mariana staudt
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Reportagem de Mariana Staudt para a revista Primeira Impressão.TRANSCRIPT
RECORDAÇÕES VISUAIS
Atividade mental Com a ajuda de estímulos visuais, o taxista Vandir
cultiva lembranças cheias de detalhes
Diariamente, aviões decolam e pousam de forma elegante no Aeroporto
Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre, o maior da Região Sul em número de
aeronaves e passageiros. Do lado de fora da sala de desembarque, há uma grande fila de
carros brancos com uma faixa lateral azul, que identifica a cooperativa oficial de táxis, a
Cootaero. Esses aguardam viajantes de todas as partes do planeta que necessitam de
outro transporte para, finalmente, chegar ao seu destino final. No meio de toda essa
movimentação, Vandir Machado Pedroso, de 56 anos, coleciona momentos e
recordações da atividade.
Na profissão de taxista, ter uma boa memória é fundamental para lembrar os
nomes das ruas, os melhores caminhos, buscar os passageiros na hora marcada, fazer o
cálculo do troco, assim como para não esquecer as centenas de histórias que são
contadas nessa espécie de “divã móvel”. Vandir é mais do que uma prova disso. Ele é
exemplo de quem sabe usar a memória a seu favor. Talvez essa qualidade seja resultado
do gosto por exercitar a mente e passar o tempo entre uma corrida e outra fazendo
palavras-cruzadas, que comprovadamente estimula a atividade mental e faz o tempo
passar mais rápido. Ou, ao menos, parecer passar.
Outra possibilidade para a sua facilidade em memorizar dados e situações possa
ser o hábito que traz desde os 17 anos de trocar letras por números. Mostrando suas
anotações em uma agenda, explica que adaptou uma palavra-chave de nove letras
diferentes, em que cada uma corresponde a um número. “É um teste de memória e eu
uso o tempo todo, até fazendo compras no mercado”, conta. A palavra, porém, é
segredo. “Se eu contar não tem sentido. Perde o valor.” Vandir utiliza os códigos para
tudo: senhas de banco, nas finanças, datas e números de telefone. A neurologista
Fabiana Mugnol, de Porto Alegre, afirma que além de bons hábitos de sono e
alimentação, jogos mnemônicos, ou seja, a memorização por associação auxilia para
quem quer recordar grandes quantidades de informações, que é o caso de Vandir.
Mesmo com o auxílio tecnológico do GSP, o taxista afirma que, até quando não
traça um itinerário no aparelho, está sempre lendo o que passa pela frente, desde placas
de estabelecimentos até os nomes das ruas. Assim, quando alguém diz um destino, ele
tem alguma lembrança de onde o local possa ser. “Há muitas maneiras de codificar e
recuperar informações visualmente. Usar a estratégia de associar conceitos a imagens
pode incrementar a memória visual, assim como incluir diagramas, tabelas, esquemas,
desenhos, símbolos, letras ou números”, explica a neurologista Fabiana.
Algumas pessoas têm mais facilidade para lembrar situações de forma detalhada.
“O mecanismo está ligado ao quanto as imagens são significativas, remetendo a alguma
forma de conexão com conhecimentos prévios”. Portanto, este conhecimento já
adquirido altera a forma com que as imagens são processadas, permitindo que milhares
delas sejam transferidas para a memória de longo prazo, com riqueza de
particularidades.
É assim que Vandir conta as suas histórias. Durante a conversa dentro do
automóvel, uma Meriva, o taxista é muito detalhista. Todas as narrações são completas.
Seja o desconto dado para a senhora que pediu uma viagem para Passo Fundo, que do
custo original de 728 reais passou para 650 pagos em euros, já que ela estava chegando
da Espanha, ou ainda o horário do ônibus da menina que iria fazer vestibular em Santa
Maria no dia seguinte, mas não tinha dinheiro.
Essa situação da garota, inclusive, é especial para Vandir. “Funciona assim, só o
primeiro da fila pode negociar valor, e eu era o décimo quando chegou esta menina.
