a educação na republica platao

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    GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA

    A ED U C A O C O M O F U N D A M E N T O D A U N I D A D E E D A FE L I C I D A D E D A

    PL I S N A RE P B L I C A , D E P L A T O

    Rio de Janeiro

    2010

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    GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA

    A ED U C A O C O M O F U N D A M E N T O D A U N I D A D E E D A FE L I C I D A D E D A

    PL I S N A RE P B L I C A , D E P L A T O

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro como parte dos

    requisitos necessrios obteno do ttulo de

    Doutor em Filosofia.

    Orientadora: Profa. Dra. Maria das Graas de

    Moraes Augusto

    Rio de Janeiro

    2010

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    GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA

    Motta, Guilherme Domingues daA educao como fundamento da unidade e da felicidade daplisna Repblica, de Plato. / Guilherme Domingues da Motta.Rio de Janeiro, 2010.293 f.

    Orientador: Maria das Graas de Moraes Augusto.Tese (Doutorado)Universidade Federal do Rio de Janeiro,

    Instituto de Filosofia e Cincias Humanas.

    1. Plato. 2.Repblica. 3. Educao. 4. Poltica. I. Augusto, Maria

    das Graas de Moraes. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Institutode Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

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    GUILHERME DOMINGUES DA MOTTA

    A E D U C A O C O M O F U N D A M E N T O D A F E L I C I D A D E E D A U N I D A D E D APL I S N A R E P B L I C A , D E P L A T O

    Tese apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Filosofia da Universidade

    Federal do Rio de Janeiro como parte dosrequisitos necessrios obteno do ttulo deDoutor em Filosofia.

    Aprovada por:

    __________________________________________________________

    Profa. Dra. Maria das Graas de Moraes Augusto (UFRJOrientadora)

    ______________________________________Profa. Dra. Alice Bitencourt Haddad (UFRRJ)

    ______________________________________Profa. Dra. Maura Iglsias (PUC-Rio)

    ______________________________________Prof. Dr. Ricardo Jardim (UFRJ)

    ______________________________________Prof. Dr. Roberto Bolzani Filho (USP)

    Rio de Janeiro, ______ de ______________________ de 2010.

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    Junia.

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    AGRADECIMENTOS

    Aos amigos Carlos Frederico Gurgel, Srgio Salles, Antnio Carlos Hirsh, pelo apoio e pelainterlocuo.

    A Guilherme Ceclio e Renata Ramos, pela amizade, pelo desvelo na leitura, pelascontribuies e crticas fundamentais.

    Claudia Assad, pela amizade, desvelo na leitura do texto e interlocuo.

    Enedina e Snia, pela solicitude e gentileza ao longo dos anos.

    Aos meus alunos, pela motivao constante.

    Aos membros da Banca de Pr-Defesa, Professores Ricardo Jardim, Alice Bitencourt Haddade minha orientadora, Professora Maria das Graas de Moraes Augusto, pelas leituras,contribuies, correes, crticas e interlocuo.

    Fundao Dom Cintra, pelo auxlio financeiro.

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    [...]Quem v o todo dialtico; quem no o v, no .

    Plato.Repblica, 537c.

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    RESUMO

    A compreenso adequada da proposta poltica contida na Repblica, de Plato, dependefundamentalmente do entendimento de que a educao primria, composta pela mousikegymnastik, se estende a todas as classes da cidade. Falhar em reconhecer um aspecto toimportante acarreta graves incoerncias. Subestimar o alcance do poder retificador daeducao resulta em um empobrecimento da concepo platnica de poltica. Que esse poderno seja absoluto no exclui que ele possa atuar, em certa medida, na maioria dos homens, aolado dos costumes, criando neles mesmos o fundamento da boa vida, tanto particular como

    pblica. Uma interpretao daRepblicaque leve em conta o seu carter dialtico, segundo oqual certas passagens posteriores esclarecem, ampliam, e at modificam o sentido de uma

    passagem anterior, se torna fundamental para o entendimento adequado da obra. A esse

    mtodo de interpretao se deve aliar a considerao de que Plato faz frequentemente uso deantecipaes. Deve-se ainda compreender que a educao primria condio necessriadas virtudes e do modo de vida da cidade.

    Palavras-chave: Plato.Repblica. Educao. Poltica.

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    ABSTRACT

    An adequate understanding of PlatosRepublics political proposal depends fundamentally on

    the consideration that elementary education, composed by mousik and gymnastik, be

    extended to all the classes in the city. The failure to recognize such an important aspect entailssevere incoherencies. To underestimate the reach of the rectifying power of education resultsin the impoverishment of Platonic political conception. That such power is not absolute doesnot rule out that it, nevertheless, can act, in a certain measure, in most people, along withcustoms, establishing the basis of a good life, whether private or public. An interpretation ofthe Republic which takes into account its dialectical character, according to which certainsubsequent passages clarify, enlarge and even modify the meaning of previous passages,

    becomes fundamental to the adequate understanding of the work. This method of

    interpretation must be combined with the consideration that Plato frequently usesforeshadowings. One must understand that elementary education is a necessary condition

    to virtues and to the way of life of the city.

    Keywords: Plato. Republic. Education. Politics.

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    SUMRIO

    1 INTRODUO............................................................................................................ 92 FIL OSOFI A E CRISE.................................................................................................. 262.1 A crise de valores e a nova concepo de virtude na Apologia de

    Scrates................................................................................................................... 262.2 Os critrios da sopha no Laques e sua importncia no contexto da

    crise......................................................................................................................... 342.3 A crise de valores na Repblicae o papel da sopha........................................... 452.3.1 O argumento de Glucon......................................................................................... 532.3.2 O argumento de Adimanto....................................................................................... 603 ACIDADE NO LGOSE A PROPOSTA DE PAIDEANA REPBLICA............................ 763.1 O contedo da poesia............................................................................................. 79

    3.2 O estilo da poesia................................................................................................... 863.3 As harmonias e os ritmos...................................................................................... 903.4 A gymnastik.......................................................................................................... 914 ASVIRTUDES NA CIDADE E NA ALMA....................................................................... 934.1 As virtudes na cidade............................................................................................ 934.2 As virtudes na alma............................................................................................... 1255 AEXTENSO DA EDUCAO.................................................................................... 1415.1 Os efeitos da paideana cidade no lgos........................................................... 1545.2 O modo de vida na cidade e sua unidade............................................................ 2075.2.1 A comunidade de bens, mulheres e filhos.............................................................. 2225.2.2 As formas corrompidas........................................................................................... 2425.3 A felicidade ............................................................................................................ 2556 CONCLUSO............................................................................................................. 2697 REFERNCIAS.......................................................................................................... 2797.1 Edies/tradues de Repblica........................................................................... 2797.2 Sobre Repblica..................................................................................................... 2797.3 Sobre Plato.......................................................................................................... 2847.47.5

    Edies/tradues de obras antigas.....................................................................Sobre cultura, histria e literatura......................................................................

    289291

    7.6 Index e lxicos........................................................................................................ 292

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    1INTRODUO

    conhecida e muito debatida a polmica proposta educacional apresentada por Plato na

    Repblica, na cidade que prope que seja construda com o lgos1, nessa obra, principalmente noque diz respeito primeira etapa da educao.

    Considerando-se que o modelo de educao (paidea) proposto nessa obra pode ser

    dividido em duas etapas, chamar-se- aqui a primeira etapa de educao primria e a segunda

    de educao superior. A primeira etapa, que estar no foco da discusso, uma educao que

    se d pela mousike pelagymnastik, no que segue, nesse aspecto, a tradio grega; e a segunda

    consiste em um programa de estudos de disciplinas ligadas matemtica e no estudo da dialtica.

    Se a mousikpara os gregos envolvia tudo o que diz respeito recitao potica, no s o

    contedo versificado mas os ritmos, as harmonias, a atitude corporal e o uso de instrumentos; e a

    gymnastik, tudo o que dizia respeito excelncia fsica, as razes da polmica que envolvem a

    primeira etapa podem residir tanto nas alteraes e nas restries que sofrem a poesia tradicional

    no mbito da educao primria proposta, quanto na suposta extenso dessa educao a uma

    minoria dos cidados.

    Se, para atender aos fins que pretende, a poesia convertida em instrumento a servio da

    pedagogia e da poltica, e isso significa alter-la profundamente quanto ao contedo e ao estilo, j

    haveria aqui motivos suficientes para protestos entre os admiradores da poesia grega; assim, seria

    necessrio investigar se existe justificativa possvel para tais restries e tal subordinao.

    Admitindo-se que essas restries so compreensveis em vista dos fins visados pela obra,

    os quais se espera atingir, em grande parte, atravs da educao, restaria perguntar por que, se se

    considera que esse modelo de educao visa a um bem para os educandos, contemplaria a menor

    parte dos cidados da cidade.

    As questes so indissociveis, porm o que se pretende aqui uma anlise do modelo

    educacional daRepblicapara mostrar que a educao primria deve ser compreendida como seestendendo a todos os cidados da cidade construda no lgos.

    Uma primeira objeo a essa tese de que a educao pela mousik e pela gymnastik

    constantes daRepblicase estende a todos os cidados da cidade construda com o lgos a de

    1 Todas as transliteraes foram feitas de acordo o modo ordinariamente empregado, resguardadas as seguintespeculiaridades: e; - o - kh; e ao iota subscrito corresponde a letra i, adscrita e entre parnteses.

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    que no h referncia explcita a tal extenso; a essa objeo, acrescenta-se uma outra: a de que a

    anlise desse modelo de educao teria sido suscitada pela necessidade de educar os homens de

    uma classe da cidade: a dos guardies. Embora, em uma certa altura da obra, essa classe seja

    divida em duasa dos guardies-governantes e a dos guardies-auxiliares , so estas que so,segundo a maior parte dos comentadores da Repblica, beneficiadas pela educao primria

    descrita, ficando a terceira classe, e a mais numerosa, a dos artesos, excluda dela.

    Alguns adotam essa interpretao sem sequer tematiz-la, pois do como suposto que a

    educao primria visa aos guardies2. Outros, mais raros, formam um segundo grupo e

    procuram mostrar no s que se deve admitir que a educao primria visa aos guardies mas

    que, pelo que diz o texto, no pode destinar-se aos artesos 3. O principal representante desse

    segundo grupo, pelo espao que dedica questo e pelo nmero de argumentos aduzidos contra a

    tese da educao comum, Reeve.

    A tese contrria, e que se procurar defender tambm aqui, segundo a qual a educao

    primria deve ser interpretada como se estendendo a todos os cidados, inclusive aos artesos,

    muito menos defendida e, quando o , isso ocorre de forma deficiente, pois geralmente envolve

    um nico aspecto e no procura responder s objees levantadas pelos comentadores do segundo

    grupo mencionado no pargrafo acima. Tambm deficiente porque no procura confrontar sua

    interpretao com as passagens do texto que resultariam aparentemente contraditrias com a sua

    tese nem apresentar uma possvel soluo4.

