maria de fátima morethy couto˜ - ufrgs

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Maria de Fátima Morethy Couto¹ Resumo Minha apresentação tem por objetivo analisar o trabalho de artistas contemporâneos que recorreram a mapas com o intuito de transgredir representações convencionais, questionar sua neutralidade e discutir o lugar atribuído aos países considerados periféricos no concerto internacional de nações. Ressaltarei, assim, o potencial de intervenções poéticas aparentemente banais, mas de forte carga reflexiva pois desconfiguram convenções e representações que são tomadas como naturais. Palavras-chave Cartografias. Arte latino-americana. Arte contemporânea. Utopias Abstract My presentation aims to analyze the work of contemporary artists who resorted to maps in order to transgress conventional representations, question their neutrality and discuss the place attributed to peripheral countries in the international concert of nations. I will thus emphasize the potential for seemingly banal poetic interventions, but with a strong reflexive load because they deconfigure conventions and representations that are taken as natural. Keywords Cartographies. Latin american art. Contemporary art. Utopias DOI: https://doi.org/10.22456/2179-8001.98278 e-ISSN:2179-8001. nov/dez 2019 v. 24 n.42 Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfica na arte contemporânea² Breaking boundaries and breaking barriers: cartographic representation in contemporary art DOSSIÊ 1- Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, Brasil ORCID: 0000-0003-0561-6616 2-Texto recebido em: 17/jul/2019 Texto publicado em: 24/nov/2019

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10 PA42 - DOSSIE - Maria de Fatima Morethy Couto.inddResumo
Minha apresentação tem por objetivo analisar o trabalho de artistas contemporâneos que recorreram a mapas com o intuito de transgredir representações convencionais, questionar sua neutralidade e discutir o lugar atribuído aos países considerados periféricos no concerto internacional de nações. Ressaltarei, assim, o potencial de intervenções poéticas aparentemente banais, mas de forte carga reflexiva pois desconfiguram convenções e representações que são tomadas como naturais.
Palavras-chave
Abstract
My presentation aims to analyze the work of contemporary artists who resorted to maps in order to transgress conventional representations, question their neutrality and discuss the place attributed to peripheral countries in the international concert of nations. I will thus emphasize the potential for seemingly banal poetic interventions, but with a strong refl exive load because they deconfi gure conventions and representations that are taken as natural.
Keywords
DOI: https://doi.org/10.22456/2179-8001.98278
nov/dez 2019
v. 24 n.42 Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfi ca na arte contemporânea² Breaking boundaries and breaking barriers: cartographic representation in contemporary artDOSSIÊ
1- Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP, Campinas, Brasil
ORCID: 0000-0003-0561-6616
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Maria de Fátima Morethy Couto: Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfica na arte contemporânea
Gosto dos mapas porque mentem.
Porque não dão acesso à dura verdade.
Porque, generosos e bem-humorados,
Mapa, Wislawa Szymborska
Em Contra el mapa. Disturbios de la geografi a colonial de Occidente, livro publicado em 2008, Estrella de Diego discorre sobre a não objetividade dos mapas e das representações cartográfi cas, relacionando seu recorrente uso e aceitação no Ocidente ao sucesso de sua política colonial. Construções espa- ciais idealizadas, os mapas ordenam o mundo para que seja mais fácil controlá- -lo, criam uma totalidade ilusória e tornam igual aquilo que é diferente, afi rma a autora. Difundem (impõem?) modos de ver, convenções culturais determinadas, que não são facilmente compreensíveis a todos os povos nem a todos os setores de uma sociedade. São estratégias de representação da realidade, projeções de interesses políticos daqueles que os encomendam, e por isso estão associados a questões ideológicas e a formas de controle.
