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Práticas urbanas alternativas em São Paulo Imaginários emergentes

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trabalho final de graduação fauusp · junho 2014

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Práticas urbanas alternativas em São Paulo

Imaginários emergentes

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Raísa Drumond de Abreu Negrãoaluna

Jorge Bassaniorientador

tfg fau uspjunho 2014

Práticas urbanas alternativas em São Paulo

Imaginários emergentes

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A imaginação é o principal

detector de mudança.

(Aldo Van Eyck)

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09 Apresentação

19 Substrato / A dimensão da cidade 33 Contexto / Imaginários construídos 61 Tempo / A euforia da cidade 89 Lugar / São Paulo

107 Prática / Coletivos Basurama Contrafilé Muda_

139 Análise / Evidências coletivas

144 Bibliografia

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A Cidade é Para Brincar Virada Cultural, São Paulo, 2013

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Apresentação

A escolha dos caminhos para chegar ao trabalho final de graduação se justifica a partir de uma inquietação pessoal a respeito dos modos de se construir cidade e a consequente relação com a apropriação do espaço público por seus habitantes.

De modo experimental, busco nesta análise a elaboração de um olhar para as realidades emergentes sobre o território da cidade. Frutos de ações e processos humanos, políticos e comuns – portanto, coletivos – que sinalizam a importância de interferências críticas sobre o modo como estão sendo produzidas. Por serem neste trabalho denomina-das realidades ou situações emergentes, o olhar sobre elas aqui expos-to não se configura como um estudo finalizado e completo, mas uma compreensão inicial, construção de ideias a respeito de ações coletivas e comuns na cidade contemporânea. Inicio, então, com as justifica-tivas que pautaram a escolha desse caminho de trabalho e apresento de alguns dos questionamentos que me instigaram a esse olhar para a metrópole.

A falta de apropriação de espaços livres e lugares de coexistência de qualidade, e a percepção de que parece não existir, junto às políticas de construção da cidade, a prática de desenho urbano com foco na escala humana são fatos que dão força à minha vontade de entender outras realidades da metrópole. A ideia de planejamento urbano base-ado no âmbito da lei, no âmbito do capital e do monopólio de interes-ses privados contrapõe-se ao desenho de cidade na dimensão pública – comum e coletiva. Neste contexto, como é possível intervir e criar imaginários mais agradáveis e alternativos para a cidade, com foco na dimensão social de apropriação de seus espaços, com toda a densidade que a ela se refere?

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Para balizar esse questionamento, tomo como domínio a metrópole de São Paulo. Embora tenha sido cenário de análise de muitos traba-lhos ao longo da minha presente graduação, a intenção de abordá-la como objeto de estudo neste momento é o de tentar identificar, na sua construção, as transformações vividas na última década, por meio de um olhar mais atento às realidades do espaço público que se consolida.

É evidente o surgimento de uma rede de ações alternativas colabora-tivas com foco na produção de novas experiências para apropriação da cidade. São tentativas de criação de imagens simbólicas, artísticas e criativas em múltiplas escalas que convidam os habitantes a se apro-priarem de novos projetos de cidade. São iniciativas de baixo para cima com foco em acontecimentos e experiência coletiva de cidade, que surgem a partir de determinadas situações locais, onde a disputa pelo espaço público se evidencia, se encontra, se confronta e se so-brepõe às realidades e dimensões socio-espaciais existentes na cidade. Coletivos artísticos, festivais de bairro, intervenções urbanas em luga-res e fronteiras parecem surgir e coexistir numa tentativa de (re)expe-rimentar e (re)codificar a cidade, tornando visíveis as disputas pelos espaços públicos.

Por acreditar que esse movimento coletivo que se forma na metrópole sinaliza a importância de interferências para criação de imaginários e novos projetos de cidade, o trabalho se desenvolverá no sentido de compreender essa rede de intervenções urbanas colaborativas em São Paulo, avaliar o porque de sua importância para a discussão contem-porânea dos espaços na cidade e perceber de que forma elas podem transformar as realidades sociais pré-existentes onde elas acontecem.

Sob essa perspectiva traduzo a seguinte questão: as transformações no espaço urbano quando provocadas pelos novos atores que operam de

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forma alternativa às políticas públicas, podem, como resultado, exal-tar apreensões sócio-espaciais da cidade?

Para auxiliar na compreensão dessa questão, tomo como premissas al-guns pontos que julgo importantes, sem a pretensão final de eviden-ciá-los como um único ponto de vista de análise no estudo exposto:

Qual o papel das ações urbanas emergentes na

construção de imagens simbólicas e transformações

espaciais para a cidade de São Paulo?

Quais são os microatores envolvidos nessas ações e

qual as transformações e imaginários criados sobre e

para os lugares de ação?

A partir da criação de novas imagens, de que forma

a apropriação coletiva e reinterpretação de espaços

existentes corroboram de que forma para discussão

da importância dos espaços públicos comuns para a

cidade?

Em meio aos imaginários emergentes na metrópole de São Paulo, o objetivo desse trabalho final de graduação é analisar essas questões, tomando como referência, em primeiro lugar, a lógica de surgimento dessas ações e o significado de sua existência para a dimensão social de apreensão do espaço público urbano. E em segundo, de que forma essas ações podem andar em paralelo com a discussão pública da cons-trução de novos projetos para a cidade existente. Tais questões serão aqui discutidas portanto como um fenômeno micropolítico, na medi-da em que correspondem a um trabalho de elaboração da experiência de embate pela construção de espaços públicos na cidade.

O desenvolvimento dessa análise se dará a partir de capítulos abaixo.

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Em SUBSTRATO / A dimensão da cidade, me aproximo da cidade contempo-rânea apontando sua dimensão social, as políticas locais de produção de espaços públicos, tratando de suas generalidades e problemáticas comuns a partir da leitura de autores importantes que balizam essa discussão atualmente.

Em CONTEXTO / Imaginários construídos, busco primeiramente uma reflexão histórica acerca de intervenções sobre o território urbano e a relação entre arte e cidade. Em seguida, me aproximo ao pensamento socioes-pacial chegando à discussão das territorialidades urbanas transforma-das pelas pessoas que nelas atuam, numa tentativa de compreender a potências das ações sobre corpos e espaço.

No capítulo TEMPO / A euforia da cidade, justifico a escolha do tema de análise, os imaginários emergentes da cidade, frente a contempora-neidade de eventos no espaço urbano ativadas por grupos e coletivos. Apresento um panorama extraterritorial de intervenções urbanas, pessoas nas ruas, imagens, símbolos, ações.

Para LUGAR / São Paulo, apresento o território a partir de um olhar atual sobre os acontedimentos na metrópole paulistana, compreendendo ações e ventos relevantes, políticas de gestão urbana atuais, platafor-mas e pessoas.

Em PRÁTICAS/ Coletivos foco na prática de 3 coletivos atuantes na cidade – Basurama, Contrafilé e Muda_coletivo –, levanto suas experiências identificando seus alcances e recortes de atuação, para compreensão da importância de sua ação.

Concluo com respostas às questões iniciais, validando a importância dessa discussão em ANÁLISE / Evidências coletivas .

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Piscina no Minhocão Angela Leon, 2014

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A questão do tipo de cidade que

desejamos é inseparável da questão

do tipo de pessoa que desejamos nos

tornar. A liberdade de fazer e refazer a

nós mesmos e a nossas cidades dessa

maneira é, sustento, um dos mais

preciosos de todos os direitos humanos.

(David Harvey)

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Minhocão, Tarde de domingo, 2013

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Substrato

Inicio este trabalho me aproximando da cidade contemporânea e seus acontecimentos mais recentes, a partir de algumas leituras específicas e percepções pessoais de realidades urbanas vividas. O que pretendo trazer aqui é uma introdução ao entendimento pessoal da dimensão social, humana e coletiva de grandes centros urbanos na atualidade. Especificamente, tratarei de suas generalidades e problemáticas co-muns essencialmente conectadas à relação entre espaço público e seus habitantes, que trazem como consequências realidades emergentes e construções coletivas de novos olhares para a cidade.

Ao longo dos 6 anos vividos na FAU, pude iniciar o entendimento da dinâmica do que é viver cidade e experienciá-la. Essa relação estrita entre cotidiano e experiência de cidade, somado ao interesse sobre ela, gosto de dizer, foi imposta a mim quando da mudança para a cidade de São Paulo, no momento de meu ingresso na universidade, em 2008. Como nova moradora daquele território, antes para mim desconheci-do e com o qual não tinha nenhum tipo de relação afetiva ou histórica pois vim de Curitiba, onde morei até 2007, fui estimulada decodificá--lo. As situações com as quais me deparei fizeram crescer esse interesse por entender o – na época para mim tão gigantesco – território da ci-dade com toda sua complexidade. As ações cotidianas que travei para atravessá-la e apreendê-la – o caminhar, o cruzar a ponte, o esperar o ônibus, aguardar o congestionamento, o observar outras paisagens, apreender outros símbolos, presenciar outras belezas –, de modo sub-jetivo, somaram-se e construíram minha experiência corporal sobre esse território. A experiência do corpo sobre a cidade é um processo de contínua mudança de percepção. Essa possibilidade de mudança é que instiga minha curiosidade de refletir sobre o urbano de São Paulo.

Complementar à necessidade pessoal de entender a cidade, o conta-

A dimensão da cidade

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to com a pesquisa colaborativa sobre arquitetura, educação e cidades vivida no grupo de extensão universitária, entre 2009 e 2010, junto a outros colegas do curso de Arquitetura e Urbanismo foi essencial para me aproximar de outras realidades que não àquelas impostas pelas minhas necessidades. A experiência de partipação em algumas atividades do epa! – espaço, projeto e ação1, entre rodas de discussões com a temática urbana e as ações propositivas junto aos movimentos sociais e grupos organizados, permitiu aproximações com realidades da cidade antes ilegíveis por mim. Conheci mais de perto a Baixada do Glicério e lá aprendi com a Cooperativa de Catadores, que funciona sob o viaduto da Radial Leste-Oeste, os complexos processos urbanos pelos quais passam cotidianamente. Por uma demanda local, travamos um trabalho conjunto de readequação física de seu espaço com o ob-jetivo de legitimar juridicamente seu funcionamento. As conversas, os encontros, frutos dessa experimentação coletiva, transformaram com intensidade a maneira como leio a cidade hoje.

Paralelamente à essa experiência, o intercâmbio acadêmico que reali-zei entre 2011 e 2012, proporcionou-me leituras de outras paisagens urbanas. As reflexões adicionadas no momento da troca de experiên-cias em um território estrangeiro e, também, o lugar que Barcelona ocupa como referência da discussão urbanística contemporanea, pos-sibilitaram a ampliação dessa vontade de compreender e atuar sobre as cidades. O ambiente acadêmico somou-se às experiências na cidade, instigando a discussão sobre processos sócio-espaciais e resistências urbanas presentes naquele momento. Meu olhar encontrou aconte-cimentos coletivos nas manifestações contra o turismo midiático, nas ocupações artísticas e de moradia em galpões e prédios abandona-dos, nos movimentos de bairro e lutas contra gentrificação de áreas

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de interesse privado, nos movimentos pró-autonomia da Catalunya, em protestos na rua em prol de uma democracia participativa - que se consolidou como o movimento dos indignados, ou 15-M como ficou mais conhecido - nas discussão de gênero nas aulas de arquitetura, nos coletivos de ação urbana que discutiam a importância de ocupação dos espaços da cidade e propunham novos projetos alternativos para esse fim. No entanto, quase que em uma hipsnose, mantive o olhar direcionado para dimensão cidadã e humana desses acontecimentos, percebendo a importância deles para os habitantes da cidade, pessoas que ocupam, lutam e se apropriam daquilo que é de interesse público.

