marilena chaui - o que e politica [coloquio 'o esquecimento da politica'] transcricao

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Marilena Chaui - O esquecimento da polticaTeatro Maison de France, RJ, 23/08/2006.

Primeira parte Todos conhecem a maneira como Max Weber concebe o poder: o poder, diz ele, a capacidade para obrigar a obedincia por meio da lei e o uso legal da violncia. Como dizia Marx, o poder poltico a passagem da dominao pessoal dominao legal por meio dos instrumentos jurdicos postos pela classe dominante de uma sociedade. Tanto em Weber quanto em Marx, o poder idenfiticado ao exerccio da violncia: para Weber, o poder em geral, para Marx, o poder na sociedade de classes. No entanto, todos tambm conhecem a distino feita por Hannah Arendt, entre a fora, a autoridade e o poder. A fora, diz ela, o exerccio direto e imediato da coero e da represso, e o seu fundamento o medo. A autoridade a coero pela tradio, interiorizada e rememorada pela sociedade por meio de smbolos. O seu fundamento a obedincia e o respeito hierarquia. O poder a coero mediada pela lei, a qual tanto pode ser fonte de liberdade como de dominao, e o seu fundamento o consentimento. Quando o consentimento voluntrio, o poder propicia a liberdade; quando o consentimento forado, torna-se dominao e opresso. Para Arendt, a fora opera por meio da violncia, com a finalidade de eliminar diferenas. A autoridade opera pela formao do sentimento comunitrio, considerando as diferenas secundrias. O poder, quando no se transforma em dominao, opera no sentido de legimitar as diferenas. Todavia, no so menos conhecidas de todos as anlises de Michel Foucault. Contrapondo-se idia weberiana e marxista de que o poder essencialmente repressivo, Foucault prefere tom-lo sobre um outro ngulo. Em seu livro Vigiar e Punir, analisando as mudanas no sistema penal e no sistema carcerrio na modernidade, ele se refere ao poder como produtor de corpos dceis. O poder se torna uma disciplina, e como tal espalha-se pelo todo da sociedade, penetrando em todas as intituies sociais. Mais tarde, em cursos ministrados no Collge de France, Foucault recorda a diferena estabelecida por Aristteles entre a vida natural, Zoe, e a vida boa, ou vida tico-poltica, Bios, e analisa, Foucault, o interesse do poder desde o sculo XIX pelo controle sobre a vida natural dos homens - interesse atestado pelo surgimento da demografia, das discusses sobre populao, e das questes de higiene e sade pblicas. A esse poder fundado na demografia, na idia de populao, de higiene e sade pblicas Foucault d o nome de biopoder, isto , um poder que se exerce sobre a vida dos indivduos e das sociedades. Em sua opinio, o racismo, a idia nazista de eugenia racial e o campo de concentrao como soluo final seriam as expresses mais claras dessa mudana sofrida pelo poder. De fato, Foucault se dedica anlise sobre o fim da idia de soberania idia que aparece no sculo XVI e que vai at os anos 80 do sculo XX da idia de soberania como definio do poder. Mas ele salienta um aspecto da soberania que ao fim e ao cabo desembocar no biopoder. Desde o sculo XVI, com Jean Bdin, a soberania se define pelo poder de fazer, promulgar e executar a lei, o poder de vida e morte sobre os cidados. Ora, diz Foucault, evidente que o poder soberano no tem o poder de dar a vida, mas apenas de tir-la. Em outras palavras, a soberania o poder de fazer morrer ou deixar viver. A peculiaridade do biopoder est em ultrapassar o limite imposto soberania pois, por meio da demografia, da higiene e sade pblicas, da identidade individual definida pela nacionalidade e naturalidade, pela idia de populao, o poder se exerce sobre a vida e sobre o dar vida. Foucault fala ento em biopoltica, ou sobre as implicaes crescentes da vida natural do homem nos clculos e mecanismos do poder -

implicaes, segundo ele, expressas, por exemplo, na Declarao Universal dos Direitos Humanos, de 1948, que no por acaso comea pela afirmao da vida como um direito. O problema das ricas e instigantes anlises de Foucault est na ausncia por parte dele de referncia s condies materiais dessas duas formas de poder que ele examina: o disciplinar e o biopoltico. De fato, em Vigiar e Punir, nunca mencionado o momento em que o modo de produo capitalista necessita da fora de trabalho assalariado e portanto requer os corpos dceis, requer a disciplina, e uma vez que em seus incios, o capitalismo se exprime ideologicamente na tica protestante o trabalho como vocao e dever, a economia e a ideologia instituem o dever de trabalhar e a represso do desejo e da fruio, impondo frrea disciplina aos corpos. Da mesma maneira, no caso dos cursos do Collge de France, quando ele introduz o biopoder e biopoltica, nunca mencionado o advento da sociedade industrial e de massa, nem feita a meno presena assustadora e numerosa da classe trabalhadora, vivendo em condies miserveis nos centros urbanos (no final do sculo XIX), classe cuja reproduo como fora de trabalho impe as polticas de higiene e sade pblicas e impe hoje as polticas de estmulo fruio, ao gozo, ao desejo, isto , o abandono do valor do trabalho e o elogio do consumo de massa que demoliu a moral repressiva dos incios do capitalismo. E compreensvel, portanto que tanto na perspectiva do controle das condies de vida e da reproduo da classe trabalhadora houvesse a questo da demografia, da populao, da higiene etc como forma do biopoder, e que hoje o biopoder aparea como forma de satisfao dos desejos. O que eu digo que as anlises do Foucault so muito instigantes, muito ricas, mas abstratas, na medida em que ns no sabemos quais so as condies histricas que produzem essa mudana no poder. Parece que ela decorre de uma mudana na cabea dos homens, e no bem isso. De toda maneira, independentemente dos reparos que se possa fazer s belas anlises foucaultianas, sobre um aspecto elas retomam uma perspectiva clssica a respeito da poltica, qual seja: a no identificao da poltica com o aparelho estatal. Isso tpico dos clssicos. Ao pensar o poder como uma ao e uma operao que se espalham capilarmente por todas as instituies sociais, Foucault reencontra, surpreendentemente, Annah Arendt e Claude Lefort - e como eles, ele se ope ao ponto de vista da cincia poltica. De fato, tanto Arendt como Lefort e Foucault consideram a poltica como espao pblico no qual so deliberadas e decididas as aes concernentes coletividade, de maneira que a poltica determina as formas da sociabilidade e das sociedades, existe capilarmente no interior da sociedade, segundo na sociedade se definam a forma do poder e o exerccio do governo. Essa perspectiva se ope da cincia poltica. A cincia poltica admite a existncia de uma esfera poltica, de fatos polticos, que se distinguem de todas as outras esferas e fatos sociais, ou seja, a cincia poltica concebe a poltica a partir do Estado e das instituies estatais, das formas dos governos, da existncia de partidos polticas e da presena ou ausncia de eleies. Em outras palavras, ela toma a poltica como um fato circunscrito, e no como um modo da existncia scio-histrica dos seres humanos. Ao contrrio, Arendt e Lefort, maneira dos clssicos, consideram as formaes sociais instituidas pela ao poltica. Assim, a poltica a criao de instituies socias mltiplas, nas quais uma sociedade se representa a si mesma, se reconhece a si mesma e se oculta de si mesma; se efetua e trabalha sobre si mesma, transformando-se temporalmente. Ou seja, a poltica no s instituio do social, mas tambm ao histrica. Todavia, a concordncia entre Arendt, Foucalt e Lefort termina nesse ponto, no qual eles so clssicos. Com efeito, para Arendt, o poder poltido resulta de um conseno pblico. Para Foucault, o poder um conjunto de operaes, mecanismos e instituies que se espalham por toda a sociedade. Para Lefort, o poder poltico simblico: o