As conclusões da autora partem de estudos anteriores, realizados no próprio campo da história da cartografi a, que contestavam a noção de mapa como retrato objetivo da realidade. Nesse contexto, destacam-se as pesquisas de Brian Harley, um dos primeiros a afi rmar, ainda nos anos 1980, que os mapas, longe de serem um "espelho da natureza", descreviam o mundo em termos de relações de poder e de práticas culturais. Em "Text and Contexts in the Intrepretation of Early Maps", publicado originalmente em 1990, Harley assinala que "a retórica permeia todas as camadas do mapa. Como imagens do mundo, os mapas nunca são neutros ou isentos de valor ou são completamente científi cos" (Harley, 2002, p. 37). E sobre os mapas da América do Norte realizados no século XVIII, Harley pontua que, embora à primeira vista eles pareçam cumprir os objetivos da cartografi a Ilumi- nista, olhando-se mais de perto é possível perceber os imperativos territoriais da expansão agressiva da Inglaterra para além-mar:
(...) A cartografi a tornou-se um proeminente registro dos inte-
resses coloniais. É um retrato inconsciente de quão bem suce-
dida a sociedade colonial europeia reproduziu-se a si mesma
no Novo Mundo, e os mapas conferem segurança aos colonos,
reproduzindo a autoridade simbólica e os nomes de lugares do
Velho Mundo. Além disso, à medida que a fronteira se deslo-
cava para o oeste, os vestígios de um passado indígena eram
retirados da imagem. Vários fabricantes de mapas do século
XVIII preferiam espaços em branco em lugar de uma remanes-
cente geografi a indígena (HARLEY, 2002, p. 46).
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A originalidade do estudo de Estrella de Diego, e seu interesse para meu artigo, advém do fato de ela construir sua argumentação a partir da análise de diferentes obras de arte, desde as pinturas de Vermeer nas quais não apenas o mapa mas também o geógrafo e o astrônomo ocupam lugar de destaque, até as representações cartográfi cas subjetivas e incompletas de Guillermo Kuitca ou a apresentação provocativamente instável do continente africano em Emergen- cia, de Alfred Jaar. Alguns poucos trabalhos de artistas brasileiros contemporâ- neos foram por ela citados: um dos muitos mapa-múndi de Anna Bella Geiger; Cruzeiro do sul, de Cildo Meireles; A noite, de Iran do Espírito Santo e Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão, no qual a artista carioca transplanta para a tela uma das primeiras representações do novo mundo, elaborada em 1519 por Lopo Homem, cartógrafo e cosmógrafo português, e a lacera e sutura.
Estar contra o mapa, como indi- cado no título do livro, é estar contra a ordem dada, é resistir à imposição de padrões e lutar por novas formas de ver o mundo (ou de estar no mundo), mesmo sabendo do reduzido poder da arte de interferir na geopolítica global. Assim, o princípio norteador das escolhas da autora foi certamente o desejo de dar relevo a obras que questionam os códigos cartográfi- cos e desafi am os hábitos perceptivos, manipulando escalas, embaralhando distâncias, borrando fronteiras e subvertendo geografias reais. Obras
Figura 1. Mapa de Lopo Homem II, de Adriana Varejão, 2004. Primeira versão em 1992
Figura 2. Le monde au temps des surréalistes, 1929
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Maria de Fátima Morethy Couto: Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfica na arte contemporânea
capazes de avivar nossa sensibilidade e aguçar nossa imaginação, como o mapa-múndi concebido pelos surrealistas franceses e reproduzido pela revista belga Varietés, de junho de 1929, Le monde au temps des surréalis- tes, com o qual Estrella de Diego abre seu texto.