Saindo da experiência pessoal, para a análise aqui exposta, busquei referências que pudessem dar respaldo teórico a esse entendimento de cidade. Apoiei-me em algumas leituras críticas de arquitetos, filó-sofos, sociólogos e urbanistas feitas ao longo da pesquisa e nos demais estudos que fizeram parte da minha experiência na graduação. Essas leituras foram necessárias principalmente para adentrar no problema de como cada coletivo de ação urbana, a partir de seus trabalhos, opera em diferentes escalas, ou seja, interagindo e intervindo em várias di-mensões da cidade. Nesse contexto foi fundamental entrar em contato com a discussão que se está dando no campo da sociologia, da antro-pologia e da geografia urbana, de como pensar a cidade hoje, a partir da construção de novas categorias, novos objetos de pesquisa e novas perguntas, em relação aos quais os postos de observação são delinea-dos como campo empíricos e não mais formais.

Para dar suporte ao entendimentos dos acontecimentos e fenôme-nos urbanos recentes localizados nas cidades complexas – aquelas caracterizadas por alta demografia, infraestruturas maciças para des-locamentos, arquiteturas densas, funções econômicas regionais, frag-

1 O epa! surgiu em 2009 a partir de uma iniciativa de um grupo de estudantes de arqui-tetura e urbanismo da gradu-ação e pós-graduação da USP e tinha como proposta afirmar a centralidade da ação direta, junto aos movimentos sociais, às comunidades organizadas, na ação política, como melhor meio para alcançar transfor-mações sociais profundas e relevantes. (Texto de apresen-tação) Realizava discussões a partir de leituras teóricas sobre espaço público outras ques-tões concretas da cidade, com foco na intervenção coletiva e ação participativa.

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mentações territoriais ao mesmo tempo que redes de todos os tipos – apoiei-me em textos de da professora filósofa Otília Arantes, que fornecem chaves de leituras e instrumentos para se discutir o papel do urbanismo e dos novos atores, a crise da forma urbana e as grandes transformações nas cidades a partir de eventos e redes2. Busquei com-preender o pensamento crítico de David Harvey, geógrafo marxista que discute a produção cultural e tendências da política e sociedade pós-modernas com as exigências econômicas decorrentes dos ciclos de expansão e crise do capitalismo e suas relações com a urbanização de cidade. Sua discussão mais recente, se apoia nos fenômenos urbanos de massa, como respostas ao auge das políticas neoliberais dos anos 1990, e postula a importância de recuperação do direito à cidade para frear o processo de desigualde econômica e territorial 3. Aproximei-me da perspectiva de Saskia Sassen, socióloga holandesa que identifica os fenômenos da globalização sobre a urbanização. Embora generalistas, encontro argumentos seus que identificam as resistências urbanas nas metrópoles e os múltiplos significados dos espaços encontrados nelas hoje 4. Analisei o poscionamento de Jordi Borja, que assim como Sas-sen, identifica a crise das políticas locais de reprodução dos espaços públicos e sentido público do território das cidades 5.

A partir dessas leituras, entendo que estamos em meio há uma crise das políticas locais de reprodução social quando falamos dessas cidades complexas e do urbanismo que nelas se constrói. Nunca a segregação social no espaço e a disputa de território da cidade há sido tão grande. Para esses autores, nossa época revisa a razão de ser cidade, pois a cor-relação entre o território da metrópole e o território de organização da produção social se forma com base em políticas inseridas em uma economia capitalista e esses estão, portanto, sujeitos à lógica do lucro.

2 ARANTES, 1998

3 HARVEY, 1992, 2012

4 SASSEN, 2005

5 BORJA, 2004

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6 Usarei sempre a palavra pú-blico no sentido de bem co-mum e propriedade coletiva, numa tentativwa de fugir do público como propriedade do Estado, instutuição ou poder que governa as cidades.

7 Csaba Deák, Caio Pra-do Jr., Ermínia Maricato, entre outros autores foram apresentados nas disciplinas de planejamento ao longo dos semestres cursados na FAUUSP, sob perspectivas históricas, marxistas, de produção do espaço urbano das cidades no Brasil e tenho suas leituras como base teóri-ca inicial mais importante do meu entender da produção dos espaços da cidade.

Essa política, que organiza o território e os investimentos para seu de-senvolvimento, ou seja, que é responsável pela produção do espaço da cidade, falha ao responder às necessidades coletivas importantes para o bem comum, no sentido da maioria da população que nelas vive. As realidades consequentes dessa lógica se materializam em um mal estar urbano, caracterizado pela perda de identidade local e das referências coletivas e uma ausência de representação política do comum pelas instituições que atuam sobre o território. Em resumo, esses comporta-mentos econômicos e políticos consolidam uma gestão privada do uso do território das cidades e um consequente a esvaziamento do sentido público dos espaços urbanos.

Arrisco dizer que no Brasil a relação patrimonialista da gestão das cidades e a frágil atuação das instituições públicas concorrem para tal esvaziamento. O público6 – no sentido do comum, do coletivo, para todos – parece não existir no território da cidade, pois os usos e contra-usos que nele se estruturam evidenciam a predominância dos interesses privados. Essa ausência do sentido público transparece na cidade que se coloca como o centro, se não território principal, das re-lações econômicas do país. São Paulo, que tem sua mancha urbana de quase 20 mihões de habitantes será apresentada aqui, portanto, como objeto de estudo, pois se insere nessa lógica das cidades complexas acima retratadas. O que explicito são observações empíricas, primeiro enquanto cidadã habitante da capital paulista, como aluna, com base na compreensão do pensamento crítico exposto nas aulas de planeja-mento urbano da FAU e finalmente como futura arquiteta urbanista, cuja vontade é aprendê-la e apreendê-la melhor 7.

O planejamento urbano praticado no município, ao longo da história, parece concentrar os recursos financeiros para infraestruturas urba-

Campinho Ivan Souto, 2013

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nas e atividades econômicas de forma desigual sobre o território. Não houve urbanismo de fato, apenas ideias de projeto de cidade baseadas nas leis vinculadas a interesses privados. Como resultado, a cidade se caracteriza por um desequilíbrio estrutural entre lugar de trabalho e moradia, com pouca variação de usos e atividades, frente a sua dimen-são demográfica e territorial, e insignificância de existência de espaços formais de convivência e experiência coletiva.

Caminhando junto com essa prática de planejamento, o que mais le-vanta questionamentos para minha análise é a ausência de lugares de coexistência que revelam as disputas do território urbano e as subjeti-vidades e não engessam a cidade e seus habitantes nas suas individuali-dades. Mesmo com sua extensão e fragmentação territorial, São Paulo não consegue responder as necessidades da cidadania que permitem a construção de cartografias subjetivas, aquelas que ignoram as maciças infraestruturas presentes e suas lógicas apenas utilitárias por meio de formas outras: do caminhar livremente, do sentar, do brincar, do con-templar e se apropriar do espaço da cidade. Na nossa cidade, pouco se resiste a essas lógicas e dinâmicas preexistentes. Quase não se observa o outro, há pouca sensibilidade no sentido de convivência urbana e da interioridade da cidade.

E é essa angústia que me faz olhar para ela de forma mais otimista e alternativa, numa tentativa de extrair de seu território e seus habi-tantes, as experiências outras que nela acontecem diariamente e que caminham como respiro ao planejamento urbano consolidado. Com essa hipótese, parto da premissa que uma reativação do valor do espa-ço público recupera as possibilidade de se fazer presente na cidade e de alguma forma reconectar-se a ela em seu significado inicial.

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Para compreensão do significado desse espaço público, plataforma da experiência coletiva e, ao mesmo tempo, motivo das ações que pre-tendo analisar, me aproximei um pouco da teoria que o define re-conhecendo a importância da compreensão do seu conceito inicial e puro. Para isso, selecionei algumas leituras que fazem definições clás-sicas desde Henri Lefèvre8 em O Direito à Cidade, John Gullick que faz uma leitura desse mesmo autor9, chegando na pesquisa de Hannah Arendt e Jürgen Habermas sobre ação e política10, e uma referência da relação espaço público e território em Milton Santos 11.

A reflexão do espaço público elaborada por esses autores, embora com suas diferenças, é aproximada nesta apresentação com a definição de alguns pontos. Primeiramente, considero que todo espaço livre ur-bano é público e nele podem ser instituídos, ou não, práticas sociais que venham a caracterizar a dimensão propriamente coletiva e polí-tica dos espaços públicos. Sugiro, numa dimensão mais antropológi-ca, que um espaço urbano somente se constitui em um espaço público quando nele se conjugam certas configurações espaciais e um conjun-to de ações. Quando estas atribuem sentido de lugar e pertencimento a determinados espaços urbanos, e igualmente, os espaços congregam sentidos para as ações, os espaços urbanos podem se constituir como espaços públicos. Gosto desse posicionamento, pois ele ultrapassa a ideia de que espaço público é somente o espaço urbano aberto. Ela agrega valor social e humano ao território quando o entendemos a partir das interfaces de sua espacialidade, ou seja, dos usos e ações que lhe atribuem sentidos. Por agregar tal valor, outro entendimento que faz uma defesa dessa mesma ideia é a de que o espaço público é o cam-po de disputa: é a espacialidade onde as diferenças se publicizam e se confrontam politicamente. Portanto, a partir do momento que pensa-

Parque AugustaDaniel Rocha, 2014

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mos a cidade ou seu espaço público como “campo problemático”, onde se operam situações de disputa, é possível lançar um olhar reflexivo para entender como ela aparece efetivamente nas práticas que serão aqui apresentadas .

Arendt e Habermas fazem refrência a esta construção da subjetivida-de sobre os espaços do mundo contemporâneo e à política entendida como ação em liberdade sobre o mesmo. Ambos apresentam uma teo-ria da ação humana subjetiva sobre o espaço público, quando indicam o significado da ação política instantânea: política como aconteci-mento e como interrupção de processos automáticos. Esse entendi-mento é muito importante para compreender o grau de influência das ações que serão analisadas neste trabalho, já que temos os espaços da cidade compreendidos como “espaços por excelência de experiência, re-flexão, ação e de percepção de si e do outro; espaço no qual a invenção de uma outra forma de estar no mundo, de conviver, de construir os próprios valores e critérios de beleza e riqueza se torna viável” 12.

Os movimentos sociais urbanos de retomada do espaço público das cidades desenvolvidos recentemente à nível mundial recordam a ideia já planteada por Lefèbvre nos anos 1960. O direito à cidade está cada dia mais em discussão nas metrópoles e o espaço público, como expli-citado pela escolha das leituras, reaparece com a força de sua denomi-nação, onde se estabelece o conflito em sua dimensão social.

Olhando para a realidade da cidade hoje, ocupar, tensionar, e resistir parecem ações mais presentes no cotidiano das cidades. Sua repetição demonstra que as práticas sociais ligadas à apropriação dos espaços na cidade podem levantar questionamentos que batem de frente com o status quo da construção do espaço urbano e procuram discutí-lo na dimensão pública de sua espacialidade.

8 LEFÈBVRE, 1998

9 GULLICK, 1998

10 ARENDT, 1987

HABERMAS, 1996

11 SANTOS,1996

12 JACQUES, 2008

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Novo espaço públicoTarg Weglowy Square, PolôniaGDYBY group, 2013

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Contexto

Aqui apresento o contexto da discussão do trabalho, por meio de aproximações. A cidade é feita por pessoas e para pessoas, para que atuem coletivamente e transversalmente nas suas individualidades e diferenças. É a criação humana por excelência, sendo um conjunto de territórios onde há encontro entre essas pessoas para a o compartilha-mento, troca e disputa: de valores humanos, culturais e econômicos, de experiências, objetos e criatividades. O espaço público de uma ci-dade é o palco catalisador dessas atividades, portanto, é o território máximo de expressão da coletividade e do comum, de percepção de si e do outro, da diversidade e da riqueza da mistura. Como exposto pelos autores lidos, os espaços públicos se configuram como a espacia-lidade onde as diferenças se publicizam e se confrontam, lugares em que podemos atuar de forma coletiva e individual ao mesmo tempo.

