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MariadeFátimaHanaqueCamposHeleniseMonteiroGuimarães

BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho(Organizadoras)

ARTEERELIGIOSIDADES(re)construçõesdeespaços,imaginárioserituais

SalvadorEDUNEB2017

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UniversidadedoEstadodaBahia-UNEB

ReitorJoséBitesdeCarvalho

Vice-ReitoraCarlaLianeN.dosSantos

Pró-ReitoradeEnsinodeGraduação-PROGRADKátiaMariseBorgesSales

EditoradaUniversidadedoEstadodaBahia-EDUNEB

DiretoraSandraReginaSoares

ComitêEditorialArthurGomesDiasLimaIsauraSantanaFontesMariadaGlóriadaPaz

MarciusdeAlmeidaGomesSandraReginaSoares

SuplentesPauloCésarGarcia

EmanueldoRosárioSantosNonatoAnaPaulaSilvadaConceição

IvanLuizNovaes

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©2017Autores.DireitosparaestaediçãocedidosàEditoradaUniversidadedoEstadodaBahia.

Proibidaareproduçãototalouparcialporqualquermeio,emformaidêntica,resumidaoumodificada,emLínguaPortuguesaouqualqueroutroidioma.DepósitoLegalnaBibliotecaNacional

CoordenaçãoEditorialNerivaldoAlvesAraújo

CoordenaçãodeDesignSidneySilva

DiagramaçãoeCriaçãodeCapaGeorgeLuísCruzSilva

NormalizaçãoFernandadeJesusCerqueira

RevisãotextualJacimaraVieiradosSantos

FichaCatalográfica-SistemadeBibliotecasdaUNEB

Arteereligiosidades:(re)construçõesdeespaços,imaginárioserituais/OrganizadoporMariadeFátimaHanaqueCampos;HeleniseMonteiroGuimarãeseBeatrizRamosdeVasconcelosCoelho.–Salvador:EDUNEB,2017

2.229kB;epub.

Mododeacesso:eduneb.uneb.br/download-2/

ISBN978-85-85813-25-3

1.Arteereligião.I.Campos,MariadeFátimaHanaque.II.Guimarães,HeleniseMonteiro.III.Coelho,BeatrizRamosdeVasconcelos.

CDD–246.098161

EditoradaUniversidadedoEstadodaBahia–EDUNEBRuaSilveiraMartins,2555–Cabula

41150-000–Salvador–[email protected]

www.uneb.br

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NOTAINTRODUTÓRIA

Aproduçãoacadêmica,principalmentenaáreadasCiênciasHumanas,LetraseArtestemdadodestaqueaoconhecimentodaculturadaspopulações,daconstruçãodocotidianocomsuaspráticasesaberes,embuscadasespecificidadeslocaiseregionais.Essesestudosdãovisibilidadeàsidentidadesculturaisdossujeitosapartirdasrelaçõesestabelecidasnarealidadecircundante.

Asociedadebrasileira,desdeoiníciodacolonização,foiorganizadapolíticaesocialmente,formadapor grupos étnico-culturais distintos, tendo os povos indígenas nativos, os conquistadores portuguesesbrancos,alémdegruposafricanostrazidospelosistemadeescravidão.

Osprocessosculturaisesimbólicosseestabeleceramemumprojetodeconquistaquebuscoumoldarnovas características na sociedade brasileira, entre as quais se destacam a arte e a religiosidade.Osestudos,aquiapresentados,possibilitamdiferentesanálisesdaconstruçãodasociedadebrasileiraedosseusprocessosidentitáriosemespaçosetempodistintos.

OlivroArteeReligiosidades:(re)construçõesdeespaços,imaginárioserituaiséfrutodointeressepelo ensino e pesquisa sobre Arte e Religiosidade, de um grupo de professores e pesquisadores dediversas instituiçõesuniversitárias.Pode serdividido emduaspartes:Arte sacra eEspaçosde arte ereligiosidadepopulares.

No Brasil, o catolicismo romano, como religião dominante, impôs um ideal da igreja reformada,entretanto, surgiram espaços híbridos à cultura de grupos étnicos, que possibilitaram manifestaçõesdistintas de religiosidades. Os grupos africanos e os seus descendentes encontraram meios demanifestaçõesculturais,incorporandonareligiãoassuasentidadesàsimagensdecultoscatólicos.

Naprimeiraparte–Arte sacra–,os artigos abordamaaçãoda IgrejaCatólica,quepossibilitouacriaçãodeumpatrimônioartísticoapresentadoemrituaislitúrgicos,quernointeriordasIgrejas,queremespaços públicos e nas práticas devocionais. As normas de culto às imagens, incluindo o culto àsrelíquias,estãopresentesnasConstituiçõesPrimeirasdoArcebispadodaBahia.Asartestinhamafunçãodeauxiliarnosensinamentosdareligião,paraapresentarformasquepudessemauxiliarosfiéisaseguirexemplos de fé, caridade e de humildade. Ampliam-se os estudos com os Ex-votos, que sãorepresentaçõesfísicasempagamentodepromessasfeitas–votos–egraçasalcançadas,porintercessãodealgumsanto,dopróprioCristooudaVirgemMaria.Eanalisa-setambémolegadohistórico,artísticoe religioso do sertão, por onde Antônio Conselheiro e seus seguidores edificaram obras, sobretudoigrejas.

Na segunda parte – Espaços de arte e religiosidade popular –, os artigos abordammanifestaçõesculturaisreligiosashíbridas,herdadasdaculturaportuguesaeafricana,queencontraramrebatimentonosestadosbrasileiroscomoRiodeJaneiro,EspiritoSantoeSergipe:aFestadoDivinoEspíritoSanto,emParaty/RJ;oFestivaldoValedoCaféeatradicionalFestadaFoliadeReis/RJ;PeregrinaçõesemSãoMateus/ES: passagens dos Reis de Boi que compõem o conjunto de expressões da cultura popular

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brasileira, quemanifestam a devoção aos Santos Reis. Somam-se duas danças vinculadas à devoçãocatólicaeàculturapopulardeLaranjeiras/SE,denominadasdeTaieiraeCacumbi.Porfim,incluem-seestudossobreopatrimônioartísticoemcerimôniasreligiosasdematrizafro-brasileira,comoéocasodotextoqueanalisaacriatividadedocorpoemtranse,focalizandooOrixáObaluaiênafestadoXirêemumterreirodeCandombléemSalvador-BA.

Aculturae a arte envolvemos sereshumanosemcontextos sócio-históricos,de formaapermitir aadaptaçãoecomunicaçãodo indivíduoaomeiosocialenaturalemqueviveenãopodeser julgadaapartirdahistóriadeoutrasculturas,contribuindoassimparaoconceitodediversidadecultural.

A dimensão cultural assume, hoje, um caráter central nas discussões acadêmicas dacontemporaneidadeeestapublicaçãoagregaestudossobrearte,devoções,festaspopulares,identidades,sobrevivências,decaráterinterdisciplinaraotratardotemaArteeReligiosidadesobdiferentesolhares.

MariaHelenaOchiFlexorProfessoraEméritadaUniversidadeFederaldaBahia

ProfessoradaUniversidadeCatólicadaBahia

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APRESENTAÇÃO

Este livro é fruto de interesse em ensino e pesquisa sobre Arte e Religiosidade de um grupo deprofessores e pesquisadoresdediversas instituições.Dividido emduaspartes: arte sacra; espaçosdearte e religiosidade popular, o próprio tema é o elo que agrega o trabalho deste grupo de caráterinterdisciplinaraotratardotemasobdiferentesolhares.

Uma breve descrição dos artigos dará ao leitor um panorama das várias abordagens trazidas. Aprimeiraparteapresentaartigoscujasabordagenstrazemrelaçãocomexpressõesdaartesacra.Veneração de relíquias e o legítimo uso das imagens, busca apontar um percurso resumido das

relíquias,suaaceitaçãopelaigrejacatólica,emespecial,oreforçodadoaoseuculto,sobretudoàquelasdosmártires,consagradospelaIgrejaCatólicaRomana.Ex-votos de Congonhas: motivos, devoções, aspectos técnicos, estilísticos e sociais analisa o

conteúdodaspinturasem“tabuas”votivas,considerandoagrandeimportânciadasinformaçõescontidasnasmesmas.Iconografias sobre a eucaristia cristã em pinturas de José Teófilo de Jesus e José Joaquim da

RochanoséculoXVIII,emSalvador–Bahia,éumaanáliseiconográficadaspinturasencomendadas,em1793, pela Irmandade do Santíssimo Sacramento. Sacramento da antiga Sé ao pintor José Teófilo deJesus, e daspinturas encomendadas entre 1796-1797, pela citada irmandade.Sacramentoda Igreja doPilaraopintorJoséJoaquimdaRocha,ambascommesmoprogramaiconográfico.Das iconografias às produções artísticas e religiosas do líder messiânico Antônio Conselheiro

mostramasproduçõesdobeatoConselheiroquedatamdasegundametadedoséculoXIX,deixandoumconjuntodeedifíciosreligiososquedialogam,sobremaneira,comoestiloquefoiencetadoapartirdaReforma Católica – o Barroco. Sendo assim, é de considerável importância o conhecimento dessepatrimônioreligiosoparaummelhorexercíciohistóricoeartísticodofenômenoocorridonointeriordaBahia,denominadoCanudos.

A segunda parte apresenta artigos cujas abordagens trazem relações com expressões da arte ereligiosidadepopular.Seduçõesdaprincesinhadocafé:VassouraseoFestivalValedoCafé,temporobjetivoapresentar

dadosdenossapesquisadecamponacidadedeVassouras,ValedoCafénoEstadodoRiodeJaneiro.Destacaoestudodoturismoesuaafirmaçãocomocampodeconhecimento.Devoção e arte na análise de duas danças populares afrocatólicas em Laranjeiras-Sergipe, visa

descrevereanalisarduasdançasvinculadasàdevoçãocatólicaeaculturapopulardeLaranjeiras/SE,denominadas de Taieira e Cacumbi. Manifestações culturais religiosas híbridas herdadas da culturaportuguesaeafricanaqueencontraramrebatimentonoestadodeSergipe.Entrelaçamentos: aprender, rezar e brincar o Reis de Boi investigar os novos tempos para a

realizaçãodaspráticasdosReisdeBoieaimportânciadoMestredeReisdeBoiparaatransmissãodos

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saberes.ArteeReligiosidade:oDivinoemParatyapresentauma releituradapaisagemurbananaFestado

Divino Espírito Santo em Paraty (2013 e 2014) para evidenciar as alterações na estética urbana erecriamaquelacidadeeoseucentrohistóricocomoumnovolugar,umanovarealidadequeédesenhadaapartirdamaterializaçãoemanifestaçãodafé.AcriatividadenasdançasdeObaluaiêduranteotransenafestadoXirê,analisaacriatividadedo

corpoemtranse,focalizandooOrixáObaluaiênafestadoXirê.Duranteaobservaçãonocampo,foramproduzidasimagensfotográficasquerevelamacriatividadenadançadoOrixáObaluaiê.Arte, Tradição,Cultura e Ancestralidade: estética e entalhe em roupas e paramentas deOrixás,

propõe uma reflexão histórica e antropológica do estilo, composição estética e arte reproduzida emparamentaspararepresentaçãodosOrixás.Estesaspectosrefletemasidentidadesculturais,apropriaçõese reelaborações na representação das divindades em suas insígnias, riscos e adereços estéticos,expressandoalinguagemmíticaemágica.

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1ªPARTEARTESACRA

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VENERAÇÃODERELÍQUIASEOLEGÍTIMOUSODASIMAGENS

MariaHelenaOchiFlexor

Desde o período das catacumbas, as relíquias dos santos mártires tiveram um lugar privilegiado nadevoção cristã.Alémdos relicários, em formade sarcófago recobertopor teto como igreja, o usodecaixas, – ascapsaepara guardar as relíquias –, aparecemmencionadas no século IV.Desde o séculoanterior, tinha-se intensificado o seu uso, sob o Imperador Diocleciano (184-305 d. C.), quando secomeçou a processar a divisão dos corpos dos Santos.[1] Esse hábito foi adquirido, a partir dascatacumbas[2]mas,nosanos386,oImperadorTeodósio,oGrande,foiobrigadoaproibirotransporte,deumlugarparaoutro,doscorposdesenterrados,desepararasrelíquiasdecadamártiredetraficá-las.Entretanto,apartirdoséculoVI,oabusoapareciatãoabertamente,eaumentoutanto,queproduziutodaespécie de maus efeitos. As fraudes, piedosas ou ímpias, se multiplicaram nos séculos seguintes(ENCYCLOPÉDIE,1765,p.89).[3]

Comoaumentodocultoàsrelíquias,noperíodocarolíngio,sedeuexecuçãoaopostopeloVConciliodeCartago,de401.Ordenava-sequeosbisposdesmanchassemosaltares,queselevantaram,portodaparte,–nocampoenasgrandesestradas,emhonraaosmártires–,ondeseenterraram,aquiouali,falsasrelíquias,“sobasilusõesedevãsrevelaçõesdetodaespéciedegente”.Mas,poroutrolado,continuouareafirmarquetodotemplodeveriaterrelíquiasverdadeirase,paraevitarmausfeitos,começaramasercolocadasnascriptasdas igrejas.Como tempo,noentanto,osbispospassaramacompactuarcomasmesmasatitudes,“paranãodeixarocasiãoaescândalosdepessoaspiedosas,oude revoltas”.Depoisqueseestabeleceuquenãosedeviaconsagrarigreja,nemaltares,semrelíquias,anecessidadedetê-lasfoiumagrandetentaçãoparaquenãoprocurassemsaberseeramverdadeirasounão(ENCYCLOPÉDIE,1765,p.90).EVieira(1874,p.182-183)confirmouque:

Não há palavras, que bem possam dizer a piedade, a ternura, a devoção com que os nossos maiores veneravam asrelíquias,comqueosmosteirosoutr’orasefundavam,easlongasdoações,queemhonrasuasefaziam.[...]Ointeressededar-lhesoferendasfoiumanovatentaçãodifícildevencer.[...]D’ellasseserviramosmonges,levando-ascomgrandepompaàsgranjas, eprédiosdosmosteiros,para exterminaros roubadores iníquos:verdadeéquepara este fimusavamigualmente de certas preces, e proclamações dentro mesmo do sacrifício da missa. Conduzir as santas relíquias emcharolas, e andores, e também as imagens dos santos, para ajuntar dinheiro, com que se edificassem de novo, oureparassemascasasdeDeus,ousealliviasseaextremozapobrezadosseusministros, foicousaqueviramsemgrandeescandaloosséculospassados.

Alémdisso,osReiscomeçaramausá-lasàfrentedesuastropas.Guardavamumgrandenúmerodelasem seus palácios ou eram enviadas, dos palácios para as províncias, quando fosse preciso alguémprestar juramento de fidelidade ao Rei ou concluir algum tratado (VIEIRA, 1874, p. 90). Cidades eprovínciassejulgavambemdefendidaseseguras,contraosinimigos,sópelofatodeteremasrelíquiasdealgunssantos.“AssagradasRelíquiascomadevidaveneraçãoguardadas,sãomuro,eantemural,quedefendemasCidades”,constadoverbetedeBluteau(1712,p.224)nosprincípiosdoséculoXVIII.

Aespiritualidademedievalnãovianarelíquiaumfragmentomorto,masalgosagrado,vivo.Já,desde

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408,obispodeRouen,naFrança, afirmavaquea “[...] relíquia éo santovivo” (FRANCOJÚNIOR,2010, p. 24), confirmandoapremissadeque, comoDeus éonipotente eonipresente, tambémo “todopode estar na parte”. Para satisfazer a quem solicitava uma relíquia de São João, o Papa GregórioMagno,séculos(VI-VII)cortouumatúnica,supostamentedosanto,empequenosfragmentos,queforamrejeitadospelosinteressados.Paraprovarqueasrelíquiaseramoprópriosanto,oPapafezumpequenofuronumpedaçodotecido,peloqualescorreusangue.SegundoFrancoJúnior(2010),dividiredistribuirfragmentos de relíquias foi ação usada como estratégia de prestígio político, eclesiástico ou social.Mesmoassim,epararemediarasituação,oConcíliodeNicéia,de787,diziaqueDeustinhadeixadoasrelíquias dos santos como fontes saudáveis “[...] d’onde não cessam de nascer de contínuo os maisavantajadosbenefíciosparaopovoresgatado”(VIEIRA,1874,p.182;BLUTEAU,1712,p.223).

AsrelíquiaserelicáriosNa IdadeMédia, os relicários, em forma de cofre demadeira, recobriram-se demetal, placas ou

cintas,–emcobre,cobredourado,prata,pratadourada–,ornadoscomfigurasfundidasouimpressasemesmalteoucabochão.NoséculoXI ficaramfamosososateliêsdovaledoMosan,emesmoosmenoscaprichadoscomoosesmaltadosdeLimoges,produtordasplacas,normalmentedecobre,champlevéeestojoschassêourelicários,produzidosemlargaescala.Cadavezmais, invólucrosriquíssimosforamcriadosparaguardarasrelíquias(ARTEGUIAS,2012).

Apalavrarelíquiafoitiradadolatimreliquiae,quesignifica,etimologicamente“aquiloqueresta”e,inicialmente estava no corpo integral do santo. Segundo Franco Júnior (2010, p. 14), no vocabulárioreligioso, foi entendido como “remanescente de um corpo considerado santo, seja o corpo inteiro(corpus), partedele (exossibus, excapillis, etc) ouobjetos que tiveramcontato comele (brandeum,pignus)”. Plínio e Suetônio chamavam reliquiae aos ossos, cinzas e outras partes dos corpos dosdefuntos,queficaramparaaposteridade(BLUTEAU,1712).

Ospagãosderamadesignaçãoderelíquiaatodoocorpodeumdefunto.Oscristãosderam-no,nãosóaocorpointeirodealgummártir,masatodosequaisquerdespojosqueossantos,ouCristo,deixaram,comocinzas,ossos,vestidosouqualquerpartículaque tocaramseuscorpos,ou foraminstrumentosdeseus suplícios e que se passou a guardar respeitosamente, para honrar suamemória.Como tempo seestendeuocultoparaasfloresquehaviamornadoassuassepulturasealtares.SantoAgostinho,nolivro23, do seu “Cidade deDeus”, dizia que as “[...] relíquias dos Santos, e as flores, tomadas dos seusaltares,esepulturas,obravãonotáveismaravilhas”(BLUTEAU,1712,p.223).

AsrelíquiasforamcombatidaspelomovimentoreformistaprotestantedoséculoXVI.OConcíliodeTrento (1545-1563), – frente a Martin Luther[4] e Uldrych Zwingli,[5] que haviam zombado dasindulgênciasedasperegrinações, frentea JeanCalvin,[6]quehavia ironizadoas relíquias,–mantevetodas as formas tradicionais de piedade e confirmou, também, o culto às imagens e manutenção dasrelíquias, através da Contrarreforma Católica (DELUMEAU, 1973, p. 103). Seu culto, portanto, foimantido peloConcílio deTrento e, em termos deBrasil, enfatizado pelasConstituições Primeiras do

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ArcebispadodaBahia(CONSTITUIÇÕES,1719,p.11-12;1853,p.9-10).[7]ASantíssimaTrindadeeasrelíquiasdeCristoeramobjetodeadoraçãooulatria,ossantoseramobjetodeveneraçãooudulia,“[...]paramártiresnãoseconstroemtempla,comosefazcomadivindade,masmemoriae(monumentosfunerários),comoparahomens”(FRANCOJÚNIOR,2010,p.14).[8]

Apresençadeinúmerasrelíquiasnãoeragratuita.AReformaCatólicaincentivouosfiéisavenerarossantos,osmártireseassuasrelíquias.Antesdetudo,deviamconheceraintercessãodosSantos,eseuvalorquanto à invocação,veneraçãode relíquias eo legítimousodas imagens (REYCEND,1786,p.347-357),[9] especialmente os santos e corpos dos mártires (CONSTITUIÇOENS, 1719, p. 11-12;CONSTITUIÇÕES,1853,p.9-10).

Portanto,oConcíliodeTrentoreafirmousuaeficáciaeosresultadosforammaisprodutivospelofatodessemovimento terdecretado, também,aparticipaçãodos leigos,nafábricadas igrejasegestãodosbensda comunidadeparoquial, desfazendoas interdições, doConcíliodeLatrão,que reservavamaospadrestodasascoisassagradas(MANDROU,1974).

OssantoseramtodostaumaturgoseintercessoresjuntoaCristoeopovodeviatocá-los,–imagemourelíquia–,a fimde recebero fluxomágico (ARIÈS,1981)queemitiam. Issoexplicaovalordadoàsrelíquias e à multiplicação dos relicários. Partes do corpo, ou objetos de uso pessoal, deviam sertomados, sob forma de relíquia, e colocados em “engastes, vasos, ou relicários, e guardadas” [...]decentemente,[10]necessitando,antigasenovas,daaprovaçãodobispooudoarcebispo.

ArelíquiadoAgnusDei[11]eraguardada,conformeasdeterminaçõesdopapaGregórioXIII, com“[...]cornaturalsemnenhumgenerodeouro,pinturaouilluminação”(CONSTITUIÇOENS,1719,p.11-12;CONSTITUIÇÕES,1853,p.9-10).FoiaquemaissedisseminouentreacristandadedoOcidente.Asfreiras concepcionistas, antigas ocupantes do Convento da Lapa, que hoje residem num convento emBrotas, emSalvador, possuemuma interessante coleção desse tipo de relíquia, como se verá adiante.Quandofosseexposta,deviaseracompanhadaporvelasacesas,numaltar,enapresençadeumsacerdotecomsobrepeliz.

Não se deve esquecer que as imagens forammuito combatidas pela Reforma Protestante, por issomesmo,aContrarreformaCatólicatevenelasumabandeiradeluta,instandoosfiéisacultuá-las,aseguiros exemplos de vida e santidade, além dos santos propriamente ditos, e sobretudo as dos mártires(CONSTITUIÇOENS,1719).

AsessãoXXV,doConcíliodeTrento(REYCEND,1786)estabeleciaasnormassobreaveneraçãoàsrelíquiasdosSantos,mártires,[12]eimagenssagradas,paraorientar,tantoosartistas,–quecolaboravamparavisualizaçãodetodooideárioreligioso–,quantoosqueencomendavamasobraseaosfiéisqueparticipavamdagênesedetodaarte.Algunstratadistas,especialmenteositalianos,–queinfluenciaramfortementeomundoibérico–,adaptaramseusescritosemgeral,sobrearquitetura,pinturaeesculturaaosditamestridentinos(ROCHA,1996).

As relíquias proliferaram por todos os templos, conventos e mesmo entre os leigos, chegando aoexagero.Ossantosadquiriram,então,umvalormuitogrande,noimagináriopopular,eerapermitidoe

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recomendadoaosfiéistocaremdiretamenteasrelíquias,–transformando-asemverdadeiros“amuletos”–recomendando,asConstituições,veementemente,queestariamtocandoosprópriossantoseque“[...]nãopensassemocontrário”(CONSTITUIÇÕES,1853,p.9-10).

Todoscrentesalmejavamterumarelíquia.Emprincípio,haviatrêsformasdeaquisiçãoderelíquias,doação,compraouroubo.Eraproibidocomprarouvenderasrelíquias,anãoserquefossepararesgatá-lasdosheregesouinfiéis.Evidentementeissonãofoiobedecido.Osexemplarescompradosprecisavamser acompanhados por documentos, que comprovassem sua legitimidade. Aquelas que não dispunhamdessacomprovação,deviamser levadasàpresençadevisitadores,especialmenteescolhidos,afimdedaremparte às autoridades eclesiásticas respectivas.Cometiao crimede simonia, se agissede formadiferente. Apesar disso, havia um verdadeiro culto institucionalizado às santas relíquias, que semultiplicaram em imagens, bustos-relicários em altares, nas cruzes, medalhões ou sob a forma depingentes simples, de ouro ou prata, para uso pessoal, como acusam os inventários de númeroconsideráveldebaianos,porexemplo,especialmenteasmulheres.

Asrelíquiastornaram-setãoimprescindíveisque,nosmeadosdoséculoXVIII,aindaseafirmavaquenãosefundavanenhumaigrejaquenãotivesseasrelíquiasdosantoprotetor(ENCYCLOPÉDIE,1765).Nãosóasigrejaslevavamonomedesantosmártires,mas,àsvezes,centenasdecidadesevilaseramcriadascomonomedospersonagensmaisreconhecidos,nomundocatólicoeuropeu.

Por não ser permitido vendê-las,[13] as relíquias eram doadas pelos bispos, arcebispos ou Papa,acompanhadasdedocumentoque,alémdesercertificadodeveracidade,tambémdocumentavaadoação.Obedecia-seaosditamesdoConcilioTridentino (REYCENT,1786),adaptadosnasConstituições,querezavamqueasrelíquiasnovas,quenãofossemaprovadas,pelomenospelosbispos,nãodeviampassarporverdadeiras.

Nemessasdisposições,nemacertificação,mesmodoPapa,garantiamaautenticidadedasrelíquias.Constaque a relíquia, existentenumacaixa, aospésdoCristodocoroda IgrejadoConventodeSãoFrancisco,deSalvador,umcrânio,–chamadonosetecentosdecalvária–,foidoadaaofreiVicentedasChagas, entre 1708 e 1710, pelo Papa Inocêncio XII. Não sabendo de que mártir se tratava,convencionou-se,porsugestãodopróprioPapa,chamá-lodeSãoFidelisMártir,tendoeledireitoaterseudiadefesta,commissarezada,a26demarço,ereceberocultopopular(LIVRO,1978).EssemesmoCristo,doaltarvazado,aindatem,aoseuredor,desdeassuasorigens,dezpequenosnichos,[14]ondeseencontravamrelíquiasdeváriossantos,nãoidentificados.

A enciclopédia, do século XVIII (ENCYCLOPÉDIE, 1765, p. 89), dizia que “[...] se fizermos arevisãodasrelíquiascomexatidãoumpoucomaisrigorosa”,conformeumsábiobeneditino,“seacharaquesepropôsàpiedadedosfiéisumgrandenúmerodefalsasrelíquiasareverenciar,equeseconsagrouossos,quelongedeserembenfazejos,nãoeramnemmesmodeumcristão”.

ComoindicouGregóriodeTours,“[...]nomantodeumsantoseachamraízes,dentesdetopeira,ossosderatoseunhasderaposa”.(ENCYCLOPEDIE,1765,p.89).Hospimenmostrouque,emTours,haviauma cruz de prata, toda ornada comgrande quantidade de pedras preciosas, entre as quais uma ágata

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gravada que, levada para Orleans e examinada por curiosos, se achou representar Vênus chorandoAdonis moribundo. Uma outra ágata, referida pelo padre Montefaucon, de propriedade real,representava, de cada lado de uma árvore, Júpiter e Minerva. Isso passou por imagem do ParaísoterrestreepecadodeAdãoeestavanumaigrejatradicional,ondefoitirada,depoisdetersidoguardadaporséculos.

SãoLuís deFrança comprou, emConstantinopla, segundouns pedaços da “SantaCruz” e a “Santaesponja”,os“pregos”,partedoferroda“Santalança”ea“CoroadeespinhosdeCristo”easdepositouna Sainte Chapelle, construída em 1248, em Paris (FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 22). A grande ágatadessamesmaCapela,querepresentavaaapoteosedeAugusto,passou,pormuitosséculos,porhistóriadeJosé,filhodeJacó.Umaônixfoivenerada,porseiscentosanos,comosendooanelqueSãoJosédeuàVirgem,quandosecasaram.Sebeijavaoaneltodososanos,emalgunsdiasdeterminados,eissofoifeitoatéquesepercebeu,nofimdoséculoXVII,umainscriçãogrega,emcaracteresmuitopequenos,escritoGermanicusAlfeoeAgripinaAretusa(ENCYCLOPÉDIE,1765,p.90).

Alémdisso,emtodosostempossedescobriuquemuitasvilasoucidadessevangloriavamdepossuiruma mesma relíquia, ou a mesma imagem miraculosa. O autor das Novas da República das Letras,falandodeumlivro,quetratavadoSantoSudário,traziaaspalavrasdeCharlesPatin:

[...]estouzangadodevermuitofrequentementeoretratodaVirgempintadoporSãoLucas;poisnãoéverossímilqueSãoLucastenhatantasvezespintadoamãedenossoSenhor.(ENCYCLOPEDIE,1765,p.91).

Defato,atéaCatedraldeSalvador,antigaIgrejadoColégiodosjesuítas,possuiumapintura,sobotrononoaltar-mor,queguardaessatradição,deteraVirgemsidopintadaporSãoLucas.AcabeçadeSão João Batista, por exemplo, dizia-se estar em mais de um templo, assim como os ossos de SãoPatrício(HARTetal,1999).

O Brasil começou a ser povoado contemporaneamente ao movimento da Contrarreforma católicaromana.Comosportuguesesvieramosusosecostumes,civisereligiosos.Instalando-seoficialmenteogovernolusocomavindadeTomédeSouza,em1549,comelevieramosprimeirosjesuítas.Assim,asrelíquiasvieramparaoBrasil comosprimeirosmissionários jesuítas.Elas tiveramoaugedeusonoséculoXVIII,quandopraticamentecadahabitante,comcertasposses,traziaumarelíquiapenduradanopescoço.

Emrelaçãoàsrelíquiasfamosas,asprópriasConstituiçõesPrimeirasdoArcebispadodaBahia,–queforamválidaspara todooBrasil–,acabaramconsagrandouma lendadaSantaÚrsulaeasOnzeMilVirgens,[15] uma das poucas procissões que os Jesuítas[16] podiam fazer na cidade, no dia daSantíssima Trindade (CONSTITUIÇOENS, 1719; CONSTITUIÇÕES, 1853) e cujas relíquiasencontravam-seemdoisbustos,noantigoColégiodosJesuítaseatualCatedral.FernãoCardimnotificouque,em1584,existiamapenastrêscabeçasdasvirgens.[17]Segundoesseautor,nodiadecomemoraçãodasSantas foi“[...]oficiadacomboacapelados índios,comflautas,edealgunscantoresdaSé,comórgãos, cravos e descantes”. E acabada a capela, “[...] se ordenou a procissão dos estudantes, aondelevávamosdebaixodopaliotrêscabeçasdasOnzeMilVirgens”(CAMPOS,1941,p.348-348).

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EmGregóriodeMatos(apudCAMPOS,1941,p.351),em1685,apareceramreferências:

Correm-semuitoscarneirosNafestadasonzeMil[...].Eainda,OlindoEuzébiodaCosta,EscrivãodasOnzeMil,[...](apudCAMPOS,1941,p.351-352).

Jaboatan(1858,p.642)tambémascitou,noséculoXVIII:“OnzeMilVirgensfestejadasnacidadedaBahiacomalegreepomposacelebridade”.

AsrelíquiasdasVirgensforamintroduzidasnaIgrejajesuítica,noséculoXVI,conformecertificado,de 1719, do Padre José Bernardino, Reitor do Colégio da Bahia, baseado no livro de assentos daCatedral,[18] fl.18.As “Sagradas cabeças das onsemil virgens”, forammandadas pelo geral jesuíta,FranciscodeBorja,vindasdeLisboa,nogaleãoSãoLucas,emmaiode1575,tendochegadoàBahiaem2dejunho,5afeira,festadeCorpusChristi.Obispo,D.AntonioBarreiros,chegounodiaseguinteeastomoucomopadroeirasdoBrasil.ObispoD.ConstantinoBarradassuspendeualgumasfestasdesantos,incluindoadasOnzeMilVirgens.

Osjesuítasrecorreramàquelaautoridade,mostrandoqueseuantecessorastinhaeleitopadroeirasdoBrasil, “[...] por serem as primeyras Reliquias de Santos, que entrarão nesta Província, e tínhamosexperimentado muitas mercês de Deos por sua intercessão”, sendo então, confirmadas in nomineDominis. Em 1684, o padre Alexandre de Gusmão, então Reitor do Colégio, mandou propor outroassento das decisões, confirmando o documento anterior, e tudo foi reconfirmado peloPapaGregórioXIII(CERTIFICADO,1948-1949).

Ocultofoi trazidodaEuropae,emespecial,dePortugalondesãoencontrados,emmonumentosdeCoimbra,comonaatualSéNova,ounoPorto,oucomoosexemplosexistentesnoMuseudeArteSacra,noSemináriodaSé.SefestejavaSantaÚrsulaa21deoutubro,–sendoSantapopularnaAlemanha–,embora fossenaturaldaGrã-Bretanha.Constaque ficounoivado filhodeum reipagão,príncipequeprometeu converter-se ao cristianismo para casar. Úrsula partiu da Inglaterra acompanhada por dezdonzelasnobres.

Segundoa lenda, inverossímil, cadadonzela levavaumacomitivademilvirgens, ao todoonzemilmulheres. Úrsula casou em Roma e, quando todos regressavam, acompanhados pelo próprio Papa, aviagem terminou tragicamente junto aos muros de Colônia, quando os Hunos massacraram toda acaravanaaflechadas.SantaÚrsulafoisepultadaemColônia.Érepresentada,emconjunto,comasoutrasmártires.SantaAnta,umadascompanheirasdeSantaÚrsula,teveespecialdevoçãoemPortugal.OseuatributoéaflechaeumvastomantocomqueabrigaascompanheiraseobarcoemqueviajounoReno(TAVARES,1990).[19]

Recorria-se,emSalvador,àsVirgensMártires semprequeumflageloatingiaaCidade,comoseca,pestes,invasõesououtrascatástrofes.Saiam,então,umaoumaiscabeças,[20]pelasruasemprocissão,precedida de novena, sempre assistidas pelos estudantes formados em confraria. Essas procissões, seeram realizadas, só foram livremente conduzidas até a promulgação das Constituições Primeiras do

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ArcebispadodaBahia, que estabeleceuque sóos jesuítas podiam fazer procissões emhomenagemàsVirgense,apenas,nodiadaSantíssimaTrindade(CONSTITUIÇÕES,1719;CONSTITUIÇÕES,1853).

Antes disso, segundo a narrativa dos jesuítas, no início do séculoXVII, a Bahia passava por umagrandeseca.Foipedido“[...]as11.000Virgens,emvésperadecujodiadefesta,queaconfrarialhefaz,foiservidocomeçaralevantarocastigo”,fazendochoverbastante.Achuvanãoduroumaisquedoisoutrêsdias,mas“[...]foimuitograndealivioparatodaaterra”,segundoanarrativadeLeite(1945,p.12).Nosegundoaltardanave,doladodaEpístola,daatualCatedraldeSalvador,[21]sãoencontradososdezbustos-relicáriosemaisSantaÚrsula,imagemdevulto,queperfazemasonzemártires.Estasdatamdecercade1720,alicolocadasdepoisdeconcluídooatualedifíciodaquartaeúltimaIgrejadosjesuítas.

Nooutro ladodanave, damesmaCatedral, está o altar, hoje sem imagens-relicário, dasprimeirasSantasVirgens,queforaminicialmentecolocadasnacapelainterna,doantigoColégiojesuítico.JuntoaessealtarestáoutrodosSantosMártires.[22]Dos30bustos,22sãodebarrocozidoepolicromadoe8dealmademadeirapolicromada.AsSantasocupavamoaltardedicadoaSãoFranciscoRégio,enquantoos Santos foram colocados no altar de Santo Cristo, ambos fechados, – e atualmente sem uso –, porretábulos pintados, interna e externamente. São dois altares, provavelmente, vindos da terceira igrejajesuítica,construídaentre1561-1585,equeforamalteadosparaseadaptaraoatualmonumento.Eram15bustos-relicáriosemcadaumdosaltares,queilustravamadevoçãoàsrelíquiasusadas,entreosjesuítas,na propagação e consolidação do culto, da mesma forma como foram multiplicados no santuário deAlcobaça,Portugal.

Poucos desses santos foram identificados. Até os anos 1960-1970, diziam ser Santa Inês, SantaAgueda,SantaAnta,SantoEustáquio,SantoEstevão,SãoSebastião,SãoJorge.Hoje, tantoosbustos-relicáriosdasSantasedosSantosestão,soboregimedecomodato,expostosnoMuseudeArteSacra,daUniversidade Federal da Bahia (Figura 1), devido àsmás condições dos altares da Catedral, que osabrigavam,antesedepoisdarestauraçãopelaqualpassaram.[23]

Figura1–Busto-RelicárioSantaInês,séculoXVII,propriedadedaArquidiocesesobaguardadoMuseudeArteSacra,Salvador/BAFoto:MariaHelenaFlexor,2008.

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A Catedral guarda, ainda, o busto-relicário de São Francisco Xavier, padroeiro da cidade doSalvador.Éumapeça típicadoséculoXVII,ede influênciaespanhola,sendo imagemcomaalma,ouestruturademadeira.Acabeça,domesmomaterial,éestofadaepintada,comosedizianaépoca,eobustocobertoporpratacinzelada,comornamentaçãodemotivosfitomórfos,formaarabescosdefolhasdeacanto.Asrelíquiasestãonumescrínioovoide,nocentrodopeito.

NasegundametadedoséculoXVII,houveumaepidemiadefebreamarela,conhecidacomomaldabicha,oumalcomum,“[...]umcontágio,mortalpelacorrupçãodoar,nãoconhecidoantes”,segundocontouopadreAlexandredeGusmão.Omal,vindodePernambuco,chegouàBahiaemabrilde1686.AcidaderecorreuaSãoFranciscoXavier,oApóstolodasÍndias,fazendoumaprocissão.

O poder das relíquias, sobre os elementos da natureza, já era bem divulgado e, em especial emrelaçãoaoqueesseselementoscausavamnoshomens,comoasdoenças.ACâmara,emnomedopovoeseupróprio,fezvotosolenedeotomarcomopadroeirodaCidade.“Nemporissocessouomal,antescresceueseespalhoueempoucosdiaslevouamuitos”.[24](LEITE,1945,p.89).Osjesuítasderamomaiorapoioàinstituição,alémdeassistiraosdoentes,materialeespiritualmente.[25]Entreosmortoscontaram-seoarcebispo, frei JoãodaMadredeDeus,ealgunsdesembargadores, segundo informouopadreAntônioVieira,[26]entãonaQuintadoTanque.Em1693foipublicada“umaadoraçãoperpétua”,confirmadapordoisbrevesdoPapa InocêncioXII, concedendo-lhe altar “queéodoSantoCristonaIgrejadoColégio”,[27]omesmoquefoiocupado,depoispelossantosmártiresacimacitados.

OgovernadorFranciscodeSouza,oMarquêsdasMinas,eosvereadores,deramcumprimentoaovotodaCâmara,em10demaiodomesmoano.FizerampetiçãoaoRei,D.PedroII,paraqueaprovasse,

[...]porprotectorepadroeirodaCidadeaogloriosoApostolodoOrienteS.FranciscoXavier,paraquenestacidade,emoutrasocasiões,quesepodemoferecer,alcançassedeDeus,paraelaeseusmoradores,aquelesfavoresemercês,queemoutraspartesemsemelhantescasosimpetrou.(LEITE,1945,p.89-91).

Aaprovaçãorégia,daSagradaCongregaçãodosRitosedoarcebispo,freiManueldaRessurreição,–querecolheuepublicouossufrágiosparaeleiçãodosanto–,sederamentre1686e1689,ficandoSãoFranciscoXavier,comopadroeirodacidade,comaaprovaçãodaCâmaraem1688,–quepatrocinavaaprocissão, como uma festa “del Rey” –, além do “principal tutelar da Arquidiocese, o Salvador doMundo”.Suafestafoifixadaa10demaio,tendoaConfrariadessainvocaçãosidocriada,comcapelanaIgrejadosjesuítas,em16desetembrode1744.

O culto público, ou procissão, que havia sido extinto com outros, em 1828[28] em Salvador, foirestabelecidoem1860,pelamesmaConfraria(FLEXOR,1974,p.64).Emboranocalendáriofixo,dasConstituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, constasse a sua data a 3 de dezembro, a festacontinuou, e continua, a ser realizada emmaio. Passou-se a fazer a sua comemoração “somente nestaCidade,esubúrbiosporserPadroeirodella”,emobediênciaàsConstituiçõesPrimeirasdoArcebispadodaBahia (CONSTITUIÇÕES..., 1853, p. 150).Nasocasiões adversas, a partir da segundametadedoseiscentos,passou-searecorrer,sempre,aSãoFranciscoXavier.

Antes de São Francisco Xavier, a Câmara tinha eleito um outro padroeiro, Santo Antônio, com a

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invocaçãodeArguim.SegundoJaboatan(1858,v.1,p.81),aCâmaraeaCidadedeSalvadortomaram-nocomopadroeiro,[29]comoconstadasAtasdaCâmara,de24denovembrode1595,edaordemdogovernadorecapitãogeneral,RodrigodaCosta.OreiFelipeIIdePortugal,eIIIdeCastela,ordenou,porCartaRégia,de11deAbrilde1618,quesefestejasseosantona“QuartaDomingadoAdvento,oúltimodomingoantesdoNatal”,nadataemquea imagemdosantofoi transferida,daIgrejadeNossaSenhoradaAjuda,paraoConventodeSãoFrancisco.Efetivamente,oscamaristas,em8dedezembrode1597,formaramumaConfrariadeSantoAntôniodeArguim,comaltarnaCâmara,“[...]pelomuitoqueesta cidade e capitania lhe devia pelos milagres que Nosso Senhor fizera por sua intercessão”(JABOATAN,1858,v.1,p.81).

O InstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional (IPHAN)publicouaobrapóstumado freiVenâncio Willeke, Livro dos Guardiães de São Francisco da Bahia, na qual esse estudioso dosfranciscanosresgatoualgunsdocumentos,relativosàintroduçãodadevoçãodeSantoAntôniodeArguimnaBahia.InformouqueosprimeirosregistrosestavamnaCâmara.TendoemvistaoêxitoquesetevenarestauraçãodePernambuco,aCâmaradaBahia,emreuniãode22denovembrode1595,encarregouopadrevigárioFelipeViegas,[30]ouVinegas,derezarumamissa,emaçãodegraças,noaltardeSantoAntôniodaIgrejadoConventodeSãoFrancisco.

