pretender de qua lqu er forma minimizar
o interesse e a importacircncia dos estudos sobre a metaacutefora feitos no campo
da retoacuterica e da poeacutetica natildeo cremos que o simples recurso a categorias
retoacutericas eou poetoloacutegicas baste para uma interpretaccedilatildeo correcta douso que Platatildeo faz da metaacutefora
Num texto filosoacutefico as metaacutefora s su rgem precisamente quando se
pretende representar ou expor conteuacutedos e resultados importantes da
reflexatildeo A metaacutefo ra eacute ta nt o mai s difiacutecil de dissolver (de traduzir )
quanto mais originaacuteria e primacial for a ideia ou princiacutepio em questatildeo
Neste caso o resultado das tentativas de eliminar a metaacutefora eacute quase
sempre outra metaacutefora A histoacuteria da filosofia relata-nos gran de
nuacutemero de disputas mais ou menos ingloacuterias provocadas ou ocasiona
das por metaacuteforas cujo caraacutecter metafoacuterico natildeo foi tido na devida conta
Pla tatildeo usa a metaacute fora em pon tos fulcrais dos seus diaacutelogos Ela surge
como instrumento privilegiado quando se trata de apontar para algo
que natildeo tem (ou se julga natildeo ter) a estrutura de um estado de coisas
Aleacutem disso a metaacutefora revela de forma eminente uma caracteriacutestica
de qua lquer expressatildeo linguiacutestica Na metaacute fora torn a-se patent e o
caraacutecter instr umenta l da forma linguiacutestica Natilde o pod emo s esquecer que
embora a linguagem molde a nossa experiecircncia esta transcende a
linguagem O reconhecimento de semelhanccedilas ou diferenccedilas nosobjectos da nossa experiecircncia natildeo eacute um fenoacutemeno puramente linguiacutestico
Em suma a linguagem natildeo pode ser o limite da nossa experiecircncia apesar
de ser inevitaacutevel que ela molde a nossa experiecircncia E eacute claro que a
linguagem natilde o eacute o limite do nosso mun do N atildeo eacute aqui o lugar de
explicitar e muito menos justificar estas afirmaccedilotildees Ape sar de tu do
parece-nos que podem traduzir razoavelmente bem uma atitude filo
soacutefica fundamental de Platatildeo que se afasta decididamente de um realismo
ingeacutenuo de tipo fundamentalista sem cair por outro lado no linguisti-cismo apesar de saber brincar e jogar com a palavra como poucos
Atitude que ain da hoje eacute (pod e ser) exemplar Aleacutem disso natildeo pode
mos esquecer que as funccedilotildees apofacircntica e deictica da linguagem natildeo satildeo
totalmente intersubstituiacuteveis Se um aut or usa delib eradamente metaacute
foras ao serviccedilo da funccedilatildeo deictica da linguagem isso quer dizer que
essas metaacuteforas natildeo exprimem soacute conteuacutedos que poderiam perfeita
mente ser represen tados e comu nica dos de out ro mo do Daiacute que a
metaacutefora nem sempre (ou quase nunca) seja mero revestimento ou ornamen to nos diaacutelogos de Pl at atildeo Neles se mos tra com o eacute que se pod e
usar a metaacutefora sem se ser viacutetima dela O uso da metaacutefora aiacute exem-
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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e
corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou
interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto
de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado
natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co
nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma
tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real
tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do
confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem
a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon
O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas
explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa
leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel
no presente contexto
1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c
O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri
meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto
com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como
laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi
nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia
No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido
de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus
olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute
porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos
julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci
samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a
experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar
a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir
que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber
que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar
uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os
intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem
a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do
seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco
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mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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BIBLOS 516
preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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BIBLOS 518
do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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513 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
plificado pode considerar-se paradigmaacutetico de um modo adequado e
corr ecto de lidar com formas linguiacutesticas Quem decifra comenta ou
interpreta uma expressatildeo linguiacutestica daacute a entender pelo proacuteprio facto
de o fazer mdash quer queira quer natildeo mdash que para ele o sentido procurado
natildeo estaacute jaacute materi alizad o na pur a letra do texto O Soacutecrates pla toacuteni co
nunca crecirc estar na posse de conhecimentosaber quando profere earticula dete rmin adas foacutermulas linguiacutesticas Eacute daqui que part e uma
tensatildeo permanente entre saber aparente (pretenso saber) e saber real
tensatildeo que percorr e tod a a obra pla toacuteni ca Eacute ela que estaacute na base do
confronto com a sofiacutestica e aparece tambeacutem nos trechos que introduzem
a reminiscecircncia designadamente no Meacutenon
O que fica sugerido nestas palavras introdutoacuterias visa apenas
explicitar um pouco algumas das pressuposiccedilotildees subjacentes agrave nossa
leitura de Pl at atildeo Explicitaacute-las com ple tam ent e seria inuacutetil e inviaacutevel
no presente contexto
1 A reminiscecircncia em Meacutenon 80a-86c
O Meacutenon comeccedila pela questatildeo da ensinabilidade da virtude A pri
meira parte do diaacutelogo (70a-79e) apresenta muitos pontos de contacto
com uma seacuterie de diaacutelogos de Platatildeo muitas vezes classificados como
laquoaporeacuteticosraquo A este gru po pertencem o Caacutermides Laques Ecircutifron Protaacutegoras entre outr os Nestes diaacutelogos Soacutecrates tema tiza determi
nados conceitos normativos como a coragem a justiccedila a prudecircncia
No iniacutecio do diaacutelogo o seu interlocutor estaacute sempre seguro e convencido
de que eacute capaz de explicitar o conteuacuted o de tais conceito s Aos seus
olhos trata-se de uma tarefa sem qualquer espeacutecie de dificuldade ateacute
porque se trata de co isas de que se es taacute sempre a falar e que todos
julgam saber A arte socraacutetica de conduccedilatildeo do diaacutelogo consiste preci
samente em levar o seu interlocutor atraveacutes de uma estrateacutegia de discussatildeo dirigida de que ele normalmente natildeo se apercebe a fazer a
experiecircncia de que afinal com grande espanto seu natildeo eacute capaz de dar
a explicaccedilatildeo exigida Assim por mais que lhe custe tem que adm it ir
que natildeo sabe o que significam rea lmente aqueles conceito s Natildeo-saber
que se traduz normalmente nestes casos na incapacidade de apresentar
uma definiccedilatildeo dos referidos conceitos que possa ser aceite por todos os
intervenientes no diaacutelogo Daiacute que muitos autor es chamem tamb eacutem
a estes diaacutelogos diaacutelogos de definiccedilatildeo Eacute en tatildeo que o int erlocu toratinge o niacutevel de consciecircncia problematizante de Soacutecrates o saber do
seu proacuteprio natildeo-sabe r N atilde o se tr at a neste caso de um natilde o saber oco
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BIBLOS 514
mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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BIBLOS 516
preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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BIBLOS 514
mas sim da consciecircncia de que o pretenso saber de que se julgava dispor
natildeo aguentou uma prova seacuteria Natilde o podemos esquecer que a decla
raccedilatildeo de Soacutecrates do seu natildeo-saber eacute eminentemente iroacutenica Eacute iroacutenica