Quando essa espacialidade não é possível, quando a dimensão huma-na da troca, da disputa e do encontro não está estabelecida em de-terminado território, a cidade perde e seus habitantes, por sua vez, também perdem. Esse é o ponto de partida para a discussão de outros imaginários possíveis para a cidade. Tendo como cenário essa cidade com dimensão humana quase ausente, sem escala, sem lugares de par-tilha e troca, em que seus habitantes não se apropriam efetivamente de seus espaços comuns, tento buscar referências históricas de trabalhos de ação e pesquisa crítica que envolvem arte, urbanismo e arquitetura e se aproximam criticamente dessa relação necessária da cidade com seus habitantes.

Desde a reflexão e crise do discurso do movimento moderno, muito se escreve a respeito da relação da cidade e seus habitantes. A densi-dade e quantidade de trabalhos críticos a respeito disso, que envolve-ram diversas disciplinas durante e depois dos anos 1960, demonstram

Imaginários construídos

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Pessoas na SombraSérgio Jatobá, 2009

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a inquietação de entender como nos relacionamos com o território em que vivemos. Não tenho a intenção de me debruçar sobre episó-dios históricos neste estudo, mas é valido ressaltar que no âmbito da arquitetura e urbanismo algumas dessas discussões se iniciaram nas manifestações logo do início do declínio do discurso do movimen-to moderno. Arquitetos, urbanistas e outras pesquisadores de outras disciplinas passaram a se envolver em uma reflexão que ia além dos preceitos limitadores e regras do modernismo ditado pelos congressos internacionais de arquitetura e pela própria lógica econômica da épo-ca. Isso de alguma forma dava o passo inicial para entendimento das necessidades das cidades e suas realidades daquele momento.

O Team X13 se posicionou com suas insatisfações com os resultados dos Congrès Internationaux d’Architecture Moderne (CIAM), que aconteceu pela última vez em 1959, e foi o principal grupo que deu início às revisões críticas neste sentido. Seu posicionamento tomaria o lugar do antigo pensamento racionalista e funcionalista para propor algo novo. A nova arquitetura deveria ser modular, aberta à participa-ção e deveria estruturar práticas criativas. Questionava-se, portanto, essencialmente a ausência da dimensão humana nos espaços da cidade moderna e ensaiava-se a importância de abertura de possibilidades de intervenção coletiva nos processos de decisão sobre arquitetura e cida-de por seus habitantes, num entendimento sobre a responsabilidade social daqueles que a concebem para aqueles que a utilizam.

O holandês Aldo van Eyck, um dos integrantes do Team X, com seus projetos de playgrounds em Amsterdã – entre 1947 até 1978 – , ar-gumentou em nome de uma arquitetura posta à disposição da ativi-dade humana e que promovesse uma interação social. Desenhou com esse objetivo um glossário simples para definir cada parte presente nos

13 Entre o grupo de arquitetos do Team X estiveram Jaap Bakema, Georges Candilis, Aldo van Eyck, Giancarlo De Carlo, Alison e Peter Smithson e Shadrach Woods.

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playgrounds: uma caixa de areia circunscrita por uma borda de con-creto, blocos arredondados, uma estrutura de barras curvas, árvores e bancos. Ainda assim, a estandardização não pretendia repetir a mono-tonia dos blocos funcionalistas modernos. Pelo contrário, tratava-se de uma forma de ação tática na cidade existente como encontrada (as found) que tirava partido de terrenos que ofereciam a chance de uma função temporária.

Os playgrounds não eram apenas objetos a serem escalados, mas um lugar de encontros, para perceber o próprio cotidiano de forma nova, repropor a relação com a vizinhança, a partir de uma natureza intersti-cial comum. Seus espaços foram criados pela circunstância, apropria-ção e utilização temporárias, por instantes e situações, um conceito que tangencia a Teoria dos Momentos, de Henri Lefebvre, na qual a cidade é definida como uma estrutura aberta a diferentes temporalida-des que constantemente estabelecem novos códigos no espaço físico. Essa noção de cidade como estrutura aberta indica uma rede de terre-nos a serem reprogramados, mudando sua vocação no mesmo instante e adicionando significado com base no conceito de lugar14.

A produção crítica coletiva que se desdobrou a partir desse momento de revisão do movimento moderno foi muito intensa, e é algo que me chama atenção já que o objeto do trabalho é essa forma de produção coletiva que repensa a cidade e a recodifica. Ou seja, a discussão não é nada recente se enxergamos o grande número de manifestos, inter-venções e publicações com o tema da revisão das cidades e como nos apropriamos delas dos anos 1960-1970.

Se falarmos no âmbito das artes visuais, outros grupos nesta mesma época atuaram na interface entre espaço público e privado e tiveram a

14 Ver artigo de Marcos L. Rosa Revisitando os playgrounds de Aldo van Eyck, 1947 | 2011 (2013), que foi convidado para compor a exposição Playgrounds: Reinventar la Plaza, no Museu de Arte Reina Sofia, em Madrid entre 30/04 a 22/09/2014.

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Playgrounds em Amsterdam Aldo Van Eyck

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cidade como plataforma de suas experiências e manifestos. Esses gru-pos repensaram territorialidades, tanto urbanas quanto dos grandes espaços abertos naturais, entendendo a necessidade de uma interven-ção crítica e coletiva sobre aquilo que estava sendo imposto nos terri-tórios comuns. Alguns desses grupos – Situacionistas, Fluxus, Land Art, TA Z, Paisagistas contemporâneos – souberam traduzir essa in-quietação por meio de ações em situações e manifestos que influen-ciaram outros artistas e pensadores espalhados pelo mundo a partir daquele momento.

Os Situacionistas, em torno de Guy Debord, caminhavam pela cidade e construíam mapas psicogeográficos a partir de certos procedimentos preestabelecidos e das percepções sensoriais dos espaços. A tese cen-tral situacionista era a de que, por meio da construção de situações se chegaria à transformação revolucionária da vida cotidiana, o que se as-semelhava muito à tese defendida por Lefèbvre. Muito claras são suas convicções a respeito do urbanismo moderno, quando explicavam de que a própria sociedade deveria mudar a arquitetura e o urbanismo e não o inverso. Enquanto Le Corbusier antes discursava que a arquite-tura poderia evitar a revolução, eles, em outra época, queriam provocar a revolução, e pretendiam usar a arquitetura e o ambiente urbano por si mesmo para induzir à participação, para contribuir nessa revolução da vida cotidiana contra a alienação e a passividade da sociedade.

O grupo neodadaísta Fluxus por exemplo, também propôs experi-ências semelhantes, sendo a época dos happenings no espaço público em Nova York nos anos 1970: eles exploravam as ruas, as esquinas para suas apresentações e eventos. Os landartistas, por sua vez, tanto manipulavam a paisagem materialmente, quando tinham um envolvi-mento físico com a natureza, ou realizavam uma investigação do meio

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Fin de Copenhague, Guy Debord e Asger Jörn, 1959/ Transitional Elements, Bakema/ Mapa psicogeográfico, Guy Debord, 1960/ Clip Stamp and Fold (1960-1970)

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ambiente como ecossistema e realidade político-social. Com a deriva, esses grupos tornaram as perambulações sem objetivo, o movimento como percepção e produção do espaço, um método urbano.

Aprendeu-se intensamente com o movimento Situacionista e outros que caminhavam nesta mesma direção sobre a experiência da cidade e passou-se a entendê-la como produto desta experiência, como es-paço vivido que expressa o processo ativo de experimentar o espaço e produzi-lo simultaneamente. Em geral a prática artística no mundo ocidental, a partir deste momento, constituiu muitas respostas aos questionamentos a respeito do sentido das cidades – performances públicas e instalações efêmeras ou tipos de esculturas públicas mais duradouras, fossem elas site-specific, arte atrelada à comunidade, ou esculturas nômades que circularam por diversas localidades. A nave-gação aconteceu por múltiplas formas de conhecimento, que foram além da arquitetura e do urbanismo, e tentou-se de alguma forma ins-taurar esse olhar e introduzir a possiblidade de uma prática arquitetô-nica sem forma, estrutura pura ou utilidade.

Como pude ver, vários artistas trabalharam no espaço público de uma forma crítica ou com um questionamento teórico. O denominador comum entre esses artistas e suas ações urbanas seria o fato de que eles viam a cidade como campo de investigações e novas possibilidades sensitivas, e estes acabavam assim mostrando outras maneiras de se analisar e estudar o espaço urbano através de suas obras e experiências.

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Gordon Matta Clark, Splitting 1973 /Daniel Buren, 1969 / Barbara Kruger, 1980

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No Brasil, Hélio Oiticica, junto com Lygia Clark e Ligia Pape, pode ser considerado um dos mais inquietos dos seguidores de Flávio de Carvalho, que nos anos 1930 já mantinha uma relação entre arte e vida urbana que muito se aproximava do surrealismo parisiense com suas Experiências. O trabalho chamado Delirium Ambulatorium, por exemplo muito se aproxima dos textos dos Situacionistas do anos 1960. Essa relação com a rua e as coisas da rua é ressaltada em cada trabalho seu.

A partir de 1964, com a aproximação da favela da Mangueira no Rio de Janeiro, Oiticica passa a desenvolver os Parangolés – capas, tendas e estandartes, que vão incorporar literalmente as três influências da favela que acabava de descobrir: a influência da idéia do corpo e do samba, uma vez que os Parangolés eram para ser vestidos, usados e, de preferência, o participante devia dançar com eles; a influência da idéia de coletividade anônima, incorporada na comunidade da Mangueira, e a ideia de participação do espectador encontrou aí toda sua força.

Parangolé é a antiarte por excelência; inclusive pretendo esten-

der o sentido de “apropriação” às coisas do mundo com que

deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente

enfim – coisas que não seriam transportáveis mas para às quais

eu chamaria o público à participação –, seria isso um golpe fatal

ao conceito de museu, galeria de arte, etc. e ao próprio conceito

de “exposição”. Museu é o mundo, é a experiência cotidiana.

Em São Paulo, essas experiências ecoaram também e consolidaram al-gumas ações através de grupos de artistas no fim dos anos 1970. Em um contexto de retomada cívica de um espaço que havia sido restrito para a manifestação popular e da reativação dos congressos estudantis

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Parangolés, Helio Oiticica, Rio de Janeiro, 1973

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após o auge da ditadura militar, experiências coletivas denunciavam o afastamento do ambiente público da cidade e instauravam a ideia de ação urbana. Os coletivos 3nós3, formado por Judilson Jr. Mario Ra-miro e Rafael França (1979-1982) e Manga Rosa (1978-1982) forma-do entre outros por Nelson Brissac e Jorge Bassani, estavam presentes nesse ambiente que na época participava do que era chamado de arte marginal ou arte alternativa. Eles buscavam reabrir esse espaço antes oculto por meio de uma expressão não linear, não lógica e não verbal para um movimento que estava eclodindo na própria sociedade. Exis-tia de certa forma uma ideia de urbanismo, fugindo da arte de estátuas e esculturas, para chegar quase numa arte de guerrilha, preocupado em agir sobre o espaço da cidade. e proporcionar os encontros neces-sários para revolução.