    2Neste grupo, poder-se-iam elencar Jaeger, Grube e Nettleship. Cf. JAEGER, Werner. Paidia, a formao doHomem Grego. Traduo de Artur M. Parreira. So Paulo: Martins Fontes, 1995; GRUBE, G. M. A. PlatosThought. Indianaplis: Hackett, 1980; NETTLESSHIP, R. L.Lectures on the Republicof Plato. London: Macmillan,1920. ; _______The Theory of Education in the Republicof Plato.Honolulu: University Press of the Pacific, 2003.3Neste grupo, poder-se-iam elencar Hourani, Ferrari, Strauss e Reeve. Cf. HOURANI, G. F. The Education of TheThird Class in Platos Republic. The Classical Quarterly, v. 43, n.1/2, p. 58-60, 1949; FERRARI, G. R. F. City andSoul in PlatosRepublic. Chicago: University of Chicago Press, 2005; STRAUSS, L. The City and Man. Chicago:University of Chicago Press, 1978; REEVE, C. D. C. Philosopher-Kings: The Argument of Platos Republic.Princeton: Princeton University Press, 1988.4Neste grupo, poder-se-iam elencar Shorey, Cornford, Dorter, Irwin, Taylor e Vlastos. Cf. SHOREY, Paul (Trad.).The Republic. London: Harvard University Press, 1994. v. 2. (The Loeb Classical Library, Plato, 5 e 6);CORNFORD, Francis M. (Trad.). The Republic of Plato. Introduction and notes by Francis MacDonald Cornford.

    New York: Oxford University Press, 1990; DORTER, Kenneth. The Transformation of PlatosRepublic. New York:Lexington Books, 2006; TAYLOR, A. E. Plato, the man and his work. London: Methuen, 1960; IRWIN, Terence.Platos Ethics.New York: Oxford University Press, 1995; VLASTOS, Gregory. Platonic Studies. 2nd. ed. NewJersey: Princeton University Press, 1981. Embora sem o mesmo grau de argumentao ou de confrontao com asteses contrrias, com o qual se defender aqui a tese de que a educao primria se estende a todas as classes, a

    posio sobre o tema mais prxima da que se apresentar aqui se encontra no comentrio Repblicade Averres.Cf. AVERRES. Exposicin de la Repblica de Platn. Traduccin y estudio preliminar de Miguel CruzHernndez. 5. ed. Madrid: Tecnos, 1998.

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    Defender de forma suficiente a tese da educao comum a todas as classes exige,

    portanto, que, por um lado, se refutem as teses do segundo grupo de comentadores

    supramencionado, que aduzem razes para que se rejeite que a educao primria se estende a

    todos os cidados, e que, por outro lado, seja essa tese confrontada com as passagens do textoproblemticas, com o propsito de mostrar que, mediante uma interpretao abrangente, ela

    resiste a todos os testes.

    Uma interpretao abrangente exige, no entanto, um mtodo; e o que ser aqui adotado

    fundamentalmente devedor em relao a dois autores: Charles Kahn e David Roochnick.

    Em Plato and the Socratic dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form, Charles

    Kahn defende a tese segundo a qual todos os dilogos de Plato escritos antes da Repblica

    representam, em estgios, no o desenvolvimento do pensamento do autor Plato, mas dife rentes

    momentos de sua apresentao de Scrates e diferentes abordagens da posio filosfica da

    Repblica5. Segundo esse autor, Plato criou ainda, ao escrever um certo grupo de dilogos,

    uma forma essencialmente nova: a do dilogo aportico com uma cena pseudo-histrica. Kahn

    chama os dilogos que pertencem a esse grupo por um nome de difcil traduo: threshold

    dialogues ou dilogos pr-intermedirios, por estarem no limiar da apresentao mais clara de

    questes as quais antecipam e para as quaispreparam e que sero apresentadas pelo grupo de

    dilogos que vir a seguir, chamado grupo intermedirio (middle dialogues), o qual comporta o

    Banquete, oFdone, principalmente, aRepblica, que, por sua vez, pode ser considerada a obra

    para a qual todos convergem, tanto os dilogos pr-intermedirios, quanto os que, junto com ela,

    recebem o nome de intermedirios. O grupo desses dilogos pr-intermedirios seria composto

    por:Laques, Crmides,Eutfron,Protgoras,Mnon,LsiseEutidemo6.

    Segundo Kahn, os dilogos pr-intermedirios foram concebidos para preparar o leitor

    para as concepes constantes do Banquete, do Fdon e da Repblica, e eles s podem ser

    adequadamente compreendidos a partir da perspectiva desses dilogos intermedirios 7.

    Seguindo essas premissas, o que Kahn faz na obra referida mostrar como estas sefundamentam na anlise dos dilogos; para isso, o autor aduz vrios exemplos em que seu

    mtodo interpretativo enormemente esclarecedor.

    5 KAHN, Charles H. Plato and the Socratic dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form. Cambridge:Cambridge University Press, 1996. p. 48. Traduo prpria.6KAHN, 1996, p. 41.7KAHN, 1996, p. 60.

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    No artigo Proleptic Composition in the Republic, or Why Book I was Never a Separate

    Dialogue, Kahn aplica o mtodo prpria Repblica e mostra uma srie de antecipaes,

    presentes no livro I, de questes que sero desenvolvidas e esclarecidas no restante da obra8.

    Seria impossvel reconhecer aqui todas as dvidas que resultaram, no que diz respeito compreenso de muitos dilogos de Plato, da leitura de Kahn.

    Aqui mesmo, algumas vezes, se far referncia a alguns pontos estabelecidos por ele.

    Porm, o que se deseja estender o prprio mtodo de leitura dos dilogos concebido por Kahn, a

    toda a Repblica, e mostrar que a aplicao do mtodo vai muito alm da possibilidade de se

    mostrar como o livro I indissocivel do resto da obra. Assim, aplicar-se- o seu mtodo na

    interpretao que se propor aqui da Repblicae se procurar mostrar como se resolvem certas

    dificuldades do texto, que ficariam sem soluo, ou com uma soluo insatisfatria, se no se

    considerasse que certas partes do texto contm antecipaes do que ser desenvolvido e

    esclarecido mais frente na obra.

    Esse mtodo ser aplicado a algumas passagens cujo esclarecimento fundamental para

    que se possa defender com fundamento que a educao primria proposta na Repblica se

    estende a todos os cidados, assim como para mostrar que so coerentes com essa interpretao

    da obra certas passagens que poderiam ser consideradas contraditrias com ela.

    Um segundo aspecto do mtodo de interpretao que ser explorado aqui e pode encontrar

    filiao em um intrprete das obras de Plato aquele proposto por David Roochnik em Beautiful

    City: The Dialectical Character of Platos Republic, que ele chama de interpretao dialtica9.

    Embora seu livro contenha uma proposta de interpretao da Repblica, mais o seu

    mtodo que interessa aqui, pois os aspectos da obra por ele abordados visam a um fim diverso do

    objetivo especfico almejado aqui.

    Segundo Roochnick, aRepblica uma obra dialtica no sentido de que teses afirmadas

    em certo momento na obra10no podem ser consideradas teses isoladas expostas explicitamente e

    ento consubstanciadas em um ponto especfico dela. Segundo ele, essas teses devem emergir

    8Para uma leitura alternativa da relao entre o livro I da Repblica, entendido como promio, e o restante daobra, ver AUGUSTO, Maria das Graas de Moraes. O Promio Dcima Musa:A funo proemial do livro I naRepblicade Plato.Revista Latinoamericana de Filosofa, [S.l], p.1-35, 2010.9ROOCHNIK, David.Beautiful City: The Dialectical Character of PlatosRepublic. New York: Cornell UniversityPress, 2003.10Roochnick, em sua exposio desse ponto tem em vista um aspecto especfico que uma possvel concepo sobrea democracia menos negativa do que se supe. Aqui, entretanto, trata-se o mtodo independentemente da questoabordada. Cf. ROOCHNICK, 2003, p. 2.

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    do dilogo como um todo, da tessitura mesma da obra compreendida como uma atividade

    dialtica11. Considera ainda que certas teses, mesmo que no estejam explicitamente afirmadas

    por uma passagem especfica da obra, na qual encontre fundamento explcito, podem emergir da

    compreenso de seu todo.Segundo essa perspectiva, Roochnik defende que a Repblica deve ser lida como uma

    obra na qual um certo estgio preliminar do dilogo pode ser tomado como tendo sido

    interrompido e ento revisado de forma crescentemente mais rica e adequada12. Em complemento

    a isso, diz Roochnik sobre seu prprio mtodo:

    Em um desenvolvimento dialtico, um estgio prvio no , entretanto, totalmentedescartado como sendo simplesmente errado. Antes, mesmo que parcial ou limitado aum ponto de vista apenas, , no obstante embora modificado e, portanto, negado pelaexplicao mais completa que lhe sucedepreservado na sua parcialidade mesma comoum estgio ou momento de todo o desenvolvimento13.

    Esse mtodo de interpretao dialtica, pelo qual uma passagem posterior da Repblica

    pode ser tomada como esclarecendo, ampliando, e mesmo revendo ou modificando o sentido de

    uma passagem anterior sobre o mesmo tema, ser fundamental para sustentar a leitura da obra

    que se defender aqui.

    A descrio do mtodo de interpretao adotado no estaria completa se no se fizesse

    referncia a uma abordagem, que aquela recomendada pelo prprio Plato na Repblica,segundo a qual se deve considerar se o que se descreve sobre as virtudes e o modo de vida, enfim,

    sobre os bens da cidade construda com o lgos,nessa obra, compatvel com as instituies que

    foram descritas exatamente como aquelas que os promove. No seria suprfluo citar a passagem

    mais explcita e significativa a esse respeito, a qual, entretanto, encontra ecos em toda a obra:

    14

    11ROOCHNICK, 2003, p. 2. Traduo prpria.12ROOCHNICK, 2003, p. 5.13ROOCHNICK, 2003, p. 5. Traduo prpria.14PLATO.Repblica, 462a: Utilizou-se a traduo de PEREIRA, Maria Helena da Rocha (Trad.). A Repblica. 5.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987.

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    Porventura no deve ser o ponto de partida do nosso acordo perguntar a ns mesmosqual o maior bem que podemos apontar na organizao de uma cidade, aquele que olegislador deve ter em vista ao promulgar as leis, e qual o maior mal? E depois, emseguida, inquirir se as instituies que descrevemos nos ajustam s pegadas do bem, enos desviam das do mal?