na medida em que natildeo se harmoniza facilmente com a superioridade
que ele manifesta nas mais diversas situaccedilotildees de diaacutelogo frente a dife
rentes inter locutores Por out ro lado o sentido literal da afirmaccedilatildeomanteacutem-se Este natildeo-saber eacute sempre fruto de uma experiecircncia expe
riecircncia a que ele quer conduzir os seus interlocutores e que tem que ser
feita por cada um Pode-se evidentemente falar sobre ela dizer isto
ou aquilo jaacute que ela natildeo tem nada de indiziacutevel Contudo eacute uma expe
riecircncia que o interlocutor tem que fazer ele mesmo jaacute que se trata de
uma experiecircncia acerca de si mesmo e do grau de certeza do seu (pre
tenso) saber Neste sent ido poder iacuteamos dizer que o verdadeiro tema
destes diaacutelogos eacute exactamente esta tensatildeo entre aquilo que se crecirc sabere aquilo que se sabe realmente a capacidade que o interlocutor tem de
aguentar o jogo de perguntas e respostas sobre determinado tema
No diaacutelogo que nos ocupa agora Meacute non comeccedila por perguntar se
a virtude ( ρετ ) se pode adquir ir mediante o ensino ou atraveacutes do exer
ciacutecio pondo ainda a hipoacutetese de ela ser um dom da natureza ou ser
explicaacutevel de ou tro modo Soacutecrates vai-lhe most rar logo no iniacutecio da
conversa que ele nem sequer sabe o que eacute realmente a virtude Meacutenon
eacute capaz de mostrar no decurso do diaacutelogo que sabe aplicar com pro priedade o concei to de virtude que o sabe usar correctamente
Ao mesmo tempo faz uma experiecircncia importante esta habilidade
que ele efectivamente possui natildeo o torna soacute por si capaz de dar uma
explicaccedilatildeo ou uma definiccedilatildeo correcta deste conceito A situaccedilatildeo de
facto ainda eacute mais grave porque Meacutenon comeccedila por nem sequer per
ceber o sentido da questatildeo da definiccedilatildeo Daiacute que Soacutecrates tenha que
lhe chamar a atenccedilatildeo para as condiccedilotildees formais que uma definiccedilatildeo
correcta tem que satisfazer
Meacutenon tem que admitir que afinal natildeo sabe o que eacute a virtude
laquoEm boa verdade estou entorpecido corporal e espiritualmente e natildeo
sei que responder-teraquo (80a7) ss) Experiecircncia que contrasta com a
convicccedilatildeo inicial de Meacutenon que lhe vinha entre outras coisas do facto
de como ele proacuteprio diz ter jaacute discursado inuacutemeras vezes sobre a virtude
diante de mui ta gente e com sucesso Mas agora natildeo sabe dizer o que
ela eacute (80b) Meacutenon interpreta a apor ia em que se encont ra em sentido
puramente negativo como uma derrota A proacutepria comparaccedilatildeo que ele
faz entre Soacutecrates e o peixe torpedo (Torpedo marmorata) que eacute capaz de
imobilizar momentaneamente a matildeo de quem o agarrar eacute sintomaacutetica
Soacutecrates rejeita a comparaccedilatildeo dizendo que tambeacutem ele ignora o que
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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515 SOBRE A RE MI NI SC EcircN CI A EM P LA TAtilde O
seja a virtude Apesar disso propotildee a Meacutenon que tentem encont rar
em conjunto uma saiacuteda para a aporia comum sobre a essecircncia da
virtude (80dl-4) Mas como Meacutenon tinha jaacute interpr etado como enfei-
ticcedilamento aquilo que para Soacutecrates era libertaccedilatildeo de um saber aparente
em vez de aceitar a proposta que lhe eacute feita resolve contra-atacar com
um a objecccedilatildeo agrave boa maneira do seu mestre Goacutergias (80d5 ss) Trata-sedo ceacutelebre argumento eriacutestico tambeacutem conhecido por argumento
preguiccediloso (αργός λόγος) Eacute claro que eacute Soacutecrates quem daacute agrave objecccedilatildeo
de Meacutenon a sua forma paradoxal e eacute dele tambeacutem a expressatildeo laquoargu
mento eriacutesticoraquo Natildeo nos interessa aqui analisar as diferenccedilas entre
as duas formulaccedilotildees nem discutir ateacute que ponto se trata ou natildeo de um
verdadeiro par adoxo O certo eacute que no diaacutelogo Meacutenon aceita tambeacutem
a formulaccedilatildeo de Soacutecrates quando observa logo a seguir laquoE natildeo te
parece um belo argumento este oacute Soacutecratesraquo (81a) Na formulaccedilatildeo de
Soacutecrates o argumento diz que laquoeacute impossiacutevel a um homem investigar
quer aqui lo que sabe quer aqui lo que natildeo sabe Pois aqui lo que sabe
natildeo precisa de o investigar porque jaacute o sabe e o que natildeo sabe tambeacutem
natildeo porque nesse caso nem sequer sabe o que deve procurarraquo (80e2-5)
Uma argumentaccedilatildeo semelhante surge no Eutidemo quando se discute
a questatildeo de saber se o homem aprende aquilo que sabe ou aquilo que
natildeo sabe Qualquer das alternativas conduz a dificuldades que Platatildeo
discute pormenorizadamente 5 Para Platatildeo a saiacuteda destas dificuldades
natildeo estaacute na negaccedilatildeo da possibilidade de aprender e de uma paideiaPelo contraacuterio para ele a possibilidade de aprender eacute um dado adqui
rido Eacute um facto incontestaacutevel Out ra coisa completamente dife
rente eacute a explicaccedilatildeo desse facto A tese da reminiscecircncia que Soacutecrates
introduz nesta fase do diaacutelogo com Meacutenon surge como uma resposta
ao argumento eriacutestico e uma tentativa de encontrar uma saiacuteda para
o impasse em que o diaacutelogo tinha caiacutedo De acordo com a formulaccedilatildeo
de Soacutecrates laquoinvestigar e aprender natildeo satildeo mais que reminiscecircnciaraquo
τ iacute ν 81d49830855) Assim a reminiscecircncia permitir-nos-ia ver o aprender como recordaccedilatildeo
de algo que jaacute se sabia mas que entretanto por qualquer motivo se
tinha esquecido Investigar e aprender satildeo assim explicados em ter
mos de um processo de react ivaccedilatildeo de um saber latente Esta (hipoacute)tese
eacute introduzida por Soacutecrates com a ajuda de concepccedilotildees de origem reli
giosa e apelando para autoridades sacerdotais (laquohomens e mulheres
conhecedores das coisas divinasraquo 81a) Trata-se da imorta lidade
Cf Eutidemo 277d ss
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BIBLOS 516
preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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preacute-existecircncia e reincarnaccedilatildeo da alma a que Soacutecrates acrescenta a
pressuposiccedilatildeo de um nexo universal de todas as coisas Esta (hipoacute)tese
eacute exemplificada em seguida atraveacutes de um experimento didaacutectico
a ceacutelebre aula de geometria que Soacutecrates daacute ao escravo de Meacutenon
O apelo a autoridades religiosas natildeo deixa de ser estranho
A pseudo-justificaccedilatildeo da reminiscecircncia natildeo tem nada que ver com as just if icaccedilotildees e razotildees que Soacutec ra tes exige sempre dos seus interlocutores
e de si proacute pri o Tra ta- se de coisas que teria ouvi do a sacerdote s e
poetas N atildeo nos interessa aqui di scut ir a or igem hi stoacuteri ca da concepccedilatildeo
de reinca rnaccedilatildeo a que alud e Soacutecrates neste pass o O mes mo se diga
das influecircncias eventua lmente sofridas por Platatildeo nesta mateacuteria Co mo
veremos a reincarnaccedilatildeo eacute algo secundaacuterio relativamente agrave intenccedilatildeo
filosoacutefica da reminiscecircncia Um dos erros mais frequentes eacute assimi lar
e confu ndir estes dois concei tos Me sm o ace itando e levando a seacuterioa linguagem metafoacuterica e o enquadramento miacutetico-religioso da remi-
niscecircncia natildeo podemos perder de vista o tema principal do texto e
entrar em conjecturas mais ou menos justificadas sobre a origem
histoacuterica destas concepccedilotildees Aliaacutes com o o proacutep rio context o most ra
o que importa aqui eacute a funccedilatildeo da (hipoacute)tese ou suposiccedilatildeo e natildeo a sua
origem muito menos a sua origem histoacute rica Soacutecrates natildeo assume
total mente o con teuacute do da tese da reminiscecircncia O proacute prio recurso
ao mito eacute jaacute sintoma de um certo embaraccedilo especulativo de uma certaincapacidade (seja por que motivo for) de dizer algo com clareza e rigor
Daiacute que Soacutecrates se distancie do conte uacutedo da forma mitoloacutegica Assim
fala de algo que ouviu dizer (81a5) e mais adiante dirigindo-se a Meacutenon
imediatamente antes de iniciar o relato do que ouvira observa laquomas vecirc
laacute se te parece que dizem a verdaderaquo (81b2-3) Poreacutem a afi rmaccedilatildeo
mais clara de Soacutecrates que nos leva a pensar que ele natildeo assume de
facto o conteuacutedo da representaccedilatildeo mitoloacutegica que envolve a remi
niscecircncia surge quase no final do trecho que estamos a interpretar
laquoHaacute alguns pontos na minha argumentaccedilatildeo que eu natildeo desejaria afirmar
