mÁrio · sendbrief uonz d017netschel~ de martinho lutero apareceu ern 1530. sirvo- -me de urna...
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MÁRIO VILELA
Universidade do Porto [email protected]
O . Notas pre ares
Há já bastante tempo, um acaso feliz pôs-me no caminho, numa
vila das regiões de Basto, a tradução da Divina Cornédia feita por
José Pedro Xavier Pinheiro1, a que juntei bastante mais tarde as tradu-
ções de Marques Braga2 e de Vasco Grap Moura3. Mantinha sempre a
Divina Coinedia, traduçâo brasileira, 2.a edição, cuidadosamente revista,
acrescida com setenta e cinco estampas de GUSTAVE DORE e enriquecida com uin
autograplio do Tradutor. O Vol. I, nesta edição é de 1915, os Vols. I1 e 111 são de
1918. O Editor é Jacintho Ribeiro dos Santos, Rio de Janeiro. Inclui ainda um prefácio
do editor e urna extensa notícia sobre o Tradutor feita pelo filho do Tradutor, J. A.
Xavier Pinheiro.
* Dante Alighieri, A Divina Conzédia, tradução do italiano, prefácio e notas do
Prof. Marques Uraga; Lisboa, Sã da Costa, 1955-1958. Utilizo para o Vol. I a 2.a edição
(1994), para o Vol. I1 tambéin a 2.a edição (1998) e para o Vol. I11 a edição de 1958.
j Vasco Graça Moura, A Divina Conzédia de Dante Alighiefi, Bertrand, 1995.
Utilizo a 7." edição, 2006.
intenção de leitura - ou de releitura4 - da Diuina Comédia, quan-
do a ocasião se tornasse propícia. Estava a dever algumas horas de
reflexão ao meu antigo professor na Universidade de Coimbra, Gia-
cinto Manupella. Um "e-mail" de Francisco Topa proporcionou-me
a ocasião de, l-iomenageando Giuseppe Mea, poder de certo modo
homenagear também Giacinto Manupella..
502 Por outro lado, foi um dos meus antigos sonhos estudar a história
da tradução em Portugal e o seu papel fundador não só na definição
e identidade da cultura portuguesas como também na constituição,
estruturação e mesmo moldagem da própria língua portuguesa. Isto,
aliás, aconteceu com as várias línguas da Europa: lembremos apenas
o papel que as traduções de Notker von St. Gallen (950-1022) e de
Martinho Lutero (1483-1546) tiveram na constr~~ção da língua alemã.
Ora à tradução, como a qualquer ramo do saber, subjazem de-
terminados princípios e regras. Frequentemente, os tradutores "con-
fessam-se" nas introduções ou prefácios das obras, em que, além
de apontarem as dificuldades encontradas, quando menos não seja
como captatio beneuolentim e para alertar para possíveis falhas,
apresentam as regras a que obedeceram. Pretendo, com base nas
poucas ou muitas informações fornecidas pelos tradutores da Di-
vina Comédia, relacionar essas "deixas" coni as reflexões instaura-
das pelos grandes tradutores; refiro-me a dois dos pais da tradu-
ção e em relação ao livro mais traduzido de sempre: a Bíblia. Os
nomes de S. Jerónimo e Martinho Lutero são, para qualquer dis-
cussão à volta da tradução, inevitáveis. D. Duarte surge aqui
como autor de reflexões sobre a tradução, como autêntico depo-
sitário dos tópicos medievais sobre o tema: através dos cinco "avy-
samentos", traçou o caminho a seguir pela tradução em Portugal.
' Releitura porque o Prof. Manupella me levou a ler (e a reler) largos fragmentos
da obra.