Namesmaoportunidade,aCâmarafezovotoperpétuo,alémderezar“umacapelademissas”e,alémde realizar procissão solene todos os anos, como sendo “delRey”, oferecer uma festa nodia emqueRecifesevisselivredosholandeses.Ainda,prometeramexecutar,emprata,umaimagemdoSanto,dotamanhodaqueestavanoaltarfranciscano,casoosholandesesfossemvencidos(RUY,1964).Passadooperigo holandês, os camaristas esqueceram a promessa, esqueceram a sua imagem, esqueceram quetinhameleitoSantoAntôniodeArguimcomopadroeirodacidade.Sóumapestelembrariaosvereadoresposterioresdapromessa.Nessaocasiãoapromessafoicomutadaederamaosantoopostode“capitãoenterdenido”,–comsoldo,recebidopelosfranciscanos,até1907–,doFortedeSantoAntôniodaBarra,atualFaroldaBarra.

OMosteirodeSãoBento,damesmaforma,possuiumasériededozebustos-relicáriosemterracota,[31] que o beneditino alemão, historiador da arte, D. ClementeMaria da Silva-Nigra, atribuiu a freiAgostinho da Piedade, inclusive afirmando que foi a “[...] primeira realização plástica do artistabeneditino”.Afirmou,ainda,quefreiAgostinhoteriainfluênciadoSantuáriodasRelíquias,doMosteirodeAlcobaça,dePortugal(SILVA-NIGRA,1947,f.1),eacabouporatribuiraoreligiosotodasasobrasde terracota sobreviventes, incluindo os bustos-relicários de Santa Catarina de Alexandria, SantaBárbaraeSantaAgueda(JORDAN,2000,p.184)e,mesmoindevidamente,aoSãoPedroArrependido.Alémdesses, foram identificadososbustosdeSantaCecília,SantaEscolástica,SãoGregórioMagno,SantoAnselmo,todosdeterracota.DamesmaaparênciaéaSantaMônica,existentenoSolardosSeteCandeeiros,tambémdoséculoXVII.

Entreosbustos-relicáriosdoMosteirodeSãoBento,[32]existeumdeSantaLuzia(Fig.2)[33]que,comograndepartedaimagináriabaianadoséculoXVII,sobinfluênciaespanhola,erafeitadeestrutura

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docorpo,oualma,demadeira, recobertadeprata lavradaeacabeçaencarnadaepolicromada.Édomesmogênerodobusto-relicáriodeSãoFranciscoXavierjáreferido.AdeSantaLuzia,emespecial,deestilorenascentista,teveacabeçamodeladaefundidaemchumbo,encarnadoepintado.

Figura2–Busto-RelicárioSantaLuzia,séculoXVII,localizadonoMuseudoMosteirodeSãoBento,Salvador/BAFoto:MariaHelenaFlexor,2008.

Essetrabalhofoiindevidamenteatribuído,também,afreiAgostinhodaPiedade,considerandoqueeraexímioceramista,masnãoconstaasuaidentidadecomopintor,–aquemcabiamasúltimastarefasdeencarnaçãoepintura–,ouourives,queseencarregavadecobriraestruturademadeiracomtrabalhodeprata.Eaindarestaoproblemadafundiçãodochumbo.Otrabalhodepratapodeseratribuídoaartíficebeneditino, vistoqueMarietaAlvesque, alémde catalogar todososourivesdoouro edaprata, commarcas registradasnaCâmara,não indicounenhumdeles comoautor,nem tampoucooelencouno seuDicionáriodeartistaseartíficesdaBahia(ALVES,1976).

NomesmoMuseu, doMosteirodeSãoBento, estãooBraçodeSãoSebastiãoque, comodeSãoBento e a Perna de Santo Amaro formam conjunto de relíquias de estilo renascentista, em prata,associandoosuporteàparteanatômica,daqualcontémumfragmento,práticaherdada,aoquesediz,daIdadeMédia. São em prata cinzelada e gravada, cobrindo suporte demadeira com asmãos ou o péestofadosepintados.Apratafoilavradacommotivosfitomorfos,arabescos,volutas,acantossemrelevoacentuado. Como aconteceu na Igreja doMosteiro de São Bento, e na jesuítica, a igreja franciscanaprimitivapossuíabustos-relicários,colocadosnoaltar-mor.Desapareceram,–comaconstruçãodonovoedifício–,comotambémdesapareceramaquelasqueconstavamdofrontaldoprimeiroaltar,doladodoEvangelho,nodeSãoVicenteFerrer,daigrejaatual.

De autoria, evidentemente, desconhecida os bustos-relicários podem ser classificados,cronologicamente,atravésdosmateriaiscomosquaisforamfeitos:noséculoXVIeprimeirametadedo

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seguintehouveopredomíniodaterracota,cominfluênciasrenascentistaspermeadasdeinterpretaçõesdecaráter popular ou arcaizante. A partir dos fins do XVI e XVII, até os princípios do setecentos,apareceram os bustos-relicários com os corpos cobertos de prata de estilo renascentista. De pratatambém eram os resplendores e joias, eventualmente presentes. Os exemplares do século XVIII são,corpoecabeça,demadeirapolicromadaedeestilobarroco.Todososrelicáriostêmumescríniooval,ouredondo,nopeitodosbustos,napernaouantebraçodosmembrossuperiores,conjugadoscompedrassemipreciosasincrustadas,comocomplementodecorativo.

AContrarreforma,asConstituiçõesPrimeirasdoArcebispadodaBahia,aInquisiçãoeaangústiadasalvação, – da própria alma e da alma alheia –, fez surgir como uma de suas consequências, adivulgação,adefesadocatolicismoromano,aopontodesemorrercomomártirnessadefesa,oquefezsurgirumanovagaleriadeSantos[34]comoosMártiresdoJapão,oudoMarrocos,emesmodoBrasile,em função disso, amultiplicação das relíquias.Muitos deles eram jesuítas.Os jesuítas tiverampapelativo,duranteoConcíliotridentino,eforampropagadoresdadevoçãoàsrelíquias.[35]

ContaLeite(1945,p.71)queopadreManuelFernandes,escrevendodaaldeiadeSãoJoão,naBahia,diziaqueainvasãoholandesa,de1624,eraparacastigarospecadospessoaisedetodoopovoeque,comum temporal,oColégiohaviaperdidomilharesdecruzados.Eenfatizava: “[...] salvou-se todaaprataeasrelíquias[...]”.Dentreaspeçasroubadaspelosholandeses,segundoopadre,estavaumrosáriodeSãoFranciscoXavier,veneradoentãoemColônia,e fora resgatadoporMariadeMédicis.ÉmaisumalendadaBahia.

Não só as ordens primeiras, ou dos religiosos dos conventosmasculinos tinham relíquias em suasigrejas. As freiras concepcionistas do ex-Convento da Lapa, já citadas, possuem, ainda hoje, umacoleção, tantoderelicários,quantodadocumentaçãopertinente,do tipoquenãopodeserclassificadocomo artístico, mas que mostra a grande proliferação desse tipo de representação devocional. Umoratório, cujas portas, externa e internamente, são repletas de relíquias, guardam ainda, uma série depequenosestojos,amaiorparteemceradeabelha,madeiraoumesmometais,queprotegemminúsculaspartículasdesantosvariados,masespecialmentedoAgnusDei,aoqualerarecomendadodarinvólucrosimples.

Dessemesmogênerosãoasinúmerasrelíquias,incrustadasemmesas,nosfrontaisdemuitosaltaresdasigrejassoteropolitanas,empequenosescrínioscobertosdevidro.Amaioriafoiremovida,noséculoXIX,quandoasantigasbanquetas,queascomportavam,foramsubstituídaspelasatuaismesasdealtares,para evitar furtos de objetos que eram nelas guardados. O altar do Capítulo do Convento de SãoFranciscoaindaguardaessetipodeincrustaçõesnasuapartefrontalinferior.

OConventodeSantaClaradoDesterrotem,napequenacapelainterna,umaltar-relicário,comtalharasa, datado do século XVII, supostamente da primeira capela do Convento, de 1677. É uma peçapequena,quecontrastacomoaltarao lado, totalmentebarroco.Orelicário,porém,quechamamaisaatençãoéoCristoCrucificado,doaltar-mordesseConvento,quasedetamanhonatural,comencarnaçãoepinturadramaticamentebarroca,comescrínioavantajadoaopeito.

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Um conjunto de palmas-relicário, quatro ao todo, em prata fundida, recortada, cinzelada eparcialmentedourada, pertence aoutrogênerode relicários.DaAntigaSédeSalvador (demolida em1933), foi transportado junto com boa parte de seu patrimônio para o Museu de Arte Sacra, daUniversidadeFederaldaBahia.Essaspalmas-relicáriopertencemàArquidiocesedaBahia.Datamde1794 e têm a marca do ourives Joaquim Alberto da Conceição Matos.[36] Montadas em alma demadeira,queassustenta,têm,nocentrodabase,numrecorte,símbolosemouro:aArcadaAliança,oCordeirodeDeus,aFênixeoCoraçãoTrespassado.Osrelicáriosestãolocalizadosnorecipienteoval,na parte superior, arrematados por florões vazados. Todo o conjunto é de estilo híbrido, com algumasobrevivênciarococóeprevalênciadeelementosdecorativosneoclássicos.

NãoseconheceexatamentequantasrelíquiaschegaramàBahia.Algumas,noentanto,setêmnotíciasdadas antes que desaparecessem.Em1694, por exemplo, o padreAlexandre deGusmão descrendo asacristiadaCatedral,diziaque,entreoutrosornamentos,

[...]tambémrecebeuumdiademadeoiro,paraSãoFranciscoXavier,eigualmentedeoiroumrelicário,pendentedopeitodeSanto Inácio,dignodeservisto,não tantopelooiro,comopelaarteeleganteepela insigne relíquiadomesmoNossoPadre!(LEITE,1945,p.121).

E as relíquias, se não eram compradas, vendidas ou roubadas, eram transmitidas por meio detestamento.Nodocumentodedoaçãodacapelae ermidadeNossaSenhoradaGraça, situadanaVilaVelha[bairrodaGraça],feitaporCatarinaParaguassuaospadresbeneditinos,eladoava,alémdetodaaprata ali existente, “[...] um relicário para semeterem huãs relíquias que ella doadora tem” (LIVRO,1945).

E, também, se teve as relíquias de personagens da cristandade brasileira mesmo não sendosantificados.AsrelíquiasdopadreJosédeAnchietaforamtrasladadas,em1611,doEspíritoSantoparaoColégiodaBahia,mandadaspelopadregeralCláudioAquaviva.Foramcolocadasnoaltaraoladodoaltar-mordaatualCatedral.EramvisitadasportodaaCidadeatéserpromulgadooDecretodeUrbanoVIII,em13demarçode1625,econfirmadoa2deoutubrodomesmoano,designando-asdenoncultu,sendotiradasdavisitaçãopública.UmapartedelasfoiparaRoma.SequestradososbensdaCompanhia,acompanharam os seus antigos bens uma caixa de jacarandá, com ferragens de prata, as relíquias dopadreAnchieta,queconstavamdequatroossosdascanelaseduastúnicas,remetidasparaaMetrópole,pelo capitão de mar e guerra, Antonio de Brito Freire para que “Vossa Majestade o determine,mandando-meoquemaisfordoseurealagrado[...]”(MARQUES,1913,p.105;1914,p.5).Domesmogênerodedevoção,nascidalocalmente,foiocultoamadreVitóriadaEncarnação,doConventodeSantaClaradoDesterro,falecidaem1715,comfamadesantidade,cujosrestosrepousamnocorodaIgrejaeseucrânioseencontranacelaemqueviveu,veneradasemsersantificada.

ConclusõesPerdida,aospoucos,adevoção,emfunçãodevários fatores,ao longodoséculoXIX,as reformas

forameliminandoasrelíquiasdocorpodasigrejasedamemóriadosfiéis.Antesdisso,imagens,querpinturas ou esculturas, não podiam ser simplesmente abandonadas, doadas, retiradas dos edifícios

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religiosos.Todasasigrejascuradasdeviamterpiasbatismaiscomraloseencanamentosuficientesparaescoarascinzasdasimagens,relíquiasoupanoscomosquaisopárocolimpavaosSantosÓleos.Issoexplicaodesaparecimentodeimagensvelhas,deimagensdevultoedasprópriasrelíquiasque,ouforamenterradasnorecintodasigrejasouqueimadasejogadas,comáguabenta,pelosralosdepiasbatismais.

Mas,as recomendaçõesdoperíodode implantaçãodosditamesdoConcíliodeTrento,atravésdasConstituiçõesPrimeirasdoArcebispadodaBahia,deixarammarcasnasdemonstraçõesdereligiosidadedapopulaçãobaiana.Comoseviu,elasafirmavamque“ossantosadquiriramumvalormuitogrande,noimaginário popular, e era permitido e recomendado aos fiéis tocarem diretamente as relíquias”. Essehábitofoitãofortementeimposto,entreapopulaçãobaianaque,atéopresente,–enquantooCabocloeaCabocla, representantes da nacionalidade brasileira, criados simbolicamente pelo imaginário popular,emhomenagem aos que lutaramnaBahia, pela Independência doBrasil, em1823 –, beija amão e apassanessasfiguras,oudeixapedidosdegraçasemilagres,quando,depoisdodesfilecívicododia2deJulho,elaspermanecemexpostasaopúblico,porumasemana,noCampoGrande.

ReferênciasALVES,M.DicionáriodeartistaseartíficesnaBahia.Salvador:UniversidadeFederaldaBahia;CentroEditorialeDidático;NúcleodePublicações,1976.ARIÈS,P.Ohomemdiantedamorte.TraduçãodeLuizaRibeiro.RiodeJaneiro:FranciscoAlves,1981.(Col.CiênciasSociais).ARTEGUIAS.Orfebreriayesmaltesromânicos:artessuntuárias.2012.Disponívelem:<http://www.arteguias.com/orfebreria-esmaltes.htm>.Acessoem:23jun.2014.BARBOSA,M.deA.OtitulareopadroeirodacidadedoSalvador.In:CONGRESSODEHISTÓRIADABAHIA,1.,1950,Salvador.Anais...Salvador:IGHB,1950.p.407-439.v.2.BLUTEAU,R.Vocabulárioportuguezelatino[...]oferecidoaelreydePortvgal.Coimbra:CollegiodasArtesdaCompanhiadeJesu,1712.p.223-224.v.7.CAMPOS,J.daS.ProcissõestradicionaisdaBahia.AnnaesdoArquivoPublicodaBahia,Salvador,v.27,1941.p.249-529.CERTIFICADOdoReitordoColégiodosJesuítasdaBahia,sobreasrelíquiasexistentesnosantuáriodomesmocolégio.RevistadoInstitutoGeográficoeHistóricodaBahia,Salvador,n.75,p.199-200,1948-1949.TranscriçãododocumentoexistentenaBibliotecadaAjuda–Lisboa,pasta52-x-2-n.76.CONSTITUIÇOENSPRIMEYRASDOARCEBISPADODABAHIA.Feytas,&ordenadaspeloIllustrissimoeReuerendissimoSorD.SebastiãoMonteyrodaVide,ArcebispodoArcebispado,&doConselhodeSuaMagestade,propostaseacceytasemoSinodoDiocesanoqueoditoSenhorcelebrouem12dejunhodoannode1707.LisboaOccidental:naOfficinadePaschoaldaSylva,ImpressordeSuaMajestade,1719.CONSTITUIÇÕESPRIMEIRASDOARCEBISPADODABAHIA.Feitas,eordenadaspeloIllustrissimoeReverendissimoSenhorD.SebastiãoMonteirodaVide,5oArcebispododitoArcebispado,edoConselhodeSuaMagestade:propostaseaceitasemoSynodoDiocesano,queoditoSenhorcelebrouem12deJunhodoannode1707.SãoPaulo:Typog.2deDezembrodeAntonioLouzadaAntunes,1853.CONSTITUIÇÕESSINODAISDOARCEBISPADODEBRAGA.OrganizadaspeloIllmoArcebispoD.

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SebastiãodeMatoseNoronhaemandadasimprimiraprimeiravezpeloIllustrissimosenhorD.JoãodeSousa,Arcebispo,&SenhordeBraga,PrimazdasEspanhas,doConselhodesuaMagestade,&seuSumilherdeCostura,&cc.Lisboa:NaOfficinadeMigvelDeslandes,ImpressordeSuaMagestade,1697.DANNEMANN,J.C.Coleçãodebustos-relicáriosdaantigaIgrejadoColegiodeJesusdeSãoSalvadordaBahia:preservaçãode30esculturasdoséculoXVII.2003.239f.Dissertação(MestradoemArtes)–EscoladeBelasArtesdaUniversidadeFederaldeMinasGerais,BeloHorizonte,2003.DANNEMANN,J.C.Estudodeesculturasdouradasepolicromadas:preservaçãodacoleçãodebustos-relicáriosdaantigaIgrejadoColégiodeJesusdeSalvador.In:ENCONTRODAASSOCIAÇÃONACIONALDEPESQUISADORESEMARTESVISUAIS,18.,2009,Salvador.Anais…Salvador:ANPAP,2009.p.2941-2955.DELUMEAU,J.Lareforma.Barcelona:Labor,1973.ECCLESIAEMILITANS.BreverelatodaperseguiçãoaoscristãosprimitivoseaIgrejaCatólica.10mar.2013.Disponívelem:<http://igrejamilitante.wordpress.com/2013/03/10/breve-relato-da-perseguicao-aos-cristaos-primitivos-e-a-igreja-catolica>.Acessoem:13jul.2014.ENCYCLOPÉDIEouDictionnaireraisonnedêssciences,desartsetdesmétiers,parunesocietédegensdelettersmisenordreetpubliepar…Neufchastel:SamuelFaulche,1765.v.14,p.89-91.FLEXOR,M.H.OficiaismecânicosnacidadedoSalvador.Salvador:PrefeituraMunicipaldoSalvador/DepartamentodeCultura,1974.FRANCOJÚNIOR,H.Relíquia,metonímiadosagrado.Historiae,RioGrande,RS,v.1,n.1,p.9-29,2010.Disponívelem:<http://www.seer.furg.br/hist/article/viewFile/2350/1232>.Acessoem:5jun.2014.HART,M.etal.DepoisdeJesusotriunfodocristianismo.TraduçãoBernardoPinheirodeMelo.RiodeJaneiro:SeleçõesReader’sDigestBrasil,1999.JABOATAN,A.deS.M.NovoorbeseráficobrasilicoouchronicadosfradesmenoresdaProvínciadoBrasil.RiodeJaneiro:InstitutoHistóricoeGeográficoBrasileiro,1858.4v.JORDAN,K.F.(Org.).Bahia:tesourosdafé.Salvador:Coelba;PedradeToqueProduções;Barcelona:Bustamante,2000.LEITE,S.HistóriadaCompanhiadeJesusnoBrasil.RiodeJaneiro:InstitutoNacionaldoLivro;Lisboa:Portugalia,1945.v.5.LIVRODOSGUARDIÃESDOCONVENTODESÃOFRANCISCODABAHIA,1587-1862.PrefácioenotasdeFreiVenâncioWilleke.RiodeJaneiro:InstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional,1978.LIVROVELHODOTOMBODABAHIA.DocumentoshistóricosdaCongregaçãoBeneditina.Bahia:Beneditina,1945.v.1.MANDROU,R.IntroductionàlaFrancemoderne,1500-1640:essaidepsychologiehistorique.Paris:AlbinMichel,1974.(Col.L’Évolutiondel’Humanité).MARQUES,X.AsrelíquiasdoPadreAnchieta.RevistadoInstitutoGeográficoeHistóricodaBahia,Salvador,v.18,n.37-39,p.101-102,1913.MARQUES,X.AsrelíquiasdeAnchieta.RevistadoInstitutoGeográficoeHistóricodaBahia,Salvador,v.19,n.40,p.3-8,1914.

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BÍBLIAPORTUGUÊS.Mateus5-26.Disponívelem:<http://bibliaportugues.com/matthew/5-26.htm>.Acessoem:23maio2013.REYCEND,J.B.OSacrosanto,eecumenicoConciliodeTrentoemlatim,eportuguezdedicaeconsagraaosexcell.,eRev.SenhoresArcebisposeBisposdaIgrejaLusitana.2.ed.Lisboa:OfficinaPatriarc.deFranciscoLuizAmeno,1786.2t.ROCHA,J.M.da.DirigismonaproduçãodaimagináriareligiosanosséculosXVI-XVIII:asConstituiçõessinodais.Mvsev,Porto,n.5,4.série,p.187-202,1996.RUY,A.CatedralBasílica.2.ed.Salvador:PrefeituradoSalvador,1964.(Col.PequenoGuiadasIgrejasdaBahia,1).SILVA-NIGRA,C.M.da(D.).FreiAgostinhodaPiedade.RiodeJaneiro,1947.Datilografado.TAVARES,J.C.Dicionáriodossantos:hagiológico,iconográfico,deatributos,dearteseprofissões,depadroados,decompositores,demúsicareligiosa.2.ed.Porto:Lello,1990.VIEIRA,D.(Fr.).Grandediccionarioportuguês:thesourodalínguaportuguesa.Porto:E.ChardroneBartholomeuH.deMoraes,1874.p.182-183.v.5.

[1] Seu Império conhecido pelas reformas do Estado e perseguição aos cristãos, foi batizado como a “Era dosMártires” (ECCLESIAEMILITANS,2013).[2]Aorigemdessecostumesedeveaosfiéis,quesereuniamfrequentementenassepulturas,onderepousavamoscorposdosmártires,nodiadoaniversáriodesuamorte,oferecendo-lhesofíciosdivinos,celebrando-seaEucaristia.Aintercessãodossantos,osmilagresatribuídosàssuas relíquias favoreceram as translações de seus corpos, ou restos, para os templos. Cumpria-se, segundo o autor do verbete daEncyclopédie, a passagem figurada doApocalipse (Cap.VI, vers. 9): “[...] eu vi sobos altares as almas daqueles que forammortos pelapalavradeDeus”,emfunçãodequeseautorizouousodesetersemprerelíquiassobosaltares(ENCYCLOPÉDIE,1765,p.89).[3]OautordoverbetesobreRelíquia,dessaEncyclopédie,queeranitidamentedetendênciacalvinistadizia,“reconheçocommaisprazerqueas luzes do último século [parte dos séculos XVII-XVIII] colocaram um grande freio na superstição que se estendeu sobre as fraudespiedosas,maséprecisoavisarquerestamaindamuitostraçosemmuitoslugaresdacristandade”eestavampresosaos“hábitosdegentesdacomunhãoromana”(ENCYCLOPÉDIE,1765,p.91).[4]MartinhoLutero.[5]UlricoZuinglio.[6]JoãoCalvino.[7]DoConcíliodeTrento,houveorebatimentodovocabuláriocristãousadonoséculoXVI,nasConstituiçõesPrimeirasdoArcebispadodaBahia,usandorelíquiacomosobra,lembrança.Assim,noTit.XLVII,queversasobreoSacramentodaExtremaUnção,umdeseusefeitosseria“perdoar-nosasrelíquiasdospeccados,pelosquaesaindafaltavasatisfazerdanossaparte,ficandoporissoaliviadaaalmadoinferno”(CONSTITUIÇÕES,1853,p.81).AindahojeaIgrejachamade“relíquiasdopecado”apenatemporaldevida,apontandooPurgatóriocomolugarondesedevepagaroqueédevidodarelíquiadopecado.Estaassertivabaseou-seemMateus,queafirmava:“Emverdadetedigoquedemaneiranenhumasairásdalienquantonãopagaresoúltimoceitil”(MATEUS5:26).[8]SantoAgostinhoclassificouotipodecultodevidoaCristo,aossantoseàsrelíquias.ConstamdasConstituiçõesaprovadasentreoséculoXVIeoXVIII,nasquais,aindasediziaqueàVirgemMariasedeviaocultodehiperdulia(CONSTITUIÇOENS,1719,p.10).[9]VerREYCEND,1786,p.347-349.[10]Nemsempreeramtãodecentes,àsvezesapresentavam-semuitoexagerados.Oarcebispo,D.ManoelJoaquimdaSilveira,condedeSãoSalvador, ofertou um relicário de ouro, cravejado de esmeraldas, com fragmento do Santo Lenho, pendente de colar igualmente em ouro(CAMPOS,1941,p.405).[11]CordeirodeDeus.[12]Ovocábulorelíquiaerausado,também,nosentidode“resto”,“sobra”,ou“relíquias”dehóstia,istoé,pedacinhosque,involuntariamente,caíssemsobreatoalha,colocadasoboqueixo,nahoradacomunhão(CONSTITUIÇOENS,1719,p.87).[13] “25. Mandamos também, que se não comprem, ou vendão Relíquias, como dispõem os Sagrados Cânones, salvo a fim de seremresgatadas,estandoempoderdeHereges,oudeInfiéis:entendendo-se,quenacompra,evendadellasseoffendemuitoaReligiãoChristã,ecommette o grave crime de simonía” (CONSTITUIÇÕES, 1853, p. 9-10). Dizia a Enciclopédia setecentista que “fazer um tráfico queexcitavaaavarezadeencheromundodesupostasrelíquias”(ENCYCLOPÉDIE,1765,p.89).[14]Algumas relíquias foram subtraídas. Segundo informações deFreiHugoFragoso, historiador franciscano, as relíquias, restantes desse

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altar,foramretiradaseguardadas,paraevitarmaisroubos.[15]AdesignaçãoteriasurgidodaleituraerrôneadainscriçãodotúmulodaSanta,emColônia,naAlemanha,“UrsulaetXIMM.VV”(RUY,1964, p. 10), que deve ser lida comoÚrsula e OnzeMártires Virgens. Segundo outros autores a inscrição seria outra. Foi, e é, a SantapadroeiradoConventodasMercês,deSalvador,administradopelasirmãsursulinas,ondesóelaéfestejada.[16]Os Jesuítas e seus estudantes levaram avante os festejos.Onde os jesuítas chegaram, levaram a devoção dasVirgens, comoRio deJaneiro,SãoPaulo,Maranhão,Amazonas.[17]Em1903duasdastrêscabeçashaviamdesaparecidoesóexistiaumanacapelainternaquefoidestruída,doisanosdepois,porgrandeincêndio(CAMPOS,1941,p.348).[18]Certamentetratava-sededocumentojesuíticoenãodaCatedral,condiçãoaquepassouaIgrejadoColégioapenasem1765,quandosedeixoudeutilizaraantigaSédeSalvador,quetinhaproblemasdeestabilidade,masquesófoidemolidaem1933.[19]Consta,segundoalgunsautores,queÚrsulaeraabadessaeasmártiresmonjas,todasmortaspelosHunos,em453(RUY,1964,p.10).AmesmacoisaseencontraemCampos(1941,p.346).Oimagináriocatólicocriou,atravésdosséculos,váriasestóriasacercadesseepisódio.[20]Só eramduas relíquias.Na iconografia conhecida deSantaÚrsula, ela é representada dentro de umbarco, ou à beira-rio, constandoapenasaspoucasvirgens,noveoudez.[21]Passouaservirdesededepoisque,em1765,transferiu-sedaAntigaSéquedeveriapassarporrestaurações.[22]DoisaltareslateraisdoladodoEvangelho.[23]Orestauradordessesbustos,Dannemann(2003,p.2951-2952),entre1999-2003,identificououtrosbustos:santas:SantasInês,Agueda,Doroteia,Teresad’Ávila, Isabel (dePortugaloudaHungria),CatarinadeSiena. santos:SãoSebastião,Lourenço,Vicente, JorgeeSantosEstevãoeEustáquio,[24]CartadaBahia,8dejulhode1686,deDiogoMachado.(LEITE,1945,p.89).[25]Quatro jesuítas foram atingidos pela epidemia: o padreAntonio deGouveia, fundador doColégio deRecife; o padreMateus Pereira,teólogo;oIrmãoAntonioSaraivaeopadreAntoniodeOliveira.(LEITE,1945,p.89).[26]Emcartade12dejulhode1686(LEITE,1945,p.89).[27]NoticiadadaporD.SebastiãoMonteirodaVideem1729.(LEITE,1945,p.91).[28]ACâmarapatrocinavaasfestaschamadas“delRey”,entreasquaisestava,alémdadeCorpusChristi,asdeSãoSebastião,SãoFelipeeSantiago,NossaSenhoradasCandeias,SantaIzabeleAnjoCustódio,SantoAntôniodeArguimeadeSãoFranciscoXavier.(FLEXOR,1974,p.23).[29]OcônegoManoeldeAquinoBarbosa,antesdediscorrersobreopatronooficialdacidade,SãoFranciscoXavier,tentoumostrarquenãoexistiadocumentoque indicasseSantoAntôniodeArguimcomopadroeirooficial,alémdeapontarasOnzeMilVirgenscomoasprimeiraspadroeirasdeSalvador.ColocouSantoAntôniocomosegundoprotetor, assimconsiderado, segundoele,pelaopiniãopopular. (BARBOSA,1950,p.407-439).[30]WillekeindicouopadreFelipeMenezeseadatadereuniãodaCâmara,a20denovembro.(LIVRODOSGUARDIÃES,1978,p.81-82).[31]D.ClementeaventouahipótesedobarroterorigemnafazendadoMosteiro,emJaguaripe,pertodeNazarédasFarinhas.[32]DoiníciodoséculoXVIII.[33]Tem49cmdealtura.[34]ComoSãoFranciscoXavier,SantoInáciodeLoiola(cultoiniciadoem1622),SãoFranciscodeAssis,entreoutros.[35]PorissomesmotiveramaautorizaçãopapalparavirparaoBrasil,eparaaAméricadohemisfériosul,catequizarosíndios.[36]Oourivesdoouroedaprata,nascidopelosmeadosdoséculoXVIII,trabalhou,nãosóparaaSé,mastambémparaaSantaCasa,IgrejadoBomfim,deNossaSenhoradoPilareOrdem3ªdeSãoFrancisco,daqualerairmão.(ALVES,1976,p.109).

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EX-VOTOSDECONGONHAS:MOTIVOS,DEVOÇÕES,ASPECTOSTÉCNICOS,ESTILÍSTICOSESOCIAIS

BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho

Ex-votossãorepresentaçõesfísicasdepromessasfeitas–votos–egraçasalcançadas,porintercessãodealgumsanto,dopróprioCristooudaVirgemMaria.NoBrasil,eemoutrospaíses,háváriasigrejasque conservam objetos oferecidos em agradecimentos a promessas: peças de cera ou gesso,representando partes do corpo humano,muletas, cartas, fotografias, carteiras de identidade, peças deroupas,pinturassobrediversossuportes.

Em 1979, na Basílica do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas, Minas Gerais, havia, entreinúmeros outros, 49 ex-votos pintados ou desenhados sobre suportes de madeira, papel ou papelão.Outros40,procedentesdamesmaregião,estavamparaseremvendidosemumantiquárioemSãoPaulo.Com a interferência doCentroNacional deReferênciaCultural, criado 1975 porAloísioMagalhães,Severo Gomes e Vladimir Murtinho (ANASTASSAKIS, 2007) e dirigido pelo primeiro, foramadquiridospeloBancodoBrasil,para,emconjuntocomos jáexistentesnaBasílica, serem tombadospeloIphan.

Em1976,acabávamosdecriarnaEscoladeBelasArtes(EBA)daUniversidadeFederaldeMinasGerais(UFMG),umAteliêdeRestauração,iniciadocomumtrabalhoderestaurode13telasdaEscolade Música da UFMG, feito por um técnico do então Iphan, Geraldo Francisco Xavier Filho, maisconhecidoporLádio,acompanhadoporprofessoresdaEscola.Osex-votos,-pagamentodovoto,oudapromessa - todos pintados, precisavam estar em boas condições de conservação para que fossemtombadose,porisso,foramencaminhadosparaorecém-criadoAteliê,afimdeseremrestaurados.Tiveahonraeaalegriadereceberecoordenaressaatividadee,desdeentão,penseiemfazerumartigosobreo conteúdo dessas “tábuas” votivas, considerando a grande importância do que elas traziam deinformações.Chegueiaapresentaroresultadodosmeusestudosoralmente,nosemináriodeentregadacoleçãoàcomunidade,masnuncachegueiaencaminhá-losparapublicação,oquetenhoasatisfaçãodefazeragora.

Etapasdotrabalho1-Exameerestauraçãodacoleçãodos89ex-votos,pelaautora,restauradoresealunosdocursode

especialização em Conservação e Restauração, antes do tombamento pelo Instituto do PatrimônioHistóricoeArtísticoNacional;

2 -Organizaçãodeuma tabelacomdados sobrecadaumadaspeças:data/época, formato, técnica,devoção,motivo, lugarescitados,quemfezepagouapromessa, linguagemescritaouvisual,nomedoautor(sehouvesse),característicasestilísticasenomedorestaurador;

3-Organizaçãodeumbancodedadosemcomputador,comtodososdadosantesanotados;

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4-Análisedessesdados;5-Elaboraçãodesteartigo.

AcoleçãoApós a aquisição dos 40 ex-votos peloBanco doBrasil, a coleção ficou composta por 89 peças,

sendo49,comojáfoidito,queestavamnaBasílicadoBomJesusdeMatosinhos,emCongonhas.TodosforamrestauradosnoAtelierdeRestauraçãodaEscoladeBelasArtes,quesetransformaria,doisanosdepois,noCentrodeConservaçãoeRestauraçãodeBensCulturaisMóveis,oCecor.Acoleçãocobreum período bem extenso e significativo, pois constam datas que vão de 1722 a 1964, abrangendo,portanto,242anos.QuandochegaramàEBA,tinhamproblemasdesujidadeseperdasnossuportesenasrepresentaçõesvisuais;enalinguagemescrita,amassamentosemanchasnosquetinhamsuportedepapel.Comoa coleçãoeragrande, e tínhamospoucagente e experiêncianaquelemomento,o trabalho levoudoisanosparaserexecutado.

TécnicasesuportesencontradosAgrandemaioria da coleção é composta por suporte demadeira, daí serem consideradas também

“tábuasvotivas”.Ossuportes,astécnicasempregadaseasdatasouépocasestãoregistradosnatabela1.

Tabela1-Característicasgeraisdosex-votos

Fonte:Elaboradopeloautor.

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A têmpera sobremadeira foi utilizada, predominantemente, nos ex-votos do séculoXVIII eXIX; oóleo sobre tela, do final do séculoXIX até 1964. É interessante informar que dois -Nºs48 e 49[37]forampintadosnasduasfacesdosuportedemetal,em1998.Foramoferecidosporumagraçaalcançadapara amesma pessoa, Gabriella Augusta de Rezende, e ofertados pelamesma pessoa, o seumarido.Suponhoqueoencomendantenãogostoudoprimeiroemandou fazeroutro.De fato,oprimeiro temacaligrafia feia e está escrito “N.S. de LEURDES” e “febre tiphode”. No segundo, o 49, a letra ácaprichada,sendomaisricoemdetalhesdoqueo48;eneleestáescritocorretamenteN.S.deLourdesefebretifoide.

Comformatoretangular,são84,sendo75nahorizontaleapenasnoveemretângulovertical,sendo15dessascomcurvanapartesuperioroulateral,etrêscomrecortescurvosnapartesuperior.78tinhamoutiverammolduras,sendoqueseteapresentavamperdas;trêstinhammolduraspintadaseoitonãotinhamnenhumamoldura.

Emapenas18ex-votosencontramos,noverso, etiqueta/carimbocomnúmerosnãosequenciaiseosdizeres“SBJSenhorBomJesusCONGONHAS”;outrassetenãoestavamnumeradas,constando,apenas,“SBJ Senhor Bom Jesus” ou, simplesmente, “Senhor Bom Jesus”. Podemos concluir que outras, quefaziam parte da coleção da Basílica anterior ao tombamento, devem ter perdido a inscrição com anumeração.

Data/épocaEncontramosdatasescritasoupintadasem63dosex-votosdacoleção,comumasemdadosescritos

ou visuais suficientes para uma provável datação e as outras 62, indo de 1722 a 1964; 12 foramatribuídasaoséculoXVIIIpelaequipedotombamento;outras12aoXIXe02aoséculoXX.Agrandemaioriadosex-votosédoséculoXIX,quecorrespondeàépocaemqueoSantuário,tambémumex-votooferecidoporFelicianoMendesaoBomJesusdeMatosinhos,jáestavabastanteconhecido.

DevoçõesEntre os 89 ex-votos estudados, 50 são dedicados aoBom Jesus deMatosinhos, sendoque emum

deles consta apenas “o Senhor de ... (texto perdido) e do Divino Espírito Santo”, mas com arepresentaçãodoCristocrucificado,eissonoslevaaentenderquefaltouapenasapalavraMatosinhos;emoutro,oagradecimentoéaSãoJoséeaoBomJesusdeMatosinhos;eaindaoutro,também“aoBomJesusdadevoçãodoTremembé”.[38]

É importante observar que o mais antigo está datado de 1722. É oferecido por Maria Leme, emagradecimentoaoBomJesuspelagraçaalcançadaparaumescravo.Possivelmente,MariaLemeeraumaportuguesaqueteriatrazido,desuaterra,noNortedePortugal,essadevoção.[39]Ficaumaquestão:emque capela ou ermida teria sido entregue seu ex-voto, se a construção daBasílica, teve início de em1757?Outros11,dedicadosaoBomJesusdeMatosinhos,sãode1764(1),1765(1),1771(4),76(2),78(1),99(1)ede1900.DoséculoXIX,temos12decadaumdosanosseguintes:1802,1822,1825,1831,1841,1867,1879,1882,1890,1896,1897;dois,de1873e1889eumde1900;três,de1899,eum,

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de1900.DoséculoXX,são10,datadosde1913,1915,1920,1922,1928,1946e1958.Comosepodeobservar, há um espaço de tempo bastante razoável entre as datas dos ex-votos da coleção.Possivelmente,foramentreguesoutrostiposdeex-votos,oualgunspintadospodemterdesaparecido.

Em segundo lugar, encontram-se, 24, dedicados a Nossa Senhora; sendo dez a Nossa Senhora deNazaré, devoção bem antiga em Minas Gerais, com uma de suas primeiras ermidas construída emCachoeira do Campo, em 1702.Quatro, todas do séculoXVIII, estão dedicadas àNossa Senhora doCarmo.Háoutros,dedicadosaNossaSenhora,comdiversasinvocações:“doBomDespacho”,datadodo século XVIII, e “do Alívio”, “do Livramento”, “da Saúde”, “de Lourdes”, todas do século XIX.Outrosex-votosdessacoleçãoforamfeitosemagradecimentoaalgunssantos,comoSantaQuitéria,SãoBrás, SãoFrancisco dasChagas, SãoFrancisco dePaula e Senhor doBonfim.Desses, 16 tinhamumficha/carimbocomnumeraçãonãosequencialde17a56.Outrossetetinhamainscriçãosemnumeração:SBJSenhorBomJesusCONGONHAS;e64nãotinhamnenhumainscrição.

Predominam, portanto, os ex-votos dedicados ao Bom Jesus de Matosinhos, mas há oferecidos aNossaSenhoraououtrossantos.Encontramosum,datadode1938,oferecidoaoBomJesusdadevoçãodoTremembée,aobomJesusdeMatosinhos.TremembééumacidadedoValedoParaíba,interiordeSãoPauloe,em2013,foramcomemorados350anosdaconstruçãodesuaigreja,hojebasílicadoBomJesus.Desde1663suafestaécomemoradaem6deagostoeoCristoéoEcceHomo;[40]enãooBomJesusdeMatosinhos.Realmente,nesseex-voto,de1838,oferecidoemagradecimentodacuradeJoãoFelisbertodeFreitas,estãorepresentadosodoente,oEcceHomoeoBomJesusdeMatosinhos.Segundootextodapintura,eleestavaindoemcompanhiadeseupaiparaSãoPaulo,quando“[...]chegandoaV.adeTaubaté,ali ficouIdroficoeourosataquesdeBixas,qchegouaficarquaseMortoporespasodequatrodias[...]evoltoubompaestacidade”.[41]

LugarescitadosEncontramos13deoutroslugarescitadosnosescritos:“Cerrodofryonoarayaldodagoveya”(1765);

Tremembé (1838),Lavras (1862), “DoresdeCampos (1889);Chapéud’Uvas,[42]1889; duas deSãoJoão del-Rei,[43] datadas de 1898; Bicas do Pará,[44] (1915); uma de Barra de São Pedro, (1920),Bello Valle[45] (1922), Dores do Turvo, (1928), Itatiaia Ussu (SIC)[46] (1938) e ainda outra, deMariana,(1946).Entendemosporisso,queaspessoasquepassaramporgravesproblemasdesaúdeouos que fizeram a promessa por elas, moravam nesses lugares, como o do caso de Tremembé, citadoanteriormente.

Linguagemescrita:motivosparaospedidosdesocorroAqui encontramos ricas informações sobre acidentes, enfermidades, que levaram a grande risco as

pessoas que os sofreram ou perigos iminentes de morte, e seu quotidiano. Entre eles, encontramosacidentes com cavalos e carros de boi, ferramentas de carpintaria, tiros, explosões com fogos deartifício,excessodecalmanteemesmoum,deumapessoaque“cahiudeumajanela”edeumacriança“queengoliuumcravopaulista”.Narepresentação,ocravopaulistavaidochãoàcinturadomenino.Há

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aindaumque teve“acidentecomimpressora” (séculoXX),e“acidentede trementreMarianaeOuroPreto”.As doenças citadas são “bexigas” correspondentes à varíola, “fluxo de sangue”, “diarreias desangue”, “lançando sangue pela boca e pelo nariz”, “exvaido em sangue pela gengiva e pelo nariz”,“febre thiphode” e muitos citam apenas “gravemente doente”, “em perigo de morte”, “em perigo devida”,“quazeamorte”e“jádesenganada”.Hádoisbeminteressantesnosquaisestáescrito:“avexadocommaleficioseiluzoenseemtentaçoensdodemônio”eoutroquesediz“oMayorPecadordoMundo”e outro ainda, quase ilegível, que havia escapado de ir para a guerra do Paraguay, pois pode-se ler:“estandodormindoemsuaCazaem...Aescolta...Opegar...paraguay”.