categori camenteraquo (86b6-7) Eacute claro que se pod e con tes tar que esta
afirmaccedilatildeo eacute vaga e indeterminada natildeo se podendo mostrar concluden
temente que se refere a esta e natildeo agravequela frase a este e natildeo agravequele aspecto
da questatildeo Mas nem eacute preciso que o seja De mo me nt o sem ent rar
em mais pormenores basta-nos que ela natildeo seja incompatiacutevel com a
nossa leitura
Na terceira parte do diaacutelogo (86c-89d) retoma-se a questatildeo de
saber se a virtude eacute ensinaacutevel Se a reminiscecircncia fosse interp retada
literalmente entatildeo deveriacuteamos esperar que nesta fase Meacutenon se
recordasse da verdadeira definiccedilatildeo de virtude ou que algueacutem lha fizesse
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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5 17 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
relembrar Soacutecrates seria a pessoa ind icada em funccedilatildeo do apare nte
sucesso da aula de geome tria ao escravo de Meacute no n Or a natildeo eacute nada
disso que acontece Este facto emb ora se passe ao niacutevel da ficccedilatildeo
literaacuteria eacute imp orta nte Co ntud o nem sequer eacute tido em conta e muit o
menos explicado pela generalidade dos inteacuterpretes partidaacuterios de uma
interp retaccedilatildeo rigoros amente literal O que se passa a esse niacutevel eacute algodificilmente compreensiacutevel em termo s da letra do tex to em 81a-e A vira
gem que se daacute na terceira parte do diaacutelogo caracteriza-se pelo facto
de Soacutecrates recorrer ao uso de hipoacuteteses inspirando-se em determinado
meacutet odo matemaacute tico A intr oduccedilatildeo do meacutetodo hipoteacutetico vai permit ir
discutir a ques tatildeo inicial do diaacutelogo mdash se a vi rtude eacute ou n atildeo ensinaacute-
vel mdash co nt or na nd o a questatildeo da essecircncia e da definiccedilatildeo da virtude
O meacutetodo hipoteacutetico que Soacutecrates propotildee (86d ss) natildeo potildee em causa
a primazia metod oloacutegica da probl emaacutet ica da definiccedilatildeo Ela manteacutem-se Ma s
tamb eacutem natildeo se pod e esquecer que foi agrave volt a desta ques tatildeo que se gerou um
impasse no diaacutelogo O meacute to do hipo teacutet ico permite a
continuaccedilatildeo do diaacutelogo pondo entre parecircntesis a questatildeo da definiccedilatildeo
da virtude Se supuser mos que a virt ude eacute uma espeacutecie de saber en tatildeo
poderemos conc lui r que ela eacute ensinaacutevel (87c ss) Eacute claro que este
meacutetod o natildeo conduz agrave resposta agrave questatilde o da essecircncia da virtude Ela
fica em abe rto Ma s permite con tinua r o discur so racional e criacutetico
e evitar o silecircncio
No Meacutenon encontramos uma aplicaccedilatildeo e uma reflexatildeo sobre o
meacutetodo hipoteacutetico tendo por paradigma de aplicaccedilatildeo a geometria
Podemos mesmo dizer que a tese (doutrina) da reminiscecircncia tem no
Meacutenon o est atu to de um a hipoacutetese Ela constit ui o qu ad ro de referecircn
cia da aula de geometria Esta pequena demons tra ccedilatildeo pedagoacutegica
mdash por muitos considerada o modelo do chamado diaacutelogo didaacutectico mdash
deveria exemplificar um processo de aprendizagem susceptiacutevel de ser
int erpre tado em funccedilatildeo da (hipoacute)tese pres supos ta Soacutecrat es vai interrompendo a sua liccedilatildeo de modo a interpretar neste sentido as diferentes
etapas (82e l2-1 3 84a3-b 84d 85c-d) Trata-se de mos tra r a Meacute no n
ateacute que ponto a (hipoacute)tese da reminiscecircncia permite interpretaresclarecer
aqui lo que se estaacute a fazer Nes te sent ido parece que pod er iacuteamos dizer
que a reminiscecircncia soacute eacute tema de discussatildeo neste diaacutelogo na medida em
que tem co mo funccedilatildeo explicar algo Ela deve permiti r a Soacutecra tes
explicar justificar qua lqu er coisa e natildeo ser justif icada explicada Ela
natildeo eacute explanandum mas explanans (seja qual for o estatuto deste expla-nans) Eacute a (hipoacute)tese da reminiscecircncia que deve explicar o que se passa
no episoacutedio da aula de geometria e natilde o o inverso No con tex to da
nossa anaacutelise natildeo tem grande interesse entrar na discussatildeo de pormenor
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do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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BIBLOS 520
para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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BIBLOS 524
o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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525 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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BIBLOS 518
do famoso exemplo apresentado por Soacutecrates e que deu origem a extensa
lit erat ura especializada A letra do texto natildeo permi te uma soluccedilatildeo
faacutecil e matematicamente correcta do exerciacutecio que o escravo deveria
resolver sem recor rer a uma press uposiccedilatildeo suplemen tar O que impor ta
eacute que estas dificuldades natildeo afectam a nossa compreensatildeo da funccedilatildeo
da aula de geometri a no diaacute logo E vol tamos nova men te agrave fala deSoacutecrates em 86b por mais seacuterias que possam ser as reservas face agrave
reminiscecircncia enquanto explicante do investigar e do aprender o impe-
rativo de pro cur ar a verdade (des)conhecida manteacutem-se Seguindo-o
seremos com certeza laquomelhores mais corajosos e menos pregui
ccedilososraquo (86b8) do que se aceitarmos o imobilismo do argumento eriacutestico
(preguiccediloso)
O texto platoacutenico potildee em causa o proacuteprio pressuposto em que
assenta a argumentaccedilatildeo sofiacutestica que pretende contestar a possibilidadede apr end er e inves tigar um conceito uniacutevoco de saber Pa ra aleacutem
dessa forma uacutenica de saber restar ia apenas a igno racircnc ia total Este eacute
exactamente um dos temas centrais da sua poleacutemica com os sofistas
Platatildeo estaacute interessado em sublinhar a estrutura complexa do saber e
reflectir sobre a discrepacircncia entre as pretensotildees dos sofistas e aquilo
que eles faziam Eacute nessa perspectiva que se en quad ra a discussatildeo
dos pressupostos dos argu ment os aprese ntados A resposta platoacutenica
ao paradoxo sofiacutestico em torno da questatildeo ensinar-aprender consiste
em num niacutevel superior de reflexatildeo aplicar a argumentaccedilatildeo eriacutestica
agravequilo que os sofistas fazem (ou pretendem fazer) e mostrar as contra
diccedilotildees daiacute resul tantes Se de facto fosse impossiacutevel aprender e mu da r
de opiniatildeo (condiccedilatildeo essencial de progresso no processo de constituiccedilatildeo
do saber) entatildeo os sofistas para serem consequentes nem sequer
deveriam tentar fazer deste facto objecto de um processo argumentativo
Nesse caso ta l argumentaccedilatildeo natildeo ter ia qualquer ob jectivo Ass im os
sofistas refutam com aquilo que fazem aqui lo que dizem A respos ta
mais positiva ao argumento eriacutestico eacute dada pela (hipoacute)tese da remi-niscecircncia Soacutecrates estaacute de acord o com um dos pressupos tos da argu-
mentaccedilatildeo do natildeo-saber puro e simples da ignoracircncia total natildeo se pode
chegar ao saber natildeo se pode aprende r Aprend er progred ir no saber
pressupotildee a possibi lidade de jogar com algo que jaacute sabemos ainda que
este saber esteja apenas latente e o seu conteuacutedo possa eventualmente
ser pos to em causa nu ma fase posterior do processo cognit ivo Qu an do
Soacutecrates afirma que soacute podemos conhecer o que de certo modo jaacute
sabemos isto significa que o conceito de saber se tornou ambiacuteguoSe ele fosse entendido univocamente como acontece no argumento
eriacutestico entatildeo a afirmaccedilatildeo de Soacutecrates seria pura e simplesmente
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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BIBLOS 520
para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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absur da Mas se o conce ito de saber eacute ambiacuteguo isso talvez natilde o se
possa atribuir totalmente a uma deficiecircncia de linguagem que eu posso
(devo) eliminar Esta amb igu idade pode ser sinal de que qu and o falo
de saber estou a falar de uma estrutura complexa que exige que eu
distinga vaacuterios modos de saber e os natildeo confunda A reflexatildeo platoacutenica
sobre epistecircmecirc e doxa eacute justamente uma tentativa de distinguir e articular vaacuterios mod os de saber Den tro desta ordem de ideias pod eriacute amo s
dizer que a importacircncia histoacuterica da (hipoacute)tese da reminiscecircncia consiste
precisamente na afi rmaccedilatildeo da necess idade de di ferenciaccedilatildeo do conceito