A "Divina Comédia" em traduçõespara português
Finalmente, sempre admirei quem se dedica a tarefas "benediti-
nas", que exigem o dispêndio de muito tempo, de muita solidão, de
grandes percursos interiores: traduzir monumentos como a Divina
Comédia ultrapassa quase as fronteiras do possível. Ora, se não sei
explicar esse esforço em homens de outro tempo, sei admirar essa
actividade em pessoas de meu tempo, como é o caso de Vasco Graça
Moura, tanto mais que se desmultiplica em muitas outras actividades 503
e sempre com o afinco de um apaixonado. E a sua "confissão" de
teorizador da tradução é deveras notável.
1. Os "fkndamentos teóricos" da tradução na tradição eu-
ropeia
S. Jerónimo, em texto escrito por volta de 395 (d. C.), De óptimo
genere intelpretandz9, o texto que lança o tópico básico na concep-
ção da tradução em toda a Idade Média (e não só), considera que um
dos pontos fundamentais na tradução é a atenção a dever ser dada 2s
auctoritates, isto é, ao exemplo dos grandes autores latinos que tra-
duziram para latim os autores gregos. E acima de todos colocava Cí-
cero, tomado como ponto de partida da tradução, pro verbo verburn
vs. sensum exprimere de sensu, que formulou do seguinte modo:
. . .nec conuerti ut interpres, sed ut orator, sententiis iis-
dem et earum formis ranquam figuris, uerbis ad nostram
consuetudinem aptis. In quibus non uerbuin pro uerbo
necesse habui reddere, sed genus omne uerborum uim-
que seruaui6.
j Utilizo: Cartas de San Jeróninto, Introducción, versión y notas por D. Ruiz
Bueno; ed. bilingue, BAC, 2 vols., 1952 (vol. I, pp. 486-504).
Utilizo: Cicéron, L'orateur. Du meilleurgenre d'orateurs, Texte établi et traduit
par A. Yon; Paris, Belles Lettres, V, 14.
Distingue a tradução feita como "interpretação" da tradução feita
como "criação", a adaptação do texto e das palavras "ad morem nos-
tram" ou "ad consuetudinem nostram". Recusando a tradução uer-
bumpro uerbo, propõe a conservação do genus e da uis das palavras,
isto é, o enquadramento das palavras no género litergrio e na força
do seu significado7. Ora S. Jerónimo sintetiza todo o seu texto neste
504 princípio de Cícero: o bom tradutor é o que traduz como orator e
não como interpres, o que é capaz de captar para a sua língua o
"sentido" original do texto, traduzindo as ideias e não as palavras (res
uellim, non uerba consideres), recuperando a eloquência, adaptando
o texto e as suas formas às da própria língua. É importante referir
que aduz ainda, neste mesmo sentido, a posição de Horácio: "nec
uerbum uerbo curabis reddere fidus interpres" (p. 490). Abre, contu-
do, uma excepção, para a Bíblia, "ubi et ordo uerborum mysterium
est" (p. 490).
Outro dos f~indadores da tradução como ciência foi Martinho
Lutero, ao traduzir a Bíblia para alemão. Estabeleceu, igualmente,
alguns princípios norteadores da tradução, em Sendbrief uom Dol-
nzeischems. A ideia geral com que se fica ao ler a carta de Lutero é
a de que o iinportante é o texto: o tradutor deve agir como orator
e mesmo quando a discussão incide em palavras o sentido da sua
reflexão parece ser sempre o do texto. Embora fique sempre de pé a
pergunta: o peso maior incide no "interpres" ou no "orator"? Vejamos
apenas alguns exeinplos, onde o problema parece, aparentemente,
não passar das palavras.
' Cf. Dieter Woll, "Übersetzungstheorie bei Cícero?", in Epzergeia und B-goa, ecl.
por J. Albreclit / J. Ludtke / H. Thun; 1998, 111, pp. 341-350.
Sendbrief uonz D017netschel~ de Martinho Lutero apareceu ern 1530. Sirvo-
-me de urna versão modernizada: a que se encontra ern Hans Joacllim Stoerig (ed.),
Das l>roblem des Übersetzens, Darrnastadt (= Wege der Forschung., Ed. VIII), 1973,
pp. 14-32. As indicações de página reportam-se a este texto.