Os encaminhamentos das ações dos grupos não tinham pauta forma-lizada com teorias e as intervenções não eram necessariamente obje-tivas, eram apenas estruturadas numa reflexão contra a operação limi-tante e moderna da cidade na época. Buscava-se uma reinterpretação do papel da ação do arquiteto quando ele fugia do trabalho sobre um lote circunscrito e passava a trabalhar na rua – espaço não circunscrito – ultrapassando os códigos de funcionamento e reconhecimento do espaço existente na cidade. Um dos projetos, o Arte ao ar Livre se con-cretizou através da Mostra Permanente de Arte (em) Out Door em São Paulo, realizada a partir de agosto de 1981. Um painel afixado na Rua da Consolação, em frente à Praça Roosevelt, veiculando trabalhos de artistas convidados pelo grupo Manga Rosa se consolidava como arte independente no lugar da propaganda. O tema da Mostra logicamen-te era a atuação no espaço público e a abertura da possibilidade de ocupar e encontrar-se uns aos outros tendo ele como palco principal.

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Mostra Permanente de Arte (em) Outdoor Torquato Neto, MangaRosaSão Paulo, 1981

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Infelizmente, com o tempo, esses grupos de São Paulo, passaram a par-ticipar do circuito de arte formal, e de alguma forma perdeu-se seu sentido inicial de questionamento das realidades urbanas.

Em uma primeira conclusão histórica, acredito que a não intencionali-dade dos flaneurs que vagavam por Paris na virada do século e depois, na sua metade, as críticas ao urbanismo moderno através dos mani-festos artísticos e intervenções urbanísticas anti-Carta de Atenas que buscavam uma leitura mais profunda da relação cidade e seus habitan-tes, assim como as experiências artísticas trazidas para o Brasil neste mesmo contexto, reaparecem meio século mais tarde, com a pauta de reinvenção dos lugares cidade. Vários são os veios atrelados a essas dis-cusões passadas por trás do atual interesse em caminhar pela cidade, re-conhecer seus espaços e apropriar-se deles. Essas experiências coletivas se atualizam hoje na ação de coletivos que tentam pensar os espaços de ação pública criticamente e entendem que o fazem novamente como um manifesto frente ao esvaziamento do sentido público das cidades.

Certamente, em ambos os tempos – entre1960-1970 e hoje – o cená-rio que propicia esses questionamentos e que resultam em interven-ções e experiências críticas, situativas e resitentes, é o próprio urbano com suas mudanças socias, econômicas e territorias que instigam uma reflexão para a revisão do que é ser cidade.

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Fungindo um pouco dos fatos e inflexões importantes acontecidas so-bre a cidade ao longo da história, procurei entender sociologicamente quais são os significados dessas ações urbanas sobre nós mesmos, ha-bitantes do território urbano. A pesquisa a respeito de arte e interven-ções na cidade felizmente me aproximou do esclarecido trabalho de Paola Jacques Berengstein, sobre corpografias, errâncias e microresis-tências urbanas. A arquiteta urbanista e professora traça um caminho teórico a respeito da relação de nossos corpos com o território em que vivemos, como uma maneira de entender de que forma nos relacio-namos involuntariamente com ele. Gostaria aqui de me debruçar um pouco sobre esse trabalho juntando também outras referências que seguem o mesmo caminho e que se justificam pelo estudo das práticas urbanas alternativas.

Paola Jacques retoma um discurso muito próximo do qual nos quis traduzir o manifesto situacionista. Para a autora, a cidade é lida pelo corpo e de forma interativa o corpo interpreta-a e sintetiza essa inte-ração se autodefinindo, num processo involuntário. Sua tese defende que a experiência urbana, em suas diversas escalas de lugar e de tempo, fica inscrita no próprio corpo daquele que a experimenta.

A reflexão urbanística que se configura nesta tese, que Jacques chama de corpografia urbana, pode ser justificada quando discutimos as ma-neiras de nos apropriarmos do território da cidade. Esse apropriar-se - verbo que tanto usamos para designar o uso efetivo de um lugar - se traduz como a experiência corporal sobre ele. Ao dizer-lo, sugerimos maneiras e desejos de apreender o território por meio de experiências mais interessantes, mais comuns e mais convidativas de interação com outros corpos no espaço urbano cotidiano.

corpo e cidade

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Biblio CiudadCidade do Mexico, 2014

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Para que esses desejos se efetivem, concordo com a autora de que é necessária uma compreensão inicial acerca das pré-existências corpo-rais resultantes da experiência no espaço existente. Ou seja, entender como lemos a cidade hoje e como isso é gravado em nossos corpos, subjetivamente. Um convidativo estímulo que ela propõe para esse entendimento, é a prática de errâncias.

A experiência urbana mobilizadora de percepções corporais

mais complexas poderia ser estimulada por uma prática de er-

râncias pela cidade que, por sua vez, resultaria em corpografias

urbanas equivalentemente mais complexas15.

Neste sentido, compreendo que as errâncias mais comuns são aque-las praticadas diariamente, na experiência cotidiana de cidade. Essas errâncias se increvem no corpo, que responde e transforma a cidade subejtivamente.

Para explicar facilmente, me apoio no que fala Michel de Certeau, em seu livro A invenção do cotidiano. Aqueles que experimentam a cida-de, que a vivenciam embaixo como ele diz, se referindo ao contrário da visão do alto, dos urbanistas, são o que ele chama de praticantes ordinários das cidades. De Certeau mostra que há um conhecimento de espaço próprio desses praticantes. Ou seja, uma corpografia própria que ele relaciona com um saber subjetivo, lúdico, amoroso. Jacques re-toma essa ideia, valorizando essa experiência ordinária e entendendo-a como importante para legitimar aquilo que está imposto no desenho da cidade, aquilo que foi projetado, nas suas reinvenções subjetivas.

15 JACQUES, Corpografias urbanas, 2008

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São as apropriações e improvisações dos espaços que legiti-

mam ou não aquilo que foi projetado, ou seja, são essas ex-

periências do espaço pelos habitantes, passantes ou errantes

que reinventam esses espaços no seu cotidiano. Para os erran-

tes – praticantes voluntários de errâncias – são sobretudo as

vivências e ações que contam, as apropriações feitas a poste-

riori, com seus desvios e atalhos, e estas não precisam neces-

sariamente ser vistas (como ocorre com a imagem ou cenário

espetacular), mas sim experimentadas, com os outros sentidos

corporais. Os praticantes da cidade, como os errantes, realmen-

te experimentam os espaços quando os percorrem e, assim, lhe

dão “corpo” pela simples ação de percorrê-los15.

Por outro lado, de maneira mais ativa, a autora fala da possibilidade de ação política crítica e uma resistência pensada – e não uma errân-cia – para ressaltar a coexistência de diferenças no espaço público. Ela chama essa possiblilidade de micropoderes sensíveis. É aí que vem o link para as práticas urbanas alternativas na cidade, das quais falo neste trabalho. Se é possível ler e agir sobre a cidade ordinariamente, também é possível construir experiências sobre ela voluntariamente e que transformem o pré-existente. São ações táticas, que tem o objetivo de ocupar o espaço comum da cidade para construir e propor outras experiências sensíveis. Essas ações, podem ser realizadas em diversos lugares. A escolha é situativa pois responde à uma determinada situ-ação ambiental ou política de um território. Sobre o espaço urbano, podem ser, por exemplo, lugares vagos ou espaços subutilizados, onde há ausência do comum e do sentido coletivo da cidade.

The event of a thread Instalação no Park Avenue Armory, NYAnn Hamilton, 2012

15 JACQUES, Corpografias urbanas, 2008

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A socióloga Joana Zatz, participante de um coletivo atuante da cidade de São Paulo, do qual falarei oportunadamente, colabora para esse en-tendimento da ação do corpo sobre a cidade, com o seguinte,

Quando o corpo se propõe, seja pela presença ou pela ausên-

cia, a fazer uma interveção no espaço urbano, aparece alim na

produção tática da imagem, a escala humana tentando inventar

uma outra forma de experenciar o espaço. Essa tentativa de

invenção de espaço, que é em si um espaço de anúncio, talvez

seja exatamente o que dá, a imagem produzida, a sua potência

de circulação e reverberação em outros corpos e outras ações,

portanto a sua potência estético política16.

As ações, se efetivadas pela proposição dos micropoderes sensíveis, e os lugares, se apropriados por esses corpos, transformam o espaço urbano fisicamente e sensorialmente, no sentido de abertura de possbilidade de novas experiências. Ao mesmo tempo, a imagem produzida tatica-mente pela ação possibilita a difusão da experiência sensível para ou-tros corpos, evidenciando uma potência política de transformação da cidade. É dessa maneira a ação dos corpos sobre o território pode fun-cionar como prática crítica que permite captar algo além do que aqui-lo que se vê representado na cidade existente. Coloca-se a intervenção urbana como promotora da explicitação dos conflitos escondidos, que podem ser de diversas escalas – do habitar, do encontro, do circular, do brincar –, e como potencializadora das tensões desses espaços. 16 MUSSI, 2012, p.192

Zona de Interferência: a cerca do espaço. Corpocidade, Salvador, 2008

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A cidade pode ser julgada e entendida apenas

em relação àquilo que eu, você, nós e (para

que não nos esqueçamos) “eles” desejamos.

Se a cidade não se encontra alinhada a esses

direitos, então ela precisa ser mudada. O

direito à cidade “não pode ser concebido

como um simples direito de visita ou retorno

às cidades tradicionais”. Ao contrário, “ele

pode apenas ser formulado como um

renovado e transformado direito à vida

urbana”. A liberdade da cidade é, portanto,

muito mais que um direito de acesso àquilo

que já existe: é o direito de mudar a cidade de

acordo com o desejo de nossos corações.

(David Harvey)

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Banquete, Belo HorizonteColetivo Ambulantes, 2006 Banho na Esplanada dos MinistériosSergio Jatobá, 2008

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Tempo

Aqui apresento o tempo no qual se insere a discussão deste trabalho. Sinto que foi uma leitura do momento das cidades as quais olhei, li ou vivi nos últimos cinco anos e que me colocaram mais perto da euforia da cidade contemporânea. Euforia porque elas parecem agir em busca de um grito próprio, em busca do momento de respirar diante daquilo que lhe foi imposto e moldado durante tanto tempo. Uma euforia que tenta reativar as possibilidades de atuação do corpo sobre a cidade –que tanto defende Jacques – e nos sugere a importância de batalhas decisivas que a molde novamente sob uma perpectiva do bem comum e se distancie da dimensão privada que hoje lhe é atribuída.

Sem pretensões de indentificar correlações exatas e quase como que em um flaneur por entre elas, olhei para São Paulo, Barcelona, Belo Horizonte, Ciudad de México, Madrid, Nova York, Recife e deixei que esse olhar me conduzisse para a reflexão que aqui proponho como essencial: a revisão do apoderamento dos espaços públicos das cidades. É inegável que, se personificássemos esses espaços, veríamos que eles estão em um momento de transição e de respocionamento frente as pessoas que deles se utilizam. Vejo uma crescente retomada da discus-são com foco na importância do interesse comum sobre os espaços das cidades. Os eventos autônomos, as intervenções urbanas, a multidão que neles aparece são retratos dessa reflexão, e desse tempo-momento, que na maioria das vezes se consolidam em práticas que constroem e reconstroem os espaços da cidade.

Talvez, o que impulsione esses fenômenos seja a abertura de novas possibilidades de disputas e atuação frente a situação social, política e econômica dessas cidades tomadas em foco. Seria mesmo interes-sante entender o contexto econômico local e global, para dar respaldo

A euforia da cidade

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correto ao tempo dessas ações. Mas o objetivo aqui não é esse. O que apresento é este panorama inicial, um extrato frente a dimensão co-letiva e territorial global desses trabalhos e que resulta na compilação de alguns dos exemplos da produçao simbólica que vem contextuali-zando e tomando forma no âmbito das cidades. São objetos, experiên-cias, publicações e ações táticas e culturais que chamam a atenção para relevância das práticas que discutem o território simbólico da cidade, criando uma multiplicidade de formas, representações, soluções cria-tivas e performáticas e que, evidenciando situações e espaços, constro-em outros lugares.