de saber Eacute claro que tu do isto deixa ainda muito vago e inde termi
nado o possiacutevel con teuacutedo da metaacutefora da reminiscecircncia A interpr e
taccedilatildeo da reminiscecircncia em termos de memoacuteria para aleacutem de deslocar
a questatildeo do seu niacutevel proacuteprio mdash que eacute episteacutemico mdash para o da psico-
logia deixa intactos os dad os iniciais do puzzle Fica sempre por
explicar como eacute que eu aprendi pela primeira vez Isto pa ra natildeo falar
jaacute do problema da identidade da alma atraveacutes de vaacuterias encarnaccedilotildees
2 A reminiscecircncia no Feacutedon e Fedro
Antes de terminar este apontamento sobre a reminiscecircncia em
Platatildeo gostariacuteamos de fazer algumas consideraccedilotildees sobre os passos do
Feacutedon e Fedro que a menc ionam Com eccedila ndo pelo Feacutedon a primeira
coisa que salta agrave vista relativamente ao Meacutenon eacute o enquadramento
diferente em que surge a reminiscecircncia Vai aparecer num con texto
em que se pret ende justificar a imo rta lidade da alma Nes te caso surge
como explicaccedilatildeo do saber e aprender humanos que a ser aceitaacutevel
pressuporia por sua vez a preacute-exis tecircncia da alma Eacute introduzida no
diaacutelogo pela primeira vez atraveacutes de Cebes que se refere cautelosa
mente a algo que Soacutecrates teria dito muitas vezes laquosegundo esse
mesmo dito oacute Soacutecrates se eacute verdadeiro e que tu costumas repetirmuitas vezes de que o nosso conhecimento natildeo eacute mais do que remi
niscecircnciaraquo (Feacutedon 72e3-6 sub lin had o nosso) Siacutemias interveacutem dizendo
natildeo se lembrar de com o se pode prov ar esta afirmaccedilatildeo Cebes chama-
-lhe a atenccedilatildeo para o facto de uma seacuterie de questotildees bem postas fazer
com que o interpelado descubra por si mesmo a verdade acerca dessas
coisas Isto soacute seria possiacutevel (explicaacutevel) se essas pessoas possuiacutessem
em si mesmas esse saber A referecircncia agrave figura geomeacutet rica nes ta fala
de Cebes eacute interpretada por muitos autores como uma alusatildeo clara aoepisoacutedio da aula de geometria no Meacutenon (Feacutedon 73a-b) Mesmo que
admitamos que natildeo se trata de uma referecircncia expliacutecita o importante
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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para noacutes eacute o facto de se falar nos dois textos de uma forma especiacutefica
de saber a geometri a Aleacutem disso o facto de segun do a hipoacutetese
cronoloacutegica que seguimos o Feacutedon ser posterior ao Meacutenon e de a remi
niscecircncia ser apresentada por Cebes como algo jaacute conhecido permite-
-nos interpretar a referida fala de Siacutemias como uma alusatildeo ao trecho
do Meacutenon Vol tan do ao texto vemos que Siacutemias inst ado por Soacutecratesdiz natildeo ter dificuldade em aceitar a reminiscecircncia da forma como ela
foi int roduzi da por Cebes Mas pensand o bem ele natilde o sabe em que eacute
que consiste exactamente a reminiscecircncia e gostaria que fosse o proacuteprio
Soacutecrates a explicaacute-la (73b) Soacutecrat es comeccedila por lem brar que a proacutepria
noccedilatildeo de reminiscecircncia implica a de um conhecimento anterior e o pos
terio r esqu ecimento do que se vai relembrar Daacute vaacuterios exemplos de
como pode surgir a reminiscecircncia atraveacutes de uma associaccedilatildeo (liramanto
mdash pessoa amada Siacutemias mdash Cebes) fazendo com que Siacutemias confirme
tratar-se em tais casos de laquouma espeacutecie de reminiscecircnciaraquo sobretudo
quando se trata de coisas esquecidas por acccedilatildeo do tempo e da falta de
treino (73el -4) Ateacute aqui trata-se basi camente de sequecircncias de coisas
dissemelhantes Mas logo a seguir Soacutecrat es alte ra o paradigma destas
sequecircncias com a introduccedilatildeo de imagens (73e5) pintura de um cavalo
lira mdash ho me m retra to de Siacutemias mdash Cebes Implic itamen te Soacutecrates
parece supor que em cada um destes casos se conheceu primeiro aquilo
que estaacute na origem da imagem Depo is de conclui r que tanto a seme
lhanccedila como a dissemelhanccedila podem suscitar a reminiscecircncia Soacutecratesintroduz na discussatildeo a ideia de que a semelhanccedila por noacutes detectada
eacute sempre imperfeita (74a ss) Apresenta co mo exemplo a desfasagem
que haacute entre vaacuterias coisas iguais e a igua ldade em si mesma Este mo do
de falar da laquoigualdade em si mesmaraquo ou do laquoigual em si mesmoraquo (ideia
de igual(dade)) representa um artifiacutecio que permite a Soacutecrates evitar a
espinhosa tarefa de definir este conceito Ao con traacuteri o do que aconte
cia no Meacutenon aqui a referecircncia agrave problemaacutetica das ideias eacute bem expliacutecita
No Feacutedon a reminiscecircncia eacute apresentada como recordaccedilatildeo de ideiascapacidade de encon trar (redescobrir ) relaccedilotildees entre vaacuterias ideias Vol
ta ndo ao exemplo das coisas iguais mdash igual (dade) Soacutecrat es insiste na
imperfeiccedilatildeo da relaccedilatildeo de igualdade que noacutes podemos constatar entre
diversos objectos conc retos A manei ra co mo Soacutecra tes fala eacute muito
amb iacutegua e dificulta a com preens atildeo do texto Po r um lado fala na
diferenccedila entre a igualdade dos objectos iguais e a igua ldade em si
mesma diferenccedila que se poderia interpretar em termos da distinccedilatildeo
entre o niacutevel conceptualproposicional mdash em que a proposiccedilatildeo laquoA = Braquoeacute sempre verdade ira mdash e o mu nd o do fluxo con tiacutenuo Por ou tr o lado
usa igualdade quase diriacuteamos em sentido absoluto como se ela fosse
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algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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521 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
algo pa ra que um objecto concre to tende realmente Aqui parece usar
igualdade num sentido muito proacutexi mo do de ide ntidade Se for
usada no sentido restrito que tem nos exemplos anteriores entatildeo
leva-nos a paradoxos do tipo do que encontramos no argumento do
terceiro homem a um regresso infinito Dei xando agora de lado esta
problemaacutetica procuraremos seguir a argumentaccedilatildeo de Soacutecrates Parasermos capazes de reconhecer esta deficiecircncia eacute necessaacuterio que tenhamos
conhecido previamente a igualdade perfeita que nunca se encontra
nos objectos conc retos E eacute isto que noacutes conhecemos ante s mas que
tambeacutem jaacute tiacutenhamos esquecido que noacutes vamos recordar quando virmos
coisas iguais Este laquoantesraquo eacute depois colocado num te mp o ant eri or
ao nascimento que eacute por sua vez apresentado como o tempo do esque
ciment o Aos trecircs temp os mdash antes do nas cim enton o nascim entod epois
do nascimento mdash correspondem trecircs momentos episteacutemicos mdash visatildeo ou
intuiccedilatildeoesquecimentoreminiscecircncia A respeito deste mo do de falar
de Soacutecrates conveacutem natildeo esquecer que esta sequecircncia temporal eacute uma
representaccedilatildeo que serve de suporte agrave expressatildeo de determinados momen
tos do processo cognitivo
Neste primeiro argumento em que a reminiscecircnc ia surge no Feacutedon
insiste-se na existecircncia da alma no tempo independentemente do facto
de estar ou natildeo unida a um co rpo Assim o con hec iment o ou saber
de que a alma dispotildee foi adquirido em determinado momento em
algum tempo Aqui com o no Meacutenon diz-se que aqueles que aprende
ram alguma coisa natildeo fizeram mais que laquorecordar o que em tempos
aprenderamraquo (Feacutedon 76c) Ta nt o num texto com o no ou tr o a metaacutefora
da reminiscecircncia interpretada literalmente em vez de explicar (ou ilu
minar para quem preferir esta tonalidade metafoacuterica) como eacute que o
homem adquire conhecimentosaber pressupotildee precisamente essa
poss ibi lidade e a correspondente capacidade da alma humana laquoEstamos
de acordo natildeo eacute verdade em que para haver reminiscecircncia eacute impres
cindiacutevel que antes se tivesse tido conhecimento do objecto que se recorda(Feacutedon 73c subli nhado nosso) Con tra uma inte rpret accedilatildeo literal dema
siado riacutegida da reminiscecircncia e do quadro miacutetico em que se desenvolve
a conversa de Soacutecrates com os pitagoacutericos Cebes e Siacutemias fala o proacuteprio
Soacutecrates quando afirma laquoClaro que insistir ponto por ponto na vera
cidade desta narrativa natildeo ficaria bem a uma pessoa de sensoraquo
(Feacutedon 114d) Mas aleacutem desta reserva expressa pelo proacute pr io Soacutecra tes
eacute preciso natildeo esquecer tambeacutem a estrutura hipoteacutetica da argumentaccedilatildeo
do Feacutedon designadamente nos trechos que se referem mais directamenteagrave reminiscecircncia Soacute a tiacutetulo de exemplo ver Feacutedon 75c-e 76d-e N atildeo
