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História, escravidãoTRANSCRIPT
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Maria Lafayette Aureliano Hirszman
ENTRE O TIPO E O SUJEITO:
Os retratos de escravos de Christiano Jr.
So Paulo 2011
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Maria Lafayette Aureliano Hirszman
ENTRE O TIPO E O SUJEITO:Os retratos de escravos de Christiano Jr.
vol. 1
Dissertao apresentada ao Departamento de Artes Plsticas da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Artes, sob a orientao do Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli
rea de Concentrao: Histria da Arte
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Nome: HIRSZMAN, Maria Lafayette Aureliano Ttulo: Entre o tipo e o sujeito: Os retratos de escravos de Christiano Jr. Dissertao apresentada ao Departamento de Artes Plsticas da Escola de Comunicao e Artes da Universidade de So Paulo na rea de histria da arte como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Artes. Aprovado em: Banca Examinadora
Prof. Dr. _________________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Instituio: _________________________________________________ Prof. Dr. _________________________________________________ Instituio: _________________________________________________
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Agradecimentos
Esse trabalho no teria sido possvel sem o apoio atencioso de muitos.
Gostaria de expressar minha enorme gratido a todos que me ajudaram fornecendo
dados, sugerindo caminhos, mostrando problemas ou simplesmente tornando a
tarefa mais leve e agradvel.
O desejo de esboar a biografia das imagens estudadas e entender a
trajetria entrecortada de Christiano Jr., me fizeram bater em diversas portas.
Dificilmente conseguirei lembrar de todos que foram importunados pelas minhas
consultas. Impossvel, no entanto, no mencionar a gentileza, profissionalismo e
generosidade de figuras como Rosngela Bandeira, do Museu Histrico Nacional,
do Rio de Janeiro; Ruy Souza e Silva, colecionador responsvel pela preservao
de imagens preciosas da fotografia brasileira do sculo XIX; Diran Sirinian, livreiro e
estudioso argentino; Luis Priamo, co-autor de uma das obras de referncia acerca
do fotgrafo. Devo agradecer ainda ao apoio de Magdalena Broquetas, do Centro
de Fotografia de Montevidu; de Jorge Forjaz, da Academia dos Aores; da
historiadora Maria Helena P. T. Machado; e da pesquisadora Fabiana Beltramim,
que me alimentaram com dados e ajudaram a dirimir dvidas em momentos cruciais
do trabalho. Tambm sou grata pela reviso cuidadosa e providencial de Marlene
Petros Angelides, pelas inmeras vezes em que Marcio Martins me ajudou a obter
textos que pareciam impossveis e pelas oportunas caronas dadas ao material por
Sergio Mateus.
Contei tambm com a ajuda de muitos mestres, interlocutores e colegas ao
longo dessa longa jornada. amiga Camila Molina agradeo a confiana irrestrita e
o apoio sempre constante. A leitura crtica, firme e generosa de Ulpiano Bezerra de
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Menezes foi vital para o desenvolvimento da pesquisa e de minha formao
pessoal. Devo lembrar tambm a ajuda e as ponderaes enriquecedoras de Dria
Jaremchuk. Fao uma meno especial aos meus colegas do grupo de estudos em
Arte e Fotografia com quem redescobri o prazer da leitura e reflexo em conjunto,
compartilhando dvidas, expectativas e descobertas. Quero, finalmente, deixar
registrada minha profunda gratido a Tadeu Chiarelli, com quem venho aprendendo
sobre arte desde muito tempo e que tem me ajudado com generosidade e
delicadeza a trilhar o caminho do estudo acadmico, nem sempre fcil para quem
vem do jornalismo. Este trabalho chegou ao fim, mas seu exemplo e orientao
continuaro a me servir de guia.
Faltam palavras para os mais prximos. Ao Joo Manuel, agradeo o
permanente estmulo. Aos meus sogros, a sempre gentil hospitalidade e apoio. De
meu pai, que me deixou to cedo e me ensinou a perceber o poder da imagem,
lembro o carinho e a doura. De minha me, o apoio sempre generoso, amoroso e
incondicional. Foram eles que me deram rgua e o compasso e despertaram em
mim o gosto pela arte e a preocupao em dar voz aos mais humildes. com muita
admirao e afeto que lhes agradeo por isso.
Plnio, Ana e Rosa, que alegraram todas as etapas desse caminho: sem
vocs nada disso teria sentido. Obrigada por tudo. a vocs que dedico este
trabalho.
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Resumo A dissertao examina, a partir de um enfoque multidisciplinar que contempla aspectos estticos, histricos e antropolgicos, as imagens de negros de ganho realizadas por Christiano Jr. em cerca de 1865 no Rio de Janeiro. O objetivo sublinhar seu carter contraditrio quando colocadas em perspectiva de longa durao. Mesmo sem romper com os padres estticos da poca, as fotografias de Christiano Jr. introduzem elementos que representam uma diferenciao, uma vez que subvertem certos elementos estruturais da imagem do negro, temticos e compositivos, quebrando o cdigo de silncio, ocultamento e disfarce que marca a relao da sociedade brasileira com o tema da escravido. O trabalho desdobra-se em trs movimentos. O primeiro captulo apresenta uma anlise detalhada do trabalho de Christiano Jr., ressaltando sua trajetria e o sistema de consumo e circulao em que suas fotografias se inserem. O segundo caracteriza os padres tradicionais de representao da figura do negro e das camadas populares estabelecendo relaes entre esses gneros consolidados e as fotografias de Christiano Jr. O ltimo captulo sublinha uma espcie de fissura no rgido cdigo de representao iconogrfica do escravo e prope que o trabalho do fotgrafo aoriano seja lido no mais como um documento neutro sobre os usos e costumes da poca ou apenas como reiterao de um olhar preconceituoso, mas como registro de uma relao complexa entre o fotgrafo e seus modelos, como um elemento constitutivo e, portanto, carregado de sentidos, mesmo que paradoxais daquela sociedade que se via s voltas com a crise aguda do regime escravagista.
Palavras-chave: Christiano Jr., fotografia do sculo XIX, escravido, histria da arte, representao do negro, retrato, realismo, iconografia brasileira, escravo de ganho
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Abstract The aim of this work is to examine, from a multidisciplinary approach
(aesthetic, historical and anthropological), images of black slaves and black wage earners made by the Azorean photographer Christiano Jr. in mid of the 1860s in Rio de Janeiro. The purpose is to emphasize their contradictory character when placed in a long-term perspective. Even without breaking with the aesthetic standards of the period, the pictures of Christiano Jr. introduce elements that represent a differentiation as they subvert certain thematic and compositional structural aspects of images of black labors, thus breaking the code of silence, concealment and disguise that characterizes the relationship between the Brazilian society and the system of slavery. The work develops in three movements. The first chapter presents a detailed analysis of the work of Christiano Jr. highlighting his career and the system of consumption and circulation of his images. The second features the traditional patterns of representation of the figure of the black working classes relating them with the pictures of Christiano Jr. The last chapter stresses a kind of fissure in the strict code of the iconographic representation of the slaves and proposes that the work of the azorean photographer be read not as a neutral document about the uses and customs of the time or only as a reiteration of a biased look, but as a record of a complex relationship between the photographer and his models as a constituent component therefore charged with meaning of a society that was itself grappling in an acute crisis of the slavery regime.
Keywords: Christiano Jr., nineteenth-century photography, slavery history of art, representation of black labor, portraiture, realism, brazilian iconography
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Sumrio
Introduo ........................................................... 10
1. Secura eloquente ........................................................... 20
1.1. Leituras ........................................................... 26
1.2. Um empreendedor oitocentista .............................................. 33
1.3. Estudo de caso: as imagens .............................................. 47 dedicadas a D. Fernando 1.3.1. O estdio ........................................................... 51
1.3.2. Objetos e vestes .......................................................... 56
1.3.3. A posio do modelo .......................................................... 64
1.3.4. Ponto de vista ........................................................... 71
1.3.5. A dedicatria ........................................................... 74
1.4. Releituras grficas ........................................................... 76 1.4.1. Marcas do cativeiro ........................................................... 80
1.4.2. O pescador e a Dulcineia ............................................ 81
1.4.3. A maternidade ........................................................... 84
1.5. Formas de consumo e circulao .......................................... 88
2. Inventrios de imagem ............................................................ 93
2.1. Representando o outro ........................................................... 100
2.2. Entre o pitoresco e o cientfico ............................................... 108 2.2.1. Agassiz ........................................................... 113 2.2.2. Viagem artstica ........................................................... 116
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2.3. Os viajantes e a tradio do extico ......................... 119
2.3.1. Disseminao: estampas e fotografia ......................... 128
2.3.2. Rugendas e Debret ......................................................... 131
2.3.3. Aproximaes ......................................................... 137
2.4. Imagens do povo ......................................................... 140
2.4.1. Mapeando os sditos ........................................................ 141
2.4.2. Gritos urbanos ........................................................ 147
2.4.3. Orientalismo e costumbrismo .......................................... 152
2.4.4. Dentro ou fora do estdio .......................................... 158
2.5. Flertando com o realismo ........................................................ 161
2.5.1. Naturalismo ......................................................... 165
2.5.2. A escola realista ......................................................... 168
2.5.3. Realidade degradante ........................................................ 172
2.5.4. Realismo e fotografia ........................................................ 177
3. Ser escravo ........................................................ 180
3.1. O assunto e o lugar ........................................................ 182
3.1.1. No campo ........................................................ 186
3.1.2. Conspirao de silncio ......................................... 188
3.2. O indivduo por trs do tipo ...................................................... 195
Concluso .................................................................................. 203
Bibliografia .................................................................................. 206
Caderno de imagens .................................................................... v. 2
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Introduo
Bem no incio, a ideia era estudar a presena do trabalho na arte brasileira do
sculo XIX. Rapidamente a empreitada mostrou-se inexequvel e foi necessrio ir
recortando, moldando e refazendo o projeto em razo no apenas do anseio inicial
de compreender melhor a produo visual brasileira do sculo XIX para alm das
divises estanques de gnero, tcnica e autoria, mas tambm do estabelecimento
de um dilogo cada vez mais intenso com os objetos de pesquisa.
Da ideia genrica de trabalho ao recorte especfico das fotografias de negros
na produo de Jos Henriques Christiano Junior (1830-1902), muito se passou. A
primeira constatao transformadora foi a de que, no Brasil oitocentista,
praticamente no se podia falar em representao genrica do trabalho, j que
trabalho queria dizer escravido e representao visual significava adequao aos
preceitos bastante restritos da Academia, ao menos do ponto de vista da histria da
arte mais tradicional1. As excees ficava por conta da fotografia e da gravura, cujos
profissionais, como afirma Lygia Segala, ocupavam um lugar menos privilegiado,
porm menos burocrtico e institucionalizado que o do pintor2. Evidenciaram-se
desde logo um percurso temtico o trabalho escravo e uma base concreta de
pesquisa a das artes ditas menores, ou reprodutveis, de grande circulao e
consumo.