Ainda aqui, pretendo dar corpo conceitual para as questões que per-meiam o tempo – euforia – dos lugares, coletivos e cidades expostos, entendendo como acontecem e são expressas essas práticas como re-sistências e reflexões, no contexto específico e complexo dos espaços públicos da cidade. Nesta perspectiva evidencio em que sentido es-tas experiências em suas potências, podem ser traduzidas em novas construções dos espaços da cidade e de que forma esse grupos de ação colaborativa se consolidam como novos atores na construção da cida-de: como se desenvolvem essas estruturas de trabalho horizontais, as interações possíveis em rede e surgimento de plataformas de trabalho, temas que são determinantes para criação desse cenário.

Penso na contextualizaçao dessas ações e este pensamento me conduz às referências que vivenciei no período de intercâmbio em Barcelo-na17. Na Espanha, o que impulsiona uma rede de colaboração com esse âmbito de construir outros lugares possíveis na cidade é justamente o cenário econômico local. O exemplo da crise econômica permitiu que arquitetos, técnicos, cenógrafos, urbanistas, discutam a cidade sem que estejam formalmente trabalhando sobre elas.

17 Intercâmbio acadêmico realizado na ETSAB/UPC, Barcelona, entre 2011 e 2012

Isla CiudadNoche Blanca, MadridEXYZT, 2010

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Os coletivos que hoje atuam no país se expandiram com a mesma for-ça com que a crise econômica foi minando o exercício convencional da profissão dos arquitetos, contaminando as aspirações de uma gera-ção que encontra no plural, o veículo para transformar a sociedade. A incerteza e a falta de referências no panorama atual parecem ter criado uma mudança desde a última década que poderia constituir-se como um novo paradigma na forma de entender a arquitetura, supondo uma abertura até outras discplinas que vão além da construção e com-posição arquitetônica. Organizados horizontalmente, os coletivos formam um universo espontâneo que congrega aspirações e sensibili-dades muito diferentes, mas que mantém sempre uma pauta comum, o território público da cidade.

Essa perspectiva foi evidenciada no recente número publicado da re-vista Arquitectura Viva – Colectivos Españoles. Novas formas de traba-jo: redes e plataformas, (n.145, 2012). Embora situe o olhar aos cole-tivos essencialmente formados por arquitetos, sua discusão corrobora efetivamente para a difusão de uma nova maneira de se trabalhar no campo do desenho e projeto de cidade. O editorial faz uma seleção de 48 grupos que trabalham distribuidos por todo território do país. Entre eles, podemos citar a relevância do trabalho dos coletivos Todo por la Praxis, Vivero de Iniciativas Ciudadanas, Arquiteturas Colecti-vas, Basurama, Recetas Urbanas, Paisaje Transversal.

A atuação desses grupos nos aproxima da discussão da eficácia do papel do arquiteto na construção real das cidades que havia se deslocado do centro do debate arquitetônico há muito tempo. É um protagonismo inegável para a realidade espanhola, principalmente nas grandes cida-des como Barcelona, Madrid, Sevilla e Valencia. Eles são vistos como uma alternativa ao trabalho da arquitetura e, na verdade, representam

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Plaza, Valencia, 2010 / Le Tunnel, Sain Jean en Royan, 2011 /Alameda de Hercules, Sevilla, 2012 /Pintemos México, Morelia, 2014

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muitas alternativas que podem coexistir entre si. E é isso mesmo que defendem, uma extensão de seu significado para outras disciplinas.

Na sua produção, há interesse pela teoria e pesquisa sobre a construção do urbano comum, assim como há preocupação com a difusão desse conhecimento coletivo por meio da criação de manuais e ferramentas que possibilitem modos de intervir sobre a cidade. Embora pareça ha-ver um distaciamento político, na perspectiva de transformar tempo-rariamente a atmosfera de um território, dão-lhe um uso alternativo, aumentando sua capacidade de criação um espaço comum, potenciali-zando a discussão crítica frente a determinada situação.

El colectivo se contrapone diluyendo la autoría y, por tanto, las

lógicas mercantiles. La identidad múltiple es un estrategia de

combate frente al concepto decimonónico de la autoría pero, a

su vez, permite la apropiación por parte de cualquier individuo.

El individuo se suma a la colectividad como sujeto de una masa

crítica sin prescindir de su autonomía.18

Esse trecho foi retirado de um blog e traduz a inquietação política e o sentido do trabalho de suas ações, tendo como ponto de importância máxima o fato de serem plurais em sua genesis. A reflexão sobre a pró-pria estrutura interna parece permanecer nas dinâmicas de trabalho. O que é ressaltado para esse plural, é que o trabalho em grupo trans-forma capacidades pessoais em uma entidade de ordem superior que é capaz de trabalhar mais e melhor, mas que em sua essência reconhece e respeita a necessidade de cada um dos atores. Por isso a organização interna é necessariamente transversal, pois vai além da soma de forças e alcança a multiplicação das mesmas. E essa hibridização de capacida-des individuais, com a mescla de áreas e profissões, parece ser de vital

18 ¿Matar al movimiento?Artigo escrito pelo coletivo espanhol Todo por la praxis, em função da publicação da AV 145, 2012.

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importância para consolidação de modelos emergentes de trabalho que estão surgindo.

O fenômeno dos coletivos que se pode observar na Espanha tem ain-da uma potência evolutiva que está apoiada no trabalho em rede, que passa pela conexão e comunicação digital, e está consolidada essencial-mente por uma construção de redes físicas de contato, de esforços de corpos trabalhando em conjundo e troca de criatividades intelectuais. Ou seja, a rede está construída não por fios que se entrelaçam, mas sim por nós que garantem sua estabilidade. E esses nós, no caso, são as pes-soas, que atuam, se envolvem, trocam, difundem e participam. Podem ser traduzidos como um ecosistema de pessoas que se reconhecem e trocam informações em função de algum tema ou ação, potenciali-zando inteligências coletivas. Se observa, no entanto, a necessidade de estabelecer espaços físicos para que esses encontros onde a rede está es-tabelecida de fato aconteçam. E é aí que muitas vezes entram as inter-venções sobre o território da cidade. Há uma multiplicação de espaços temporais que são necessariamente posicionados em espaços públicos existentes ou outros antes não utilizados que servem de plataforma física para essas rede, onde acontece o encontro, a troca e a elaboração de novas exeperiências urbanas.

Hoje, é possível encontrar muitos termos que tentam traduzir um pouco da euforia das cidades e a vontade de ocupação coletiva de seus espaços. Organizações, grupos de pesquisa, e coletivos – ou mesmo amadores, no sentido de amantes das cidades – se propõem a pesqui-sar e a discutir sobre o espaço urbano e sua relação com as pessoas na cidade contemporânea. E surgem termos que renovam palavras an-tigas e dão potência a seus significados: Shareable City, Urban Com-mons, Open Source Urbanism, P2P (peer-to-peer) Urbanism, Microur-

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Red de conexiones entre colectivosRevista Arquitetura Viva 145, 2012

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Red de conexiones entre colectivosRevista Arquitetura Viva 145, 2012

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banism, Placemaking. Não tentarei explicá-los aqui, mas gosto de crer que a existência desses neologismos traz um panorama interessante das possiblidades alternativas que estão na pauta da discussão sobre in-tervenção nos espaços da cidade pelas pessoas. Ou seja, tentando fugir da espetacularização que se produz com tais termos e publicações, o que gostaria de justificar é que essa tentativa de reinventar a produção do espaço da cidade por arquitetos ou por habitantes que atuam em diferentes esferas, não é apenas uma questão de aderir a modismos. É antes dar licença ao saudável surgimento de uma cultura da horizon-talidade e da desierarquização das ações sobre aquilo que é público.

Retomanda a análise inicial, aponto referências de ações e processos de criação e pesquisa nas cidades brasileiras, similares aos vistos em outros países e nos quais há reinterpretação de espaços públicos.

Em Salvador, por exemplo, muitos são os grupos de ação urbana que transformam o espaço coletivo e chamam a atenção para o sensível de cada lugar da cidade. Coordenado por Paola Jacques desde 2008, o projeto Corpocidade: debates em estética urbana, compreende o pa-pel da arte como criadora de novas formas de partilha da experiência urbana, como estratégia de redesenho das suas condições participa-tivas no processo de formulação da vida pública e comum na cida-de. Grupos que englobam diferentes disciplinas derivam do projeto e atuam sobre a cidade, agindo sobre o espaços inutilizados, captando pré-existências, criando novos lugares em comunidades, catalogando intervenções e praticando o comum de forma tática.

Em Belo Horizonte, essas práticas se intensificaram nos últimos anos como uma resposta para as arbitrariedades do Estado - como a lei de limitação de uso da Praça da Estação, que proibia a realização de even-

Páginas web de coletivos e plataformas de discussão urbana.Acessados em 2014.

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tos espontâneos e gratuitos. Estas práticas foram se fortalecendo e ga-nharam adeptos de diversas áreas, o que fortaleceu a autonomia dos atores e a criação de redes. Atualmente a cidade passa por uma eferves-cência cultural e, a cada dia, novos projetos comuns são construídos.

A vontade de atuação no espaço público da cidade, no entanto, já vi-nha se consolidando um pouco tempo antes. Em 2005, Louise Ganz em colaboração com Breno Silva e como uma ação coletiva de artistas e arquitetos, criou uma plataforma de projetos para lugares desocupa-dos da cidade. Chamada Lotes Vagos: ação coletiva de ocupação urbana experimental, a iniciativa visava transformar os lotes privados da ci-dade em espaços públicos de uso coletivo, durante um determinado período. Os lotes eram emprestados pelos seus proprietários e usados por vizinhos, moradores e pedestres até que fossem solicitados nova-mente. A ação teve como objetivo realçar uma rede de espaços vazios que se configuravam como potenciais para uso e invenção coletiva, problematizando justamente a ausência de espaços comuns na cidade, evidenciando o modo como nos relacionamos uns com os outros, o ócio e a estética. Ao mesmo tempo em que propunham a ocupação, não tinham intenção de eliminar esse caráter de abandono, de me-mória vegetal, topográfica e arqueológica do lugar. A ideia era que permanecesse um certo caráter de espaço vago mesmo, para que não virassem um empreendimento.

Em 2008, a iniciativa foi expandida para a cidade de Fortaleza onde outro grupo tomou a frente das apropriações de lotes vazios da ci-dade. Um desdobramento mais recente dessas ações deu origem ao a.e.t. [ativador de espacialidades temporárias] que funciona como uma plataforma colaborativa e de negociação entre pessoas que desejam emprestar temporariamente espaços diversos, pessoas que desejam

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propor algo nesses espaços e pessoas dispostas a colaborar para que tais proposições aconteçam. Por meio de um cadastramento online, é possível participar da ação que visa facilitar intercâmbios para rea-lização de ocupações urbanas experimentais entre diversas cidades e fomentar outros imaginários urbanos.

O grupo Thislandyourland, que atua no Rio de Janeiro, também com-partilha da mesma ideia e desenvolve trabalhos em diversas mídias que relacionam arte, natureza e cidade. Em seus projetos são trabalhadas questões em torno dos usos e do acesso à terra e realizam-se imagens que possibilitam pensar outros modos de vida coletiva.