vamos entrar aqui na anaacutelise do significado da hipoacutetese (suposiccedilatildeo)
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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BIBLOS 524
o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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BIBLOS 522
no Feacutedon e mui to menos na obr a platoacutenica em geral No en tanto natildeo
queremos deixar de fazer algumas observaccedilotildees muito sinteticamente
a este respe ito Pode-se pergun tar o que eacute que eacute designado por hipoacute
tese no Feacutedon eacute uma proposiccedilatildeo que afirma a existecircncia da ideia ou eacute a
proacutepria ideia cuja exis tecircncia eacute afirmada por ta l proposiccedilatildeo Eacute claro
que algumas formulaccedilotildees poderiam ser interpretadas como enunciadosde existecircncia Co nt ud o Soacutecrates natildeo as usa como elementos susceptiacute
veis de serem integrados nu ma estru tura proposicional Enun ciados
como laquoHaacute um belo em siraquo natildeo entram como tais nem sequer em
implicaccedilotildees Um a hipoacutetese pod e ser pos ta em causa pod e ser justifi
cada com a ajuda de out ra hipoacutete se Pode-s e usar este meacute todo ateacute
chegar a laquoalgo de positivoraquo (Feacutedon 101e) laquoAlgo de posi tivoraquo laquoalgo
de satisfatoacuterioraquo neste caso eacute antes de mais a proacutepria suposiccedilatildeo das
ideias A simplicidade que a carac teriza eacute o reverso da seguranccedila
que a torna imune a todos os ataques eriacutesticos (100d 101d 105b)
Esta teacutecnica platoacutenica de lidar com a ideia como conteuacutedo de uma
hipoacutetese permi tia evitar a tarefa de ela bor ar um a teor ia das ideias
No Feacutedon apesar de muitos exemplos de ideias e da importacircncia que
tem tudo quanto se diz em torno das ideias natildeo se diz claramente que
ideias haacute como se delimita o domiacutenio das ideias como eacute que estaacute
ordenadoorganizado o reino das ideias como eacute que se podem identificar
ideias singulares etc Tu do isto satildeo questotildees impor tante s que uma
teoria das ideias natilde o pode ria de mo do algum ignorar N atildeo se colocamdirectamente questotildees de definiccedilatildeo A questatildeo do mo do co mo a ideia
estaacute ligada agravequi lo de que eacute ideia tamb eacutem natildeo eacute ab ordada Relativa
mente ao conhecimento da ideia temos que admitir que a concepccedilatildeo
da reminiscecircncia introduzida nos textos atraacutes referidos tambeacutem natildeo
permite fazer qualquer afi rmaccedilatildeo di ferenciadora sobre as ide ias Eacute certo
que o Feacutedon representa relativamente agrave tematizaccedilatildeo de predicados um
niacutevel reflexivo superior ao dos diaacutelogos anteriores segundo a cronologia
real Est a temat iza ccedilatildeo leva a que aqui lo que se quer significar com um predicado se tome como ob jecto de enunciados E eacute precisamente
aqui que surge a possibilidade de uma teoria que tem por base a exis
tecircncia de ideias au toacute noma s e separadas Mas esta eacute uma via que jaacute o
jovem Soacutecrates sabia conduzir a dificuldades insupe raacuteveis liccedilatildeo apren
dida com o velho Parmeacutenides 6 Por out ro lado o mesmo Parmeacutenides
aconselha-o a natildeo ab an do na i a supos iccedilatildeo das ideias Sendo assim
parece que eacute legiacute timo interpretar qualquer enunciado que pareccedila pres-
o Cf Parmeacutenides 128e-135b
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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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5 23 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
supor a admissatildeo de ideias com existecircncia autoacutenoma (separada) de tal
modo que a representaccedilatildeo dos dois mundos surja como um simples
meio ilustrativo a que se recorre para natildeo renunciar completamente ao
discur so racional Esta eacute um a das razotildees que motivam as nossas
reservas face agraves interpretaccedilotildees dualistas
No Fedro o enquadramento miacutetico e a carga metafoacuterica que envolvea reminiscecircncia ainda satildeo mais evidentes Fe dro lecirc a Soacutecra tes um
discurso de Liacutesias sobre o amo r Soacutecrates faz ta mbeacutem um discurso
semelhante sobre o mesmo tema Mais adia nte na palinoacuted ia Soacutecrates
diz que laquoa alma que jamais observou a verdade nunca atingiraacute a forma
que eacute a nossaraquo 7 e isto porque laquocomo disse toda a alma humana por
natureza contemplou as realidades ou natildeo teria vindo para esse ser
vivoraquo (Fedro 249e-250a) De acordo com a nar rat iva do Fedro eacute esta
visatildeo originaacuteria que permite ao homem recordar como satildeo realmenteas coisas Por out ro lado a alma hum ana precisamente por que natilde o eacute
divina natildeo pode ver to da a verdade O con hec iment o e o saber caracte
risticamente hum ano s satildeo necessariamente incomp letos Mai s a remi
niscecircncia aparece aqui como um dom com o qual apenas uma minoria
foi contemplada 8 Do m que consiste na capacidad e de inte rpreta r
a realidade racionalmente laquoE isto porque deve o homem compreender
as coisas de acordo com o que chamamos ideia que vai da multiplicidade
das sensaccedilotildees para a unidade inferida pela reflexatildeo A tal acto chama-se
reminiscecircncia das realidades que outrora a nossa alma viu quando
seguia no cortejo de um deus olhava de cima o que noacutes agora supomos
existir e levantava a cabeccedila para o que realmente existeraquo (Fedro 249b-c
sub linhado nosso) Este texto liga muito cla ramente a reminiscecircncia
agrave questatildeo das ideias Po r ou tr o lado to da a linguagem miacutetica deste
passo e as referecircncias a um lugar supra-celes te onde se pode avistar
a planiacutecie da verdade tem servido desde a antiguidade de suporte
imageacutetico a uma interpretaccedilatildeo do platonismo em termos de um dua
lismo radical Con tu do tal com o acontecia no Meacutenon e no Feacutedontambeacutem no Fedro encontramos afirmaccedilotildees de Soacutecrates que apontam
para uma certa reserva e distacircncia cr iacutet ica face ao discurs o em que vem
inserida a referecircncia agrave reminiscecircncia Soacutecrates natilde o soacute qualifica o seu
discurso como laquouma espeacutecie de hino miacuteticoraquo com o qual se teraacute alcan
ccedilado alguma verdade (Fedro 265b-c) como diz que a natildeo ser dois
aspectos que natildeo deixam de ter o seu interesse se se conseguir apreender
7 Fedro 249b
8 Fedro 250a cf 248a 249d 278d
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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o seu significado teacutecnico laquoparece-me que em tudo o resto nos entregaacutemos
realmente a um divertimentoraquo (265c-d sub linhado nosso) Os proacuteprios
partidaacuterios da interpretaccedilatildeo tradicional mais li teral da reminiscecircncia
vecircem neste trecho uma dificuldade seacuteria para tal interpretaccedilatildeo 9
No Feacutedon e no Fedro os textos que falam da reminiscecircncia subli
nham tambeacutem a estrei ta relaccedilatildeo que existe entre a alma e a ideia Pa raultrapassar uma compreensatildeo da reminiscecircncia demasiado presa agrave
letra do texto e fazer jus ao estatuto de textos filosoacuteficos que eacute o dos
trecircs diaacutelogos em questatildeo eacute preciso atender agrave articulaccedilatildeo da reflexatildeo
platoacutenica sobre a alma as ideias e a dialeacutectica Natildeo podemos de modo
nenhum desenvolver aqui nem sequer ao de leve esta problemaacutetica
mas natildeo quereriacuteamos deixar de sublinhar mais uma vez que o lugar
sistemaacutetico da (hipoacute)tese da reminiscecircncia eacute uma teoria do saber e natildeo
uma psicologia dita metafiacutesica ou na expressatildeo usada por Moravcsik
laquobad armchair psychologyraquo 1 0 Um dos traccedilos princ ipais dos frag
mentos platoacutenicos de uma teoria do saber eacute a vinculaccedilatildeo estreita do
saber com uma instacircncia sabedora Chamemos-lhe sujeito episteacutemico
Trata-se de um nexo de tal natureza que Platatildeo pensa natildeo ser viaacutevel
a exteriorizaccedilatildeo e representaccedilatildeo tota l do saber Eacute por isso que se
insiste em vaacuterios passos dos diaacutelogos no facto de o verdadeiro saber
nunca estar totalmente presente nas frases que pronunciamos ou escre
vemos Ele manifesta-se antes de mais na capac idade que o sujeito
episteacutemico tem de explici tar e justificar aquilo que afirma Ele natilde oestaacute vinculado a uma formulaccedilatildeo contingente como o poeta por exem
plo Daiacute o apelo constante na obra platoacutenica a laquodar razatildeoraquo (λoacuteγον διδoacuteναι ) da -
quilo que se s a be1 1
Este justificar983085se prestar contas
legitimar o que se afirma eacute feito sempre num contexto intersubjectivo
