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XXXI ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS 22 a 26 de outubro de 2007

Caxambu- MG

GT018- ESTUDOS DE GNERO :Teoria e Pesquisa

. Maria Lygia Quartim de Moraes1

UNICAMP

Em torno do sujeito e dos processos de sujeio: Althusser, Foucault e Judith Butler.

O inconsciente freudiano faz parte do psquico, o que o impede de ser

identificado (..) com o no psquico ou com um efeito derivado do no-psquico, Por isso, o inconsciente freudiano no nem uma realidade material ( corpo, crebro, o biolgico, o psicofisiolgico) nem uma realidade social (as relaes sociais definidas por Marx como determinantes dos indivduos, independentemente de sua conscincia (..) No que Freud negasse a existncia de uma relao entre o inconsciente, de um lado, e o biolgico e o social, de outro. Toda a vida psquica est montada sobre o biolgico, graas s pulses (Triebe) a que Freud considera como representantes enviados pelo somtico ao interior do psquico.(). Mediante esse conceito de representao Freud manifesta seu reconhecimento biolgico da pulso ( que, no fundo, sempre sexual) mas, mediante esse mesmo conceito, libera a pulso do desejo inconsciente de toda a forma de determinao essencial pelo biolgico: a pulso um conceito limite que , ao mesmo tempo, conceito desse limite, ou seja da diferena entre o somtico e o psquico (Althusser, 1999, p.90).

sem falsa modstia que Freud considera a descoberta do inconsciente como um dos

grandes golpes infringidos onipotncia humana, depois de Coprnico ter comprovado

que a Terra no o centro do universo mas apenas um satlite do Sol e de Darwin ter

estabelecido nossa ascendncia simiesca. Com a teoria psicanaltica, a crena no sujeito

racional e na soberania da conscincia entra em crise, recolocando o estatuto do sujeito.

1 Professora titular de Departamento de Sociologia do IFCH e Pesquisadora do Ncleo de Estudos de Gnero Pagu da UNICAMP.

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Ora, exatamente a que reside a convergncia entre Lvi-Strauss, Louis Althusser,

Jacques Lacan e Michel Foucault, vistos como estruturalistas nos anos 70: repensar a

questo do sujeito, deslocando-o do campo do sujeito racional de Descartes.

Foucault, em entrevista concedida em 19782, observa que Altusser opunha-se filosofia

do sujeito impregnada pela fenomenologia e pelo humanismo que caracterizava o

pensamento dominante no marxismo francs. Ao mesmo tempo, essas correntes faziam

da teoria da alienao a base terica capaz de traduzir em termos filosficos as anlises

poltico-econmicas de Marx, o que levou Althusser a retomar as anlises de Marx e

reelaborar a relao entre base econmica e superestrutura poltico, jurdico e religiosa.

Assim, enquanto Althusser, aps romper com a concepo ortodoxa marxista sobre o

sujeito, encontra na psicanlise, especialmente na sua verso lacaniana, o suporte terico

para o problema da produo do sujeito, Foucault ser sempre um critico da teoria do

inconsciente e da psicanlise. Em comum, no entanto, a mesma empreitada radical de

colocar em questo a teoria do sujeito.

Na atualidade Judith Butler, filsofa norte-americana, autora do Gender Trouble, quem

recoloca a questo da subjetivao atravs de uma leitura crtica de ambos os autores e de

sua relao com a psicanlise. O presente trabalho pretende discutir adotando a

perspectiva psicanaltica questes relacionadas ao feminismo e aos movimentos

identitrios a partir do tema da constituio do sujeito. Dito de outra maneira: at que

ponto podemos pensar de uma teoria de gnero sem o recurso uma teoria da

subjetivao, logo da generificao?

Processos de sujeio: Althusser

A reproduo da fora de trabalho exige no somente a reproduo de sua qualificao, mas, ao mesmo tempo, uma submisso s regras do respeito ordem estabelecida. (Althusser, 1999, p.76)

No texto Idologie et Appareils Idologiques dEtat, publicado na revista La Pense

n.151 (junho de 1970), Althusser comenta que qualquer criana sabe que a continuidade

requer a reposio. No caso do modo de produo capitalista, trata-se da reproduo dos

meios de produo e da fora-de-trabalho. Assim, o sistema precisa re-produzir novos

trabalhadores, isso , mo de obra despossuda dos meios e instrumentos de produo. A

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produo dessa mo de obra implica em processo de sujeio ideolgica, resultante da

ao das instituies e organismos de Estado (Escola, Igreja) e pelos aparelhos do Estado

(Exrcito e Judicirio).