Todas essas informaçõesnos falamsobreo cotidianodaspessoas, de seus trabalhos, enfermidades(muitas hemorragias), e situações vividas, dando uma ideia da mentalidade religiosa da época, dasdoençaseacidentesdetrabalho,nocampoeemoficinas.

Linguagemvisual:representaçãodonecessitadodeauxíliodosobrenaturaledosantoaqueseatribuiagraçaalcançada

Agrandemaioriadessas“tábuasvotivas”temrepresentaçãoingênua,masháalgumasfeitascomcertaerudição.Todosos89ex-votostrazemarepresentaçãodapessoaqueprecisavadeauxílioe,em78,dosantoaquemsepediuagraçaeaquemfoifeitaapromessa.Emalguns,érepresentadaumacenamaiornoexteriorounoquartodoenfermo,compessoasaoseulado,cadeiras,mesasequadrosnaparede.

A representação do Cristo crucificado está presente em 45, mas nem sempre coincide com areferência,nalinguagemescrita,àiconografiadoBomJesusdeMatosinhos,indicandodesconhecimentodarepresentaçãodestadevoção,queéoCrucificadocomosbraçosemlinhahorizontal,ospéspresoscomquatrocravos,acabeçareta,umdosolhosvoltadoparacima(paraosobrenatural),eooutroparabaixo(paraascoisasterrenas),eumperizôniocompridonapernaesquerdaecurtosobreadireita.

Oitoex-votosrepresentamolocaldoacidentecomcenascampestresondeaparecem:cavalo,carrodeboioupedaçosdecasaexplodindo;11nãotêmambientação,estandorepresentadaapenasapessoaquemotivouapromessa.Comoosvotos,oupromessas,foramfeitosquandoapessoaestavapassandomalouemperigodemorrer,em54háarepresentaçãodecama.Dessas,21apresentavamdosselreto,outras12tinhamdosselcomcurvaturanapartesuperior.

QuempagouapromessaEm quase todos os ex-votos estudados consta o nome da pessoa que sofreu o problema, mas, em

alguns,consta:“estandomeumarido”,“Amolherdocap.”,“Pormeufilho”,“suaavó”,“porseumarido”,e11estãoilegíveis.Nemtodososvotosforamfeitos,portanto,pelapessoaqueestavasofrendodealgummal.

AutoriasassinadasNove “tábuas votivas” são assinadas, como uma, em óleo sobre madeira, do século XIX, de A.

GranadoBicas;uma,emguachesobrepapelão,de1899,assinadoTheotonioE.Lia;outro,de1896,em

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óleo sobre papelão, com as iniciais e a data da execução, RR./1910. Nesse caso, o pagamento dapromessa foi feitobemdepois;odoPadreMessiasMarques,AssinadoporMarcolinoNerydeAssis;outro,deA.Zenícola,BeloHorizonte,5-9-1922;umaaquareladeItatiaiuçu,de1938,assinadoporJoséAugustodeMorais;outro,emóleosobretela,de1958,ondeconstaJ.Gomes,1958;umsemdata,masdoséculoXX,ondejáconsta,nãoapenasonome,mas, também,apropagandadoautor:N.Nogueira.Desenhoartísticoaoleo(sic)enanquimeomaisrecente,de1964,assinadoapenas,Waldir.Comoerade se esperar, não há assinaturas nos ex-votos do século XVIII, pois, nem mesmo os artífices maisfamososassinavamseustrabalhos.Nessacoleção,asassinaturassóaparecemnofinaldoséculoXIXenoséculoXX.

AutoriasatribuídaspelapesquisadoraVerificamosqueváriosex-votostêmelementoscomasmesmascaracterísticas:osdenúmeros02e26

(FIG. 1), pintados em têmpera sobre madeira, são dedicados a “Nossa Senhora de Nazareth”; eretangulares,commolduraecomarepresentaçãodivididaemtrêspartes:figura,textoesantaaquemserecorreu.

Figura1–Ex-votodeDJoannaMariadeJesusaNossaSenhoradeNazaréTêmperasobremadeira.29x18,8cm,1823

Foto:BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho,1979.

Outrascaracterísticasimportantes:camacomdosselcurvo,amarradonosquatrocantos,elençol,comdelicada renda em seu contorno.NossaSenhora está dentro de umconjunto de nuvens circulares, queformamum círculo em um e uma elipse no outro. Pode-se ver a enferma sobre a cama, com o braçoesquerdoaparente,descrevendoumacurvaparabaixoeformandoumânguloretoentreamãoeobraço.Nocasodaprimeira,Nº2,acamacomaenfermaocupatodooladoesquerdo;afiguradeNossaSenhorade Nazaré está na parte superior do lado direito e a parte escrita na parte inferior do mesmo lado,havendoperdas,narepresentaçãoenotexto.Jáadenúmero26estáemmelhorestadodeconservaçãoe

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temasmesmascaracterísticas,porémcomotextonaparte inferior,eNossaSenhoraestárepresentadacercadaporraios.Essesex-votossão,segundominhaanálise,domesmoautor.

Também considero do mesmo autor as de número 56 e 72. Ambos são em madeira, em formatoretangularhorizontal,dedicadosao“S.B.Jesus”deMatosinhos;oCristocrucificadoestáàesquerda;acama,àdireita;eotexto,napartedebaixo,nahorizontal;e,nessecaso,atéascaligrafias,apesardasperdasnodenúmero56,são idênticas.OsCristos tambémsão idênticos,estãocercadosdenuvensnaformadesemicírculosconcêntricosquetêm,emconjunto,formatotriangular.Ascamastêmdosselreto,ecabeceiras iguais com grade em diagonal, na tentativa do autor de desenhá-las em perspectiva. Emambas,umamulherestádeitada,sóaparecendoorosto,mascomdiferençanarepresentaçãodoscabelos(Fig.2).

Figura2–ExvotodeumaMercêquefezoSenhorBomJesusTêmperasobremadeira.36x23,5cm,séculoXVIIIFoto:BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho,1979.

Outrocasoéodosex-votosdenúmeros52,55,(Fig.3,4),57,58,59e64(Fig.5),todasdoséculoXIX:1873,79,82,97,99emaisumadaqualnãoconseguimosveradata,masqueétambém,doséculoXIX. Todas já pertenciam ao Santuário, pois tinham no verso inscrição SBJ Senhor Bom JesusCONGONHAS,números24,37,58,79,86e90,nãohavendocorrespondênciaentreasduasnumerações.

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Figura3–Ex-votodeRodriguesRabelloaoBomJesusdeMatosinhoTêmperasobremadeira.42x22cm

Foto:BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho,1979.

Figura4–ExvotodeMilagrequefezoBomJesusdeMatosinhosaJoséPedrozaTêmperasobremadeira.42x22cm

Foto:BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho,1980.

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Figura5–Ex-votodeagradecimentoaoBomJesusdeMatosinhos.Têmperasobremadeira.37x19cm,séculoXIX.Foto:BeatrizRamosdeVasconcelosCoelho,1980.

Características técnicas, formais e estilísticas semelhantes: foram executadas em têmpera sobremadeira,sãoretangularesepossuemmolduramarmorizada,sendoduascompinturadiferente;asseistêmlinguagem visual, linguagem escrita e representação do Cristo crucificado; todas com cama, mesmoquandohá tambémrepresentaçãodeacidentenocampo;ascamassão idênticas,comdossel reto,comcortinadocaindonosquatrolados,amarradosigualmente,porumcírculo,queimitaumnónaalturadametade do apoio de madeira; os personagens representados são homens, dos quais só aparecem ascabeças, com rosto em formato triangular, todos com barba e bigode, exceto o de número 56, querepresentaumaenferma,“MariannaGomesdeMoura”.Oslençóistêmrendaspraticamenteidênticasnadobrapertodacabeçaenas lateraisqueaparecem; todosos travesseiros têmcurvasconcêntricas,quedãoumaaparênciadeabóboramorangaalongadas;osseissãodedicadosaoBomJesusdeMatosinhos,masnãoestãorepresentadoscomaiconografiacorreta,enãoparecendoteremsidoexecutadosporumaúnicapessoa,emboratodostragamnotítulosobreacruzoJNRJ,quesignificaJesusNazarenoReidosJudeus.TrêstêmnuvensaospésdoCristo;etrês,não.Nomeuentender,elesforamfeitosporummesmoateliê, considerando-se as grandes semelhanças e apenas pequenas diferenças entre eles, e mesmo, adistânciade26anosentreoprimeiroeoúltimo,de1873a1899.

ConsideraçõesfinaisEssacoleção,comoescreveuAloísioMagalhães(1981,p.11-12)

[...] constitui para ela (a comunidade) fonte de referência histórica, artística e antropológica, contribuindo para ela aconfiguraçãodaorganizaçãosocial,econômica,jurídicaereligiosadapopulaçãoregionalaolongodequasetrezentosanosconsecutivos.

Portudoisso,esseconjuntodeveserpreservadoeexpostodemaneiraadequada,provavelmente,noMuseuqueestásendoconstruídoaoladodaBasílica.Acreditoqueserádadanovadistribuiçãoaosex-

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votos, colocando-os em posição vertical na parede, por que foram feitos para serem vistos assim,utilizando-seaordemcronológica,colocando-seosdomesmoautoroudomesmoateliêpróximosecominformaçõesadequadasparaqueovisitantepossaapreciá-losevalorizá-los.

ReferênciasANASTASSAKIS,Z.DentroeforadapolíticaoficialdepreservaçãodopatrimônioculturalnoBrasil:AloísioMagalhãeseoCentroNacionaldeReferênciaCultural.2007.189f.Dissertação(MestradoemAntropologiaSocial)–UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,RiodeJaneiro,2007.MAGALHÃES,A.PromessaemilagrenoSantuáriodoBomJesusdeMatosinhos.Brasília,DF:SubsecretariadoPatrimônioHistóricoeartísticoNacional/FundaçãoNacionalPró-Memória,1981.p.11-12.

[37]Osnúmeroscitadosreferem-seaosdotombamentodosex-votos,feitoportécnicosdaSEC/Pró-Memória.[38]TremembééumacidadedeSãoPaulo,cujopadroeiro,desdeoséculoXVII,éaoEcceHomo.[39]MatosinhoséumacidadedoDistritodoPorto,emPortugal.Umalendacontaque,naPraiadoEspinheiro,àbeira-mar,foiencontradauma grande imagem do Cristo crucificado. A imagem deve datar do século XIII ou XIV.No local, foi construído o santuário que ficouconhecidocomodeMatosinhos.[40]EcceHomo”ou“EisoHomem”,palavraspronunciadasporPilatosaoapresentarJesusaosJudeus.[41]CidadedeTremembé.[42]AntigodistritodacidadedeJuizdeFora.[43]OarraialdoRiodasMortesalcançouforosdevila,comonomedeSãoJoãodel-Rei,emhomenagemaDomJoãoV,em1713).[44]Provavelmentetrata-sedeBicas,queficanazonadaMata,áreadeBarbacenaeque,inicialmente,erapontodeparadadetropeirosnoséculoXVIII.[45]UmdosprimeirosarraiaisdeMinasGerais,fundadoporbandeirantes,em1681.[46]Itatiaiuçufoidescobertaemmeadosde1670,suasorigensligam-seàchegadadosbandeirantespaulistasnaregião.

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ICONOGRAFIASSOBREAEUCARISTIACRISTÃEMPINTURASDEJOSÉTEÓFILODEJESUSEJOSÉJOAQUIMDAROCHANO

SÉCULOXVIIIEMSALVADOR-BAHIA[47]

MariadeFátimaHanaqueCamposRobertaBacellarOrazem

Comaaceitaçãoeampliaçãodocristianismo,ocultocristãorenova-seeintegra-seaumnovoespaçosimbólicoelitúrgico–aIgreja.Atravésdocultoeucarístico,reproduz-seosacrifíciodeCristonacruz,momento em que o padre consagra o pão e o vinho sobre o altar, como fezCristo na última ceia.OConcíliodeTrento(1545-1563)definiuregrasrígidas,dandoênfaseàEucaristia,atravésdepráticasdeusopredominanteatodososfiéis,enaprocissãodoCorpodeDeusparaserexpostoàpúblicaadoração.

EssespostuladosdocristianismoforamadotadosnadinâmicadoAntigoRegimeatravésdepráticasreligiosasquesustentavamasrelaçõesdepoderdaCoroaPortuguesaemconsonânciacomoPadroadoRégio. Na sociedade colonial brasileira, a atuação das irmandades do Santíssimo Sacramento foifundamentalnaexteriorizaçãodocultocristão,comarealizaçãodeprocissõesdeCorpusChristi,assimcomonaconstruçãoemelhoramentosdasdependênciasdostemploseoembelezamentointernoeexternodostemplos.

O objetivo principal desta pesquisa é a análise iconográfica das pinturas encomendadas, em1793,pelaIrmandadedoSantíssimoSacramentodaantigaSéaopintorJoséTeófilodeJesus,edaspinturasencomendadas, entre1796-1797, pela IrmandadedoSS.Sacramentoda IgrejadoPilar aopintor JoséJoaquimdaRocha.

Para tal, iniciamos o trabalho expondo a temática do culto eucarístico, discutindo desde os seusprimórdios, com o sacrifício pascal, às mudanças impostas pelo Concílio de Trento. Em seguida,abordamosaatuaçãodasirmandadesdoSantíssimoSacramento,queforamumadaspromotorasdocultocristãonoperíodocolonialbrasileiro.Finalmente,analisamososquadrosdospintoresJoséTeófilodeJesuseJoséJoaquimdaRocha,considerandosemelhançasnatemática,nautilizaçãodesímbolos,signose objetos como representações do culto eucarístico. Também, destacamos o valor simbólico emanadodessas pinturas e constituído pela Irmandade do Santíssimo Sacramento, considerando-a comoencomendantesdasreferidasobrasartísticas.

CultoeucarísticoAsreferênciasparaaformaçãodocristianismoencontram-senojudaísmo.ParaRieff(2003)oculto

cristão absorve, nas suasorigens, aspráticas comunitárias judaicas integradasno seu culto aDeus.Osacrifício é uma das práticas que advém do culto judaico, mas que também foi praticado em váriasculturascomoasdosgregos, romanos,astecas, entreoutras.Qualquerobjetopoderia serusado,como

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frutasecereais,masomaiorvalorestavanamatançadeanimais.Noculto judaico,osacrifíciodeumanimalera feitocomoumaformadeaproximar-sedeDeus.O

ritual ocorria na véspera da Páscoa, daí o termo cordeiro pascal, quando acontecia amatança de umcordeiroordenadaporumsacerdoteejuntamentecomumacomunidade.Oritualpassouaserusadonaeucaristiacristã,mascomoum“sacrifíciosemderramamentodesangue”paradistinguí-lodesacrifíciosdesangue.

Ao longo dos séculos, na Igreja Católica, houve uma iconografia variada para a representação dosacrifíciodeJesus,filhodeDeus,emquesedestacaadocordeiroemsacrifício,ostentandooEstandarteda Ressurreição. A morte de Cristo na Cruz foi associada ao sacrifício do cordeiro pascal, cujacerimônia foi estabelecida por Moisés: “[...] o inocente cordeiro que os hebreus e outros povosimolavamnosaltares sacrificando-oaDeuspara terema suabenevolência” (EUSÉBIO,2005,p.15).Dessaforma,associou-seumapráticaritualísticajudaica–osacrifíciodocordeiropascal-comnovosvaloresdocristianismo.Umavezqueesse temaéexaltadona representaçãodaexistênciado filhodeDeus - JesusCristo, que passou por um ritual de sacrifício, de sofrimento emorte na cruz.Assim, amatançadocordeiroétambémadoCristoSalvador,cujosanguefoiderramadoparasalvaroshomensetambémparaaproximá-losdeDeus,daíasuaassociaçãocomosacramentodaEucaristia.

OsacrifíciodeJesusCristofoiprenunciadocomapassagemdaúltimaceiacelebrada,naqualofilhodeDeusanuncia,diantedosseusapóstolos,asuamorteepropõeaunião,istoé,acomunhãoentreseusseguidores.Naceia,aoferendadovinhoedopãopassou,então,a serassociada, simbolicamente,aoderramamentodosangueeàentregadocorpodeJesusCristo.Assim,aIgrejaCatólicapassouacelebrarapassagemdopãoedovinhoparaocorpoesanguedeJesusCristo–atransubstanciação.AeucaristiaéumacelebraçãoemmemóriadamorteeressurreiçãodeCristo,éumbanquetepascal,emqueserecebeCristo.Eucaristiatambémestáassociadaàhóstiasagradaeacomunhãoeucarística.

Martins(1988)apontaque,atéoséculoIX,aEucaristia–aoferendadovinhomisturadoaopão–eraguardadanascasaseigrejasafimdesepodercomungardiariamente.Naigreja,destinou-seàsacristiainicialmente,mas,apartirdoséculoXIII,surgemnichosmóveisdeformasvariadas–ostabernáculos–paraaguardadaeucaristia.

OConcíliodeTrento(1545-1563)deuatençãoaosacramentodaEucaristiatantonoplanodoutrinalcomo no campo da prática cultural e celebrativa. O rito da elevação da hóstia e do cálice, após aconsagração,datadoscomeçosdoséculoXIII.Entretanto,oConcílioTridentinodefiniunormasrígidasparaocultoàEucaristia:aguardadeveriaser,exclusivamente,naigrejaenoaltar-mor;ênfaseaocultoatravésdepráticas deusopredominante a todosos fiéis, e de culto, comonaprocissãodoCorpodeDeus,paraserexpostoàpúblicaadoração.

Renovou-se, assim, “[...] o fenômeno devocional da visão da hóstia” (MARTINS, 1988, p. 342).Nesse sentido,háoobjetivode seassociaro sacrifíciodo filhodeDeuscomo ritualdamissa.EssaexpressãoreligiosaprovocoumaiorexposiçãoaocultoeucarísticoatravésdaexposiçãodoSantíssimo,nasprocissõescomoadeCorpusChristi,edenovasdevoções.

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Oculto àEucaristia assume espaço primordial no interior dos templos religiosos, assim como naspráticasreligiosaspúblicasenasfestasreligiosas–asprocissões.Asfestaseramcultosreligiososquesimbolizavamadevoçãoaos santos, aMariaea JesusCristo.SegundoCampos (2003)essaspráticastambémestavamrelacionadascomasdaPaixãodeCristo.

OConcíliodeTrentotambémestimulouoreferidocultoatravésdaproduçãodeimagensepinturas,paramaior entendimento dos novos dogmas da fé. Sendo assim, entendemos que as pinturas, as quaisiremos analisar, foram produzidas a partir de algumas premissas principais a serem tratadas: a) opropósitodecontribuircomosvaloressimbólicospós-tridentinodefendidospelasordensreligiosasnacolôniaportuguesa;b)aidentificaçãodamissacomaideiadosacrifíciodeJesusnacruz.

AsirmandadesdoSantíssimoSacramentonoBrasilcolonialNoBrasilcolonial,aatuaçãodasirmandadesdoSantíssimoSacramentocaracterizou-ascomoespaço

danobreza,seusmembrosfaziampartedeumaelite.Essasinstituiçõesdeleigosbuscavamaafirmaçãodo poder e prestígio social, que se ligavam, simbólica e religiosamente, ao culto do sacramento àEucaristia.

Paraoestudodas irmandades,devemosbuscar fontes sobreo funcionamentodaMesadeliberativa,sobre as práticas celebrativas e as relações estabelecidas com os artistas para a construção eembelezamentodos templos religiosos,que remontam,sobretudo,aoperíodoentreos séculosXVIIaoXIX.

Os integrantes daMesa definiam a construção e osmelhoramentos das dependências dos templos,comooembelezamento internoeexternodas igrejas àsquais a irmandadesdoSantíssimoSacramentoestavamintegradas.Paraalémdadiversidadedemodelos,técnicasemateriaisqueoartistapossuíaparaexecutar as obras de pintura e douramento nas igrejas, as irmandades estabeleciam exigências quedefiniamcomposições,coreseformasusadasemobjetos,assimcomomaterialdeboaqualidadeecomprazospré-estabelecidosparaaconclusãodasobrasreligiosas.

A construção dos programas iconográficos das pinturas passaria, então, pela influência de cenasbíblicas,martírios,êxtaseseexaltaçãomística,relacionadosàhistóriadavidadossantos,bemcomoàhistóriadasordensreligiosas.

Osritoslitúrgicosepara-litúrgicosvocacionadosàPaixãodeCristoerampromovidospordiversasirmandades,principalmente,adoSantíssimoSacramento,quetinha,nascomemoraçõesdaSemanaSanta,umespaçodedestaqueeostentação.SegundoCampos (2005),a irmandadedoSantíssimoSacramentoficava responsável pelo encargo das cerimônias da Quinta-feira Santa (Missa Solene e Adoração doSantíssimo). As festas do Triunfo da Eucaristia eram normatizadas como as procissões de CorpusChristi,segundooConcíliodeTrento.

Na Bahia colonial, o porto de Salvador projetava-se como escala para a Carreira da Índia, porcondições favoráveis geográficas, políticas, econômicas, entre os séculos XVI e XVIII. As baseseconômicas noRecôncavoBaiano e na cidade de Salvador, durante os séculosXVII eXVIII, foram,

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principalmente,acanadeaçúcar,otabacoeosescravos,permitindoodesenvolvimentodocomércioeaabsorçãodosprodutosmanufaturadospelaelitelocal.

As festas de exteriorização da fé católica promoviam uma emoção coletiva de religiosidade. Aspatrocinadoras dessas manifestações eram as Ordens Terceiras e demais irmandades religiosas queorganizavamessesespetáculostantonostemploscomoempraçaspúblicas.ElastambémpatrocinavamafeituradeimagensdeCristoedeoutrasfigurassantas,queeramutilizadasnasencenaçõesdosPassosdaPaixão de Cristo, sendo exemplos de uma dinâmica cultural mantida e difundida pelas elites e quepredominaramatémeadosdoséculoXIX.

AIgrejadaSédacidadedeSalvadorfoicriadaeconstruídagraçasaoapoiodaCoroaPortuguesaede nobres locais que investiram na decoração interior. Destacaremos, portanto, a participação daIrmandadedoSantíssimoSacramentonaconstruçãoeembelezamentodessetemplo.

Peres(1999)dedicou-se,em“AMemóriadaSé”,adiscorrersobrerelatosmarcantesdesdeacriaçãoatéàdemoliçãodaIgrejadaSé,ocorridaem1933.AIgrejadaSéfoiiniciadanoGovernodeTomédeSouza,massomentecomacriaçãodaDiocesedaBahia,em1551,quesedefineaconstruçãodeumaigrejamatrizdepedraecal.Asobrassearrastaramporlongosanos,consumindorecursosdaFazendaReal.O autor reporta-se a depoimentos de cronistas do séculoXVI –Gabriel Soares de Souza– e doséculoXVII–FranciscoPyrarddeLaval–dequeaIgrejadaSéjápossuíacertagrandezaentre1587e1610,mesmosemestaremdepéassuastorres(PERES,1999).

A participação de representantes da nobreza colonial também foi atestada na construção da capelaseiscentistadoSantíssimoSacramento,nointeriordaIgrejadaSé,porAlves(1957,p.13):

Selamentaçõeseprantostivessemocondãodereanimarascoisasbelasqueamãodohomem,inadvertidamente,destruiu.NósconcitaríamososamigosdaarteachorarparaquevoltasseaoseuantigoesplendoraCapelaseiscentista,queFelipedeMouraeJoãoPeixotoViegasmandaramconstruir,em1648,naSéPrimacialdoBrasil,emlouvoraoS.S.Sacramento,conformeosdizeresqueamesmaCapelaostentavaaoserdemolidaem1933.

SegundoSchwartz(1988),JoãoPeixotoViegasresidiahábastantetemponaBahiaeconheciaafundoa economiada região.Chegou àCapitaniadaBahia em1640 e logo teveparticipaçãono comércio earrecadação de impostos, foi vereador por três vezes e acabou por comprar o cargo de escrivão naCâmaradeSalvador,em1673.Galvão(1982)acrescentaqueViegasseenvolveuemaltose rendososnegóciosdeterrasnosertão,atravésdoMorgadodaCasadeSãoJosédasItapororocas.Elesurgeentreos irmãosdaSantaCasadaMisericórdiaeentreosdoadoresdacapeladoSantíssimoSacramentonaantigaIgrejadaSé.

ConformeAlves(1957),aIrmandadedoSantíssimoSacramentoprocedeu,nacapeladoSantíssimo,uma reforma no último quartel do séculoXVIII, e as alfaias seiscentistas foram desfeitas e utilizadasnesseintuito.FoiencomendadonovoretábuloeimagemnovadoCristocrucificado.

Nessecontexto,destacamosaencomendadapinturadequatropainéisparaacapeladoSantíssimodaSé,aopintorJoséTeófilodeJesus.Alves(1957,p.23)relatou:

Emjunhode1793,asobrasinternasdaCapelaestavamprontas,odouramentoinclusive,encontrando-seàspáginas82,83,verso,e84doLivro3ºdeAcordãosasquitaçõesdosartistasencarregadosdostrabalhos,sendodignadetranscriçãodosartistasencarregadosdos trabalhos, sendodignade transcriçãoaque se segue,pelo fatodenãohaverTermodeajuste

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com o autor: ‘Guitação q. dá oM.e Jozé Theofilo de Jesus daq.ª de 60$000 r.s preço por q. ojustou os quatro Paineisdacapela da Irmd.e soS.mo Sacram.to’. [...] ‘Perante mim Escr.m recebeo do Ir.º Thezour.º do Cofre Jozé SimoensCoimbraoM.e JozéTheofilode Jesusaq.tade secentamil r.spreçoporqueojustouapinturadosquatroPaineisque seachãonasparedesLateraesdanosaCapeladoSantissimoSacram.todaSécathedraleporestarpagoeSaptisfeitoasignouoprzentequitaçãonaB.aaos9deJunhode1793eeuHenriqueJozéLopesEscr.mactualdaMezaoescrevyeasignei.

Alves(1971),aotratardaIgrejadoSantíssimoSacramentodoPilardacidadedoSalvador,refere-seaos seus fundadores – Padre Pascoal Duram de Carvalho, JoãoHeitor eManoel Gomes – que eramdevotosdaVirgemMariaassentadasobreumpilaroucoluna.AIgrejafoielevadaaParóquia,duranteogovernodoArcebispadodeDomSebastiãoMonteirodaVide,cujaIrmandadedoSantíssimoSacramentoseconstituiuem1718,lograndoaaprovaçãodoseucompromissoem11deoutubrode1719.

Daconstruçãoinicial,aautoranãosedetém,masencontramosinformaçõesnosestudosdeOtt(1979)dequeaconstruçãodaIgrejadoSantíssimoSacramentodoPilar tenhaocorridoporvoltade1690.OautordestacaaIrmandadedoSantíssimoSacramentocomoresponsávelpelaconstruçãoeconservaçãodasigrejasparoquiais.Ott(1979)afirma,também,queasigrejasdoPilareSantanaforamedificadasporirmandadesdoSantíssimoSacramento,equeosaltareslateraisforamcedidosairmandadessecundárias.

NasprimeirasdécadasdoséculoXVIII,éconcluídaaconstruçãodacapela-moredasacristia.Entre1796-1797,a IrmandadedoSantíssimoSacramentoda IgrejadoPilarencarregouomestre-pintorJoséJoaquimdaRochadapinturade seisquadrospara a sacristia - quatropor cimado arcaz edoisparaseremcolocadosjuntoaolavabo.SegundoOtt(1979),Rochatambémdourouasmoldurasdosquadros,recebendoporseutrabalhodepinturaedouramentoumaquantiade368$000(368milréis).

Ambososconjuntospictóricosaquimencionados foramescolhidosparaonossoestudoeéatravésdosquaisqueanalisaremos,iconograficamente,atemáticadocultodaEucaristia.

IconografiasdocultoeucarísticonaspinturassetecentistasdeJoséTeófilodeJesusedeJoséJoaquimdaRocha

Campos(2003),aoanalisarapinturareligiosaemSalvador1790-1850,afirmaqueospintoreseosescultoreseramconsideradosprofissionaisliberaiseindependiamdalicençadaCâmaraparaexerceremsuasprofissões.Osartesãostinhamparticipaçãosocialesecolocavamemevidênciafrenteaosórgãosoficiaise,emconsequência,asordensreligiosaseramosprincipaisencomendantesdeobrasartísticas.

AaprendizagemdoofíciodepintorerafeitaatravésdaobservaçãoeimitaçãodemodelosdasobrasclássicasoudeobrasemvoganaEuropa,acessíveisaosartistas,principalmente,emformadegravura.Elesbuscavamaperfeiçãodasformasedatécnica,masesseexercícionãodeviaconsistirnumaservilimitaçãodasestampas.Tambémdeviamcorresponderaosanseioseàsexigênciasdosencomendantes.Ospintores que atuaram na Bahia, no século XVIII, tiveram inspiração em obras singulares de mestreseuropeusnaexecuçãodepinturasdostemplosreligiososbaianos.

A construção dos programas iconográficos passaria, então, pela influência de cenas bíblicas,martírios,êxtaseseexaltaçãomística,relacionadosàhistóriadavidadossantos,bemcomo,àhistóriadasordens,que,emsuamaioria,chegavamaoBrasilatravésdegravuras.

As pinturas setecentistas que estudamos estavam baseadas no conceito Tridentino do decoro, que

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pautavaacriaçãodeumacenabíblicaoudevidadesanto,exigindoquenenhumaimagemfossefalsaoudebelezaprovocativa.Osencomendantessecolocavamcomdiligênciaecuidadonaformacomqueasimagensdeveriamserapresentadas.

JoséTeófilodeJesus(1758-1849),aoladodooficioartístico,assumiucarreiramilitar,comoconstanoAlvaráde22dejulhode1788,emitidopeloGovernadoreCapitãoGeneraldaBahia,DomFernandoJosédePortugal,nomeando-oparaopostodePortaBandeirado4ºRegimentodeArtilhariadaCidadedaBahia(CAMPOS,2003).

Conforme assinalado, a Irmandade do Santíssimo Sacramento encomendou a àquele pintor quatropainéis para as paredes laterais da capela do Santíssimo Sacramento da Igreja da Sé em 1793. Odocumento citado por Alves (1957) apenas atesta a execução dos referidos painéis. Não restaraminformações sobre as características formais. Para Ott (1979) os painéis foram executados por JoséJoaquimdaRochaeforamindevidamenteatribuídosporMarietaAlvesaJoséTeófilodeJesus.

JoséJoaquimdaRocha([1737?]-1807)destacou-senapinturabaianadevidoaoseuprestígiosocialnasirmandadesmaisricasdeSalvador.OpintorJoséJoaquimdaRochatinhaumaoficinadepinturaefoi responsável por formar uma escola de discípulos que perdurou atémeados do séculoXIX. Entreesses, estava José Teófilo de Jesus. Entre as inúmeras obras realizadas por José Joaquim da Rocha,destacamosapinturadotetodaIgrejadaConceiçãodaPraia,emSalvador,realizadaem1773.

EmrelaçãoàspinturasdenossoestudoatribuídasaJoséJoaquimdaRocha,foramencomendadaspelaIrmandadedoSantíssimoSacramentodaIgrejadoPilaraomestre-pintor,paraasacristia,entreosanos1796-1797–quatropinturassobreoarcazeduasaoladodolavabo.

AspinturasexecutadasporJoséTeófilodeJesusparaacapeladoSantíssimoSacramentodaantigaIgrejadaSéestão,atualmente,sobaguardadoMuseudeArteSacradeSalvador,comexceçãodeumadas pinturas que se encontra naCatedral de Salvador. E as pinturas executadas por José Joaquim daRochaencontram-senasacristiadaIgrejadoSantíssimoSacramentodoPilar.

Ambos os conjuntos pictóricos estão organizados em quatro cenas, que denominamos: cena 1 -sacerdote judaico sacrificando cordeiro; cena 2 - sacerdote judaico segura o pão, adotando ritual daEucaristia;cena3-CristocomosapóstolosnaSantaCeia;cena4-Cristomortocomossímbolosdacrucificação.

Todavia,paraaanálise,escolhemosquatropinturas,duasreferentesàprimeiracenaeduasreferentesà terceiracena, istoé,nasequênciadanarrativa.PartimosdoconjuntodepinturasdeJoséTeófilodeJesus,porseromaisantigoatestadoporAlves(1957),ebuscamosobservarasdiferençasencontradasno conjunto de pinturas de José JoaquimdaRocha.Não foram encontradas estampas que por venturativessem servido de modelo para todo o programa iconográfico composto de várias cenas. Foramencontradas referências, em bibliografia específica, assim como em narrativas bíblicas, sobredeterminadosconteúdos referentesàEucaristia; à representaçãodoCordeiroPascal; à relaçãoentreoSacrifíciode IsaacedeJesusCristo.Também,encontramosalgumasgravurasqueservemdemodelosparciais para a análise das pinturas.Nesse sentido, a disposiçãodas pinturas obedece uma sequência

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narrativaqueenfatizaumamudançadeconceitoreligioso,nocaso,relacionadoaocultoàEucaristia.A cena 1 representa o sacerdote judaico, do lado esquerdo, iniciando o sacrifício do cordeiro, e

vemosumreligioso(daIgrejaCatólica),noladodireito,ainterpelaraação,apontandoemdireçãoaoalto, onde identificamos um grande círculo brilhante a irradiar luz nas costas de querubins, comorepresentaçãodeDeus.Nocantoesquerdo,identificamosumrecipiente(vaso)paracaptarosanguedoanimal. No canto inferior direito, há um homem segurando um chapéu (coroa tríplice). As pinturasexecutadasporJoséTeófilodeJesus(Fig.1)eapinturaexecutadaporJoséJoaquimdaRocha(Fig.2)assemelham-senadisposiçãodarepresentaçãodasfiguraseobjetos.

Figura1–CenadeJoséTeófilodeJesus,sobaguardadoAcervodoMuseudeArteSacradaBahia,Salvador/BA

Foto:FabianoOliveira,2017.

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Figura2–CenadeJoséJoaquimdaRocha,acervodaIgrejadoSantíssimoSacramentodoPilar,Salvador/BAFoto:FabianoOliveira,2017.

Todavia,asfiguras1e2diferemapenasnovestuáriodosacerdotejudaicoe,nafigura2,portrásdoreligiosodoladodireito,encontramosumhomemvestidodetúnicaazulcommantovermelhoaempunharumacruztripla,alémdetermaisdoisobservadoresnocantoesquerdo.Amesmacruzapareceportrásdoreligioso do canto direito na figura 1. Tanto a cruz tríplice quanto a coroa tripla fazem parte davestimentadeumPapaCatólico.Então,supomosque,emambasas imagens,opersonagemqueapontaparaocéuéoSumoPontíficedaIgrejaCatólica.

Comofoiassinalado,osacrifíciodeanimaisdeformacruentafoiutilizadoporváriasculturas,comouma forma de aproximação com entidades divinas – um dos significados estava em redimir-se dospecados.Essa prática foi passada do culto judaico para o culto cristão, estando registrado noAntigoTestamentodaBíbliaatravésdaexperiênciadeAbraão.

Segundo Martins (2002), o sacrifício de Isaac, filho de Abraão, foi considerado como umaprefiguraçãodosacrifíciodofilhodeDeus,doqualaEucaristiaémemorial.Oautordestaca,ainda,queanarrativadosacrifíciodeIsaacestabeleceparalelismocomanarrativadoCalvário.Eacrescenta:

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[...] Isaacéuma figuravivade JesusCristo,poisosdois subiramamontanhapara seremsacrificados.Enquanto Isaaclevaalenhaparaofogodosacrifício,Cristocarregacomacruzparasercrucificado.Apoiando-senanarraçãobíblica,osanto doutor descobre novo significado eucarístico: chegados ao lugar assinalado, Abraão edificou um altar, colocandoumaspedrassobreasoutrasepôslenhasobreele.OraestealtardoAntigoTestamentoprefiguraoaltarondesecelebracontinuamenteosacrifícioincruentodaEucaristia.(MARTINS,2002,p.183).

Figura3–OsacrifíciodeIsaac,pinturadeCaravaggio,ca.1603Fonte:Wikipedia.Disponívelem:<http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Michelangelo_Caravaggio_022.jpg>.

Afigura3éumapinturadeCaravaggio(1571-1610),artistabarrocoitaliano,querepresentaafiguradeAbraãosacrificandooseufilhoIsaac.SegundoMartins(2002),aiconografiadoSacrifíciodeIsaacapresenta omomento emque oAnjo detémo braço deAbraãoque se dispõe a sacrificar o seu filhoIsaac,segundoodesejodivino.Aofundo,noladodireito,apareceumcordeiroquevemaserasalvaçãodosacrifíciodeIsaac.

As figuras1 e2 tambémpossuem relação coma cenadaPaixãodeCristo, quando Jesus é levadopelosguardasdoTemplodeJerusalémparaencontrarCaifás,oaltosacerdotejudeudoSinédrio,queocondenoueoenviouaPôncioPilatose,na sequência,poressechefe romano, foicondenadoàmorte.Existemváriasestampas,muitasproduzidasapartirdoséculoXVI,queseinserememsériesdegravurassobreaPaixãodeCristoequerepresentamacenadacondenaçãodeCristoporCaifás.

Portanto,Caifás foi consideradoapessoaque entregou Jesus àmorte, ou seja, simbolicamente, elesacrificouocordeirodeDeusaoshomens.Nas figuras1e2,pode-se interpretarqueapersonagemàesquerdaéoAltoPadrejudeuCaifássegurandouminstrumentodecorte–umafaca–prestesasacrificarocordeiro.Porissoque,emambasasimagens,oPapa–altosacerdotedaIgreja–chamaaatençãodoaltosacerdotejudeu,alertando-oparaaluzcircularnocéu,objetoestequeseassemelhaaumahóstia,quesignificaocorpodeJesus,como,também,aluzdeDeus.

Essa cena faz a transição entre o Velho Testamento e o Novo Testamento. A identificação entre aimagem de Cristo e a do Cordeiro traz a continuidade entre o cordeiro pascal e o sacramento da

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Eucaristia. Essa representação permaneceu até o século XI quando, então, foi substituída por Cristocrucificadooumorto,conformetransformaçõesdesensibilidadequesefazemsentirnaEuropa.Buscou-se,também,darênfaseàsimbologiadeCristocomomanifestaçãodeDeus.Aspassagensdesofrimentoede condenação de Jesus Cristo na Galiléia (flagelação, coroamento de espinhos, crucificação) sãosimbolizadasnaSantaMissa,comoaPaixão,porém,deformamísticaenãocruenta.

Nasegundacenaaseranalisada,localizamosaimagemdeJesusCristoqueofereceahóstiaaosseusdiscípulos(Fig.4e5).Nocentro,JesusCristoestádepé,comvestedetúnicavermelhaemantoazul,dáa hóstia a um dos seus discípulos, que se encontra no canto inferior esquerdo em genuflexão(provavelmente, seu apóstolo Pedro, por ter maior importância na hierarquia da Igreja). Ao fundo,identificamos uma mesa, com uma toalha branca e um cálice, tendo em volta os discípulos comoreferênciaaSantaCeia.

Figura4–CenadeJoséTeófilodeJesus,sobaguardadoMuseudeArteSacradaBahia,Salvador/BAFoto:FabianoOliveira,2017.

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Figura5–CenadeJoséJoaquimdaRocha,acervodaIgrejadoSantíssimoSacramentodoPilar,Salvador/BAFoto:FabianoOliveira,2017.

Ascenas4e5sãosemelhantes:ambasinserem,alémdePedro,doisapóstolosemprimeiroplanoqueestãoreverenciandoJesusCristo.Oprimeiro,àesquerdaeatrásdePedro,estácomacabeçabaixae,nafigura5,comasmãosemoração;eosegundo,àdireita,ajoelhadoecurvadoaospésdoCristo.Jesuséidentificadocomumaauréolaemsuacabeça,representaçãodesantificação.

Nascenas, tambémsão localizadosos instrumentos litúrgicoscomoahóstiaeocálicedevinho.Acena confirma a tradição do culto da Eucaristia, ensinado por Cristo na Santa Ceia. Existem muitasiconografiasdaSantaCeia,amaisfamosaéacenadopintorrenascentistaLeonardodaVinci.

ConsideraçõesfinaisOs artistas buscavam atender a um gosto estético – predominante à época – nas encomendas das

imagensreligiosasditadaspelasirmandades.Asinstituiçõeslaicasvisavamocultopelorefinamentodogosto,atravésdapossededelicadosobjetosdecorativosdeconotaçãomísticaereligiosa.OconjuntodeimagensexecutadoporJoséTeófilodeJesus,paraacapeladoSantíssimoSacramentodaIgrejadaSé,eoconjuntode imagensexecutadoporJoséJoaquimdaRocha,paraasacristiada IgrejadoSantíssimo

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SacramentodoPilar,tinhamomesmoprogramaiconográfico,istoé,ocultoeucarístico.OsacramentodaEucaristia foi enfatizado tanto no plano doutrinal como no campo da prática cultural e celebrativa.OConcílio de Trento, manifestado no Brasil, principalmente, através das Constituições Primeiras doArcebispadodaBahia,estimulouoreferidocultoatravésdaproduçãodeimagensepinturas,paramaiorentendimento dos novos dogmas da fé.Nesse sentido, as pinturas analisadas foram produzidas comopropósito de contribuir para os valores simbólicos Tridentinos defendidos pelas ordens religiosas nacolôniaportuguesa.Alémdisso,deramênfaseàidentificaçãodamissacomoofocodocultoeucarístico.

Aspinturasserviamcomoimagensdedevoçãoedeculto,portanto,nãoerammaisaobradoartistaqueasexecutaram,masuminstrumentoparaaevangelizaçãocatequética.

OpresenteestudotrazumarevisãosobreoconceitodeEscolaBaianadePinturanamedidaemqueanalisa pinturas de José Teófilo de Jesus, encomendadas em 1793, e que são anteriores às pinturasrealizadasporJoséJoaquimdaRocha,entreosanos1796-1797,tidocomoomestredaEscolaBaianadePintura,porestudiososcomoOtt(1982).