A "Divina Comédia" em traduçõespara português
Na discussão de um dos pontos centrais da doutrina Luterana
"Arbitramur hominem justificari ex fide absque operibus" (Rom. 3, 28) afirma expressamente: "Denn man muss nicht die Buchstaben
in der lateinischen Sprache fragen, wie man sol Deutsch reden, . . ., sondern man muss die Mutter im Hause, die Kinder auf der Gassen,
. . ., wie sie reden und darnach dolmetschen" (p. 21). Ou ainda a pro-
pósito da tradução de "ex abundantia cordis os loquitur" (Math. 12, 505 - 34) por "aus dem Überfluss des Herzens redet der Mund", interroga:
"Sag mir: 1st das deutsch geredet? Welcher Deutsche solches? Was ist
Uberfluss des Herzens fur ein Ding?" (p. 21) e acerca da saudação
do Anjo a Maria: "Gegrusset seist du, Maria, v011 Gnadden, der Herr
mit dir. Nun whol-so it's bisher einfach dem lateinischen Buchstaben
nach verdeutschet" (p. 22). Seja qual for o ponto alvo das interro-
gações, os princípios básicos não estão muito longe dos princípios
de S. Jerónimo.
O texto onde confluem todos os tópicos reveladores, quer da
importância da tradução, quer dos princípios norteadores do modo
correcto de traduzir, encontram-se consignados no Leal Conselheiro9,
o que se compreende pela natureza e pelos objectivos a que se pro-
pôs D. Duarte. Além de haver referência aos problemas da tradução
e de incluir traduçoes várias no seu texto, inclui cinco "avysamen-
tos" acerca do modo como traduzir "de latym em nossa lynguagem"
(p. 341): trata-se de regras que escreveu para seu uso pessoal e para
ajudar os "que alguas obras mandassem tralladar" e ainda "por que
muytos que som letrados nom sabem trelladar bem de latym em
lynguagem" (p. 372). O problema é essencialmente o de se saber se
Utilizo: Leal Consel/3eilao o 9ual.P~ Dom Duam . . ., ed. crítica e anotada,
organizada por Joseph M. Piel; Lisboa, Bertrand, 1942. Para se avaliar a importância
da tradução na Península Ibérica durante a Idade Média, vide I? Russel, Traducciones y Tradutores en la Península Ibérica (2400-1550), Bellaterra, 1985.
se deve traduzir "ao pee da letera" (ad verbum) ou ad sensum, afir-
mando concretamente: a "ssentença" deve ser "posta em mais geeral
maneira de fallar" (pp. 377-378).
Se no "primeiro avysamento" parece apontar nas duas direcções:
"Prymeiro, conhecer bem a ssentença do que há de tornar, e poêlla
enteiramente, non mudando, acrecentando, nem mynguando algua
506 cousa do que esta scritpo" (p. 372); no "terceyro avysamento" insiste
sobretudo nas palavras: ". . . sempre se ponham pallavras que sejam
dereita lynguagem, respondentes ao latym, nom mudando huas por
outras, . . .; por que grande deferença faz, pêra se bem entender, see-
rem estas propriamente scriptas" (p. 373). No segundo "avysamento"
recusa as "pallavras alatinadas" defendendo a língua vulgar: ". . .nom
ponha pallavras latinadas, nem doutra lynguagem, mas todo seja [em]
nosso lynguagem scripto, mais achegadamente ao geeral boo costu-
me de nosso falar que se pode fazer" (p. 373).