    O que Plato prope aqui, em outras palavras, que h certas coisas que so efeitos e

    outras que so causas ou parte das causas, e que, muitas vezes, certas causas so condies de

    possibilidade de certos efeitos. Se se descreve algo como bem e se relaciona esse bem como

    tendo sido promovido maximamente ou unicamente por certas instituies, ento essas

    instituies podem ser chanceladas como causas necessrias ou parte delas na promoo desses

    bens.

    Assim, certos bens que se encontram na cidade construda no lgos, como, por exemplo,

    as virtudes que se identificam nela e um certo modo de vida que considerado melhor, so vistos

    por Scrates como efeitos das instituies de que foi provida a cidade, as quais, ento, podem ser

    consideradas sua causa, ou parte necessria da causa.

    Tudo o que se diz das virtudes, das qualidades que tem a cidade e do modo de vida,

    descritos como presentes nela, deve suscitar, portanto, a pergunta sobre quais instituies tornam

    cada uma dessas coisas possveis.

    Acredita-se que a considerao dessa premissa metodolgica aliada aos outros dois

    mtodos antes mencionados possam levar a bom termo a proposta de fundamentar a tese segundoa qual a educao concebida para a cidade construda com o lgos, na Repblica, se estende a

    todas as classes descritas nessa cidade.

    Um outro aspecto que, se entende, deve ser considerado e deriva em certa medida dos

    mtodos de leitura sugeridos por Kahn e Roochnik tomados em conjunto, a considerao de

    que, assim como os dilogos anteriores Repblica antecipam questes que so melhor

    formuladas e esclarecidas nessa obra, podendo ela, inclusive, apontar para a soluo certas

    aporias de uma obra anterior, o mesmo pode se dar com relao a obras posteriores Repblica,que, sob certos aspectos, poderiam lanar luz sobre temas tratados com certa obscuridade e

    mesmo apontar a soluo de certas aporias, remetendo o leitor da Repblicanovamente obra,

    para, sob a perspectiva de uma nova hiptese, procurar enxergar l a maneira de solucionar a

    aporia.

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    No Laques, por exemplo, tenta-se sem sucesso definir o que a coragem e o dilogo

    termina com os interlocutores em aporia. Deve-se notar, entretanto, que se chegou a afirmar

    concepes de coragem que so aquelas dadas como boas na Repblica. Nesse sentido, o fato de

    no ter sido esclarecida a aporia do Laques no mbito desse dilogo, no significa que asconcepes a avanadas sobre a coragem sejam falsas ou indefensveis. A Repblica, ao retomar

    essas concepes como boas pode representar, assim, tambm um convite a uma volta aoLaques

    para que se examine qual foi a causa da aporia l. Se essa tese se sustenta, ento, atravs dos

    dilogos, Plato convida seus leitores a se converterem em dialticos e a resolverem, eles

    prprios, as aporias deixadas sem soluo.

    Se Plato aquele que, mais do que qualquer outro, precisa defender a proposta de vida

    voltada para a filosofia e para o exame dialtico das questes, posta na boca de seu mestre

    Scrates na Apologia, ento faz parte de seu projeto, como mostra Kahn, ir paulatinamente

    preparando os leitores para compreenderem tudo o que precisam compreender sobre a filosofia de

    que fala.

    Deve-se, portanto, considerar que o tipo de exerccio dialtico que Plato impe aos seus

    leitores no se resume a acompanhar as discusses, s vezes intrincadas e difceis, no momento

    mesmo em que se l o dilogo, mas um exerccio que se continua no prprio tratamento

    dialtico das questes propostas, o qual exige uma viso abrangente para que as possveis aporias

    sejam superadas.

    Tendo em conta que a questo de a quem se destina a educao primria tenha sido

    considerada difcil pelo prprio Aristteles15e por outros leitores16e que no se pode dar como

    facilmente solucionvel, o que se quer aqui, em vista do que se disse sobre a possibilidade de

    considerar que um dilogo posterior lance luz sobre questes aporticas de dilogos anteriores,

    que se coteje a Repblica com as Leis, dilogo considerado mais tardio, e no qual se sugere a

    considerao das instituies de uma segunda melhor cidade em comparao com uma

    hipottica melhor cidade, como chamada a cidade construda no lgos, naRepblica.Kahn admite que no h como provar a tese de que Plato, ao compor o Laques, por

    exemplo, j tinha em vista a Repblica e as solues que conceberia para as aporias que

    15 Na Poltica, Aristteles entende que no questo fcil determinar como ser regulada a vida da classe dosartesos. Cf. ARISTTELES,Poltica, 1264a.16Neste grupo, poder-se-iam elencar Guthrie e Mayhew. Cf. GUTHRIE, W. K. C. A History or Greek Philosophy.Cambridge: Cambridge University Press, 1962. v. 5. e MAYHEW, Robert. Aristotles Criticism of PlatosRepublic.

    New York: Rowman & Littlefield Publishers, 1997.

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    aparecem naquele dilogo, mas entende, no obstante, que se deve aceitar a tese de que, no

    mnimo, aRepblicafoi escrita remetendo-se aoLaques.

    Da mesma forma, no se defender que Plato escreveu a Repblicatendo em vista que

    mais tarde escreveria uma outra obra, que viria a ser as Leis, na qual lanaria luz sobre as aporiasdaRepblica, e convidaria seus leitores a uma releitura. Porm, pretende-se que no se objete que

    se considere que, quando escreveu as Leis, Plato tinha em mente tambm as propostas feitas na

    Repblicae que estava pondo em curso uma discusso que remetesse a ela de algum modo.

    Poder-se-ia dizer que chamar a ateno para asLeispode representar um risco para a tese

    defendida aqui, pois, se l Plato explcito ao propor um modelo comum de educao 17, isso

    poderia significar no um esclarecimento sobre um ponto deixado propositalmente obscuro na

    Repblicae um convite a uma releitura desta, mas, antes, uma mudana em relao tese que,

    supostamente, defendeu l, segundo a qual, a educao primria se destina apenas aos guardies.

    claro que uma objeo assim ter sempre de ser levada em considerao e por isso que

    no ser o caminho seguido aqui o de aceitar que se leia a Repblicasomenteem vista do que se

    diz nasLeis.

    Entende-se que s ser suficiente uma interpretao da Repblica que se sustente por si

    prpria, e isso o que se pretende. No obstante, como tambm no se pode descartar totalmente

    a hiptese de que o velho Plato tenha, em sua ltima obra, e no pela primeira vez, fornecido

    indcios de como se deveria ler uma obra anterior, adotar-se- esse cotejo com as Leisatravs de

    referncias nas notas, exceto em algum caso especfico em que a citao de algum trecho da obra

    no corpo do texto se mostrar imprescindvel, mesmo que como mera indicao de que uma certa

    posio no era absurda para Plato, ainda que na velhice.

    Sendo Reeve o principal comentador da Repblicaque se ocupa em demonstrar que no

    se sustenta a tese de que se deve considerar que a educao primria se estende a todas as classes

    na cidade construda como o lgos, na Repblica, cabe apresentar seus argumentos para

    estabelecer como meta mostrar que a interpretao da Repblica que se far aqui responde atodos eles e possibilita entender como a educao primria pode se estender a todas as classes.

    Em seu comentrio Repblica18, Reeveafirma que a construo com o lgosda cidade

    idealizada na obra como a melhor cidade e mais feliz se d em trs estgios. Sobre eles, afirma

    17Cf.Leis, 665c, 770d, 804a.18REEVE, 1988.

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    que cada um dos quais descreve um diferente modelo ou cidade paradigmtica (479d9e1): a

    primeira cidade (369a5-372d3), a segunda (372e-471c3) e a terceira (473b4-544b3)19.

    Segundo a interpretao de Reeve, quando Scrates procura mostrar que a segunda cidade

    realizvel (473a1-b2), na verdade est mostrando que a terceira cidade que umapossibilidade real, sendo uma verso modificada, em certos aspectos, da segunda20.

    Assim, a segunda cidade no seria, por si, uma possibilidade real, mas uma parte ou sub-

    modelo da terceira cidade, esta, sim, possvel. Se assim, ento mostrar que a terceira cidade

    possvel, significaria mostrar que a segunda, sendo parte daquela tambm pode existir, e as trs

    pleispodem ser consideradas como constituindo uma srie ordenada de boas cidades, cada uma

    das quais, quando modificada, uma componente da sua sucessora, sendo unicamente o terceiro,

    que o membro final, por si, uma possibilidade real.21

    A concluso que Reeve deseja sustentar com sua anlise da Repblica a de que cada

    cidade torna possvel a felicidade de cada uma das classes, sendo a primeira cidade aquela na

    qual so felizes os amantes das riquezas (classe dos artesos, que chama de produtores ou money

    lovers); a segunda, aquela em que so felizes os amantes das honras (a classe dos guardies-

    auxiliares); e a terceira, aquela na qual so felizes os amantes da sabedoria (a classe dos

    guardies-governantes).

    Sobre elas, diz Reeve:

    A Primeira Plis a kallpolis para os amantes das riquezas. Mas essa no umapossibilidade real porque no inclui nada que contrabalance os efeitos desestabilizadoresdos prazeres desnecessrios e da ambio os quais traz luz; para isso, requerem-seguardies. Quando estes so includos, o resultado a Segunda Plis, cidade a qualcontm as instituies polticas necessrias para produzi-los. A Segunda Plis akallpolispara amantes da honra e amantes das riquezas. Mas no uma possibilidadereal porque no prov nada para contrabalanar os efeitos desestabilizantes das falsascrenas; para isso, requerem-se reis filsofos. Quando estes so includos, o resultado aterceira cidade, a qual contm as instituies polticas necessrias para produzi-los. ATerceiraPlis, que uma possibilidade real, a kallpolispara os amantes das riquezas,os das honras e os filsofos. A primeira cidade , para usar de um hegelianismo

    conveniente, superada mas preservada na Segunda, e a Segunda, superada maspreservada na Terceira22.

    19REEVE, 1988, p.170. Traduo prpria, como todas as referentes ao texto de Reeve.20REEVE, 1988, p. 170.21REEVE, 1988, p.171.22REEVE, 1988, p. 171-172.

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    A forma como Reeve interpreta a relao entre essas trs cidades implica que o que se diz

    sobre a segunda cidade, principalmente sobre o modo de vida e a educao, afeta apenas

    indiretamente a primeira cidade e o seu modo de vida caracterstico, medida que explicita a

    existncia de instituies sem as quais aquela primeira cidade no subsistiria com a ordemnecessria para fazer seus habitantes felizes. Assim, a primeira cidade uma parte da segunda,

    aquela na qual os amantes das riquezas so felizes. Da mesma forma, a segunda cidade uma

    parte da terceira, aquela na qual os amantes de honras, classe que associa com os auxiliares

    (epkouroie oficiais), so felizes, sendo a terceira cidade aquela na qual os amantes da sabedoria

    (reis-filsofos) so felizes. A felicidade de todos possvel porque em cada cidade h as

    instituies necessrias para tornar feliz uma das classes.