No que diz respeito ao programa iconográfico das pinturas que analisamos, notamos que esse erafundamentado em cenas bíblicas, apesar da necessidade de se divulgar os valores simbólicos dasirmandades,queexpressavapoderpolítico-militarecapacidadeaquisitivaeconômicanaBahiacolonial.Sendo assim, as pinturas realizadas não diferem, significativamente, por terem sido realizadas pelo“discípulo”JoséTeófilodeJesusepelo“mestre”JoséJoaquimdaRocha.Entretanto,percebemostraçosformais característicos que sugerem a identidade de cada pintor. Ambos os conjuntos parecem quetiveramamesmareferênciaiconográficadeestampas.

Osconjuntosdeimagensrelacionadasaocultoàeucaristiapodemserconsideradoscomoimportantesacervosartísticosbarrocos,pelaexpressividadeatravésdeelementosdedoreflagelação,estratégiadepropagaçãodafécatólica,alémdeseremrepresentaçõesdasnormasTridentinas.

ReferênciasALVES,M.AcapeladoS.S.SacramentodaSéprimacialdoBrasil.Revistadeculturaedivulgação,Salvador,v.1,n.1,p.13-29,nov.1957.ALVES,M.IgrejadoPilar.Salvador:PrefeituraMunicipaldeSalvador,1971.CAMPOS,A.AspectosdaSemanaSantaatravésdoestudodasIrmandadesdoSantíssimoSacramento:culturaartísticaesolenidades(MinasGeraisséculosXVIIIaoXX).RevistaBarroco,BeloHorizonte,v.19,p.71-88,2005.CAMPOS,M.F.H.ApinturareligiosaemSalvador,1790-1850.2003.575f.Tese(DoutoradoemHistoriadaArte)–FaculdadedeLetras,DepartamentodeCiênciaseTécnicasdoPatrimônio,UniversidadedoPorto,Porto,2003.EUSÉBIO,M.F.Aapropriaçãocristãdaiconografiagreco-latina:otemadoBomPastor.Mathesis,n.14,p.9-28,2005.Disponívelem:<http://z3950.crb.ucp.pt/biblioteca/Mathesis/Mat14/Mathesis14_9.pdf>.Acessoem:22fev.2012.GALVÃO,R.A.OspovoadoresdaregiãodeFeiradeSantana.Sitientibus,FeiradeSantana,BA,n.1,p.25-31,jul./dez.1982.

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MARTINS,F.Estudoiconográficodoretábulo-sacráriodacapeladoSantíssimoSacramentodaIgrejadaMatrizdeCaminha.RevistadaFaculdadedeLetras-História,Porto,v.5,n.2,p.337-366,1988.Disponívelem:<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2115.pdf>.Acessoem:22jan.2011.MARTINS,F.SpeculumHumanaeSalvationis:estudoiconográficoeiconológicodosacráriodepratadaSédoPorto.RevistadaFaculdadedeLetras:CiênciaseTécnicasdoPatrimônio,Porto,v.1,n.1,p.173-202,2002.Disponívelem:<http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/artigo3551.pdf>.Acessoem:10fev.2012.OTT,C.AEscolaBahianadePintura-1764-1850.SãoPaulo:Raízes,1982.OTT,C.AtividadeartísticanasigrejasdoPilaredeSant’anadacidadedoSalvador.Salvador:UniversidadeFederaldaBahia,1979.PERES,F.R.MemóriadaSé.Salvador:SecretariadeCulturaeTurismodoEstado,1999.RIEFF,S.G.Diaconiaecultocristão:resgatedeumaunidadeessencialesuasconsequênciasparaavidadascomunidadescristãs.2003.371f.Tese(DoutoradoemTeologia)–InstitutoEcumênicodePós-GraduaçãoemTeologia,SãoLeopoldo,2003.SCHWARTZ,S.B.Segredosinternos:engenhoseescravosnasociedadecolonial1550-1835.SãoPaulo:CompanhiadasLetras,1988.

[47]EsseartigofoipublicadonosAnaisdoIVEncontroInternacionaldeHistoriaColonial(2014).

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DASICONOGRAFIASÀSPRODUÇÕESARTÍSTICASERELIGIOSASDOLÍDERMESSIÂNICOANTÔNIOCONSELHEIRO

JadilsonPimenteldosSantos

AculturaencetadapelaContrarreforma,apartirdoséculoXVI,sefezbastanteabrangentenaItália,e,sobretudo,nospaísesdaPenínsulaIbérica.NaAméricaPortuguesachegoucomumcertoatraso,esefezmaispresente,emprimeiromomento,nascidadesmaisprósperasdolitorale,posteriormente,nasvilaserguidas pelo surto do ouro e pedras preciosas. Se nesses núcleos urbanos a sua inserção se faztardiamente,nosrincõesmaisremotosdoBrasilavançalentamenteaté iníciodoséculoXX,mesmojátendoocorridoaquiaRomanização.

Nesseterritóriooprocessodecolonizaçãofoimesmomuitolento;eelesóocorrerágraçasàexpansãodapecuáriaeaoscaminhosfeitospelosbandeirantes,quandodesuasentradasebandeiras.Navozdealguns historiadores, até início do séculoXX, oBrasil ainda estava a olhar para aEuropa, dando ascostasparaosertão.

Nosertão,esseprocessode imbricamentoculturaldar-se-ádeumaformamais livre,pois,dadoàsdistâncias,elongedaInquisição,ocorrerásempreumhibridismomistodecatolicismo(cristianismodasorigens)efetichismodospovos indígenaseafricanos.Embora,desdeofinaldoséculoXVII,algumascompanhias e ordens tenham adentrado o sertão do norte da Bahia e Sergipe, tais como: jesuítas,franciscanos,carmelitas,e,maisadiante,capuchinhoseoratorianos,fundandoaldeamentosemissões,jánofinaldoXVIII,esseterritóriobrasileiro,emtermosdeassistênciaespiritualcontinuavanomaisamploesquecimento.

SãodoséculoXIXasmissõesmaiseficientes,nessesrincões.NonortedaBahia,amaisefetivaseráados Capuchinhos, que pautou seumister na prática das missões ambulantes cuja rigidez lembrava aspráxis combativas articuladas a partir do Concílio de Trento. Essas missões foram também muitopopularesentreopovodeorigemcamponesae,atravésdoajuntamentodessasmassas,oscapuchinhosorganizavammutirões para a restauração e edificações de igrejas, açudes, santuários sagrados, dentreoutros.

Asmissões,emboraocorressemesporadicamente,geralmentedecincoemcincoanos,movimentavamsobremaneira as vilas de antanho. Nesses longos intervalos, o povo das aldeias ficava desassistidoespiritualmente. Sendo assim, para sanar tamanho obstáculo, alguns clérigos passam a incentivar apráticadosbeatos,quealémdepediremesmolasparaamelhoriadascousassagradas,tambémpodiamtirarrezas.Osbeatosqueporsuavezsedestacassemnodecorrerdostempos,poderiamportarbordão,trajarummantoedarconselhos.Surgia-se,dessaforma,osconselheiros.

OofíciodosbeatosmessiânicosfoibastanteprolíficonaszonasmaisáridasdonordestedoBrasil,sobretudonoCeará,RioGrandedoNorte,Paraíba,Pernambuco,SergipeeBahia.Nessaszonas,muitos

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beatosconselheirosarticularamseusideais,porém,sóAntônioConselheiroteveseunomegravado,deformaexemplar,nosanaisdahistória.

Nas suas andanças pelos rincões mais ermos dos sertões do nordeste, ficou concretizada a suainclinaçãoespiritualdeperegrino.Obeatoandarilho,aolongodemaisdevinteanos,desenvolveuumaobrareligiosacomteorpolíticoesocial,acumulouadeptoseseguidores,foiadmiradoerespeitadopelasgentesmaishumildes,foiprotegidoecortejado,temidoecombatidopelasautoridadesreligiosasecivis.

Conselheironãoera,entretanto,oseusobrenome,esimumaespéciedecargodegrauelevado,entreahierarquia religiosa informal daquele tempo, que este acumulou.Havia os romeiros, os beatos, e, porúltimo,osconselheiros,queporsuavez,sediferenciavamdospadres.

Osromeirosviviamperegrinandoaoslugaressantos,pagandopromessasevisitandoinúmerasigrejas.Aquelesquemaissededicavam,tornavam-sebeatosetinhamodireitodeusarummantodecorazuloubranco. Os beatos arrecadavam, através de esmolas, donativos para ajudar nas obras das igrejas, ebuscavamumviverpautadonasvirtudes.OConselheiro,porexemplo,levavaumtipodevidainspiradonossantos.Osbeatosqueobtivessemmuitosseguidorespodiamdarconselhos,fazerpregaçõeseportarumcajado,tornando-se,destamaneira,umconselheiro.

ObeatoConselheiroesuasiconografiasO profeta sertanejo Antônio dos Mares, também conhecido como Irmão Antônio, Santo Antônio

Aparecido, Antônio Conselheiro, Santo Antônio Conselheiro, e, finalmente, Conselheiro, nasceu nocoração cearense, na antiga Vila Nova do CampoMaior do Quixeramobim, atual Quixeramobim. Nainfância, ele seria mais conhecido, no seio de sua gente, como Antônio Vicente. Já na idade adulta,lograria,noseuBeloMonte,oepítetodeBomJesusConselheiro.

Acumulando em seu currículo mais de 20 anos de peregrinação pelos sertões do Nordeste, foiconclamando as mais variadas gentes para o seu mister, tendo agregado em seu séquito inúmerosartífices. Os nomes mais pródigos, no concernente aos artífices da grei conselheirista foramManuelFaustino eAntônio Feitosa, sendo o primeiro, o responsável por obras importantes tais como: talhas,portasecruzeirodaIgrejadoBomJesusdeCrisópolisetalhaecruzeirodaIgrejadeSantoAntôniodoBeloMonte.

Faustino, sendo um fiel entalhador do beato profeta, não poupou esforços ao representar umagramática ornamental que nas mais variadas vezes agradava e exaltava o seu líder. Desse léxicosobressaíamas flores semprepresentesnosaltareseportas,bemcomoas iniciaisdonomeque, tantopodia ser Antônio Vicente Mendes Maciel Conselheiro (AVMMC), ou simplesmente, Bom JesusConselheiro(BJ).NacapeladoSantoCruzeirodeTucanovamosencontrarasiniciaiscomomonogramaseadequandoàformataçãodotopodofrontispício.ÉumagramáticaqueextrinsecamentedizacercadaBíblia, daMissãoAbreviada, dasHorasMarianas edoLunárioPerpétuo; tãopropagados a partir doConcíliodeTrento.IntrinsecamenteabordaaspectosdelouvaçãoaobombeatodoQuixeramobim.

Com a obtenção de títulos variados, Antônio Conselheiro passa a ser comparado aos personagens

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sagrados.Paraopovosertanejo,AntôniodosMaresétambémSantoAntônioquenossertõesapareceu:SantoAntônioAparecido.Nessesrincões,viam-nosemelhanteaAntôniodePádua.

Outrosantotambémevocadopelosconselheiristas,ecomparadoaobeato,foiSãoJoãoBatista.Alémdeperegrinarempelodesertoesealimentaremparcamente,osseusfiéisafirmavamqueAntônio,talqualJoãoBatista,possuíaumcarneirinhodeestimaçãoqueeratransportadonosbraços,assemelhando-seàiconografia de São João. Outro aspecto mencionado é o fato de o profeta do Belo Monte ter sidodecapitadodepoisdemorto,motivoparaossertanejosoconsideraremummártir.EssasparticularidadessãoclaramenteobservadasemvariadasobrasdoConselheiro,sobretudoemsuaarquiteturareligiosa.

Asdevoçõesdeixadaspeloconselheirosobrevivematéhoje.Semantémvivasecomunicamapalavraproclamadadiuturnamentepelobeato.Dentreosmunicípiosqueaindapreservamtodaessa ritualísticacita-se:Chorrochó;comadevoçãoaosenhordoBonfim;Crisópolis, comadevoçãoaoBomJesus;eCanudos,comadevoçãoaoSantoAntônio.Asimagensdosoragosdeixadasnessascidades,emespecialasdoBomJesus,sãomuitoveneradasnasfestasdomêsdejaneiroecomunicamnasuafeituraasmarcasdaartepopularmescladasàsinfluênciasdobarroco.

As imagens dos Cristos crucificados tiveram ampla aceitação entre os sertanejos liderados peloConselheiro,emboraemmeadosdoséculoXIX,comaRomanização,aigrejajáenfatizasseaimagemdoCristoSoberano.Todavia,nogrande sertãodoConselheiro, éoCristoDolorosoque se sobressai empredileção.

Navozdemuitoshistoriadores,issosedeveaofatodeohomemsimplesdocampo–osertanejoqueviviaemregimedediásporaeespoliadopeloslatifundiários–seidentificarcomoCristoMartirizado.Énesseíconequeosertanejoseenxerga(Fig.1e2).

Figura1–BomJesuspadroeirodeCrisópolis-BA,localizadonaIgrejadoBomJesus,Crisópolis-BA,autoriadesconhecida,séculoXIX

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Foto:JadilsonPimenteldosSantos,2010.

Figura2–SenhordoBonfimpadroeirodeChorrochó-BA,localizadonaIgrejadoSenhordoBonfim,Chorrochó–BA,autoriadesconhecida,séculoXIX

Foto:JadilsonPimenteldosSantos,2010.

Adepto do catolicismo das origens, Antônio Conselheiro carregava em suas pregações fortesinfluênciasdaMissãoAbreviada,dasHorasMarianas,doLunárioPerpétuoedaBíbliaSagrada.Muitosdosexemplosaprendidos–deumavidaregrada,damortificaçãodocorpoedaabominaçãoaosobjetosdeluxo,sãoextraídosdesseslivrossagrados.

A Bíblia Sagrada que circulou no sertão do oitocentos era ricamente ilustrada com gravuras queservirampara instruir e evangelizar, e tambémcomo temade sua gramática ornamental empregada naarquiteturareligiosa,bemcomonasobrasdetalhaedemaisvertentesartísticas(Fig.3).

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Figura3–AAnunciaçãoFonte:Galvão;Peres,2002,p.127.

A Missão Abreviada também trazia algumas ilustrações e oferecia em seu conteúdo um tônusrevivalista: medievalista e barroquizante (Fig. 4). Conselheiro, nas suas pregações, dotado de umaoratória inflamada, deixa clara a predileção pelos temas dosmartírios e sacrifícios, evidenciados naestéticabarroca,sobretudonadevoçãodeclaradaaoBomJesus.

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Figura4–FolhaderostodaMissãoAbreviada,séculoXIX,PortugalFonte:ArquivodaBibliotecaNacionaldeLisboa.

Nesseínterim,Conselheirovaiforjandoumaestéticaondeabuscapelosaspectosdolorosossãoumaconstante (feísmo).Emseussermõescombatiaabeleza,o luxo,ouqualquer tipodevaidade.SegundoCunha(2002,p.161),AntônioConselheiro:

ÉumdissidentedomoldeexatodeThemison.Insurge-secontraaIgrejaRomana,evibra-lheobjurgatórias,estadeandoomesmoargumentoqueaquele:elaperdeuasuaglóriaeobedeceaSatanás.EsboçaumamoralqueéatraduçãojustalineardadeMontano:acastidadeexageradaaomáximohorrorpelamulher,contrastandocoma licençaabsolutaparaoamorlivre,atingindoquaseàextinçãodocasamento.Ofrígiopregava-a,talvezcomoocearense,pelosressaibosremanescentesdas desditas conjugais. Ambos proíbem severamente que asmoças se ataviem; bramam contra as vestes realçadoras;insistem domesmomodo, especialmente sobre o luxo dos toucados; e – o que é singularíssimo – cominam, ambos, omesmocastigoaestepecado:odemôniodoscabelos,punindoasvaidosascomdilaceradorespentesdeespinho.Abelezaera-lhesa face tentadoradeSatã.OConselheiroextremou-semesmonomostrarporela invencívelhorror.Nuncamaisolhouparaumamulher.Falavadecostasmesmoàsbeatasvelhas,feitasparaamansaremsátiros.

AntônioVicenteMendesMacielConselheiro:doinício,noCeará,asprincipaisinfluênciasecontaminaçõesArespeitodosanosiniciaisdesuajuventudenosdizMontenegro(1954,p.11):

Antôniorevelava-semuitoreligioso,morigeradoebom,respeitosoparacomosvelhos.Protegiaeacariciavaascrianças.Sofriacomasrusgasentreopaieamadrasta.Consideravam-noapéroladoCeará,porserummoçosério, trabalhador,honesto e religioso.Divertia-se pouco [...] nosmomentos de folga lia oLunárioPerpétuo, aPrincezaMagalona,CarlosMagnoeoutroslivrosquecirculavamnossertões.

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Suainfânciafoipontuadaportragédiasedificuldadesdetodaordem.Aoscincoanosdeidadeficouórfãodemãeenosanosseguintesamargurouasviolênciasimputadaspelamadrasta.Foraminúmerasassuasdificuldades.Aos25anos,estandoórfãodepai,seviuobrigadoacuidardocomércio,dasirmãsedamadrastaqueaessaalturafoiacometidaporafecçõesmentais.Depoisdecasarasirmãseliquidarasdívidasdocomércio,contraiumatrimônio,noanode1857,comBrasilinaLaurentinadeLima,naMatrizdeQuixeramobim.SegundoregistrodoArquivodoArcebispado,Quixeramobim,Casamentos,Livro4,p.53(apudPORDEUS,1949):

Aossetediasdomêsdejaneirode1857,nestamatrizdeQuixeramobim,pelasoitohorasdanoite,depoisdepreenchidasasformalidades de direito, assisti a receberem-se emmatrimônio e dei a benção nupciais aos meus paroquianos AntonioVicenteMendesMacieleBrasilinaLaurentinadeLima,naturaisemoradoresnestafreguesiadeQuixeramobim,estafilhanatural de Francisca Pereira de Lima e aquele filho legítimo de Vicente Mendes Maciel e de Maria Joaquina doNascimento, ambos já falecidos, sendo dispensados do impedimento do terceiro grau atinente ao segundo, deconsanguinidadelateraldesigual;foramtestemunhasJoséRaimundoFaçanhasePedroJosédeMatos;doqueparaconstarmandeifazeresteassentoqueassino.OVigáriointerinoJoséJacintoBezerra.

Como se pode observar, foi a IgrejaMatriz doQuixeramobim a primeira referência de edificaçãoreligiosanavidadeAntônioVicente.NamatrizdeAntônioDiaselerecebeuosacramentodobatismo,casouecumpriutodasassuasobrigaçõesreligiosas.

Na voz do escritor Macedo (1978, p. 20), Antônio amava a solidão, pois, era um fruto dela.Acostumara-secomamorte,quepassavaconstantementeatravésdoscortejosfúnebresnaportadesuacasa, onde homens emulheres, beatas e velhas oravam na rua, ecoando em sons pungentes, confusos,palavrasinaudíveis,apagadas,ecoandonanoite,litânica,esvaídaemladainhas.

Segundo o autor citado,Antônio cresceu e viveu à sombra da capela do capitão português, aquelacapelaqueprojetavanomardanoitesertaneja,embrancanudezdeparedescaiadas,veladebarcoemnavegação(Fig.5).

Figura5–IgrejaMatrizdeSantoAntôniodeQuixeramobimdeAntônioFerreiraDias,SéculoXVIII

Fonte:Pordeus,1955.

Foiessecontexto,permeadodereligiosidadesemisticismos,umdosaspectosdeinfluêncianavida

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devotada à religião, posteriormente. O seu mundo, até à idade adulta – antes do casamento, secircunscreviaàsimediaçõesdaviladoQuixerambim,comalgumasincursõespelasvilascomerciaisdoCeará:Aracati,Sobrale,maistarde,Icó.

Sobre a capela da Vila do Quixeramobim situada àsmargens do Rio Rinaré nos informaMacedo(1978,p.23):

AmortalhadonohábitodeSãoFrancisco,assimquispartiroCapitãoAntôniodesteValedeLágrimas,vestidodefrade,napobrezadeumfranciscano.Mas,emvidaquishonrarsobremodoasuaféreligiosa,erigindocapeladepedracal,comtrêsarcosno frontispícioedoisaltares,porhábeismãosdeoficiaisvindosdoReino,não reparandonocusto,ebemornada,com damasco, patena, cálice, colher de prata, imagens e alfaias [...] Antônio Dias Ferreira, cristão valente do Porto,sonhava transformar em grande o bastante para alojar opas, [...] brandões, cajados de prata, cruzes alçadas, naveiluminadaporfortescandeiasdeazeiteedefuntosamortalhadosemalvas[...]Eopisoatulhadodeles,osmortos,umavezsepultados,debaixodasencomendaçõesdaIgreja.UmacasadeDeuscomodeveraser:equeosgados,carrosdejuntaecavaleirosnão lheviessemafrontar o templo, ao transitarempelopatamar, no espaçovazio entre fachada e o cruzeiro!Comaquelecapricho,féepaciênciadotempo,ocapitãodoQuixeramobimmandoufabricartrêssinos.Porém,umdeseusalveneiros,mestreAntônioMendesdaCunha,acusadodebigamia,numautodefédainquisição,foicondenadoaodegredoeaçoites.

Acerca desta edificação religiosa discorreu também o jornalista e cronista cearense do oitocentos,JoãoBrígido. Em seu famosoCeará: homens e factos ele biografa pela primeira vez sobre AntônioVicenteesuafamília,alémdecontarváriasoutrashistóriasdessaprovíncia.

Amatriz deQuixeramobim, construcção no gosto architectonico reinante no fim do século passado, dá perfeitamente améta,aquehaviaatinggidoaarteentreoscolonosdoCeará.Aessetemplo,aoqueparece,precedeuumacasaemfrente,ora em ruínas, naqual residiopor venturao erector dessemonumentoda fé e até à suamorte o tabelliãoLobo [...]AmatrizdeQuixeramobimconcluiu-seem1770,25annosapósacreaçãodafreguezia.Jáexistiaumapequenaigreja,queograndeedifícioaproveitou,não,passandooactualdeumaremonta[...]Oricodevoto,construindoaquelletemplo,pôde-sedizer–creouaquellacidadeattrhaindo-lheosmoradores.Efé-locomempenhoemagnificência,atémandandovirartistasdePortugal.Asobras,quetêmresistidoàacçãodotempo,provamoesforçoeoempenho,queeleconsagrouàfundaçãodessemonumentochristão.Foiaquillo,noseutempo,oqueaarteproduziademelhornoCeará,–umaigrejavastaebemdecorada, sem embargo do pouco que veio a ser na actualidade, salvo quanto à solidez. A matriz de Quixeramobim,hermeticamentefechadaecomassoalhoslateraes,tornou-senocorrerdosannos,umaigrejamalassombrada.Équealisefaziaainhumaçãodoscadáveresdafraguezia,comodecostumeemtodoCeará.(BRÍGIDO,1910,p.151-155).

AfiguracarismáticadeAntônioVicentesobressaía-senãoapenasnosarredoresdesuacomunidade.SuainfluênciasefazianotaremtodaBahiaeatémesmoemoutros lugaresdoNordeste.Aposiçãodeliderançadiantedetãoavultadonúmerodeseguidoresconcedeu-lheumaautoridadesemprecedentes,ecomisso,possibilitou,também,umaameaçarealparaosrepresentantesdopoderlocal.

NossermõesdeAntônio,percebe-seumlíderreligiosomuitodiferentedofanáticomísticoretratadopor Euclides da Cunha, um sertanejo de tendência messiânica, com posições políticas e religiosasvinculadas a um catolicismo devocional permeado de crendices, recorrente entre os pregadores doNordeste doBrasil.Tal postura pode ser comprovada em suas prédicas.Nesses escritos, o peregrinomostrava-seumconhecedordocristianismodasorigens.

“...Em1896haderebanhosmilcorrerdapraiaparaocertão;entãoocertãovirarápraiaeapraiavirarácertão.Em1897haverámuitopastoepoucorastoeumsópastoreumsórebanho.Em1898haverámuitoschapéusepoucascabeças.Em1899ficarãoaságuasemsangueeoplanetahadeapparecernonascentecomoraiodosolqueoramoseconfrontaránaterraeaterraemalgumlugarseconfrontaránocéu...Hadechoverumagrandechuvade estrellas e ahi seráo fimdomundo.Em1900 se apagarãoas luzes.DeusdissenoEvangelho:eutenhoumrebanhoqueandafóradesteapriscoeéprecisoquesereunamporqueháumsópastoreumsó

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rebanho!Como os antigos, o predestinado atingia a terra pela vontade divina. Fora o próprioCristo que pressagiara a sua vindaquando na hora nona, descançando nomonte dasOliveiras umdos seus apóstolos perguntou: Senhor! para o fimdestaedadequesignaesvósdeixaes?Elle respondeu:muitos signaes na Lua, no Sol e nas Estrellas. Hade apparecer umAnjomandado pormeu pae terno,prégandosermõespelasportas,fazendopovoaçõesnosdesertos,fazendoegrejasecapellinhasedandoseusconselhos...E no meio desse extravagar adoidado, rompendo dentre o messianismo religioso, o messianismo da raça levando-o àinsurreiçãocontraaformarepublicana:Emverdadevosdigo, quando as naçõesbrigamcomas nações, oBrazil comoBrazil, a Inglaterra coma Inglaterra, aPrussiacomaPrussia,dasondasdomarD.Sebastiãosahirácomtodooseuexercito.Desdeoprincípiodomundoqueencantoucomtodoseuexercitoeorestituioemguerra.Equandoencantou-seafincouaespadanapedra,ellafoiatéoscoposeelledisse:Adeusmundo!Atémiletantosadoismilnãochegarás!NestediaquandosahircomoseuexercitotiraatodosnofiodaespadadestepapeldaRepublica.OfimdestaguerraseacabaránaSantaCasadeRomaeosanguehadeiratéájuntagrossa...(CUNHA,2002,p.162).

Como informou Honório Vilanova, Antônio tinha uma missão: a de erguer templos. Os primeirosjornaisdaBahia,aindanoanode1874,quenoticiaremsobreAntônioConselheirotratamdessaquestão.Oquesesabeéquenaépocadesuasperegrinações,noperíodoquevaide1874a1893,AntônioVicenteergueuinúmerasigrejas,reformoucapelas,fundoucidadeseconstruiucruzeiroecemitériosnumavastaáreadossertõesdaBahiaeSergipe.

AntônioConselheiroeoseumisterprincipal:aedificaçãodeobrassacrasNos rincões mais distantes do país, mais especificamente no interior do Nordeste, o modelo e

organizaçãodotrabalhoartísticosearticulavadeformadiferenciadadasgrandesáreasurbanasdolitoraledoscentrosmaisprósperos.

Navastazonadeabrangênciadosemiáridonordestino,depreende-sequeasobrigaçõesedevoçõescatólicasnãoeramcontempladasnasuatotalidade.Raraseramasexecuçõesdeobraspias,bemcomoaorganizaçãodetrabalhosdecaráterartístico.

Nesseínterim,muitosfiéisficavamanossemassistiraumamissa,receberossacramentosetc.,poisgeralmente os sacerdotes, ai, eram escassos. Esses rituais só se realizavam, quando por ocasião dasmissões, os capuchinhos e franciscanos se abalavam das zonasmais longínquas, adentrando o sertão,paraadisseminaçãoereforçodafé.ComoinformaBenício(1997,p.62-63)

AsSantas-Missõesattrahíam,ondeeramlocalisadas,curiososdeláguasdedistancia.Aaldeiadesenvolvia-se,povoava-seemaistardeformavamasvillasecidadesdenossascostasesertõesbrazileiros.Pelostemposadiantes,bandosdemongescapuchos e de S. Francisco tomaram aos hombros a tarefa da doutrinação dos campos. Eram estes em maioriaextrangeiros,italianostonsurados,delegadospelascommunidadesparaensinaremareligiãoaospovos.[...]Avidaerrantedestesregularesleigosquearrastavamatrazdesibandosdefamília,incutiunoorganismodossertanejosapredilecçãoquetempelasviagens,pelasaventurasepelomaravilhoso!

Foi, todavia, atravésdoespíritodessasmissõesquecertasordens religiosas,devidoà carênciademissionários e clérigos, tiveram que formar, dentre os catecúmenos, algumas ordens de irmãos leigoscomlimitadospodereseclesiásticos;muitosatítulodeesmolaremparaaconstruçãodeobraspias.Indo,alguns,alémdesses limites impostospela igreja,poismuitos,alémdeevangelizarem,aproveitavamas

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aptidõesdascomunidadesparaosofícioseartesmanuais,aplicandoacaridadeparaolevantamentodepovoados,templos,dentreoutros.

É, contudo, dentro dessa sistemática, aprendida com a prática dos missionários católicos, que, nasegundametadedoséculoXIX,AntônioVicenteMendesMacieldeixouasterrasdoCearáeempreendeusuaobracaritativaemissioneira.

NosseusdecêniosdeerrânciaspelossertõessãoinvariáveisasnotíciassobreasobrasdoConselheiro,queconvocavaaspessoaseaslideravanamissãoqueseimpuseradeconstruirouconsertarigrejas,cemitérios,açudes.Aforaoexemplodopadre Ibiapina, era usual, embora pouco lembrado, que as incursões das SantasMissões se devotassemnão apenas aoreavivamento espiritual e aministrar sacramentos,mas tambémaobraspias, congregandoapopulaçãopara edificarourepararigrejas,cemitérios,açudesetanques,estradasecalçadas.Esseladopráticoeramaisummotivopeloqual,emboraconsiderassemoConselheiro perigoso, o acolhiam com favor nas várias localidades por onde passava.Em suma, haviapadresqueotoleravamporcausadasvantagensqueaIgrejaauferia,eopodercivilapreciava-oenquantocapatazdeumalegiãodemão-de-obragratuita.(GALVÃO,2001,p.35-36).

AsterrasdoItapicuru,ondeestavamsituadasasfazendasquemaistardedariamorigemaoarraialdoBomJesus,foramaportadeentradadobeatonaBahia.Nessaregião,quefoicentralnaconjunturadeCanudos, ele encontrou o fermento principal para aquilo que tanto almejara: o trabalho baseado noauxíliomútuo.

Por ser essa uma área que oferecia certo dinamismo social no final do oitocentos, é a quemelhorpropiciaráosrecursoseferramentesparaarealizaçãodeumadesuasmelhoresobras:otemplodoBomJesus.

HomenageouofilhodeDeusfundandooarraialdoBomJesus,nasproximidadesdeItapicuru.Todostrabalhavamsoboseu comando, em ritmo lento, mas constante, despreocupados com o tempo, erguendo casas de taipas em mutirão,pensandoemseraquelaa terraprometida.Dedicaramatençãoespecialàconstruçãodaigreja,opessoalmaishabilitadoenvolvidonaobra,núcleodoarraial,partemais importantedequalquercomunidadecristã.Eenquantouns trabalhavam,outros saíam pelos arredores, visitando fazendas, pedindo esmolas, retornando ao arraial do Bom Jesus abarrotados decereais, gado bovino e caprino, frangos e porcos em quantidade, alimentação indispensável para os obreiros de Deus.(CANÁRIO,2005,p.167).

Dantas(2007,p.24)asseveraqueessaregião,cujopovoamentoremeteaoséculoXVII,apresentava,naquelemomento, grande diversidade social e econômica.Ao lado de aldeias franciscanas e jesuitasconviviamengenhos,casadefarinhaeváriasroçasdesubsistência,sendoqueo trabalhonasvariadaspropriedades, posses e ofícios especializados eram realizados atémeados do séculoXIX, por livres,libertoseescravos.

Posteriormente,apresençadoConselheiroeseuséquito,queaessaalturaaumentavacadavezmais,provocou,nasociedadelocal,variadascontendas.Umadessasexplicações,dentreoutras,foidevidoaohábitoqueseugrupotinhadepraticarosrituaiscristãosfequentemente:oterçonofimdanoite,oofícionamadrugadaetc.

Calasans (1997) nos diz que a cantoria dos rezadores desagradou a população da vila. Surgiramreclamaçõesque foramapresentadasaodelegadoquandoestevoltoudesuapropriedade,numsábado,ondeseencontravanodiadachegadadogrupoconselheirista.Taldelegado,cujonomeeraBoaventuraCaldas,no intuitodefazervalerasuaautoridadenãoobteveêxitos frenteaoConselheiro.Asoraçõesprosseguiramfazendocresceronúmerodeparticipantes,sobretudo,depoisqueovigáriodafreguesia,

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AgripinodaSilvaBorges,criticoudopúlpitoaatitudedodelegadoquerendosilenciarosrezadores.Para o autor, o sacerdote tinha outros interesses, pois no agrupamento do futuroBom Jesus existia

pedreiros,carpinteirosemestresdeobra,cujostrabalhosovigárioqueriaaproveitarparaasuaigreja,oquecertamenteteriaalcançado,poisumbomrelacionamentoentreovigárioeobeatoseconservariapormuito tempo.Nessa área, quando do término de uma igreja, o beato geralmente deixava uma de suasmarcas, usualmenteumade suas frases prediletas.Aí na regiãodo Itapicuro, na Igreja doBomJesus,encerra-seopartidoornamentaldessaobra,comumpequenomedalhãoquearremataoarcocruzeiro.Foicaprichosamenteesculpidoemmadeiraepintadonascores:azul,rosaedourado.Estáalíresistindoaotempoeaoesquecimento,econclamandoatodosparaumareflexãoprofunda.É,entretanto,maisdoqueum item decorativo, pois carrega em si uma mensagem grandiosa, proclamada diuturnamente peloConselheiro:SÓDEUSÉGRANDE(Fig.6).

Figura6–Medalhãodoarco-cruzeirodaIgrejadoBomJesusdeCrisópolis,autoriadeManuelFaustino,séculoXIXFoto:JadilsonPimenteldosSantos,2010.

SegundoOtten (1990,p.152), elapode resumiro significadode suaspregaçõese construções.Noentendimentodoautor,essasconstruçõesnãosãoapenasatividades.Elasfazemparteintegraldamissãocomoobeatoentendeu,poiscomoexistiampoucasigrejasnosertão,aconcretizaçãodelasabreespaçoparaaentradadeDeus.Naconstruçãodeigrejaselepregaaexistênciaeimportânciadomundodivino.

Eis a mensagem deixada pelo peregrino, está revestida de fé e humildade, além de possibilitar aconsciênciadequetudodeveráserfeitoparaengrandeceronomedoSenhor.

ConsideraçõesfinaisSegundoavaliaCalasans(1997),seconsiderarmosaépocadassuasrealizações,asdificuldadessem

contapara as tarefas apreendidas, justo é asseverarquea suaaçãoobreira foi significativamente semigual no sertão da Bahia, pois nenhuma outra pessoa, tendo em vista os problemas da fase estudada,

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prestoutantosserviçosaossertanejos.Empregava todos os meios para erigir os templos, influenciando pessoas para conseguir recursos

financeirosemateriais.Reuniaaoseu redoroperários,carpinteiros, fundidores,mestresdeobrasetc.,nãoseenvergonhandodepediresmolasaospobresericossemdistinção.Havianele,comoedificador,omesmovigorepersistênciaquedemonstravacomopregador.QueeleimitavaosmissionáriosnassuasmissõesnãoexplicaaindividualidadedeAntônio:hánelealgoamaisquetransparecenaquantidadedesuasconstruçõesequeseesclareceemalgunsdeseusdepoimentos.

AsconstruçõesdeAntônioConselheironãosãomera imitaçãodasatividadesdosmissionáriosqueadentraramaosertão,mas,pelocontrário,fazemparteintegraldamissãocomoAntônioaentendeu,poisopovoviviaemregimedediáspora;haviapoucasigrejasnointeriordaquelaépoca.ConstruindoigrejasAntônio deu continuidade às suas prédicas, abrindo espaço para a entrada do mundo divino, para aentradadeDeus.Naconstruçãodeigrejaselepregavaaexistênciaeimportânciadeoutromundoedasalvação.

Na voz da tradição popular e em depoimentos feitos por Vilanova, sobrevivente de Canudos,concedido ao pesquisadorNertanMacedo, o beato profeta tinha comometa erguer 25 igrejas fora doCeará.Nadécadade1960,tentandoesclareceressaprofecia,ohistoriadorJoséCalasanslançou-senoencalçodecontaralgumasdasobrasdoAntônioConselheiro.Aofinal,segundoopesquisador,levando-seemconsideraçãoigrejas,reformasecemitérios,obeatochegoupróximodonúmeroestipulado.

Por outro lado, ao nos depararmos com as leituras de cronistas do século XIX e alguns poetas ecronistasdoséculoXX,onúmerodassuasedificações,incluindoreformas,extrapola,emmuito,ototaldevinteecinco,estipuladopelavozpopular,poisalémdasindicadasnaobradeCalasans,essapesquisaapontaoutrasconstruçõescomopertencentesàlavradobeatodeQuixeramobim.

Desdea suaprimeiraconstruçãonas terrasdaBahia (IgrejadaRainhadosAnjos)atéa suaúltimaedificação(IgrejadoBomJesusdoBeloMonte)obeatodemonstrouhabilidadeseumamultiplicidadedetendências que iam do hibridismo popular, passando pelo Barroco tardio, Rococó, Neoclássico eNeogótico.Váriasdelasaprendidasapartirdasobservaçõesevivênciascommissionáriosereligiosos.

Muitodesuaproduçãoestéticaeraadvindadasinfluênciasfranciscanasecapuchinhas,dorepertórioobservadoemalgumascidadesdoCeará,dasconstruçõesdofreiitalianoApolôniodeTodiedoPadreIbiapina. Mesmo distante dos grandes centros, e enfrentando todo tipo de dificuldades, o profetasertanejo não se deixou abater no concernente às construções religiosas. Mobilizou as massascamponesasparaerigireembelezaracasadosenhor,servindo-se,paraisso,dasnovidadesestilísticasquesurgiamnascidadesmaisimportantesdaBahiaedoSergipe.

Sendo assim, essa perspectiva contraria o pensamento de Euclides da Cunha, que via essasconstruções de forma pejorativa. Na visão desse autor, as obras do Conselheiro eram repletas deelementosdecorativosdepéssimogosto.Costumeiramente,afirmavaqueelaseramfrutoda“engenhariarudedossertanejos”.

Referências

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BENÍCIO,M.Oreidosjagunços:crônicahistóricaedecostumessertanejossobreosacontecimentosdeCanudos.Brasília,DF:SenadoFederal,1997.Ediçãofac-similardoJornaldoComércio,1899.BRÍGIDO,J.Ceará:homensefactos.RiodeJaneiro:Besnard,1910.CALASANS,J.AsigrejasdeCanudos.In:CALASANS,J.CartografiadeCanudos.Salvador:SecretariadeCulturaeTurismodoEstadodaBahia/ConselhoEstadualdeCultura,1997.CANÁRIO,E.Osmal-aventuradosdoBeloMonte.Salvador:Ed.ABC,2005.CUNHA,Eda.Ossertões.SãoPaulo:MartimClaret,2002.DANTAS,M.D.Fronteirasmovediças:acomarcadeItapicurueaformaçãodoArraialdeCanudos.SãoPaulo:Hucitec;Fapesb,2007.GALVÃO,W.N.OimpériodeBeloMonte:vidaemortedeCanudos.SãoPaulo:FundaçãoPerseuAbramo,2001.GALVÃO,W.N.;PERES,F.daR.(Org.).BreviáriodeAntônioConselheiro.Salvador:EDUFBA,2002.MACEDO,N.AntônioConselheiro.RiodeJaneiro:Record,1978.MACIEL,A.V.M.ApontamentosdosPreceitosdaDivinaLeideNossoSenhorJesusCristoparaasalvaçãodoshomensIn:GALVÃO,W.N.;PERES,F.daR.(Org.).BreviáriodeAntônioConselheiro.Salvador:EDUFBA,2002.MONTENEGRO,A.F.AntônioConselheiro.Fortaleza:A.BatistaFontenele,1954.OTTEN,A.SóDeuségrande.SãoPaulo:Loyola,1990.PORDEUS,I.EscritossobreAntônioConselheiroeaMatrizdeQuixeramobim.Fortaleza:ASMUCE,1955.PORDEUS,I.[Registro].ONordeste,Fortaleza,26set.1949.ArquivodeJoséCalasans/NúcleodoSertão,UFBA.

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2ªPARTEESPAÇOSDEARTEERELIGIOSIDADE

POPULAR

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SEDUÇÕESDAPRINCESINHADOCAFÉ:vassouraseofestivalvaledocafé

HeleniseMonteiroGuimarães

Noanode2013iniciamosumaseriedeviagenspeloValedoParaíba,cujoroteirocompunha-sedeumconjunto de cidades históricas,movidos pela vontade de conhecer suas festividades, seus ritos e seupatrimôniohistórico,entreelas,Paraty,ViscondedeMauáeVassouras.

Esteartigo,integrandoapublicaçãodoprojetodeextensãodaUFRJ,PatrimônioeTurismonoValedoCafé:Vassouras (RiodeJaneiro),partedeumaexperiência in loco,denominadaOlharesCulturaisemVassouras,quereuniuestudantesdeartes,dearquitetura,pesquisadoresdegestãoculturaleprofessoresde Historia da Arte e Teoria da Arquitetura, cada um com uma tarefa: caminhar pela cidade deVassourasabsorvendodesuaspaisagensnovasexperiências.

Esteartigotratatantodestesolharesquantodasquestõesqueelesrevelaramequevemserevelando,tanto mais nos aprofundamos no estudo das cidades, seus habitantes, suas memórias e sua noção depertencimentoaoslocais.Namedidaemqueestepertencimentonoscausaumestranhamento,hajavistanosso papel de “estrangeiros” e de pesquisadores, desenvolvemos aqui algumas questões que não seesgotam neste texto, mas pretendem estabelecer indagações. Pensar e olhar a cidade de Vassourasestabeleceu não só um prazeroso passeio em suas ruas, mas nos levou a abraçar a indagação doselementosqueacolocamcomopóloturístico.