plo de referncia no qual uma sociedade dividida em classes busca a imagem da sua unidade, realizando o trabalho dos conflitos que a dividem - em outras palavras, acompanhando Maquiavel e Marx, pensa o poder a partir da diviso social, e portanto, a partir do conflito, e no do consenso. Ora, essas diferenas e a discusso em torno da ligao entre a poltica e os conflitos nos conduzem ao momento histrico anterior, ou seja, ao momento da inveno da poltica. Segunda parte Cidado de Atenas, como ireis agora julgar pela primeira vez um crime sangrento, ouvi a lei do vosso tribunal. Sobre esse rochedo de Ares, doravente sentar-se-a perpetuamente o tribunal que far a raa toda dos egeus ouvir o julgamento de todo homicdio. Esse rochedo chamado Arepago. Aqui respeito e seu irmo temor, noite e dia, igualmente, mantero meus cidados longe do crime, enquanto conservarem inalteradas as leis. No mancheis a pureza das leis com a impureza de estratagemas. Guardai com reverncia vossa forma de governo: nem anarquia, nem despotismo. Eis a regra que aconselho a cidade a observar com respeito. E no expulseis todo temor para fora das mulharas da vossa cidade. Aqui fundo um tribunal inviolvel, sagrado, mantendo uma fiel observncia para que os homens possam dormir em paz. Essas palavras so pronunciadas pela deusa Atena no final da Orstia, e com elas, simbolicamente, afirma-se a inveno da poltica, obra dos gregos. No mesmo esprito, na Suplicantes, Eurpedes coloca na boca dos atenienses a seguinte afirmao: O que conserva a cidade dos homens o nobre respeito s leis. O helenista Moses Finley descreveu o nascimento da poltica referindo-se a ele como a inveno da poltica. Um acontecimento que distinguiu para sempre Grcia e Roma em face dos grandes imprios antigos. Por que inveno? Porque gregos e romanos no dispunham de modelos prvios que pudessem seguir, mas tiveram que inventar a sua prpria maneira de lidar com os conflitos e as divises sociais. A poltica foi inventada quando surgiu a figura do poder pblico. Ela surge por meio da inveno do direito e da lei, isto , a instituio dos tribunais (que o que, simbolicamente, Atena faz), e da criao de instituio pblicas de deliberao e deciso, isto , as assemblias no caso dos gregos, o senado no caso dos romanos. Esse surgimento s foi possvel porque o poder poltico nasceu graas ao momento em que separado de trs autoridades tradicionais que anteriormente definiam o exerccio do poder: a autoridade do poder privado ou econmico, isto , o poder do chefe de famlia (e em grego, o chefe de famlia se diz Despothes o dspota o pai de famlia), e por isso que Atena diz nem despotismo, no o reino do poder privado dos chefes de famlia, nem anarquia, ausncia da lei; a autoridade do poder privado, a autoridade do chefe militar e a autoridade do chefe religioso, detentor do saber. Essas figuras, essas trs autoridades, nos imprios antigos estavam unificadas numa chefia nica, a do rei. O rei antigo era a unificao dessas trs autoridades. A poltica nasceu, portanto, quando a esfera privada da economia, a esfera da guerra e a esfera do sagrado ou do saber foram separadas e o poder deixou de identificar-se com o corpo mstico do governante, pai, comandante e sacerdote, representante humano de poderes divinos transcendentes. Ento a poltica nasce quando a forma antiga do poder, do poder imperial dos antigos reis, posta de lado. Na Suplicantes, um mensageiro chega a Atenas e pergunta: Quem o tiranos dessa cidade? E Teseu lhe responde: Teu discurso, estrangeiro, comea com um erro. Pois procura um tiranos nessa cidade que no est sobre o poder de um s [e existe tirania

quando todos esto sobre poder de um s]. Atenas livre. O demos, aqui, governa. Os cidados administram o Estado por rodzio. Nenhum privilgio dado s fortunas, pois o pobre e o rico tm direitos iguais. A Grcia inventou a democracia. Em qualquer das cidades gregas, todos os homens adultos, nascidos na Plis, eram cidados, dotados de isonomia (isos quer dizer igual, nomos quer dizer lei: a igualdade perante a lei) e da isegoria (a igualdade perante a palavra ou seja, todo cidado tinha o direito de exprimir na Assemblia a sua opinio, v-la discutida e votada). Ento, todos os homens adultos, nascidos na Plis, eram cidados, com isonomia e isegoria, membros natos das assemblias e dos tribunais e participantes da fora militar, que se realizava sobre as formas de milcia popular, isto , dos cidados armados. Ainda nas Suplicantes, depois da fala de Teseu, o estrangeiro, surpreso, indaga: Como o demos? Incapaz de raciocnio correto, poderia conduzir a cidade no caminho certo?. O que se observa que o estrangeiro, embora questione a capacidade do povo para legislar, no contesta, de maneira nenhuma, o princpio do governo da lei, ou seja, nem despotismo, nem anarquia, como dissera Atena. Sem dvida, houve debates sobre quem tinha o direito de formular e promulgar as leias, e a diferena na resposta explica no s a diferena entre cidades gregas e a diferena entre Grcia e Roma. Roma inventou a repblica, a res publica, ou a coisa pblca, era o solo de Roma, distribuido entre as famlias fundadoras da civitas. A repblica era oligrquica: os homens adultos membros das famlias que mudaram civitas (ou dos pais fundadores, os patres, por isso eles so os patrcios, e o que eles tm uma ptria) eram cidados, isto , membros do senado, das magistraturas e comandantes militares. A plebe, excluida da cidadania ou da participao direta no governo, fazia-se representar pelo tribuno da plebe, um patrcio eleito pela plebe, e por meio do plebiscito, manifestava-se diretamente a favor ou contra uma deciso do senado, ou lhe fazia propostas, alm de participar da fora militar, no na qualidade de comandada, porm armada. Resta, porm, compreendermos o enigmtico final da fala de Atena: Aqui fundo um tribunal inviolvel, sagrado, mantendo uma fiel observncia para que os homens possam dormir em paz. Trabalho sobre os conflitos e trabalho dos conflitos, a poltica nasce articulada idia da paz. Recordemos ento um filsofo moderno para quem a paz o ncleo da invenso da poltica, Espinosa. Terceira Parte Somente na cidade vivemos uma vida propriamente humana, para alm da mera circulao do sangue, da respirao e da alimentao, escreve Espinosa no Tratado Poltico. A poltica, diz ele, deve ser deduzida da condio natural dos homens, ou dos homens tais como eles realmente so, e no como os toricos gostariam que eles fossem. Ora, tais como realmente so, os homens so partes finitas da natureza infinita e sofrem a ao contnua das outras partes finitas, isto , das causas externas, que mais fortes do que cada indivduo, o submetem passividade, isto , s paixes. E Espinosa afirma que existem 3 afetos originrios: a alegria, que o sentimento que ns experimentamos quando nossa capacidade de existir aumenta, a tristeza, que o sentimento que ns experimentamos quando a nossa capacidade de existir diminui, e o desejo, como aquilo que ns fazemos a partir do sentimento de alegria ou do sentimento de tristeza, e ele vai dizer que todas as nossas paixes se derivam desses trs afetos originrios. Por exemplo: da alegria deriva-se o amor; da tristeza, o dio. Ns vamos, ento, agora, e vou me referir a isso, a duas paixes que so nucleares na compreenso do surgimento da poltica, segundo Espinosa - uma paixo de alegria e uma paixo de tristeza. Na tica, Espinosa escreve: A esperana uma alegria inconstante, nascida da