    Com essa interpretao, Reeve parece manter-se fiel a uma premissa fundamental da

    Repblica: aquela segundo a qual a cidade fundada no para tornar uma classe especfica

    especialmente feliz (diapherntos edaimon), mas, tanto quanto possvel, a cidade inteira23.

    Porm, uma objeo que se pode fazer a essa interpretao que ela s preserva a

    premissa segundo a qual a cidade feliz na sua totalidade custa de tomar a palavra felicidade

    como correlata satisfao de um tipo especfico de desejo. Assim, se o que caracteriza a classe

    dos artesos o amor ao dinheiro (aqui significando, como observa Reeve, os bens sensveis),

    ento ter esses desejos pelos bens sensveis satisfeitos o que basta para torn-la feliz. Da mesma

    forma, se o que caracteriza a classe auxiliar o amor honra, receber essas honras o que basta

    para torn-la feliz e, se o que caracteriza os governantes o amor sabedoria, ter o acesso a esse

    conhecimento viabilizado o que basta para torn-los felizes.

    Por outro lado, aceitar essa interpretao seria distanciar a noo de felicidade de uma que

    parece muito mais cara Repblica e muito mais apropriada para ser elemento unificador do

    mltiplo quando se procura defini-la como estando presente em todas as classes: o euprtteine a

    boa vida decorrentes da noo de justia.

    Se se entende a cidade proposta por Reeve, ento vemos claramente que os artesos estosujeitos ambio (pleonexa), e o nico elemento que impediria a desordem decorrente de sua

    manifestao na primeira cidade so as instituies da segunda cidade e a vigilncia dos

    auxiliares, que devem impor de fora o modo de vida dos artesos.

    23Cf. PLATO.Repblica, 420b.

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    Embora seja possvel supor um tal ordenamento social, no qual a coero ter de ter um

    papel relevante, ele parece distanciar enormemente o modo de vida (e a consequente felicidade)

    dos artesos, de um lado, e o dos auxiliares e dos governantes, de outro. Assim, o modelo de

    felicidade para os artesos, na cidade, proposto por Reeve, ficaria assim: a felicidade dos artesosconsiste em ter os seus desejos por bens sensveis atendidos e uma certa ordenao na vida

    devido coero externa dos guardies. Exatamente para marcar essa distncia entre os modos de

    vida de uns e de outros, necessrio a Reeve defender que a educao primria no se destina

    classe dos artesos, mas apenas dos guardies.

    Para Reeve, a educao primria introduzida como parte de um conjunto unificado de

    ordenamentos sociais divisados para tornar guardies as crianas que j possuem os dons naturais

    requeridos em um soldado-policial24.

    O autor em questo argumenta que:

    (1) como a classe produtiva est excluda do programa de eugenia e do modo de vida,que fazem parte do mesmo conjunto de ordenamentos sociais, e como, em geral,

    procriam de acordo com seu tipo (415a7-8), ento pouqussimas crianas nascidas naclasse dos produtores tero os dons naturais necessrios que so pr-requisitos para aeducao primria25.

    Isso o leva a concluir que (...) a educao primria destina-se a futuros soldados (398b3-

    4, 386b10-c1) ou guardies (383c3-4, 387c3-5 401b8-c1, 402c1-c2), no a futuros produtores26.Reeve elenca ento uma srie de argumentos que visam sustentar essa concluso; seguem

    as passagens nas quais se fundamentam:

    (2) Nunca dito explicitamente que a classe dos produtores receber educao primriae, embora sejam especificados em detalhe vrios testes pelos quais reis-filsofos seroseparados dos guardies em geral, que completaram a educao primria, nenhum teste

    pelo qual so separados guardies de um grupo maior de pessoas que receberameducao primria jamais mencionado. Dada a forma explcita como a Repblica trataas questes educacionais, especialmente as inovadoras, como uma dessa espcie, isso

    uma forte evidncia de que a existncia desse grupo maior no se sustenta. Os testes sodesnecessrios porque somente filhos de guardies excepcionais (460c1-5) e aquelesraros filhos de produtores com ouro ou prata na sua natureza (415c3-5) recebemeducao primria27.

    24REEVE, 1988, p. 186.25REEVE, 1988, p. 186.26REEVE, 1988, p. 186.27REEVE, 1988, p. 186-187.

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    Na sequncia:

    (3) Cada elemento da educao primria justificado em referncia a algum trao decarter que um bom soldado-policial, motivado por um desejo de honra, deve ter. Mas

    estes no so os traos requeridos por um produtor eficiente ao buscar o lucro.Consequentemente, se a educao primria pretendida para os produtores, no se provo tipo de rationale para faz-lo que cuidadosamente prevista no caso dos prpriosguardies. (383c3-4, 386b10-c1, 387c3-5, 387e9-388a3, 394e1-395d1, 398e6-7, 401b1-d3)28.

    (4) Alguns dos argumentos pelos quais o curriculumda educao primria justificadomostram que ela totalmente inapropriada para futuros produtores. Por exemplo, oargumento dado em favor de se restringirem as histrias que compem a educao

    primria quelas que requerem que os educandos imitem ou personifiquem apenasgentlemen(kalo kagatho), no ferreiros ou outros artesos, aquele segundo o qual oprincpio da especializao aplica-se imitao tanto quanto s reais artesanias, e que

    uma pessoa s deve imitar o tipo de pessoa que pretende ser (394e1-395b4). Nessecontexto, futuros produtores deveriam fazer os papis de sapateiros ou carpinteiros emhistrias sobre trabalhadores braais e produtores obedientes, no os papis de Aquiles,Ajax ou Odisseus em histrias sobre bravos e corajosos guerreiros29.

    Ainda enumerando os argumentos:

    (5) No Mito dos Metais, no livro III, est claramente implicado que, exceto em umnmero exguo de casos, as crianas de produtores recebem uma educaocompletamente diferente daquela das crianas dos governantes ou guardies. Se umfilho deles [dos governantes] acaso nascer com uma mistura de bronze ou ferro, de modo

    algum se apiedem dele, mas honrem sua natureza apropriadamente e os lancem fora paraa classe dos trabalhadores e dos agricultores, e, novamente, se desses um filho acasonascer com uma mistura de ouro ou prata, eles o honraro e o traro para unirem-se aosgovernantes e aos guardies, pois h um orculo segundo o qual a plisse arruinar sealgum dia tiver um guardio de bronze ou ferro. (415b6-c6; cf. 423c6-d6).Claramenteno haveria sentido em enviar uma criana com ferro ou bronze em sua alma paracrescer entre agricultores e artesos se ela fosse receber l a mesma educao e asmesmas honras que a prole de um guardio30.

    (6) Os efeitos da educao primria so, s vezes, explicitamente contrastados com osefeitos do tipo de educao dado aos produtores: Na plis que estamos fundando [aSegunda Cidade], quem pensas que se tornar um homem melhor: o guardio que recebea educao que descrevemos [educao primria] ou os sapateiros que so educados naarte de fazer sapatos? (456d8-10; contraste similar sugerido em 405a6-b4, 522a2-b7).Isso no faria sentido se os produtores realmente recebessem a educao primria31.

    Para concluir a enumerao:

    28REEVE, 1988, p. 187.29REEVE, 1988, p. 187.30REEVE, 1988, p. 187.31REEVE, 1988, p. 187-188.

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    (7) Ningum ser educado em msica at que conhea quais os modos e as qualidadesda temperana, da coragem e de outras semelhantes (402b5-c8). Mas ningum podeconhec-los at que tenha acesso aos nmeros de que essas coisas so imagens. Amantesdas riquezas, entretanto, s tm acesso a qualidades e modos. Segue que amantes dasriquezas e, consequentemente, produtores no podem ser educados em msica32.

    (8) Finalmente, no fim da discusso sobre a educao primria, somos informados deque a ginstica no visa primeiramente ao corpo, como a maioria das pessoas pensa, masque tanto ela quanto a msica visam a partes da alma (410b10-c3): Parece que o deusdeu essas duas artes, msica e ginstica, para os homens para essas duas coisas, no paraa alma e o corpo, mas para a aspirao [aspiration] e a razo, para que estas estejam emharmonia uma com a outra, cada qual sendo afinada no grau apropriado de tenso erelaxamento. (411e4-412a2, cf. 441c8-442a2). Mas, se msica e ginstica visam aspirao e razo, no aos apetites e ao corpo, ento, dada a estrita analogia entrepsykheplis(435a5-b2), deveriam ser direcionadas a guardies e a governantes, no aprodutores33.

    Da evidncia que sugere que no se pretende dar a educao primria aos produtores,

    Reeve volta-se para as evidncias que apontariam o contrrio. Reconhece que muitas

    observaes, especialmente nos livros II e III, sugerem fortemente que pelo menos uma parte da

    educao primria dirigida a toda a cidade, e no simplesmente a futuros guardies e

    governantes34.

    O autor cita como exemplos o fato de que as histrias em que os deuses aparecem

    maltratando seus pais no devem ser contadas na cidade (378b1-6), assim como a proibio de

    que se diga que os deuses so causa de mal, caso se deseje que a cidade seja bem governada, e

    que qualquer pessoa, jovem ou velha, oua tais coisas sendo ditas seja em verso ou prosa (380b6-

    c3)35.

    Soma ainda a esses exemplos a prescrio de que as mes no aterrorizem as criancinhas

    com histrias errneas nas quais acreditem (381e1-6) e a instruo para que todos os artesos

    sejam proibidos de representar, seja em imagens ou em edifcios ou em qualquer outro trabalho

    (artefato), caracteres que sejam viciosos, maus, sem comedimento ou sem graa (401b3-5)36.

    32REEVE, 1988, p. 188.33REEVE, 1988, p. 188.34REEVE, 1988, p. 188.35REEVE, 1988, p. 188.36REEVE, 1988, p. 188.

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    Segundo Reeve, as medidas de censura contidas nas passagens citadas e em outras de teor

    anlogo so justificadas por caractersticas especficas requeridas em bons guardies, e no por

    caractersticas requeridas em bons cidados em geral.

    Para ele, os artesos so proibidos de representar o que vicioso no porque taisrepresentaes tendem a corromper todos os jovens membros da plis, mas somente para que os

    guardies no sejam criados expostos a essas imagens com seus efeitos deletrios.

    Assim, para Revee, deve-se concluir que as medidas de censura em questo so

    impingidas aos produtores, no como so aos guardies, para moldar sua alma. Para ele, a

    psykhdos guardies que est em foco, e no a dos produtores, e j que o objetivo da Educao

    Platnica remodelar ou dar a volta na alma de seu receptor, conclui-se que, mesmo que

    algumas partes da educao primria sejam dirigidas a futuros produtores tanto quanto a futuros

    governantes e guardies, no so direcionadas queles com o fim de educ-los, o que seria outro

    jeito de dizer que, com a educao primria, no se tenciona educarprodutores37.