2. Apresentação das três traduções da Divina Comédia para
português
Os textos produzidos pelos três tradutores inscrevem-se indu-
bitavelmente em situações bem diversas, mas, à excepção de Vasco
Graça Moura, dois deles não deixaram muitas informações sobre os
princípios a que, como, autores-tradutores, obedeceram. Dos princí-
pios norteadores da tradução de José Pedro Xavier Pinheiro sabemos
apenas o que escreve o editor a esse respeito, dizendo tão-somente
que se trata de uma "interpretação na lingua portugueza [que] é fi-
delissima e que, na opinião dos que conhecem o clássico original
italiano, é a que mais se aproxima delle, com uma felicidade genial"
e informa ainda que "a tradução brasileira é toda em verso rimado,
enriquecida de notas e a presente edição, .. ., está diferente da Ia,
porque seu filho, . . . , organizou um Rimário do poema" e vem acom-
A "Divina Comédia" em traduções para português
panhado de "gravuras.. . de Gustavo Doré"lO. Sabemos da introdução
ao poema Inferno", que em 1874, depois de ter lido, no "Globo",
uma tradução feita por Machado de Assis, de um canto do Inferno,
começou a traduzir a Divina Comédia e, após a tradução de "Inferno",
o mesmo Machado de Assis o incitou a traduzir todo o poemaI2.
Da tradução de Marques Braga há desde logo a intenção clara- 507
mente afirmada de procura de aproximação às ideias e 3s palavras
do original, com recurso 2 interpretação e 2 exegese feitas à volta da
obra de Dante:
Pelo parentesco das Línguas portuguesa e italiana, nes-
ta tradução em prosa da Divina Comédia, aproveitei o
mais possível as próprias palavras de Dantc. Proposita-
damente demos 2s linhas a disposição em tercetos para
facilmente se poder verificar que se seguiu sempre o
pensamento de Dante. (. . .). Porque têm o mais alto va-
lor e devem-se conhecer no original juntamente com
as Notas transcrevem-se alguns dos versos alados ou
imortais da Divina Comédia, em que há imagens mara-
vilhosas, conceitos, sínteses e sentenças a que o grande
florentino deu as asas do ritmo, universalizando-as13.
l0 Jacintho Ribeiro dos Santos, "Explicação do editor sobre a presente edição", in Divina Comedia, Tradução brasileira . . . de José Pedro Xavier Pinheiro, Inferno,
3 e 5. l 1 "Da primeira edição", José Antonio Xavier Pinheiro, in Inferno (sem paginação:
são 22 páginas, datadas de 1903). l Z Há ainda a referência a duas traduções com as quais se faz o confronto:
"A tradução do poeta bahiano [Xavier Pinheiro] póde ser confrontada com as do Monsenhor Pinto de Campos e Barão de Villa da Barra, brasileiros e com a de
Domingues Ennes, portuguez e tenho a convicção que do confronto se terá a evidencia de que é a mais perfeita, a mais cuidada, a mais escrupulosa, a que mais de perto acompanha o original".
l3 Marques Braga, "O Inferno", p. IX.
Isto é, procura-se sobretudo traduzir o conteúdo, servindo-se da
interpretação da exegese, aliás muito abundante, da obra de Dante.
Da tradução de Vasco Graça Moura há que reter observações
de variadíssima ordem: as que dizem respeito 2s sonoridades, 2s
palavras, ao fluir do discurso, portanto, à materialidade da obra e à
508 sua contextura global. Afirma a predisposição para procurar manter a
materialidade original em detrimento da exegese dantesca, inclusive,
conservar o carácter visual da escrita; o l-iendecassílabo (ou decassíla-
bo) e a t ena rima14. Em síntese, manter a "figura uerbor~m" '~ .
Mas não esquece que se trata de uma obra de grande vigor lite-
rário e afirma que tem como alvo principal atingir o "equilíbrio entre
literariedade e literalidade", isto é, produzir "um plágio legitimado":
reconhece que "traduzir uma obra literária só o pode ser produzindo
outra obra literária". Mas do ponto de vista formal e tendo em conta
"as palavras" originais, pretende travar unia batalha entre o arcaísmo
e o neologismo, como documentaremos com alguns exen~plos.