1 Sobre a necessidade de revisar os parmetros gerais adotados pela historiografia, ver
CHIARELLI, Tadeu. De Anita academia: para repensar a histria da arte no Brasil. Novos Estudos CEBRAP [online]. n.88, p. 113-132, 2010; COLI, Jorge. Como Estudar a Arte Brasileira do sculo XIX. In: MARTINS, Carlos (curador geral). O Brasil Redescoberto. Rio de Janeiro, Pao Imperial, 1999.
2 SEGALA, Lygia. Ensaio das Luzes sobre um Brasil Pitoresco: o projeto fotogrfico de Victor Frond (1857-1861). Tese (Doutorado em Antropologia Social) Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), 1998.
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A partir da a escolha por Christiano Jr. deu-se de forma quase natural. Afinal,
trata-se do mais importante e diverso conjunto de imagens produzidos sobre a
escravido no Brasil: quase uma centena de cartes de visite3 feita num curto
perodo de tempo registrando negros com seus utenslios de trabalho num ateli
neutro e vazio. Essas imagens de trabalhadores negros urbanos contm alguns
fatores particulares intrigantes, dentre os quais destacam-se a grande secura
compositiva e um foco preciso e direto sobre a condio transitria desses
indivduos.
A partir da observao dessas fotografias delinearam-se as principais
hipteses de trabalho; as imagens pareciam dizer que, para alm do registro
documental dessas profisses e da inteno autodeclarada de transformar esses
clichs em objetos de grande interesse para os estrangeiros interessados em
imagens exticas de pases distantes, havia ali uma repetio de padres e gestos
que, por um lado, se adequavam aos modelos de retratstica em voga no Ocidente e
herdados de modelos clssicos da representao, e por outro pareciam indicar um
olhar atento situao da populao negra carioca e s tenses crescentes entre o
tradicional cativeiro e as formas modernas de explorao da mo de obra escrava,
como o aluguel ou a colocao do escravo no ganho. Ou seja, a hiptese
desenvolvida na pesquisa que h nessa produo elementos que, mesmo de
forma rudimentar e escamoteada, sugerem uma diferenciao em relao aos 3 A tcnica fotogrfica chegou ao Brasil em 1840, poucos meses aps a divulgao da
descoberta do daguerretipo pela Academia Francesa. Mas o processo permitia gerar apenas uma imagem nica, frgil (sobre superfcie de vidro) e que exigia longos tempos de pose. S a partir da dcada de 1850, com a introduo das tcnicas do coldio mido e do papel albuminado (1851), e do sistema de carte de visite criado em 1854 a fotografia ganha um impulso vigoroso (sobre as cartes de visite consultar a nota 25 desta dissertao). H uma farta bibliografia sobre os primeiros anos da fotografia no Brasil e no exterior. Ver, entre outros, FERREZ, Gilberto. A Fotografia no Brasil. Separata da Revista do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional , Rio de Janeiro, n.o 10, 1953; KOSSOY, Boris. Origens e Expanso da Fotografia no Brasil: Sculo XIX. Rio de Janeiro: Funarte, 1982; e FREUND, Gisele. La Fotografa como Documento Social. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2008.
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modelos vigentes porque iluminam a existncia de um pacto de silncio em torno ao
problema da escravido.
A opo foi adotar um enfoque mltiplo, que contemplasse os aspectos mais
tangveis do material, iluminasse os dilogos nele existentes com a tradio visual e
sublinhasse o carter ambguo dessas imagens, vistas ora como documentos
histricos objetivos, ora como construes ideolgicas. Explicando melhor, a
pesquisa se prope a investigar os retratos que o fotgrafo fez dos negros
trabalhadores que encontrou nas ruas do Rio de Janeiro a partir de abordagens
distintas: ao mesmo tempo que se baseia na ideia de continuidade de modelos
visuais, procura estabelecer possveis nexos entre aspectos constitutivos das
imagens e a cena social e cultural que as gerou. So dois caminhos distintos, mas
no excludentes.
importante precisar aqui antes de entrar no detalhamento da estruturao
do texto e dos encaminhamentos especficos de organizao de cada uma das trs
partes que compem este estudo que, apesar de este trabalho se situar no campo
da histria da Arte, ele fortemente tributrio de outras reas do conhecimento, em
especial da histria e da antropologia visual. Em lugar de delimitar fronteiras claras
entre as disciplinas, pareceu-nos mais enriquecedor apostar no caminho da feliz
desordem, termo que o antroplogo Carlo Severi cunhou para definir a frtil
imbricao entre esses dois domnios do conhecimento4. O historiador francs
Philippe Aris utiliza expresso equivalente feliz indeciso de fronteiras5 para
defender o dilogo crescente entre disciplinas afins. Dentre as principais diretrizes 4 Essa ideia apresentada em introduo edio da revista LHomme dedicada a Aby
Warburg. Ver SEVERI, Carlo. Pour une anthropologie des images: Histoire de lart, esthtique et anthropologie, L Homme, n. 165, 2003. p. 7-10.
5 ARIS, Philippe, A Histria das mentalidades. In: LE GOFF, Jacques (Org.). A Histria Nova. So Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 163.
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que orientaram a investigao, sobressai tambm a preocupao em ater-se, nesta
dissertao, primordialmente anlise da imagem, atentando para sua plasticidade,
considerando-a como uma forma expressiva6. Em sntese, necessrio inscrev-la
numa cultura visual, numa tradio iconogrfica7.
Produzidas em meados do sculo XIX, seguindo de perto a descoberta e
expanso da tcnica fotogrfica pelo mundo, essas fotos foram h muito
catalogadas como ndices imutveis de um passado enigmtico que se quer
reconstruir, muitas vezes ignorando-se que qualquer tentativa de resgate desse
passado embute, inquestionavelmente, muito de nosso prprio tempo8.
Como j foi dito, a pesquisa foi dividida em trs Captulos. O primeiro deles
trata da obra de Christiano Jr. propriamente dita, retraa aspectos importantes de
sua produo, as diferentes leituras feitas sobre seu trabalho, e prope uma anlise
mais detalhada de alguns trabalhos especficos, bem como uma apresentao das
caractersticas mais marcantes do autor e do carter serial de seus retratos de
negros. No se trata de especular sobre uma vontade consciente de denncia por
parte do fotgrafo, mas sim de identificar nas caractersticas tangveis do registro
fotogrfico (enquadramento, iluminao, ngulos de composio, escolha dos
modelos e dos utenslios que os acompanham) elementos que levem a
compreender melhor: a) suas especificidades compositivas e b) suas relaes com
6 Como sintetiza Sylvia Caiuby, imagens no reproduzem o real, elas o representam ou o
reapresentam. CAIUBY NOVAES, Sylvia. Imagem, magia e imaginao: desafios ao texto antropolgico. Mana, Rio de Janeiro, v. 14, n. 2, out. 2008. p. 456.
7 Tais consideraes foram apresentadas em palestra realizada pelo pesquisador francs Phillippe Dubois em agosto de 2009 no Departamento de Jornalismo da ECA-USP e traduzidas e compiladas por mim.
8 Afinal, como diz Braudel, presente e passado se iluminam com luz recproca. Ver BRAUDEL, Fernand. Histria e Cincias Sociais: A longa durao. In ______. Escritos sobre a Histria. So Paulo: Perspectiva, 1978. p. 57. O texto foi originalmente publicado em Annales E. S. C., n. 4, p. 725-753, out/dez. 1958.
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a produo visual e o contexto social de sua poca, em sentido amplo. Em sntese,
o intuito retraar, na medida do possvel, a biografia dessas imagens, como
defende Ulpiano Bezerra de Menezes:
As imagens no tm sentido em si, imanentes. [...] a interao social que produz sentidos, mobilizando diferencialmente (no tempo, nos espaos, nos lugares e circunstncias sociais, nos agentes que intervm) determinados atributos para dar existncia social (sensorial) a sentidos e valores e faz-los atuar. Da no se poder limitar a tarefa procura do sentido essencial de uma imagem ou de seus sentidos originais, subordinados s motivaes subjetivas do autor, e assim por diante. necessrio tomar a imagem como um enunciado, que s se aprende na fala, em situao. Da tambm a importncia de retraar a biografia, a carreira, a trajetria das imagens.9
A anlise atenta dessa representao traz consigo novas e renovadas
possibilidades, em funo de quem a olha, de quais perguntas lhe so feitas. Da a
utilidade do roteiro proposto por Joana Scherer em The Photographic Document:
Photographs as Primary Data in Anthropological Enquiry. Ela prope, em suma, que
se combine:
1) anlise detalhada das evidncias internas e comparao das fotografias com outras imagens; 2) entendimento da histria da fotografia, incluindo restries tecnolgicas e convenes; 3) estudo da inteno e das propostas do fotgrafo, incluindo exame dos usos dessas imagens por seu autor; 4) estudo dos assuntos etnogrficos; e 5) reviso das evidncias histricas, incluindo o exame dos usos feitos pelos outros das ditas imagens.10
A anlise de alguns casos especficos, como a oferta ao Rei D. Fernando II11
e a releitura na forma de gravura das fotografias de Christiano Jr. na revista 9 MENEZES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes Visuais, Cultura Visual, Histria Visual. Balano
Provisrio, Propostas Cautelares, Revista Brasileira de Histria, So Paulo, ANPUH, v. 23, n. 45, 2003. p. 28.
10 Ibid., p. 34. 11 D. Fernando II (1816-1885) era duque de Saxe-Coburgo-Gotha. Tornou-se rei de Portugal
por seu casamento com a rainha D. Maria I, filha de D. Pedro VI (Pedro I no Brasil), governando o pas aps a morte desta. Tinha grande apreo s artes, razo pela qual recebeu a alcunha de rei-
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Harper's Weekly12 em 1865, ajuda a reconstituir, mesmo que muito parcialmente,
algo sobre os esquemas construtivos, o consumo e a circulao desse material.
Alm disso, a anlise comparativa com outros ncleos de obras de autoria do
fotgrafo aoriano13 bem como de outros autores que elegeram temas similares,
contribuiu para aprofundar algumas questes sobre as formas de representao e
recepo da imagem do negro e do escravo no perodo contemplado por este
estudo. Se o intuito entender melhor as especificidades e o tipo de olhar lanado
pelo artista e pelo consumidor dessas imagens sobre aquele que est sendo
retratado, importante enfocar a questo a partir da noo de ponto de vista. Ao se
estudar a conformao desse olhar de forma concreta, na prpria imagem,
encontram-se pistas mais claras do tipo de relao que o fotgrafo estabelece com
o modelo e quais so os sistemas (de proximidade ou distncia, isolamento ou
incluso, enaltecimento ou subordinao) adotados.