e nunca se reduz a uma mera transposiccedilatildeo de conteuacutedos proposicionais
Conveacutem natildeo esquecer que eacute precisamente na capacidade de exprimir-se
atraveacutes de frases e lidar com elas bem como com proposiccedilotildees que se
pode confirmar o verdadeiro saber mesmo aquele que por hipoacutetesenatildeo eacute completamente redutiacutevel a enunc iados Nu ma perspectiva
9 Assim uns omi te m o Fedro quando falam da reminiscecircncia em Platatildeo
Ver a tiacutetu lo de ex em pl o a exp osi ccedilatildeo de A Gra es er mdash Die Philosophie der Antike 2
Sophistik und Sokratik Plato u Aristoteles ( Muuml nc h en Beck 1983) mdash qu e se limi ta
a citar o Meacutenon e o Feacutedon Out ro s co mo Bluck vecircem nas afirmaccedilotildees de Soacutecr ates
referida s no te xto um indiacutec io de que Pl at atildeo laquono longe r believes in suc h ν microνησι ς as literall y tru eraquo
(Platos Meno C U P 1961 p 53)
10 Mor avc si k J (1971) 681 1
Cf po r ex Feacutedon 76d
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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platoacuten ica as poss ibi lidades de discussatildeo racional natildeo se esgotam quando
esbarramos com os limites da linguagem apofacircntica que natildeo consegue
representar dete rmin adas formas de saber Pela mesma raz atildeo nos
parece pouco verosiacutemil um esoterismo completamente divorciado da
obr a escrita O que Platatildeo tin ha a dizer estaacute nos diaacutelogos N atilde o haacuteoutra filosofia natildeo-escrita de Platatildeo para aleacutem daquela que encontramos
na sua obra Est aacute laacute tu do o que ele tinha para dizer sobre o indiziacutevel
O que natildeo estaacute laacute eacute rigo rosament e silecircncio E este eacute par a ser gu ar da do
A concepccedilatildeo da reminiscecircncia revela de modo niacutetido a estreita
relaccedilatildeo do saber com o sujeito episteacutemico Mais uma vez insistimos
no facto de estarmos perante um modo de falar com uma carga meta
foacuterica inegaacutevel e dificilmente redut iacutevel a tex to claro Eacute claro que hoje
ningueacutem se atreveria a propor uma concepccedilatildeo da reminiscecircncia dema
siado presa agrave letra do texto platoacutenico como uma hipoacutetese com algum
valor ainda que meramente heuriacutestico no acircmbito de uma teoria do
saber Qu an do mui to apresentaacute-la -ia com a pre ten satildeo de ser a inter
pretaccedilatildeo mais correcta (e coerente) do texto platoacutenico Mas mesmo a
este niacutevel de mera interpretaccedilatildeo de um texto vindo de um passado dis
tante natildeo seguimos essa linha de interpretaccedilatildeo sobretudo por duas
ordens de razotildees jaacute sugeridas Em prim eiro lugar temos as vaacuterias
indicaccedilotildees do proacuteprio texto que sublinham o caraacutecter metafoacuterico dos
trechos em que se fala da reminiscecircncia e indicam uma certa relativizaccedilatildeo
das afirmaccedilotildees nelas contid as Por out ro lado u ma inte rpreta ccedilatildeo
que se limita a soletrar a letra do texto platoacutenico natildeo pode de modo
nenhum fazer jus agrave pretensatildeo de verdade caracteriacutestica de um texto
filosoacutefico De outr o mod o a reminiscecircncia co mo outr as teses platoacute
nicas teriam na melhor das hipoacuteteses um interesse meramente arqueo
loacutegico Assim como jaacute dissemos parece-nos ina deq uad o interp retar
a reminiscecircncia em ter mos de memoacuter ia Quem se recorda natildeo sabe
apenas de que eacute que se reco rda mas sabe tambeacutem que se recorda Con trariamente agrave sugestatildeo de alguns eacute precisamente desta estrutura da
lembranccedilarecordaccedilatildeo que teremos de abstrair se quisermos interpretar
positivamente a reminiscecircnc ia Se entendermos a metaacutefora lite ra l
mente no sentido de uma recordaccedilatildeo daquilo que jaacute foi conhecido numa
vida anterior ao nascimento de cada indiviacuteduo entatildeo o problema do
conhec iment osab er eacute pura e simplesmente adi ado Natilde o parece ser
possiacutevel fugir a um regresso infinito Aquele primeiro conhecer tam
beacutem precisa de ser explicado Finalmente seguindo a indicaccedilatildeo dotexto eacute preciso notar que o primeiro (anterior) acto de aquisiccedilatildeo de
conhecimento(s) natildeo vai ser recordado enquanto tal na reminiscecircncia
Daiacute que apesar da ambiguidade de alguns passos dos trechos referidos
7232019 Martins(1985)Reminiscencia Em Platao(R)
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
seca
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
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W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)
Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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BIBLOS 526
a reminiscecircncia se possa referir sempre aos conteuacutedos de conhecimento
saber e natildeo ao acto de conhecer ou aprender Natilde o se trat a por tanto
de um elemento de uma qualquer teoria psicoloacutegica ou pedagoacutegica
Como jaacute dissemos natildeo eacute esse o seu lugar sistemaacutetico
Natildeo foi nossa intenccedilatildeo discut ir as diversas interpretaccedilotildees deste
toacutepico claacutessico do pen sament o pla toacuten ico Elas satildeo numero sas e devaacuterios tipos Desde as inte rpret accedilotildees de cariz religioso revalo rizador as
da linguagem miacutetica ateacute agraves que inserem a reminiscecircncia numa meta
fiacutesica do psiquismo humano passando por vaacuterias formas de inatismo e
de apriorismo e as diversas interpretaccedilotildees hermenecircuticas que subli
nham o papel dos pressupostos e preacute-conceitos em todo o conhecimento
hum ano Aqui com o nout ros casos natildeo se estabeleceu ainda um
consenso Out ras hipoacuteteses de reconst ruccedilatildeo satildeo possiacuteveis ain da que
co mo jaacute obse rvaacutemos seja mui to difiacutecil preencher a metaacute fora platoacutenica
com um conte uacutedo teoreacute tico bem definido Sob o pont o de vista his
toacuterico ela tem o meacuterito de assinalar a necessidade de uma reflexatildeo
diferenciadora de vaacuterios niacuteveis de saber de chamar a atenccedilatildeo para a
estru tura complexa do saber hu ma no Neste contexto ela desempenha
um papel de demarcaccedilatildeo que se mede natildeo tanto pelo que diz sobre essa
mesma estrutura como pela indicaccedilatildeo de que as teses inconciliaacuteveis
com ela satildeo insustentaacuteveis como explicaccedilatildeo e justificaccedilatildeo do saber
Neste sentido poderiacuteamos dizer que a reminiscecircncia natildeo eacute concil iaacutevel
com a) teorias que admitam a possibilidade de um saber rigorosamentelivre de pressupostos b) teorias que na anaacutelise do saber prescindam da
referecircncia ao sujeito episteacutemico c) teorias que concebam o saber como
algo totalmente objectivaacutevel e redutiacutevel a um processo comunicativo
Em suma poderiacuteamos interpretaacute-la como uma metaacutefora criacutetica de todos
os redu cion ismos no qu ad ro de uma teoria do saber Nesta sua fun
ccedilatildeo criacutetica e demarcadora ela permanece a seu modo ainda hoje actual
3 Excursus O comentaacuterio de Pedro da Fonseca agrave reminiscecircncia
platoacutenica
Fonseca analisa a (hipoacute)tese da reminiscecircncia na quaestio IV rela-
tiva ao seu comentaacuterio ao capiacutetulo primeiro do livro alfa da Metafiacutesica
de Aristoacuteteles 1 2 O tema da quaest io problematiz a uma afirmaccedilatildeo
1 2 Pe t r i Fonsec ae Co mm en ta r io ru m in Meta phys icor um Ar i s to te l is S ta -
gir i tae Libros Coloniae MDCXV (Reimpr em Hildesheim G Olms 1964) I
p p 86-92 P as s ar emos a usar a sig la C M A p a r a no s refer i rmos a esta o b r a de F o n
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de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
BIBLIOGRAFIA
ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)
165-174
C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)
E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)
FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)
GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213
GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his
Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)
HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)
J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)
K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)
MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)
P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck
(Cambridge Univ Press 1961)
Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)
Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)
ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta
physics 35 (1981) 337-349
STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48
laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345
THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349