Sabendo que estava perante urn poema que põe em jogo mui-
tos dos problemas ontológicos essenciais, como são os da vida e da
morte, os da fuga e perversão das regras da vida social, a reparação
ou expiação das transgressões e a respectiva transfiguração, onde
há o recurso aos tópicos do imaginário mitológico pagão, medieval
e cristão, onde se contaminam a Eneida, a Bíblia, ou a Summa de
S. Tomás de Aquino e a Tebaida de Estácio, acrescendo ainda que
tem por fundo uma das épocas mais problemáticas da história da
Itália e da Igreja - Papado contra Império, Guelfos contra Gibeli-
nos, as lutas fraticidas entre Negros e Brancos. Apesar de tudo, faz
" Dá como justificação o ponto de vista de George Steiner, ao considerar que a tei-za 13ma permite a colocação simétrica, quiasmatica, contrapontística e invertida.
l5 Expressão de que Vasco Graça Moura se apropria.
A "Divina Comédia" enz traduções para português
acompanhar o título das suas reflexões, de um subtítulo esclarecedor:
"uma aproximação". O acto de reconhecimento dos limites da língua
e do tradutor.
Finalmente, numa luta "corpo a corpo", texto a texto, assume
que finge acreditar que está a viver interiormente uma "experiência"
do mundo e da vida, coino se fosse um crente verdadeiro, deixan-
do-se guiar, considerando Dante corno o seu Virgílio pessoal: isto é, 509
procura vestir-se com a roupagem ideológica de Dante.
3. Aproximações e afastamentos
Tendo em mente alguns dos princípios dos grandes tradutores,
anteriormente mencionados e sobretudo os propósitos anuncia-
dos pelos autores-tradutores, vamos apresentar e confrontar o
episódio narrado no canto IX do Paraíso, relativo 2 meretriz de Jericó
- Raab - e mais alguns pontos do mesmo canto. Como é sabido,
Raab escondeu os exploradores da perseguição dos soldados do rei
de Jericó e encontrou o processo de os colocar a salvo, possibilitando
assim a conquista da cidade por Josué. Eis o texto, como se encontra
na edição bilingue da Bertrand:
109 Ma perché tutte le tue voglie piene
ten porti che son nate in questa spera,
procedere ancor oltre mi convene.
112 Tu vuo' saper chi P in questa lumera
che qui appresso me cosi scintila
coine raggio cti sole in acqua mera.
115 Os sappi che 12 entro si tranquilla
Raab; e a nostr' ordine congiunta,
di lei nel sommo grado si sigila.
118 Da questo cielo, in cui I'ombra s'appunta
che '1 vostro mondo face, pria ch' altr'alma
de1 triunfo di Cristo fu assunta.
121 Ben si convenne lei lasciai per palma,
in alcun cielo de l'alta vittoria
che s'acquistò con 1' una e 1' altra palma,
124 Perch' ella favoró la prima gloria
di Iosuè in sul a Terra Santa,
che poco tocca a1 papa Ia memoria.
As traduções convergem e divergem, notando-se desde logo a
intenção dos respectivos tradutores. Em Graça Moura, encontramos
O seguinte texto:
Mas por todo o desejo que a ti vem
saciar, que nasceu cá nesta esfera,
proceder inda devo mais além.
Queres saber quem nesta chama espera
que junto a mim agora assim cintila,
como raio de sol em água mera.
Pois sabe que lá dentro está tranquila
Raab; e de ser a nossa ordem conjunta
lá dela no grau sumo se sigila.
Deste céu em que a ponta desconjunta
a sonlbra lá do mundo, antes de outra alma,
do triunfo de Cristo foi assunta.
A "Divina Comédia" em traduções para português
Bem convirá deixá-la cá por palma
em algum céu daquela alta vitória
tida no erguer de uma e outra palma
Porque favoreceu a prima glória
de Josué por sobre a Terra Santa,
que pouco toca ao papa na memória.