O objetivo do segundo capitulo inserir a discusso num contexto histrico
mais amplo, delineando algumas questes modelares presentes em parte da artista. Isso e a nacionalidade portuguesa de Christiano Jr. possivelmente esto na origem de tal dedicatria. . Outro fato interessante relacionado ao monarca foi o leilo de seu acervo: Aps a morte do rei, em 1886, organizado aquele que ainda hoje pode ser considerado o maior leilo j realizado em Portugal. As colees do rei eram famosas em toda a Europa e o interesse foi tremendo. O catlogo listava 4.581 lotes e seu leilo iniciou-se no dia 3 de janeiro de 1893 e seguintes, at o fim de fevereiro, durou, portanto, cerca de 2 meses. .
12 Revista semanal norte-americana lanada em 1857 como um jornal da civilizao, responsvel por uma cobertura de destaque dos acontecimentos ao longo da Guerra Civil Americana e do debate em torno da escravido nesse pas. Em 1916 ela deixou de circular nesse formato, retornando posteriormente em breves reaparies. Arquivos da publicao podem ser encontrados digitalmente, em endereos como: ou .
13 Se o corpus do trabalho esse conjunto de negros trabalhadores retratados em ateli, convm esclarecer que ao longo da dissertao so abordadas, mesmo que sucintamente e sempre de forma comparativa, para iluminar o objeto de trabalho, os seguintes conjuntos de imagens: a srie de bustos, tambm negros; alguns retratos da burguesia (brasileira e argentina); os registros mdico-cientficos da elefantase; o projeto de mapeamento das provncias argentinas e, finalmente, imagens externas de trabalho escravo feitas em fazendas brasileiras. Outra obra do autor, que tambm ser abordada aqui, no visual mas textual: as crnicas que ele escreveu no final da vida para o jornal de uma provncia argentina.
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produo artstica dos ltimos sculos e que subsistem na fotografia de Christiano
Jr. Em linhas gerais, esta parte dedica-se a compreender um pouco mais o
processo de constituio e amadurecimento de um olhar ao mesmo tempo
preconceituoso, curioso e controlador lanado pela cultura ocidental aos diferentes e
aos excludos, como os africanos, os orientais e as camadas populares. Aspectos
como o paralelismo existente entre as formas de representao pitoresca e
cientfica; a reiterao de modelos e iconografias por parte dos viajantes que
mapearam o Brasil ao longo da Colnia e do Imprio; e o debate em torno do anseio
por uma representao naturalista, cada vez mais prxima do real, fazem parte
dessa reflexo.
O projeto de contemplar essas fotografias a partir de uma tica de longo
prazo se apoia em tericos, como Pierre Francastel, que defendem a necessidade
de pensar a histria a partir de segmentos de tempo mais amplos, que deem conta
no apenas das rupturas, mas tambm das persistncias, continuidades e dilogos
com as questes afins ao debate proposto. Afinal, como afirma o historiador, cabe
a ns retomar no as teorias mas as obras nas nossas prprias perspectivas,
reinterpret-las, rel-las, se preferirmos14. Em suma, o interesse da pesquisa
sublinhar que estamos diante de um processo mais complexo a apropriao de
uma tradio retratstica, de modelos j existentes na representao de tipos raciais
e de trabalhadores, para dar um passo alm na direo de uma arte que se volta,
com maior intensidade, para a representao daquelas figuras miserveis, em plena
transio da invisibilidade da escravido para a vala comum da explorao do
trabalhador nos moldes da economia capitalista.
14 FRANCASTEL, Pierre. La Figure et le Lieu. Paris: Gallimard, 1980. p. 9.
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J o terceiro e ltimo captulo desta dissertao se debrua sobre o
significado dessas imagens para quem as v. A escravido era assim? Essa a
pergunta que muitos fazem diante delas, quando na verdade se deveria perguntar
por que ela representada assim e entender que esse arsenal de imagens
constitutivo de nossa prpria noo acerca da escravido. Quando se pensa na
existncia de tal regime de trabalho no passado recente do pas, so imagens como
essas que mobilizam o pensamento, que funcionam como uma memria residual
que se prolonga no tempo. Trata-se de uma forma de entender esse passado no
como algo objetivo e congelado no tempo remoto, mas como uma construo
ideolgica que se perpetua at agora. Uma leitura fundamental para essa
concepo foi a das teses Sobre o conceito de histria, de Walter Benjamin,
sobretudo as de nmero III, VI e VII. Nesses textos sintticos, na forma de
aforismos, o filsofo estabelece algumas premissas que ecoam em diversos outros
autores que serviram de apoio ao longo do amadurecimento e execuo desta
pesquisa: a ideia de que nada do que alguma vez aconteceu pode ser dado por
perdido para a histria15, a constatao de que articular o passado historicamente
no significa conhec-lo tal como ele propriamente foi. Significa apoderar-se de
uma lembrana tal como ela lampeja num instante de perigo16 e, finalmente, a
defesa de que cabe ao historiador, consciente de que todo documento de cultura
tambm um documento de barbrie, escovar a histria a contrapelo17.
15 LWY, Michael. Walter Benjamin: Aviso de Incndio Uma Leitura das Teses Sobre o
Conceito de Histria. So Paulo, Boitempo Editorial, 2005, p. 55. 16 Ibid., p. 65. O risco aqui, alerta Benjamin, tanto para o contedo dado como para os
destinatrios deixar-se transformar em instrumento da classe dominante. Ou seja, ceder ao conformismo e as teses vencedoras. Nesse excerto da tese VI inevitvel tambm destacar a ideia de lampejo, de momento luminoso, que remete ao instante fotogrfico.
17 Ibid., p. 70.
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Investigar os registros de escravos realizados no sculo XIX a partir de
enfoques mltiplos, que considerem tanto a configurao material e histrica do
documento, quanto a relao que de fato se estabeleceu entre fotgrafo e modelo
no contexto de uma sociedade escravocrata em seus estertores, s faz sentido se
se tiver em mente a proposta de compreender esse documento tanto como ndice
material quanto como smbolo das contradies inerentes sociedade que o
produziu, invertendo sentidos, expondo contradies e levantando questes que,
ainda que fiquem sem resposta, ajudem a iluminar e reorganizar esse passado.
Como diz Argan, a pesquisa histrica nunca circunscrita coisa em si. Ou,
retomando as palavras de Marc Bloch18, a obra sempre a mesma, mas as
conscincias mudam19.
Uma das questes que motivaram a realizao deste trabalho a sutil
relao que se percebe entre essas fotografias de escravos e a crescente adoo,
por parte dos artistas e literatos brasileiros, de temas e questes relacionadas
presena incontornvel porm longamente escamoteada do negro na vida
nacional. Ao tratar dessa questo considerada tabu ou abordada de forma
suavizada no pas, onde a imagem praticamente nunca foi usada como arma de
combate contra a escravido20, o artista de origem aoriana parece caminhar sobre 18 No obstante o que por vezes parecem pensar os principiantes, os documentos no
aparecem, aqui e ali, pelo efeito de um qualquer imperscrutvel desgnio dos deuses. A sua presena ou a sua ausncia no fundo dos arquivos, numa biblioteca, num terreno, dependem de causas humanas que no escapam de forma alguma analise, e os problemas postos pela sua transmisso, longe de serem apenas exerccios de tcnicos, tocam, eles prprios, no mais ntimo da vida do passado, pois o que assim se encontra posto em jogo nada menos do que a passagem da recordao atravs das geraes. BLOCH, Marc. Apologie pour lhistoire ou Mtier dhistorien. Paris, Colin, 1949. Apud LE GOFF, Jacques. Documento/monumento, In: ______. Historia e memria, Campinas: Editora da Unicamp , 2003. p. 534.
19 ARGAN, Giulio Carlo. A Histria da Arte. In: Histria da Arte como Histria da Cidade, 5. ed., So Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 25.
20 Tal uso verifica-se com grande intensidade, por exemplo, nos EUA. Sobre o tema, ver WOOD, Marcus. Blind memory. Visual representations of slavery in England and America; 1780-1865. Manchester; Nova York: Manchester University Press, 2000.
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uma espcie de linha divisria, atando pontos distantes da visualidade de seu
perodo. Ao mesmo tempo que respeita os modelos estabelecidos da arte europeia
(como lembra Aumont, h um evidente prazer em reconhecer na imagem aquilo que
j nos familiar), introduz pequenas subverses compositivas.
No demais considerar tambm que a cautela com que o fotgrafo lida com
a figura do escravo pode derivar das tenses e subterfgios caractersticos da
sociedade brasileira de ento, na qual coexistiam a defesa de necessidade absoluta
de preservao do sistema sob a alegao de que o fim do escravismo seria um
golpe demasiado forte para a economia local e a defesa crescente (mas ainda
dbil, em meados da dcada de 60 do sculo antepassado) de superao do
modelo, por meio de uma distenso gradual constantemente postergada.
No toa, nos parece, fotografias como as de Christiano Jr. passaram quase
um sculo escondidas, at ressurgirem h algumas dcadas. E mesmo a partir de
ento passaram a ser vistas como tentativas do fotgrafo de suavizar o tema em
razo de interesses comerciais, sem que se atentasse para o fato de que esse
tratamento e negao da questo no necessariamente correspondia s intenes
do fotgrafo, falta de poder dos modelos de determinar sua representao ou ao
desinteresse do pblico consumidor, mas sim a uma combinao de fatores que at
hoje repercutem na maneira de os brasileiros pensarem e representarem a questo
da escravido.