TurismoeaseduçãododesconhecidocomocampodeestudosEmnossaspesquisassobrefestividadesurbanasnosdeparamoscomumaquestãoquevemsetornando

crucialpelosfatosqueadelimitamemseuprópriocampodeanálise,oestudodoturismo,seuhistórico,suasconsequênciasesuavalorizaçãoenquantocampodeconhecimentoeprodutordeindagações.[48]O“turismo”comoatividadepressupõeodeslocamentodepessoasdeseulocaldeorigemaumdestinoeretorno, provocando alterações econômicas, políticas, culturais sociais e ambientais como poucosfenômenossociaispuderampromoverao longodahistóriadahumanidade.Vistogeralmenteapenasdoponto de vista econômico e muito mais relacionado ao lazer, o turismo vem merecendo outrasconsiderações dos campos das ciências sociais, tais como a antropologia, sociologia e geografia.[49]SobretudonoséculoXX,aatividade turísticaexpandiu-senumaescala impressionante,nãosóemseuformatousualdasviagensepromessasparadisíacas,massobretudopelocrescenteinteressegeradoportaisatividadesnascomunidadescientíficas.Osimpactosnanaturezadespertaramaatençãodebiólogoseecologistas, os reflexos nas populações e localidades que o recebem despertaram indagações desociólogoseantropólogosenoquetangeaosefeitosdoturismosobreosbensculturais,culturamaterialepatrimôniohistórico,destasquestõestemseocupadohistoriadoresearquitetos.Masaprimaziadestasindagaçõessedeveaosgeógrafos,queinauguraramapesquisadoturismoapontodecriarumadisciplina

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especializada“geografiadoturismo”hojeincluídanoscursosuniversitários.(BARRETO,2003,p.7).AprofundandoumpoucomaisestareflexãonaspalavrasdeDiascolocaqueoturismopodetambém

ser definido ou entendido como um fenômeno social complexo que implica numa série de relaçõessociaisemmuitasesferasdavidasocial,acentuandoseuimportantepapelsocializador,

[...]poispermiteoencontroentrepessoasdediferentesculturas,favoreceasociabilidadedaspessoasqueseencontramnasviagensnumacondiçãopsicológicaaltamentefavorávelanovoscontatossociais.(DIAS,2003,p.30).

Segundoesteautor,háumpapelhumanizadordo turismoapartirdomomentoemqueeleestreitaorelacionamento global dos indivíduos, na medida em que se intensificam as interações sociais edescobrem-se costumes e hábitos que ate então eram estranhos e que com o contato, passaramgradativamente,aserapenasdiferentes,fazendopartedesseenormeecomplexocontingentehumanoquedominaomundoconhecido.Portanto,arazãodeserdoturismo,abuscadoexótico,dodiferente,nadamaisé“[...]queabuscadohomemporconhecerasimesmo”(DIAS,2003,p.31).

Apresentando questões tão instigantes, não é de se espantar que seja detectada uma evidentepolarizaçãonaformadecompreensãodoqueéoturismonosdiasatuais(esuatrajetóriahistórica)postoqueencontramosaoposiçãodeambientalistase/oupreservacionistasdisputandoseusargumentoscomasesferasoficiaiseempresasturísticas,estasrepresentandoopodereconômicoquetemsidoosuporteerazão dos empreendimentos desta atividade.A questão se apresenta sob variados aspectos, amaioriaencerrando polêmicas,mas como acentuaBarreto, revelando a disputa entre o poder econômico e debarganha política que namaioria das vezes vence a disputa contra os argumentos de ambientalistas edefensoresdopatrimôniohistóricoesocialdahumanidade(BARRETTO,2000).

A harmonia entre a convivência do turismo e o legado cultural é um dos aspectos que deve serexaminado,sobretudoquandoabordamoscidadeshistóricas,manifestaçõesculturaisetudoqueaelasserelacionam, no sentido em que estas tendem a ser inseridas no contexto do “produto turístico” e, porconseguinte,opróprio turismopossasercompreendidocomoumestímuloamanutençãoda identidadedaspopulaçõesreceptoras(DIAS,2003,p.8).Nãopretendemosnesteartigoesgotartaisquestões,massimembreveexposição,trataralgumasindagaçõesquenoslevemarefletirsobrecaminhosqueapontemo quanto ainda existe para ser (re)pensado numa visão isenta (ou quase) de laços afetivos aos locaisvisitados.

Vassouras:buscandoumaidentidadeturísticaEm 2009, o Ministério da Cultura patrocinou o Programa Monumenta/IPHN, em conjunto com o

Instituto IDEAS, do SEBRAE/RJ e da Secretaria deCultura eTurismo deVassouras como apoio daTurisRio, realizando na cidade um extenso inventário turístico e mapeamento cultural completo paraelaboraçãodedezroteirosqueabarcariamasmaisdiversasáreasdeinteresse.Otrabalhopropostofoirealizado com evidente detalhamento de suas propostas através da elaboração de folhetos edisponibilidade no website <http://ideias.org.br/projeto/inventario-turistico-de-vassouras>, texto quereproduzimosemparteaseguir.

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InventárioTurísticodeVassouras:Publicadoem17deJulhode2009.Parceiros:SEBRAE/RJeUnesco.Objetivos:Disponibilizartodasasinformaçõesrelevantessobreacidade,seusbensimóveis,suahistóriaeseupotencialturístico.Ações desenvolvidas: Criação de um sistema informatizado para a entrada e disponibilização das informações nainternet;desenvolvimentodeumportal;desenvolvimentodemapastemáticoseummapageral;emaisde1000fotografias;Informativoonline-quatroediçõesqueabordarãotemasculturais,orientaçõessobrepreservaçãodopatrimônio,legislaçãodeproteção,e informaçõessobreodesenvolvimentodoprojeto;OficinadeRoteirização;10roteirosculturaise turísticoscom 15 mil cópias cada; Mapa cultural e turístico com 15 mil cópias; 50 expositores com informações do município.(IDEIAS,2009).

Nestewebsiteencontramosumavariedadedefotoseolinkparao“portalVassouras”queseencontraemmanutenção.Em26dejaneirode2013retoma-seoprojetocomanovagestãomunicipal,emqueaSecretariadeTurismoeDesenvolvimentoEconômicoanunciavaabuscadeparceriasparaobtençãode

[...]recursosfinanceirosetécnicosparaquesejapossívelconstruirumPlanoMunicipaldeTurismoerevitalizaroportaldeinternetquefoicriadoapartirdoProjetoVisiteVassouras.(IDEIAS,2013).

Amatériaemsuadescriçãoapontaque

[...] as ações do projeto Visite Vassouras visavam estruturar a promoção do turismo cultural, provocando odesenvolvimento de novas atividades econômicas, que fossem capazes de valorizar e intensificar o uso do patrimôniohistóricoearquitetônicodomunicípio.

Enfatizandoaindaque

OsucessoobtidonoVisiteVassouras levouaoutras iniciativas,comoumprojetode roteirosevisitaçãodasFazendaseCentroHistórico,criadopeloInstitutoIdeas,paraoSEBRAE/RJeaAssociaçãoComercial,IndustrialeAgropecuáriadeVassouras (ACIAV), que foi incentivado na Lei estadual de Cultura, mas que por diversas razões, não pode serconcretizado.(IDEIAS,2013).

Em2011,organizadopeloInstitutoGeográficoeHistóricodeVassouras,oICongressoNacionaldeHistóriaeGeografiadoValedoParaíbatrouxeparaosdebatesasaçõesoficiaisrelacionadasaquestõesdepatrimônioculturaledaspolíticasdepreservaçãodosbenstombados,temasqueserelacionamcomacidadedeVassouraseseupapelnoconjuntodecidadesdoValedoParaíba.Mesmodiantedoesforçopara a afirmação continua de Vassouras como um polo turístico, fica bem clara a existência de umaproblemática relacionada a dificuldade da preservação de seusmonumentos, dificuldade esta que foiobservadaemnossaexperiênciadecampo.CombastanteveemênciaOlinioGomesCoelho[50] ressaltaestasdificuldades:

APortariaIphanno12,de1986,considerandoqueoconjuntoarquitetônicoepaisagísticodeVassouraséparteintegrantedopatrimôniohistóricoeartísticonacional,determinousuaproteçãocomotombamentodeseucentrourbanoevizinhançasespecialmentedenominadas.Vassouraséumdospoucosmunicípiosbrasileiroscontempladocomespecialproteçãofederaldeseupatrimôniocultural.(COELHO,2013,p.226).

Continuando assim a busca pelas estratégias de uma estrutura de planejamento turístico paraVassouras, nos deparamos com algumas iniciativas oficiais quemantem a vitalidade da atração destacidade,sobretudopelasuaimportânciacomopóloculturaldoValedoCafé,comooFestivaldoValedoCaféeatradicionalfestadaFoliadeReis,queocorrenomêsdejaneiro:

Os grupos de Folia de Reis realizam a entrega de suas bandeiras e tocam o tradicional chula. Os foliões revivem apassagemdevisitaçãoaoMeninoJesusfeitapelostrêsReisdoOriente(Belchior,BaltasareGaspar),quepassaramasersantosnoséculoVIII.Duranteoano,asfoliasdeVassourasseapresentamemeventosorganizadospelaprefeitura.Treze

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grupospertencemàAssociaçãodeFoliasdeReisdeVassouras,comoJardimdoÉden,FamíliaTeixeira,BoasNovasdeBelémeViagemdosTrêsReis.AAssociaçãoé responsávelpeloprojetoFoliaMirimPequenosFoliões,queéPontodeCulturae temoobjetivodemantervivaa tradiçãodas folias.Assim, todasas4ase5asà tardeacontecemaulassobreahistória das folias, além de oficinas de violão, sanfona e outros instrumentos, para que as crianças conheçam e deemcontinuidadeàsfoliasdereis.Asaulasacontecemnasededaassociação.(RIODEJANEIRO,[200-?][51]

Estes eventos revelam em consonância ao seu rico patrimônio histórico, que Vassouras mantemtradiçõesqueremontamaoseupassadocolonial,mastambémestimulanovosmodelosdefestividades,emquedetectamosoencontroentreocomportamentofestivoeocomportamentoturísticocomoformasderevitalizaçãodememóriasafetivaseincentivoanovosatrativosculturais.Maisadianteretomaremosestescomportamentosesuasparticularidades.

Danaturezaeseusarbustosnasceumacidade:Vassouras,princesinhadocaféVassouras nasce de uma sesmaria recebida pelo açoriano Francisco Rodrigues Alves e de Luis

HomemdeAzevedo,em5deoutubrode1782,denominadas“sertãodaserradeSantana,MatodentropordetrásdoMorroAzul”eposteriormentechamadas“sesmariadeVassouraseRioBonito”.Daregião,ondeabundavaoarbusto,chamadopiaçavaoumesmovassourinha,doqualsefabricavamvassourasveioonomedebatismodacidade.Aregião,denominadaCaminhoNovoeraoelodeescoamentoentreMinasGerais e o porto doRio de Janeiro no período doCiclo doOuro. Elevada aVila em 1833, por sualocalizaçãogeográficaqueaaproximavadaFreguesiadaSacraFamília,demonstroutambémumgrandeimpulsoemseudesenvolvimentourbanoqueadiferencioudaViladePatydeAlferes.PorémoqueatornamaisatrativanoiniciodoséculoXIXsedeveaograndedesenvolvimentoeconômicodaregiãodoValedoParaíbadoSul,emcontrastecomoesgotamentodociclodoouroeoincrementodociclodocafénesta região.Decorrentesdestes fatosedaexportaçãodocafépeloRiodeJaneiro,apequenavila seelevaacategoriadecidadeem29desetembrode1857.Nadécadade1850 jáseproclamaa“maiorprodutora de café do mundo”, reconhecida também como a “Princesinha do Café” e posteriormente“Cidade dosBarões” pela grande quantidade de fazendeiros nobres ali residentes.Com o declino daagriculturacafeeiraapecuáriaseimpõeeconomicamentenaregião.SobreestaprosperidadeeconômicaMartins(MARTINS,2005,p.2)nosrelataque

[...] a prosperidade econômica deVassouras fe-la viver o glamour dos tempos áureos.A riqueza do ouro verde trouxeescolas,manufaturas, teatros,modistas,comdestaqueparaas ruasBonita,Direitaedocomercio,políticosdeexpressãonacionaleateSuaMajestadeImperialD.PedroII.Asbenfeitoriaspublicassãoconhecidas:doischafarizesqueamenizaraa falta de água na vila, a construção da IgrejaMatriz e doCemitério, a construção do prédio próprio daCâmara e daCadeia,omelhoramentodapraçadaConcórdia(hojeBarãodeCampoBelo),omelhoramentodaestradadaPoliciae,nãosepoderiaesquecer,aestradadeferroD.PedroII,maistardecentraldoBrasil.

Aautoraaosereferiraosaspectosarquitetônicosdacidade,ressaltaaimportânciavisualdocasariopertencenteaosbarões, erguidosnonúcleocentralurbano,hoje tombadospelo InstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional–IPHAN.DoisoutrosfatorescontribuemparaoenriquecimentoculturaldeVassouras:aherançadeixadaporEufrásiaTeixeiraLeite,em1930,quedoouacidadeoHospitalquelevaseunome,oAsiloBarãodoAmparo,oMuseuCasadaHeraeoInstitutoDr.JoaquimTeixeiraLeite.OutroeventofoiaimplantaçãodaUniversidadeSeverinoSombra,instituiçãodeensinosuperiorqueao

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atrair grande contingente de estudantes, transformou substancialmente o perfil da cidade, tornando-a oque denominam uma verdadeira “cidade universitária” com uma cultura peculiar que estabeleceumemóriasafetivasquepermutamvivenciasacadêmicasevivenciasurbanas.

Em 1958, o IPHAN, através de um processo de tombamento (registro 566-T- de 26/06/1958)determinandoassimaproteçãodoconjuntohistórico,urbanísticoepaisagísticodacidade,eem24dedezembrode1984édenominadaEstanciaTurística.VassourasseencontraentreascidadescontempladaspeloPacCidadesHistóricas,programacujaestratégiadeterminaqueagestãodopatrimôniotenha“umanovadimensãoquevaialémdaintervençãofísicanosmonumentosprotegidosereforçaosentimentodepertencimentoedecidadaniadosbrasileirosemrelaçãoaossímbolosdenossacultura”,tendoentresuaspropostasadeque

[...] os proprietários poderão recuperar suas residências, oumesmo investir na adaptação de edifícios para exploraçãoeconômicacomhotéis,pousadaserestaurantes.(IPHAN,[200-]).

É inegável que apreservação e conservaçãodeste patrimônio sejamdesejáveis e importantes, nemsempre se constituirão na mola propulsora para o investimento no potencial turístico da cidade.Conforme afirmaMaria daGloriaL. da Silva, no que se refere a tais iniciativas “[...] a preservaçãocontinuaaserumdesafioprincipalmentequandoenvolvebensarquitetônicoseacidade”(SILVA,2007,p.47).Taisaçõespodemconstituiremalgunslugares,porcontadequestõesedeeconomialocaledeinfraestrutura,“[...]umônusindesejado”(SILVA,2007,p.47)eparaoutrosatemesmoumimpedimentode expansão urbana e desenvolvimento econômico. Justifica-se a qualificação de Vassouras como“estância”peloseupassadodecidadequeabrigouaelitedoséculoXIX,ondepodemosconstatarque[...] a paisagem urbana é marcada, sobretudo pelas construções suntuosas e pelos parques e jardinsremanescentesdoperíodoimperialbrasileiro”(SILVA,2007,p.65).

Doconjuntodemonumentosquecompõemacidadeeconstituemseupatrimôniohistórico,impõe-seumaquestãoqueécaraaospesquisadores:aperpetuaçãodaculturalocal.Nestesentido,nosinteressamduasquestõesjácitadas,aimplantaçãodeestratégiasdeatraçãodevisitantes,tornandoaquelelocalumpólo turístico, e, paralelo a isto, a permanência de suas festividades e o estabelecimento de eventosespetaculares.

Noqueserefereaoturismo,estesurgecomo

[...]únicapraticasocialqueconsome,fundamentalmente,espaço,sendoesteconsumoefetivadopormeiodaapropriaçãodoespaçopelo turismo,ou seja,pormeiodas formasdeconsumoque seestabelecementreo turista eo localvisitado.(CRUZ,2002,p.109).

No caso de Vassouras, por exemplo, impõe-se a preservação e conservação de sua praça central(Fig.1) no sentido de que esta se torne uma paisagem sedutora para consumo e lazer sem que sejamdesvirtuadosseuselementosessenciaisdetradiçãoememória.

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Foto1–PraçaBarãodoRioBranco,Vassouras/RJFoto:HeleniseMonteiroGuimarães,2013.

AcidadedeVassourasnospropõeumpotencialturísticogeradoporumpatrimônioculturalquecontacomdoisséculosdeexistência,apresentando-sesemsombradedúvidacomoummuseuvivoaesperadevisitantes.AosedepararcomaimponentePraçaBarãodeCampoBelo,ovisitantetemumcaleidoscópiodeimagensqueorasedirecionaagrandeigrejamatrizNossaSenhoradaConceição,aoredordaqualseorganizaram os primeiros moradores da antiga vila, de interior de beleza singular por seus vitrais,pinturasemurais;oranosmergulhamnascurvasdeumsingelocoretoouacompanhandoascalçadaseoextensogramadoquenosdirecionaaoutrospontosdeinteressedeseuconjuntodecasarioshistóricos.

DafoliadereisaoFestivaldovaledocafé...VassourasesuasfestasNosestudossobrefestas,temosvisõesquenaverdadesãofacesdeumamesmamoeda.Afestacomo

umatransgressãoerupturadocotidiano,comoestudaramCallois(1950),daMatta(1990)eDuvignaud(1983)eafestacomoumacontecimentoemqueasregrassociaiscontinuamasubsistir,sendoelamesmaa própria mentora destas regras, sem que o cotidiano seja desfeito, como analisam Brandão (1989),Canclini(1983)eHeers(1987).Afestaopondo-seaocotidianodotrabalhoedasobrigatoriedadesosopõeaumtempolúdicodesuspensão,oquenosaproximadaoposiçãolazerxtrabalho.Masafestapodeservistatambémcomoumconjuntoderegrasemesferasquesediferenciamequeconectamtrabalhoefestejar.Nestesentido,lazerefestanãoseopõemecomoanalisaRosa(2002,p.24)

Comoformadelazer,afestadenotasentidosesignificadosdiversos,comoordem,desordem,diversão,segurança,conflito,devoção,convivência,efervescência,gratuidadeeespontaneidade.

Ferreira(2005,p.295-298),aorefletirsobreaquestãodoespaçoedafestanosafirmaque

Maisimportantedoqueaprópriaexistênciafísicadoespaçoéomodocomooespaçopublicoésocialmenteconstruídopormeiodenegociaçõesqueirãodefiniroseuusoapropriadoe,porconsequência,quemseráexcluídodele.

E,sobretudo,umfatorquedefineumeventofestivo,odatensão,Ferreira(2005,p.295-298)nosdiráque

[...]atensãoquedefineafestapodeserentendidacomoumconflitopelahegemoniadodiscursofestivo.Conflitoestequese instaurapormeiodequalificaçõesedesqualificações,de lembrançaseesquecimentos,deenfrentamentos,enfim,quedeterminamesãodeterminadospeloespaçofestivo.

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Taisconsideraçõesnosproporcionamescopoparaoutroobjeto,quesãoasfestividadesdeVassourasesuasconcepções,nosentidoemquesão representaçõesdememórias reelaboradas,comoaFoliadeReis,mastambémfestasdestinadasaatraçãodevisitantes,profissionaise turistas,comoofestivaldocafé,ambasdeciclosanuaisejátradicionaisnocalendáriodacidade.DaFoliadeReis,queocorrenomêsdejaneiro,temosocortejotradicionalcompostodemúsicos,instrumentistas,cantores,dançarinosepalhaçosquepercorremacidadeseguindoospassosdaBandeiraemcortejo.

OFestivaldoValedoCafétornou-se,desde2003,umeventofixonocalendárioturísticodacidadedevassouras, cujos objetivos, além de atrair turistas para a região e assim programar novos rumos aodesenvolvimento econômico da cidade, também tinham por foco construir uma grande celebração quereunisse música, história e natureza ao mesmo tempo em que se consagrava ao patrimônio históricoregionalumagrandehomenagem.Em2013estefestivalchegouasua11ªedição,conformeapontaositedesteevento:

[...] o Festival Vale do Café resgata fortemente o patrimônio imaterial, estimulando o amor à natureza e divulga opatrimônio histórico e arquitetônico abrangendo os diversosmunicípios da região doVale doCafé, num dosmais lindosrecantosdoEstadodoRiodeJaneiro,noValedoParaíba.[...]Emfevereirode2010,oFestivalValedoCaférecebeuoPrêmiodeCulturadoEstadodoRiodeJaneironacategoriaEmpreendedorismo,promovidopelaSecretariadeEstadodeCulturadoRiodeJaneiro.Apremiaçãofoiconcebidaapartirdajunçãodetrêsprêmios–GolfinhodeOuro,EstáciodeSáeGovernodoRiodeJaneiro,ondeatravésdela,oGovernodoEstadoreverenciaedifundeadiversidade,aqualidadeeariquezadacriaçãoculturaldoRiodeJaneiro.Praças,igrejasefazendashistóricas–verdadeirospalacetesincrustadosnaMataAtlântica–sãoocenáriodasatraçõesdo11ªFestivalValedoCafé.(RIODEJANEIRO,2013).

Temos aqui, portanto um exemplo de como o chamado “turismo festivo” pode ser administrado demaneira que reúna em sua concepção noções tais como propostas de preservação de patrimônio edivulgaçãodacultura local,aliadoaofatodequeoseventos inseridosnoroteiroenglobamatividadesdiversificadascujosatrativossãodirecionadosapúblicosdistintos,taiscomojovens,músicos,pessoasda terceira idade e a própria população regional.Desta forma o que se pretende por “festa” torna-se“espetáculo” e ambas as formas prescindem de um sistema organizacional e de uma estratégia depermanência, que no caso deste festival, completam sua primeira década. Em sua organizaçãoencontraremos a participação do poder público, dos patrocinadores, da própria secretaria de culturaregionaledosindivíduosqueassumindodeterminadospapeiseatuamcomomediadoresentreafesta,opúblicoemoradores.Retomandoaquestãodocomportamento festivoecomportamento turístico,Rosa(2002,p.30)afirmaque

Porum lado, a festa éumaatividademobilizadoradaatividade turística,queocorre atendendoadiferentes interesses–histórico, rural, cultural, lazer, negocio, dentre outros –, ao atrair visitantes de lugares diversos, emperíodos específicos,paraolocaldesuarealização:poroutrooturismopossui,dentresuasações,umprogramadeatraçãoeexploração,tendoafestacomoprodutoturístico.

Estaarticulaçãoentrefestaeturismonoslevaapensarnaquestãodaidentificaçãodohomemcomacidadeemqueviveeparaaqualplanejaráeadotaráposicionamentosqueevidenciemligaçõesnãosócomopatrimônioeseulegadocultural,masaprópriapaisagemurbana,ecertamenteestaseconfiguranocenáriodoFestivaldoValedoCaféenoseventosqueincluemasfazendascoloniaisondeocorremosconcertos,sarausevisitasguiadas.Linch(1997)aoanalisaraidentificaçãodohomemcomacidadeem

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que vive e, sobretudo à sua paisagem, afirma que certos lugares podem se tornar tão carregados designificadosqueconstituemumpoderosofocodeatençãojustamenteporestaremsaturadosde“[...]umalonga história cultural e religiosa” (LINCH, 1997). Ao chamar a atenção para o papel ambiental dapaisagem,eleafirmaraque

[...] o ambiente conhecidopor seus nomes e familiar a todos oferecematerial para lembranças e símbolos comunsqueunemogrupoepermitemqueosmembrossecomuniquementresi.(LINCH,1997,p.143).

Estaidentificaçãoentrehomem–paisagem–cidadevaisearticularcomapertinênciadastradiçõesque se renovam e se reinventam, como afirma Hobbsbawn (2002), num movimento conjunto tãoimportantequeterminaporsustentaracontinuidadecomopassado.

OfestivaldoValedoCaféporsisójánostrazvariasquestõesaseremobservadas,taiscomoasuaespetacularização, a programação de cursos e oficinas, os desdobramentos culturais e sociais. TendocomocenárioepalcoacidadedeVassouras,fazendasdoValedoParaíbaeespaçospúblicosdeoutrascidadesdestaregião,oeventotrazumaespetacularizaçãodasatividadesquejáfazempartedocotidianoturístico,taiscomoasvisitasguiadasasfazendasque,duranteofestivalsãoacrescidasdeapresentaçõesdemúsicos,conjuntosfolclóricos,gruposdecoraisentreoutros.Tambémsãotransformadosempalcosos espaços urbanos e interiores de igrejas, polarizando varias atrações do festival e atraindosimultaneamenteturistasemoradores.

Debord(2004,p.14)afimaqueoespetáculo,emtodasassuasformas,incluindooconsumodiretodedivertimentos, constitui “[...] o modelo atual da vida dominante da sociedade” fato que podemosconstatar sobretudo em algumas festas urbanas como o Boi de Parintins na Amazonia e o desfile deEscolasdeSambanoRiodeJaneiro.Noqueserefereaoturismooautorodefinecomo“[...]circulaçãohumanaconsideradacomoconsumo”resumindo-seapenasno“[...]lazerdeirveroquesetornoubanal”,haja vista que a economiamoderna se encarregaria de igualar os espaços. (DEBORD, 2004, p. 112)Nestesentido,aespetacularizaçãoquebuscamosencontrarno festivaldoValedoCafécontrapõe-seaesta “banalidade” a que se refereDebord e se reafirma pelo uso da paisagem local como cenário decelebraçãoemquemanifestaçõesculturaisdevariasesferassãoirmanadasnumaextensaprogramaçãodeeventos.

Na pesquisa realizada em2014, buscamos compreender não só a importância deste festival para apreservaçãodeumahistóriaregional,masqueefeitos,positivosenegativos,contribuamparaaimagemquehojecomopotencialpoloturísticoemVassourasnosapresenta.Tãoimportantequantooutroseventosespetaculares,taiscomoaOktoberfest,orodeioeoCarnavalCarioca,[52]oFestivaldoValedoCafénos revelou na voz de seus organizadores, participantes, atores e consumidores, novas faces destaencantadora“PrincesadoCafé,”,chamadaVassouras.

O“CortejodeTradições”:opassadocelebradonamemoriadaliberdadeO “Cortejo de Tradições” teve sua primeira apresentação já na primeira edição do festival, e foi

criadotambémporCristinaBraga,quenoscontaqueaaidéiado“cortejo”surgiudanecessidadedese

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ordenarnumaúnicaatraçãoosváriosgruposfolclóricosdaregião:foliasdereis,gruposdecapoeiras,gruposderezadeiras,Jongo,Caxambu,CaninhaVerde,Calango,oqueem2014totalizava15gruposdevariascidades.Omodeloinicialdodesfilefoiestabelecidoparaquecongregandoestesgrupos,nasruasdeVassourasseorganizasseumaprocissãoquedesceriadoMemorialdoMarioCongoateaPraçaBarãodoCampoBelo.Talordenaçãotemseusignificado,tendoemvistaqueomemorialdeManuelCongoéumlocalhistóricodacidade,ondeosescravoseramaçoitadosouenforcados.Nestasocasiõesacidadeconvergiaparaoaltodestemorroparaassistirocumprimentodassentenças.

Reiventando-se a procissão dos que subiam omorro para ver um lúgubre espetáculo, pretendeu-seassimestabelecerqueoCortejo,descendodomorroparaacidadeconsistirianumacelebraçãodavidaedaliberdade.CristinaBraganosreveloutambémqueemdeterminadomomentohaveriaapresentaçõesemcidades diferentes e muitas vezes diurnas e noturnas com a participação de mais de oitocentosintegrantes, diferente do que encontramos de 2013 a 2015 – uma única apresentação na cidade deVassouras.

Em2014participaramdodesfileosseguintesgrupos:JongodePinheiral,JongoCaxambúRenascerdeVassouras, Jongo do Quilombo São José, Jongo de Barra do Piraí, Jongo de Caxoeira do Arrozal,CapoeiraArteRasteira,MaculelêAbadá,CaninhaVerdedeFerreiros,Itakalango,ÊtaCalango,FoliadeReisEstrelaGuia,FoliadeReisLázaroeMaria,Rezadeiras,CapoeiraLibertaçãoNegraeCalangueiroseRezadeirasdosváriosmunicípiosedistritosdaregiãodoVale.Osestandartesqueilustramesteartigoforamconfeccionados porSamuelAbrantes, professor do curso deArtesCênicas daEscola deBelasAtes/UFRJeSueliGerhard(Fig.2,3,4e5).

EmborasejaconsideradoumeventofixonoroteirodofestidoValedoCafé,em2015constatamosumareduçãodramáticadosgrupos,quandoentãoocortejofoiconstituídopaenaspelosgruposfolclóricosdeVassouras.O trajeto da procissão continuaria omesmo, porém a duração das danças e apresentaçõesseriaestabelecidaemmenosdeumahoranaPraçaBarãodoCampoBelo,aocontráriodasduashorasemeiadoanoanterior.Continuandoaserumdospontosaltosdofestival,pelaquantidadedepublicoqueatraiu para a Praça, o “Cortejo de Tradições” já dava sinais de esvaziamento, seja pela escassez deinvestimentosdospoderespúblicos, sejapela impossibilidadedeseusagentesdemanteremgruposdecidadesdistantesunidosparaumaúnicaapresentação.

Em 2016 o Cortejo foi retirado da programação, e as apresentações de manifestações popularesreduzidasaalgumashomenagensaocentenáriodosamba.Nummomentodecriseeconômicaqueabateufortementeocampodaspoliticasculturais,estaausênciapodeserjustificadapeloesgotamentodeumaformulaquedesejavamanter,ocontatoportantosanosestabelecidoentreaculturapopulareoseventoseruditosdoFestivaldoValedoCafé.Ficaportanto,emnossamemóriaascoresdosbelosestandarteseosecosdetamboresdoscaxambuseestalardeespadasdomaculelê.

Queretomem–umdia–seusespaçospelasruasdaPrincesinhadoCafé,paraalegriadatantosquecomonós,acomapanharamsuatrajetóriadecores,dançaemusicas.

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Figura2–EstandartesdoCortejodeTradições,Vassoura/RJFoto:HeleniseMonteiroGuimarães,2014.

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Figura3–EstandartesdoCortejodeTradições,Vassoura/RJFonte:HeleniseMonteiroGuimarães,2014.

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Figura4–EstandartesdoCortejodeTradições,Vassoura/RJFoto:HeleniseMonteiroGuimarães,2014.

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Figura5–EstandartesdoCortejodeTradições,Vassoura/RJFoto:HeleniseMonteiroGuimarães,2014.

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Documentosdeacessoemmeioeletrônicohttp://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/297.Acessoem:13abr.2017.

[48] Para embasamento teórico sugerimos: BANDUCCI JUNIOR; BARRETO, 2001; GRABUM et al, 2009; BARRETO, 2000; DIAS,2003.[49]SegundoBarreto(2009,p.55):“Emnívelmundial,assimcomonoBrasil,omaiorvolumedeestudoscientíficossobreturismoprovemdasciências econômicas ou administrativas, que analisam o crescimento e a movimentação de capitais baseados na chamada “indústria doturismo”,ouseja,dosnegóciosturísticos.Masestesaspectosconstituemapenaspartedessaatividadequevemseconfigurandocomoumfatosocialtotal.”[50]OlinioGomesCoelhoépresidentedo InstitutoHistóricoeGeográficodeVassouras, realizadordocitadocongresso,que teveapoiodaprefeituraMunicipaldeVassouras,doConselhoregionaldeEngenharia,ArquiteturaeAgronomiadoRiodeJaneiro–CREA-RJedoCentrodeLetraseArtesdaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.

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[51]Os Pontos deCultura são definidos como iniciativas culturais desenvolvidas pela sociedade civil que estão sendo potencializadas peloGovernoFederal, atravésdoProgramaMaisCultura, emconjunto comoGovernoEstadual.ASecretariadeEstadodeCulturadoRio deJaneiro, emparceria comoMinistériodaCultura, vai liberar recursospara cadaumdosprojetos culturais selecionados em todooEstado.Esses recursos poderão ser utilizados para a realização de cursos e oficinas, produçãode espetáculos e eventos culturais, compra deequipamentos,entreoutros.[52]Paraaprofundarleiturassobresobrefestas,Oktoberfest,rodeioeCarnavalsugerimosROSA,2002.

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DEVOÇÃOEARTENAANÁLISEDEDUASDANÇASPOPULARESAFROCATÓLICASEMLARANJEIRAS-SERGIPE

IvanRêgoAragão

Refletirsobreaculturaafro-brasileiraépensarnoselementosdaconstruçãohistóricadepessoasvindasdelocaisdaÁfrica,cativas,privadasdesuadignidadeeobrigadasatrabalharnaeconomiaaçucareiranoperíododoBrasilcolônia.OschamadospovosdaDiásporaNegra[53]vieramdediferentespontosdaÁfrica,acarretandoaconvivênciadegruposétnicosquenãotinhamquasenenhumaafinidadecultural.OsestudosapontamquedentreosgruposetnolinguísticosqueaportaramnoBrasilemquantidadedecativos,osbantosesudanesesforamosquemaissedestacaram(NASCIMENTO,2010).

Os bantos eram principalmente das etnias angolas, caçanjes e bengalas, vindos das regiões doCongo, Moçambique e Angola. Se fixaram, segundo Nascimento (2010), nas regiões que hoje são oestadodeMinasGeraiseGoiás.Jáossudaneseseramformadospelos iorubásounagôs, jejes, fanti-achanti,haussásemandingas-islamizadosdasregiõesdoBenin,NigériaeTogo.Concentraram-seemlocaisquehojesãoosestadosdeBahia,Pernambuco,MaranhãoeregiãodoriodaPrata.

EssefatorevelaqueaspessoasvindasdocontinenteparatrabalharnoCiclodoAçúcarprocediamdelocaisdistintos,enessesentido,verificaram-seaspectosconflitantesocorridosnoBrasilentrediferentesetniasafricanas,comoareligiosidade,línguaecostume.Sendoassim,ospovossubjugadostiveramqueforçosamenteseadaptarànovarealidadesocial.Comoformadesobrevivênciaetrânsito,comunidadesvindascomoescravosestabeleceram

[...] relaçõescomcompanheirosdecoreorigem,construindoespaçosparaapráticada solidariedadee recriandoa suaculturaeasuavisãodemundo.(MATOS,2013,p.155).

Dessamaneira, despontouum legado cultural a partir das características do continente africano empráticasreligiosasnoBrasil.

Diversos estudos[54] apontam à influência dos povos africanos nos mais variados segmentos dacultura brasileira. Ainda que oprimidos pela cultura do colonizador e, portanto, uma cultura de corbrancaeuropeia,sabe-seque,comopovosquevieramparatrabalharnaagriculturacanavieira,asetniasvindasdaÁfricaqueaquiaportaram,deramumnovosignificadoaoarcabouçoculturaldoBrasil.Dessaforma,

AvindadosafricanosaoBrasilmodificousobremaneiraoscostumescotidianosnasociedadebrasileira.Graçasaomododiferenciadodeperceberomundopelosescravos,oBrasildetémumaculturasingularqueestáinseridanosmaisdiversossegmentos.No campo gastronômico enriqueceu as práticas alimentares com novos ingredientes, temperos e sabores, alíngua portuguesa foi ampliada, inseridas novas palavras ao dicionário brasileiro; diversificou o modo de dançar ecomemorarasfestas,incorporandonovossonsebailados;osafricanosinfluenciaramoritmodançadodosfolguedosedofolclorepopulardosgruposdeSãoGonçalodoAmarante,Taieira,CaceteiraeCongado,bemcomonospassosdofrevoedosamba,dentreoutros.(Aragão,2013,p.3).

Pela afirmação acima, percebe-se que houve uma gama de elementos africanos que foram

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incorporadosàculturabrasileira,sendofatordeidentidadeapartirdasomadeoutraspráticasculturais,a exemplo da indígena e portuguesa. Uma identidade cultural ressignificada pela junção de práticassimbólicasecotidianasnascelebrações,alimentação,modosdefalar,ritos,festas,ritmosedanças.

Com tudo isso, abordar a identidade africana transplantada para as regiões americanas é falar dequestões complexas e da multiplicidade do ser africano na África (APPIAH, 1997), visto que essepertencimentoculturaldizrespeitomuitomaisquemorarnocontinente,mastambémseidentificarcomalínguaereligião,fazerpartedomesmogrupoétnico,dentreoutroselementosculturais.Aindaassim,osmovimentosderesistênciacultural-religiosoquesecapilarizaramemregiõesdoBrasilquereceberamescravos, acabaram por mostrar a sua força vinculada à tradição, através da flexibilidade em sehibridizarcompráticasculturaisalheiasàsua.

O catolicismo como religião dominante, imposta pela catequização e ideal colonizador da igrejacontrarreformista,nãocediaespaçoàculturadodominadoparamanifestaratos,mitoseritosdeorigem.Sendo assim, os africanos e os seus descendentes do Brasil encontraram meios de sobrevivênciareligiosa,trânsitoeresistênciacultural,incorporandoàsuareligiãoimagensdecultoscatólicosdeformasincrética.

AmaioriadasdevoçõesaossantoscatólicosvinculadosàspopulaçõesvindasdaÁfricaparaoBrasilestá relacionadaàcordapele.DeacordocomBoschi (1985,p.25apudQUINTÃO,2007,p.15),ossantos de cor negra do devocionário católico eram as invocações recorrentes dos escravos, “[...] nãoapenas pela afinidade epidérmica ou pela origem geográfica, mas também pela identidade com suasagruras.”[55]Outropontoasalientaréofatormartírio:ossantosnegrosreconhecidosnoBrasilsofrerammaustratos,sendosubmetidosaprovaçõesparatestarasuafé,resignação,assimcomoosnegrosvindosdaÁfricaparatrabalharemnaproduçãocanavieira.

A partir da pesquisa bibliográfica e de campo, o presente texto descreve e analisa duas dançasdevocionaisvinculadasàculturapopulardenominadasdeTaieiraeCacumbi.Manifestaçõesherdadasdacultura portuguesa e africana que encontraram rebatimento no estado de Sergipe, principalmente nacidade deLaranjeiras. Inicialmente o artigo se detém em localizar o espaço onde se encontramvivasambasasdanças,paraposteriormenteexplicarcadaumadelase,porfim,asconsideraçõesfinais.

AspectoshistóricoseculturaisdeLaranjeirasLocalizada no estado de Sergipe, região nordeste do Brasil, a cidade de Laranjeiras situa-se a

aproximadamente18kmdeAracaju,capitaldoEstado.Laranjeiras,duranteosséculosXVIIIeXIX,eraumimportantecentroeconômico,políticoeculturalporondesedesenvolveuocultivodacanadeaçúcarno Estado de Sergipe. Por ser uma região voltada à prática econômica vinculada à escravidão, oaglomeradourbano laranjeirense foi também relevante espaçoque recebeuetniasdenegrosvindosdaÁfricapelosportosdaBahiaeRecifeparatrabalharemcomoescravos.

Porserumacidadeligadaàproduçãoaçucareiradoperíodocolonial,Laranjeirasdetinhaumgrandenúmero de população escrava, que era proibida de ter acesso às igrejas dos brancos.No período do

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Brasilcolonial,asconfrariasreligiosasdehomensleigoseramdivididaspelacordapeleeclassesocialonde,

[...] os aristocratas cultuavam seus santos nos altares domésticos ou na Igreja do SagradoCoração de Jesus, sede daIrmandade do Santíssimo Sacramento, que associava os ricos da localidade. Pretos e pobres congregavam-se naIrmandadedeSãoBenedito,sediadanaIgrejademesmonome,paracultuarseuspatronoscomruidososfestejosrealizadosnodiadeReis[...](SANTOS,2006,p.19).

Pelapopulaçãonegraser,proibidade ter livreacessoaosespaçossagradosdaelitedacidade,erarecorrente,asmanifestaçõesdedançasefolguedosnoladoexternodaigreja(SANTOS,2006).[56]

Como meio de se inserir na sociedade, os escravos alforriados entre os séculos XVII e XIX seorganizavamemtornodaIrmandadedeSãoBenedito,parafestejarodiadeReis,apresentandochegança,cacumbi, taieira, maracatu, entre outros folguedos populares (DANTAS, 1988). Nas irmandades dehomenspretos, ocorria a louvação aos santosde simpatiadaspopulaçõesoriginadasdaÁfrica, comoNossaSenhoradoRosárioeSãoBenedito.

EmLaranjeiras,aigrejadosnegroseraadeSãoBenedito,edificadanacolinacomacessoparaasbordasdacidade,pois,naépoca,osnegrosnãopodiamcircularpelasruascentrais.(LIRA,2012,p.38).

A cidade de Laranjeiras alcançou seus tempos áureos com a economia açucareira colonial,concentrandograndepartedasfazendasdecana-de-açúcardoestado.Tendooseuconjuntoarquitetônicoe paisagístico tombado desde 1996 (BRASIL, 2013), é notado pela arquitetura de praças, casarões eigrejas.ComoinformaOrazem(2008,p.3),

Laranjeiraséumacidade,dentrealgumas,queéconsideradapatrimônionacional,nãoobstante,quandosepasseiaporsuasruas a sensaçãoédeuma retomadahá tempos anterioresnahistóriadoBrasil, porque sevê estradasdepedra, igrejaslocalizadas em cima de morros, a manifestação de grupos folclóricos, residências com fachadas coloridas e ecléticas,dentreoutrasimagenshistóricas.

Além da riqueza histórica expressa na arquitetura colonial, a cidade de Laranjeiras guarda, ainda,expressõesimateriaisdesuahistória,contadaatravésdapresençademaisdevintegruposdedançasefolguedos(Santos,2006),aexemplodaTaieiraeCacumbiaquianalisados.

ATaieiraComo legado do tempo do Brasil escravocrata, a Taieira (Fig. 1) é uma dança que transita entre

característicasportuguesacatólica–fazpartedasdançasdoCicloNatalino–eosaspectosdaculturaafricana–ritmos,sonseletras–,paralouvaraNossaSenhoradoRosárioeSãoBenedito,assimcomoaChegançaeoCacumbi(DANTAS,1972).

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Figura1–GrupodasTaieiras,IgrejadeNª.Srª.doRosárioeSãoBenedito,Laranjeiras/SEFoto:IvanRêgoAragão.