idia de uma coisa futura ou passada, de cujo desenlace duvidamos em certa medida. O medo uma tristeza inconstante, nascida da idia de uma coisa futura ou passada, de cujo desenlace duvidamos em certa medida. Segue dessas definies que no h esperana sem medo, nem medo sem esperana. Aquele que est suspenso na esperana e duvida que advenha algo esperado comea a esperar algo que exclua a existncia do esperado, e por conseguinte, passa da alegria instvel tristeza. Quem est suspenso na esperana tem medo de v-la frustada. Aquele, ao contrrio, que vtima do medo, isto , duvida advenha algo odiado, imagina alguma coisa que exclua a existncia do temido, e por conseguinte, alegra-se na esperana de que no ocorrer. Ns podemos assim falar num sistema do medo e da esperana. Porque tristeza e alegria instveis, o medo e a esperana so paixes inseparveis, expresses mximas da nossa finitude e da nossa relao com a contigncia, com o acaso. Isto , com uma temporalidade descontnua, imprevisvel e incerta. Pois, escreve Espinosa, ns jamais podemos estar certos, completamente certos, do curso total das coisas singulares e do seu desenlace. Viver sob o medo e a esperana viver na dvida quanto ao porvir. A experincia da contigncia e a experincia da dvida tornam o medo e a esperana inconstantes e intercambiveis, no apenas em momentos sucessivos, mas na simultaneidade. Numa metamorfose interminvel, cada uma dessas paixes habita e perpassa a outra. Ou, como escreve Espinosa, quem est suspenso na esperana e duvida do desenlace teme enquanto espera, e quem est suspenso no medo e duvida do que possa acontecer espera enquanto teme. Medo e esperana no se separam seno quando suprimida a dvida, ainda que permanea insupervel a incerteza quanto ao curso total ou completo das coisas singulares. Com a ausncia da dvida, passamos do medo ao desespero, da esperana segurana. Eu cito, ento, as definies de Espinosa. A segurana a alegria nascida de uma coisa passada ou futura, sobre a qual j no existe dvida. O desespero a tristeza nascida de uma coisa passada ou futura, sobre a qual j no existe dvida. A segurana, portanto, nasce da esperana, e o desespero, do medo, quando j no existem dvidas sobre a ocorrncia de algo. Isto decorre de que o homem imagina algo passado como estando presente, ou imagina a existncia daquilo que o fazia duvidar do desenlace. Assim, mesmo sem ter certeza sobre o curso total das coisas singulares, podemos no duvidar que ocorram ou deixem de ocorrer. E essa ausncia de dvida, a causa da segurana ou do desespero. Recordemos brevemente algumas teses espinosas fundamentais para o seu pensamento sobre o nascimento da poltica. Eu vou, ento, enumerar algumas teses de Espinosa porque elas so fundamentais para compreendermos como que ele vai explicar o nascimento da poltica, e o vnculo da poltica com a paz. Para cada coisa singular, haver sempre outra mais forte capaz de destrui-la. Somos passivos enquanto somos uma parte finita da natureza, que no pode ser concebida sem as outras. A fora da nossa potncia de auto conservao na existncia (e essa fora, essa pontcia, define a essncia de cada ser singular) limitada e infinitamente ultrapassada pela fora das causas externas que produzem em cada indviduo passividade e paixes. A alegria o afeto que nos faz sentir que nossa potncia de existir aumenta. A alegria nos fortalece. A tristeza, ao contrrio, o afeto que nos faz sentir que nossa potncia de existir diminui. A tristeza nos enfraquece. Todos os nossos afetos e paixes so formas de alegria ou de tristeza. A esperana uma alegria, o medo uma tristeza. A segurana uma alegria, o desespero uma tristeza. A fora de uma paixo e o seu aumento no dependem da nossa potncia, mas da potncia das causas externas que agem sobre ns. A razo, enquanto conhecimento verdadeiro do bem e do mal, no tem qualquer poder sobre as paixes - a tese clssica de Plato, de Aristteles, dos esticos, dos medievais, de Descartes: a razo, graas ao conhecimento verdadeiro, faz