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20
1. SECURA ELOQUENTE
Em meados do sculo XIX, o fotgrafo Jos Christiano de Freitas Henriques
Junior (1832-1902), aoriano radicado no Brasil desde 185521, realiza uma srie
ampla de retratos de trabalhadores negros no Rio de Janeiro, ento capital do
Imprio. Feitas entre 1864 e 1866, essas imagens representam apenas parcela
relativa da obra do artista no perodo em que atuou na ento capital do Imprio,
produo que inclui tambm diversos retratos, cenas ao ar livre e reprodues de
gravuras, entre outros. Tais fotografias, que ele apregoa em anncios publicados na
imprensa local como sendo uma Variada colleo de [...] typos de pretos, cousa
muito prpria para quem se retira para a Europa22, sobreviveram de forma esparsa,
em colees pblicas e privadas do Brasil e do exterior23. Em um levantamento
preliminar, baseado em referncias bibliogrficas, foi localizada quase uma centena
desses retratos24. 21 As informaes biogrficas de Christiano Jr. foram levantadas em AZEVEDO, Paulo Csar
de; LISSOVSKY, Maurcio (Orgs.). Escravos Brasileiros do Sculo XIX na Fotografia de Christiano Jr. So Paulo: Ex Libris, 1987. A obra, um dos mais importantes trabalhos sobre o fotgrafo, abre caminho para diversos outros estudos acerca de seu trabalho. Dentre outros estudos monogrficos significativos sobre o fotgrafo aoriano, pode-se citar: LEVINE, Robert M., Faces of Brazilian Slavery: The Cartes de Visite of Christiano Jnior. The Americas, v. 47, n. 2, p. 127-159, Oct. 1990; ALEXANDER, Abel; BROGONI, Beatriz; MARTINI, Jos; PRIAMO, Luis. Un pas en transicin. Buenos Aires, Cuyo y el noroeste em 1867-1883. Fotografias de Christiano Junior. Ediciones de la Antorcha, 2007; e BELTRAMIM, Fabiana. Sujeitos Iluminados: A reconstituio das experincias vividas no estdio de Christiano Jr. Dissertao de mestrado em Histria, PUC, So Paulo, 2009.
22 A afirmao consta de anncio publicado no Almanaque Laemmert em 1866, reproduzido a seguir.
23 Dentre os principais acervos brasileiros a possuir fotografias de escravos feitas por Christiano Jr. esto: o Museu Histrico Nacional (MHN); o Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional (Iphan); o Ministrio das Relaes Exteriores e a Biblioteca Nacional (BN). H tambm uma presena significativa de imagens de sua autoria em colees particulares. Em relao a esse levantamento das fotografias que Christiano Jr. fez de negros em seu perodo de permanncia no Brasil importante destacar a grande contribuio dos pesquisadores Paulo Csar de Azevedo e Mauricio Lissovsky, Op. cit.
24 O colecionador Ruy Souza e Silva estima que no existam mais de 150 fotografias de negros de autoria identificada de Christiano Jr. e considera que muitas delas so semelhantes, apresentando apenas pequenas diferenas. Segundo ele, todo ano cerca de 10 a 15 novos exemplares so oferecidos ao mercado,por meio de sistemas de venda virtual como o e-bay, e despertam muito interesse. A maioria dessas fotografias so provenientes de acervos privados
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21
Essas imagens, todas em formato de carta de visita25, podem ser subdividas
em trs grupos principais: os bustos de modelos representando diferentes naes
africanas, uma espcie de rol das diferentes etnias africanas presentes no Brasil no
perodo (Fig. 1); as obras de cunho mdico-cientfico, com destaque para uma srie
de registros de vtimas da elefantase, considerada um dos primeiros registros
fotogrficos do gnero (Figs. 3 a 5); e os retratos de corpo inteiro, de modelos
individuais ou em grupo, feitos em estdio, que relacionam de maneira evidente
esses modelos com diferentes ofcios, situando-os sempre em relao a objetos do
universo do trabalho (Fig. 6)26. Tabuleiros, cestos, cadeiras e tamboretes se
revezam na cena, manipulados ou ao lado desses homens, mulheres e crianas.
So estes ltimos que constituem o principal foco de interesse desta pesquisa.
A escolha dos modelos27, a disposio das figuras e objetos, a ausncia de
cenrio nessa sala estabelecem um claro elo entre as fotografias. Merece destaque
a linha do rodap que separa o cho do estdio da parede vazia ao fundo, europeus e no passaram por muitos lugares ou colees. Essas informaes foram extradas de entrevista realizada com o colecionador por e-mail em 10/04/2011.
25 Carto de visita, ou carte de visite, o nome dado imagem obtida por meio do sistema que permitia tirar vrios clichs sobre a mesma placa de vidro, o qual barateava o custo de realizao da imagem e popularizava a fotografia, cujo formato e dimenso assemelha-se aos do carto de visita. O mecanismo foi inventado pelo francs Andr Adolphe Eugne Disdri (1819-1889), fotgrafo de maior renome na Frana do perodo, e permitiu a transio de uma fotografia ainda artesanal para um verdadeiro sistema industrial de produo. Isso porque tornou possvel, por meio do uso de mltiplas lentes, a realizao de diversas imagens a partir de uma mesma pose, potencializando de forma exponencial a produo dos estdios.
26 Assim, para alm do negro constituir fora motriz nestas terras, o fardo do trabalho delimita com preciso o lugar que lhe compete na sociedade que est se formando o trabalho civiliza e demarca o lugar que lhe foi reservado pelo europeu na marcha incessante do progresso que conduzir todos civilizao. Ver FREITAS, Iohana Brito de. Cores e olhares no Brasil oitocentista: os tipos negros de Rugendas e Debret. Dissertao (Mestrado), Departamento de Histria, Instituto de Cincias Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, 2009, p. 71.
27 Os pesquisadores que se dedicaram nas ltimas dcadas a analisar o trabalho de Christiano Jr., redescoberto na dcada de 1980 quando os estudos sobre a escravido no pas ganharam novo flego em razo das celebraes do centenrio da Abolio, supem que o fotgrafo usava como modelos os escravos que encontrava na regio em que se situava seu estdio e oferecia algum pagamento a eles ou a seus proprietrios em troca do servio. Trata-se dos negros de ganho, figura caracterstica do escravismo brasileiro, fortemente presente j nos desenhos de Debret e que tambm vai servir de modelo para outros fotgrafos, como Marc Ferrez.
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22
promovendo um corte austero em dois planos bem demarcados, que organizam a
imagem e acabam por acentuar aquilo que considerado o principal atributo do
escravo: os ps descalos28. Outra caracterstica comum o fato de todas as
imagens serem explicitamente posadas. Ou seja, no h a inteno de disfarar, de
montar uma cena artificialmente natural. A encenao por demais evidente, quase
que voluntariamente explcita, contrastando muito com os tpicos retratos de estdio
realizados no perodo, marcados por uma forte dose de fantasia.
H ausncia de qualquer ornamentao e uma grande nfase nos atributos
de trabalho e nos trajes mais tpicos da populao africana ou dos trabalhadores de
rua do perodo, sobretudo no caso das mulheres. As roupas, os xales e os
acessrios do a impresso de serem aqueles usados no dia a dia, trazem marcas
de uso, de sujeira e rasgos, contrastando com diversas imagens do mesmo gnero
e perodo, nas quais os modelos tambm trabalhadores negros aparecem com
trajes cuidadosamente escolhidos e limpos, bem arrumados, em imagens que
expressam seja uma situao de subordinao e respeito ou exploram elementos
tpicos da cultura africana, como os panos de costa e as longas e rodadas saias29.
Essas so algumas das caractersticas comuns s imagens que compem o
corpo de estudo e que sero estudadas com maior detalhe nas pginas que se
seguem. A inteno, neste primeiro bloco do trabalho, detalhar alguns aspectos
dessa produo, que se destacam tanto no embate direto com as imagens quanto
por sua presena quase constante na crescente bibliografia sobre a obra de
28 A associao entre os ps nus e a escravido, muito mencionada no caso da escravido no
Brasil, tem razes bem mais antigas. Segundo o Dicionrio dos Smbolos, na Antiguidade andar calado era um privilgio e um smbolo do homem livre; os escravos andavam descalos LEXICON, Herder, Dicionrio de Smbolos. So Paulo: Cultrix, 1994. p. 41.
29 H exemplos desse tipo de abordagem em trabalhos do prprio Christiano Jr. e de outros autores como Albert Henschel e de August Stahl (ver nota 231), conforme ser visto a seguir.
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23
Christiano Jr. O objetivo aqui evidenciar as especificidades dessa produo,
mostrar, por meio da anlise da obra, do contexto em que ela foi produzida e da
documentao existente sobre o artista no s o que o trabalho de Christiano Jr.
tem de comum com o padro tpico de sua poca, mas tambm suas
particularidades, sugerindo novas interpretaes, como a de que h a presena de
um olhar mais atento questo escravista e uma ateno especial a modelos
estticos mais requintados.
Dois casos especficos, dentro desse recorte mais amplo, sero tratados em
detalhe. O primeiro refere-se ao conjunto dessas imagens que o autor selecionou,
editou e presenteou ao rei de Portugal e que permite avanar no estudo de certas
caractersticas marcantes de suas fotografias de negros, como a neutralidade
compositiva (a ausncia dos tradicionais adornos de estdio), a importncia central
dada aos objetos e vestes como elementos constitutivos da identidade do modelo e
a repetio de modelos de pose derivados da tradio do retrato. Essas
caractersticas, que estabelecem um padro evidente para a produo de Christiano
Jr., permitem tambm diferenci-la do conjunto mais amplo da retratos de typos
realizados em meados do sculo XIX no Brasil por outros fotgrafos em atuao no
perodo e, ao mesmo tempo, a colocam em sintonia com uma tradio mais ampla e
modelos estticos j consolidados em outras reas de produo artstica.
O segundo conjunto de imagens a ser trabalhado mais detidamente bem
menos significativo do ponto de vista numrico, j que trata apenas de imagens de
Christiano Jr. e de suas releituras em gravura, publicadas na revista norte-
americana Harpers Weekly (Figs. 7 a 12). No entanto, a descoberta dessas
fotografias do autor traduzidas para outro meio e utilizadas para divulgao em
outro pas e num veculo de grande circulao permite especular sobre novas
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24
possibilidades de consumo e circulao das fotografias de Christiano Jr.30 Discutir a
insero dessas fotografias traduzidas num circuito mais amplo de consumo
parece til para compreender que no se trata de uma produo de sentido nico,
mas sim de um trabalho desenvolvido em sintonia com demandas dispersas, que
poderia gerar mesmo em sua poca diferentes formas de consumo e leitura.
Tambm neste primeiro bloco ser esboado um perfil biogrfico do fotgrafo
e elaborada uma sntese da produo bibliogrfica a seu respeito, com um
levantamento extensivo das pesquisas e anlises interpretativas de diferentes
campos de conhecimento sobre seu trabalho, sobretudo da histria da fotografia e
da antropologia.
Alm de viabilizar uma maior compreenso do quadro em que se est
trabalhando, tal esforo de sntese tambm auxilia a traar um panorama diverso,
em que se somam e muitas vezes se chocam informaes distintas e
complementares. Por que no considerar a possibilidade, mesmo que
aparentemente contraditria, de que Christiano Jr. tenha sido, ao mesmo tempo, um
homem com ambies e talentos artsticos e um empreendedor que sobreviveu
comercializando de forma acrtica tanto fotos de escravos31 como reprodues de 30 Este material foi localizado durante busca na internet em agosto de 2010, em site mantido
pela Virgnia University, sob o titulo The Atlantic Slave Trade and Slave Life in the Americas: A Visual Record, de autoria de Jerome S. Handler e Michael L. Tuite Jr. Disponvel em .