No campo marxista coube a Gramsci o mrito de ter entendido que o poder de Estado no

se reduz ao aparelho repressivo, mas que constitudo por aparelhos ideolgicos que

garantem a adeso moral s regras do status quo. Althusser d continuidade ao estudo

gramsciniano, afirmando que nenhuma classe pode deter duradouramente o poder de

Estado sem exercer ao mesmo tempo sua hegemonia sobre e nos Aparelhos Ideolgicos

de Estado (1976, p.86). Isso significa dizer que os Aparelhos Ideolgicos no so

somente o enjeu (o que est em jogo) como tambm o lieu (lugar) das lutas de classes.

Pois atravs dos aparelhos repressivos e dos ideolgicos que uma classe (ou aliana de

classe) mantm sua dominao.

Dessa maneira, Althusser rompe com o dualismo da materialidade da infra-estrutura

econmica versus a idealidade da supra-estrutura poltico, jurdico e ideolgico do

marxismo esquemtico. Afirma que a ideologia material e que essa materialidade

inscreve-se nas prticas e nas instituies. A crtica que faz da teoria da ideologia, tal

como se encontra na obra de Marx, incide sobre duas fraquezas bsicas do marxismo. A

primeira concerne definio de ideologia como viso mistificada/deformada do

processo real de produo. Nessa acepo de viso deformada, fica pressuposto que as

iluses da ideologia fazem sempre aluso a um real que lhe deu origem e que basta

interpretar para reencontrar, sob sua representao imaginria, a verdadeira realidade do

mundo. Ora, diz Althusser, isso significaria dizer que na ideologia os homens se

representam sob forma imaginria suas condies reais de existncia. Restaria, no

entanto, esclarecer: por que os homens precisam dessa transposio imaginria para se

representar suas condies reais de existncia?

Os homens representam no suas condies de existncia reais, seu mundo real, mas antes de tudo sua relao com essas condies de existncia. Toda ideologia representa no as relaes de produo existentes (e as outras relaes que dela derivam)mas a relao. A diferena reside portanto na dimenso de representao imaginria da ideologia. Assim sendo, superamos a questo da causa da deformao

2FOUCAULT, Michel, Dits e crits, II, p.

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necessria. A pergunta agora : por que ser sempre imaginria a relao formada pelos individuas de sua relao (individual) com as relaes sociais que governam suas condies de existncia e sua vida coletiva e individual? E qual a natureza deste imaginrio? (1999, p279).

Assim, para Althusser a ideologia constitui uma relao imaginria do sujeito com a

sociedade (capitalista, de explorao, etc. ) em que vive. Diz ele em sua Tese

Primeira: a ideologia uma representao da relao imaginria do sujeito com

suas condies reais de existncia.3 A diferena reside, portanto, na dimenso de

representao imaginria da ideologia. Com isso, Althusser nega a possibilidade de

um mundo em que as relaes fossem completamente transparentes e afirma mesmo

que, como o inconsciente, a ideologia eterna. Ademais, destaca o fato de que eterno

significa aqui onipresente, trans-histrico, e que a proximidade entre ideologia e

inconsciente justifica-se teoricamente pelo fato de que a eternidade do inconsciente

no deixa de ter relao com a eternidade da ideologia em geral. Por um lado,

enquanto representao imaginria, as ideologias variam de contedo, mas, por outro,

so universais e onipresentes em todas sociedades humanas. Nesse sentido, a

ideologia no tem histria (mas eterna, como o inconsciente).

A segunda tese de Althusser afirma que a ideologia tem uma existncia material e no

pode ser reduzida a conjunto de idias falsas. claro que tal materialidade no da

mesma natureza de um fuzil ou uma calada, ironiza Althusser. A ideologia tem a

materialidade das prticas cotidianas, seja o ato assistir uma missa, jogar uma partida

num clube esportista, um dia de aula e assim por diante. Todos nossos atos cotidianos

nossas prticas inscrevem-se em aparelhos ideolgicos. Os aparelhos ideolgicos do

Estado seriam a materializao das ideologias morais, religiosas, jurdicas e estticas. Em

suas palavras: suas idias so atos materiais inseridos em praticas materiais, reguladas por

rituais materiais que, por sua vez, so definidos pelo aparelho ideolgico material do qual

dependem as idias desses sujeitos.4

3ALTHUSSER, Positions, 1976, p.1113: Dans lidologie est donc reprsent non pas le systme des rapports rels qui gouverne lexistence des individus mais le rapport imaginaire de ces individus aux rapports rels sous lesquels ils vivent. 4 Idem, 1999, p.206.