com que a vontade domine as paixes; Espinosa diz: a razo no tem nenhum poder sobre as paixes, o conhecimento verdadeiro do bem e do mal no muda a paixo de ningum. Uma paixo no pode ser suprimida por um conhecimento racional, e sim por uma outra paixo mais forte e contrria. Ns sabemos que as paixes da alegria so mais fortes e as paixes de tristeza so mais fracas. Isso nos faz supor que as paixes de alegria possam vencer as paixes de tristeza. As paixes que se referem ao tempo presente so mais fortes do que as que se referem ao futuro e ao passado ou seja, eu sinto uma paixo muito mais forte por uma coisa que est presente, que presente para mim, do que alguma coisa que ficou no passado ou alguma que, quem sabe, vir no futuro. As paixes por uma coisa imaginada como necessria, como inevitvel, portanto, so mais intensas do que aquelas por uma coisa imaginada como possvel ou contigente. E as paixes so mais fortes pela coisa imaginada como possvel do que pela coisa imaginada como contingente. Cada um se esfora para conservar o que lhe til o til o bom e para afastar e destruir o que lhe nocivo, o mal, e a potncia para faz-lo maior naquele que virtuoso. Por que? Porque o fundamento primeiro e nico da virtude apenas a nossa potncia de existir e agir, que define a nossa essncia singuar. (Ou seja, Espinosa no tem uma concepo normativa da virtude, em que a virtude seria realizar certos valores, seguir certos modelos, realizar algo que tido como bem, a virtude ter fora para existir por si mesmo, e no dependendo da exterioridade. A virtude autonomia. Aquele que autnomo virtuoso.) Aquilo que de natureza completamente diversa da nossa no pode favorecer nem prejudicar a nossa potncia de agir, e, de maneira absoluta, nenhuma coisa pode ser boa ou m para ns se no tiver algo em comum conosco. m a coisa contrria nossa natureza. necessariamente boa a coisa que concorda com a nossa natureza. Enquanto os homens esto submetidos s paixes, no se pode dizer que concordam por natureza. Inversamente, pode-se dizer que so contrrios uns aos outros. Os homens concordam necessariamente quando vivem guiados pela razo. Aquele que virtuoso deseja aos outros o mesmo bem a que aspira. E, ltima tese, a potncia de auto conservao o supremo direito de natureza de cada um (isto , Espinosa estabelece a identidade entre o direito, direito natural e a potncia de existir de cada um, por isso em Espinosa, direito poder). Espinosa invoca o que ele chama de o eloqente testemunho da experincia quotidiana para confirmar que nada mais til a um homem, portanto nada um bem maior para um homem, do que um outro homem. Pois os homens percebem que com a ajuda mtua, podem conseguir muito mais facilmente aquilo de que tm necessidade, e que somente unindo as suas foras, podem evitar os perigos que os ameaam de todos os lados. Se a experincia mostra a utilidade da vida em comum, a razo, por seu turno, demostra que as coisas que conduzem sociedade dos homens, ou s que fazem com que os homens vivam em concrdia, so teis. Ao contrrio, so ms as que induzem a discrida na cidade. Por que a identidade entre direito e potncia, ou entre direito e poder? A potncia do universo no seno a potncia de uma substncia nica, absolutamente infinita, imanente a todas as suas expresses finitas, e, por isso, o direito de natureza no seno a potncia natural de cada ser singular, que exprime, na sua singularidade, a potncia da substncia universal. E isso que lhe assegura fazer apenas o que segue da necessidade de sua natureza, e julgar, segundo seu prprio temperamento, o bom e o mal. Ou, como escreve Espinosa, o direito de natureza coincide com a potncia e o desejo de cada um, e por isso tudo o que cada um deseja lhe permitido por natureza e nada lhe proibido por natureza, seno o que ningum deseja ou o que ningum pode. Ora, se os homens vivessem guiados pela razo, cujas regras visam o que verdadeiramente til para cada um e para todos, eles seriam virtuosos, no sentido de que todos estariam exercendo

autonomamente a sua potncia de existir e de agir ento, se fossem todos guiados pela razo, seriam todos virtuosos, e cada um exerceria o seu direito natural sem dano para os outros. Mas, como os homens so naturalmente atravessados e perpassados pelas paixes, que ultrapassam em muito a potncia da sua virtude, eles so contrrios uns aos outros, mesmo quando precisariam de auxlio mtuo. (Isso natural, no tem nada o que lamentar, censurar ou zombar. No tem que, maneira dos tericos tradicionais, dizer mas isso uma desgraa!. No, assim. O que ns temos que perguntar o que fazemos com isso que assim). Em outras palavras, se vivessem guiados pela razo, suas naturezas singulares concordariam, pois eles descobririam que possuem qualidades e propriedades comuns a todos os seres humanos, e que isso os torna semelhantes. Neste caso, guiados pela razo e conhecendo a semelhana de todos com todos, a sua concrdia seria imediata e espontnea. E sendo todos virtuosos, cada um desejaria para os outros o mesmo bem a que aspira. Todavia, tambm por natureza que os homens so contrrios uns aos outros, e habitados pelas paixes, a discrdia lhes natural, imediata e espontnea. Assim, a nica maneira de passar da contrariedade passional concordncia passional, passar da discrdia concrdia, diz Espinosa, renunciar ao direito natural e desejo natural de prejudicar os outros. Essa mudana se realiza em dois nveis. O primeiro nvel, que tem com efeito produzir em ns o desejo de no prejudicar os outros, essa mudana, podemos dizer que uma passagem: da discrdia concrdia, passa-se de uma paixo fraca, o medo que todos tm de todos, a uma paixo forte, a esperana dos benefcios decorrentes da utilidade recproca. O segundo nvel da mudana, porm, que Espinosa apresenta como renncia ao direito natural, uma ruptura. Visto que Espinosa afirma que a poltica deve ser compreendida a partir da condio natural dos homens - que esses so naturalmente passionais e racionais, e que a paixo pode dividi-los, enquanto a razo necessariamente os une -, para chegar instituio da poltica, preciso encontrar um ponto de interseco entre a razo e a paixo. Esse ponto de interseco no qual a razo e a paixo se cruzam e encontram um ponto que comum ambas o que Espinosa chama de Lei. A lei, igualmente vlida para a paixo e para a razo. No que concerne paixo, trata-se da lei natural segundo a qual uma paixo s pode ser vencida por outra mais forte e contrria, e que ns nos abstemos de causar um dano por medo de receber um dano maior em resposta isto uma lei natural, a lei natural que governa a paixo. No que concerne razo, Espinosa demonstra exatamente a mesma lei, pois, ele diz, sob a conduo da razo, escolhemos de dois bens, o maior, e de dois males, o menor, e ele diz ainda, sob a conduo da razo, desejamos um bem maior futuro de preferncia um bem menor presente, e um mal menor presente de preferncia a um mal maior futuro. (Ou seja, a lei natural opera na paixo e na razo da mesma maneira. Num caso, espontaneamente assim que ns fazemos, no outro caso ns sabemos que assim. Mas a mesma lei - ou seja, a razo e paixo no indicam que na paixo eu sou viciosa, queda, a carne fraca, preciso de punio, etc etc e na razo, eu sou formidvel, minha alma se eleva, silencia a fraqueza do meu corpo..., nada disso! A paixo e a razo operam de acordo com a mesma lei. A nica diferena que na paixo eu no sei e na razo eu sei. Mas a mesma lei.) Graas essa lei natural que a um s tempo rege a paixo e a razo, a vida social por meio da cooperao, ou da diviso social do trabalho e dos seus produtos, e das regras tcitas da vida em comum, poder ser estabelecida como alicerce de instituio da civitas - ou das leis civis, que sero mantidas pelos cidados, no pela fora da razo (que no tem nenhum poder sobre as paixes), e sim pelas ameas de punio. E Espinosa explica porque que o temor tem que vigorar tambm instalada, instituida a vida social e poltica. Ele escreve esse afeto pelo qual um homem disposto de maneira a no querer aquilo que quer e a querer aquilo que