31 Alguns questionam se os modelos usados pelo fotgrafo eram ou no cativos. Tal questo parece secundria, posto que eles so representados com os principais atributos associados aos negros de ganho que povoavam as ruas da capital do Imprio na segunda metade do sculo XIX: roupas em andrajos, atributos de trabalho comuns a essa populao como os cestos e tabuleiros, e sobretudo, os ps descalos em destaque. Fabiana Beltramim trabalha essa questo detalhadamente em sua dissertao de mestrado: Tratar esses indivduos como seres apticos, arrastados aos atelis, seria silenciar possveis experincias sociais. No porque no eram os consumidores diretos dessa produo, que no sabiam dentro da real experincia vivenciada o que estava em jogo. O no-reconhecimento desta possibilidade refora a ideia de que alguns fotgrafos manipularam a imagem do negro escravo ou liberto, explorando-a comercialmente, coisificando-os como verdadeiros modelos-objetos. BELTRAMIM, op. cit., p. 73. A citao feita pela pesquisadora corresponde a trecho de KOSSOY, Boris e Tucci Carneiro, Maria Luiza. Olhar Europeu - O Negro na Iconografia Brasileira do Sculo XIX. So Paulo: Edusp, 1994, p. 193.
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25
gravuras de arte, ou ainda dedicando-se ao estudo sobre vincolas e produes de
licor? Ou ento que suas fotografias tenham despertado o interesse no apenas do
mercado vido por imagens de lugares exticos32, mas tambm de figuras e
publicaes mais vinculadas a uma posio crtica sobre a escravido, como podem
indicar as reprodues na Harpers Weekly conhecida por sua critica instituio
escravista33 ou a presena de diversas imagens de sua autoria na coleo de
Joaquim Nabuco?
32 Essa questo ser retomada no Captulo 2. 33 Ver p. 84 deste estudo.
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26
1.1. Leituras
Cada autor legenda sua prpria maneira as fotos que reproduz em seu livro.34
certo que a fotografia de Christiano Jr. presena garantida em todo
estudo sobre a fotografia brasileira do sculo XIX. Em termos quantitativos e
qualitativos, o olhar que o fotgrafo lana sobre os escravos perturbador. Mas as
anlises exclusivas e detalhadas de sua obra no so to numerosas assim.
Pode-se atribuir a descoberta desse conjunto de fotografias de escravos de
sua autoria ao livro editado por Paulo Csar Azevedo e Maurcio Lissovsky h mais
de trs dcadas, por ocasio das celebraes em torno do centenrio da abolio35.
Segundo os pesquisadores, a publicao decorrente da localizao de cinquenta
cartas de visita de trabalhadores negros, a maioria delas assinada por Christiano Jr.,
presentes na coleo do Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional
(Iphan).
Alm dessas imagens, o livro rene ainda outras fotografias semelhantes do
autor, presentes em outros acervos de destaque, como o Museu Histrico Nacional,
o Museu Imperial de Petrpolis e a Mapoteca do Ministrio das Relaes
Exteriores36. E traz tambm trs ensaios, assinados por Jacob Gorender, Manuela
Carneiro da Cunha e Moniz Sodr, que refletem um interesse maior pelo tema do
escravismo usando as imagens como confirmao ou ilustrao do que pelas
34 MARESCA, Sylvain. As Figuras do Desconhecido. In Cadernos de Antropologia e Imagem
Antropologia e Fotografia, Rio de Janeiro: UERJ, n. 2, p. 64, 1996. 35 AZEVEDO; LISSOVSKY (Orgs.), Escravos Brasileiros do Sculo XIX na Fotografia de
Christiano Jr, op. cit. 36 A presena dispersa dessas fotografias em tantas colees tambm considerada por ns
indcio de que ao menos parte desses clichs foram consumidos aqui, no Brasil.
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27
possibilidades de leitura e interpretao dessas imagens finalmente trazidas a
pblico.
Aps a publicao da obra de Azevedo e Lissovsky comearam a surgir
algumas outras tentativas de anlise desse material, sobretudo a partir de uma tica
antropolgica e histrica. A tendncia da maioria dessa nova bibliografia em
inserir a produo de Christiano Jr. num contexto homogneo e pautado quase que
exclusivamente pelo interesse em alimentar um mercado externo vido por imagens
genricas e exticas dos negros brasileiros (bem como de centenas de outros povos
considerados inferiores aos olhos europeus) se respalda nas prprias palavras
adotadas na publicidade que o fotgrafo fazia e encontra eco tambm em uma das
obras mais amplas sobre a questo da produo de imagens no Brasil para
alimentar a demanda externa por imagens exticas: Olhar Europeu - O Negro na
Iconografia Brasileira do Sculo XIX, editada por Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris
Kossoy, em 1994, a partir de uma exposio realizada alguns anos antes37.
Logo no incio dos anos 90, no entanto, o pesquisador norte-americano
Robert Levine dedicou um estudo produo das fotos de negros de Christiano
Jr.38, no qual antecipa uma primeira tentativa de olhar mais de perto para as
imagens do fotgrafo, analisando-as detidamente, cotejando-as com as de outros
autores e enaltecendo sua expressividade e qualidade ao afirmar que so os mais
impressionantes retratos brasileiros de escravos e, em seu conjunto, o mais
37 KOSSOY, Boris; TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza. Olhar Europeu - O Negro na Iconografia
Brasileira do Sculo XIX (op. cit.). A exposio itinerante teve incio na USP, em 1988, por ocasio das celebraes do centenrio da abolio, e teve reedies, a ltima delas em 1992, na cidade de Ouro Preto.
38 LEVINE, Robert. Faces of Brazilian Slavery: The Cartes de Visite of Christiano Jnior. Op. cit., p. 127-159.
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28
completo registro visual da escravido em uma locao urbana na Amrica
Latina39.
Em 2002, foi editada uma obra na Argentina sobre a produo do fotgrafo
naquele pas40. Esse material confirma a importncia dada pelo fotgrafo
realizao de projetos de amplo flego. Fartamente ilustrado, o livro perfaz a
trajetria do fotgrafo desde o incio de sua carreira, no Brasil, at os anos finais na
Argentina, contribuindo para delinear o perfil de empreendedor e autor com amplas
reas de interesse, alm de demonstrar por meio de diversos exemplos o grande
apuro tcnico de sua obra. Em 2009, Fabiana Beltramim defendeu na PUC-SP uma
dissertao de mestrado dedicada a Christiano Jr., na qual reconstitui, a partir das
imagens do autor, as experincias vividas em seu ateli. A leitura desse trabalho,
que apresenta diversos pontos comuns com esta pesquisa, foi til como fonte de
confirmao de dados e caminhos interpretativos. O trabalho de Sandra Koutsoukos
sobre a representao do negro, que tambm trata amplamente de Christiano Jr.,
tambm foi de grande utilidade para esta pesquisa41.
Vrios outros ensaios sobre a obra do fotgrafo tambm vm sendo
publicada nas ltimas dcadas, inseridos em estudos e coletneas mais
abrangentes ou publicados em revistas especializadas, essencialmente focando
estudos ou de fotografia ou de antropologia. Dentre eles podem-se citar a coletnea
39 Aos nossos olhos, Christiano Jnior era to habilidoso em sua arte que suas fotografias de
escravos capturam uma dimenso expressiva [...]. Muitos fotgrafos de origem europeia produziram conjuntos similares de typos de negros e escravos, notadamente os alemes Alberto Henschel e Rodolpho Lindermann em Salvador, mas o trabalho de Christiano Jnior foi o mais profundo. LEVINE, Op. cit., p. 129-131.
40 ABEL, Alexander; PRIAMO, Luis. Recordando a Christiano. In: Un Pas en Transicin. Op. cit..Parte do material encontra-se disponvel em: .
41 KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estdio do fotgrafo. Representao e auto-representao de negros livres, forros e escravos no Brasil da segunda metade do sculo XIX. Tese (Doutorado em Multimeios), Instituto de Artes, Unicamp, 2004.
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29
publicada por George Ermakoff42 reunindo imagens fotogrficas de negros no Brasil
do sculo XIX; o ensaio As Fronteiras da Cor: Imagem e representao social na
sociedade escravista imperial, de Ana Maria Mauad43; e o livro organizado por
Letcia Vidor Reis e Lilia Schwarcz intitulado Negras Imagens44. No campo da
histria da fotografia, no se pode esquecer o trabalho de pesquisa e
sistematizao levado a cabo por Boris Kossoy45, bem como uma srie de estudos
de temtica mais especfica que auxiliam a iluminar toda essa produo,
encaminhados por autores como Pedro Karp Vasquez, Maria Inez Turazzi e Lygia
Segala46.
Ao se analisar esse material, pode-se concluir que dentre as questes mais
polmicas acerca da obra de Christiano Jr. no esto sua importncia histrica nem
tampouco sua qualidade esttica. unnime a importncia de seu trabalho, no
importa o ngulo a partir do qual sua fotografia (e aqui a referncia especfica
quelas imagens que representam escravos) analisada. As guas se dividem com
relao a um aspecto especfico, que tem alguns desdobramentos: o alinhamento
de sua obra a uma estratgia puramente mercadolgica, no sentido de atender o
mercado externo a partir da repetio acrtica de modelos exgenos baseados no
interesse exclusivo pelo extico. 42 ERMAKOFF, George: O negro na fotografia brasileira do sculo XIX. Rio de Janeiro: George
Ermakoff Casa Editorial, 2004. 43 MAUAD, Ana M. As Fronteiras da Cor: imagem e representao social na sociedade
escravista imperial. Revista Locus, Juiz de Fora, v. 6, n. 2, 2001. 44 SCHWARCZ, Lilia M. e REIS, Letcia Vidor de Souza (orgs.), Negras Imagens. Ensaios
sobre escravido e cultura. EDUSP/Estao Cincia, 1996. 45 Ver, por exemplo, KOSSOY, Boris. Dicionrio Histrico-Fotogrfico Brasileiro. So Paulo,
IMS, 2002; e KOSSOY, Boris. Origens e Expanso da Fotografia no Brasil: Sculo XIX. Rio de Janeiro, Funarte, 1982.
46 Ver VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Imprio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002; TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trejeitos A Fotografia e as Exposies na Era do Espetculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Funarte/Ministrio da Cultura, 1995; SEGALA, Lygia. Ensaio das Luzes sobre um Brasil Pitoresco: o projeto fotogrfico de Victor Frond. Op cit.