Nele, o grupo realiza uma manobra desestabilizadora, alterando as escalas de países, arquipélagos e continentes e promovendo uma releitura do mundo, embora ainda pautada pelo hemisfério norte e, claro, pelos interesses (políticos, culturais, estéticos) dos surrealistas. A Rússia domina a cena, enquanto a China parece ter encolhido e os Estados Unidos praticamente sumiram do mapa, apenas represen- tados pelo Alasca. Já o México, país que André Breton chamaria, anos mais tarde, de "o mais surrealista de todos, ganha destaque. O continente europeu, por sua vez, aparece "mutilado e reescrito", com demarcações ambíguas, imprecisas, e "uma caprichosa linha do Equador, ondulante e distorcida, dividindo a nova ordem mundial" (De Diego, 2008, p. 12). Interessante apontar ainda o quanto a Austrália e os continentes africano e sul-americano são representados diminutos, em espe- cial se os compararmos à representação de ilhas e arquipélagos, como a Ilha de Páscoa, a "Terra do fogo" (que aparece aqui completamente destacada do conti- nente) ou o Arquipélago da Oceania. Apenas duas cidades estão ali nomeadas: Paris e Constantinopla, revelando que "o mundo inteiro era Paris, ou, ao menos, olhava para Paris e era olhado a partir de Paris, cuja predominância, neste mapa, era compartilhada apenas com a cidade das grandes cúpulas douradas, epítome das civilizações e dos impérios – Constantinopla" (De Diego, 2008, p. 15).¹
Penso que, para nós, latino-americanos, a associação deste mapa ao desenho, tão conhecido e também comentado no livro em questão, de Joaquín Torres García, El Norte es el sur, concebido poucos anos mais tarde, em 1935, é inevitável. O artista uruguaio residiu em Paris entre 1926 e 1932 e, embora frequentasse outros círculos, talvez tenha tomado conhecimento do mapa dos surrealistas. De todo modo, seu trabalho parece-me mais radical pois, ao inverter a posição do mapa do continente sul-americano, colocando o norte no lugar do sul, leva-nos a refl etir sobre o efetivo lugar ocupado por essa região no mundo geopolítico. Como observou Maria Angélica Melendi,
Colocar o Polo Sul na parte superior do mapa, convencional-
mente usada para indicar o Norte, produz uma mudança de
sentido. Os navios subirão para o Sul e descerão até o Norte:
o Leste; o oriente vermelho – como corresponde – estará à
esquerda. Muito mais que um jogo engenhoso, o deslocamento
semântico dos pontos cardeais produz múltiplas associações
simbólicas. A nova bússola que aponta ao Sul indica também
um lugar ao qual se ascende, o paraíso. Descer ao Norte é
também uma descida aos infernos (MELENDI, 2004, s.p.).
1- Estrella de Diego defende a ideia de que o relevo dado à
Paris é uma alusão à política co- lonial que a França estabelecera
a partir do fi nal do século XVII e que continuava vigente em
1929.
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Trata-se evidentemente de um gesto simbólico, mas que acabou por se converter em poderoso instrumento de afi rmação cultural e que serviu de inspira- ção e estímulo para debates em torno da questão latino-americana e da posição ocupada pela arte e pelos artistas sul-americanos no panorama internacional, como veremos a seguir.²
O interesse pelos "mapas fora da cartografi a", ou seja, por imagens cartográfi - cas que combinam elementos da estética cartográfi ca sem contudo recorrer a todas as suas convenções, linguagens e códigos de representação, é grande e congrega pesquisadores de diferentes procedências e campos do conhecimento. Carla Lois, autora de diversos estudos na área de história da geografi a e da cartografi a, propõe, em artigo publicado em 2015, novas abordagens metodológicas que "permitam examinar o mapa além das questões de precisão das localizações, do nível de infor- mação ou da relevância da escolha das variáveis visuais" (Lois, 2015a, s.p).
A seu ver, os mapas devem ser compreendidos como objetos culturais, como imagens-objeto complexas, variáveis e instáveis, que escapam de defi - nições rígidas. E assinala que "uma das primeiras consequências de se adotar uma concepção mais ampla para pensar o objeto do mapa é a abertura para uma insuspeita constelação de imagens heterogêneas capazes de reivindicar para si o status cartográfi co, independentemente de seu grau de cientifi cidade". Defende, contudo, que essas imagens possam ser analisadas e agrupadas a partir de prin- cípios ordenadores, e propõe como chaves interpretativas o uso das noções de "gêneros cartográfi cos", inspirada em Mikhail Bakhtin, ou ainda de "séries especí- fi cas" variadas, concebidas a partir da ideia da montagem warburguiana. Assim,
em vez de associar a instabilidade à incerteza e à vertigem,
devemos renunciar às certezas das defi nições reducionistas
e aceitar que a fl exibilidade do objeto abre um infi nito prisma
de possibilidades para analisar como os mapas participam de
nossas experiências e concepções sobre o espaço, a história, a
sociedade e o mundo (LOIS, 2015a).