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Mas a contribuio mais complexa questo do sujeito tem a ver com a idia da

interpelao, exposta na Tese 3: toda ideologia interpela os indivduos concretos em

sujeitos concretos pelo funcionamento da categoria sujeito.

... a categoria de sujeito constitutiva de toda ideologia, mas, ao mesmo tempo e imediatamente, acrescentamos que a categoria de sujeito s constitutiva da toda ideologia enquanto essa tem por funo ( que a define) constituir os sujeitos concretos (como voc ou eu). nesse jogo de dupla constituio que se efetua o funcionamento de toda ideologia, sendo que a ideologia nada alm de seu funcionamento atravs das formas materiais da existncia desse funcionamento (1999. p.210)

A teoria da interpelao aponta para a dimenso da auto aceitao s regras sociais e

exemplificada no fato de que respondemos ao chamado do policial que nos grita: voc a!

Responder interpelao estar dentro da submisso. O agente policial representa o

poder e o ato de interpelao revela o mago da socializao pois o Poder no somente

nos submete mas tambm nos formata; nos sujeita e nos torna sujeito. Como veremos,

essa definio de Althusser vai ser incorporada por Foucault e Butler.

Judith Butler, leitora de Althusser

A subordinao, opresso e/ou discriminao da mulher constitui objeto de estudo e ao

das feministas, em vrias partes do mundo ocidental, tendo originado uma extensa

bibliografia conhecida como estudos sobre a mulher e estudos de gnero. Para efeitos

do presente texto destacarei algumas das apropriaes tericas realizadas pelo feminismo.

Nesse sentido, inegvel a enorme influncia da obra de Foucault, cuja recepo nos

Estados Unidos e no Brasil possibilitou o desenvolvimento de temticas e perspectivas de

anlises centradas na questo do poder e da sujeio. Na mesma linha, h que destacar a

contribuio de Judith Butler, professora de retrica e literatura comparada na

Universidade de Berkeley. Os processos de sujeio constituem um de seus temas

prioritrios, pois, segundo ela, aprofundar as condies da sujeio tambm entender as

perspectivas de superao. Butler enfatiza a dimenso de poder de qualquer projeto e

questiona a prpria imparcialidade do projeto de Habermas, reafirmando a dimenso de

poder do discurso. Diz que prefere chamar de psestruturalista a seguinte assertiva: o

poder permeia o prprio aparato conceitual.

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Antes de entrarmos no texto de Butler, convm lembrar que no idioma portugus as

definies de sujeito que aparecem no dicionrio Novo Aurlio so quase todas

sinnimas: 1. Sdito; 2. Escravizado; 3. Obrigado; 4. Que se sujeita a vontade dos

outros; 5. Dependente; 6. Exposto; 7. Indivduo indeterminado. Na acepo n.9, Sujeito

Assunto, tema, e na n.10, Termo da proposio a respeito do qual se enuncia algumas

coisa; n.11 o ser individual, real. J o verbo sujeitar concerne sempre ao ato de reduzir

sujeio, subjugar, dominar.

Em ingls, to subject definido como to defeat people ore country and then control

them against their whishes and limit their freedom5. nesse sentido que em The Psychic

Life of Power, Theories of subjection, Butler comenta que o poder sempre pensado

como uma potncia externa que nos oprime. Na tradio sociolgica, temos a clssica

definio de Weber6, para o qual poder a probabilidade que tem um homem ou um

agrupamento de homens de impor sua prpria vontade em uma ao comunitria,

inclusive contra a oposio dos demais membros. Butler comenta que essa viso

unilateral teria sido superada pelos textos de dois filsofos franceses contemporneos:

Louis Althusser e Michel Foucault.

Segundo Butler, Althusser privilegia a dimenso do discurso para repensar a teoria da

sujeio. Tornar-se sujeito um processo psquico inconsciente de sujeitamento Ordem

vigente (patriarcal, capitalista). A ressalva que Judith Butler faz que Althusser view,

useful as it is, remains implicitly constrained by a notion of a centralized state

apparatus.7 Em outras palavras, ao reduzir sua anlise sobre a reproduo ideolgica

aos aparelhos de Estado, Althusser estaria deixando de lado importantes dimenses do

real permeadas pelo poder e pela dominao. Butler8 insiste no fato de que o poder como

subordinao implica num set of conditions that precedes the subject, effecting and

subordinating the subject from the outside. Power not only acts on a subject but in a

transitive sense, enacts the subject into being.