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30
Em Olhar Escravo, ser olhado, por exemplo, Manuela Carneiro da Cunha
afirma que as fotos de Christiano Jr. so tipicamente fotos de estrangeiro para
estrangeiros exatamente porque se contrapem cegueira seletiva que passa,
sob discreto silncio, a onipresena dos escravos47. Essa concluso deve-se
constatao prvia de que: 1) os brasileiros tratam o tema com uma cegueira
seletiva e portanto no aceitam dirigir um olhar mais atento para a questo; 2) a
imagem que os estrangeiros tm do Brasil , contrariamente dos brasileiros,
pautada pelo excesso de exotismo, o que os leva a insistir no aspecto africano da
cidade baixa de Salvador ou na nudez das lavadeiras do Rio de Janeiro.
A autora no explicita, no entanto, de que forma esse excesso de exotismo
estaria presente nas imagens do autor. E no considera tambm uma possvel
transformao de parte desse pblico, seja ele brasileiro, seja estrangeiro, em razo
exatamente do crescente movimento em defesa da superao do modelo
escravista. Alm disso, a autora deixa de lado a possibilidade de perceber o que se
camufla por trs dessa cegueira coletiva, no enxergando na fotografia os
elementos que supostamente contradizem a mera inteno mercadolgica do autor.
Em ensaio sobre o tema da representao fotogrfica do escravo no Brasil,
Ana Maria Mauad tambm no considera a possibilidade de investigao mais
aprofundada do carter ambguo dessa produo entre uma tradio j
sacramentada em solo europeu e a germinao de um processo endgeno de
representao do trabalhador brasileiro , reiterando que nessas imagens a
47 CUNHA, Manuela Carneiro da. Olhar Escravo, Ser Olhado. In: AZEVEDO; LISSOVSKY
(Orgs.). Escravos Brasileiros do Sculo XIX na Fotografia de Christiano Jr, op. cit.
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31
escravido era delineada, neste caso, pela esttica do extico48, sem mostrar de
que forma isso ocorria nas encenaes de atividades quotidianas.
Boris Kossoy e Maria Luiza Tucci Carneiro chegam a usar o termo projeto
esttico-ideolgico no s para justificar o isolamento buscado pelo fotgrafo, mas
tambm para reforar o carter meramente extico de sua coleo de tipos.
Segundo eles, Christiano Jr. montou situaes colocando seu objeto de
representao diante de um fundo artificial, transformando o negro fora de trabalho
em escravo modelo fotogrfico49.
No se trata aqui de negar que o intuito de Christiano Jr. seja atingir o
mercado, interessado em imagens exticas da cultura negra fortemente presente
nas ruas brasileiras. No entanto, a anlise dessas imagens e seu cotejamento com
outros trabalhos semelhantes realizados no perodo50 parecem indicar a
possibilidade de que, mesmo que o prprio Christiano Jr. afirme ter por objetivo
atender essa demanda, sua obra no se enquadra exatamente na tpica produo
feita com esse intuito.
Fabiana Beltramim e Sandra Koutsoukos51 desenvolvem crticas a esse tipo
de interpretao, predominante nas dcadas de 80 e 90. Ambas se opem
tendncia de ver o trabalho de Christiano Jr. como mera configurao fotogrfica de
uma imagem em sintonia com o apreo europeu pelo extico, e esta dissertao se
alinha a essa posio. Restringir a anlise de sua obra a esse tipo de associao 48 MAUAD, Ana M. As Fronteiras da Cor, op. cit., p. 90. 49 KOSSOY; TUCCI CARNEIRO, op. cit., p. 111. 50 Como a srie de retratos produzidos por Stahl a pedido de Louis Agassiz (ver nota 109 e p.
112 e ss. desta dissertao) ou a bela imagem de negra feita por Albert Henschel e que angariou inclusive uma premiao no Salo de Viena de 1873 (Fig. 51), que primam por destacar o exotismo e construir imagens pitorescas e um tanto artificiosas da paisagem e sobretudo do homem local.
51 Ver KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. No estdio do fotgrafo, op. cit., tese na qual a autora dedica amplo espao ao trabalho de Christiano Jr.
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32
parece reduzir o que ela contm de interessante, de rico, exatamente por sua
ambiguidade, j que ao mesmo tempo documento histrico e obra fotogrfica de
certo apuro artstico e tcnico, mesmo tendo servido como elemento material de
grande circulao, produzido e comercializado para atender a uma demanda clara.
Procurar-se-, ento, aps a exposio de um breve perfil biogrfico do fotgrafo,
identificar nas obras propriamente ditas os elementos que permitem problematizar o
trabalho de Christiano Jr., demonstrando via interpretao e anlise de imagem as
diferenciaes contidas a.
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33
1.2. Um empreendedor oitocentista
No clebre anncio que faz publicar em 1866 no Almanak Laemmert52 (Fig.
15), reproduzido na obra de Azevedo e Mauricio Lissovsky53 e considerado pea
fundamental em todas as anlises subsequentes da obra de Christiano Jr., o
fotgrafo aoriano no apenas afirma ter recebido recentemente um perfeito
machinismo que tira doze retratos de uma s vez referindo-se ao sistema
inventado pouco mais de uma dcada antes por Disdri e que se popularizou pelo
mundo afora , como tambm explicita ao longo do texto algumas caractersticas
que marcariam decisivamente sua carreira. Convm portanto dedicar um pouco de
ateno pea publicitria, utilizando-a como ponto de partida para uma
apresentao mais detalhada da vida e da obra do fotgrafo.
Alm das imagens propriamente ditas, a publicidade dos negcios
fotogrficos o que resta de mais concreto para o estudo da fotografia oitocentista.
Evidentemente, no se pode fiar integralmente nas afirmaes contidas nesses
textos que tm por objetivo atrair e convencer o pblico consumidor, criando muitas
vezes uma persona que no necessariamente tem a ver com a pessoa e o trabalho
profissional daquele que propagandeado. De qualquer forma, essa persona e suas
afirmaes parecem ser de utilidade para descobrir o que Christiano Jr. julgava
relevante, quais seus argumentos de convencimento e o que ele pretendia valorizar
em sua obra, bem como para entender, em parte, o funcionamento desse mercado,
responsvel pelo consumo e circulao das imagens.
Nessa pea publicitria, a de maior destaque veiculada por Christiano Jr. em 52 Publicado anualmente entre 1844 e 1889, o Almanaque Laemmert a principal fonte sobre
as atividades fotogrficas realizadas no pas, j que os profissionais costumavam noticiar em suas pginas.
53 AZEVEDO; LISSOVSKY, op. cit.
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34
seu perodo brasileiro, alguns tpicos chamam a ateno. Em primeiro lugar, ele
nomeia em letras garrafais seu estabelecimento de Galeria Photographica e de
Pintura, colocando-se claramente como um artista capaz de belas execues em
dois diferentes campos de ao. A definio de artista uma referncia dupla,
remetendo tanto ao carter artstico da obra de arte como aos dotes de Christiano
Jr. na outra tcnica. Ao longo da pesquisa foi encontrada referncia a apenas uma
tela assinada por Christiano Jr: um retrato do General San Martin (Fig. 16), pintado
por volta de 1875, que pertence ao Museu Histrico Sarmiento54. Mas sabe-se como
era usual nesse perodo a associao entre as tcnicas fotogrfica e pictrica nos
estdios fotogrficos, para a realizao de cpias e coloraes 55.
A sensibilidade artstica de Christiano Jr. chegou a ser louvada pelo clebre
pintor Victor Meirelles em seu relatrio sobre a Exposio Nacional de 186656:
54 A obra encontra-se reproduzida em Alexander e Priamo, op. cit., p. 31. Segundo os autores,
ela reproduz uma gravura realizada por Narciso Desmadryl em 1857, que por sua vez usou como fonte um daguerretipo feito em Paris pouco antes da morte do militar. A tela pintada por Christiano Jr. encontra-se no Museu Histrico Sarmiento, em Buenos Aires.
55 No Brasil, as parcerias mais conhecidas so aquelas estabelecida entre Stahl e German Wahnschaffe, artista-pintor alemo com quem ele trabalha por longos anos, tanto em Recife quanto no Rio, e a de Albert Henschel com o tambm alemo Karl Ernst Papf, anunciado como membro honorrio da Academia Real de Pintura de Dresde. Ver KOSSOY, Dicionrio Histrico-fotogrfico, So Paulo, IMS, 2002. p. 177.
56 As Exposies Nacionais, organizadas e patrocinadas diretamente pelo imperador, funcionavam como uma espcie de preparao e seleo do material das provncias que seria remetido para as feiras mundiais das quais o Brasil participaria. [...] A Exposio Nacional de 1866 serviu seleo do material que faria parte da Exposio Internacional de Paris de 1867, em TORAL, Andr A. A imagem distorcida da fotografia. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan. 2009. Disponvel em: . Christiano Jr. esteve na mostra acompanhado pelos fotgrafos de maior destaque no perodo, como demonstra a sntese a seguir: Na Exposio Nacional de 1866 foram apresentados trabalhos de quinze fotgrafos nacionais e estrangeiros, todos premiados com medalhas de prata, bronze e menes honrosas, entre eles: Jos Ferreira Guimares, Insley Pacheco, Christiano Junior, Carneiro & Gaspar, Stahl & Wahnschaffe e George Leuzinger, resume Maria Antonia Couto da Silva in As Relaes entre pintura e fotografia no Brasil do sculo XIX: Consideraes acerca do lbum Brasil Pitoresco de Charles Ribeyrolles e Victor Frond. Fnix Revista de Histria e Estudos Culturais , v. 4, ano IV, n. 2, Junho de 2007. Disponvel em: . Sobre o evento ver tambm o relatrio escrito por Victor Meirelles, que foi jri da mostra. MEIRELLES, Victor. Relatrio da II Exposio Nacional de 1866, in Boletim do Grupo de Estudos do Centro de Pesquisas em Arte & Fotografia, So Paulo: Departamento de Artes Plsticas ECA-USP, n. 1, 2006. Ver ainda TURAZZI, Maria Inez. Poses e Trejeitos A Fotografia e as Exposies na Era do Espetculo (1839-1889). Rio de Janeiro: Funarte/Ministrio da Cultura, 1995. p. 124 a 129.
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Os trabalhos deste senhor no so menos dignos de ateno por algumas boas qualidades que contm. As reprodues das gravuras da obra ilustrada: os Lusadas, de Cames, publicada em 1817 por D. Jos Maria de Souza Botelho; Morgado de Matheus, etc., etc.: so bem copiadas, e no podemos deixar de louvar to feliz lembrana, bem como o servio que presta aos artistas e aos amadores das belas artes pela propagao dessas belas composies artsticas, devidas ao lpis dos clebres Gerard e Fragonard.57
Chamam a ateno no comentrio do pintor acadmico, alm de sua clara
defesa da fotografia e da gravura como meio de divulgao, as descries que ele
faz das obras que Christiano Jr. exps na Exposio. Em vez de comparecer com
trabalhos de carter mais autoral58, o aoriano leva trabalhos de reproduo e
divulgao de obras alheias, clssicos da cultura europeia. Tal estratgia contrasta
vivamente com o fato de, nesse mesmo perodo, ele ter resolvido enviar para a
Exposio Internacional do Porto59 suas imagens de cenas e costumes de negros.