Lois discute, neste e em outros artigos, alguns mapas realizados por artis- tas do presente e do passado, como Torres García, Jasper Johns, ou ainda a dupla brasileira Angela Detanico e Rafael Lain, inserindo suas obras no gênero de mapas artísticos³. Em que pese a acuidade e densidade de suas observações, gostaria de fazer uma ressalva a esta denominação. A meu ver, da perspectiva da história da arte, este gênero não é operatório, já que o recurso aos mapas e às representações cartográfi cas, para os artistas visuais, tem forte sentido concei- tual e relaciona-se, como vimos acima, à intenção de problematizar as corres- pondências estabelecidas entre fronteiras geográfi cas e territórios culturais ou
2- Para alguns autores, con- tudo, Torres-García não rompe por completo com os limites impostos pela modernidade/ colonialidade. Na opinião de Walter Mignolo, por exemplo, a inversão da imagem naturaliza- da da América, com o sul para cima, foi um passo importante, mas insufi ciente: “os silêncios gerados pela perda da cartogra- fi a indígena e afro-americana se fazem sentir. (...) Modifi ca-se o conteúdo, mas não os termos do diálogo” (MIGNOLO, 2007, p. 169). De modo semelhante, Joaquin Barriendos Rodriguez adverte que "desde que América Invertida de Joaquín Torres García foi utilizada na capa do catálogo da versão francesa da mega-exposição itinerante Art d’Amérique Latine: 1911-1968 (...) e desde que ela foi retomada emblematicamente para ilustrar a capa da coletânea Beyond the Fantastic: Contemporary Art Criticism from Latin America, a política de inversão cartográ- fi ca da arte latino-americana terminou institucionalizando-se, tornando-se pesada e estática, sem poder colocar-se além da metageografi a da modernidade: é uma modernidade outra, e está invertida, mas é uma mod- ernidade, com tudo o que isto acarreta. (RODRIGUEZ, 2013, p. 77-78)
3- Outros gêneros por ela as- sinalados são, por exemplo, os mapas caricatura, os mapas me- teorológicos, os mapas topográf- icos, os mapas turísticos.
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Maria de Fátima Morethy Couto: Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfica na arte contemporânea
de evidenciar as conexões entre divisões geopolíticas e interesses econômicos. A pulsão que move os artistas a desenhar, riscar, pintar, conceber os mais diversos tipos mapas, é uma pulsão crítica, que raramente se esgota na apresentação/ fi nalização de um objeto defi nido; ao contrário, o objeto, na maioria dos casos, é um instrumento de ativação do debate pretendido.
Em alguns casos, como em Map, obra de Mona Hatoum datada de 1999, o "objeto" pode inclusive modifi car-se ou desfazer-se pela ação do espectador sem prejuízo para o entendimento da proposta. Artista palestina, nascida no Líbano, e radicada na Inglaterra desde 1975, Hatoum aborda em seu trabalho questões relacionas ao exílio, ao deslocamento, ao sentimento de perda e à violência e controle institucionais. Servindo-se de materiais banais e muitas vezes efêmeros (como fi os de cabelo, sabão, papel, fi os elétricos, bolinha de gude, algodão e lã) e inspirando-se em experiências corri- queiras, do cotidiano, Hatoum cria objetos ao mesmo tempo familiares e estranhos, ou elabora performances e vídeos que colocam em discussão nossos hábitos e rotinas.
Map é uma de suas muitas "esculturas" horizontais, feitas no chão; nela Hatoum emprega bolas de gudes transparentes para cons- truir um gigantesco mapa-múndi, frágil e instável, que, como observa a própria artista, "desestabiliza o espaço ao redor e dá a impressão de que ele está em fl uxo constante, ou de que se está pisando em terreno trepidante ou perigoso" (Hatoum, 2014, p. 19).
À primeira vista estático, o mapa se movimenta a cada passagem de um visitante, alterando constantemente seu formato e tornando-se cada vez mais impreciso. Todavia, é esta imprecisão que o torna tão potente, pois nos leva a refl etir sobre a arbitrariedade de muitas das delimitações geográfi cas e sobre as múltiplas consequências dos deslocamentos, em um mundo tão avesso ao contato com o outro. Como observa Chiara Bertola, curadora da exposição de Mona Hatoum realizada na Pinacoteca de São Paulo entre 2014 e 2015:
Podemos distingui-los [os continentes] por suas fronteiras
geográfi cas naturais, ao passo que as fronteiras políticas,
construídas pelo poder dos seres humanos, não apenas se
anulam pela conformidade do material como também, e inevi-
tavelmente, tem seu desenho alterado a cada passo do obser-
vador (e sinto-me tentada a dizer intruso). O que se repete aqui
é a forma que evita todo tipo de cristalização: ela não é defi -
nitiva e está sujeita a evoluções e mudanças, como os seres
vivos (MESQUITA et al., 2015, p. 32).