no quer chama-se temor, que no , seno, o medo quando um homem est disposto por ele a evitar com um mal menor, um mal maior que julga futuro. Portanto, o que os homens descobrem que um mal maior viver na solido, e um mal menor viver com os outros. O campo aberto pela dinmica afetiva funda-se ento na demonstrao na fora de uma afeto para vencer um outro mais fraco e contrrio a partir da definio da fora de um afeto segundo a diferena entre alegria e tristeza, e conforme as circunstncias. De tal maneira que um afeto mais forte quando voltado para algo presente e imaginado como necessrio e mais fraco quando voltado para algo passado ou futuro e imaginado como possvel ou contingente. A dinmica da contrariedade e da fora dos afetos, indica que a esperana, paixo derivada da alegria, mais forte do que o medo, derivado da tristeza, e, no nvel das circunstncias, a dinmica afetiva da maior fora do presente em comparao com o passado e o futuro, e do necessrio com relao ao possvel e ao contingente explica porque a segurana mais forte do que a esperana, e mais forte do que o medo, e porque, segundo Espinosa, do sentimento de segurana que provem o verdadeiro poder das leis civis sobre ns. Em outras palavras: o temor coletivo, ou o temor s ameaas da lei, se distingue do medo individual da morte e da solido (aquilo que Espinosa chama comunis miseria, a misria em que todos estamos comumente). Por que? Porque esse temor exprime o medo de perder a segurana, e vou enfatizar muito, e daqui a pouco isso vai ficar claro quando ns virmos a diferena entre a guerra e paz, que por segurana, Espinosa entende uma esperana a respeito da qual no existe dvida. Segurana no tem nada a ver com as armas, fortalezas, exrcitos, polcia, priso, sistema penal e sistema carcerrio. A segurana a ausncia de dvida quanto ao bem presente e futuro. Sabemos que a tica coloca o medo e a esperana entre as paixes irredutveis, insuperveis. (Nunca vamos nos livrar do medo e da esperana. Eles podem diminuir de fora, mas no podemos deixar de senti-los. Por que? Porque eles so expresses da nossa finitude. Ns somos partes da natureza que no podem ser concebidas sem as outras. Eles so expresses do limite do nosso conhecimento quanto ao curso das coisas singulares, e portanto, so expresses da nossa relao com a alteridade, quer ns nos relacionemos imaginariamente com o outro, quer nos imaginemos com ele racionalmente.) Com efeito, a experincia imaginria da finitude se realizar como dependncia de algo outro e, simultaneamente, como desejo de consumor essa alteridade, absorv-la, aniquil-la. (Ou seja, ns imaginamos que venceremos a nossa dependncia daquilo que outro exterior a ns se nos apossarmos desse outro, se o consumirmos e o aniquilarmos. Essa a maneira pela qual o desejo se realiza imaginariamente. Aniquilar o outro como se aniquilando o outro eu parasse de desejar o que outro ou parasse de desejar aquilo que externo a mim.) E a discrdia passional entre os homens nasce do desejo de cada um de ter a posse exclusiva e a fruio exclusiva de um bem. Dos bens desejados pela imaginao paixo, diz Espinosa, o maior bem imaginado a posse de um outro ser humano, para faz-lo desejar o nosso desejo. E para a imaginao coletiva, o bem supremo julgar-se escolhido por deus, com excluso de todos os outros (ser, portanto, o povo eleito). Nessa dependncia do outro, seja como desejo de possui-lo com exclusividade, absorv-lo e consumi-lo, seja como desejo de impedi-lo de alcanar um bem que lhe poderia pertencer, emerge, pela primeira vez, o medo da solido, cujo aparecimento necessariamente ambguo, pois exprime, em um s tempo, nossa carncia do outro e nossa recusa do outro, enquanto separado de ns e estranho a ns. Todavia, o eloquente testemunho da experincia nos fora a reconhecer a impossibilidade de efetivar o desejo de total consumao e aniquilamento do outro, pois esse desejo se volta contra ns, seja porque no confronto

conosco, o outro experimenta esse mesmo desejo de aniquilamento e possesso contra ns, seja porque a destruio do outro nos lana no mais completo desamparo e no desepero. Assim, o medo da solido pode transforma-se em desespero cuja causa somos ns mesmos. aqui, entretanto, que intervem a lei natural do mal menor e do bem maior, sob a forma de um afeto mais forte do que o medo, que produzido pelo aniquilamento do outro, ou seja, o aparecimento da esperana, operando a passagem da destruio recproca ou da discrdia cooperao e concrdia. O que permite essa passagem de uma paixo a sua contrria, do medo esperana, , de um lado, sob a lei do mal menor e do bem maior, a vitria efetiva da esperana, paixo de alegria, cuja fora superior e contrria do medo, a paixo de tristeza, e do outro lado, o fato de que o que refora a esperana, mesmo que a esperana no o saiba, so as noes comuns trazidas pela razo, isto , o fato de que os seres humanos possuem qualidades, propriedades e aspectos comuns, pois essa comunidade o fundamento ontolgico da concordncia... (Ou seja, a concordncia entre ns, a concrdia, segundo Espinosa, no um acontecimento psicolgico, resolvemos todos de boa vontade concordar, que um pouco o que aparece no Hobbes. No. Em Espinosa, a concordncia tem um fundamento ontolgico. O que nos leva concordncia o fato de que ontologicamente os seres humanos possuem qualidades, propriedades, aspectos comuns, e porque ns temos uma comunidade de ser que ns podemos passar da discrdia concrdia. A concrdia, portanto, no um momento de boa vontade, um momento em que opera com muito mais fora o que h de comum entre os homens do que o que h de contrrio entre eles. E por isso que a razo est l presente: ela est operando tacitamente, silenciosamente, a descoberta do que comum a todos.) ... visto que estes aspectos so o fundamento ontolgico da concordncia e, portanto, a mola racional invisvel da cooperao entre os homens. Ns poderamos at falar de uma astcia da razo, que se serve de uma paixo, a esperana, para dar fora operante potncia racional das noes comuns, ou daquilo que comum a todos os homens. De fato, preciso observar que Espinosa distingue entre as relaes fundadas na paixo e as relaes fundadas na razo. Ele afirma que as relaes humanos fundadas nas paixes podem tornar os homens contrrios uns aos outros, enquanto as relaes fundadas na razo os tornam necessariamente concordantes. Em outras palavras: sob o domnio das paixes, a discrdia uma possibilidade, que no exclui a possibilidade da concrdia, ainda que tanto a discrdia quanto a concrdia sejam instveis, inconstantes. Sob a razo, porm, a concrdia necessria, pois ela est inscrita na natureza dos homens. A astcia da razo est em se valer de uma paixo alegre, propensa concrdia para nela introduzir estabilidade e constncia, ao lhe dar os meios para transformar-se de esperana em segurana. Ora, se ns quisermos compreender porque alm dessa passagem da discrdia concrdia, tambm possvel falar numa ruptura, que o advento do poltico, preciso examinar ainda mais um aspecto da nossa experincia da finitude, enquanto experincia imaginria, que a nossa relao com o acaso, ou a nossa relao com a contigncia, porque Espinosa considera que essa relao com o acaso, com a contingncia que leva ao que Espinosa chama de a forma extrema da insecuritas, da insegurana, que Espinosa designa como o maior de todos os medos. Sabemos que a experincia da contingncia irredutvel, pois nunca poderemos ter a certeza quanto ao desenlace do curso total das coisas singulares. No entanto, h duas maneiras diferentes de enfrentar a contingncia, o acaso, o inesperado. Numa delas, sede-se, visto que no podendo dominar todas as circunstncias de nossas vidas, concluimos ento que no temos poder nenhum sobre algumas dessas circunstncias. Ou seja, a primeira maneira de enfretar a contingncia seder a ela, viver sob o medo do futuro, na dvida, na angstia, na insegurana que d origem superstio, crena