    Para Reeve, a adoo do princpio de especializao esgota a inovao platnica no que

    diz respeito educao dos produtores, e os futuros produtores na kallpolis so educados e

    treinados atravs do aprendizado tradicional em uma artesania.

    Ainda para esse autor, devido estrutura de composio da Repblica e da sucesso de

    cidades a delineada, h razo para crer que qualquer discusso formal sobre a educao dos

    produtores teria de aparecer na descrio da primeira cidade, como se d com a descrio da

    educao dos guardies na segunda cidade e dos governantes na terceira. Segundo ele, essa

    discusso formal no ocorre porque envolve apenas o treinamento tradicional nas artesanias38.

    Reeve cita ainda passagens que seriam difceis de conciliar com a tese da educao

    primria comum, como aquela j abordada em seu argumento de nmero (6) contra a referida

    tese. Acredita que aquela passagem sugere que o treinamento numa artesania o equivalente para

    algum da classe dos produtores ao que a educao primria para os guardies. Em apoio a essa

    concluso, cita ainda outra passagem:

    E alm de observarmos essas coisas, eles [os guardies nefitos] devem assistir e ajudarem tudo o que diz respeito guerra e ajudar seus pais e mes. Ou nunca notastes como

    37REEVE, 1988, p. 188-189.38REEVE, 1988, p. 189.

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    com as artesanias, como, por exemplo, os filhos de oleiros observam, como ajudantes,antes de realmente pr as mos no barro? (467a1-5)39.

    Reeve conclui sua anlise sobre os produtores assim:

    A situao dos produtores na Segunda Cidade parece, ento, ser como segue: Eles sogovernados por pessoas que tm uma estvel disposio de fazer o que melhor para acidade. Eles so policiados e protegidos por pessoas que so corajosas, honestas,moderadas, leais e confiavelmente gentis com os amigos e duras com os inimigos. Enenhum desses grupos compete com eles pelas riquezas, que o que eles mais desejam;guardies sos amantes de honras, no amantes de riquezas. Ademais, os produtoresrecebem apenas o treinamento e a educao requeridos para, em primeiro lugar, moderarseus apetites desnecessrios de modo que no ameacem a estabilidade da Kallpolis e,com isso, sua prpria felicidade, no longo prazo; em segundo lugar, para garantir a timasatisfao de seus apetites necessrios; e em terceiro lugar, para garantir que nada emseu modo de vida corrompa os guardies40.

    Uma to extensiva rejeio da tese da educao primria comum a todas as classes, como

    a de Reeve, se funda em uma interpretao equivocada da Repblica, a qual parte de certas

    premissas da obra, como (1) o princpio de especializao, que afirma que cada um deve

    executar uma tarefa na cidade; (2) a analogia entre cidade e alma; e (3) a tese de que os homens

    so diferentes por natureza.

    Reeve as toma [as premissas] como absolutas, sem levar em conta o carter dialtico da

    obra, segundo o qual o todo esclarece o significado das partes, e o que se diz a uma certa altura

    do texto enriquece, esclarece e at modifica algo que se disse antes.

    Uma das coisas que se pretende mostrar que as objees de Reeve tese da educao

    comum podem ser todas refutadas tendo em vista uma interpretao abrangente e dialtica da

    Repblica.

    Para sustentar a interpretao que se prope aqui, segundo a qual a educao primria

    concebida naRepblicase estende a todos os cidados, se comear por mostrar que a educao

    da maioria um aspecto que no poderia ser negligenciado na Repblica, na qual Plato, sem

    qualquer limite, pode construir com o lgosuma cidade que seja a melhor possvel e que tem o

    papel de ser uma proposta de filosofia poltica, que, por definio, deve considerar os

    fundamentos mesmos da boa vida social.

    39REEVE, 1988, p. 190.40REEVE, 1988, p. 190-191.

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    Essa proposta de Plato vem luz em um momento de profunda crise dos valores, a qual

    amplamente abordada nos dilogos; valores estes, que, em ltima instncia, esto na raiz das

    escolhas e do modo de vida dos homens. Que ele opte, na Repblica, por associar,

    inequivocamente, essa crise s opinies da maioria, um aspecto que exige ateno do leitor eprecisa ser levado em conta ao se sugerir uma interpretao da obra que contm uma vigorosa

    resposta de Plato a essa crise.

    Procurar-se- mostrar que a construo dessa resposta comea j naApologia de Scrates,

    na qual Plato no s denuncia a crise como anuncia, usando como porta voz seu mestre,

    Scrates41, uma nova concepo de virtude, entendida como sopha; alm disso, aponta a

    filosofia e o exame como uma possibilidade a ser reconhecida e mobilizada pelos homens para

    levarem uma vida melhor, possibilidade essa sintetizada na frmula [...] da virtude que provm

    a riqueza e os bens humanos em universal, assim pblicos como particulares.

    (

    )42.

    Em seguida, analisar-se- o dilogo Laques tendo em vista responder a duas perguntas

    suscitadas pela Apologia, mas no respondidas: em que consiste o exame socrtico e o que

    entende Scrates por sopha. Defender-se- que o exame socrtico consiste no exame dialtico

    que visa fundamentar as crenas ou opinies que dirigem as escolhas e o modo de vida dos

    homens e que asopha, entendida como virtude, seria esse conhecimento fundamentado.

    Continuando a anlise, chegar-se- Repblica e considerar-se- que esta a obra na qual

    reside a resposta a uma ltima pergunta levantada, e no respondida pela Apologia: por que a

    filosofia necessria?. Procurar-se- mostrar qual a importncia da cena dramtica para a

    compreenso da crise de valores e que essa crise retratada em seu pice nos discursos de

    Glucon e Adimanto, embora j viesse sendo antes, paulatinamente, descortinada para o leitor.

    Nesse momento, procurar-se- chamar a ateno para o papel da opinio dos ho pollo(a

    maioria) como raiz da crise de valores e para o fato de que a necessidade de retificao de sua

    41Entenda-se qualquer referncia feita aqui a Scrates como dizendo respeito ao personagem dos dilogos de Plato,e no ao Scrates histrico.42PLATO.Apologia, 30b4. Para a Apologia, utilizou-se a traduo do texto para o portugus, de NUNES, CarlosAlberto (Trad.). O Banquete, Apologia de Scrates. 2. ed. Belm: UFPA, 2001. Para o texto grego, utilizou-seCROISET, Maurice (d.). Hippias Mineur, Alcibiade, Apologie de Socrate, Euthyphron, Criton. Paris: Les BellesLettres, 1953. (Collection des Universits de France, Platon, t. 1).

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    alma no poderia passar despercebida em uma obra em que a proposta poltica passa pela

    retificao da alma dos homens como condio para a boa vida privada e pblica.

    Na terceira seo, descrever-se- brevemente a construo com o lgos da cidade

    concebida naRepblicae a educao a proposta com o objetivo de fornecer a base sobre a qualse possa discutir, na quarta seo, como devem ser entendidas as virtudes tanto na cidade como

    na alma dos homens.

    Na quarta seo, procurar-se- mostrar como Socrtes chega a identificar na cidade que

    construiu com o lgos as virtudes que entendia como necessrias para que ela fosse bem

    construda. Considerar-se- como a identificao das virtudes na cidade constitui um problema

    para Scrates e seus interlocutores, tendo em vista que, no momento em que olham para a

    cidade procurando identific-las, nem tudo de que elas dependem, como condio de

    possibilidade, est claramente estabelecido a no ser que se considere que houve certas

    antecipaes.

    Defender-se- que, especialmente no caso da temperana e da justia, sua identificao na

    cidade problemtica e exige que se avance no exame dos elementos constituintes da alma

    humana e em como se relacionam, o que obrigar o leitor a identificar como condio necessria

    da temperana e da justia, como foi identificada na cidade, a educao primria comum.

    Pretende-se mostrar ainda como raciocnio semelhante se aplica coragem, mesmo que,

    como virtude plenamente desenvolvida, no esteja presente em todas as classes.

    Na quinta e ltima seo, voltar-se- educao proposta, tendo j em vista a

    compreenso das virtudes [na cidade] e dos elementos constituintes da alma, bem como de suas

    relaes; procurar-se-, em uma anlise mais cuidadosa da paidea brevemente descrita na

    terceira seo, entender suas diversas prescries como diretamente relacionadas no s com as

    virtudes descritas mas tambm com o modo de vida que se diz que ser aquele da cidade.

    Defender-se- que a educao primria comum uma condio necessria para que se

    possa afirmar o que se diz sobre as virtudes e o modo de vida da cidade sem incorrer em graves enumerosas incoerncias.

    Destacar-se- ainda a importncia de que se considere a educao primria comum para

    que se preservem duas premissas fundamentais da Repblica: a de que a cidade uma s e a de

    que nela todos so felizes.

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    2FIL OSOFIA E CRISE

    2.1A crise de valores e a nova concepo de virtude na Apologia de Scrates

    A Repblica uma obra que concorre para que se responda a uma pergunta que pode

    intrigar os leitores de Plato desde aApologia:por que a filosofia necessria?

    Essa pergunta pode surgir da natureza mesma do argumento de defesa de Scrates, na

    Apologia, no qual ele admite uma prtica que reconhece ter despertado dio em muitos dos seus

    concidados43, o que lhe rendeu inimizades que foram fonte de todo tipo de calnia 44, inclusive a

    de corromper os jovens, e acabou sendo uma das acusaes que o levaram ao tribunal45. Essa

    prtica, Scrates muitas vezes identifica com o exame que faz dos atenienses e de si mesmo

    (exetzonta emautn ka tos llous46) e tambm com a prtica da filosofia.

    Por que Scrates insistiu nesse exame e nessa prtica que tanto dio e calnias

    despertavam, alm de ocup-lo a ponto de descurar de seus prprios assuntos 47? A resposta mais

    imediata a que Scrates repete vrias vezes: ele o fez no cumprimento de uma misso divina 48.

    Scrates explica a origem de sua prtica e de sua misso relatando que, certa vez, seu

    amigo Querefonte foi ao orculo de Delfos e perguntou se algum era mais sbio do que ele

    [Scrates]. Depois de ouvir que fora negativa a resposta da Ptia, intrigado, por no se considerar

    sbio, Scrates passou a investigar o sentido do orculo. A maneira pela qual o fez foi procurar os

    homens de Atenas reputados sbios e submet-los a exame para verificar se possuam a

    sabedoria. Se encontrasse algum que a tivesse, por saber que ele mesmo no a possua, estaria

    refutando o orculo.