Figura 3. Mona Hatoum, Map, 1999
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O interesse de Hatoum pelos mapas é recorrente, assim como o da artista espanhola Cristina Lucas, para quem "fazer mapas no século XXI é fundamental para entender as questões que vão além dos confl itos territoriais, analisando os instrumentos de poder” (Sánchez, 2018, s.p.). Em entrevista concedida em 2009, Lucas afi rma, em consonância com a abordagem aqui proposta, que "o impor- tante da cartografi a é que ela é sempre falsa, uma representação que ajuda a entender algo desconhecido e, portanto, revela as coisas. Uma vez descoberta, a coisa estará à vista para sempre" (Barenblit, 2009, p. 75).
Pantone -500 +2007 é outro trabalho em que a imagem do mapa é fl utuante, cambiante, e por isso provocadora. Trata-se de um vídeo, exposto primeiramente em 2007, e realizado com manchas de cores geradas por computador, sobre um fundo branco, sem nomes ou textos indicativos. Nele, Lucas procura refl etir sobre a relação entre nação e identidade ao criar imagens sequenciais das transforma- ções dos mapas políticos, da construção e derrocada de impérios, do ano 500 a.C. até a atualidade. As manchas aparecem e desaparecem, crescem, diminuem e se fundem, criando novos países e nações, reconhecíveis pelos marcos temporais assinalados em um canto da tela. Como descreve Lucas:
Estas transformações foram feitas por alianças, herança ou mais
comumente com o uso da força. Neste trabalho, guerras violentas
se assemelham a coloridas pinturas abstratas em movimento.
(...). Como se tivesse vida própria, como um organismo viral, que
se espalha e ocupa toda a superfície do planeta Terra, tudo acon-
tece no mesmo momento, sem hierarquia. O que é muito impor-
tante em termos de nossa própria história pode ser relativamente
pequeno em uma escala global. É impossível para nós apreender
o esforço incansável das sociedades para mover as fronteiras e
criar novas identidades nacionais (CARBONO, 2014, s.p.).
Em mais de uma ocasião, performances foram realizadas na sala em que Pantone era apresentada, agregando assim outro elemento refl exivo – e disrup- tivo – ao trabalho: no Encuentro Internacional de Arte de Medellín (MED07) de 2007 quatro historiadores discorriam simultaneamente sobre o que se passava na tela, concentrando-se em uma região distinta; no Centro de Artes Santa Mònica, em Barcelona, em 2015, alunos da Faculdade de Belas Artes liam depoi- mentos de imigrantes ou refugiados de guerra.
Meu interesse pelo tema relaciona-se à pesquisa que desenvolvo, com apoio do CNPq, em que discuto como as noções de América latina e de arte latino- -americana foram assimiladas, difundidas e criticadas em diferentes contextos geográfi cos, artísticos e institucionais. Um dos tópicos desta pesquisa diz respeito
4- O título da obra, Pantone, remete, obviamente, à escala de cores, usada por várias indústrias, sobretudo a gráfi ca, para especifi cação de tintas de impressão, em que cada cor se encontra identifi cada por um sistema numérico.
5- Sobre a segunda performance, ver https://www.youtube.com/ watch?v=ej7CuTfjrws.
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Maria de Fátima Morethy Couto: Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfica na arte contemporânea
aos artistas latino-americanos que discutem em suas obras o lugar atribuído aos países considerados periféricos no concerto internacional de nações. Entre as várias estratégias críticas por eles utilizadas destaca-se, pelas questões levanta- das acima, a criação de mapas imaginários ou intervenções em representações cartográfi cas diversas. Como observou Icleia Cattani, historiadora da arte com diversos trabalhos sobre este assunto, “as cartografi as possuem efetivamente signifi cado simbólico especial na America Latina, pois elas criaram uma espécie de representação do real, ou do imaginário, sobre esse continente desconhecido”.
A América Latina se constituiu, de certo modo, pela carto-
grafi a, uma cartografi a inventarial, destinada a estabele-
cer os recursos a serem explorados e as fronteiras a serem
demarcadas. (...) Ao mesmo tempo, as cartografi as permi-
tem um olhar crítico, ou refl exivo, sobre nós mesmos: quem
somos nós, latino-americanos, e qual nosso lugar no mundo;
como fomos constituídos pela descoberta e pelas migrações
(CATTANI, 2007, p. 191).