Trazida de Portugal para o Brasil, a Taieira incorporou elementos da Diáspora Negra em suasmúsicas.Alencar(2003)eLemosetal.(2007),corroboramestedadoaomencionarqueesteselementosestão vinculados ao negro, e nesse contexto, a Taieira de Laranjeiras inseriu nos seus ritos, tanto oscantosbenditosdelouvaçãoaossantosnegros,comoaosorixás,seutilizandodocultoafro.

DeacordocomDantas(1972),nopassadoexistiamgruposdeTaieirasnosestadosdeAlagoas,BahiaeRiode Janeiro, “[...], porém,naatualidade,umasensível reduçãoda suaáreadeocorrência,nestesestados” (Lemos et al 2007, p. 25).Assim como esses grupos, asTaieiras das cidades sergipanas deLaranjeiras, São Cristóvão, Japaratuba e Lagarto, estão vinculadas, no presente, à herança do Brasilcolonial,ondeasociedadeescravocrataquasesempreexcluída,encontravameiosdelouvarseusorixásatravésda representaçãodos santoscatólicos.Atualmente,ocaráter legadopelo sincretismo religiosotem característicamarcante nasTaieiras deLaranjeiras, o que não ocorre com todos os grupos dessefolguedo em Sergipe, que têm mais característica artístico-cultural (Alencar, 2003; Dantas, 1972;Ribeiro,2003).

ATaieiraemLaranjeiras,desdeoséculoXIXatéomomentopresente,sefirmouemumalinhagemdeseisgerações,semprecomapresençamarcadapelaliderançademulheresafrodescendentes.

AntesdafamosaUmbilina,houveanegraCalu,quejámorreuidosa,antecedidaporMariaNenêga,querecebeuatradiçãodeSáGeralda,antigamenteadonadesseespaço.(DANTAS,1972,p.56).

JánoséculoXX,doisfatospuseramocaráterdohibridismoreligioso,quesetransformouemmarcadaexpressãoprincipaldogrupo.Sendoumamanifestaçãovindadesdeoperíododa segmentaçãodosespaços religiosos e étnicos, as Taieiras, com a liderança deMãe Bilina,[57] revelavam a partir daprimeirametadedoséculoanteriormentecitado,ohibridismoafro-católico.

TalrealidadeseconcretizoucomoritualdecoroaçãodarainhanaIgrejadeSãoBenedito,ondeantesda citada líder, não dialogavam os ritos da cultura Nagô e Católica. Ao assumir a direção, Dona

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UmbilinaAraújo,queeraMãedeSanto, trouxeoselementosafricanosdaculturaNagôparadentrodoritualcatólico.

[...]comMãeBilina,aTaieirasefirmouemimportânciaerespeitoperanteacomunidadelaranjeirense.Netadeescravos,herdoudesuaavó,Ismera,conhecidacomoBiroquê,atradiçãoreligiosaafricana,sendoposteriormente“convocada”paraachefiadoterreironagô“SantaBárbaraVirgem”.DesuamãeCarolina,a“CrioulaCalu”,recebeuoencargodeorganizaraTaieira.(Lemosetal2007).

DeacordocomAlencar(2003),naTaieiradeLaranjeiraséperceptívelelementosderituaisafros,nãosó nos ritmos e nos cantos, mas no cortejo remanescente do cerimonial dos congos africanos que sefixaramdesde oBrasil colônia.Essa proximidade entre culturas diferentes, que acontecia somente noápicedacerimôniadecoroaçãodarainhadastaieiras(Fig.2e3),tornou-serecorrentenocotidianodogrupo.Aotomarafrentedostrabalhos,tantodoTerreiroSantaBárbaraVirgem,quantodofolguedodasTaieiras,alíderreligiosaD.Umbilinaestipulouobatizadocatólicoeapurezacomopremissasparaainserção no grupo. Para tornar-semembro no grupo das Taieiras tem que sermenina emoça virgem(Lemoset al,2007).Emconsequênciadessaúltimadisciplina,MãeBilina tratoudemodificar a faixaetáriadosmembrosdogêneromasculino(rei,ministroepatrão),quepassoudeadultosparameninosepré-adolescentes.

Figura2–ImagemdeNossaSenhoracomaCoroa,IgrejadeNª.Srª.doRosárioeSãoBenedito,Laranjeiras/SEFoto:IvanRêgoAragão.

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Figuras3–MomentoqueoAtributodaImagemépostonacabeçadeumaintegrantedaTaieira,IgrejadeNª.Srª.doRosárioeSãoBenedito,Laranjeiras/SEFoto:IvanRêgoAragão.

ComofalecimentodeD.Umbilinanadécadade70doséculopassado,aliderançaficaacargodeD.LourdesdosSantosque,durante40anos,manteve-se fielaospreceitosevocadosporsuaantecedente.Foi quando, a partir de 2003, Bárbara Cristina tornou-se a Loxa[58] que assumiu essa função até aatualidade.Numaanálisemaisao fundo,percebe-sequeaTaieiradeLaranjeiraséumgrupoqueestáalicerçado emuma sociedadematriarcal, onde ao ocorrer o falecimento da líder, os orixás são quemdefinemsuasucessora.

Vestidosemtrajedepredominânciavermelhaebranca(coresdeOyá),fitascoloridascomcadacorrepresentandooOrixáespecíficoechapéuscomflores,ogruporememoraoreinadodoCongoquefoiumaconstanteemrepresentaçõesdos festejosdas irmandadesouordens terceirascatólicasdehomenspretos.Nessecontexto,oque tornaaTaieiradeLaranjeiras singular em relaçãoaosoutrosgruposdeSergipe e de outros estados brasileiros, além do aspecto já citado da pureza, é o seu processo deexistênciapautadonaliderançaerelaçõesdepoderdasmulheres:filhasemãesdesanto,culminandonaatualintimidadenodiálogocomouniversoafro-católico,sendoumamanifestaçãopopularquetambémbuscaavalorizaçãodatradiçãoculturalafro-sergipana.

ORitodaCoroaçãoAnualmente, no segundo domingo do mês de janeiro que coincide com o último dia do Encontro

Cultural de Laranjeiras, acontece à coroação da rainha das Taieiras na igreja de Nossa Senhora doRosárioeSãoBenedito.Nopassado,esseritualerarealizadonodia06dejaneiro,noentanto,comocrescimentoedivulgaçãodocitadoeventopelamídia,deu-seinícioaoatodecoroarumadasintegrantesdogruposemprenoencerramentodoencontrocultural.

SemprenodomingodoencerramentodoEncontroCulturaldeLaranjeiras,apartirdas9horascomeça

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amissa católica.Nomesmohorário, do outro lado do centro histórico, o grupo de jovens e criançasformadoemsuamaioriapormeninas,searrumapararealizarapósamissa,osseuslouvoresàVirgemdoRosário e São Benedito. Junto com o grupo do Cacumbi, as Taieiras se concentram na residência eterreirodalídere,apartirdaí,dãoinícioaodesfilepelasruasdocentroantigodacidade.

OsdoisgruposcitadossaememcortejoatéamargemdorioCotinguibaondeprestamseuslouvoresàentidadedasaguasdocesOyá/IansãeBomJesusdosNavegantes.Logoapós,oscomponentesformadospelopatrão,guias,ministro,capacetes,rei,rainhaselacaias,[59]sedirigemaigrejadeNossaSenhoradoRosárioeSãoBenedito.Chegamàigreja,sempreseguidosporfotógrafos,pesquisadores,turistasecuriosos.

Tendoàfrenteojovemrapazquefazopapeldepatrãotocandotambor,ogrupodemoçasecriançassaempelas ruas em duas filas, sempre em idade decrescente. Se na frente tem a guia na outra fileiraaparece à contra guia. Quando as Taieiras chegam à igreja é perceptível à alegria de todos osexpectadores ao verem o grupo de jovens que se postam no altar junto à Virgem do Rosário e SãoBenedito.Apósotérminodamissa,amesadoaltardaigrejaéremovidatransformando-seempalcoparaa louvaçãodos grupos.Passados parte dos cânticos para os louvores, o padre se dirige à imagemdeNossaSenhoradoRosárioremovesuacoroaepõenacabeçadaintegrantedogrupo.

Aspessoasqueestãonaigrejasãoacometidasporumagrandeemoçãoeecoamaplausosportodoorecinto. Em seguida, o líder religioso retira a coroa da jovem que faz o papel da rainha do grupo edevolvepara a imagem.Aocoroar a jovemdentrodo rito católico, o representante religioso católicoempondera o grupo como um todo e subliminarmente, a identidade afro-brasileira e católica, ambaspertencentesaosmembros,sendodemarcadassocialeetnicamente.

Emseguida,queminiciaasdevoçõessãoasintegrantesdaTaieira,eposteriormentedoCacumbi.[60]Acompanhadasdetamborequerequechés,[61]cantandoedançando,asintegrantessempreemdupla,sedirigemaoaltarparadeixargalhosdearrudaemoferendaaoscitadossantos.Entreasmúsicascantadasestão “São Benedito não quero mais c’roa”, “Lá vai São Benedito”, “Deus vos Salve Casa Santa”,“Entremoscommuitaalegria”,“Calango”,“Guiacomguia”entreoutras.[62]Nessemomento, a igrejaencontra-se cheia de pessoas tanto na parte interna como externa: são turistas, estudiosos da culturapopular, pesquisadores de ritmos e etnomusicologistas, fotógrafos, jornalistas, documentaristas,estudantes e pessoas da comunidade. Essa missa é especial, pois além de rito católico, torna-se umevento e cenário de expressão cultural. Na manhã do segundo domingo de janeiro, na cidade deLaranjeiras,aculturaestámaterialmentepresenteemsuadiversidade.

OritualdacoroaçãodarainhadasTaieirasexpõeelementosrelacionadosàculturadeumdosgruposétnicosformadoresdopaís.Eventoparaatraçãodepessoas,asimbólicacoroaçãodeumadasintegrantesdogruporeforçaamensagemdeidentidadeepertencimentoculturalvindadosantepassadosafricanos.Seacoroaçãoésingularou“exótica”paraalguns,nacomunidadedeentornoelafazpartedapaisagemculturaldacidade.ComoinformaGrünewald(2003,p.144)

[...] se o exótico, o outro, é procurado em lugares distintos do de origem do visitante, os habitantes desses lugares, de

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acordocomaperspectivaturística,devemsepromovercomoesseexótico,afimdeseratrativonomercadoturístico.

O citado evento perpetuamemórias coletivas, define umamanifestação cultural como elemento dopatrimônioimaterialsergipano,alémdedemarcarposiçõespolíticasedegêneronoseiodasociedadelocal.Essaexpressãoculturalereligiosapelasuasingularidade,potencialmenteproduzumatrativoparaoturismoétnicoemSergipeedeveserolhadocommaisatenção.

OCacumbiO Cacumbi (Fig. 4) é a outra dança representativa na cidade de Laranjeiras que transita entre o

culturaleoreligioso,sendoformadaapartirdoselementosdohibridismoculturalpopularbrasileiro.

Figura4–GrupodeCacumbiLouvandoaSãoBeneditonoInteriordaIgrejadeNª.Srª.doRosárioeSãoBenedito,Laranjeiras/SEFoto:IvanRêgoAragão.

Ocatolicismo,comoapráticareligiosadedominaçãodoBrasilcolôniaeimpério,somentetoleravaelementos de outras culturas que não rebatessem os símbolos e os discursos da cultura e da religiãovigente.

Nesse sentido, a polução negra vinda da África e seus descendentes, encontram maneiras paramanifestarasuaféatravésdaincorporaçãodeelementoscatólicoscomoestratégiadedisfarce.Ferretti(2007)mencionaqueaformasincréticadevivenciarocultoreligiosocorroboraemserumaformadehibridismocultural,poisnãoexistemreligiõesouculturaspurasounãosincréticas.Aindaassim,oautorcitadoconfirmaqueosrituaisdecultodareligiosidadepopularportuguesaedeorigemafricanasão,

[...]duasretasqueseencontramnoinfinito.Paralelismodeideiasevaloresqueestãopróximos,masnãosemisturamnemseconfundem.(FERRETI,2007,p.7).

AssimcomoaTaieira,oCacumbideLaranjeirasnasfestasdossantosreisfazemsuashomenagensaSão Benedito (Figura 5) e Nossa Senhora do Rosário dançando e cantando no altar da igreja. Silva(2013,p.2)fazumpanoramadadançaaomencionarque,

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Ocacumbiestevesempreligadoaocatolicismopopularnegro,denorteasuldoBrasil,tambémconhecidocomocatumbiouquicumbi,elesempreapresentoucaracterísticassemelhantesemsuastrovas,bandeiras,roupagens,tamboreseespadas,instrumentospresentesnadança.Tinhaporobjetivo,fazeracoroaçãodeseureiedesuarainhaehomenagearcomtrovaseprocissõesNossaSenhoradoRosárioeSãoBenedito.

Figura5–SãoBenedito,IgrejadeNª.Srª.doRosárioeSãoBenedito,Laranjeiras/SE(Séc.XVIII)Foto:IvanRêgoAragão.

SegundoAlencar(2003,p.71),oCacumbiéumavariantedascongadas,porémsuaraizésempreamesma:africana.Essadançaguardatraçosdocontinentenegroemváriosaspectos:napompadocortejo,napresençadosreis,dasembaixadas,nalutaentrereisenascenasdecombate.

Após João Pita e mestre Zezinho, nos últimos anos, mestre Deca esteve à frente do grupo dosCacumbisemLaranjeiras.Porém,pormotivodeidadeavançada,atualmentequemlideraogruposãotrêsdosseusfilhos.EmLaranjeiras,oCacumbinãopossuimaisadramaticidadedeantes:segundomestreDeca,nopassadoogrupotinhatodasasfigurasparaumaapresentaçãodramática.

A ausência dos personagens citados anteriormente por Alencar (2003) transformou o Cacumbi deLaranjeiras emumgrupo coreográfico comdanças, ritmos e sons alegres e ricos.Assim comooutrosgruposdecacumbinoBrasil,ogrupoemLaranjeirastemorigemnaConfrariadeSãoBeneditoeNossaSenhora do Rosário já no período escravocrata do Brasil colônia. O grupo é formado somente porhomensadultoseidososquesãoosmestresedançarinos.[63]

Os cacumbis se apresentam trajados com calça comprida branca, camisa demangas compridas emlaquêamareloouro,[64]com fitas coloridas saindodos chapéus e caindona frente e atrás da camisa.Chapéu de palha forrado de laquê, com a aba quebrada e espelhos colados e conga azulmarinho.Ocacumbitemumadançamarcadaporevoluçõesdentrodeumritmointensoesequenciado.

A dança em dois cordões de repente se transforma numa cadeia ritmada que tem característica de dança guerreiratamanhadobatuquequeosimpulsiona.(ALENCAR,2003,p.76).

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NoCacumbi o louvor a São Benedito é característica dominante na devoção em Laranjeiras e deoutrosgruposdoBrasil,semprecomainfluênciadaculturaafro-brasileira.

ConsideraçõesfinaisAo observar in loco os grupos das taieiras e dos cacumbis em Laranjeiras, constata-se que os

elementosqueosdistinguemcomogruposdemanifestaçõesculturaisafro-brasileirassefazempresentesainda nos dias de hoje, pois são formas de identidades, resistência cultural-religiosa, e denotamsingularidadenosfolguedosedançasdofolclorebrasileiro.

SeaTaieiraeoCacumbisãogruposformadospelajunçãodeduasculturasdistintas–portuguesaeafricana–,essa justaposiçãodeelementosculturaisereligiososoriundosdasdevoçõesaossantosnasirmandadesdehomenspretosdoBrasilColônia,equalizaasingularidadeculturalafrocatólicadeambasasdanças.Herançasdaspopulaçõesvindasparacolonizare trabalharnopaísnaeconomiaaçucareiraentreosséculosXVIeXVIII.

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[53]Diáspora é um substantivo feminino com origem no termo grego "diasporá", que significa dispersão de povos, por motivos políticos,econômicosoureligiosos.[54]A abordagem da cultura brasileira sob a influência dos elementos africanos pode ser visitada em estudos deDANTAS (1966-1978),FERRETI(2013),LODY(1995,2003,2004)ePRANDI(1998,2011).[55]ComoSãoBenedito,SantaIfigênia,SãoElesbão,SantoAntôniodeCategeróeSãoBaltazar.AlémdainvocaçãomarianadaVirgemdoRosário,muitopopularnasirmandadesdehomenspretosnoBrasilcolônia.[56]FoiapartirdosescravosalforriadoselivresquenoBrasilsurgiramasirmandadescatólicasdoshomensdecor,eassim,elespuderamteracessolivreaointeriordaigreja.[57]CarinhosamentechamadadeMãeBilina,alídertinhacomonomedebatismoUmbilinaAraújo.[58]ChefereligiosadoTerreiroNagôSantaBárbaraVirgem.[59]PapéisdosintegrantesdogrupodaTaieira.[60]EntreolouvordaTaieiraeCacumbi,aconteceolouvordaChegança.[61]Espéciedechocalho.[62]DenominaçõesdasmúsicasretiradasdolivrodaantropólogaBeatrisGoisDantas.[63]Atualmente,nacidadedeLaranjeirasexisteocacumbimirimformadoporcrianças.[64]Apenasomestreusaacamisanacorazul.

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ENTRELAÇAMENTOS:aprender,rezarebrincaroReisdeBoi

GiseleLourençatoFaleirosdaRocha

AmanifestaçãodeReisdeBoi integra-seaoconjuntodeexpressõesdaculturapopularbrasileiraqueprestamdevoçãoaosSantosReis.Aomesmotempo,emsuaspráticasrealiza-seoautodoboi,presenteem muitos folguedos existentes pelo Brasil afora, com características específicas em cada região:Bumba-meu-Boi, noMaranhão e Ceará; Boi-Bumbá, no Amazonas; Boi-Calemba, no Rio Grande doNorte;BoideMamão,emSantaCatarina;eReisdeBoi,noEspíritoSanto.[65]OReisdeBoiétambémconhecido como “Boi Mole”, pela ausência de armação em sua estrutura, sustentado apenas por umbastão demadeira, tendo o seu corpo coberto por tecido de Chita colorida. A cabeça é enrolada notecido,oquepermitequeoboieosbichossejamlevadosnoombro.Essacaracterísticafacilitabastantea mobilidade dos grupos durante os períodos de apresentação (INSTITUTO NACIONAL DOFOLCLORE,1982).

EmboraapresentemdevoçãoaSantoReiseestejamrelacionadasaoCiclodoNatal,háumadiferençaentre as folias deReis e o Reis deBoi: a folia deReis não tem o boi e o conjunto de personagens(macacos, mulas, cobra, beija-flor, urubu, entre outros). Nas folias de Reis geralmente encontramospalhaçosquebrincamcomosfoliões(NEVES,1994).

Em São Mateus/ES, encontramos muitos grupos de Reis de Boi,[66] sendo uma representaçãoimportantedaculturamateriale imaterial,presentenocalendáriofestivo, religioso, turísticoeculturalregional.NessaslocalidadesosReisdeBoirealizamassuas“jornadas”.[67]

AcidadeéreferenciadacomosendoumdosmunicípiosmaisantigosdoBrasileconhecidocomoumadasprimeirascidadesquesurgiramemnossopaís.SituadonaregiãonortedoEstadodoEspíritoSanto,foi colonizado por portugueses, em meados do ano de 1544. Inúmeros navios de escravos foramdeportados no porto de São Mateus, o que hoje configura o rico patrimônio cultural, histórico,arqueológico,étnicoereligiosodaregião.

OportodeSãoMateusfoidesumaimportâncianopassadopelofatodeterdesembarcadomaiorcontingentedenegrosnoinício do século XIX, sendo que o último carregamento apreendido na costa brasileira aconteceu em 1856, quando foiaprisionadaumaescunanorte-americananaBarradeSãoMateus,com350negros.(NARDOTO,2008,p.24).

O porto de SãoMateus é patrimônio tombado, possui 32 sobrados que foram edificados entre osséculosXVIIaXIX.Aindanaatualidadeépalcodediferenteseventosculturais,comdestaqueparaosgruposdeJongo,ReisdeBoi,Capoeira,PontosdeCultura(Fig.1).

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Figura1–CasarõeseruínasdoSítioHistóricoPortodeSãoMateus/ESFoto:GiseleLourençatoFaleirosdaRocha,2012.

EncontramosumaconexãoentreouniversoculturaldosbrincantesdeReisdeBoieavidacoletiva,[68] relacionado às demais experiências da vida cotidiana na cidade de São Mateus, a sua cultura,religiosidade,história,eexpressõesartísticas:

AregiãolocalizadaaonortedoEspíritoSanto,quecompreendeprincipalmenteosmunicípiosdeConceiçãodaBarraeSãoMateusalémdaáreadoValedoRioDoce,zonacacaueira,recebeuforteeperdurávelinfluênciadaBahia,sobretudonoshábitos e costumes populares,mantidos através dos tempos pela populaçãomiscigenada, onde é notória a presença doelemento negro... Interessante notar que, mesmo de regiões mais distantes, especialmente do nordeste, há presençaacentuadanofolclorecapixaba.Defato,sãonumerosososelementosdofolk deprocedêncianordestinaqueenriquecemopatrimônio tradicional capixaba: osReis deBoi (réplica doBumba-meu-boi); asmarujadas; o alardo [...] (INSTITUTONACIONALDOFOLCLOREBRASILEIRO,1980,p.2-5).

Entreosbrincantes[69]deReisdeBoiencontramosdevoçãoaSantosReis,mastambémumarelaçãocomoutrossantosevocadosnasfestividadesemSãoMateusenascomunidades:SãoBenedito,SãoBráse São Sebastião.Cada santo possui a sua “identidade sagrada”, uma biografia que permite narrativasentrediferentesformasderepresentações.[70]

Entre essas devoções, destacamos práticas direcionadas aos Santos Reis e São Benedito, o queentendemos aqui como sendo uma “perspectiva religiosa”, ummodo de ver, discernir, aprender, umaformaparticulardeolharavidae“[...]umamaneiraparticulardeconstruiromundo”(GEERTZ,2008,p.81).

ApósencerraroCiclodoJongo,inicia-seoCiclodoReisdeBoi.Esseentrelaçamentodeentidades"sagradas,símbolos,discursos”sãodenominadasformasdesincretismo,[71]muitasvezesconfiguradasemumasobreposiçãodesímbolosesignificados,acionadospelosmesmosatores:

Nessaperspectiva,osincretismoaparececomoumaconstantequepodeserobservadaemtodasas religiõese todasasculturasqueestãoeminteração.Emoutraspalavras,nãoháreligiõesouculturaspurasounão-sincréticas,umavezqueéprópriodossistemassociais,religiososounão,reproduzir-seeperpetuar-seatravésdaincorporaçãodesímbolosesignosdeoutrossistemasedareavaliaçãopermanentedosseuspróprios.(STEIL,2001,p.31).

OcompartilhamentodepráticasentrebrincantesdeJongoedeReisdeBoirevelaumafluidezetrocasentreseusparticipantes.Paraalgunspraticantes,obrincantedeReisdeBoipodepertenceraqualquerreligião, depende da pessoa.Outros defendem a importância do catolicismo[72]e da relação com ossantos:

Para brincar é preciso ser católico, todos católicos. Não pode colocar outros no grupo porque

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assimmaltrataSantosReis,SãoSebastião,SãoBrás[...].Elesfazemamizade.ParaparticipardabrincadeiraénecessárioserdevotodeSantosReisecatólico,senãofornãodácerto.(Informaçãoverbal,MestredoReisdeBoidosLaudêncios,conhecidocomoSr.ZecaJoséAntôniodosSantos,2016).

Aqui evidenciamos o sentido deDurkheim (2008) entendendoque as representações religiosas sãorepresentações coletivas, sendo estas constitutivas do “tecido social” e dependentes de como sãoconstituídaseorganizadas.NocontextoculturaldeSãoMateusevidencia-seaparticipaçãodosgruposde Reis de Boi, tanto pela integração de suas práticas nos acontecimentos culturais e religiosos dacidade, como pela participação dos grupos através de suas interações com a comunidade e casasvisitadas. Nesse sentido, não é possível estabelecer fronteiras entre os grupos de Reis de Boi emodalidades de participação. Um brincante de Reis de Boi pode brincar emmais de um grupo e/ouparticipar de outras práticas culturais/religiosas, tendo, portanto, certa “flexibilidade estrutural”(CHAVES,2013,p.38).[73]

NovostemposdedevoçãoAs folias em devoção aos Santos Reis, em sua grande maioria, acontecem em um período

compreendido entre 31 de dezembro e 6 de janeiro, sendo o período anual dos festejos.[74]Cronologicamente,nosReisdeBoiencontramosumperíododistinto, iniciando-senodia6dejaneiro,diadosSantosReisefinalizandonodia3defevereiro,diadeSãoBrás.

Brandão(1981),aopesquisarafoliadeReisemmeiourbano,sinalizaaocorrênciadetransformaçõesdesdequeessesgruposmigraramdocampoparaacidade.Duranteas jornadas,osfoliõespassaramapercorrer trajetosmenores, ficavammenos temponos locais visitados, cantavammenos, não dormiammaisnoslugaresporondepassavam,voltandoparacasanofinaldanoite.

Otrabalho,adisponibilidadedetempoparaasjornadaseavidanacidadeproduziramnovasformasderealizaçãodasfolias,sobretudoporinfluênciasdamodernidadeeurbanização.Entretanto,“[...]estemovimentonãosignificouhomogeneização,masmudanças” (VELHO,1995,p.229),conforme tambémrevelado por Sr. Paixão (2016):“antigamente a gente cantava a noite toda, a gente andava pelasroças...3diasparaSantosReis,3diasparaSãoBráse3diasparaSãoSebastião.”Agorapornoite,osgrupos cantam em duas casas:“a gente visita duas casas, as vezes acontecem de cantar em três”(Informaçãoverbal,MestredoReisdeBoiPaixãoBispoCorreia,2016).Aoreferir-seasdatasemquebrincam,oSr.Zecaindicaosdias:

3dejaneiro,6dejaneiro,diadeSãoBrás,jáéoúltimo.ÀsvezesbrincaparaSãoBrás...MasSãoBrásquaseninguémestábrincandomais,sóvaiaquinaigreja.VocêprocuraaigrejaaquiemSãoMateus.Opadrefazobenzimentodagarganta,dagoelaparaapessoa,issotudotemainda.Em20de janeiro temSãoSebastião, sempre temcomunidadesqueconvidameaí já termina.Eubrincojaneiroefevereiro,quandoentraocarnavalnão.(Informaçãoverbal,Sr.Zeca,2016).

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Naatualidade,asjornadassãorealizadascomoutrasrelaçõestemporais,ocorrendoemumperíodode30a45dias,compequenasvariaçõesdeumanoparaooutro.ParaamaioriadosgruposdeReisdeBoi,asapresentaçõescomeçamnosprimeirosdiasdomêsde janeiro,comdestaqueparaaprimeirasexta-feira que antecede o dia 6 de janeiro (dia de Santos Reis). Dessemomento em diante a atuação dosgruposéintensa,commuitasvisitações.

Demaneirageral,asvisitaçõesacontecemnosfinaisdesemana,concentrando-senosdias:sexta-feira,sábadoedomingo.Asapresentaçõescomeçamnofinaldodia,estendendo-sepeloanoitecerafora(Fig.2).Émesmoànoitequeasjornadasserealizam.Umtempopossívelparaaadaptaçãodasatividadesdetrabalho, da vida cotidiana e do estabelecimento de novos tempos para os Reis de Boi. Integrantes,brincantesdeváriosgruposrelataramqueantigamentebrincavamnasroçasduranteodiaeànoitetoda,tocavamedançavamatéonascerdosol.Eraumalongatemporada,mas“agoraétudodiferente”.OSr.Zecademonstrapreocupaçãocomdiminuiçãodosgrupos:

Todomundogosta, dámuitagente todoano, temosgruposque vai e brincadireitinho e se nãomelhorarvaiseacabando,vaiacabando...porqueosmaisvelhosjámorreramtudo.Dessesgruposde folclore dos mais velhos que tem, só temos eu e esse outro grupo que eu brinquei, lá dasbarreiras. Só temos esses dois grupos, os outros já acabou tudo. (Informação verbal, Sr. Zeca,2016).

Raphael demonstra amesma preocupação e diz que a quantidade de participantes está diminuindo“cadavezmais,issonãopodeacontecer,émuitotriste”.ComentaqueaspessoasachamqueosReisdeBoisãoapenasparaosidososeafirma“temgentejovem,temgenteseguindo”.ParaeleoReisdeBoinãoestásendoapropriadopelos“jovensdessestempos”:

[...]nós,jovensdessestemposparacá,“modernos”nãovêenãosabe,nãosabe.QuandoagentevêoReisdeBoialirepresentadomuitagenteachaqueésóchegarnascasas,cantar...tempessoasquenãoprestamatençãonemnaletradamúsica.Aletradamúsicatrazmuitareligião,trazculturapassada,trazoqueé.SevocêpararparaentenderoReis,oqueelequerfazer,oqueelequerfalarpara você... dá para você ter uma noção de religião, de crença, de tudo. O reis traz tudosimplificado,bastavocêparar,prestaratenção,entender.(Informaçãoverbal,Raphael,2016).

Asvisitaçõestambémdiminuíramemfunçãodaslongasdistânciasaserempercorridasentreasroçase na cidade. Esses novos espaços das “encenações do popular” demonstram que as tradições sereinstalaram para além das cidades, num sistemamais amplo de circulação cultural: interurbano e/ouinternacional (CANCLINI, 2003, p. 218).Vadinho[75] comenta que antigamente iamontado a cavalo,mashojesesairacavalo...“ninguémvai”.Senãofordecarronãovai:

[...]édifícilcondução,temquepegaroônibusnomeiodapista.Setemmotovemdemotooucarro,senãotemquealugarumcarro.Semorasse todomundojuntoeramais fácil. (Informaçãoverbal,Vadinho,2016).

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Figura2–ReisdeBoieVaqueiroemSãoMateus/ESFoto:GiseleLourençatoFaleirosdaRocha,2013.

Umgrupopodevisitar,emmédia,seislocaisdiferentesemumfinaldesemanaenofinaldocicloterfeito entre 20 e 25 apresentações, realizadas em casas distintas. Nesse sentido, considero que essasvisitaçõesdefinemaabrangênciadosparticipantes, fundamentalparaamanutençãoepermanênciadosReis de Boi. A existência de pessoas que organizem os grupos de Reis de Boi, que realizemapresentaçõesepessoasqueconvidemosbrincantesparavisitaremassuascasas,édeterminanteparaacontinuidadedessaprática.Raphaeldestacaaimportânciadosdonosdasresidências,depessoasqueosrecebamnascasas:

Odonodacasanaverdadeéoprincipal.Nãotemfestadereissenãotemodonodacasa.Éelequeestáabrindoacasa,éelequemvai receber, éelequevai fazerabrincadeiradarcerto.Quantomaiseleentra,seincorporanabrincadeira,ébemmelhor.Algunsficamtímidosnãofalammuito...Outrosdizem“podevir,podevir”,masquantomaiseleinterageficabemmelhor,maisdivertida.Eleéprimordial,odonodacasanãopode faltar,nãopode faltar.Naverdadenãoprecisa serodono da casa. Se a pessoa for tímida pode estar nomeando: “Oh quando os reis vir você ficaresponsável”, não tem problema, mas tem que ter. Se não tiver esse representante, não tembrincadeira.Nós chegamos e procuramos o dono da casa, se ele não estiver, fica todomundo amercê.(Informaçãoverbal,RaphaelSantos,2016).

Brandão(2007,p.299),aopesquisarasdançasdecongoemItabira/MGquelouvamSãoBeneditoeSãoGonçalo,relatatransformaçõeserevelacomoasapresentaçõesdosternosefestejosestãocadavezmaissimplificadas:

[...] os católicos camponeses e negros usam de tudo e, na verdade, reproduzem hoje – com menos instrumentos,personagensecoreografias–osrituaissecularesdareligiãopopular.

Nessesentido,o“saberreligioso”mostrasuafragilidade,umavezquedependedacontinuidadedosjovens,dointeresseemparticipareconhecer.Vadinho,pensandonessacontinuidadeensinaoseufilho,contaqueantigamenteeramascriançasqueinsistiamparabrincar:

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Meupaiparticipa,foiomeuavôquepassouparaomeupaiemeupaipassouparanós.Eubrincoatéhojeeestoupassandoparaomeufilho.ÉculturadeSãoMateus.Euviomeuavôbrincandomaisomeupaieaíeumeinteressei.Naquelaépocaelesnãoobrigavamagenteabrincar,agentequeinsistia.Temcriançahojequesevocêchamarparaapresentar,sevocêéomaisvelhoenãoentrarnafrenteelenãoentra,outrosjáficamrindo:“vocêéboborapaz,brincandocomochapéuinventadonacabeça”.Desanimamfalando...“euvouláeelesficamrindodemim”.Senãotiverincentivoacabamesmo.Nãotemjeitonão...vaidatradiçãodesdecriança.Agorasevocêforpegarumacriançahojeaquiquenuncabrincouecolocar,elebrincadoisanosatéelecrescereahoraqueelepegaridade,queosamigoscomeçaremasairparaabalada...acabou,jáera. (Informaçãoverbal,Vadinho,2016).

Aaquisiçãodosaberéumtrabalhoque,portanto,demandaesforçosquecomeçamnainfância,sendoum “[...] processo ativo, motivado, voluntário algumas vezes; outras, uma imposição familiar”.(BRANDÃO,2010,p.91).Aomesmotempo,dificilmenteumacriançaparticipadeumabrincadeiradeReisdeBoi,ou folia, senãopossuir relaçõespróximas–“[...] sejadeparentescooudevizinhança–entreasuafamíliaeadomestrefolião”.(CHAVES,2013,p.80).

Agarantiadamemóriadestesaberéfrágiledependentedaatividadecontínuadesuasredessociaiseespecializadasdocontroledadocência.Odesaparecimentodequempossaquereraprender,incentivarascrianças,ensinaretransmitirossaberesrompecomoselosdemediação:

[...]gruposcatólicosenãocatólicosdotrabalhoreligiosoperdemseusaberporque,aospoucos,perdempelomenospartedesuasredessociaisdeproduçãoetransferênciadesabedoriaepoder.(BRANDÃO,2007,p.308).

NasfalasdosbrincantesdogrupodeReisdeBoiessapreocupaçãoérecorrente,porissooincentivoconstanteparaaparticipaçãodascrianças,trabalhoquetambémbuscamrealizarosgruposmirinsdeSãoMateus.

OssaberesdoMestreeoritualdepreparaçãodosReisdeBoiOmestreéquem“ensina”,eo“capitão,”équemcomandaa“equipe”(BRANDÃO,2010,p.7).Ao

estudaroBumbámeuBoidoMaranhão,Carvalho(2011,p.149-150)identificaqueosbrincantesestãode certa forma “[...] submetidos à força exercida pelo dono ou líder da brincadeira”, isso aconteceatravésdaprestaçãodeserviços, favores,osquais reafirmamos laçosentrebrincantesemestres.Porisso: “[...] brincar boi é tambémmanter vínculos de obrigação e reciprocidade em relações humanashierarquizadas”.

Asaçõesdomestreenvolvemmuitasatribuições,oSr.Zecaexpressaoseuentendimentosobreessafunção:

Elesestãofazendoconfusão.OMestrehojeelesestãofazendoassim,équemensinaabrincadeira,cantaparaopessoalaprender,masnãoésóissoquevale.TemqueserumMestrequetomacontaedáconta.EleéoMestre, ele tomacontae temquedarcontada turma,colocar tudoemordem,organizaascoisas tudobonitinhoparasair.ÉondehojeelescolocamumMestre,misturou,está

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tudomisturando.NãoésóMestrequemfazabrincadeira,Mestreéquemtomacontaedáconta.(Informaçãoverbal,Sr.Zeca,2016).

OSr.ZecaseconsideraimportanteporserummestredeReis,ficafelizaodizer:“opessoalgosta”.[76]EledesejaqueofilhoVadinhorecebaoseuencargodeMestre,queeledêcontinuidadeeseorgulhadashabilidadesdofilho:

Sevocêveromeumenino!VocêviuoVadinhomeu,omeumeninocantando?Euentregueiomeuencargoparaele.Omeumeninodeixasaudade,nãoéporcontadesermeu filhonão,eledeixasaudade. Eu vi que eu não aguentavamais com a idade né, botei ele e ele é elogiado por todomundoporaitudo,porqueelesabefazeroserviço,sevocêverelecantar,vocêchora.Omeninocanta,cantaumcanto...éumacoisalinda.(Informaçãoverbal,Santos,2016).

Vadinhoquerseguirosensinamentosdeseupai:“EugostariadeserummestredeReisdeBoi,mastem que ter muita dedicação porque não é qualquer um que faz a letra”. Ele comenta sobre anecessidadedemanterascaracterísticasdafolia:

Éigualcantortiraumamúsicaeaívai...Porexemplo,seocaraésertanejo,elevaifazermúsicasertaneja,seeleécaipiraelevaicantarmúsicacaipiraeafoliadereiséumafunção.(Informaçãoverbal,Santos,2016).

AssimcomooSr.Zeca,RaphaeltambémreconheceashabilidadesdeseutioVadinho,quemparaelevaiassumiressa“função”praticadapor“umageraçãodefamília”.Destacaqueéprecisoter“dom”equeasatividadesdomestresãocontínuaseaofinaldecadacicloomestrejácomeçaaprepararanovabrincadeira:

Issonãoéparaqualquerum,temqueterumdom.AgenteachaquesermestredeReiséchegar,terumapitoecantar,masnãoénão.Enquantoagente terminaoReisnomêsde janeiro, fevereiro,quantoduraoreisdepoisqueterminaali...cadaumvaiparaoseucantoeomestredereisnão,elejáestápreparandoapróximabrincadeira,dooutroano.Entãoémúsicaatrásdemúsica.Hojesãoemmédia12músicasnumabrincadeiradependendo,àsvezesatémais.QuandoagenteterminaoReiscadaumvaiparaoseucanto,jáomestrenão,elejáterminaumpensandonooutro.Entãoelejácorre,jáquerfazeramúsicaeacaracterizaçãodaroupa.EntãoquandocheganovembrotodomundoestáquerendobrincaroReiseomestreestáexausto.ÉumageraçãodefamíliaeeuvejooVadinhohojeocaraquevaiassumirissoaibrincandoeeuestousemprejuntoparadarapoionoqueeleprecisareporissoeuopteiporfazerváriaspartesdoReistambém,porcausadisso.Comomestreali,fazendomúsicaaindanãochegouaminhavez,aindanão,masagentevaitrabalhando,vaitentandoequemsabeumdialáeuchego.(Informaçãoverbal,Santos,2016).

Esse“dom”éconsideradoindispensável,sendoparaBrandão(2010,p.52)“[...]umapatamarsobreoqualseequilibraosaberdoartista”,defolião.Essedoméentendidocomoum“dadonatural”naprática,

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noexercíciodosaber:“[...]aprendem,repito,noatodogiro, ‘na jornada’,vendoosoutros fazereme‘fazendoigual’”.(BRANDÃO,2010,p.121).

Omestreassimtorna-seum“emissário”narealizaçãodetrabalhoscoletivos.Identificam-setrocasdeserviços, formas de trabalho, ações estruturadas em “[...] cadeias de trabalho coletivo que recriandodevoção,fazerefazatravésdelaacultura”.(BRANDÃO,2010,p.138).EssaformadeorganizaçãodosReis deBoi pode ser vista comoum“mundo artístico”, uma ação coordenada, onde a cooperaçãodetodos se revela em uma “ação coletiva”. (BECKER, 1977, p. 9-26). Juntos os participantes da foliacriamregrasquequalificamasformasdeparticipaçãodosbrincantes:

Omestreé,aomesmotempo,oagenciadorresponsávelpelaCompanhia,oespecialistadocenteeoartistaprincipal.Neleseocupamasfunçõesdesacerdote,doprofessoredochefe.Semoutropoderanãoseroquelheédadopelacredibilidadequeaequipeeacomunidadeatribuemaseusaberdeartistaedevotoeaseucarismadedirigente,aelecabedirigirogrupoquecantaeguiarocantodogrupo.(BECKER,1977,p.137).

Para aprender a brincar oReis deBoi, omestreSr.Zeca diz que é preciso treinar, ensaiar e esseprocessodevecomeçar“desdenovo”:

Treinando,temquetreinar,ensaiardireitinho,etodomundotemquebrincardireitinho.Esseanoeu entrei numgrupo de folclore e a dona é gente de idade, ela ficou boba de ver eu ensinar osmeninos, como eu fazia. Ela disse: “Sr. José, o Sr. está com 78 anos e o senhor está brincandomelhordoqueosmeninosnovos”.Eurespondi:“Minhasenhoraeufuiaprendidodesdenovo,temqueserassim,senãonãovai”.Sãodoistrêsmesessóensaiando.NóscomeçamosemsetembroparaemdezembroapresentaroReis.Adançacadaumfazasua,cadaumsabedoseujeitoeaprende.Quecoisalinda,umdiferenteoutroigual.AsmúsicasseaprendemprimeirocomoMestre–eutodavida brinquei, cantei.O netinhomeu desde os 12 anos brinca direito, ele é filho doVadinho.ORafael,elevaiserasegundapessoa.(Informaçãoverbal,Santos,2016).

Vadinho comenta que tudo é ensaiado e que precisam ensaiar para que no dia de sair com abrincadeiratudoesteja“prontinho”:

Tudo aquilo que você vê a gente brincando é tudo ensaiado, tem que ensaiar. Inventa algumacoisinhanahora,mastemqueensaiar,étudoensaiado.Temquetersenão...éummarujoparaumlado outro pro outro, então do jeito que é a música você tem que ensaiar. (Informação verbal,Santos,2016).

Podemos entender que o mestre é aquele que domina um amplo conhecimento de sua prática, namaioriadasvezeselecomanda,organiza,selecionabrincantes,ofereceasuacasaparaosensaios,fazversos e acumulaoutras funções: cuidados instrumentos, roupas, sapatos, organiza ensaios, agendaasapresentações.(INSTITUTODOPATRIMONIOHISTÓRICOEARTÍSTICONACIONAL,2012).