Ein Marques Braga, temos a seguinte proposta de tradução:
A fim de que sejam inteiramente satisfeitos todos
os teus clesejos aparecidos neste céu de Vénus,
devo juntar ainda algumas outras coisas.
Tu queres saber que alma esteja dentro da luz,
que cintila, ao meu lado, como um raio
de Sol na água límpida.
Sabe pois, que Raab goza a bem-aventurança da
perfeita paz; e que no coro, de que ela faz parte,
refulge a sua luz no Empíreo.
Raab foi a primeira de todas as outras almas
bem-aventuradas recebida deste céu
no qual vem terminar a sombra da Terra.
Foi justo deixar Raab num dos céus do
Paraíso como testemunho de alta vitória
alcançada por Josué com a tomada de Jericó,
porque ela favoreceu a primeira glória
de Josué, sobre s Terra Santa,
cuja memória ao Papa importa pouco
Em Xavier Pinheiro pode ler-se o seguinteI6:
Para ser a medida em toda cheia
Dos teus desejos, nados n'esta esphera,
Do meu discurso inda prossegue a teia.
Ora queres saber a luz que era,
Que ahi perto de mim tanto scintila,
Como o sol, que na ly~npha reverbera
Sabe, pois, que alli vês leda e tranquilla
Raab: á nossa ordem reunida
Em grau superior clara rutila.
Foi n'este céu, que a sombra procedida
Da terra não alcança, ein triumphando
Jesus-Christo, a primeira recebida.
Devia dar-lhe um céu por palma, quando
Assignalar lhe approuve a alta victoria,
Que na Cruz teve, as palmas entregando;
Pois que por ella come(;.ára a gloria,
Que colheu Josué na Terra Santa,
Que se apagou do Papa na inenlória.
A tradução livre de Marques Braga, para nos atermos apenas ein
um exen~plo, a interpretação do que era o paraíso, ou a caracteriza-
ção do estado de Raab, no texto "Or sappi che 12 entro si tranquilla
Raa"
l6 Não actualizei a grafia.
A "Divina Comédia" em tl-acluções para poi-tuguês
Sabe pois, que Raab goza a bem-aventurança da pefeita
[paz
contendo em nota a definição de "perfeita paz" do Paraíso, "pax per-
fecta, quae consistit in perfecta kuitione summi boni, . . . est ultimus
finis creaturae rationalis" (Tomás d'Aquino, Summa, parte 11, XXIX,
art. 2), contrapõe-se em Xavier Pinheiro: 513 -.
Sabe, pois, que alli vês Ieda e tranquilla, Raab;
Já Vasco Graça Moura propõe a seguinte tradução:
Pois sabe que lá dentro está tranquila Raab;
Além de outros "por maiores", como a tradução de "acqua mera"
do texto por "água mera" eni Graça Moura, por "água límpida" ein
Marques Braga e "lympha" em Xavier Pinheiro, verifica-se a preocu-
pação de enquadramento mais rigoroso - isto é, tradução como 'tra-
dução' - em Graça Moura, ao passo que em Marques Braga temos
a tradução que é a interpretação feita 2 luz da tradição construída à
volta de Dante e em Xavier Pinheiro uma mistura das duas coisas
(tradução e interpretação).
A procura de fidelidade em Vasco Graça Moura é tal que em al-
guns casos tive necessidade de ir ao original para entender o próprio
texto de Dante. Vejamos alguns exemplos da adaptação dos neolo-
gismos do texto original. Mantendo-nos no inesnio canto do Paraíso,
temos no original:
(103) Non però qui si pente, ma si ride, non de Ia colpa, ch'a mente non torna,
ma ciel valor ch'ordinò e provide
que é traduzido em Xavier Pinheiro, por:
Não há remorso aqui; folga-se agora,
Não pela culpa, já no esquecimento,
Pela virtude, cuja lei se adora.