Outros projetos criados nas cidades brasileiras são os mapas colabo-rativos que apontam problemas situacionais de lugares da cidade ou que indicam ações coletivas e apropriações urbanas. As plataformas para criação dos mesmo estão cada vez mais acessíveis. Com ferra-mentas como Meipi, Mapme ou GoogleMaps, qualquer pessoa pode acrescentar informações, fotos ou videos para criar mapas públicos alimentáveis que sirvam para determinadas situações de uso comum. Muitos destes mapas estão baseados em cartografias de propriedade de Google, mas há uma infinidade de pessoas trabalhando hoje para desenvolver cartografias opensource, de propriedade coletiva.

No Brasil, as ocupações de moradia com toda sua força subjetiva e po-lítica, ocupações artísticas, praças construídas coletivamente, hortas urbanas, picinics públicos, grupos de cicloativismo, acontecem como ações que tem como denominador comum a criação de lugares co-muns possíveis para a cidade. Seus atores, em suas diferenças pessoais e profissionais, são responsáveis por construir essas relações invisíveis que fazem de espaços e situações, lugares mais vivos e mais humanos.

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Intervenções por Louise Ganz e Breno SilvaLotes Vagos, 2005Praia Atântico Clube, 2010Área de Construir, 2012

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Frames do vídeo de apresentação do Publique sua Cidade.Basurama, São Paulo, 2011

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O cenário final que criam para o desenvolvimento dessas realidades emergentes é a transformação da experiência do espaço público, com objetos ou novas imagens do cotidiano que permitem criar impacto social e sugerem reflexões para construção de discursos alternativos.

A prática artística se dá como uma tentativa de fazer emergir

como ao menos uma “imagem da experiência”, outros projetos

de sociedade, sendo a cidade o domínio no qual as múltiplas

escalas em jogo na disputa por esse projeto se evidenciam, se

encontram , se sobrepõe, se atualizam, se confrontam. [...] Es-

sas imagens, que surgem a partir de determinadas situações e

problemáticas locais tem, por sua vez, um potencial de ilumi-

nar questões em outros contextos situados, na medida em que

tanto nomeiam – criando formas de tornar visíveis e legíveis

– acontencimentos estratégicos na produção do espaço social

contemporâneo, quanto ampliam a visibilidade e legibilidade

deles, transformando-os em imagens que circulam e, assim,

inserindo-os em um território mais amplo.19

Embora situe essas práticas urbanas sob ponto de vista artístico, Joana Zatz aponta que, por meio das práticas coletivas, cria-se um tipo espe-cífico de território estético simbólico, no qual as imagens surgem da colaboração e mostram um uso alternativo, crítico, subversivo do es-paço urbano. São esses imaginários emergentes, que se posicionam em determinado lugar, os quais referencio aqui como maneira de forçar a reflexão sobre como a cidade está sendo construída. 19 MUSSI, 2012 p.25

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Neste contexto, cabe ressaltar a exposição Actions, de curadoria do Ca-nadian Centre of Architecture em Montreál, que no Brasil pôde ser vista no Centro Cultural São Paulo, em outubro de 2013. Ações: O Que Você Pode Fazer com a Cidade, através da reunião de ações coleti-vas que reiventam a vida cotidiana e reocupam o espaço urbano dando a ele novos usos, ressaltou a ideia de que não podemos mais nos pautar somente nas ferramentas do planejamento moderno para elaborar o desenho e a gestão do nosso espaço urbano.

Nós focamos em caminhar, brincar, reciclar e jardinar. Cami-

nhar significa restabelecer relações sociais. Jardinar, enquanto

uma nova forma produtiva, significa zelar pelo solo urbano. Re-

ciclar significa pensar a respeito do desperdício na nossa socie-

dade. Redefinir tais ações nos confere um trampolim que nos

projeta a imaginar nossas cidades pautadas por diretrizes dife-

rentes. Brincar significa tomar posse, de forma criativa, da cida-

de física e social. O objetivo é, através dessas ações, encontrar

ferramentas para introduzir novas prioridades na sociedade.20

A exposição reuniu ações, agrupadas por tipos de ferramentas ou meios, expostas em cartazes manuseáveis e tinha como objetivo ins-pirar o visitante pelas soluções criativas e positivas nas cidades con-temporâneas mundo afora. Através dela, foi possível mostrar novos significados de espaços urbanos feitos com ferramentas que não vie-ram com instruções de uso, mas que eram frutos de necessidades e motivação de todos aqueles que as reiventam e as reaplicam. A crença da curadoria era no potencial das pessoas, daquelas que trabalham mi-nando a sabedoria convencional com novos imaginários possíveis para as questões da cidade, sem necessariamente confrontá-las.

20 Actions, teve sua primeira edição no Canadian Centre for Architecture, Montréal, entre nov/2008 a abr/2009, em seguida no Graham Foun-dation for Advanced Studies in the Fine Arts, Chicago, entre out/2009 a mar/2010. No Brasil, veio para a X Bienal de Arquitetura de São Paulo, no CCSP, entre out/2013 e dez/2013.

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Plataforma online cca-actions.org /Exposição Actions no CCA, 2012e no CCSP, 2013

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Para essa euforia, também caberia uma discussão institucional – em termos de Estado – mas também instituições invisíveis, linguística, códigos, discursos, etc., que de alguma forma está se relativizando no cenário urbano contemporâneo. A noção de soberania dos Estados, normas e leis, parece estar em crise profunda e muitos teóricos discu-tem a a possibilidade de instauração de um estado de exceção perma-nente até desaparecimento por completo.

Essa discussão me instiga bastante e pude encontrar na leitura de au-tores contemporâneos a construção de teorias relacionadas às formas atuais do capitalismo e a resistência à ele. Michael Hardt e Antonio Negri definem uma nova forma de fazer política a partir da noção de multidão e do viver comum.

A globalização, contudo, também é criação de novos circuitos

de cooperação e colaboração que se alargam para nações e con-

tinentes, facultando uma quantidade infinita de encontros. [...] o

que ela proporciona é a possibilidade de que, mesmo nos man-

tendo difrentes, descubramos os pontos comuns que permitam

que nos comuniquemos uns com os outros para que possamos

agir conjuntamente. Também a multidão pode ser encarada

como uma rede: uma rede aberta em expansão na qual todas

as diferenças podem ser expressas livres e igualitariamente,

uma rede que proporciona os meios da convergência para que

possamo trabalhar e viver em comum. [...] Na medida em que

a multidão não é uma identidade (como povo) nem é uniforme

(como as massas), suas diferenças internas devem descobrir o

comum que lhe permite comunicar e agir em conjunto.21 21 HARDT, NERI, 2006, p. 9-14

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Seminário Vivero de Inciativas ciudadanas, La Casa encendida, Madrid, 2014 / Ação Cuadra Urbanismo, Michoacán, México, 2014

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Não Vai ter CopaAto no Largo da BatataMelina Kuroiva, 2014

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Esse entendimento de uma nova forma de fazer política, logicamente exige uma leitura mais próxima e profunda dos modos e relações so-ciais e econômicas atuais. De qualquer maneira, esse posicionamento está sendo colocado em discussão e me chamou a atenção, a partir do momento que as redes de ação urbana participam e atuam em favor desse interesse pelo comum. Ainda que com suas diferenças e parti-cularidades, eles utilizam essa inteligência coletiva para constituir aos poucos a política da multidão, evidenciada pelos autores.

Nessas referências e exemplos que apontei são visíveis as muitas lin-guagens que se somam para dar forma a essas celebrações do urbano. Eventos, acontecimentos, festas, publicações, diálogo, discursos são plataformas midiáticas promotoras da apropriação do espaço público. Essa multiplicidade de linguagens em colaboração com um repertó-rios próximos gera uma vitalidade do comum e produz uma comunida-de de sentimentos em relação à cidade, na medida que instituem novos lugares, situações e acontecimentos inesperados e subvertem o que estava formalizado. Pode-se compreender que é essa dimensão festi-va e múltipla dos eventos que tem a cidade como suporte – na escala material dos espaços livres e simbólica dos lugares de encontro – que potencializa a construção colaborativa dos espaços públicos.

E por que trazer essas referências de outros territórios, que não de São Paulo? Acredito no potencial de deslocamento dos símbolos e ima-gens produzidos a partir das problemáticas locais, possibilitados prin-cipalmente pela existência das redes e das plataformas de comunicação virtual, presentes nas diversas realidades do mundo contemporâneo. Ao mesmo tempo, penso que o aspecto que aproxima essas práticas é o enfrentamento da cidade que mobilizam um certo lugar comum.

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São Paulo são 12 milhões de cidades,

12 milhões de mapas sentimentais

recortados pelas pequenas histórias de

vida de seus habitantes. Cada homem

comum tem a cidade que seus passos

percorreram e que a sua imaginação

inventou.

(Maria Rita Kehl)

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Oásis MadalenaAngela Leon, 2012

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A escolha da grande metrópole para análise das práticas urbanas alter-nativas foi definida a partir de uma inquietação pessoal e ao mesmo tempo da vontade de extrair um olhar mais otimista para a realida-de da cidade. São Paulo, como já explorado no início deste texto, em Reflexão, é um território com ausência de lugares coumuns. Em sua dimensão metropolitana, a espacialidade do público quase não é possí-vel, e a dimensão humana da troca e do encontro não está estabelecida. Olhando atualmente para as perspectivas alternativas sobre o espaço público que emergem do imaginário coletivo, a sensação é de retoma-da do sentido da convivência e da valorização da cidadania, o que a torna de certa forma inserida no contexto de euforia apresentado.

No entanto, para entender de que forma a criação de imaginários ur-banos e como novos projetos de apropriação do coletivo e do público tem transformado física e sensorialmente realidades existentes em São Paulo creio ser de fundamental importância fazer uma breve análise histórica e funcional desse fenômeno.

Os coletivos de ação urbana, que atuam hoje na cidade, se apoiam em sua maioria em referências de intervenção que, como explicado an-teriormente, perderam força no cenário da cidade após o fim da di-tadura militar. André Mesquita, sociólogo, fez levantamento dessas experimentações coletivas sobre a cidade, na sua pesquisa Insurgênias Poéticas: Arte ativista e Ação Coletiva (2009) e apontou a retomada do movimento. O pesquisador afirma que essas experimentações e ações coletivas ressurgem em meados nos anos 1990 mas que se desenvol-vem principalmente a partir da década seguinte, com um caráter ati-vista e horizontal, de construção de novos lugares urbanos e reocupa-ção dos espaços públicos existentes22.

LugarSão Paulo

22 MESQUITA, 2009, p. 263

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Em sua tese, o autor traz uma abordagem dessas experimentações pela sua proposição de intervenções diretas em situações políticas e nos fatos sociais do espaço urbano, na qual questiona quais as urgências que os coletivos de São Paulo tanto reivindicam. Ele relembra a pu- blicação do número 116 da revista Parachute, de 2004, coordenada naquela edição pela psicanalista Suely Rolnik, que reúne um conjunto de ensaios acerca da produção de artistas e coletivos paulistanos em projetos de intervenção urbana inseridos no contexto sociopolítico da cidade. Em sua perspectiva há clareza da necessidade de se discutir os significados do encontro e da construção colaborativa de uma vida pública.

Corroborando com essa perspectiva e ao mesmo tempo observando o cenário atual de São Paulo, entendo as atuações desses coletivos, como uma tentativa de ressignificação de espaços públicos-comuns, com mudanças na sua lógica de utilidade e re-imaginação das fronteiras existentes. Institucionalmente, a partir de 2012, é possível perceber mudanças no discurso dos responsáveis pela gestão da cidade. A atual organização das secretarias e departamentos, que discutem desenvol-vimento urbano e gestão da cidade, está juntando forças para tentar diagnosticar e dar início ao processo de melhoria efetiva de São Paulo em suas diversas problemáticas, diante de vontades de seus habitantes.