E parece confirmar que, se considerava essas fotos dignas do interesse de viajantes
que se recolhiam Europa, ele no acreditava que o mesmo material teria boa
receptividade por aqui60.
57 MEIRELLES, Op. cit., p. 10. 58 Como fazem por exemplo Georges Leuzinger, com paisagens de grande fidelidade e
requinte plstico, ou Insley Pacheco, representado por retratos marcados pela nitidez e beleza das meias tintas (Ibid., p. 9 e 11).
59 Ver mais detalhes na nota 88. nessa exposio que ele mostra os trabalhos hoje guardados no acervo do Museu Histrico Nacional (MHN).
60 Volta a pergunta-chave: se a presena negra na sociedade brasileira era to intensa, por que sua presena to nfima nas representaes culturais, mesmo em plena crise do trabalho escravo? A resistncia do mercado uma resposta. Como especula Chiarelli, no Brasil, elevar o trabalhador a protagonista das composies pictricas significaria trazer o negro escravo para o primeiro plano das telas. Se tal proposta fosse praticada, quem as compraria, o imperador, a marinha, o exrcito, o colecionador com preocupaes sociais (se eles existissem no Brasil), o viajante interessado numa lembrana do pas?. Ver CHIARELLI, Tadeu. Memorial apresentado Escola de Comunicaes e Artes da Universidade de So Paulo como parte dos requisitos para a obteno do ttulo de Professor Titular junto ao Departamento de Artes Plsticas, rea: Histria, Crtica e Teoria da Arte. So Paulo, ECA/USP, 2010, p. 51-52. Christiano Jr. parece ter se feito a mesma pergunta e concludo que apenas o ltimo tpico fazia um certo sentido. Voltamos a discutir a questo do pacto de silncio em torno da escravido e da naturalizao das imagens do negro no Captulo 3, p. 188 e ss.
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Voltando publicidade, nota-se que a variedade de tcnicas oferecidas pelo
anncio considerada um importante atrativo, indcio de sofisticao do estdio,
como se pode aferir pelo seguinte trecho: [...] desde a menor photographia (sem
ser microscpica) at a maior, de tamanho natural [...], colorindo-se a oleo,
aquarela, miniatura, pastel, etc., etc..
Ao mesmo tempo que propagandeia a sofisticao artstica de seu
empreendimento, o fotgrafo deixa evidente o carter comercial e industrial de sua
empreitada, chegando a repetir no incio e no fim da pea publicitria a tabela de
preos na qual se nota uma nfase evidente na quantidade. No se trata mais de
uma nica imagem, mas de uma centena delas, s quais so atribudos diferentes
usos (cartes de visita, boas festas, casamentos [...]), ou ento de um leque
amplo de ofertas para alimentar colees. A este ltimo grupo, alis bem variado,
que contempla desde os homens mais clebres da guerra atual, passando por
outras figuras ilustres como a imagem do presidente norte-americano Abraham
Lincoln (Fig. 17)61, que pertencem as imagens aqui analisadas e apresentadas
como uma variada colleco de costumes e typos de pretos.
H vrios outros exemplos desse tipo de oferta diversificada e inovadora do
ponto de vista tecnolgico por parte do fotgrafo. No mesmo ano de 1866 ele teria
divulgado a seguinte oferta no verso de uma de suas cartes de visite:
[...] retratos em leno, costumes e tipos de ndios, cpias de gravuras de Morgado de Matheus reproduzidas de uma rarssima edio dOs Lusadas, retratos em porcelana e em marfim, retratos em vidro para ver por transparncias, vistas para estereoscpio (aparelho
61 Um desses retratos do presidente norte-americano Abraham Lincoln encontra-se depositado no acervo do MHN. Trata-se provavelmente de uma reproduo de gravura feita por artista norte-americano, mas a hiptese ainda tem que ser comprovada. O fato de comercializar no apenas imagens de sua autoria mas tambm de outros autores, inclusive importadas como esta do estadista norte-americano, pode ser um indcio de relao comercial com algum fotgrafo ou instituio desse pas, o que explicaria tambm a presena de suas imagens retrabalhadas na Harpers Weekly.
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binocular, no qual colocado um carto com duas fotografias da mesma cena, tiradas em ngulos ligeiramente diferentes para criar a iluso de tridimensionalidade), retratos de homens clebres, monarcas, guerreiros, literatos, etc.62
O fato de esses dois reclames (o do Almanaque Laemmert e o citado acima)
serem do ano de 1866 no mera coincidncia. possvel imaginar que o fotgrafo
apostou num crescimento de sua presena no j competitivo mercado carioca desse
perodo. No mesmo Almanak Laemmert ele comparece ao lado de outros 26
fotgrafos no Captulo intitulado Artes, ofcios, etc., mas foi o nico a ter comprado
uma pgina na seo de Notabilidades (uma espcie de ncleo publicitrio dentro
da publicao).
Christiano Jr. havia chegado capital do Imprio provavelmente em 1862 ou
1863, vindo de Macei. Existem poucas informaes sobre sua trajetria antes
disso. Ele teria nascido em 1832 em Santa Cruz das Flores (Aores), emigrado para
o Brasil em 1855 acompanhado da mulher e de dois filhos, iniciando sua atividade
fotogrfica em 1860 em Macei63.
Nenhuma informao at o momento permite conhecer como se deu sua
formao, seja no campo da pintura, seja no da fotografia.64 Um dos primeiros
registros de sua atuao profissional um anncio de 186265. Em seguida
transfere-se para o Rio de Janeiro e comea a anunciar seus servios em jornais e
no j mencionado Almanak. Em 1864 associa-se a Fernando Antonio de Miranda. A 62 AZEVEDO; LISSOVSKY, op. cit., p. xii. 63 Informaes compiladas em FORJAZ, Jorge; MENDES, Antnio Ornelas. Genealogias das
Quatro Ilhas - Faial, Pico, Flores, Corvo, Lisboa: Editora Dislivro Histrica, 2009, 4 vols. v. 2, p. 1009. 64 Segundo Forjaz (Ibid.), entrevistado por e-mail em 14 de maio de 2010, seguramente a
formao de Christiano Jr. no campo fotogrfico no se deu nos Aores, posto que anteriormente a 1855 no havia nenhum profissional da rea atuando na Ilha das Flores. Quanto a uma provvel formao em Macei, as tentativas de descobrir junto a instituies locais (como a Fundao Pierre Chalita e o Centro Histrico e Geogrfico) dados sobre o fotgrafo em seu perodo de residncia por l foram infrutferas.
65 KOSSOY, B, Dicionrio Histrico-fotogrfico, op. cit., p. 174.
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sociedade dura pouco, sendo rompida em 1865, mas foi exatamente ela que
permitiu a Lissovsky e Azevedo datarem a realizao da coleo de tipos de negros,
em funo dos carimbos de identificao das imagens.
O ano de 1866, como mencionado, marcante em sua trajetria. Alm de
intensificar a propaganda provavelmente uma estratgia em busca de uma
posio de destaque num mercado ainda pequeno, mas o maior do pas.66
Christiano Jr. estabelece sociedade com Bernardo Jos Pacheco e participa da
Segunda Exposio Nacional, realizada em 186667. Recebe apenas a medalha de
bronze (ningum foi agraciado com o ouro), ficando fora da disputa por uma vaga
como representante brasileiro na Exposio Universal de Paris do ano seguinte.
Mantendo sua sociedade com Pacheco se mantendo at 1875, o fotgrafo
deixa o Rio ainda em 1866 ou 1867, e parte para o sul do Brasil68, Uruguai69 e
estabelece-se na Argentina, fixando-se em Buenos Aires70. Na bibliografia brasileira
e argentina possvel inferir algumas hipteses no exclusivas para essa mudana:
o esprito aventureiro de Christiano Jr.; o maior espao encontrado no mercado
portenho, no to concorrido como o carioca; e indicaes mdicas. Esta ltima
tese a nica respaldada por testemunho do prprio fotgrafo, que, em livro editado
em 1899, escreveu:
66 Alm disso, disputado por uma serie de outros fotgrafos de renome na cena carioca, que
contavam com a vantagem de poder divulgar o fato de serem fotgrafos com o selo imperial, distino que ele no possua.
67 Ver p. 34-35 deste estudo. 68 Segundo KOSSOY (op. cit., p. 175) h registros de que ele passou por Desterro (antigo
nome de Florianpolis) antes de chegar ao pas vizinho. 69 Manteve na cidade de Mercedes um ateli em funcionamento por vrios anos,
provavelmente administrado por um scio, como no caso do Rio. 70 Alexander e Priamo descrevem com detalhes as atividades do fotgrafo na Argentina. Op.
cit., p. 23 e ss. H tambm uma verso on-line deste trabalho, disponvel em .
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Em 1863, encontrando-me no Rio de Janeiro, devido supresso de uma herpes que tinha na perna me sobreveio uma inflamao do estmago e da lngua, que depois de alguns dias modificou-se, deixando-me uma dispepsia que at hoje me acompanha [] Assim continuei sofrendo at o ano 66, no qual por conselho de meu mdico vim a Buenos Aires, onde continuei doente porm com menos intensidade.71
A atuao de Christiano Jr. na fotografia argentina foi pioneira, longa e
produtiva. Segundo Alexander e Priamo, o exame de seus lbuns de trabalho
depositados no Archivo General de la Nacin revela que apenas entre abril de 1873
e setembro de 1875 seu estdio produziu mais de quatro mil fotos, ou seja atendeu
cinco clientes por dia (Fig. 18)72. Christiano Jr. obteve grande reconhecimento: em
1871 recebeu a medalha de ouro na Primeira Exposio Nacional com a srie de
fotos Vistas y Costumbres de la Republica Argentina; em 1876 alcana novamente
o primeiro prmio na segunda exposio anual da Sociedade Cientfica Argentina
com uma coleo de Retratos y Vistas de Costumbres y Paisages. Apesar desse
sucesso, veio a morrer pobre e quase cego em Assuno (Paraguai)73.
Em 1878 vendeu seu estdio para Witcomb & Mackern. Segundo Robert M.