514 em Vasco Graça Moura:
Não se arrepende, ri, quem cá reside,
não da culpa, que 2 mente já não torna
mas do valor que 2 ordem nos preside.
em Marques Braga por:
Aqui no Paraíso não se conhece a dor do
arrependimento, mas o prazer da bem-aventurança;
aqui não há arrependimento da culpa, apagada
pela água do Letes, e portanto esquecida, mas
goza-se da divina virtude que ordenou.. .
Graça Moura propõe-se respeitar Dante em toda a linha, ritmo,
cadência, no ntíinero de sílabas, na "figura uerborum", mesmo nos
neologismos e arcaísinos. Vamos ater-nos apenas a alguns neologis-
mos, e, por coerência, mantemo-nos no mesmo canto. No texto de
Dante:
a "Dio vede tutto, e tuo vedes s'inluia"
diss'io, "beato spirito, sí che nulla
voglia di sé a te puot' esses fuia.
A "Divina Comédia" em traduções para português
e ainda em: perché no satisface a' miei disii?
Già non attendere' io tua dimanda
S'io m'intuassi, come tu t'inmii.
traduzidos em Graça Moura por:
"Deus tudo vê e assim teu ver se enlheia",
disse eu, "beato esprito, assim que nula
vontade sua pode ser-te.
porque é que meus desejos não avias?
Já não esperava eu tua demanda,
Se me entiasse como tu te enmias
que explica em nota o sentido das mesmas palavras: "penetra nele,
entranha-se nele" ("s'inluia") e "entrasse em ti", "entras em mim"
("m'intuassi e t'inmii").
A tradução de Marques Braga é:
Eu disse: "Deus vê tudo e nele está o teu olhar,
bem-aventurado espírito, manifesto te é sempre
quanto o seu querer deseja.
. . . . . ... Movera teus afectos
o meu pedido, se eu pudesse, com a mente,
conheces o meu"
Por sua vez, Xavier Pinheiro lê assim essa passagem:
"Deus vê tudo, e oteu ver n'elle se acclára" - Falei - "ditoso espírito: patente Te é sempre quanto o seu querer depara.
"Não satisfaz desejos, em que ardendo Estou? Falara, sem mais ser rogado, Se eu visse em ti bem, corno em mim stás
[vendo"
Tanto em Marques Braga como em Xavier Pinheiro nota-se a
preocupação de, muito erilbora respeitando o texto original, interpre-
tar, tornando acessível ao leitor o sentido do texto de Dante. Vasco
Graça Moura faz uma tradução rigorosa, levando esse rigor até ao
pormenor de entrar no corpo da língua, a tal luta "corpo a corpo" de
que fala na "Introdução".
4. Conclusão
Temos tradução ao "pé da letra" ou "ad sententiam"? O "uerbum
pro uerbo ou ad sensuin"? A tradução e os seus autores-tradutores re-
vêem-se nos seus antepassados? Continuanios a ter "confissões" dos
tradutores com a profundidade de S. Jeróniino e de Martinho Lutero?
Os nossos teóricos continuam a cultivar a "arte" do "Leal Conselhei-
ro"? Sim e não.
A finalidade dos tradutores, declarada ou implícita, é bem diver-
sa. Se em Xavier Pinheiro parece prevalecer a "fidelidade" ao texto
- como indica o seu editor -, dentro das limitações do seu tempo,
quanto 2s técnicas, disponibilidade de contactos e instrumentos de
A "Divina Comédia" em tmduçõesparapo~-tuguês
trabalho (hoje há mais dicionários, há possibilidade de consultar es-
pecialistas directa ou indirectamente), em Marques Braga procura-se
sobretudo tornar acessível ao leitor cotnum o sentido do texto. Já
Graça Moura parece trabalhar para "raros "apenas" - como diz o
poeta -, dando sempre a sensação de tentar "reescrever", ele tam-
bém, uma "obra de arte". O que, na minha opinião, conseguiu.