    Scrates comeou por um poltico, mas, ao examin-lo (diaskopn49), pareceu-lhe que

    passava por sbio para muita gente e principalmente para ele mesmo, quando, em verdade,

    43PLATO.Apologia, 21a4, 21e2, 24a8.44PLATO.Apologia, 23a1.45PLATO.Apologia, 23c14.46PLATO.Apologia, 28e5-6.47PLATO.Apologia, 23b9.48PLATO.Apologia, 21e5 - ; 23b7 - ; 23c1 -

    28e4 - ; 29d3-4 - 30a5 -; 30e6 - 33c4-5

    49PLATO.Apologia, 21c3.

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    estava longe de s-lo (

    )50.

    Ao mostrar a tal homem que ele se considerava sbio sem o ser, Scrates admite ter

    atiado seu dio e de outros presentes contra si51. Essa prtica repetida com vrios outros

    atenienses considerados sbios resultou em cada vez mais dio, tanto mais quanto essa prtica era

    reproduzida pelos jovens de famlias abastadas que gostavam de v-lo a examinar os outros.

    Assim, tambm aqueles, examinados, engrossavam as fileiras dos que o odiavam, por sentirem-se

    atingidos, e chamavam-no de corruptor da juventude por ter posto os jovens que o imitavam

    nessa prtica52.

    da repetio da prtica, sempre com os mesmos resultados, que Scrates acaba por

    chegar ao sentido do orculo:

    53[...] a sabedoria humana vale muito pouco e nada, parecendo que no se referia

    particularmente a Scrates e que se serviu do meu nome apenas como exemplo, como sedissesse: Homens, o mais sbio dentre vs como Scrates que reconhece no valer,realmente, nada no terreno da sabedoria.

    A afirmao de que sua prtica em Atenas uma obrigao imposta pela divindade por

    meio de orculos e sonhos54pode levar concluso de que houve outros episdios, alm daquele

    relacionado ida de Querefonte a Delfos, que foram fundamentais para que Scrates tenha

    chegado a interpretar o orculo como a imposio de uma misso divina.

    Porm, a interpretao de que sua prtica constitua-se em uma misso desse tipo parece

    decorrer muito mais do fato de Scrates ter entendido que produzia um bem ao encaminhar os

    atenienses para a virtude e para o cuidado com a alma

    55

    .

    50PLATO.Apologia, 21c6-7.51PLATO.Apologia, 21d5.52PLATO.Apologia, 23c3.53PLATO.Apologia, 23a7-b4.54PLATO.Apologia, 33c6.55PLATO.Apologia, 30a7.

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    Se tomarmos a tese socrtica daRepblica, de que os deuses so causa de bens e nunca de

    males56, fica mais clara a interpretao socrtica do orculo: porque entende que a prtica que

    iniciou leva a um bem e reconhece que essa prtica teve incio por causa de uma interveno

    divina, que pde associar uma inteno a essa interveno: a de dar Scrates cidade como quemd um bem. Resta examinar por que Scrates considera que o resultado de sua prtica produz um

    bem para os atenienses.

    Uma questo que se reveste de grande importncia para o esclarecimento do sentido da

    misso socrtica o da relao entre virtude57e sabedoria, naApologia. Embora reconhea que a

    concepo socrtica de virtude inclui um elemento cognitivo por implicar a busca de inteligncia

    prtica ou compreenso (phronseos58, phronimtatos59), Charles Kahn sustenta que nada na

    Apologia sugere que a virtude simplesmente conhecimento ou idntica sabedoria. Kahn

    baseia-se no fato de que Scrates nega a posse de genuna sabedoria ou conhecimento do que

    mais importante, mas nunca nega que tenha sabedoria prtica (phrnesis) e excelncia moral

    (aret)60.

    Segundo Kahn, o exame referido na Apologiatem um resultado, por um lado, negativo e,

    por outro, positivo, uma vez que, se, de um lado, leva o interlocutor a reconhecer a sua prpria

    inadequao e a necessidade de cuidar de si (epimelestai heauto) ou de cuidar da alma

    (psykh), de outro, um chamado a um autoexame e a um autoaprimoramento61.

    Kahn entende que o cuidado com a alma implica a recusa de praticar qualquer ato injusto

    ou vergonhoso, recusa esta que pode encontrar na vida de Scrates e em episdios narrados na

    prpriaApologiaexemplos ilustrativos da adeso a certos princpios normativos segundo os quais

    56PLATO.Repblica, 380c10. Utilizou-se a traduo de PEREIRA, Maria Helena da Rocha (Trad.). A Repblica.5. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1987; para o texto grego, SHOREY, Paul (Ed.). The Republic. London: HarvardUniversity Press, 1994. 2 v. (Loeb Classical Library).57Usar-se- aqui a palavra virtude para traduzir aretsem, no entanto, deixar de reconhecer que a aretenvolveexcelncia e no tem uma conotao exclusivamente moral. Ademais, o sentido em que se interpreta a virtude naApologia, como sendo a sabedoria (sopha), no exclui que haja outras virtudes, entendendo-se a sopha, contudo,como aquela virtude que o elemento unificador e a condio de possibilidade de que haja excelncia para umhomem. Entende-se essa virtude mxima como aquela que torna uma coisa mais capaz de realizar bem seu rgon

    prprio ou a nica coisa capaz de realiz-lo. Cf. PLATO.Repblica, 352e ss.58PLATO.Apologia, 29e1.59PLATO.Apologia, 36c7.60 KAHN, Charles H. Plato and the Socratic Dialogue: The Philosophical Use of a Literary Form. Cambridge:Cambridge University Press, 1992. Cf. p. 90. Traduo prpria.61KAHN, 1992, p. 90.

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    Scrates testa a si mesmo e aos outros62. Assim, o exame referido na Apologiapassa a ter um

    sentido muito mais moral, sem qualquer nfase no seu sentido epistmico.

    Que o exame descrito por Scrates na Apologiapossa ter o efeito moral descrito por Kahn

    inegvel, mas conferir um contedo epistmico, no sentido forte, ao exame socrtico noelimina o efeito moral do encontro com Scrates e parece ser a condio para a compreenso do

    sentido da misso socrtica.

    O que se passar a defender que Scrates aponta, sim, para uma identidade entre virtude

    e sabedoria (sopha) e que a vida de exameque inclui um elemento epistmico, no sentido forte

    , representa o cuidado com a alma.

    A comparao dos passos em que Scrates descreve o exame a que submeteu os

    atenienses reputados sbios e o passo em que, pela primeira vez, identifica a vida de exame com

    o cuidado com a alma e a virtude esclarecedora em mais de um aspecto e fundamental para

    mostrar que a identidade entre virtude e sabedoria j est indicada na Apologia.Contrafeito por

    no alcanar o sentido do orculo que o reputou como sendo o mais sbio dos homens, Scrates

    descreve sua prtica com vistas a esclarec-lo:

    63

    [...] por fim, bastante contrafeito, passei a investigar o caso por este modo: fui ter comum indivduo considerado sbio, certo de que ali ou nenhures conseguiria desmentir oorculo e declarar-lhe: este homem mais sbio do que eu; no entanto, afirmaste que euera o mais sbio dos homens. Passei, portanto, a examin-lo [diaskopn on toton].

    No h necessidade de declinar-lhe o nome; era um dos nossos polticos. Mas aoexamin-lo [skopn], atenienses, aconteceu o seguinte: no decurso de nossa conversao,

    quis parecer-me que ele passava por sbio para muita gente, mas principalmente para elemesmo, quando, em verdade, estava longe de s-lo. De seguida, procurei demonstrar-lheque ele se considerava sbio sem o ser, do que resultou atiar contra mim seu dio e demuitas das pessoas presentes.

    62KAHN, 1992, p. 91.63PLATO.Apologia, 21b8-d2.

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    Em um passo posterior, Scrates, pela primeira vez, identifica a vida de exame com o

    cuidado com a alma e a virtude. Ao explicar aos atenienses que se lhe impusessem como

    condio de absolvio abandonar sua prtica, diz Scrates:

    64

    Estimo-vos atenienses, e a todos prezo, porm sou mais obediente aos deuses do que avs, e enquanto tiver alento e capacidade, no deixarei de filosofar e de exortar aqualquer de vs que eu venha a encontrar falando-lhe na minha maneira habitual: comose d, caro amigo, que, na qualidade de cidado de Atenas, a maior e mais famosacidade, por seu poder e sabedoria, no te envergonhes de s te preocupares com dinheiroe com ganhar o mais possvel, e quanto honra e fama, prudncia e verdade, e

    maneira de aperfeioar a alma, disso no cuidas nem cogitas? E se algum de vsprotestar e me disser que cuida, no o largarei de pronto nem me afastarei dele, mas ointerrogarei [ersomai], examinarei [ekhetso] e arguirei [elnkho] a fundo. No caso

    porm, de convencer-me de que carecente de virtude, embora diga o contrrio,repreend-lo-ei por dar pouca importncia ao que de mais valor e ter em alta estima oque de nada vale. Assim procederei com quantos encontrar: moo ou velho, estrangeiroou meu concidado. Sim, primeiro com estes, por me serdes mais prximos pelo sangue. o que me ordena a divindade, bem o sabeis, estando eu convencido de que nunca nestacidade vos tocou por sorte maior bem do que o servio por mim a ela prestado.

    Algumas concluses tornam-se possveis a partir da comparao dos passos acima: em

    primeiro lugar, a de que Scrates pode estar estabelecendo uma identidade entre virtude esabedoria, pois, se a sua prtica de examinar e arguir a fundo tinha sido antes reconhecida como o

    meio para verificar a falta de sabedoria, agora tambm o meio para verificar a falta de cuidado

    com a alma e a falta de virtude.

    64PLATO.Apologia, 29d2-30a7.

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    Outra concluso que se pode extrair da comparao dos dois passos a de que deles

    decorre o reconhecimento da alma como a sede de uma capacidade que deve ser desenvolvida se

    se almeja sua virtude: a capacidade do exame que visa sabedoria.

    Note-se ainda que todos os elementos antes referidos na prtica socrtica, que verifica afalta de sabedoria dos seus interlocutores, so retomados ao referir-se ao modo como identifica a

    falta de virtude: o fato de o interlocutor dizer o contrrio, ou seja, declarar-se virtuoso; o exame

    mesmo a que submetido; a convico de que o interlocutor carente de virtude e a repreenso

    do interlocutor por Scrates, consequente descoberta da falta do que declara ter. No parece

    haver, portanto, duas prticas socrticas, uma destinada a verificar a falta de sabedoria e outra, a

    falta de virtude.