Levine, a venda incluiu um acervo de 25 mil negativos em vidro74. Tinha ento 46
anos, muito prestgio e um negcio estabelecido, administrado por seu filho,
afirmam seus principais bigrafos na Argentina. Segundo eles, a venda e a
71 Tratado prctico de vinicultura, destilera y licorera. Buenos Aires, edicin del autor,
imprenta de G Kraft, p. 223, apud ALEXANDER; PRIAMO. Op. cit., p. 34. Esta obra tambm sinaliza a diversidade de interesses de Christiano Jr. que, alm de fotografia, dedicou-se tambm a outras iniciativas, tornando-se produtor de bebidas, proprietrio de duas casas de banho, editor de obras como o Almanaque Comercial e Gua de los Forasteros para 1877. Ibid., p. 27.
72 Ibid., p. 23. 73 Os autores argentinos atribuem as dificuldades financeiras no final da vida do fotgrafo aos
pesados investimentos necessrios ao projeto de registrar as vistas e costumes argentinos, uma vez que ele no conseguia obter apoio financeiro e institucional suficiente.
74 LEVINE, Robert M. Faces of Brazilian Slavery: the Cartes de Visite of Christiano Junior. Op. Cit., p. 130.
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mudana de Buenos Aires teria sido motivada pelo ambicioso plano de realizar
lbuns retratando vistas e costumes de cada provncia argentina (Figs. 19 e 20).
O prprio Christiano Jr. explica seu projeto:
No incio pensei em contratar um fotgrafo que fizesse esse trabalho, mas me convenci de que por melhor que fosse a escolha dessa pessoa, seria impossvel que ela pudesse compreender minhas ideias artsticas.75
No incio de 1876 oferece ao pblico a subscrio da publicao, intitulada
Album de vistas y costumbres de la Repblica Argentina. Apresenta-a como tendo
12 tomadas de Buenos Aires e descries histricas em espanhol, francs, ingls e
alemo, encadernao de fantasia e capas com alegorias em baixo relevo76. As
fotos reunidas a vinham sendo feitas e comercializadas desde o ano anterior,
seguindo uma estratgia usual poca de valorizar editorialmente produtos que j
haviam sido ofertados de forma individualizada. No s Buenos Aires foi alvo de sua
lente. Na viagem que inicia em 1879 passa por vrias cidades, como Crdoba, Rio
Cuarto, Mendoza, etc. Ele escreve em 1876 para introduzir seu lbum Vistas da
Provncia de Buenos Aires:
Meu plano vasto e, quando estiver completo, a Repblica argentina no ter pedra nem rvore histrica, do Atlntico aos Andes, que no tenha sido submetida ao foco vivificador da cmara obscura.77
Todo esse projeto de registrar em detalhes a paisagem e os costumes da
Argentina, o material produzido pelo fotgrafo e as diversas declaraes feitas por
ele sobre esse ambicioso trabalho contribuem para revelar, mesmo que a posteriori,
algumas de suas convices acerca do papel do fotgrafo. Destacam-se como 75 A afirmao consta, segundo Alexander e Priamo, do formulrio de inscrio do lbum
Vistas y Costumbres de la Repblica Argentina, 1882. Op. cit., p. 28. 76 Ibid., p. 24. 77 Ibid., p. 21.
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elementos essenciais dessa viso novamente a nfase no carter artstico de tal
empreitada e o aspecto totalizante do projeto, em sintonia de forma muito mais
ambiciosa e potente com o que o fotgrafo havia desenvolvido no Rio de Janeiro
em relao aos typos de africanos.
Segundo Alexander e Priamo, o projeto de Christiano Jr. destacou-se em
relao ao que se fazia na poca. Para constatar isso basta ver o tomo dedicado a
Buenos Aires (sua ideia era destinar um tomo a cada provncia). Foi o primeiro
deles, colocado venda em 1876. Continha 12 imagens e descries histricas em
espanhol, francs, ingls e alemo, de autoria de terceiros: Era a primeira vez que
se publicava no pas tal tipo de lbum fotogrfico; e ningum voltou a faz-lo no
sculo XIX, a no ser o prprio Christiano78. Alm de destoarem das outras fotos
de paisagens avulsas comercializadas no perodo, a obra se destacaria, segundo os
autores, por distanciar-se do olhar voltado ao ambiente rural, mais usual:
que seu olhar fotogrfico correspondia ao pensamento ilustrado da poca, que queria deixar rapidamente para trs a Argentina pastoril e colonial to bem documentada pelos fotgrafos da dcada precedente, sobretudo Esteban Gonnet e Benito Panunzi.79
O comentrio acima indica, mesmo que indiretamente, que estamos diante
de um fotgrafo no apenas interessado em atender cotidianamente um mercado j
cativo80, mas tambm de um profissional com ambies artsticas e comerciais mais
amplas, capaz de abandonar terrenos estabelecidos para buscar novas frentes de
ao.
78 Ver Alexander e Priamo, op. cit., p. 24. A empreitada faz lembrar algumas experincias do
gnero no Brasil, como aquela realizada por Milito de Azevedo na cidade de So Paulo, apesar de no ter o mesmo intuito comparativo.
79 Ibid., p. 25. 80 O nmero de retratos existentes de sua autoria confirmam seu sucesso no mercado
portenho. Ver p. 39.
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Tambm convm mencionar nesta sucinta biografia do artista os escritos que
Christiano Jr. realiza ao final da vida e publica em srie no jornal La Provincia, de
Corrientes81, destacando-se, entre outras coisas, a impressionante sintonia
identificada entre uma crnica assinada por ele e publicada em 1902 e a obra de
Alusio Azevedo, sobretudo os romances O Cortio e O Mulato. Nesse texto o
fotgrafo expe, com ironia cida, uma viso crtica da sociedade brasileira, mais
especificamente dos portugueses; condena explicitamente o sistema escravista e
adota um estilo de escrita bem particular, criando uma narrativa em primeira pessoa,
ao mesmo tempo enxuta e direta caractersticas que tambm pontuam, como j foi
afirmado, sua produo fotogrfica.82
Chama a ateno, por exemplo, a importncia dada aos trajes como
definidores fundamentais de relaes sociais83, importncia que vem com o sinal
invertido, j que, segundo ele, o imigrante portugus que se apresenta bem vestido
mal recebido, enquanto aquele que se submete, que porta smbolos de
81 Ele se instala na cidade em 1901 e publica uma srie de oito artigos no jornal de oposio
La Provincia. A anlise deste material, que foi gentilmente cedido por Luis Priamo, foi de grande auxlio para a pesquisa, sobretudo daquele intitulado Brasil de 1855 a 1870, dedicado a Guillermo Rojas e publicado em 5/4/1902.
82 Em outro artigo publicado no mesmo peridico, ele trata de sua infncia nos Aores. Ali, no meio do Oceano Atlntico, a trezentas lguas do pequeno reino de Portugal, do qual provncia, existe um grupo de nove ilhas, conhecidas como grupo das Aores; separadas do grupo central em direo a Noroeste se levantam duas montanhas escarpadas, rodeadas de precipcios que causam vertigem e sem porto de abrigo para o navegante. Estas so as ilhas de Flores e Corvo, que com folga poderiam caber dentro de alguma das fazendas dessa provncia [...]. Assim comea o fotgrafo, num texto agradvel e marcado por um olhar atento e afetivo em relao paisagem de sua terra natal. Na crnica publicada em primeiro de janeiro de 1902 e dedicada a seu neto Augusto. ele fala de seu nascimento, das brincadeiras de criana e adolescncia. E tambm deixa claro ter uma viso muito negativa, um tanto amarga, da sociedade que encontra aps abandonar a Ilha das Flores. Sobre seus conterrneos, diz que so felizes porque ignoram muitas das misrias que corroem as grandes sociedades, so mais felizes porque no conhecem as necessidades que eu conheo, no sofreram tantos revezes da fortuna, enganaes, desenganos ou ingratides como as que me perseguem at hoje. Se fosse possvel voltar aos 23 anos, e saber o que me aconteceria nesse mundo, ficaria em minha ilha, entre os camponeses, vivendo uma pobreza honrada mas com o esprito tranquilo.
83 Elemento central tanto nas representaes de tipos e costumes, como nos exerccios de representao costumbrista, e tambm na categorizao dos indivduos nas representaes de carter naturalista. Sobre esse aspecto, ver Captulo 2.
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inferioridade como o tamanco, o que conquista poder e dinheiro, mesmo que por
meios ilcitos, como o trfico negreiro e a compra de aliados, na corte e na
imprensa. Servilismo, falta de personalidade e ascenso social estariam, segundo
ele explicita com veio irnico, bem prximos no Brasil da dcada de 1860.
Alm das caractersticas apontadas acima, saltam aos olhos as semelhanas
evidentes entre essa pequena narrativa e o romance O cortio. A figura do imigrante
portugus que consegue ascender socialmente descrita por Christiano Jr. se
assemelha de tal maneira de Joo Romo, o explorador abjeto conformado por
Azevedo, que no se deve descartar a possibilidade de que o fotgrafo tenha tido
acesso ao romance entre seu ano de publicao 1888 e a publicao da crnica
em 1902.
Da mesma maneira que Romo, o portugus mal vestido de Jr. trabalha
pesado; sobe na escala social ao conseguir a mo de uma moa de boa sociedade
vez ou outra, se caa nas graas do patro e este tinha filhas, o casava com uma
delas (muitas vezes com a que menos gostava)84; como Romo, tambm no tinha
escrpulos, e como ele tambm obteve vantagens da explorao de escravos e no
resistiu tentao de conquistar para si honras e ttulos:
Uma vez casado, tendo um capital proveniente de suas poupanas e do dote da sinhazinha, pensa em desligar-se do sogro, e um dia,
84 Op. cit. Neste caso do casamento, a identificao se d com outro romance de Azevedo, O Mulato. Mais especificamente com o personagem Jos Dias, que o pai de Ana Rosa queria para genro e scio. Havia, empregado no armazm do pai de Ana Rosa, um rapaz portugus, de nome Lus Dias; muito ativo, econmico, discreto, trabalhador, com uma bonita letra, e muito estimado na Praa. [...] Mas a coisa era que o diabo do homem, apesar das suas prsperas circunstncias, impunha certa lstima, impressionava com o seu eterno ar de piedade, de splica, de resignao e humildade. Fazia pena, incutia d em quem o visse, to submisso, to passivo, to pobre rapaz to besta de carga. [...] Manuel Pedro via, com efeito, naquela criatura, trabalhadora e passiva como um boi de carga e econmico como um usurrio, o homem mais no caso de fazer a felicidade da filha. Queria-o para genro e para scio; dizia a todos os colegas que o seu Dias apenas retirava por ano, para as suas despesas, a quarta parte do ordenado. Ver AZEVEDO, Aluisio. O Mulato. Fonte Digital Ministrio da Cultura Fundao BIBLIOTECA NACIONAL, Departamento Nacional do Livro. Disponvel em .
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deixando o balco do armazm de secos e molhados ou o depsito de carne seca, se dedica a grandes negcios