Eram 23h10min, e ela foi sacar dinheiro no caixa eletrônico, mas errou a senha três
vezes e bloqueou o cartão. O ônibus dela saía à meia-noite. A coitadinha ficou lá na
frente com o nariz enorme de tanto chorar. Para a sorte dela, 23h30min eu cheguei em
primeiro e fui falar com ela. ‘Resolveu teu problema?’”. Ao receber a resposta negativa,
o motorista disse que iria levá-la até a rodoviária. “Mas eu não tenho dinheiro, tu não
entende?”, retrucou ela, desesperada. “Chegamos lá faltando 15 minutos para a meia-
noite. Ela pediu o número da minha conta, saiu correndo, nem agradeceu nem nada e foi
embora.”
Dois dias depois, estavam depositados 30 reais na conta, mesmo a corrida tendo
custado 22. “A minha surpresa foi no ano passado, quando me chamaram na ponta da
fila. Eu não reconheci logo de cara, mas quando ela sorriu, lembrei quem era. Ela veio,
me abraçou, me deu um beijo e disse que estava ali para me agradecer e se desculpar
por ter saído correndo para o ônibus sem dizer nada. Contou que passou no vestibular
em veterinária e que daquele dia em diante, só andaria de táxi comigo”, lembra Vandir
com carinho.
Como seu ponto fica no aeroporto, seus serviços também se tornam
internacionais. Com um “Hola, que tal?” ou um inglês meio enrolado, Vandir se vira
para atender bem o cliente, seja de onde ele for. “Uma vez com um alemão foi difícil.
Nos entendemos por gestos, basicamente. Ele queria passar na frente da Arena do
Grêmio, logo que inaugurou. Com o sotaque forte, me perguntou se eu era gremista ou
colorado. Quando eu respondi que torcia para o Grêmio, ele começou a pular no banco
de trás e me deu um abraço, que eu quase perdi o controle do carro”, ri. Situações
engraçadas, a propósito, são as mais frequentes.
OBSERVADOR ATENTO
Além da boa memória visual, que, segundo a neurologista, é o tipo de
recordação que permite lembrar uma imagem que já desapareceu do alcance dos
sentidos, o motorista garante que também tem uma sensibilidade de saber para onde a
pessoa está indo, antes mesmo de ela falar. “Eu analiso muito as pessoas, a forma como
se comportam. Quando vem caminhando, eu já fico pensando ‘aquele vai para a
rodoviária’. Ou se um cara sai correndo, logo que desembarcou do avião, ele
provavelmente tem uma reunião aqui perto mesmo. Se eu ofereço táxi e me respondem
‘vou fumar um cigarro primeiro’, é porque este vai fazer uma viagem longa e vai ficar
um bom tempo sem fumar”, constata.
A simpatia, a forma irreverente e o sorriso constante encantam os clientes.
“Muitos se tornam meus amigos, de trocar e-mails, de ligar para saber como está. Até
convite para pescar eu recebo”, brinca. Algumas celebridades também são conquistadas
por Vandir, que tem um atraente serviço de bordo – balas 7 Belo. Já pegaram carona
com o taxista diversos jogadores da dupla Gre-Nal e jornalistas de grandes empresas de
comunicação. “Com o Gabriel Pensador eu tenho até uma foto, muito bacana ele. Mas
quem eu queria mesmo carregar um dia é a Adriane Galisteu. Acho que ela não anda
muito de táxi... Quem sabe um dia!”, confessa esperançoso.
Após anos trabalhando como vendedor e rodando todo o estado, Vandir
ingressou na atividade de taxista por convite de um amigo. “Estava meio sem chão
depois de me separar e minha empresa falir. Precisei nascer e viver de novo. Um amigo
tinha a placa do táxi e sempre dizia: ‘Cara, tu tens um potencial incrível de
comunicação, de conhecimento. Quem sabe a gente faz um esquema juntos?’. E eu
fiquei relutando. Taxista? Eu?”. O arrependimento foi não ter começado antes. O que é
perceptível quando afirma com ênfase o que acha do seu trabalho: “É muito bom, é
muito legal. Uma hora tu estás com um estudante, daqui a pouco com um médico, um
jornalista, um psicólogo, um jogador, um ator ou uma pessoa qualquer. Cada vez que eu
coloco a chave na ignição e entra alguém, eu me pergunto ‘quem será?’”.