Nessesentido,Carvalho(2011,p.240)ressaltaque

[...]aorganizaçãosocialdoboi,apesardeestarcalçadaemvalorescomunitáriosqueenfatizamacooperaçãoentreseusmembros,apoia-senumahierarquiafundadanaautoridadeindividual.[77]

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Equempodebrincarcomoboi?Omestreou“proprietárioelíder”aoescolherosparticipantesdoseugrupotambémbuscaarticulara

presença de brincantes com os quais tem “afinidade”, “proximidade”. Em alguns casos, existemdiferençasehostilidadescomoutrosgrupos(CARVALHO,2011,p.184).Essasdiferenças/disputasentreosgruposReisdeBoiseexistemsão“veladas”,omaiscomumdeaconteceréumbrincantemudardegrupoouformaroseuprópriogrupo.

OSr.Zecadestacaqueaescolhadosbrincanteséimportante,temqueescolherpessoasquesaibambrincar,“pessoalderespeito”edestaca:

Senãosouberfazerascoisasdireitinhasnãosai,começaenãoacaba.Temgrupodefolclorehojeque eu conheço que é mais bebida, de bagunça, estraga, não ensina os meninos novos abrincar...Temquesaberfazeroserviço,senão....Osanfoneirosenãosoubertocarelevaifazeroque?(Informaçãoverbal,Santos,2016).

Em algumas situações, um brincante pode ser convidado a se retirar do grupo, principalmente seacontecer algumabagunça.Sr.Zecademonstra extremapreocupaçãoe respeito comosmoradoresdascasasvisitadas:“Se errar no grupo, se for cachaceiro,maconheiro, a gente não aceita. Parece serbrincadeira, mas é séria. É muito raro, mas tem vez que acontece”. (Informação verbal, Sr. Zeca,2016).Casotenhamquetiraralguém“énaamizade,tiradogrupo.Onegócioésembriga.Umfolclorevai entrar bagunçando? O dono da casa vai passar vergonha, passar aperto? Não pode ser!”(Informaçãoverbal,Santos,2016).

AlgumasConsideraçõesOReisdeBoiéconsideradoumaversãocapixabadoBumba-meu-Boi(NEVES,2008,p.42).Alémde

suas motivações religiosas/devoção/sincretismo apresenta relações com o lazer, com a brincadeira,sendoumaformadeentretenimentonascomunidades(Fig.3):

UmdosfolguedosmaisinteressantesemovimentadosquerepresentamnoCiclodoNatal,aquinoEstadoeemquasetodoBrasil, é o que tem a figura principal o Boi, ou seja, o Bumba-meu-Boi ouBoi-Bumbá, do norte e nordeste, o Boi-de-mamão,deSantaCatarina,ouReis-de-BoiCapixaba,vigenteainda(graçasaDeus)emSãoMateuseConceiçãodaBarra(...). Participamdo folguedo várias figuras – até certo ponto semelhantes às dos demaisBumbas: oBoi, Pai Francisco(vaqueiro), aCatirina (suamulher), aCobra, vosso Pai,Agaú, Joãomole, a Fantasma... além desses personagens, queentramemcenaconformeoenredodarepresentação,destaparticipamosmarujos,queformamapartemusicaldapeça,comseuspandeiroseumasanfona.(NEVES,1994,p.126-127).

AmanifestaçãodeReisdeBoinãoreúnemultidões,masprovocagrandemovimentaçãonosbairrosenaspropriedadesrurais(sítios/chácaras)nasproximidadesdeSãoMateus/ES.Porisso,aextensãodessamanifestação concentra-se entre os seus participantes, representantes da cultura, em alguns momentosentidadespolíticas/religiosas.

Encontramos novos tempos e espaços para a realização dessa brincadeira, bem como uma“flexibilidadeestrutural”entreseuspraticantes.OmestreéoemissáriodossabereseacontinuidadedoReisdeBoiencontra-serelacionadaaorepassedessaspráticasdesdeainfância,dacontinuidadeentre

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filhos e netos, da existência de pessoas que recebamosReis deBoi em suas casas. Treinar, ensaiar,brincar:“écoisaséria”.(Informaçãoverbal,Santos,2016).

Figura3–FestadosReisdeBoiemSãoMateus/ESFoto:GiseleLourençatoFaleirosdaRocha,2013.

ReferênciasANDRADE,M.de.DançasdramáticasdoBrasil.BeloHorizonte:MartinsFontes,Itatiaia,1982.BECKER,H.S.MundosartísticosetipossociaisIn:VELHO,G.(Org.).Arteesociedade:ensaiosdesociologiadaarte.RiodeJaneiro:Zahar,1977.p.9-26.BRANDÃO,CarlosRodrigues.Deusesdopovo:umestudosobreareligiãopopular.2ed.Uberlândia:EDUFU,2007.BRANDÃO,C.R.AfoliadeReisdeMossâmedes.RiodeJaneiro:FUNARTE,1977.BRANDÃO,C.R.Osdeusesdopovo:umestudosobrereligiãopopular.Uberlândia,MG:EDUFU,2010.BRANDÃO,C.R.Preceefolia:festaeromaria.Aparecida,SP:Ideias&Letras,2010.BRANDÃO,C.R.SacerdotesdaViola:rituaisreligiososdocatolicismopopularemSãoPauloeMinasGerais.Petrópolis,RJ:Vozes,1981.CANCLINI,N.G.Culturashíbridas:estratégiasparaentraresairdamodernidade.SãoPaulo:USP,2003.CARVALHO,L.G.de.Agraçadecontar:umpaiFrancisconobumbameuboidoMaranhão.RiodeJaneiro:Aeroplano,2011.CHAVES,W.D.NajornadadosSantosReis:conhecimento,ritualepodernafoliadeTachico.Maceió:Edufal,2013.DURKHEIM,É.Asformaselementaresdavidareligiosa.3.ed.SãoPaulo:Paulus,2008.p.45.FONSECA,HermógenesLima.FolcloredoEspíritoSanto.Vitória:AracruzCelulose,1993a.FONSECA.H.L.FolcloredoEspíritoSanto.Vitória:AracruzCelulose,1993.p.117.GEERTZ,C.Aartecomosistemacultural.In:GEERTZ,Clifford.Osaberlocal.RiodeJaneiro:LTC,1997.GEERTZ,Clifford.Interpretaçãodasculturas.RiodeJaneiro:LTC,2008.INSTITUTODOPATRIMONIOHISTÓRICOEARTÍSTICONACIONAL.CentroNacionaldeFolcloreeCulturaPopular.FoiSãoBeneditoquemmetrouxeaqui:devoçãoetradiçãoentrecongadasemoçambiquesdoValedoParaíba.SãoLuizdePiratininga,SP:Iphan;Minc,2012.

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[65]OReisdeBoiérelacionadoaosBumbas-meu-BoidoNordeste.OReisdeBoiéconsideradoumaversãocapixabadoBumba-meu-Boi.Realiza-senasfestasdosSantosReis(janeiro)nosmunicípiosdeConceiçãodaBarra(SantaAnaeItaúnas)eSãoMateus.(NEVES,2008,p.42).[66]Entreessesgruposdestacam-se:ReisdeBoide JucaeMateusNascimento,ReisdeBoideElvácioeHermenegildo,ReisdeBoideAilton deLuzia,Reis deBoiMirimdoProjetoAraçá,Reis deBoiMirimPedraD’Água,Reis deBoi de JoséBernardo,Reis deBoi dosLaudêncios,ReisdeBoiLuizdosLaudêncios,ReisdeBoideMariaJustina,ReisdeBoiAntônioGaldino,ReisdeBoideErnesto/Lino,ReisdeBoidosMachados,ReisdeBoidosMachados,ReisdeBoidoPalmitinho,ReisdeBoidoJoventino,ReisdeBoideBarreiras,ReisdeBoideValentim,ReisdeBoiTiãodeVéio,ReisdeBoidePaixão,ReisdeBoideBarros,ReisdeBoideJuca,ReisdeBoidoZozó.[67]Utilizootermo“jornada”ou“jornadas”paradescreverasandançaseperegrinaçõesdosReisdeBoi,suasvisitaçõesnasresidências,emoutroslocaisrevisitadosesuatrajetóriadoquenomeiocomo“CiclodosReisdeBoi”.Chaves(2013),emseusestudossobreogrupodeFoliadeReisdoSr.FranciscoVictorino(o“Sr.Tachico”)eBrandão(1977,1981)tambémempregamessaclassificação.[68]Amplas são as relações dos Reis de Boi com arte e vida coletiva, arte e religiosidade e demais segmentos de uma cultura: “[...] osentimentoqueumindivíduo,ou,oqueémaiscríticojáquenenhumhomeméumailhaesimapartedeumtodo,osentimentoqueumpovotem pela vida não é transmitido unicamente através da arte. Ele surge em vários outros segmentos da cultura deste povo: na religião, namoralidade, na ciência, no comércio, na tecnologia, na política, nas formas de lazer, no direito e até na forma em que organizam sua vidapráticaecotidiana”.(GEERTZ,1997,p.145).[69] Emprego o termo brincante e brincar para fazer referência aos integrantes de Reis de Boi e suas práticas. Eles se consideram“brincantes”deReisdeBoieassimdenominam-se.(Vertambém:CARVALHO,2011,p.148-149).[70]Existemdiferentesnarrativassobreossantos.ParaBrandão(2007,p.336)ossantosdocéuforampessoascomotodos:SãoBeneditofoiumescravoou“‘empregadoque tomavacontadosescravos’;SãoPedro foiumpescador ingênuo;SãoSebastião foisoldado;os trêsReisforam os ‘reis do oriente’ e visitadores ‘doMenino’; São Gonçalo foi ‘violeiro e folgazão’. Todos os sujeitos celestes, um dia humanos,possuem uma biografia que faz sua identidade sagrada um repertório de narrativas [...]” SãoBrás é o santo que resolve os engasgos dagargantacomtapinhasnascostasearepetiçãodeseunome.Atradiçãoprovémdaespinhadepeixequeosantoretiroudagargantadeumacriança,prestesasesufocar.É,porextensão,oprotetorcontraasmoléstiasdagarganta.Seudiaé3defevereiro.Morreudecapitadonoanode316,naArmênia(FONSECA,1993a,p.117).[71]Nessesentido,“[...]cabeaopraticantebeberdetodasasfontes,demodoqueosincretismoéaprópriacondiçãodeacessoàplenitudeemultiplicidadedosagrado”.(STEIL,2001,p.32).[72]EmpregoasreferênciasdeSteil(2001,p.10)aoreportar-seaocatolicismonãounicamentecomoumareligião,massimcomoumsistemadepráticas,rituaisepersonagens,oqueultrapassaaesferainstitucionalda“igrejaeortodoxiascatólicas”.[73]Chaves(2013,p.37-39),aoanalisarafoliadereisdoSr.Tachico,examinaasdificuldadesdeestabelecerfronteirasentreosparticipantesdo grupo do folião. Observa a ocorrência de certa mobilidade: “[...] é prática recorrente na região uma pessoa, em geral sem laços deparentescocomomestrefolião,sairumanonumafolianoanoseguinteirparaoutra”.[74]Paraos católicos, o dia 6de janeiro representaodia dedevoção, de festividadeparaos “ReisMagos” emcomemoração àvisita aomenino Jesus em virtude de seu nascimento.No dia 3 de fevereiro é comemorado o dia de SãoBrás, conhecido como santo protetor dagarganta.(PORTO,1982).[75]RelatodeVirgíliodosSantos.FilhodoSr.Zeca,brincantedeReisdeBoieconhecidocomoVadinho.Entrevistadoem29jul.2016.[76]Sermestrede folia traz reconhecimentoeprestígio juntoaosamigos, familiaresevizinhos.Chaves (2013,p.50)mostraoSr.Tachicocomo ummestre, um “rezador afamado” na região onde atua a sua folia. Entre osmestres deReis deBoi em SãoMateus percebemostambém esse reconhecimento. A Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo reconheceu os saberes do Sr. Zeca comomestre doFolcloreCapixaba/ProgramadeEditaisdaCultura–SECULT/2011,categoria“MestreArmojodoFolcloreCapixaba”.[77]O trabalhoda jornadaédivididoeos saberespara realizá-lomigramdeumgeraçãoparaoutra:“Circula entre ‘compadres’ e entrepadrinhoseafilhados.Sabemostodosqueosistemadecompadrioreforçalaçosfamiliareseestabelecetrocassimbólicasesociaisintensasentrevizinhosecompanheirosdetrabalho.”(BRANDÃO,2010,p.103).

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ARTEERELIGIOSIDADE:oDivinoemParaty

RaphaelDaviddosSantosFilho

Releitura da paisagem urbana na Festa do Divino Espírito Santo, em Paraty (2013 e 2014), paraevidenciar as alterações na estética urbana produto dos cânticos, danças, folguedos e da decoraçãourbana que, em seu sentido simbólico, ultrapassam a preocupação estética de registro documental-temporal da festa, e recriam aquela cidade e o seu centro histórico como um novo lugar, uma novarealidadequeédesenhadaapartirdamaterializaçãoemanifestaçãodaFé.

OmétododeanáliseadotadofoiopercursovisualdoCentroHistóriconaFestadoDivino,emtrajetomapeadoemdoismomentosdistintos(2013e2014),paraaidentificaçãosubjetivadeambientesurbanoscomsingularidadeexcepcionalequeprovocaramumapercepçãoextraordináriaporpartedoobservador.

Naocasião,seprocurouoolhar

[...] que, no ordinário, surpreende o extraordinário, no comum, o único e raro, no familiar, o estranho, no banal, omaravilhoso,nosimples,omaisricoeoriginário.(FERNANDES,2013).

Em busca de uma atitude de valorização do patrimônio histórico material (o Centro Histórico deParaty)eimaterial(aFestadoDivino)dopontodevistadovisitante.

Aofinaleapartirdasobservaçõesdecampo,épropostaumainterpretaçãodoturismocomosendoumavia de preservaçãodopatrimônio cultural que testemunhanadecoraçãourbana, nos cantos e nasfestasamaterializaçãoerecriaçãodahistória,comoacontecenoDivino,emParaty.

Figura1–DetalhedadecoraçãourbananoCentroHistóricodeParaty/RJFoto:RaphaelDaviddosSantosFilho,2013.

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A reflexão sobre as relações entre o patrimônio histórico e as festas populares proporcionapossibilidades além da tradicional – interpretação institucional do patrimônio cultural – registro,tombamento,desapropriação(CANGUSSU;CABRAL,2012)–ouainda,comoespaçosdepreservaçãodesignificadosehistória:Asanotaçõessobreasligaçõesentreasfestividadespopulareseopatrimôniohistóricomostramque este lugar assume umnovo significado/representação junto às comunidades nasfestaspopularesnamedidaemqueessasinstituemnovasrelaçõesqueatribuemaopatrimôniohistóricopreservado umnovo significado imaterial. É possível perceber que durante osmomentos festivos sãoestabelecidasnovas relações comunidade - lugar, quandoopatrimôniohistórico assume,por forçadosentidoprópriodasfestas,umnovosignificado,comoaconteceemParatycujocentrohistóricoépalco,nomês demaio, da Festa do Divino, Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil: Durante o período defestas,acidadeédecoradacommotivosprópriosdacelebraçãoe,evidentemente, temasuapaisagemurbanaalteradaesteticamente,peladecoração,peloscantosedanças,entoadoseexibidosnasigrejaseruasdeseunúcleohistórico.

Paraty,ocentrohistóricoParatyéummunicípiodoestadodoRiodeJaneiro.LocalizadonolitoralsuldoEstado,éPatrimônio

Estadual (1945), PatrimônioHistórico eArtísticoNacional (1958) e foi transformada emMonumentoNacionalem1966(ASSESSORIADECOMUNICAÇÃO,2017).

Paratyéumacidadeportuáriaplanejadaporengenheirosmilitaresportuguesesque,pornecessidadededefesadolocal,definiramotraçadoviárioeondeficariamasigrejas,praças,cadeia,câmara,forteeasáreasresidenciaisdeacordocomopadrãodascidadesportuguesas,ondeasigrejassãoreferênciaepolodeatraçãoresidencial.

Assuascasasforamconstruídasacimadoníveldarua,devidoaoregimedasmarés,previstasparaentrarelimparacidade;eocalçamentodasruascompedrasirregulares(pé-de-moleque)começounoséculoXVIII,graçasaodesenvolvimentotrazidopelociclodoouro.Entretanto,foiariquezageradapelociclo do café que terminoupor calçar todas as ruas.Aspedras eramnecessárias porque as tropas demulas,carregadascomourooucafé,faziamgrandesatoleirosnosdiasdechuvaenuvensdepoeirasnosdiasdesol.

Até 1980 o calçamento de pedras, característica estética do centro histórico, estava em perfeitoestado,comaspedrasalinhadasetodasnamesmaaltura.Entretanto,nesseano,retiraramaspedrasparaaconstruçãodarededeesgotoe,aocolocaremdevolta,nãoofizeramcorretamente.

OIPHAN(2015)defineoCentrohistóricodeParatyapartirdoLargodaMatriz:

OLargodaMatrizeraocentrocívicocolonialondeseagruparamosprédiosdaadministraçãopúblicaeasigrejas.[...]Apaisagem urbana é formada pelo entrecortar de ruas mais ou menos estreitas, onde predominam as casas térreas ouassobradadasdosprédioscomerciaisoumistos.Comexceçãodoslargos,nãoexistiaarborizaçãonasruasdeParaty.Avilase afirmava frente à imensamata que a circundava, com árvores apenas no fundo de seus quintais.A trama viária dacidaderevelaumtraçadourbano,emxadrez,queresultouemruasdireitasencruzadasretamente,deacordocomdescriçãodeautordoséculoXIX,comseteruascorrendodonascenteparaopoente,eseisdonorteparaosul.Ageometriasimplesde sua composição urbana é realçada por uma arquitetura que utiliza grandes planos cegos de alvenaria, rebocados ecaiados,oualternânciasdecheiosevaziosqueimprimemnapaisagemnatural,oritmocaracterísticodaaçãohumana.

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FestadoDivinoemParaty

Figura2–ChegadadoImperadoràIgrejaMatrizemParaty/RJFoto:RaphaelDaviddosSantosFilho,2013.

Nodia03deabrilde2013,oConselhoConsultivodoInstitutodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional aprovou o Registro da Festa do Divino Espírito Santo de Paraty, no Rio de Janeiro comoPatrimônio Imaterial: Atribuída à Rainha Isabel (1271 - 1336), a Festa do Divino chegou ao Brasiltrazida pelos colonizadores e acontece emParaty desde o séculoXVIII (Fig. 2).Realizada no dia dePentecostes (50dias apósaPáscoa), a festahomenageia aTerceiraPessoadaSantíssimaTrindade,oEspíritoSanto,tradicionalmenterepresentadocomoumapombabranca.

Mello(2013,p.16)relataque

ARainhaIsabeldePortugal,aRainhaSanta(1274-1336),duranteumaMissadePentecostes,pediuaoreiDomDinizqueconvidasseopobremaispobrealipresenteequeofizessecoroarcomoimperadordoDivinoEspíritoSanto,oquesefez.Lembrança feliz deste gesto grandioso da Rainha, a presença do Imperador, seus Vassalos e sua guarda de honra ,marcam,prestigiameengrandecemosúltimoseventosdafesta.PresidemasMissaseProcissões,soltamumpresocomoindulgência pelas festividades e são homenageados com danças e reverências. Em Paraty estes personagens vestemcópiasdostrajesdaMilíciadeParatynoSéculoXVIII.

Pelassuasproporções,afestaenvolvetodaacomunidadeecomeçaaserorganizadoumanoantesdesua realização, quando um “festeiro” é escolhido pela Paróquia e administra os voluntários, às vezesmaisdeumparacadaatividade,sejareligiosaouprofana.

Sãodezdiasdemissas,ladainhas,leilões,rifas,bingos,bebidas,comidasedançastípicaseshows.Observa-sequeafestamantémseusprincípiosbásicos-distribuiçãodecarnesaospobres,comidaaopovoebalasedocesàscrianças–emantémoespíritocomunitário,religiosoefolclóricodosprimeirostempos,comaadaptaçãodealgunsaspectosàrealidadelocalcomo,porexemplo,aFoliadoDivino,quefoisuprimida(GASPAR;GASPAR,2014).TambémécostumeduranteaFestadoDivinoarealizaçãodeshows,gincanaseoutroseventos.

A Festa do Divino Espírito Santo começa nove dias antes do Domingo de Pentecostes, na Igreja

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Matriz.CadadiadasemanaabandaeopovosaemdacasadofesteirocomaBandeiraMestra.Deláseguemparacasadeoutrodevoto.DessacasasaiaBandeiradaPromessa–quetemmuitosbilhetesefotoscompedidosaoDivino–e,ainda,muitosfiéiscombandeirasvermelhasebrancasacompanhamocortejoatéàIgrejaMatriz.

Noúltimofimdesemanaeapósaalvorada,nosábadodemanhãbemcedo,carneédistribuídaaospobres pelos festeiros, como Dona Isabel fez 700 anos atrás. E, ao meio dia, comida e bebida sãodistribuídas.

Ànoite,naMatriz,naIgrejadeNossaSenhoradosRemédios,umjovemdacomunidadeécoroadoImperadordoDivino,eassistemissacomseusvassalos.Logoapós,recebehomenagensdoladodeforada igreja, com a apresentação da Dança das Fitas, do Xiba Cateretê, dos Velhos e dos bonecosfolclóricos de Paraty, o Boi, o Cavalinho, o Peneirinha e aMiota ouMinhota, em Portugal. (MELO,2012).

OImperadoresuacorte,o festeiroeoutrosdevotoscarregandosuasbandeirasdãoumavoltapelacidadearrecadandodonativoseseguemparaassistirmissa.Emseguida,oImperadorassisteàCongada.Nacadeiaantiga,simbolicamenteelelibertaumpreso.Aúltimaprocissãoaconteceaoentardecer,apósaqualofesteiropassaaBandeiraMestraparaofesteirodoanoseguinte.

OImperadorpresideàscerimôniasdesua festa,distribuindo lembrançasemedalhas, libertandodacadeiaumpresocomum,comoindulgênciaimperial,erecebeashomenagensdasautoridadeslocaiseasreverênciasdepraxe.Napartereligiosa,presideasprocissõesetemassentoaoladodireitodoaltar,emtronoricamenteornado,ostentandoasinsígniasimperiais:coroaecetrodeprata.

Aúltimaprocissãoaconteceàtarde,apósaqualofesteiropassaaBandeiraMestraparaofesteirodoanoseguinte.Afoliaacompanhaapassagemcomversosemúsica.

Afestaeacidade.AcidadeeaféDurante a Festa do Divino a cidade se transforma em outra (Figura 2): tem outra natureza e, em

especial,outra imagem.A féque levouaquelaspessoasàcelebraçãoé responsávelpela recriaçãodacidade.Ailuminaçãonasruasédecorada,asruaseopróprioCentroHistóricosãodecorados(Fig.3).Tudorespiraafesta.

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Figura3–Detalhedadecoraçãourbana,FestadoDivino,Paraty/RJFoto:RaphaelDaviddosSantosFilho,2013.

A decoração tradicional da cidade para a Festa inclui, além da decoração da Igreja, o portal deentradadasbarracasdecomesebebeseapresentações,ondeéerguidoumbaldaquinodepanovermelho,galão e franja dourada sobre um grande esplendor, sendo a estrutura decorada com flores de papelcrepom banhadas em parafina (antigo e costumeiro fazer paratiense); e a fachada do PaçoMunicipal(antiga prefeitura), onde são utilizados esplendores da paróquia (PREFEITURA MUNICIPAL DEPARATY,2014).

Alémdesseselementostradicionais, tambémsãodecoradasasruascomesplendores,fitasetecidosondepredominamascoresvermelhoebranco,símbolosdaFesta.SantoAgostinho(2002)afirmavaqueháumacidadedoshomenseoutradeDeusAcidadesetransforma:temoutranaturezaeoutraimagem;eno caso da Festa do Divino, a fé religiosa que conduz a celebração é a responsável pela recriaçãourbana:

Doisamoreserigiramduascidades,BabilôniaeJerusalém:aquelaéoamordesiatéaodesprezodeDeus;esta,oamordeDeusatéaodesprezodesi.(SANTOAGOSTINHO,2002,p.29).

A cidade dos homens, a Paraty tombada pelo IPHAN, entretanto, durante as festas populares setransforma em várias, como a própria vida. Como também acontece em outras criadas em episódiosextraordinários como as festas –as Cavalhadas em Pirenópolis, Goiás, por exemplo – essa Paratycriada pelo Divino, essa Cidade de Deus guarda especificidades e características incomuns que sedesenhamnosfestejos ligadosàfé,quedesenhamaconstruçãodessaurbeatravésdadecoraçãoedosritosdecelebração.

Afééumcaminhocujavalidadeeforçasãoindiscutíveise,domesmomodoqueopensamentoeosprocessosracionaisseimpõemaocotidianohumano,afésetransformaebuscaumaexpressãoespacial,uma formade concretude.Háumanecessidadedaprópria fé emmaterializar-se,manifestar, sejapara

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celebraracriação,sejaparaexteriorizar-secomopartedanatureza,dotodo,daphýsisouaindacomouma forma dephýsis, de um o conjunto de todas as coisas naturais que existem e a sua origem e aconstituiçãodetodasascoisasqueexistem(PESSANHA,2011).

ConsideraçõesfinaisAreleituradeParaty,naFestadoDivino,para identificaçãodasalteraçõesplásticasnaestéticada

cidade, que decorrem da decoração do ambiente urbano, com base em levantamentos iconográficos eiconológicos realizados em 2013 e 2014 (SANTOS FILHO, 2014), identificou alterações na estéticaurbana, o que enfatiza a importância e o significado da decoração urbana para as festas populares,questão discutida por Guimarães (2006). No estudo da decoração urbana no Carnaval Carioca,Guimarães (2006) destaca, entretanto, que essa prática foi abandonada no Rio de Janeiro. Logo, adecoraçãourbanaemfestasétemacontrovertidoquantoàsuaimportâncianocampodaHistóriadaArte.

Não se trata de discutir ou de justificar a ausência atual de decoração noCarnaval,mas sim o deenfatizaraimportânciadadecoraçãoemseusentidosimbólico,queultrapassaapreocupaçãoestéticaderegistronotempodafesta:Trata-seaquidecaracterizaradecoraçãourbanacomosendoumprocessoderecriação da cidade, de um novo lugar, uma nova realidade.Os adereços, os cânticos, os desfiles, amúsica,adançaeascoresmodificamaimagemurbana,demodoquesetemaimpressãodealgoquenãohaviaantesequeagorahá.

Acidadesetransforma:temoutranaturezaeoutraimagemenocasodaFestadoDivino,aféreligiosaqueconduzacelebraçãoéaresponsávelpelarecriaçãourbana.

Como a própria vida, a Cidade dos Homens se transforma quando a decoração e os ritos decelebraçãoexteriorizamaverdadedafé(nocaso,acorvermelhadominaacomemoração,eumapombabranca simbolizaoDivino) edesenhamnoespaçoumanovacidade,nãoapartirda racionalidadedopensamento,mas atravésdabuscadematerialização/manifestaçãodoDivino, exteriorizada atravésdocantoedança,nascoresenaplásticaquecaracterizamoshomensnaHistóriaenaArte.

AnalogamenteenocampodaArte,quandoacriançasefantasiadeimperadoreparticipadoDivino,para ele e para todos que participam da festividade, ele (o jovem) não émais uma pessoa comum etampouco é Imperador:De fato, ambos são outra coisa. É parte de algo que não fazendo parte dessemundo,torna-sepresenteatravésdosritosmaterializadosdascoresdasindumentárias,doscânticos,dacomidaebebida,docaminharcomosvassaloseguardasdehonraparafrentedaigrejaenasruas.

Dessa forma, é possível, seguindo a abstração proposta por SantoAgostinho, imaginar que ali, naFesta doDivino, coexistem duas cidades:ACidade dosHomens e aCidade deDeus:ACidade dosHomenséaqueestámaterializadanoCentroHistórico,oMonumentoNacional(1966)equetemvalorde uso material (PULS, 2006) – a cidade vive e abriga funções contemporâneas como comércio,hospedagemeoutras– eque tambémcontêmvalordeuso ideal (PULS,2006), porque representamopassadoeacultura.

A Cidade de Deus, entretanto, é patrimônio imaterial, pelo seu efêmero valor simbólico e sua

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existência limitada ao período da festa. Esta Cidade, entretanto, ainda não foi estudada e, em algunscasos,foiobliterada(GUIMARÃES,2006).Emtese,cadafestacriaumambiente,umacidade:ParaoDivino,acidadedeveserantiga–asuacelebraçãoremontaaoséculoXVIII-paraocarnavaldeveserurbana(MORAES,1958),paraosBois,rural...ParaosReis,urbano-rural...

Apercepçãoestéticaeosígnicadamanifestaçãosópoderãoserapreendidosemsuaplenitudeseoobservador estiver naquele lugar e naquele momento, o que coloca o turismo, fenômeno social,econômico e cultural que envolve pessoas e é parte das ciências sociais (DUTRA, 2013), como apossibilidadeímpardepercepçãodessacidadeimaterial.

OregistrodaFestaoudaArquiteturaetraçadourbanosãosuficientesparaadocumentaçãohistórica.Mas, o significado e a percepção estética simultânea das duas cidades somente são possíveispresenciando o fato. Logo, será necessária uma ampliação da percepção tradicional que temos daatividadeturística:estadeveserampliadadeinstânciadelazerparafontedoconhecimentoepercepçãodaArteedaHistóriaeaindacomorecursoàpreservaçãodopatrimôniohistórico-cultural.Este,defato,ainda não conta comumamídia adequada à preservação/registro dos eventos e expressões ligados àsmanifestaçõesdaculturapopular.

Defato,aúnicamaneiradeseconheceraCapelaSistina–Michelangelo,Vaticano,1508-1512–éiraoVaticano.

ReferênciasASSESSORIADECOMUNICAÇÃO.SecretariadeTurismoeCulturadeParaty.Paraty:cidadehistórica,monumentonacional.Disponívelem:<http://www.paraty.com.br/cidade_historica.asp>.Acessoem:08fev.2017.CANGUSSU,D.D.D.;CABRAL,BrunoFontenele.Análisedosatuaismecanismosdeproteçãodopatrimôniohistórico,cultural,artístico,turísticoepaisagismonacional.Florianópolis:EGOV;CCJ;UFSC,2012.Disponívelem:<http://www.egov.ufsc.br:8080/portal/conteudo/an%C3%A1lise-dos-atuais-mecanismos-de-prote%C3%A7%C3%A3o-do-patrim%C3%B4nio-hist%C3%B3rico-cultural-art%C3%ADstico-tur%C3%ADst>.Acessoem:21deset.2014.DUTRA,W.A.V.Turismoé...RevistaTurismo,dez.2013.Matériasespeciais.Disponívelem:<http://www.revistaturismo.com.br/materiasespeciais/turismoe.html>.Acessoem:17fev.2016.FERNANDES,M.A.Ethos:morarnocotidiano.[2013?].Disponívelem:<http://www.ucb.br/sites/000/14/EthoseCotidiano.pdf>.Acessoem:08set.2016.GASPAR,E.;GASPAR,R.FestadoDivino.2014.Disponívelem:<http://www.paraty.com.br/feriados/festadodivino.asp>.Acessoem:08set.2016.GUIMARÃES,H.M.Abatalhadasornamentações:aEscoladeBelasArteseocarnavalcarioca.2006.318f.Tese(DoutoradoemArtesVisuais)–EscoladeBelasArtes,UniversidadeFederaldoRiodeJaneiro,2006.IPHAN.InstitutoHistóricodoPatrimônioHistóricoeArtísticoNacional.Paraty(RJ).Brasília,DF,2015Disponívelem:<http://portal.iphan.gov.br/pagina/detalhes/381/>.Acessoem:10jul.2015.MELLO,D.Caminhosdahistória,sujeitosdamemória.In:EXPOSIÇÃO.BrincandocomaFestadoDivino.Paraty,RJ:CentroCultural,2013.

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MELO,Diuner.Danças,músicasegruposfolclóricosdeParaty.2012.Disponívelem:<http://www.paraty.com/?p=2602>.Acessoem08set.2016.MORAES,E.de.Históriadocarnavalcarioca.RiodeJaneiro:CivilizaçãoBrasileira,1958.PESSANHA,J.A.M.Physis,Cosmos,Arché,Logos.OficinadeFilosofia.2011.Disponívelem:<http://oficinadefilosofia.com/2011/04/03/physis-cosmos-arche-logos>.Acessoem:08set.2016.Prefeituramunicipaldeparaty.DecoraçãoFestadoDivino.2014.Disponívelem:<http://pmparaty.rj.gov.br/page/noticiasdetalhes.aspx?chave=decoracao-festa-do-divino>.Acessoem:08fev.2016.PULS,M.ArquiteturaeFilosofia.SãoPaulo:Annablumme,2006.SANTOAGOSTINHO.ACidadedeDeus.TraduçãoOscarPaesLemes.7.ed.RiodeJaneiro:Vozes,2002.ParteI.SANTOSFILHO,R.D.Ritualefé:adivinaParaty.In:SIMPÓSIONACIONALDESABERESEEXPRESSÕESCULTURAISNOCERRADO:DEVOÇÃOEDIVERSÃONASTRADIÇÕESCULTURAISPOPULARES,1.,2014,Pirenópolis,GO.Anais...Pirenópolis(GO):UniversidadeEstadualdeGoiás,2014.EixoTemático5-PatrimônioeFestasPopulares.

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ACRIATIVIDADENASDANÇASDEOBALUAIÊDURANTEOTRANSENAFESTADOXIRÊ

AlessandroMalpassoMariadeFatimaHanaqueCampos

Estetrabalhosedesenvolveconectando-secomanossapesquisadedoutoradovinculadaaassuntosdocandomblé,[78]observandoacriatividadequepercebemosnasdançasduranteo transedosadeptosnafesta doXirê, e que estudamos mediante um processo criativo através da fotografia. A abordagem équalitativaenosconcentramosnoXirê,queseincluinessareligião,equeseexecutaparaqueo“povo-de-santo”[79]possalouvareevocaràsdivindadeschamadasOrixás. Investigamos três“terreiros”[80]de naçãoKetu,[81] situados na cidade de Salvador-Bahia-Brasil. Durante a observação no campo,detectamos diversidades entre eles, no desenvolvimento do Xirê. Então, constatamos uma complexariquezasimbólicaexpressadatambématravésdagestualidadedoscorposdançantesemestadodetranse.ÉimportanteevidenciarqueasdançassagradassãovinculadasaouniversodamitologiaYorùbá,[82]queédeemblemáticaimportânciaparaosreligiosos;eressignificadasemcadacomunidade-terreiro.[83]

Oobjetivodesteartigoéanalisaracriatividadedocorpoemtranse,focalizandooOrixáObaluaiênafesta do Xirê. Durante a observação no campo, produzimos imagens fotográficas que revelam acriatividadenadançadoOrixáreferido.

Desenvolvemos nosso texto em relação a aspectos teóricos e vinculados com as vivências com oobjetodeestudoquedesenvolvemosnocampo:candombléefesta;nacontinuação,asdançasnoXirê;acriatividadeeocorponadançadeObaluaiê;e,finalmente,asconclusões.

CandombléefestaOcandomblééumareligiãoafro-brasileiraqueincluiumariquezasimbólicaquedetectamosdurante

asfestas.NosconcentramosnacidadedeSalvador,estudandoagestualidadeduranteasdançasnoXirê,nocandomblédanaçãoKetu.EssasdançasserelacionamcomouniversodamitologiaYorùbá, tendoafinalidade de louvar e evocar às divindades chamadas Orixás. Observamos a criatividade quedetectamosnagestualidadedocorpodosadeptosetraduzimosumarealidadevinculadacomosagrado,medianteanossavisãocomopesquisadores.

Prandi(1995-1996,p.67),emrelaçãoaocandomblé,consideraque:

A presença do negro na formação social do Brasil foi decisiva para dotar a cultura brasileira dum patrimôniomágico-religioso, desdobrando em inúmeras instituições e dimensões materiais e simbólicas, sagradas e profanas, de enormeimportânciaparaaidentidadedopaísesuacivilização.Quandoasestruturassociaisforamdissolvidaspelaescravidão,osantepassadosperderamseu lugarprivilegiadonoculto.Sobreviverammarginalmentenonovocontextosociale ritual.Asdivindadesmaisdiretamenteligadasàsforçasdanatureza,maisdiretamenteenvolvidasnamanipulaçãomágicadomundo,maispresentesnaconstruçãodaidentidadedapessoa,osorixás,divindadesdecultogenérico,estassimvieramaocuparocentrodanovareligiãonegraemterritóriobrasileiro.

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Amaral(2002,p.29),emrelaçãoaocandomblé,afirmaoseguinte:

FicaevidenteocaráterdesinônimoqueotermocandombléassumeparacomotermofestadesdeosseusprimórdiosnoBrasil[...].Asreligiõesafro-brasileirasrealizam,sistematicamente,festasparaseusdeuses.Essasfestasconsomemboapartedotempoedodinheirodopovodesanto,mantendoogrupocoesoemfunçãodasuaproduçãoerealização.[...]Aprópria vida dentro do terreiro pode ser pensada como a permanente produçãoda próxima festa, pois inclui, através deaspectosdramatizadosououtros,suacontinuidadenotempo.

Acrescentamos ao que afirma a autora, dizendo que não só as festasmantém coeso o grupo,mas,também, servem para que a comunidade moradora do bairro possa constantemente movimentar ocomérciodosprodutos.Então,opovo-de-santooutorgaaosvizinhosdebairroapossibilidadedemanterumadinamicidade,atravésdetrocasdosalimentosdeorigemvegetal,animalemineral,quenormalmentesãoutilizadosnasfestassagradas,assimgerandoumequilíbrio,eparaquetambémacomunidadepossatrabalhare,então,gerarumadinâmicadeacordocomomovimentodouniverso.

Afestanocandomblé,nacompreensãodeAmaral(2002,p.30)é:

Umadasmaisexpressivasinstituiçõesdessareligiãoesuavisãodomundo,poisénelaqueserealiza,demodoparoxístico,todaadiversidadedospapéis,dosgrausdepodereconhecimentoaelesrelacionados,asindividualidadescomoidentidadesdeOrixásede“nação”,[84]ogosto,asfunçõesealternativasqueogrupoécapazdereunir.

Assim,podemoscompreenderquenocandombléafestaéeminentementeimportanteeserveparaqueosadeptos,independentementedopapelquecadareligiosotem,possamsercoesos,emumambientedepaz,harmoniaeequilíbriopsicofísicoeespiritual.NoXirêoelementoqueestudamosespecificamenteéacriatividadequeobservamosduranteasdanças,nagestualidadevinculadacomacoreografiainspiradaaosOrixás.

AsdançasnoXirêConsideramos oXirê, uma roda constituída pelos sujeitos religiosos que dançam em sentido anti-

horário,paraquesimbolicamentevoltemaopassado,entãogerandoumaconexãocomaancestralidadee,aomesmotempo,louvandoasdivindades,medianteumasequênciadetoquesdeatabaquesecantigasqueestãovinculadasacadaOrixácultuado.

AindasobreafestadoXirê,afirmaVieira(2010,p.105):

OXirê,momentoorganizadoparaqueosOrixásdesçamàTerraparacelebraravidacomalegriaefestividadejuntoaosseusfilhos,éaocasiãoemqueafestasedesvelapublicamente.Aotoquedosatabaques(Rum,RumpíeLé)seestabelecea ligação entre o Orum (morada dos Orixás) e o Ayê (a Terra). Para tanto, a mãe ou o pai de santo utilizam uminstrumentochamadoadjá(pequenacampadecabolongo)paraprovocarachegadadosOrixás.

Então,podemosacrescentarqueéomomentoemqueosrodantes[85]entramemtranse,porqueessacondição de alteração da consciência é provocada durante oXirê, pelos toques dos atabaques, comotambémpelascantigasentoadasduranteascerimônias,poisamúsicaéa ligaçãoentreosOrixáse osseus filhos.[86] Também, consideramos importante dizer que o transe pode acontecer em outrosmomentos,nãonecessariamenteemespaçossagrados.

Podemosassistir,nocontextolitúrgico,aumateatralidadeprovocadapeloscorposdançantes.Então,

[...]osdeusesincorporamseuseleitosedançammajestosamente:usamroupasbrilhantes,ricas,coroasecetros,espadaseespelhos;sãoospersonagensdodramareligioso.(AMARAL,2002,p.48).

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Aexemplodeumaperformance,[87]queestávinculadae inspiradanamitologiaYorùbá,quenarrahistórias vinculadas aos antepassados. Assim, admiramos a participação de vários sujeitos queparticipamdomesmoacontecimento.

Consideramos adequada ao nosso objeto de estudo, a tipologia de performance trazida peloSchechner(2011,p.164),relacionadacomotranse:

Em alguns tipos de performances, uma dança de transe, por exemplo, um cuidado extremo é tomado para trazer operformerdevoltadotranse.Istoporqueotranseapresenta,aomesmotempo,qualidadesdemudançadepersonalidadeefalta de controle: a pessoa em transe claramente precisa de ajuda para “voltar” do transe, enquanto que o ator queinterpretaumpersonagemparecetercontroledesimesmo.

Acitação deSchechner (2011), nos faz lembrar ummomento específico que observamosdurante oXirê,ondeasEkedes,quegeralmentesãomulheresequecuidameacompanhamossujeitosemtranse,tambémosajudamasairdesseestadodealteraçãodaconsciência.

TambémBeniste(1997,p.21)confirmaaextraordináriaimportânciadamitologianocandomblé,eapropósitorelataoseguinte:

As histórias oscilam entre o simples esclarecimento de ocorrências comuns relativas ao fato da existência humana, atérespostas a sérios enigmas, como aqueles que envolvem os fenômenos da existência humana em todas as suas fases-perguntas sobre as divindades, o porquê do mundo invisível no qual o homem se sente envolvido e cujas regras oencaminham,omolestam.Dessaformaosmitosservemamúltiplospropósitos,bastasaberinterpretá-losdeformacorreta.