na transcendncia da potncia divina, d origem ao poder divinatrio de magos e sacerdotes, em suma, essa maneira de submeter-se contingncia d origem ao que Espinosa chama poder teolgico e ao poder monrquico. De fato, o desejo de vencer a dispero e a fragmentao temporais dos acontecimentos leva a imaginao a produzir concatenaes arbitrrias entre as coisas e os acontecimentos, cuja estabilidade e permanncia dependem da sua unificao numa figura imaginria, que a figura da unidade do poder encarnado num deus ou encarnado num rei. Em suma, o poder, nascido apenas do medo, sempre imaginado como transcendente e separado dos homens (poder de deus), transcendente e separado dos crentes (poder teolgico) e transcendente e separado dos cidados (poder monrquico). Se o poder teolgico e o poder monrquico produzem os mesmos efeitos, produzem aquilo que Espinosa chama servido do rebanho, e a revolta contnua, isto , a discrdia como forma das relaes sociais e polticas, porque esses dois poderes so causados exclusivamente pelo medo, e no podem seno produzir os efeitos do medo. H porm uma outra maneira de enfrentar o acaso, a contingncia. Agora, distinguimos entre o que est completamente submetido ao poder das causas externos, e portanto est completamente fora do alcance do nosso poder, e o que est em nosso poder, segundo as circunstncias. Ns dirigimos o nosso esforo e a nossa potncia para conservao dessas circunstncias e, sobretudo, para ampliao da presena dessas circunstncias, e do seu campo. Em outras palavras: ns buscamos reforar as circunstncias presentes para que eles sejam capazes de determinar como ser o futuro, de tal maneira que, graas a ns, as circunstncias presentes recebem uma espcie de necessidade. Aqui tambm h uma astcia da razo, pois a imaginao levada a produzir concatenaes entre coisas e acontecimentos que dependem da nossa potncia, e que por isso se apoiam, sem um saber, implicitamente, em conexes entre as coisas e os acontecimentos que so conexes reais e necessrias, ainda que ignoradas por ns. Nesse caso, ns passamos da esperana segurana, e para conserv-la, precisamos manter as circunstncias presentes no seu advento. Ora, a ampliao das circunstncias em nosso poder no muda a esperana em segurana seno quando estabelecemos os instrumentos de estabilizao da temporalidade, ou seja, quando ns estabelecemos instituies polticas que esto e permanecem em nosso poder. Em outras palavras: dado que essa instituio decorre da percepo do que est em nosso poder, a potncia coletiva assim instituida no se torna transcendente, no se separa dos cidados, mas a potncia dos cidados. Isso significa que a poltica instituida pela esperana imanente aos cidados, ou seja, essa poltica democrtica. a poltica instituida pelo que Espinosa chama libera multitudo, massa livre, que livre por oposio multitudo vencida, conquistada, dominada, submetida ao medo. Assim, essas duas formas de relao com a contingncia, submeter-se a ela e sentir medo, distinguir o que no est e o que est em nosso poder e reforar a esperana para transform-la em segurana, portanto essas duas maneiras de nos relacionarmos com a contingncia nos permitem compreender porque as questes concernentes paz, segurana e guerra ocupam quase todos os captulos do Tratado Poltico de Espinosa dedicados quele regime poltico no qual o poder pertence a um s, seja o poder de um s homem, como na monarquia, ou de um s Estado, como no imperialismo. Esse regime poltico do poder de um s apresentado por Espinosa como uma ordem militar ou beligerante, na qual os assuntos pblicos so tratados secretamente, e a seu propsito que o filsofo introduz a distino entre paz e ausncia de guerra (Espinosa diz: a paz no ausncia de guerra, vamos ver porque). Falando da situao servil dos cidados, reduzidos condio de um rebanho aterrorizado, e da solido sob a aparncia de sociedade. No lugar da segurana, ou seja, da ausncia de dvidas polticas quanto ao futuro, o poder de um s re-introduz a contingncia num nvel muito mais profundo,

uma vez que agora tudo parece depender da vontade caprichosa, contingente e secreta daquele indivduo ou Estado que decide por todos os outros, e aquele portanto cuja potncia se apoia sobre a fora dos exrcitos e das fortalezas, e s pode conserv-la exercendo-a continuamente por meio da represso interna e da guerra externa, portanto, produzindo, sem cessar, a insegurana e a instabilidade. Submetida imagem de um poder soberando, voluntrio, nico, a poltica nada mais do que dominao, pois subtrai aos cidados e aos outros Estados, os meios para enfrentar as circunstncias que, de outro modo, estariam sob o seu poder. Ou seja, ali, onde houver permanentemente exrcitos, armas, fortalezas e decises secretas, ali o que reina a insegurana. ( interessante porque no nosso vocabulrio, o setor de segurana nos Estados a polcia, o exrcito, a priso... para Espinosa exatamente oposto, isso o lugar da insegurana.) Dentre os modernos, Espinosa o nico a distinguir entre a paz e a mera ausncia de guerra. Isso nos coloca diante de um paradoxo, porque ele considera que a guerra to natural quanto a paz. Com efeito, parece que Espinosa afirma simultaneamente que, por naturaza, os homens, atravessados pelas paixes, contrrios uns aos outros, fazem com que a guerra lhes seja natural, imediata e espontnea. Mas ele diz ao mesmo tempo, tambm que, do ponto de vista da razo, os homens concordam por natureza, visto que, ontologicamente, eles possuem qualidades, propriedades e aspectos comuns e, portanto, racionalmente, a paz lhes natural, imediata e espontnea. O paradoxo parece total, no s porque as paixes nos obrigam a indagar como possvel a guerra, j que os homens, racionalmente, deveriam estar na paz, mas tambm somos obrigados a indagar como possvel a paz, j que, naturalmente, a guerra o que nos constitui. E mais, ns somos obrigados a indagar isto porque a paz e a guerra podem assumir, cada uma, a imagem da outra. A paz vai aparecer como ausncia de guerra, e a guerra vai aparecer (oh, CNN), como o esforo para conservar a paz. Assim, o que ns temos que perguntar , no s, o que fazemos com o fato de que, por natureza, somos belicosos e, por natureza, somos pacficos. Ns temos que perguntar como ns passamos de uma coisa para outra. Mas, sobretudo, temos que perguntar porque que a imagem da paz e a imagem da guerra podem se confundir de tal modo que eu defina a paz por meio de imagem da guerra, e defina a guerra por meio de uma imagem da paz. Ou seja, a paz como ausncia de guerra e a guerra como esforo para obter a paz. No entanto, no h paradoxo algum. A chave do enigma encontra-se na definio que Espinosa d da paz como virtude. Isso significa, por um lado, que a paz natural num sentido completamente diverso da naturalidade da guerra e, at mesmo, num sentido diverso da naturalidade da concrdia. E, por outro lado, significa que graas definio da paz como virtude, ns podemos conceber a definio da instituio da poltica simultaneamente como passagem da discrdia concrdia e como uma ruptura, isto , o advento de algo novo pela ao dos homens. No Tratado Poltico, Espinosa escreve: se numa cidade os sditos no tomam das armas porque tm medo, deve-se dizer que nela no h paz, e sim ausncia de guerra. A paz no simples ausncia de guerra, mas uma virtude que se origina da fortaleza do nimo, pois que, de fato, a obedincia uma vontade constante de fazer aquilo que conforme a deciso comum, tomada pela cidade, e que deve ser feito. Porm, uma cidade na qual a paz dependa da inrcia dos sditos, que se deixam conduzir como um rebanho e formados apenas para servir devese, mais corretamente, ser chamada de solido do que de cidade, de barbrie mais do que de sociedade. E, no captulo 6 do TP, ele diz o seguinte: a experincia parece ensinar que no interesse da paz e da concrdia, convm que todo poder pertena a um s [indivduo, rei ou imprio]. Com efeito, nenhum Estado permaneceu tanto tempo sem nenhuma alterao notvel como os turcos [ele est se referindo ao imprio Turco-