5Cambridge International Dictionary of English. 6WEBER,Max. Economa y Sociedad. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1944. p. 54.) 7BUTLER, J. The Psychic Life of Power. Theories of subjection. California : Stanford University Press, 1997,p.6 8 Idem, p.13.

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O poder atua no somente sobre o sujeito, mas, em sentido transitivo, permite que o

sujeito seja. No obstante ter criticado Althusser por pensar o poder centralizado no

Estado, a assertiva de Butler confirma o ponto de vista de Althusser em textos que ela

no analisa. Em Psychanalise et Sciences Humaines, por exemplo, Althusser chama a

ateno para a grande descoberta de Lacan de que o cultural que age sobre o

biolgico, como condio que possibilidade a insero do pequeno ser humano. Assim,

trata-se de estudar a ao permanente da cultura que transforma a criana. E, mais ainda,

que a lei da cultura que determina a passagem prpria cultura, pois:

ce qui est pense comme antcdence de la culture par rapport a elle-mme dans le devenir humain du petite tre biologique, se trouve en fait situ a lintrieur de la culture elle-mme. Autrement dit, la prcession de la culture par rapport elle-mme, qui se situe au niveau culturel dans la pratique psychanalytique9

Ao afirmar o paradoxo da prcession de la culture par rapport elle-mme,

Althusser antecipa muitas das concluses da prpria Butler e, em especial, sua crtica ao

conceito de gnero como inscrio social sobre o biolgico. Opondo-se s categorias de

identidade presentes em algumas tendncias, Butler insiste na importncia de se pensar a

identidade como efeito, isso , como algo produzido ou gerado.10

Foucault : submisso, resistncia e significao

Este o titulo de um texto em que Butler analisa as implicaes da teoria da subjetivao

de Foucault, tal como formulada em Vigiar e Punir. Para Foucault, os processos de

subjetivao realizam-se principalmente atravs do corpo. No caso do preso, no se trata

apenas de um poder coercitivo externo mas do fato que o indivduo se forma, ou melhor,

se formula a partir de uma identidade de preso discursivamente constituda. A sujeio

literalmente o fazer-se de um sujeito, o princpio de regulao de acordo com o qual se

formula ou se produz um sujeito. O preso submetido a uma srie de prticas invasivas,

de disciplinas, de normatizaes de movimentos, em resumo, de um regime disciplinar do

9 ALTHUSSER,L. Psychanalise et Sciences Humaines, p.90. 10 BUTLER, J.Problemas de gnero. Feminismo e subverso da identidade. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira, 2003, p.211.

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corpo. Como resultado, o assujeitamento muito profundo, atingindo a alma, priso do

corpo11, invertendo o preceito cristo.

Apesar do tema ser a subjetivao do preso, no h dvidas, como assinala Butler, de que

a priso utilizada por Foucault como metfora do processo de subjetivao do corpo.

Assim, encarceramento e invaso so as figuras privilegiadas atravs das quais Foucault

articula o processo de subjetivao, a produo discursiva das identidades. Butler aponta

os limites de uma teoria da subjetivao que parta exclusivamente das instancias

discursivas pois aceitar tal hiptese implica na negao de um espao de resistncia

psquica. A introduo do inconsciente d inteligibilidade ao processo de subjetivao na

medida em que a psique precisamente aquilo que escapa aos efeitos carcerrios da

exigncia discursiva de habitar uma identidade coerente, de converter-se em um sujeito

coerente. A psique o que resiste regularizao que Foucault atribui aos discursos

normalizadores12. A psique transborda o sujeito.