A lista de artistas do continente americano que, esporádica ou sistematica- mente, recorreram a materiais cartográfi cos é extensa e se torna mais robusta a partir dos anos 1960/70, quando, face à interferência crescente dos Estados Unidos na região após a Revolução Cubana, a ideia de uma América Latina unida, integrada e resistente, emerge em diferentes campos do saber, a despeito de ser uma construção artifi cial que foi forjada pela metrópole. A brasileira Anna Bella Geiger e o argentino Nicolas Uriburu destacam-se nesse contexto, com
Figura 4. Cristina Lucas. Pantone -500 +2007, vídeo
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obras densas, em variados suportes, e que já foram objeto de estudo de diversos pesquisadores. Movidos por interesses distintos, ambos apropriaram-se recor- rentemente da imagem/silhueta da América Latina ou do mapa-múndi: Uriburu com o intuito de anular nossas fronteiras e divisões políticas e assinalar nossa unidade “natural” e Geiger com a intenção de apontar que o planeta não é estru- turado apenas por meridianos e paralelos, mas por complexas relações de poder.
Para muitos artistas contemporâneos atuantes na América Latina, estar contra o mapa signifi ca lançar novas luzes sobre nosso passado e compreen- der nosso presente a partir de novas perspectivas, atuando contra as hege-
monias culturais e políticas, dadas como "naturais". Teorias pós-coloniais e, no caso latino-americano, estudos decoloniais – que visam discutir a relação entre modernidade e colonialidade bem como os efeitos nefastos da expansão colo- nial europeia na América –, têm contribuído para a crítica à universalidade dos modelos eurocêntricos de conhecimento e para a defesa da efi cácia de saberes subalternos e fundamentado muitos desses trabalhos. Faz-se necessário regis- trar a infi nidade de possibilidades abertas por essas intervenções poéticas, na maioria da vezes banais e muitas vezes efêmeras, mas que possuem forte poder simbólico, como os trabalhos de Jaime Lauriano em que ele se apropria de mapas náuticos da época da colonização e rompe a suposta assepsia dos traços "científi - cos" ao nomear, com giz utilizado em rituais de umbanda, as intenções e as conse- quências perversas de um processo de submissão e controle, de apagamento de histórias locais em prol de uma narrativa única e homogeneizante.
Nas mãos dos artistas, portanto, o mapa deixa de ser uma arma servil do poder e transforma-se em uma superfície sobre a qual se pode (re)inscrever o mundo a partir de perspectivas próprias, ou repensar a história a partir de novos paradigmas.
Figura 5. Terra Brasilis: invasão, etnocídio, apropriação cultural e democracia racial, 2015
6- Remeto a outros artigos de minha autoria em que discuto os resultados parciais de minha pesquisa, tratando desses e de outros artistas. Ver Couto (2017a) e Couto (2017b).
7- No campo dos estudos deco- loniais, chamo a atenção para a contribuição de autores como o peruano Aníbal Quijano, o ar- gentino/norte-americano Walter Mignolo, o português Boaventu- ra de Sousa Santos, o argentino Enrique Dussel e o colombiano Arturo Escobar, entre outros.
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Maria de Fátima Morethy Couto: Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a representação cartográfica na arte contemporânea
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DOI: https://doi.org/10.22456/2179-8001.98278
Maria de Fátima Morethy Couto
Possui formação em Psicologia e História com doutorado em História da Arte e Arqueologia, atuando com crítica de arte, arte francesa do fi nal do século XIX, arte moderna e contemporânea, arte de vanguarda, arte latino-americana, concretismo e neoconcretismo, pintura informal. É Professora Livre-Docente de História da Arte na Unicamp. É membro da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas e do Comitê Brasileiro de História da Arte. Editora-chefe da revista MODOS e coordenadora do PPGAV da Unicamp desde 2017. É autora de Por uma vanguarda nacional. A crítica brasileira em busca de uma identidade artística (1940-1960) e A recepção da obra de Antônio Bandeira no exterior (1946-1967).
Como citar: COUTO, Maria de Fátima Morethy.
Desfazendo fronteiras e rompendo barreiras: a
representação cartográfi ca na arte contemporânea.
Porto Arte: Revista de Artes Visuais. Porto Alegre:
PPGAV-UFRGS, nov-dez, 2019; V 24; N.42 e-98278
e-ISSN 2179-8001.