Otomano]. E em contrapartida, nenhuma cidade foi menos estvel do que as cidades populares ou democrticas, nem onde se tenham dado tantas sedies. Mas se a paz tem de possuir o nome de servido, barbrie e solido, nada h mais lamentvel nos homens do que a paz. pois a servido, e no a paz, que requer que todo poder esteja nas mos de um s. A paz no consiste na ausncia de guerra, mas na unio do nimos, ou seja, na concrdia. Antes de examinarmos o significado dessa definio da paz, tomemos, s para exemplificar, uma das diferenas, uma das muitas, uma diferena entre a guerra e a paz, uma das muitas que Espinosa estabelece. Quando, no TP Espinosa analisa os pactos acordados entre pases, entre Estados, em vista da paz, ele observa, e nisto ele est muito prximo de Maquiavel, que os pactos dependem das circunstncias, cuja mudana pode tornar um pacto nulo, re-enviando cada pas ou cada Estado ao direito de guerra. No curso dessa anlise, Espinosa repete vrias vezes que a guerra pode ser declarada unilateralmente. De fato, a guerra sempre uma declarao unilateral. Mas ele afirma que o mesmo no possvel para a paz, pois a paz depende, necessariamente, do acordo entre as partes beligerantes. Uma paz unilateral uma contradio em sim mesma, apenas ausncia de guerra, imposta pelo vencedor ao vencido. Uma paz imposta pura e simplismente exerccio da dominao. Isso significa que a diferena entre a guerra e a paz decorre do fato de que a primeira natural por direito de natureza, mas a paz natural por efeito de uma instituio humana, que age sobre o direito natural por meio da lei, ou seja, por meio do direito civil. A paz no ausncia de guerra porque no a concrdia animal, no o rebanho, e sim aquilo que, em decorrncia da natureza racional dos homens, produz um mundo propriamente humano, isto , no dizer de Espinosa, a cidade, a poltica, na qual ns vivemos a vida propriamente humana. A guerra repetio. Ela parece sempre nova... ela repetio. Ela reitera indefinidamente os conflitos passionais do estado de natureza. A paz a introduo do novo no mundo, porque o surgimento do livre sujeito poltico, como um sujeito pblico e coletivo, que embora encontre na natureza as condies da sua possibilidade, s encontra as condies da sua efetividade na avaliao racional das circunstncias. Eis porque, no plano natural da discrdia e da concrdia, ns podemos falar de uma passagem de uma para outra, mas devemos falar numa ruptura entre a naturalidade da guerra e a instituio da vida poltica como securitas et pax. A diferena entre as duas naturalidades se explicita quando compreendemos o sentido da definio de paz como virtude. Recordemos a definio Espinosa da virtude. Na tica, Espinosa define a virtude da seguinte maneira: por virtude e potncia, entendo o mesmo, isto , a virtude, enquanto se refere ao homem, a prpria essncia ou natureza do homem quando tem o poder de fazer aquilo que s pode ser feito graas s leis de sua prpria natureza. Como eu lhes disse, a virtude a independncia, a autonomia, fazer aquilo que segue do nosso prprio ser. Resta saber como a paz uma virtude. Recusando uma concepo normativa da tica, Espinosa identifica virtude e nossa potncia de agir, quando a ao determinada internamente pela prpria essncia singular do agente. Se na paixo estamos externamente determinados pela potncia de causas exteriores, na ao, isto , na virtude, ns somos internamente determinados pela potncia da nossa essncia, do nosso ser. Por que a paz uma virtude poltica? Antes de tudo porque se distingue, em sentido geral, da concrdia. Com efeito, Espinosa afirma que a concrdia pode ser instaurada por medo, por servilhismo, por vergonha. Isso significa que a paz exige um tipo de concrdia completamente diferente. a concrdia instituida pela massa livre, pelo sujeito poltico-coletivo, que pensa mais, diz Espinosa, em cultivar a vida do que em fugir da morte. Ora, ns sabemos que, para Espinosa, cultivar a vida o nico e o

primeiro fundamento da virtude. Alm disso, a paz virtude por ser fortaleza do nimo. Isto , ela bom a obedincia lei comum como a vontade constante de seguir as decises da cidade, de tal maneira que a concrdia que nela se exprime no pode provir da inconstncia que pesa sobre o medo, o servilhismo ou a vergonha. Ela s podia provir, essa constncia s pode provir da segurana. Podemos assim dizer que a paz virtude poltica porque capaz de articular um dado natural racional, a concrdia, e um dado natural imaginativo, o efeito de segurana com o efeito da constncia da esperana. Manter unido esses dois elementos passionais exige fora de nimo, pois a desapario de um deles acarreta a do outro. Nesse primeiro nvel, portanto, a paz virtude, ou fora do nimo, enquanto uma atividade vigilante que agarra as circunstncias instveis para lhes dar uma estabilidade contnua. Todavia, justamente porque no h paz perptua, a paz virtude poltica num nvel muito mais profundo, nvel no qual a razo e as circunstncias precisam operar em conjunto. nessa difcil operao que se exprime uma afirmao de Espinosa, qual seja: a razo ensina absolutamente a buscar a paz. A distino entre esperana e segurana decorre da presena na insegurana da dvida sobre o futuro, e da ausncia dessa dvida na segurana. Todavia, preciso observar que Espinosa bastante claro ao definir a segurana. A contingncia que afeta o curso de todas as coisas singulares e de todos os acontecimentos faz com que a segurana seja ausncia de dvida, mas ela no a presena da certeza. O saber certo, para Espinosa, no se refere ao bom e ao mal nas coisas, e sim ao bom e ao mal nos afetos, conforme eles favoream ou prejudiquem a nossa potncia de auto conservao, como causa interna ativa dos sentimentos, das idias, das aes e da vida poltica. Em outras palavras: as certeza no diz respeito ao curso dos acontecimentos, sobre isso nunca teremos certeza, e sim diz respeito nossa relao com os acontecimentos, e o critrio, ou a medida de tais relaes, isto , o bom e o mal, a potncia de auto conservao como primeiro e nico fundamento da virtude. A virtude a ao guiada pela razo, a qual nos ensina a cultivar a nossa vida, passando de relaes passionais conflituosas a relaes racionais de concordncia, porque as primeiras nos enfraquecem e as segundas nos fortalecem. Isso significa, portanto, que a virtude no muda o mundo. Ela nos muda. E com isso ela muda a nossa relao com o mundo. Ela nos faz saber, com certeza, quais afetos so bons, quais mals, e porque a paz um bem. Se, portanto, a paz virtude, porque, antes de tudo, traz certeza segurana e cultivo vida. isso que confere sentido afirmao de Espinosa de que a razo ensina absolutamente a buscar a paz. Se a paz virtude poltica, porque, como toda virtude, no elimina a contingncia, mas age sobre ela. E Espinosa a considera a virtude poltica por excelncia, porque ela a capacidade de discernir entre circunstncias que favorecem a segurana, a concrdia e a liberdade, e as circunstncias que as impedem. A paz a potncia para determinar o indeterminado, instituindo a boa relao da civitas com as circunstncias instveis. Em suma, a paz capaz de enfrentar o destino e dobr-lo em nosso favor. Quarta parte Essas consideraes nos permitem entender porque Espinosa julga a democracia a forma superior da vida social e poltica. Pois, diz ele, somente nela os homens so livres, visto que, somente nela, eles so, a um s tempo, governantes e governados, porque so autores da lei que obedecem. Ns estamos acostumados a aceitar a definio liberal da democracia. Essa definio liberal define a democracia como regime da lei e da ordem para garantia de liberdades