W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)
Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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527 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
de Aristoacuteteles pondo a questatildeo de saber se todas as artes e ciecircncias
ter atildeo a sua origem na experiecircncia mdash laquonum artes omnes ac scientiae
experimento gignanturraquo Fonseca dedica a quase tota lida de da segunda
secccedilatildeo desta quaestio ao comentaacuterio da reminiscecircncia platoacutenica
Os textos referidos nesse trecho satildeo os lugares claacutessicos da reminiscecircncia
no Meacutenon Feacutedon e Fedro Aleacutem destes trecircs diaacutelogos Fonse ca cita Repuacuteblica X (C MA I 86 88 89) O passo da Repuacuteblica a que ele se
refere natildeo abo rda direct amente a quest atildeo da reminiscecircncia Eacute cita do
para ilustrar a concepccedilatildeo da reminiscecircnc ia como recordaccedilatildeo daquilo
que a alma teraacute conhecido separada do corpo laquoNam Plato in decimo
de Republica sub finem scribit Erim Armenium qui in proelio occubuerat
postquam revixisset narrasse omnia quae ipsius animus a corpore sepa-
ratas apud inferos vidissetraquo (CMA I 89 sublinhado no original cremos
tratar-se de Rep 614b)
A preocupaccedilatildeo principal de Fonseca neste texto eacute salvaguardar
a noccedilatildeo de progresso cientiacutefico de novidade no processo cognitivo
Daiacute a sua rejeiccedilatildeo de todas as posiccedilotildees que de uma forma ou de outra
possam ser entendidas como negaccedilatildeo ou supressatildeo da novidade no
saber Assim neste texto ele comeccedila po r rep udiar a laquotemer idade
daqueles que afirmam haver um uacutenico intelecto em todos os homens
que natildeo adquiriria nenhuma ciecircncia nova mas atraveacutes dele aprenderiam
os hom ens algo e finalmente todas as ciecircnciasraquo (C MA I 86) Depois
de expor rapidamente a noccedilatildeo platoacutenica de reminiscecircncia baseando-se
no texto do Meacutenon passa a refutar a tese do intelecto uacutenico comum a
todo s os homens Refutaccedilatildeo muito sumaacuteri a jaacute que a anaacutelise mais
demorada desta tese vai ser feita noutro lugar laquoalibi dabitur fusius
disserendi locusraquo (C MA 1 88) Nesta secccedilatildeo vai debruccedilar-se mais
atentam ente sobre a (hipoacute)tese platoacuten ica da reminiscecircncia Ante s de
mais eacute significativo o modo como ela eacute qualificada por Fonseca fictio
somnium figmentum 1 3 Esta adjectivaccedilatildeo sugere que se tr at a de algo
que natildeo pode ser interpretado literalmente algo faacutecil de eliminarenq uan to can did ato agrave verdade Par a aleacutem de sublin har o caraacutect er
oniacuterico e fictiacutecio da metaacutefora da reminiscecircncia Fonseca procura recons
truir e criticar o seu possiacutevel conteuacutedo teoreacutetico
O primeiro argumento contra a reminiscecircncia joga com a inter
ligaccedilatildeo entre o habitus dos primeiros princiacutepios e a ciecircncia entendida
1 3
laquoM it t en da deind e est f ict io i l la Pla tonis exta ns in Ph ae dr o Pha ed on ee t 10 Re pu b qu a puta t in Me no ne raquo C M A I 86 laquoSo mn ium vero i l lud Pl a to nic um
(quod est in Menone Phaedro Phaedone et 10 de Rep) de oblivione et reminiscent ia
facile refelli tur Fi gm en tu m Pla ton is refelli turraquo C M A I 88
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BIBLOS 528
co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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BIBLIOGRAFIA
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P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck
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Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)
Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)
ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta
physics 35 (1981) 337-349
STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48
laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345
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Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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co mo laquohab itus conclusionumraquo O texto pla toacuten ico natildeo afirma nem
pressupotildee um esquecimento dos primeiros princ iacutepios Se o nascimento
provoca o esquecimento de um conhecimento ant es obtido tambeacutem
deveria de igual modo levar ao esquecimento dos primeiros princiacutepios
Se estes natildeo se esquecem na altura do nascimento tambeacutem natildeo haacute razatildeo
nenhuma que nos leve a crer que a geraccedilatildeo por si soacute faccedila esqueceralgo que se aprendeu e conheceu anteriormente
Mas o argumento decisivo e que mais interessa a Fonseca estaacute
ligado agrave proacute pri a noccedilatilde o de invenccedilatildeo A contr ibuiccedilatildeo positiva dada
pelos inventores pelos que descobrem alguma coisa traduz-se num
ala rgam ento do acircmb ito do saber Eacute esta novidade que estaacute na base do
progresso cientiacutefico E es te conhecimento novo natildeo pode ser entendido
como reminiscecircncia mas precisamente em virtude da sua novidade
tem que ser considerado co mo verdadeir a aquisiccedilatildeo de saber Assimo conhecimento que o criadorinventor de determinada disciplina tem
desse domiacutenio especiacutefico natildeo pode ser considerado reminiscecircncia sob
pena de ele deixar de poder ser considerado realmente o seu inventor
Por outras palavras o proacuteprio facto da novidade da inovaccedilatildeo indica
que o processo cognitivo natildeo eacute redutiacutevel a uma mera reposiccedilatildeo de
dados jaacute adquiridos Ciecircncia saber eacute tradiccedil atildeo e inovaccedilatildeo Po r isso
diz Fonseca o nosso saber natildeo se pode identificar totalmente com a
reminiscecircncia 1 4
Ateacute aqui rejeita-se a reminiscecircncia sobretudo porque admiti-la
seria negar ou pelo menos natildeo explicar a inovaccedilatildeo na tarefa do conhe
cimento Conside rada enq uan to hipoacutetese explicativa da possibilidade
de apr end er e saber mdash en quan to resposta ao argumento eriacutestico mdash a
reminiscecircncia natildeo satisfaz O laquohab itus scientiaeraquo pode gerar-se a part ir
do laquoactus sciendiraquo Ora par a pod er realizar qua lqu er acto de conheci
mento argumenta Fonseca na linha da tradiccedilatildeo escolaacutestica bastam
dois factores a ajuda dos sentidos e a proacutepria capacidade intelectiva
(sensuum ministerium et ipsa vis intelligendi remoto quovis habituCMA I 89) Est a explicaccedilatildeo eacute preferiacutevel po r ser mais simples Clar o
1 4 laquoSi eo ru m ta ntu m qu ae novi t in alio co rpo re igi tur cogn i t io ea qu am
hab ent invento res ar t ium no n est reminiscent ia qu od in ali is ho min ibu s non prae -
cesser i t I ta cogni t io mu lt ar um ar t ium effect ivarum qua e nos tro et iam saeculo
inventae sunt non est reminiscent ia in ipsarum inventor ibus nec i tem quadrat io
circuli s i tandem inveniatur er i t reminiscent ia in eo a quo tandem fueri t reperta Quod si in inventor ibus ar t ium nova cogni t io non est reminiscent ia sed vera scient ia
acquisi t io potest ut ique scient ia acquir i quo f i t ut sci re nostrum non omnino idem
sit quod reminisciraquo CMA I 88-89
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529 S O B R E A R E M I N I S C E N C I A E M P L A T Atilde O
que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
7232019 Martins(1985)Reminiscencia Em Platao(R)
httpslidepdfcomreaderfullmartins1985reminiscencia-em-plataor 2324
BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
BIBLIOGRAFIA
ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)
165-174
C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)
E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)
FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)
GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213
GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his
Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)
HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)
J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)
K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)
MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)
P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck
(Cambridge Univ Press 1961)
Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)
Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)
ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta
physics 35 (1981) 337-349
STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48
laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345
THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349
W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)
Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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que a alegada simplicidade que justifica esta preferecircncia aleacutetica (alethic