A função da mitologia é também motivar o humano, ajudando-lhe, assim, a desenvolveracontecimentos que ocorrem na vida, de formamais coerente, equilibrada, e podendo obter respostasparaenigmasassociadosaosfatosqueseencontramnocaminhodecadaindivíduonesteplaneta.

Ainda sobre oXirê, podemos observar que dependendo de cada cerimônia e do templo, se podelouvar aumoumaisOrixásdopanteãoYorùbá, como também, aomesmo tempo, pode acontecer umasaídadeIaô.[88]

ÉtambémimportantedizerquenarodadoXirê,geralmentese louvamdezesseisOrixás,atravésdeumaordemparaconvocá-los,quepodevariar,dependendodacasa.[89]Cadafestaserealizacombaseemdatasestabelecidasnocalendáriodecadacomunidade-terreiro.[90]Alémdisso,existempalavrasdesaudaçõesespecíficas,quedevemserditasparaqueaordemsejacorreta.

Nessecontexto,buscamoscompreenderagestualidadeduranteasdançasdosOrixás,queobedecemadeterminadosarquétipos[91]vinculadoscomumacomplexidadedeelementossimbólicoseexpressivosrepresentadospeloscomponentestrazidospelaancestralidade.[92]DiantedaquantidadededivindadeshonradasnoXirê,decidimosconcentraremumOrixádenominadoObaluaê,queé tambémaprincipaldivindade do sacerdote denominado Toluaye, o nosso principal informante da pesquisa, e quedescrevemosnoitemseguinte.

AcriatividadeeocorponadançadeObaluaiêApartirdepreceitosreligiosossurgematerializadoosimbolismoqueadmiramosnosobjetosrituaise

nasdanças,quesãoosqueconsideramosresponsáveispordarumariquezaestéticaaocandomblé.Asdanças são componentes de uma ancestralidade relacionada com a mitologia Yorùbá, e que

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contemplamosno nosso processo criativo associado a formas, linhas, volumes e vibrações coloristas,quegeramsinergicamenteumapotência,como, também,umacoesãodeforçasquenosoutorgamcomoresultadodiferentesgestualidades.

Oserhumanoépartedanatureza,entãoconsideramosqueacriatividadeéumadascaracterísticasquepertencemaohomem,equesedesenvolvesobdistintasmaneiras,dependendodevariáveisvinculadastendencialmenteaoseuentornosocioculturale,sobretudo,emrelaçãoaelementosqueconstituemasuaessência.Emrelaçãoaoditoantes,Galeffi,MacedoeBarbosa(2014,p.36-37)declaraoseguinte:

Criação, conservação e transformação são a marca de tudo o que vive. E já a vida parece ser a afirmação de umainteligênciacriadoraseguramenteimpessoal,masquetambémsepersonalizanapessoahumana[...].Nãoéútilapenasoutensilioouoapetrecho,aferramentaouodispositivoparaoperarnoseiodavidaprática.Éútiltambémoritoeamúsica,adançaeocanto,apoesiaealiteratura.Hátambémumautilidadedosimbólicoedoestético,comohádoepistemológicoedoético.Asutilidadesnãopodemapenassermedidaspelamétricadoimediatamenteàmão.Oespíritohumano,comsuatemporalidadeprópria,éfeitodeesperasedeparadas,repousosedevaneios.Apareceaquitambémafunçãocriadoradaimaginaçãoedosonho.Semimaginar,nãoseécapazdecriarnada.Semosonho,aditarealidadeficariaempobrecidaemsuaciclicidadecorriqueira.

Consideramos, também, que o processo criador, no ser humano, se relaciona a várias áreas doconhecimento,evaiseressignificando,embuscaconstantedeumainovação,atravésdapesquisaedavivência,paraadquirirumanovasapiência.

Podemospercebertambémaexistênciadamultidisciplinaridade[93]queseevidenciamedianteumaalquimia, incluindo distintos campos do conhecimento que coabitam, e que se utilizam, nesta religião,alémdasexpressõesartísticasprecedentementecitadas,também,porexemplo,nosrituaisdenominadosebós,[94]detectamosqueexisteumaparticipaçãoporpartedeváriasáreasdaciência.

Concentramosnossofocodepesquisa,naobservaçãodoscorposduranteadançanoXirê,procurandoperceberalgumasnuancesqueexistemnessacomponenteestéticarelacionadacomagestualidade,comotambémnascaraterísticasdessesobjetossimbólicosqueseincluemnasvestimentasdosOrixás.

Observamos nos terreiros pesquisados, diferentes características vinculadas à estética, a umcomponentevisual,àdinâmicadasfestas,enaexpressividadedosdançadores.Porexemplo,nadançadeXangô,[95] existe uma coreografia própria desse Orixá, assim como podemos detectá-la comopeculiaridade em outras divindades. Nesse contexto de observação das diferenças entre os váriosOrixás,construímosumargumentodequeacriatividadeestápresentenasfestasdoXirê,comoelementointrínsecodacapacidadehumanadecriarapartirdeaspectoshistóricoseculturais,maisespecíficodamitologiaYorùbá.

O nosso processo criativo começa a desenvolver-se durante a observação da dança do OrixáObaluaiê,nanossapesquisadecamporealizadanoterreiro“IlèAséIjinoIluOrossi”,situadonacidadede Salvador-Bahia. No corpo desseOrixá detectamos, então, uma complexidade, onde percebemosformas tridimensionais, linhas e vibrações cromáticas, que vão constantementemudando por causa domovimentodeObaluaiê,etambémporquefazempartedeumarealidadeefêmeraequeentãobuscamosrepresentar em uma memória gravada em um registro de imagens vinculadas com essa divindade.Incluímos,nestetrabalho,algumaselaboraçõesdasfotografiasrealizadaspeloautor(Fig.1e2).

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ObservamosagestualidadedeObaluaiêcomo se fosseuma escultura emmovimento, umamimese,queéumamudançaentreoestadoconscienteaoestadodetranse,ondepodemosverumaexpressividadequecaracterizaessadivindade,relacionadacomumacoreografiatípicaqueaconteceduranteoXirê.Onosso processo criativo está vinculado com a fotografia, e surge através da observação no campo,procurando detectar momentos e elementos que consideramosmais emblemáticos para poder traduziratravés das nossas imagensdeObaluaiê (Fig. 1 e 2), a partir de uma reflexão e de umconhecimentorelacionadosaoselementossimbólicosquefazempartedesteuniversosagrado.

Como dito antes, existe também um arquétipo, relacionado a cada Orixá. Este inclui elementosconectados com a coreografia da dança, como, também, aos objetos rituais que caracterizam cadadivindade.Nacontinuação,nosconcentramosnadescriçãodealgumascaraterísticasvinculadasaoOrixáObaluaiê,considerandoqueéadivindadeprincipaldonossoinformante,oBàbálórìsà[96]Toluaye.

Obaluaiê é a divindade da cura, da sabedoria, e da evolução, chamado tambémo “Rei daTerra”,porquerelacionadocomafertilidadedaterra,tendoqualidadetransmutadoraenaturezaevolucionista.Éele que auxilia o ser humano nosmomentos de dores físicas, psíquicas e espirituais. Sucessivamenteencontramosasimagens,(fig.1e2)dedicadasaessadivindade,equeproduzimosduranteaobservaçãode umXirê no terreiro “Ilê Axé Ijino Ilu Orossi”, em 2016. Em relação a esse, o nosso informanteacrescenta:

Obaluaiê é umOrixá pertencente à naçãoKetu, Oba significa rey, Olu senhor, Ayé terra. É umOrixá ligadoàvidaeàmorte, substentaos seresvivos incluindooshumanos, eo reinovegetal,mineraleanimal.Possueumaenergiavoltadapeloelementoterra,energiatelúrica.Seconsagranodiadasegunda-feira.Asoferendasvotivassãofeitasdetudooqueaterraproduzedetudooquevivenela,entãoomundoanimal,vegetal,emineral.(Informaçãoverbal,Toluaye,2016).

AindaToluayenoscomunicaoseguinte:

OmeuObaluaê específico se chamadebaba ibona, ou sejababa significapai e ibona significaquentura, que deriva de palavra quente. O sol também representa a sua quentura. (Informaçãoverbal,Toluaye,2016).

Essecalorqueonossoinformantedescrevesobreascaraterísticasdasuadivindadeespecifica,estáevidenciado na predominança da cor vermelha. Tentamos então, de alguma forma, reproduzirgraficamenteessecaloreessesolquesãosímbolosemblemáticosdesseOrixá,equepodemosapreciarnaelaboraçãodenossasimagens(Fig.1e2).

NocasoespecíficodacoreografiadeObaluaiê,Toluaye(2016)asseveraque

[...]adançasechamaopanijé(cujatraduçãoé:‘elemataqualquerumecome’),elebailacurvadoparafrente,comoqueatormentadopordores,eimitaseusofrimento,coceirasetremoresdefebre.(Informaçãoverbal,Toluaye,2016).

PodemosacrescentarqueObaluaiê,duranteadança, tambémexecutaalgunsmovimentosderotação

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docorpo,mostrando,assim,asuavidadedavestimentatípicadele,equesucessivamentedescrevemos.Observamos, então, o deslocamento da roupa, que vai se acompanhando com o a corporalidade,sugerindovisivelmenteumaespéciedeondas,podendoapreciar cadaelementoespecífico, constituídoessencialmentedapalhadacosta,quevaiseseparandoumadaoutra;eénessemomentoqueentrevemosalgunsdetalhesdessecorpoocultadopelamesmavestimenta.

EmObaluaiê, consideramos que um dos componentes mais importantes desse Orixá, é a típicavestimenta feitade ìko(fibraderáfiaextraídado Igí-Ògòrò, apalhadacosta),queéumelementodegrandesignificadoritualístico,principalmenteemritosligadosàmorteeaosobrenatural.Comocomentaonossoinformante,

[...] também a vestimenta inclui uma decoração composta por vários búzios, cabaças e roupaconfeccionadacomtecidodealgodão(nuncasepodeusartelasintéticaparaesseOrixá)(Informaçãoverbal,Toluaye,2016).

Essetipoderoupa,dependendodosmomentos,porcausadomovimento,fazverenãoverocorpoetambémindica,poralgummotivovinculadoprovavelmentecomaespiritualidade,quealgodeveficarnouniversodossegredoslitúrgicos.

OutroselementosemblemáticosdeObaluaiê,sãoasferramentasqueelecarrega;umadelaséoquesedenominaxaxará,quecomodescreveonossoinformante:

Éumcetro,apetrechoconfeccionadocomnervuradodendezeiroenfeitadocombúziosecontas,emque ele capta das casas e das pessoas as energias negativas, bem como «varre» as doenças,impurezasemalessobrenaturais.Outroutensílioquecarregaestadivindadeéoichã,quepodemosencontraremformadecipó“vara”feitodeumaplanta,queimitaumalança,podendosertambémdemetal.(Informaçãoverbal,Toluaye,2016).

Observamos,duranteapesquisadecampo,queessaferramenta,comopodemosvernasimagens(fig.1e2),seevidenciacomgrandedestaquenesseritualdenominadoOlubaje.“Esseritualsecostituidevárias iguarias que serão servidas aos seus adeptos na festa” (Informação verbal, Toluaye, 2016).Tambémnoscomenta,emrelaçãoàsoferendas:

[...]apipocaéumadasprincipais,vistoquesepodeobservarnosfilhosdesantocomotabuleirona cabeça, no mês de agosto, pedindo dinheiro para o ritual de Olubaje” (Informação verbal,Toluaye,2016).

Efetivamente durante a nossa observação, confirmamos que a pipoca é sempre presente, e é parteintegrante desse ritual. Durante a nossa criação fotográfica, nos preocupamos também em fazer umrecortedasimagens,procurandogerarumequilíbriovisualdasformasquerepresentamosgraficamente(Fig.1e2).

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Figura1–ImagemdafestadeOlubajenoterreiro“IlèAséIjinoIluOrossi”,Salvador-BAFonte:AlessandroMalpasso,2016.

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Figura2–ImagemdafestadeOlubajenoterreiro“IlèAséIjinoIluOrossi”,Salvador-BAFonte:AlessandroMalpasso,2016.

ConclusõesDesenvolvemos um estudo sobre o candomblé e,mais diretamente, sobre a festa doXirê, que tem

como finalidade criar, entre os adeptos, um ambiente de paz, harmonia e equilíbrio psicofísico eespiritual.NoXirê,oelementoqueestudamosespecificamenteéacriatividadequeobservamosduranteasdanças,nagestualidadevinculadaàcoreografiainspiradanosOrixás.

AnalisamosumprocessocriativonadançadoOrixáObaluaiê,realizadanoterreiro“IlèAséIjinoIluOrossi”, situado na cidade de Salvador-Bahia, dando destaque à expressão desseOrixá, através deformastridimensionais,líneasevibraçõescromáticas.

Existeumasubjetividadequedetectamosnacriatividadedoserhumanoequeseevidenciapelaformasingular e individual de desenvolver o processo criativo. Percebemos que nos Orixás existe umapeculiaridade, e que observamos no campo, em relação a determinadas características vinculadas à

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gestualidade do corpo, e também há as ferramentas simbólicas pelas quais nos sentimos visualmenteatraídos.Observamosalgumasnuancesquesãoasvariáveisrelacionadascomasdanças,eadmiramosasexpressividades dos adeptos, evidenciando algumas características pertencentes aos elementossimbólicos vinculados aoOrixá Obaluaê. A criatividade não tem regras fixas, então consideramosinteressanteaconstruçãodeumprocessocriativorelacionadoàsingularidadedecadaserhumano,parapoderdesenvolveraprópriacriatividadequesecaracterizaatravésdacomplexidadedecadasujeito.

ReferênciasAMARAL,R.Xirê!Omododecreredevivernocandomblé.RiodeJaneiro:Pallas,2002.BENISTE,J.ỌrunÀiyé-Oencontrodedoismundos.RiodeJaneiro:BertrandBrasil,1997.GALEFFI,D.A.;MACEDO,R.S.;BARBOSA,J.G.Criaçãoedeviremformação:mais-vidanaeducação.Salvador:Edufba,2014.JUNG,C.G.Osarquétiposeoinconscientecoletivo.Petrópolis,RJ:Vozes,2000.PRANDI,R.AsreligiõesnegrasnoBrasil:paraumasociologiadoscultosafro-brasileiros.RevistaUSP,SãoPaulo,n.28,p.64-83,dez./fev.1995/1996.SCHECHNER,R.Performerseespectadores!Transportadosetransformados.Moringa:artesdoespetáculo,JoãoPessoa,v.2,n.1,p.155-185,jan./jun.2011.VIEIRADASILVA,M.A.Xirê–Afestadocandombléeaformaçãodos“entre-lugares”.Habitus,Goiânia,v.8,n.1/2,p.99-117,jan./dez.2010.

[78]Religiãoafro-brasileira.[79]Expressãoutilizadageralmentepelaspessoasadeptasdocandomblé.[80]Expressãoparadenominarotemplodecandomblé.[81]Naçãodooesteafricano.[82]Grupoetnolinguísticodooesteafricano.[83]Formaparachamaraumtemplodecandomblé.[84]Nocandomblébrasileiro,sãogruposquecultuamdivindadesprocedentesdamesmaetniaafricanaoumesmosubgrupoétnico.[85]Termousadopelopovo-de-santoparaosadeptosqueentramemtranse.[86]Palavraqueindicaosadeptosdareligião.[87]Otermoperformance,doverbo inglês“toperform”, significa realizar, completar, executar ou efetuar. É uma ação artística ao vivo,muitasvezesarticuladacomaimprovisação,provocaçãoouoassombro.Comoosentidodaestéticaassumeopapelprincipal,entãooobjetivodaperformanceédecausarsensaçõesnopúblico.Portanto,existeumaparticipaçãoemocionalecriativadaspessoasassistentes.[88]Filhosdesantoqueaindanãocompletaramoperíodode7anosde iniciação.Tambémfazempartedacategoriadosrodantes,ouseja,iniciadosqueentramemtranse.[89]Outrapalavraqueserveparadenominarotemplodecandomblé.[90]Expressãousadapelopovo-de-santo,referenteaotemplodecandomblé.[91] Segundo Jung (2000), são um conjunto de imagens psíquicas presentes no inconsciente coletivo, que é a parte mais profunda doinconscientehumano.Osarquétipossãoherdadosgeneticamentedosancestraisdeumgrupodecivilização,etniaoupovo.[92]SegundoaculturaYorùbáéonomedadoaoprocessodivinoqueconsistenociclodavidaquetemcontinuidadenadimensãomaterialeespiritual.[93]Fazreferênciaàsdistintasdisciplinas,eàsnecessidadesdeumconhecimentomedianteoenvolvimentodeváriasáreasque,dealgumasformas,influemparacontribuiremummesmoestudo.[94]São oferendas de origemvegetal,mineral e animal, e servempara curar diferentes problemas do ser humano, como para buscar umequilíbriodocorpo,dopontodevistafísico,psíquicoeespiritual.[95]ÉoOrixádajustiça,dotrovão,dosraiosedofogo.

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[96]Termoutilizadoparadenominarosacerdote.

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ARTE,TRADIÇÃO,CULTURAEANCESTRALIDADE:estéticaeentalheemroupaseparamentasdeOrixás

CeciliaConceiçãoMoreiraSoares

Compropriedade,DorivalCaymmidescreveumelodicamentea composiçãodo tabuleiroedovestuáriodamulhernegracomercializandooacarajé.[97]Indiretamente reproduziaadescriçãopreliminar realizadapelomédicoNinaRodriguesaodescreveroque intituloudo típico trajedabaiana.Saiaderoda,bata, torçoebalangandãspareciamdescreverdeformahomogêneaovestuárioqueaolongodosanospersonificouummodeloeestéticademulher,emcujoscorposreproduziamacomposiçãomulticulturaldesuasvivências.

Com efeito, o que compreendemos como roupa da baiana representa a mistura da estética e damodelagemdasroupasfemininasparaamulhernegra,geralmentesemapompadasSinhásbrancas,masagregando elementos da cultura europeia como da africana também. O apelo mediático àquelaiconografiaoitocentista,aindanaprimeirametadedoséculoXX,valorizouedifundiuapartirdoviésmeramentefolclórico,acomposiçãodovestuáriofemininonegroempontosdevendadeacarajésenocotidiano das casas de candomblés. Essas mulheres tornaram-se ícones na promoção da cultura, queencontrouespaçonoolharcuriosoeperplexodaquelesquebuscaramesecontentaramemfazeraponteentreopassadoescravistaeacontemporaneidade,abstendo-sedereflexõesqueameacemahegemoniadeummodeloculturaledocampodaexcentricidadeaqueforamatribuídasoserfemininonegro.Eousodos trajes, legitimadosenquanto trajesdebaianas,eram tambémilustrativosdouniverso religiosodosterreirosdecandomblésondeestavaminseridas.Nosdiasatuais,demodogeral,apercepçãocontinuaamesma!

Eéjustamenteporestaremassociadosàsobrevivênciaimagéticadasculturasreligiosasdematrizesafricanas, que as formas de vestir-se, do ponto de vista dos grupos religiosos afro referendados,representavam sinais diacrônicos e sincrônicos pelas cores e estamparias, modelagens, arrumações,projeções estéticas e funções das roupas. Percepções que não passavam pela crítica daqueles cujosolharesficavamturvosdiantedaimagemmulticoloridaeemblemáticadasmulheresnegrasemtrajesdebaianas. Se, de forma consciente ou não, projetam especificidades das histórias étnicas que lhe sãorepresentativas, talvez pouco importe nos dias atuais, mas contraditoriamente o fato de fazerem, poralguma razão, questão de externar essas particularidades, revela que no subconsciente da memóriacoletiva,ancoradanosdiscursosidentitários,provocanessasmulheresumareaçãopositivaàsdiferençasculturais, sem apelo ao pejorativo e às propostas teóricas que hierarquizaram os grupos africanostransportados,dando-lhesmaioroumenorgraudeinfluêncianocotidiano.

AestéticanovestuáriofemininodematrizafricanaA etnografia dessas composições, embora não sejam recentes, se diluíram emmeio aos discursos

simplistasetendenciosos,namedidaemquediluemasdiferençasculturais,mantidasnãoenquantofatorde exclusividade étnica, mas em atenção aos marcos identitários passíveis de serem reativados na

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esperança de fazer emergir as inúmeras culturas que forçadamente, num processo de estratégia eresistência,agregaram-se,adaptaram-se,mantendosinuosidadeseaspectosemblemáticosprovavelmentepoucoperceptíveisnosdiasatuais.Semsombradedúvidas,queamaneira,porexemplo,deenvolverotecido sobre a cabeça, seu tamanho, altura e cores revelavama identidade étnica que se projetava naoportunidadedesefazernotarpelosoutros.

Os encontros, embates e resistências culturais, produziram novos padrões cujas referências dovestuário e da arte da tecelagem ocidental, inevitavelmente, interferiram na composição da roupafemininanegra,visivelmenterepresentadanostrajesreligiososafricanos.Masnãoforamapenasestasasinfluências que combinaram o conjunto das roupas que vestem as mulheres negras em tabuleiros oumesmo em ambientes religiosos. Deve-se atentar para as influências orientais, sobretudo, de matrizislâmica, concretizadapelos adornos e torçosque serviramcomo traçosquepersonificavamaorigemétnicaeasidentificaçõesculturais.Infelizmente,nãopoderemosaquiavançarnasanálisesexplicativasparatodoesteprocesso.Ocertoéque,asformasestéticasdeenalteceramemóriaafricanaforam,passoapasso,ficandorestritasàscomunidadesreligiosasafro-brasileiraseaostabuleirosdeacarajés.

Sómuitoposteriormente, idosdos anos1970, omovimentonegroorganizado emSalvador investiucontra as referências ocidentalizadas enquanto padrão normativo, e as razões para a representaçãoestéticadeumaetnicidadenegraganhouforçaevigor.OmovimentoBlackPowerrefletiunamodelagemdos cabelos emmulheres negras representada pelas tranças com diferentes formatos e representaçõessociaisedecunhoreligioso.Nummovimentoascendenteedevoltaaopassadolongínquoecultural,ostorçoseturbantesreceberamoinfluxodosestímulosparaumaautoestimadamulhernegra,cujosadornospela exuberância das cores e magnitude de suas estruturas sobre as cabeças, provocaram reflexões,espantosemuitasadeptaseadeptosseguindoomovimentopolítico,projetaramostorçoseturbantesdaesferadoreligiosoesimplesmenteimpuseramseuusodeformaprofana,enaltecendoaindumentáriadematrizesafricanassilenciadaspelaspropostasdealteraçõesnastexturasdoscabeloscresposepenteadosmenoscomplexosesemnecessariamenteestaremassociadosaopassadoafricano.

Osadornossobreascabeças,apesardospreconceitosaindapresentes,podemservistosemmuitasmulhereseemdiferentespapéiseespaços.Contundo,pairamsempreasdesconfianças,eoolharévistoe inusitado,atribuindoàpersonagemadjetivossobreasuacorageme identidadenaestéticaprojetada.Aqui,também,asrazõesmereceriamalgumasconsiderações,apartirdealgunsquestionamentos.

Oscomportamentosjátidoscomocorriqueirospormulheresehomensnegrosqueutilizam,parasuaapresentaçãovisual,aestéticaeomododevestir-seafricano,garanteaessaspessoasaprimazianousoabsolutodestaimagem?Nomínimodiríamosqueseumamulherdecorclara,consideradabranca,usassedaestéticadovestir-seafricano,intitularíamosdeilegítima,poralgunsseriaconsideradoumverdadeiroabsurdo. E seria alvo do escárnio, por não admitirem a projeção de uma estética que passou a terexpressãopolítico-identitárianegraedeenfrentamentoaosmodelospropostosparacuidardoscabeloseda cabeça.E se essa estética estivesse associadas à atuação religiosa em comunidades afro, teriamovereditopositivodosoutros?Sernegraounegro legitimaousodaestéticaevestuárioafricano?e/ou

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modelagem em cabelos? Estes são aspectos espinhosos e contraditórios dentro das perspectivas dasrelaçõesétnico-raciaisedaliberdadedeescolhadeidentidades.

Appiah (1997), ao pensar as identidades africanas, salienta três grandes aspectos que poderão serestendidosàsidentidadesreligiosasafro-brasileiras.Primeiro,que

[...] as identidades são complexas e múltiplas, e brotam de uma história de respostas mutáveis às forças econômicas,políticaseculturais,quasesempreemoposiçãoaoutrasidentidades.(APPIAH,1997,p.248).

Segundo,queelasflorescemadespeitodoqueantesoautorchamoude“desconhecimento”desuasorigens,ouseja,suasbasesestãoassentadasemmitosementiras.E,porúltimo,quenãohámuitoespaçopara a razão na construção das identidades – politicamente é interessante exaltar identidades queparecemofereceresperançasaobjetivosfuturosesilenciaropassadocomplexo.

ParaFerreira(2000),identidadeéumconstructoquerefleteumprocessoemconstantetransformação,cujasmudançasvêmsempreassociadasamudançasreferenciaiseanovasconstruçõesderealidadeporpartedosindivíduos,determinadasporsuaparticipaçãoemcertosprocessosprovocadoresdeimpactoexistencial.

Eainda(FERREIRA,2000,p.47):

Talvez fossemaiscorretodenominá-ladinâmicade identificação, sempre submetidaàdinâmicadoprocessodeviver.Aidentidade refere-se à representação que o indivíduo tem de si próprio que sofre mudanças ao longo do tempo e dasrelaçõesdesociabilidadequedãosentidoeparticularizamasuaexistência.

SegundoHaesbaert(1999,p.174-175)aidentidadenãodeveserencaradacomoalgoestático,mas,como em constantemovimento. “Trata-se sempre de uma identidade em curso, e por estar sempre emprocesso/relaçãoelanuncaéuma,masmúltipla”.Elase“defineemrelaçãoaoutrasidentidadesnumarelaçãocomplexadeescalasterritoriaisevaloraçõesnegativasepositivas”.

Evidentequeasmudançasantesdevemacontecernointeriordapessoa,daquelesquepretendemumainserçãoouaprojeçãodesímbolosdeidentidadesafro-referendadasquevisualizeemblematicamenteogrupocujavontadeéassocia-se.Eistoquandoestesemblemassãoessencialmentenecessáriosporpartedoindivíduoquesepropõeàidentificação,cujasrepresentaçõesnaestética,antesdetudo,significamumenfrentamentodiretoeaomesmotemporecusaàeducaçãohegemônica.

Embora tenhamos feito muitas considerações sobre a estética dos adornos sobre as cabeças dasmulheresedaarteprojetadanospenteadosemseuscabelos,nosinteressatambémapresentarumaoutraformadeprojeçãodaestéticanegra,apartirdaartedacosturaedosbordadosemroupassagradasdouniverso afro-brasileiro. Estes trabalhos são realizados por dedicadas costureiras, quase sempresenhoras negras emestiças, cujas habilidades foramherdadas de alguémda família e aprimorada noscursos para costura e acabamentos em roupas, agregando o aprendizado de pontos de bordadosespecíficos,comorechilieu, rendasdebilros,pontosdebordadosdevárias formasemodalidadesdetecelagens realizados à mão, traçados em croquis por elas próprias desenhados, representando oimaginárioeamaterializaçãodaartesecularreproduzidasnoconjuntodaspeçasornadasdelicadamentepor mãos calejadas, pelas espetadas das agulhas e pelos movimentos contínuos, por longas horas

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sentadasdiantedemáquinas,nãonecessariamenteamaistecnológica,masaquelasquedoseupontodevista foram amaciadas pelos anos de dedicação ao ofício. As rendas de bilros dão suntuosidade àsvestimentas sagradas e profanas também, a técnica da passamanaria, próxima domacramé (ambas deorigemárabe),emqueosváriosfiossecruzam,torcemeentrançam,emmovimentosemquepassamdeumamãoparaaoutra(docastelhano“passamanes”),vaioriginaratécnicadotrabalhodosbilros.Parasemanteremcontroladososníveisdetensãodosváriosfioseparanãoseensarilharem,estescomeçamaserfixadoscomalfinetes,numdosseusextremos,numaalmofadadura,enquantoasoutrasextremidadescomeçamaestarenroladasempequenoschumbos,oupedaçosdemadeiraoudeosso(RAMOS,2011).

Assimsendo,ascostureirasdo sagradoafro-brasileiro,Martas,Augustas,Gilcélias,Zéliase tantasoutras, traduzem na arte da costura e do bordado as projeções históricas do vestuário que representapreciosismos e hierofânias das divindades africanas e afro-brasileiras de um lado; e a históriamíticarepresentadaspelostraçosartísticosnacostura,quedeveobedecerosrigoresdastradiçõesqueatendemo gosto, corte e função da indumentária. Os ornamentos, bicos, renda, fitas e arremates atenderão àsexigências do solicitante que, por sua vez, terá liberdade em associar as combinações consideradastradicionais–esãoporreproduzirembordadosetecelagemmuitasvezesquejácaíramnoesquecimentopopular–einovaragregandooutrascontribuiçõesdacosturamodeladaemtecidosindustrializadosqueabrilhantamovestuário eglamour àsdivindadesquenãodispensamobomgosto eo refinamentodaspeças.

Pelas habilidades na arte da costura e contemporaneidadena arte de reproduzir simbolicamente novestuário adequado à mitologia afro-brasileira, essas profissionais são disputadas e o custo do seutrabalho varia de acordo as exigências namodelagem das roupas e sua quantidade. Apesar do valorsimbólico e do mercado para aqueles que dependem dessas profissionais, seu número vem sendorestringindo pela falta de aprendizes e pela mudança de credo religioso que interfere nos serviçosprestados àqueles cuja vertente religiosa se confronte com a da costureira. Por sua vez, aquelas quepermanecematendendoaestepúblicoseleto,apesardaidadeedoacúmulodosserviços,permanecemaltamentedisputadas, tendoosolicitantequeaguardaragendamentoparaqueseuguardaroupasagradoestejaprontoeatendendoaosditamesdatradiçãoreligiosanaqualestáinserido.CabeumestudomaisprofundosobreaarteeimportânciadessasmulheresquesededicamexclusivamenteàcosturaOrixá.

ParamentosdosOrixáseoofíciodeferreirosecarpinteirosDiferente não é a realidade enfrentada pelos artesãos ferreiros e carpinteiros.Aqui, apenas alguns

comentáriossobreosferreirosdosagradoafro-brasileiro.Osferreirosdosagrado,paraasreligiõesdematrizes africanas, têmuma significativa importância cultural-religiosa na confecçãode apetrechos daindumentária e representação religiosa das divindades africanas conhecidas por Orixás, Voduns eInquices. Estas pessoas detêm a memória e a habilidade de uma atividade profissional que requersensibilidadeparacomasrepresentaçõesqueserãomoldadasemsuasoficinasartesanais.

O ofício geralmente é passado de geração a geração, por antigos artífices cuja arte individual

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desenvolvida é ainda hoje reproduzida por seus poucos aprendizes que tornaram-se, nacontemporaneidade, mestres em uma arte ameaçada pela falta de incentivo e divulgação cultural dolegado da tradição afro-brasileira. Esse ofício garante a essas pessoas uma inserção nas relações detrabalho e provimento do seu próprio sustento e, por extensão, da família. Para além da questãoeconômica,o trabalhodesenvolvidopelos ferreiroscontribuemparadivulgaçãoepreservaçãodaarteem metais como ferro, bronze, latão; e minerais como ouro e prata. As formas criadas por essesprofissionais estão preenchidas de simbolismos na representação cultural e religiosa para parcelasignificativadapopulaçãoemSalvador.

É difícil, para muitas pessoas, reconhecer a habilidade e intelectualidade dos artesãos na arte demodelar o ferro, o bronze e as chapas de cobre e alumínio, transformando-os em belos entalhes. Acapacidade de aprender a arte pictórica dos grupos africanos, da representação islâmica, bizantina eocidental, faz com que consigam reproduzir nas peças as simbologiasmíticas e espacial, imprimindoelementosquenos levamàcertezadomulticulturalismoexpressonoembelezamentoemodelagemdaspeças,mas reinventadao tempo todo,dinamizadapelaabsorçãodeelementos fundantessignificativos,representadas na linguagem impressa nos adornos, capacetes, alfanjes, coroas. As dificuldades parapreservação e difusão desses conhecimentos, passampelasmesmas dificuldades já apontadas para ascostureiras. Na medida em que se defrontam com as novas escolhas religiosas, o desinteresse pelacontinuidadedatradição,asreferênciasnovasdetrabalhoeinserçãonomundodotrabalhoameaçamsuaarte e beiram o desaparecimento de desenhos emarcações referendadas namitologia das divindades,refletindodiferenteseentrelaçadashistóriasdosreferenciaisculturaisfeitasnosentalhes.

Os entalhes em matérias duráveis e as roupas são compreendidas, aqui, enquanto linguagem ereproduzemmemóriashíbridasresultadodasapropriaçõeseressignificaçõesquepassaramaresponderàsexpectativaseaomitológicodaculturaafroreferendada,sejaelaumaspectodareligiãoancestral,ounasuavertentebrasileiracandomblé,sejaelabuscandoreferêncianostraçosdaartebizantinamedievale, portanto, oriental, por sua vez representativa dasmisturas culturais que remontam ao processo dascontínuasmigraçõese invasõesquemarcaramacomposiçãocivilizacionaldaquelespovoseemáreasdistintas.Evidentequenãopodemosdeixardecitarocenáriodascomposiçõessociaisnacolonizaçãoeosaprendizadosoureforçosdereferênciastidascomoidentidadesnosdiasatuais.

Certa das minhas hipóteses no que tange às apropriações e representações visuais em objetos daritualísticaafrobrasileira,questioneideformasorrateiraosentalhesemmaterialdeferroebronzeaumconceituadoferreiroemSalvador.Dele,jápossuíaalgumasinformaçõessobreoaprendizadodatécnicae dados sobre sua formação educacional.Deparava-me com um homem jovem, simples e que não sesentia prejudicado por não ter concluído o ensino médio, visto que o mundo do trabalho e suasreferênciasfamiliares,enquantoherdeirodahabilidadeeoficiodoseuavó,agregavavalorsimbólicoematerial aos trabalhos por ele realizados. Neto e aprendiz de um venerável ferreiro das tradiçõesreligiosasafricanasnaBahiaemuitorequisitadonoiníciodoséculoXX,caprichavanosmateriaisporele produzidos, agregando nas peças que confeccionava uma descrição pictográfica da lenda das

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divindades, apelando para a natureza, sua fauna e flora, além dos elementos ar, fogo e água, objetosrelacionados à agricultura e ao embelezamento feminino, como espelhos, pentes, legues, pulseiras,braceletes.Suaarterefinava-secomassolicitaçõesdaclientela,queaoprocurá-lojátraziaasimagensou sua idealização e ali eram projetadas com ajuda do artesão, outros apropriando-se, sem nenhumaleviandade,dasreferênciasdarealezaafricanaoumedieval,propunhamsugestõesqueenaltecessemossímbolos de poder e magia a serem ornados e adaptados ao gosto das celebrações religiosas afrobrasileiraemsuasdiferentesvertentes.

ConsideraçõesfinaisEsteartigotentacontribuirparaodespertardeoutrosenfoquesrelacionadosàculturaafro-brasileirae

àspessoasqueadinamizamo tempotodo.Apesardocaráterpreliminardesuasanálises,acreditamosque possa incentivar o olhar artístico apurado para as produções de peças sagradas que atendam àrealidadeafro-brasileira.Dessaforma,umaetnografiadotrabalhodosartesãos,costureiraseferreiros,quesustentamcomsuashabilidadesartísticasamemóriareligiosaafro-brasileira,sefaznecessárioemreconhecimentoàfunçãosociorreligiosa,mastambémàsensibilidadeegostoestéticoquesingularizaaarteemrelaçãoaoutrasculturas.

ReferênciasAPPIAH,K.A.Nacasademeupai:aÁfricanafilosofiadacultura.RiodeJaneiro:Contraponto,1997.FERREIRA,R.F.Afrodescendente:identidadeemconstrução.SãoPaulo:EDUC;RiodeJaneiro:Pallas,2000.HAESBAERT,R.Identidadesterritoriais.In:ROSENDAHL,Zeny;CORRÊA,RobertoLobato.(Org.)Manifestaçõesdaculturanoespaço.RiodeJaneiro:EDUERJ,1999.RAMOS,G.Rendas:Amolduraeuropeia.In:PUBLICAÇÃODAASSOCIAÇÃOPARADEFESADOARTESANATOEPATRIMÓNIODEVILADOCONDE.RendasdeBilrosdeViladoConde:umpatrimônioapreservar.Lisboa:[s.n.],2011.p.9.

[97]Iguariadeorigemafricana,feitacomfeijãofradinhotriturado,noformatodepequenosbolinhosfritosnoazeitededendê.

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SOBREOSAUTORES

AlessandroMalpassoDoutorandonoProgramaMulti-institucionaleMultidisciplinaremDifusãodoConhecimento-UniversidadeFederaldaBahia–UFBA/UNEB/UEFS/IFBA,enoProgramadeIndustriasdaComunicaçãoeCulturais–UniversidadePolitécnicadeValencia–UPV.Cv:http://lattes.cnpq.br/9997699695074221Email:[email protected]

BeatrizRamosdeVasconcelosCoelhoGraduadaemArtesPlásticanaEscoladeBelasArteseArtesGráficasdeBeloHorizonte,EscolaGuignard,formando-seem1969.FoiprofessoradeGravura,nessamesmaEscola,entre1970e1982,quandopassouaserprofessoranaEscoladeBelasArtesdaUniversidadeFederaldeMinasGerais.FezestágiodeaperfeiçoamentoemBarcelonacombolsadaCapes(1982/83)ecursodeatualizaçãoemRestauraçãodePinturas,noMéxico.ÉprofessoraeméritadaEBA/UFMGepresidentedoCentrodeEstudosdaImagináriaBrasileira(CEIB)desde1998.Cv:http://lattes.cnpq.br/1995961914706579Email:[email protected]

CeciliaConceiçãoMoreiraSoaresDoutoraemAntropologiapelaUniversidadeFederaldePernambuco,MestreemHistória(UFBA)egraduadaemHistória(UCSAL).ProfessoratitulardaUniversidadedoEstadodaBahia.Cv:http://lattes.cnpq.br/4052594991528106Email:[email protected]

GiseleLourençatoFaleirosdaRochaDoutorandaeMestreemArtesVisuais,Pós-graduaçãoemArtesVisuaisdaEBA/UFRJ;ProfessoradosCursosdeGraduaçãoedoProgramadeMestradoemGestãoSocial,EducaçãoeDesenvolvimentoRegionaldaFaculdadeValedoCricaré.Cv:http://lattes.cnpq.br/7153573974388707Email:[email protected]

HeleniseMonteiroGuimarãesDoutoraeMestreemArtesVisuais(EBA-UFRJ),graduadaemPintura(EBA-UFRJ).CoordenadoradoNúcleodeEstudosdeCarnavaisefestividades(Nescafe).Pesquisadoradeculturapopular,turismoecarnaval.ProfessoraadjuntadoDepartamentodeHistóriaeTeoriadaArtedaEscoladeBelasArtesdaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.ProfessoradoProgramadePós-graduaçãodeArtesVisuais(EBA-UFRJ)ElaborouoprojetopedagógicodocursodeHistóriadaArte,criadoem2009naEBA-UFRJ.Cv:http://lattes.cnpq.br/6266807318429051

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IvanRêgoAragãoMestreemCulturaeTurismo(UESC);TécnicoemConservaçãodeBensCulturaisMóveiseIntegrados(FAOP);MembrodaAssociaçãoBrasileiradeHistóriadasReligiões(ABHR).Cv:http://lattes.cnpq.br/6940571234603899Email:[email protected]

JadilsonPimenteldosSantosDoutorandoemArtesVisuais–UNICAMP-SP.MestreemArtesVisuais(EBA-UFBA).GraduaçãoemDesigndeInterioreseLicenciaturadeDesenhoePlástica.ProfessordeArtesnoIFBA.Cv:http://lattes.cnpq.br/6253213323147662Email:[email protected]

MariadeFatimaHanaqueCamposPós-doutoradonoRoyalBotanicGardenemKew–LondrescomapesquisasobreColeçõesdosnaturalistasWilliamJonhBurchell,GeorgeGardnereGlaziou.DoutoraemHistóriadaArte(UniversidadedoPorto–Portugal),mestreemArtes(ECA-USP)egraduadaemArtesPlásticas.ProfessoratitulardaUniversidadedoEstadodaBahia.ProfessoradoProgramadePós-graduaçãoMulti-institucionaleMultidisciplinaremDifusãodoConhecimento.Cv:http://lattes.cnpq.br/2877955563170180Email:[email protected]

MariaHelenaOchiFlexorDoutoraemHistóriaSocialegraduadaemHistóriapelaUniversidadedeSãoPaulo.ÉprofessoraEméritadaUniversidadeFederaldaBahia,ondeexerceuváriasfunçõesdeensinonagraduaçãoepós-graduaçãodeHistóriadaArte,HistoriaUrbanaeDocumentação,naFaculdadedeArquitetura,FaculdadedeFilosofiaeCiênciasHumanaseEscoladaBelasArtesdaUniversidadeFederaldaBahia.AtualmenteéprofessoraadjuntadaUniversidadeCatólicadeSalvadorenoProgramadePós-graduaçãoemPlanejamentoTerritorialeDesenvolvimentoSocial.Eespecialistaemleituradedocumentos.Cv:http://lattes.cnpq.br/4600166750512322Email:[email protected]

RaphaelDaviddosSantosFilhoDoutoremCiências(UFRJ),mestreemPlanejamentoUrbanoeRegional(CEPEUERJ),graduadoemArquiteturaeurbanismo.ProfessorAssociadodaUniversidadeFederaldoRiodeJaneiro.FundaçãoEstadualdeMuseus.SócioefetivodoInstitutoHistóricoeGeográficodeVassouras.Cv:http://lattes.cnpq.br/8814018980513947Email:[email protected]

RobertaBacellarOrazemDoutoraemArquiteturaeUrbanismopelaUFRN,MestreemArtesVisuais(EBA-UFBa)egraduadaem

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ArtesVisuais(UFS).Cv:http://lattes.cnpq.br/1656345382554551Email:[email protected]