individuais. Visto que o pensamento e a prtica liberais identificam liberdade e competio, essa definio da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz a competio econmica da chamada livre iniciativa, e a competio poltica, entre partidos que disputam eleies. Em segundo, que h uma reduo da lei potncia judiciria para limitar o poder poltico, defendendo a sociedade contra a tirania, pois a lei garante os governos escolhidos pela vontade da maioria. Em terceiro lugar, a concepo liberal considera que h uma identificao entre a ordem e a potncia dos poderes executivo e judicirio para conter os conflitos sociais, impedindo sua explicitao e seu desenvolvimento - impedimento que feito por meio da represso. Em quarto lugar, a concepo liberal da democracia considera que, embora a democracia deva ser justificada como um valor, ou como um bem, ela de fato encarada pelo critrio da eficcia. Essa eficcia medida, no plano legislativo, pela ao dos representantes, entendidos como polticos profissionais. E no plano do poder executivo, pela atividade de uma elite de tcnicos competentes, aos quais cabe a direo do Estado. (Uma tristeza, n, a concepo liberal da democracia...) A democracia assim reduzida a um regime poltico eficaz, baseado na idia da cidadania organizada em partidos polticos, que se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas solues tcnicas para os problemas econmicos e sociais. Ora, h, na prtica democrtica e nas idias democrticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superior ao que o liberalismo percebe ou deixa perceber. O que significam as eleies? Muito mais que a mera rotatividade de governos, ou alternncia no poder, as eleies simbolizam o essencial da democracia, ou seja, que o poder no se identifica com os ocupantes do governo, que o poder no lhes pertence, mas sempre um lugar vazio, que periodicamente os cidados preenchem com representantes, podendo revogar seus mandatos se no cumprirem o que lhes foi delegado para representar. O que significam as idias de situao e oposio, maioria e minoria, cujas vontades devem ser respeitas e garantidas pela lei? Elas vo muito alm dessa aparncia. Elas significam que a sociedade no uma comunidade una e indivisa, voltada para o bem comum, obtido por consenso. Mas, ao contrrio, que a sociedade est internamente dividida, que as divises so legitimas, e que devem expressar-se publicamente. Da mesma maneira, as idias de igualdade e liberdade, como direitos civis dos cidados, vo muito alm da sua regulamentao juridica formal. Significam que os cidados so sujeitos de direitos, e que onde tais direitos no existam nem estejam garantidos, tm-se o direito de lutar por eles e exigi-los. Assim, a criao e a conservao de direitos, exigidos por contra-poderes sociais, o cerne, o corao da democracia. O que um direito? Um direito difere de uma necessidade, ou de uma carncia, e de um interesse. De fato, uma necessidade, ou carncia, algo particular e especfico. Algum pode ter necessidade de gua, outro pode ter carncia de comida. Um grupo social pode ter carncia de transporte, um outro, de hospitais. H tantas necessidades, ou carncias, quantos individuos, quantos grupos sociais. Interesse tambm algo particular e especfico, dependendo do grupo ou da classe social. Necessidades ou carncias, assim como interesses, tendem a ser conflitantes, porque exprimem as especificidades de diferentes grupos e classes sociais. Um direito, porm, ao contrrio de necessidades, carncias e interesses, no particular e especfico, mas geral e universal, vlido para todos os indivduos, grupos e classes sociais. Em outras palavras, se tomarmos as diferentes carncias e os diferentes interesses, veremos que, sob eles, esto pressupostos direitos. Dizemos, ento, que uma sociedade, e no um simples regime de governo, democrtica, quando alm de eleies, partidos polticos, diviso dos trs poderes da repblica, respeito da vontade da maioria e das minorias, institui algo muito mais

profundo, que condio do prprio regime poltico. Ou seja, uma sociedade democrtica quando institui direitos. E essa instituio uma criao social de tal maneira que a atividade democrtica social realiza-se como um contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ao estatal e o poder dos governantes. Essa ao , no seu conjunto, a poltica. A sociedade democrtica institui direitos pela abertura do campo social criao de direitos reais, amplio de direitos existentes e criao de novos direitos. Isso porque podemos afirmar, em primeiro lugar, que a democracia a nica sociedade, a nica forma da poltica, que considera o conflito legtimo. No s trabalha politicamente os conflitos entre as necessidades, as carncias e os interesses, isto , as disputas entre partidos polticos, as eleies, governantes pertencentes a partidos opostos, mas procura instituir as necessidades, as carncias e os interesses como direitos e, como tais, exigem que sejam reconhecidos e respeitados. Mais do que isso. Na sociedade democrtica, indivduos e grupos organizam-se em associaes, movimentos sociais, movimentos populares, classes, se organizam em sindicatos e partidos, criando um contra-poder social, que direita ou indiretamente, limita o poder do Estado. A poltica se realiza, portanto, nesse contexto. Em segundo lugar, a democracia a sociedade verdadeiramente histrica, isto , aberta ao tempo, ao possvel, s transformaes e ao novo. Com efeito, pela criao de novos direitos, e pelas existncias dos contra-poderes sociais, a sociedade democrtica no est fixada numa forma para sempre determinada - ou seja, ela no cessa de trabalhar suas divises internas, suas diferenas internas, seus conflitos e de orientar-se pela possibilidade objetiva da liberdade e, portanto, de alterar-se graas e por meio da prpria prxis. A sociedade democrtica , pois, aquela que no esconde suas divises, mas as trabalha pelas instituies, pelas leis, pela prxis humana. ela, creio eu, que pode responder pergunta que nos foi colocada: o que a poltica.