Butler, portanto, perfila-se entre os intelectuais que entendem a importncia da

psicanlise para a compreenso do processo de subjetivao, aproximando-se mais de

Althusser do que de Foucault, para fundamentar uma teoria de gnero. Ao apoiar-se na

psicanlise Butler assume no somente a dimenso inapreensvel dos processos psquicos

como tambm os limites da materialidade do corpo. Em Bodies that Matter, ela se coloca

a meio caminho entre os campos essencialistas versus culturalistas(ou construtivistas) em

que se divide o feminismo contemporneo, ao afirmar que esse debate no escapa a um

paradoxo insupervel. Assim como nenhuma materialidade anterior est acessvel a no

ser atravs do discurso, tambm o discurso no consegue captar aquela materialidade

anterior, argumentar que o corpo um referente evasivo no equivale a dizer que ele

apenas e sempre construdo. De certa forma, significa exatamente argumentar que h um

limite construtividade, um lugar, por assim dizer, onde a construo necessariamente

encontra esse limite.13

11 FOUCAULT, M. Surveiller et punir, p.202. 12 BUTLER, Giving an account p.98 13 Como os corpos se tornam matria: entrevista com Judith Butler in Revista Estudos Feministas, vol.10 Florianpolis, Jan.2002.

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Prestando contas de si mesmo ou os limites da responsabilidade

Sujeitos do inconsciente, alm de sujeitos sociais, econmicos e culturais. A introduo

dos limites psquicos do sujeito torna mais complexa a questo das nossas

responsabilidades. At que ponto somos responsveis pelos nossos atos, uma vez que

somos produzidos na sujeio? Essa uma das questes cruciais no respeito

responsabilizao que fuja da vitimizao. Para Butler, as questes morais no somente emergem no contexto das relaes sociais, como a forma assumida por essa questo

muda segundo o contexto, sendo que esse mesmo contexto herda, de alguma maneira, a

forma da questo. Ela concorda com a formulao Adorno nos Problemas da Filosofia

Moral, segundo a qual the social problem of the divergence between the universal

interest and the particular interest, the interest of particular individual, is what goes to

make up the problem of morality.14

Reservando tica para o contorno mais abrangente da regras e mximas, Adorno comenta

que uma norma tica que no pode impor para todos um modo de vida que seja

insuportvel para alguns, sob pena de se tornar uma violncia. Diz ele: quando ignora as

condies sociais prevalecentes, que so tambm as condies em que qualquer tica

pode ser apropriada, ento o ethos se torna violento. Na Leitura 17, que constitui o

ltimo texto do livro, Adorno aponta para a necessria resistncia falsa vida; discute a

falibilidade frente s mscaras do mal; critica a concepo moral de Nietzche ,

concluindo que os limites da moralidade revelam a crise do individualismo e a

necessria transio da conscincia critica para a conscincia politica. Para ele, there is

no right behaviour withim the wrong world.15

No j citado texto, Adorno afirma que no mundo administrado no existe liberdade se

aceitarmos a premissa kantiana de que a liberdade inclui a todos, no podendo ser

concebida como algo isolado, em que no exista liberdade social. Em decorrncia, o

ponto de partida tico da atualidade tem de ser a critica desse mundo administrado. We

14ADORNO, Problems of Moral Philosophy, p.19 :o problema social da divergncia entre interesse universal e interesse particular, o interesse de um indivduo em particular, o que configura o problema da moralidade. 15 Idem, p. 174.

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might even say tha the quest for the good life is the quest for the right form of politics, if

indeed such a right form lay within the realm of what can be achieved today 16.

Butler incorpora o ponto de vista de Adorno, adicionando a preocupao de Foucault no somente na relao do sujeito com a moralidade mas na fora desta na produo do sujeito, que precisa colocar-se em relao prpria moralidade. Pois mesmo quando a moralidade fornece uma srie de normas que produzem sujeito na sua inteligibilidade, sempre permanece um conjunto de normas e regras que tm de ser negociados pelo sujeito. Prestamos contas por termos sido interpelados como seres responsveis perante um sistema de justia e punio, comenta Butler , reproduzindo o ponto de vista de Althusser sobre a interpelao como ato comprovatrio de nossa subordinao como sujeitos (que podem ser responsabilizados) perante a Norma. A questo da responsabilidade relaciona-se portanto com a questo do Eu e sua

complexa formao. Pois na medida em que somos formados segundo certas convenes

sociais, que a dimenso consciente de nosso Eu seja apenas uma parte de nossa vida

psquica, permanecendo um surplus que sempre foge s regras de nomeao, em que

bases devemos colocar a questo da nossa responsabilidade moral?

Apoiando-se nas concluses de Adorno e Foucault, entre outros, Butler argumenta que

talvez o que mais importa reconhecer que a tica pressupe riscos, e que muitas vezes

somos colocad(a)os em situaes desconhecidas em que nossos pontos de vista divergem

daquilo que nos colocado como apropriado.17 Levando em consideraes as

ambiguidades desse Eu e sabendo que minha prpria formao implica os outros em

mim, e que minha estranheza em relao mim mesma , paradoxalmente a fonte de

minha conexo tica com os outros)18, Butler prope uma tica do acolhimento ao outro

(at mesmo em nome desse outro que nos habita e que nos causa estranheza).