A efetivação do substitutivo do Plano Diretor, que estava parado nas gestões anteriores e cujo processo de redação pautou-se na relevân-cia do diálogo com a população, pretende apontar novas alternativas para crescimento e construção da cidade. Esse parece ser um dos pon-tos mais instigantes da mudança de posicionamento político da gestão da cidade: a tentativa de aproximação por meio da comunicação e da abertura de processos participativos claros, através de novos progra-

Viaduto do Chá Melina Kuroiva, 2013

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mas. Há previsão da participação popular nas decisões e conselhos de representantes de bairros e subprefeituras, que desenvolvem poderes locais, minipúblicos e direcionam maior atenção ao comum dos mi-croterritórios da cidade. Plataformas de comunicação online também foram criadas. O Gestão Urbana SP, por exemplo, é um canal online desenvolvido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e se configura como uma plataforma de informações sobre os projetos em andamento, documentos e leis, agenda de atividades e ferramentas de participação. Nele é possível dar sugestões aos projetos em anda-mento, avaliar e comentar propostas que podem auxiliar na definição de estratégias de intervenção nos espaços da cidade.

Essas posturas permitem afirmar que a gestão atual do município pa-rece estar mesmo atenta à importância do bem estar urbano pensando em uma São Paulo com uma dimensão humana mais bem calculada, com mais possibilidades de encontros. A agenda pública se evidencia neste sentido também. Nos últimos 10 anos, eventos já consolidados como a Virada Cultural, o Festival Baixo Centro retomam a vontade coletiva de ocupação da cidade e de partilha de seus espaços.

A Virada Cultural é organizada desde 2005, pela Secretaria Munici-pal da Cultura, com uma programação de 24 horas ininterruptas de eventos culturais, shows, peças de teatro, intervenções urbanas, expo-sições, espalhados pelo centro da cidade e pela rede CEU. O evento foi inspirado na Nuit Blanche de Paris, que agita anualmente a ca-pital francesa, com atrações que seguem madrugada adentro. A ideia de trocar arte e experiências urbanas pela madrugada se espalhou por mais de 120 cidades no mundo inteiro e tem, a cada ano, novas ade-sões. Em São Paulo, com contornos superlativos e participação de boa parte da população, a Virada se consolidou nas suas últimas edições

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Virada Cultural, Anhagabaú, 2013 / Viradinha Praça Roosevelt 2014

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Intervenções no Festival Baixo Centro, 2013

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como evento público mais importante da cidade, e é positivamente visto pela qualidade de sua programação e pela sua contribuição à ocu-pação do centro, tão esvaziado no seu cotidiano. É na Virada Cultural que se passeia, se percorre, se observa e se apropria das ruas do centro. É possível ver uma multidão muito diferente da multidão nos metrôs e trens nos horários de pico ou da multidão que consome na Rua 25 de Março às vésperas do Natal. Sua quase tradição é inspiradora para ação sobre a cidade o ano todo e para o entendimento de que São Paulo comporta, sim, um respiro para o encontro e a troca de experiências artísticas, urbanas e humanas. Evidentemente, por ser um evento que acontece uma vez ao ano, não dá conta de enfrentar nem de resolver as distâncias e conflitos que separam paulistanos, condenando-os no dia a dia a experiências tão restritas e limitadas de urbanidade.

O BaixoCentro é um festival de rua independente que se consolidou após uma vontade coletiva dos moradores e frequentadores dos bair-ros em torno do Minhocão de reativar os espaços daquela região da capital, compreendendo os bairros de Santa Cecília, Vila Buarque, Campos Elísios, Barra Funda e Luz. Organizado por uma rede aberta de produtores e interessados, o festival se configura hoje como uma forma de ocupação coletiva auto-gestionada que busca ocupar as ruas da região com práticas artísticas e ações táticas. Diferentemente da Vi-rada Cultural, ele é totalmente autofinaciado por meio de crowdfun-ding e outras formas independentes de arrecadação (leilão, rifa, doa-ções) e todo processo organizativo e produtivo é feito de forma aberta e livre. BaixoCentro se configura hoje como uma grande plataforma de encontro dos coletivos em São Paulo, pois as reuniões para sua re-alização alimentam e fortalecem os nós da rede de pessoas envolvidas nas práticas pela cidade.

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Paralelamente aos dois festivais, registro a relevância da última edi-ção da Bienal Internacional de Arquitetura que de forma particular me influenciou nos caminhos que escolhi percorrer para realização dos estudos deste trabalho. Na sua 10a edição, em 2013, o evento deu conta - enfim - de evidenciar a mais desejada pauta: a cidade. Depois de edições um pouco fracassadas no sentido de discussão da relação entre arquitetura e espaços urbanos (uma série de salões de exposição de projetos com apresentações em formato tradicional, de caráter pro-positivo inexistente, o que levou a perda de prestígio do evento), uma equipe jovem de colaboradores do IAB-SP abraçou a missão com a convicção de que os arquitetos não poderiam se ausentar da discussão pública do momento de revisão do papel das cidades.

Sob curadoria de Guilherme Wisnik e curadoria adjunta de Ana Luíza Nobre e Lígia Nobre, a bienal Cidade: Modos de Fazer, Modos de Usar se moldou com o objetivo de retomar o caminho da real participação da arquitetura na produção dos espaços da cidade, e trouxe à tona a discussão contemporânea sobre mobilidade, densidade, qualificação do espaço público e infraestrutura urbana, expondo e discutindo di-ferentes maneiras de usar/fazer cidade. Em um engajamento quase idealista do grupo que juntou capacidades e energias para produzí--la, mesmo com dificuldades na captação de recursos, a edição foi das melhores já realizadas, e pareceu ao menos em partes ter conseguido realizar os objetivos traçados. O instigante dessa vez, foi a proposta de apresentar essas discussões se apropriando efetivamente do terri-tório da cidade, tirando o evento de uma sede única, e localizando-o verdadeiramente na cidade. Ao espalhar os módulos expositivos em diferentes lugares, criou-se uma rede em que se envolveram muitas instituições e pessoas, o que potencializou as discussões pretendidas e promoveu experiências urbanas singulares. A inspiração pareceu ter

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23 Trecho da apresentação do módulo Modos de Colaborar. Monolito 17, p123, 2013

sido a dos festivais culturais, em que múltiplos acontecimentos são disparados simultaneamente, procurando engajar diversos níveis da vida urbana.

Um de seus módulos esteve inteiramente dedicado à compilação das práticas colaborativas sobre a cidade que apontam novos modos de agir – nos planos individual e coletivo – e propõe iniciativas concre-tas e tangíveis. A exposição, denominada Work in progress - Modos de colaborar, esteve montada no Sesc Pompeia e se colocou como uma plataforma que reuniu “iniciativas que reinventam presentes com dis-tintas ferramentas e estratégias, incluindo trabalhos em redes, tecnolo-gias, ativismo urbano, representações poéticas, publicações, edifícios, hor-tas comunitárias, design de serviços públicos, inserções urbanas e ações políticas.”23 A experiência pessoal desse módulo possibilitou alcançar conhecimento daquilo que estava sendo proposto por pequenos co-letivos em São Paulo e permitiu aproximações com coletivos latino--americanos, amplificando o campo de visão sobre o que se pretendia pesquisar. Pude encontrar diversos exemplos de ações em várias esca-las do ambiente urbano, desde ações para tapar buracos nas calçadas do projeto Curativos Urbanos; passando pela escala do objeto como o projeto Bicicletas Ambiente, que utilizou esse tipo de transporte como instrumento de pesquisa das microeconomias em regiões da cidade para a coleta de resíduos orgânicos e reciclagem para transfor-mação em adubo para hortas urbanas; até propostas de maior escala como do coletivo equatoriano Al Borde, que junto com o NACCO de São Paulo propôs a construção de uma ponte de pedestres na Cida-de Tiradentes para acesso ao Centro de Formação Cultural.

Nas oficinas propostas, a Amplifica Pompeia promovida pela Bienal em parceria com a Parsons School of Design de Nova York teve boa

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Oficina Amplifica Pompeia na X Bienal de Arquitetura, 2013 / Como Virar sua Cidade no CCSP / A Batata Precisa de Você, 2014

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adesão dos moradores do bairro. Propunha-se um mapeamento cola-borativo de ações que acontecem no bairro da Pompeia que transfor-mam pequenos lugares. Foi intessante entender como um microter-ritório da cidade – o bairro – concentra forças produtivas e criativas que permitem tranformar espaços em favor do bem estar urbano e convívio comum. Uma oficina no bairro do Bixiga foi proposta pe-los arquitetos do coletivo latinoamericano Supersudaca, junto com o coletivo Vazio S/A, de Belo Horizonte, e pretendia refletir sobre as possibilidades de transformação urbana da área a partir do projeto Copa da Cultura promovido pelo Teatro Oficina e Ze Celso.

Essas parcerias ocorridas nas oficinas, discussões e wokshops duran-te a Bienal, sob o enfoque da reflexão sobre a cidade, demostraram a atualidade do tema do fazer cidade por nós mesmos. Foi sintomático, ao menos sob ponto de vista pessoal, que outras intervenções tenham acontecido neste período. Expedições urbanas com aulas de história pelos bairros de São Paulo promovidas pelo coletivo SampaPé, ou des-cobertas da rede hidrográfica coberta pelas avenidas da cidade propos-ta pelo Rios e Ruas, saídas fotográficas ou percursos sensoriais por lu-gares da cidade, como a metafórica ação Penetrável Genet estruturada no cemitério do Araçá, resignificaram os percursos diários e paisagens comuns da cidade. Nesse ambiente de manifestação do imaginário ur-bano, propostas de ocupação de praças abandonadas, caminhadas que atravessam lugares incomuns, picnics coletivos no metrô, ocupação da Praça Roosevelt com rodas de discussão multitemáticas, colaboração para construção de hortas urbanas e a própria ocupação do Minhocão que teve até piscina olímpica instalada como um convite a um banho coletivo fizeram parte de eventos promovidos por pessoas interessadas em discutir novas maneiras de pensar o urbano contemporâneo.

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Paralelamente à programação da bienal, muitos seminários importan-tes com a temática do urbanismo e realidades urbanas contemporâne-as suscitaram o tema que aqui debato. O Ideas City (New Museum, Es-tados Unidos), o Nós Brasil! We Brasil! (Instituto Goethe, Alemanha), o Track Changes (The New Institute, Holanda), para citar alguns, fo-ram inspiradores para compreensão da re-decodificaçao das cidades a partir de intervenções colaborativas e para entender a importância destas na discussão dos espaços urbanos. O encontro Como Virar Sua Cidade, ocorrido no CCSP, reuniu grupos ativos de São Paulo para construção de manuais e ferramentas educativas e divulgação dessas ações que acontecem quase que silenciosamente nos vários bairros da cidade, viabilizando seu espraiamento e contaminação.

Os sintomas de necessidade de ação continuaram. O coletivo Acupun-tura Urbana tomou frente do Projeto Coruja, que propunha reativar as margens do córrego das Corujas na Vila Madalena por meio da cons-trução colaborativa de um parque linear. A intenção do projeto era de que a comunidade fizesse parte de todo o processo de reconstrução do parque, com oficinas de permacultura e construção de mobiliários com reaproveitamento de materiais existentes. E deu certo. Hoje o parque está lá, ativado pelas pessoas que o frequentam. Logicamente, as ações situadas nesse eixo da cidade tem maior facilidade de encon-trar seu lugar na mídia e, portanto, de conseguir financiamento para sua efetivação mais rapidamente. No entanto, não são menos impor-tantes sob ponto de vista de mudança de cultura urbana e estímulo à ocupação dos espaços da cidade.