preference) de Fonseca natildeo eacute devidamente jus tificada no texto
Supotildee-se que o leitor estaacute familiarizado com a teoria preferida desen-
volvida noutro contexto e que isso eacute suficiente para poder considerar
este contexto supeacuterflua (supervacanea) a reminiscecircncia
Mas admitindo por hipoacutetese que a alma separada do corpotivesse tido acesso a qualquer tipo de conhecimentosaber mdash entendido
em te rmos de participaccedilatildeo das ideias ou de out ro m od o mdash natilde o haacute
motivo que justifique o esquecimento da alma Esqu eciment o que eacute
colocado no nasc imento Natildeo se justifica pois diz Fonseca a geraccedilatildeo
humana natildeo eacute violenta nem contra a natureza jaacute que se trata de uma
conjunccedilatildeo natural da forma humana com a sua mateacuteria proacutepria e
natura l Assim a geraccedilatildeo huma na natildeo implica por si soacute um a dimi
nuiccedilatildeo das virtualidades da alma Natilde o haacute out ro mo do de ser homem
Portanto relativamente agrave reminiscecircncia se o homem natildeo conhece
aqui e agora isto ou aquilo e se natildeo haacute nada que justifique o seu esque
cimento entatildeo quer dizer que ele (a sua alma na linguagem do diaacutelogo
platoacutenico) tambeacutem natildeo as conheceu antes 1 S Este argumento natilde o faz
mais do que explicitar o primeiro
No final deste breve comentaacuterio agrave reminiscecircnc ia platoacutenica Fonseca
retoma novamente o texto do Meacutenon Ao contr aacuter io do que afirma
Soacutecrates o que se passa na aula de geometria ao escravo natildeo prova
que este se estava a recordar daquilo que antes sabia e natildeo a adquirir
novos conheci mentos Fonseca jog a com a conhecid a distinccedilatildeo aris-
toteacutelica entre o mais conhecido em si e o mais conhecido para noacutes
alegando que o facto de Soacutecrates formular uma seacuterie de perguntas e o
escravo se limitar a responder de acordo com a metodologia estipulada
sim ou natildeo natildeo implica que o escravo natildeo estivesse envolvido num
processo de verdadeira aquisiccedilatildeo de saber Mais uma vez Fonseca
prefere outra expl icaccedilatildeo para interpretar e compreender o que se passa
no episoacuted io da aula de geometria A seus olhos a (hipoacute)tese da remi-niscecircncia natildeo satisfaz 16
1 5 laquoP os tre mo s i omn es scient iae essent a na tu ra indi ta e anim is nostr is an te
quam corpora ingrederentur non esse t cur earum obl iv i scerentur propter coniunc t io-
nem cum corpor ibus es t en im genera t io humana non v io lenta e t cont ra na turam
sed na tura l i s coniunc t io formae cum mater ia nu l laque forma de t r imentum acc ip i t
ex coniunc t ione cum propr ia e t na tura l i mater ia a t ob l iv i scuntur omnium secundum
Pl at on em no n sunt igi tur eis a na tu ra indi taeraquo C M A I 91 1 6 laquoArg ument i s vero Pia toni s qua e pro co mm en to hoc propos i t a sunt ex
Men one hun c in mo du m occ ur r end um es t Pr ior i qu ide m n ih il consequ ent iae
hab ere i l lud Socrat is Hic puer ordine interrogate et a nemine edoctus incipit exercere
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BIBLOS 530
Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
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BIBLIOGRAFIA
ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)
165-174
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GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213
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Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)
HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)
J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)
K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)
MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)
P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck
(Cambridge Univ Press 1961)
Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)
Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)
ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta
physics 35 (1981) 337-349
STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48
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THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349
W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)
Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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Finalmente se eacute verdade que o processo cognitivo natildeo pode partir
do zero tal facto natildeo implica que tenhamos de admitir um preacute-saber
bem definido e virtualmente ilimitado Para que se desencade ie o
processo cogni tivo basta na opiniatildeo de Fonseca que tenhamos um
conhecimento actual imperfeito daquilo que queremos conhecer 1 7
De novo a reminiscecircncia a surgir como uma hipoacutetese explicativa insatisfatoacuteria e inuacutetil Com todos os limites proacuteprios da tradiccedil atildeo filosoacutefica
em que se insere o comentaacuterio de Fonseca eacute um documento significativo
do seu confronto com o pensa men to pla toacuten ico Ma s haacute que subl inha r
o interesse primordial de toda a sua argumentaccedilatildeo salvaguardar a
possibi lidade de compreender a novidade e evi tar que a inovaccedilatildeo fosse
completamente absorvida pela tradiccedilatildeo
Coimbra Outubro de 1983
actum scientiae ergo non est consecutus novam scientiam sed reminiscitur eorum quae
ante sciebat Quid enim interest s i ordi ne interr oges an ord ine doc eas an no n sem-
per i s qu i audi t consul it m e n t e m s u a m n ih i lque conced i t ni si q u o d pe r se n o t u m
esse perspicit aut ex per se notis et a se concessis iam videt esse demonstrandum
Si id concedi t quod per se notum esse videt non acquir i t sane novam scient iam
Sin autem assent i tur pronunciato quod non iudicat per se notum sed tamen iam
ex per se not is de mon str atu m esse cerni t no n du bi um est quin vere discat scient iam-
que vere consequatur sive rogatus sit tantum sive ab alio edoctus sive etiam a se
ipso menteque sua ductusraquo CMA I 911 7 C M A I 91-92
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BIBLIOGRAFIA
ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)
165-174
C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)
E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)
FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)
GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213
GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his
Dialogues (Cambridge Univ Press 1975)
HUBE R C E Anamnesis bei Plato (Muuml nc he n 1964)
J A P P U Theorie der Ironie (F rankfur t Klostermann 1983)
K L E I N J A Commentary on Platos Meno (Chapell Hill 1965)
MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)
P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck
(Cambridge Univ Press 1961)
Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)
Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)
ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta
physics 35 (1981) 337-349
STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48
laquoZum Aufbau des platonischen Dialogesraquo in Kl Schriften ( ib) 333-345
THOMAS J E laquoAnamnesis in New Dressraquo in New Scholasticism 51 (1977) 328-349
W I E L A N D W Platon und die Formen des Wissens (Gottingen V amp R 1982)
Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)
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5 3 1 S O B R E A R E M I N I S C Ecirc N C I A E M P L A T Atilde O
BIBLIOGRAFIA
ALLEN R E laquoAnam nes i s i n P la t o s Meno a nd Phaedoraquo in Rev Metaphysics 13 (1959)
165-174
C O R N F O R D F M Principium Sapientiae t r ad por t (Lx a F Gul ben kia n 1975)
E B E R T T H Meinung und Wissen in der Philosophie Platons (Berlin 1974)
FRIEDL ANDER P Platon 3 Bde (Berlin 31964-75)
GULLEY N laquoPlatos theory of recollectionraquo in CQ 4 (1954) 194-213
GU TH RI E W K C A History of Greek Philosophy IV Plato The Man and his
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MO RA VC SI K J laquoLe arn ing as recollect io nraquo in Vlastos G (ed) Plato I (N YorkDoubleday 1971)
P L A T Atilde O Platos Meno ed wi th int rod commentary and an Appendix by R S Bluck
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Feacutedon t r ad in t ro d e no tas de M T Sch iap pa Azeve do (Co im bra 1983)
Fedro t rad int rod e notas de Joseacute Ribeiro Ferrei ra in Platatildeo (Lisboa 1973)
ROUSS EAU M laquoRecolle ction as realization mdash remytho logiz ing Plato raquo in Rev Meta
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STENZEL J laquoLi te ra r i sche Form und phi losophischer Gehal t des p la toni schen Dialogesraquo in Id Kleine Schriften (Darmstadt 1956) 32-48
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Z E L L E R E Die Philosophie der Griechen in ihrer geschichtlichen Entwicklung Teil II
Ab t 1 Sokra tes und die Sokrat ike r Pla to un d die alte Ak ad emi e
(Leipzig 1889)