Existe uma tica feminista?

Podemos ento colocar a questo que nos interessa, vale dizer: qual seria a tica

feminista?

16 Idem,p.176. 17 BUTLER, Giving an account p.136 18 BUTLER Precarious Life, p.46

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Foucault pe o dedo na ferida quando aponta a ausncia de um projeto tico nos

movimentos sociais dos anos 70, ento designados como movimentos de libertao.

Colocando-se como um participante ele comenta: Ns no acreditamos que uma moral

possa ser fundamentada em uma religio e tambm no queremos que um sistema legal

intervenha em nossa vida moral, pessoal e ntima. Os movimentos de libertao recentes

sofrem por no poder encontrar um princpio sobre o qual fundamentar a elaborao de

uma nova moral.19

Essa observao de Foucault pertinente para a poca em que foi formulada de profunda

agitao politica e de reivindicaes novas. No Brasil anos 70, a libertao implicava

uma rejeio ditadura militar e na autonomia dos movimentos com relao aos

aparelhos de estado. Com a democratizao, as demandas feministas foram legitimadas e

institucionalizadas ( os conselhos de mulheres, de negros) tornando-se objeto de polticas

sociais e mudanas jurdicas afetando as relaes entre os sexos e nas famlias. A

Constituio de 1988 instituiu um estado de bem estar social e de respeito aos direitos das

mulheres, respondendo positivamente maior parte das reivindicaes das militantes

feministas.

A partir dos anos 80 as demandas assumiram cada vez mais a forma de reivindicaes

compensatrias, mal acompanhadas por uma ideologia do vitimismo muito diferentes do

protagonismo das dcadas anteriores. Em contraposio posio de sujeito desejante, a

poltica do vitimismo, hoje predominante, reflete-se na baixa cidadania dos programas

assistenciais. As mulheres que precisam de bolsas famlia so submetidas humilhao

de terem de provar que so pobres e infelizes para convencer a atendente de que

necessitam. Tambm se presenciam cenas de humilhao nas iniciativas filantrpicas em

que uma cesta bsica vem acompanhada de um sermo e de regras de conduta. So

formas de tutelagem e de infantilizao incompatveis com a idia de autonomia e

responsabilidade. A maior parte das polticas sociais compensatrias terminam por

colocar o usurio num lugar subalterno, negando as bandeiras da via republicana e da

eficcia dos direitos. Pois, como logo percebeu Foucault, a seguridade social, quaisquer

que sejam seus efeitos positivos, teve tambm efeitos perversos: a crescente rigidez de

19 FOUCAULT, Dits et ecrits Dits et Ecrits, 1984, p.1414.

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certos mecanismos e situaes de dependncia. Pode-se destacar aqui o que inerente aos

mecanismo funcionais do dispositivo20:

Na perspectiva psicanaltica, Cate Koltai aponta para os riscos das polticas de quotas e

de outras formas compensatrias que partem do pressuposto que as pessoas so sempre

vitimas dos outros e no vitimas de suas prprias escolhas, como o caso por exemplo do

fumante. Ela observa que a pessoa deixa de ser vtima dos riscos e responsabilidades

relacionadas ao engajamento em seu desejo, sua vida, e se torna vtima das circunstncias

desfavorveis, o que vai constitu-la num sujeito traumatizado e no mais num sujeito

engajado em sua prpria vida com todos os riscos decorrentes do exerccio de seu

desejo.21

Para concluir, no podemos nos esquecer de que a verdadeira libertao significa

conhecer-se a si mesmo e na maior parte das vezes no pode realizar-se por intermdio

de um grupo, qualquer que seja. Desta maneira, devemos comear por inventar o futuro

mergulhando num presente mais criativo.22

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20 21 KOLTAI, Caterina. Uma questo to delicada. VI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fundamental, Recife, de 05 a 08 de setembro de 2002, p.5. 22 FOUCAULT, op.cit, p.678.

13

BUTLER, Judith. Precarious Life. The Powers of Morning and Violence. London/New York :Verso, 2004. KOLTAI, Caterina. Uma questo to delicada. VI Congresso Brasileiro de Psicopatologia Fndamental, Recife, de 05 a 08 de setembro de 2002, p.5.

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