    Ademais, no mesmo passo que diz crer que foi destinado pela divindade exclusivamente

    prtica da filosofia e a examinar a si e aos outros (philosophont me den zn ka exetzonta

    emautn ka tos llous65) e que, mesmo tendo de desobedecer aos juzes que lhe impusessem

    essa condio, jamais deixaria de filosofar66. Seria necessrio esvaziar a palavra filosofia do

    seu sentido epistmico forte para entender a misso socrtica como tendo a funo de produzir

    unicamente um efeito moralizante, e no, ao mesmo tempo, o reconhecimento da falta da

    sabedoria, entendida como capacidade de resistir ao exame.

    Se esta leitura, que identifica virtude e sabedoria, se sustenta, ento j haveria aqui um

    passo fundamental, pois ela representa uma inovao quanto concepo de virtude

    historicamente associada ao poder, s posses, fama e honra 67. Por que Scrates arrisca um

    passo to largo no momento mesmo em que apresenta sua defesa no tribunal, j que, na verdade,

    toda sua defesa depende desse ponto? Se convencer os juzes de que a virtude a sabedoria e que

    sua prtica leva ao reconhecimento da sua falta por parte dos atenienses, ento estes no podem

    deixar de consider-lo um benfeitor, pois a virtude o que todos almejam, e ele s os exortaria a

    busc-la.

    65PLATO.Apologia, 28e5-6.66PLATO.Apologia, 29d5.67 No se quer dizer que, antes do Scrates dos dilogos de Plato, a virtude no fosse apangio de homensconsiderados excelentes em vrios aspectos. Porm, se se considera que a virtude estava associada excelnciaguerreira e ao bom senso em geral, que eram apangio dos bem nascidos e traziam honra e acesso ao poder, mas noenvolviam o aspecto epistmico no sentido forte que Scrates associa a ela, ento ele est inaugurando um novosentido de virtude.

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    Porm, se, de um lado, relacionar sua prtica com a promoo da virtude parece uma

    excelente estratgia de defesa, de outro, necessrio admitir que a eficcia de tal estratgia fica

    muito prejudicada pela apresentao de uma concepo nova de sabedoria e de virtude.

    E claro que haveria outras estratgias de defesa melhores como no cansam de ressaltaros crticos que veem em Scrates algum que, talvez de propsito, tenha se defendido mal para

    lanar uma mcula na democracia ateniense com sua condenao68.

    O que esses crticos parecem no perceber que, se o objetivo de Scrates com sua defesa

    era obter a absolvio, no a punha como um fim que justificasse a adoo de qualquer meio para

    obt-la, o que, alis, fica claro em mais de uma passagem69.

    A adoo dessa concepo de virtude em sua defesa parece mais corresponder verdade

    prometida por Scrates aos jurados70e compreenso do papel, da dnamise da necessidade da

    sabedoria como a entende. Essa necessidade s pode tornar-se plenamente visvel na cidade em

    um momento de decadncia e corrupo, quando se torna claro que s da virtude, entendida como

    sabedoria, podem provir os bens humanos em universal, assim pblicos como particulares 71.

    Embora se possa objetar que os indcios de identidade entre virtude e sabedoria

    apresentados at agora no estabelecem sua aceitao como necessria, preciso atentar para

    esse ltimo ponto.

    Se se entende que, na proposta poltica contida na cidade construda com o lgos, na

    Repblica, a sopha a epistmeprpria do filsofo-governante e que seu governo l apontado

    como o nico meio de fazer cessar os males tanto particulares como pblicos, no parece que

    sejam negligenciveis os passos daRepblicaem que se repete essa frmula72, e se torna bastante

    plausvel que o Scrates da Apologiaj esteja, em uma antecipao, fazendo referncia

    necessidade dessa virtude prpria do filsofo como elemento faltante e necessrio cidade.

    Que asopha, como virtude do governante, seja capaz de retificar a maioria, depender do

    alcance da interveno de que capaz a filosofia em uma cidade. Se essa interveno puder se

    estender, em uma cidade construda com o lgos, na qual no h limites para o que se possa

    68Veja-se STONE, I. F. O julgamento de Scrates. Traduo de Paulo Henriques Britto. So Paulo: Cia. das Letras,1988.69 Note-se a crtica que Scrates faz prpria conduo da democracia e a altivez com que se recusa a apelosemocionais em PLATO.Apologia, 21c-32c, 34b-35a.70PLATO.Apologia, 17b5.71Cf. PLATO.Apologia, 30b4. eRepblica, 373e.72Cf. PLATO.Repblica, 473e5, 517c5.

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    prescrever, educao (paidea) que forma todos os cidados, ento talvez seja esse o projeto

    poltico que aRepblicavem apresentar, ainda que apenas como paradigma.

    Essa necessidade da sopha, embora seja muito mais visvel na Repblica, j se encontra

    prenunciada na maneira nem um pouco sutil pela qual a Apologia apresenta um momento decorrupo e de abandono de valores. So indcios suficientes de uma crise moral as ilegalidades

    cometidas no mbito da democracia ateniense descritas por Scrates na sua prpria defesa73, mas

    no deixa de ser esclarecedor tambm nesse aspecto o ltimo trecho citado acima.

    Ora, embora geralmente, como se disse, o poder, as posses, a fama e a honra sejam

    considerados valores e bens a serem perseguidos e relacionados com a virtude, Scrates parece

    encontrar em Atenas muitos que s se preocupam com posses e riqueza, e abandonam no s o

    cuidado com a alma e com a busca da prudncia e da verdade mas at mesmo [a busca] da fama e

    da honra. Essa identificao da riqueza e daquilo que dela decorre com o bem ser ainda

    referida duas vezes74, e ter ressonncias importantes ao longo de toda a Repblica75. Esse

    abandono at mesmo de valores caros tradio, como a fama e a honra, parece mostrar que h

    uma crise de valores e que, mesmo aqueles que pareceriam mais firmes em seu lugar, no mais

    permanecem.

    O momento daApologiaparece, portanto, ser o momento, com Scrates, da descoberta de

    uma capacidade na alma, que coexiste com outras, mas que agora precisa ser revelada ao homem

    como a virtude: a capacidade do exame que visa sabedoria. A urgncia dessa revelao talvez

    resida no fato de que, nesse momento de crise de valores, o exerccio dessa capacidade tenha se

    tornado necessrio76.

    A questo que a Apologia no responde, entretanto, o que significa sabedoria para

    Scrates e a que ele se refere quando fala de filosofar e examinar. Na verdade, Scrates refere-se

    a uma prtica, o exame, que capaz de revelar a falta de sabedoria, mas nem exemplifica o que

    esse exame nem revela qual o critrio que usa para julgar essa falta e, portanto, no revela o que

    73Cf. PLATO.Apologia, 31c-32c.74Em PLATO.Apologia, 30a11 e 41e4.75Como se ter ocasio de mostrar, na Repblica, a riqueza ser considerada causa da dissenso e da corrupo dacidade e de todos os males, bem como simbolizar ainda a prevalncia dos desejos sobre qualquer outra dimenso daalma.76No se deseja insinuar que a sopha, entendida como a epistmedo filsofo, deve ser cultivada por todos, mas,apenas, que Plato cria nos seus dilogos a situao dramtica mais apropriada para estabelecer que isso mesmoque os homens em geral negligenciam e cuja essncia e utilidade no compreendem ainda deve estar presente na suavida e dirigi-la, mesmo que s em alguns plenamente presente, como efetiva epistme capaz de descobrir osfundamentos das crenas que conduzem boa vida. Cf. PLATO,Repblica505a-c eFilebo60a-67b.

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    a sabedoria. Suprir essa lacuna fundamental at mesmo para que se possa defender com

    fundamento que Scrates identifica virtude e sabedoria.

    O que se prope aqui partir de uma leitura do Laques como ilustrativa da prtica

    socrtica mencionada na Apologia e mostrar que essa leitura esclarece o sentido de sabedorianeste ltimo texto, embora deixe por explicar por que a sabedoria necessria e a misso de

    Scrates to urgente, o que, defender-se-, s plenamente compreensvel a partir dos discursos

    de Glucon e Adimanto no livro II daRepblica.

    2.2Os critrios da sophano Laquese sua importncia no contexto da crise

    A escolha doLaquesse justifica pelo fato de que trata da coragem e ainda porque nele se

    chega muito perto das definies de coragem tomadas como certas na Repblica77 e no

    Protgoras78. O motivo pelo qual se atinge uma definio prxima a essas no Laques e esta

    abandonada esclarecedor a respeito do sentido de sabedoria na Apologia,se for aceito que o

    Laquesilustra a prtica socrtica nela mencionada.

    Outra razo que o Laques indica tambm o que se chama aqui de crise de valores e o

    risco de decadncia moral que esto indicados na Apologia e que sero retomados de maneira

    acabada no livro II daRepblica, nos discursos de Glucon e Adimanto.

    Outro motivo dessa escolha o fato de o Laquespoder ser considerado como um dilogo

    de data dramtica prxima da data dramtica daRepblica79.

    A cena do Laques apresenta dois homens de famlias ilustres, Lismaco e Melsias,

    acompanhados de dois atenienses com destacado papel na poltica, no ltimo quarto do sc. V

    a.C.: Laques e Ncias.

    O encontro foi promovido por Lismaco e se d em um ginsio onde acaba de se

    apresentar Estesilau, um especialista na hoplomakha. Aps a apresentao do lutador, Lismaco

    revela a Laques e Ncias que a razo de lhes ter levado ali sua inteno de consult-los sobre o

    77PLATO.Repblica, 492b10-c3.78PLATO.Protgoras, 360d7-9. Utilizou-se a traduo de NUNES, Carlos Alberto (Trad.). Protgoras, Grgias,Fdon. 2. ed. Belm: UFPA, 2002.79Tendo Laques morrido em 418 a.C. na batalha de Mantinia e havendo referncia batalha de Dlio, ocorrida em424 a.C., como recente, seria possvel situar a data dramtica do dilogo perto de 420 a.C. Essa data aceita como

    prxima data dramtica daRepblica, e interessante notar tambm a apario de Nicrato, filho de Ncias, citadonoLaques, na cena inicial daRepblica.

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    valor da hoplomakhana educao dos jovens com vistas a torn-los homens perfeitos80. Com a

    franqueza que o caracteriza ao longo de todo o dilogo, Lismaco admite que gostaria que seus

    filhos pudessem ter a fama e a glria que mereceram, pelos seus feitos e realizaes, seus avs

    paternos de mesmo nome que eles, Tucdides e Aristides. Lismaco e Melsias temem que, pordeixarem de preocupar-se com a educao dos jovens, como julgam que seus pais fizeram com a

    sua, eles acabaro por no se tornarem perfeitos81.

    A censura de Lismaco ao seu pai e ao de Melsias baseada no fato de que eles, seus

    filhos, ficaram sem glria e fama por estarem seus pais por demais absorvidos nos negcios

    pblicos82, o que indica j uma relao entre trs geraes em que h uma perda, no que concerne

    virtude, da primeira para a segunda e o risco de perda tambm para a terceira 83.

    Laques considera legtima a preocupao de Lsimaco, mas introduz na conversa Scrates,

    que, at ento, permanecera em silncio, como a pessoa mais indicada para aconselh-lo sobre a

    educao de seus filhos84.

    Usando uma frmula comum nos dilogos e importante no contexto da Repblica85,

    Scrates compromete-se a tentar, na medida de suas possibilidades (

    )86aconselh-lo, mas, por ser mais novo e considerar Laques e

    Ncias mais experientes nesses assuntos, pede que estes o precedam, ficando a seu cargo apenas,

    em caso de necessidade, complementar o que eles disserem87.

    Ncias faz a defesa da hoplomakhae Laques a desmerece, o que leva Lismaco a pedir o

    voto de desempate a Scrates88. Este, recusando-se a aceitar que o assunto seja resolvido

    80PLATO. Laques, 178a1-b3. Utilizou-se a traduo de OLIVEIRA, Francisco (Trad.). Laques. Lisboa: Ed. 70,1989. (Clssicos Gregos e Latinos, 2).81PLATO.Laques, 178b9-d2.82PLATO.Laques, 178d2.83Note-se que, para Lismaco e Melsias, que so ancios, ainda so relevantes a fama e a glria. Essa relevncia

    parece a Scrates ter se perdido em Atenas por ocasio de seu julgamento. Cf. PLATO.Apologia, 29d2-30a7.84PLATO.Laques, 180b1-c5. Um dos temas do Laques a possibilidade de perda da virtude. Sobre o fato de queas virtudes cvicas fundamentais eram, para Scrates, mais presentes no passado, note-se o juzo que ele faz derenomados polticos atenienses mais recentes e sobre o efeito de seu governo em Atenas no Grgias. Ver,especialmente, PLATO. Grgias, 502d-519d.26a-b. Sobre a virtude de Aristides, pai de Lismaco, ver Grgias,526a-b.85PLATO.Repblica, 368c3-4.86PLATO.Laques, 181d1-2.87PLATO.Laques, 181d1-8.88PLATO.Laques, 181d-184d.

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    simplesmente pelo voto da maioria, introduz a ideia de que a pessoa apropriada para resolver a

    questo seria algum que fosse entendido no tema, estabelecendo uma analogia com a tkhne89.

    Porm, Scrates adverte que o assunto realmente em questo no tanto a hoplomakha,

    mas a maneira de tornar virtuosos os jovens, para a qual a hoplomakhas est sendo consideradacomo meio90. Esse passo leva a uma reformulao da questo, passando a considerar-se que o que

    deve ser examinado (skepton) se algum deles versado [tekhniks] no tratamento da alma e

    se capaz de a tratar bem, e se teve bons mestres (

    )91.

    Mais uma vez a Laques e Ncias que Scrates aconselha Lismaco a recorrer, uma vez

    que ele mesmo declara no possuir essa arte (tkhne), no s por no ter tido mestres no assunto

    mas tambm por no ter podido vir a conhec-la por si. Porm, como Laques e Ncias secolocaram com tanta confiana quanto hoplomakhacomo meio para se chegar virtude, isso

    deve indicar que ou tiveram bons mestres ou descobriram-na por si mesmos 92.

    Lismaco ento transfere para Scrates a tarefa de interrogar os generais sobre o tema da

    virtude, desde que os generais aceitem dar respostas ao que Scrates perguntar. Conversando [e

    examinando] com Scrates (epate ka koin(i) met Sokrtous skpsasthe93), atravs de

    perguntas e respostas, pode-se chegar a uma deliberao sobre o que Scrates considera o maior

    dos bens94.

    Ncias responde a Lismaco:

    95

    que me pareces desconhecer que quem for muito chegado a Scrates (por convvio ouparentesco) e vier a falar com ele habitualmente, ainda que, de incio comece a discutirsobre algo diferente, inevitavelmente acabar por ser arrastado para uma conversa em

    89PLATO.Laques, 184d-185a.90PLATO.Laques, 185b-185e.91PLATO.Laques, 185e4-6.92PLATO.Laaues, 186a-187b.93PLATO.Laques, 187d1-2.94PLATO.Laques, 187b-187d.95PLATO.Laques, 187e5-188a3.

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    crculo, at cair em dar respostas a perguntas sobre si prprio como passa atualmente ecomo viveu a sua vida passada. Depois de a ter cado, Scrates no mais o largar antesde tudo ter posto prova [prn n basanse(i) tata e te ka kals hpanta].

    O passo citado tem claras ressonncias naApologiae pode mesmo ser considerado comodescrevendo aquilo que Kahn acredita ser o resultado da prtica a que Scrates se refere na

    Apologia, um exame que visa muito mais a levar o interlocutor a refletir sobre si mesmo e sua

    vida do que sobre a falta de um conhecimento que diz ter. O ponto que, mais uma vez, uma

    coisa no exclui a outra, e o fato de Ncias identificar no exame socrtico primordialmente esse

    ponto pode significar apenas que ele prprio no consegue enxergar a importncia do aspecto

    epistmico do exame socrtico. No por outra razo que, ao trmino do dilogo, mesmo tendo

    de reconhecer uma aporia, considera que pde se exprimir corretamente (epieiks96) e que logo,

    sem a ajuda de Scrates, ou do lgosfilosfico, poder sair da aporia.

    Declarando a seguir no ser novidade para ele ser posto prova por Scrates, Ncias

    concorda com o exame, no que seguido por Laques97nessa deciso.

    Scrates, recordando o que estabeleceram antes ser o verdadeiro tema da discusso, o

    modo como a virtude nas almas jovens pode torn-los melhores, remete o assunto para a questo

    prvia de saber o que a virtude, o que Laques declara saber e poder dizer o que 98.

    Alegando que talvez seja trabalho exagerado examinar (skopmeta) a virtude na sua

    totalidade, Scrates prope que se veja se eles tm capacidade para conhecer alguma de suaspartes e argumenta que a investigao (skpsis) ser at mais fcil99.

    Diante do acordo de Laques, Scrates comea o exame com a pergunta o que a

    coragem?100e passa a utilizar com Laques o mtodo que aqui ser chamado de dialtico, e que

    consiste em, diante da primeira tese do interlocutor, verificar se h objeo possvel. Caso haja,

    coloca-se a objeo e faz-se o interlocutor substitu-la poroutra no vulnervel objeo, e assim

    por diante101.

    96PLATO.Laques, 200b3.97PLATO.Laques, 188a-189b.98PLATO.Laques, 190c3-5.99PLATO.Laques, 190d1.100PLATO.Laques, 190e3.101Como alternativa, pode-se falar de uma dialtica construtiva, caso em que o exame dialtico no se d pelacolocao de objees, mas completando o objeto investigado atravs do acordo do interlocutor, como se faz aolongo da construo com o lgosda cidade daRepblica.

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    No momento em que o interlocutor no mais puder responder objeo, est-se diante de

    uma aporia. Em todo o processo, Scrates testa o interlocutor muitas vezes com objees

    improcedentes ou de vis sofstico102, no necessariamente porque acredita na objeo que

    levanta, mas para verificar se o interlocutor capaz de super-la, ou ao sofisma, e de dar conta deque realmente sabe fundamentar o que afirma ou se simplesmente repete uma frmula, provenha

    ela da tradio, do senso comum, de uma intuio pessoal ou de um emprstimo tomado de mais

    algum. a identificao da incapacidade de fundamentar dessa forma suas teses diante do

    exame dialtico que leva Scrates a negar que o interlocutor seja sbio. Assim, o que se considera

    que, se oLaquesexemplifica a prtica socrtica mencionada na Apologia, tem-se que o critrio

    de Scrates para conferir o ttulo de sbio a verificao da posse de um conhecimento

    fundamentado ou epistme, que seria o mesmo que a sabedoria no sentido forte, mencionada

    acima, e que, naRepblica, o saber que se atinge como termo da dialtica103.

    Um outro aspecto visado pela dialtica socrtica que se tornar mais claro atravs da

    Repblicae de outros dilogos o da completude do objeto investigado. No caso dos dilogos,

    em que, como no Laques, se parte do pedido de uma definio geral, o exame socrtico comea

    por verificar se a definio geral foi atingida e, por meio de objees e crticas, confronta o

    interlocutor com o seu discurso at que este a atinja.

    Uma vez atingida a definio geral, esta passa tambm a ser criticada: mostra-se ao

    interlocutor sua parcialidade ou incompletude e se lhe obriga a considerar o objeto em questo

    cada vez por mais ngulos e mais aspectos104. a capacidade mesma de considerar o objeto em

    discusso sob todos os aspectos, na sua completude, que levaria ao sucesso da definio geral,

    que visa descobrir o que d unidade a todas as instncias do definiendum.

    De vrias passagens da Repblica parece poder-se depreender esses significados para a

    dialtica:

    102Para um exemplo de uso de uma refutao com vis sofstico por parte de Scrates, ver o comentrio de Reevesobre a refutao de Polemarco na Repblica, em REEVE, 1988, p. 5-22. Note-se que no se defende que Scratesseja um sofista, mas apenas que usa sofismas, entendidos como raciocnios invlidos ou apoiados em falcias paratestar um interlocutor que diz saber algo. A utilizao de um sofisma um bom teste para se verificar o grau decompreenso que o interlocutor tem do que afirma.103Sobre esse sentido de epistmever, PLATO.Repblica, 510c-511e.104Entenda-se que, nesse processo, pode recorrer-se ainda a diaresis e explorao de hipteses em que ficamclaras as relaes de condicionante e condicionado.

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    105[...] quem no for capaz de definir com palavras a ideia de bem, separando-a de todas asoutras, e, como se estivesse numa batalha, exaurindo todas as refutaes, esforando-se

    por dar provas, no atravs do que parece, mas do que , avanar atravs de todas estasobjees com um raciocnio infalvel no dirias que uma pessoa nestas condies noconhece o bem em si, nem qualquer outro bem, mas se acaso toma contato com algumaimagem, pela opinio, e no pela cincia [ouk epistme(i)] que agarra nela, e que a suavida atual passa a sonhar e a dormir, pois, antes de despertar dela aqui, primeiro descerao Hades para cair num sono completo?

    E mais frente:

    106[...] achas ento que a dialtica se situa para ns l no alto, como se fosse a cpula dascincias [thrinks tos mathmasin], e que estar certo que no se coloque nenhumaoutra forma do saber acima dela, mas que representa o fastgio do saber?

    107

    tambm a melhor prova para saber se algum dialtico ou no, porque quem forcapaz de ter uma vista de conjunto dialtico; quem o no for, no .

    No caso do Laques por um exame assim que o general que d nome ao dilogo passa.

    Comea por falhar em