Mais recentemente, pude encontrar a continuidade dessa discussão nas intervenções feitas por grupos que acreditam nessa ativação cola-borativa da cidade. Desde início de 2014, o Largo da Batata – que teve

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seu projeto urbanístico inaugurado no ano anterior, notadamente ca-racterizado pela ausência de dimensão humana de convívio ou convi-te à permanência – está sendo ocupado por pessoas interessadas em transformar a atmosfera árida do local e retomar a vida diversificada que um dia lhe foi inerente. Oficinas de montagem de bancos, ateliers de costura, de dança, de corte de cabelo e outras propostas de ativida-des coletivas fizeram parte de todas as sexta-feiras do ano de 2014. A iniciativa, batizada de A Batata Precisa de Você, fortaleceu a rede de pessoas que atuam na região e estabeleceu o Largo como plataforma local para encontros, ação e discussão urbana. Outros movimentos re-centes, dessa vez resistentes ao processo de especulação imobiliária e com vontades de lutar pela existência de espaços comuns e áreas verdes na cidade, podem ser citados, como os do Parque Minhocão e o do Parque Augusta. Por meio de reuniões e ações locais, esses movimen-tos fortalecem, com suas particularidades e vontades próprias, as mi-croresistências ao processo atual de privatização - no sentido de privar o usufruto livre - da cidade.

Fora do eixo cultural-midiático centro-oeste, podemos encontrar em São Paulo mais exemplos de coletivos, centros de cultura e grupos in-teressados em intervir na cidade com a mesma lógica, a partir de um imaginário novo. Na zona leste, por exemplo, o Ateliê Azu atua no bairro Vila Santa Inês, em Ermelino Matarazzo, transformando a pai-sagem local com oficinas e aplicação de azulejos pintados utilizando a técnica da cerâmica artesanal. Pensado para transformar a paisagem da periferia de modo colaboirativo, parece contribuir com o desenvol-vimento sociocultural local e com a reflexão sobre o espaço público urbano, como extensão e vizinhança. Suas ações valorizam ocupações do bairro, batizam os espaços comuns e nomeiam lugares púlicos res-

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significando-os por meio da arte. Outros tantos centros culturais na periferia reativam lugares e fortalecem a discussão da importância de se ocupar e de se criar uma noção de pertencimento ao urbano.

A partir deste panorama de ações e evidencias de um movimento alternativo que busca apropriar-se da cidade, entendo que uma rede de colaboração está se construindo aos poucos, assim como parecem tomar vida as plataformas para discussão desses trabalhos. E para fi-nalizar essa discussão, registro que sob ponto de vista institucional, parece haver uma crescente preocupação em dialogar com esses movi-mentos e ações. Um exemplo efetivo dessa preocupação foi a recente publicação do Manual para Construção de Parklets, no mês de maio de 2014. O Parklet é uma intervenção urbana temporária que ocupa vagas de carros e amplia as áreas de convívio das calçadas. Ter essa fer-ramenta disponível em meio as políticas públicas traz a possibilidade de influenciar a qualidade de vida das pessoas e de a identificação de potencialidades de mudança no modo como os espaços urbanos são ocupados e hierarquizados.

Além do canal colaborativo SampaCriativa, criado e disponibilizado na internet no ano passado e que reuniu propostas cidadãs de trans-formação social e espacial da cidade, no primeiro semestre de 2014 a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo produziu o documentário RUA!. Com direção de Tatá Amaral, o pro-jeto pretendia levantar a discussão sobre a dimensão do espaço públi-co na cidade de São Paulo, trazendo entrevistas e imagens de como ele é apropriado e potencializado por pessoas que dele se utilizam.

Buraco da MinhocaViaduto Radial Leste, 2014

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Equipamento extraordinárioBasurama, Virada Cultural, 2014

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PráticaColetivos

Para respaldar o entendimento do papel das ações urbanas emergentes na construção de imagens simbólicas e transformações espaciais no âmbito da cidade de São Paulo e como essas ações corroboram para a discussão da importância dos espaços públicos comuns, neste capítulo apresento alguns coletivos, selecionados para compor esse estudo de forma específica. Em suas experiências, estabelecem ações diretamen-te nos espaços públicos da cidade e trabalham necessariamente nessa microescala do urbano, transformando e resignificando esses espaços. Mas parece ser justamente a natureza espontânea e critica desses cole-tivos urbanos emergentes de São Paulo, capazes de extenuar questões inerentes à metrópole, que os caracterizam como transformadores de realidades sociais.

São eles: Basurama, Contrafilé e Muda_coletivo. A exposição desses coletivos se pauta em uma reflexão sobre o modo como suas interven-ções e ações são imaginadas para o espaço da cidade – diante do que existe, diante das fronteiras visíveis e invisíveis que a todo momento colidem com nossas urgências em transformar o lugar em que vive-mos. Os casos foram selecionados com base em critérios básicos que delimitaram o perfil dos coletivos para efeitos desse estudo. Primeira-mente pelo tempo de atuação em São Paulo, entre 2005-2014, e que coincide com o período em que conheço e vivo na cidade. Em seguida, pela proximidade pessoal com suas ações e pelo foco que dão na trans-formação dos espaços construídos. Todos eles, de alguma maneira, se tocam e conversam, pois entre si partilharam algumas experiências que propuseram na cidade.

O entendimento da estrutura de trabalho também foi importante para esta seleção, principalmente após as leituras de como se dá o tra-balho dos coletivos na Espanha. Busquei, a partir delas, analisar sua

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formação e modos de atuação. Entendi que seu discurso especulati-vo se apoia principalmente no próprio modo de trabalho: estruturas horizontais, interação direta entre os envolvidos e seu caráter local, constituindo uma imagem sintomática e alternativa das relações entre produção do espaço e sociedade. Identifiquei que em seu planejamen-to de ações tratam de proposições descoladas de uma base política em seu sentido convencional, mas que se utilizam a ferramenta da criativi-dade e inovação como ferramentas dar forma e conteúdo crítico à elas.

As considerações a respeito dos três casos que apresento aqui são fru-tos de um conjunto de observações pessoais acerca dessas experiên-cias, de conversas informais com os envolvidos e de oficinas das quais participei em conjunto com eles. Ao observá-los identifiquei algumas características as quais enumero:

INFRAESTRUTURA. Apoio em plataformas de trabalho alter-

nativas; não estão estabelecidos fromalmente em um lugar ou

espaço físico fixo; o espaço de reunião de trabalho é mutável,

e na maioria das vezes estabelecido no próprio local da ação;

INTERDISCIPLINARIDADE. Diversos atores para convergência

da ação; normalmente há pessoas envolvidas de diferentes dis-

ciplinas no momento em que alimentam a discussão para o

caminho a ser levado à ação; podem ser arquitetos, sociólogos,

publicitários, pessoas ligadas a produção cultural, ou interssa-

dos em novos modos de produção de espaço e de economias.

DISCURSO = MATERIALIDADE. Material social e estético das

ações tem fonte ou vínculo nas contradições da cidade ou na pró-

pria questão que está sendo discutida; a ocupação do espaço pú-

blico é portanto ao mesmo tempo discurso e plataforma da ação;

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SÍMBOLO, RAPIDEZ. Prioridade nas ações de impacto e rápi-

da apreensão; embora estejam focadas em transformação do

construído, elas pretendem ser rápidas; sua potência está na

oportunidade da intervenção e na imagem simbólica que têm

como resultado;

COLABORAÇÃO, PARTICIPAÇÃO. As ações podem ser efêmeras

ou permanentes, em função do objeto final ou material utiliza-

do; o valor de sua permanência está na sua construção, ou seja,

no caráter particpativo e colaborativo que possibilita transfor-

mação dos corpos envolvidos;

DIFUSÃO. O caráter local da ação não impede seu espraiamen-

to; a integração da vizinhança e envolvimento de pessoas dife-

rentes cataliza os microatores; ideia de contaminação é sempre

buscada.

Essas características são analisadas a partir do levantamento das prin-cipais ações desenvolvidas pelos coletivos, as quais apresentarei por meio de fichamentos individuais. A base para tal são as entrevistas realizadas ao longo da pesquisa que configura um conjunto de relatos desde o histórico da formação dos grupos, o processo de trabalho que desenvolvem, a pauta que discutem para encaminhamento das ações, o campo e grau de atuação e suas maneiras de financianciamento.

Em seguida, levanto evidências comuns encontradas no trabalho de cada um deles, frente a suas diferenças e particularidades do modo de agir sobre as questões que discutem.

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Nascido na Escola de Arquitetura de Madrid em 2001, o Basurama foi evoluindo adotando várias formas de trabalho desde sua origem. Se posiciona hoje como um grupo que pretende estudar os fenôme-nos inerentes da produção massiva do lixo real e virtual da sociedade de consumo, aportando novas visões que atuem como geradoras de pensamento e atitudes. No território da cidade, encontram resquícios desses processos de consumo que são os interrogantes sobre a forma de explorar, pensar, trabalhar e perceber a realidade. O resultado dessa busca se consolida em projetos de transformação de corpos na cidade mediante estratégias lúdicas e participativas.

O coletivo funciona em qualquer lugar, segundo eles, pelo simples fato de que a basura é produzida em qualquer lugar do mundo con-temporâneo. Em São Paulo, o Basurama mantém atividade de pes-quisa e intervenção no espaço urbano desde 2007. O Lixo Não Existe se tornou a principal projeto na cidade. As ações deste projeto estão espalhadas em focos de ocupações informais principalmente na peri-feria da cidade. O projeto se divide em Brincos e Libreria de Tecnolo-gias. Um Brinco é uma oficina colaborativa na qual Basurama ensina a criar brinquedos e equipamentos com a Libreria de Tecnologias. Num Brinco, a equipe de Basurama e os participantes caminham juntos nos

Basurama

ORIGEM ETSAM, Madrid (2001)

AÇÃO SP Desde 2007

PESSOAS Miguel Míster, arquiteto Ángela León, designer

MATÉRIA Lixo e resíduos urbanos

IMAGEM Cidade lúdica, desejos urbanos

PROJETOS Publique sua Cidade

O Lixo Não Existe

A Bolha Imobiliária

Parque de Diversões Minhocão

A Cidade é para Brincar

Equipamento Extraordinário

Light My Playground

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passos da criação: organizar a logística reversa para conseguir os re-síduos no local, organizar um atelier temporal, aprender a utilizar as ferramentas, trabalhar com os distintos materiais, tinta e acabamen-tos e instalação dos equipamentos na destinação final. A Libreria de Tecnologias é uma ferramenta aberta e colaborativa, disponível para qualquer que queira criar seus próprios equipamentos de brincar. O projeto já aconteceu em muitas regiões da cidade: no Jardim Míriam, em Heliópolis e no Sacomã; no Jardim Keraluz, Ferraz de Vasconsce-los e União Vila Nova; no Cingapura de Santana; em Perus, no Oásis da Vila Madalena, na Praça da Nascente, e na Praça do Aprendiz.

Um desdobramento de O Lixo Não Existe ocorreu no Festival Baixo Centro em abril de 2013 e sem seguida, durante a Virada Cultural em maio do mesmo ano, com as ações Parque de Diversões Minhocão e A Cidade É Para Brincar, respectivamente. Com o discurso de que qualquer espaço da cidade pode se transformar em um playground quando há liberdade de uso dos espaços e pessoas querendo se diver-tir, no Minhocão foram instalados, com a colaboração dos moradores próximos, vários pneus amarrados sob a estrutura do viaduto, trans-formando-os balanços como os de uma praça. A ação contava com um protótipo de projeto, com instruções para a intervenção, por meio de manuais sintéticos, que permitia ser replicada em outros lugares para difusão da ideia de de um parque aberto e construído coletivamente. No Viaduto do Chá, um pouco depois, a ação foi replicada e o alcance da intervenção foi ainda maior.

Embora não tenha participado dos Brincos, pude participar dos dois eventos nos Festivais. Muito interessante foi poder captar a recepção positiva das pessoas que passavam por ali. Sorrisos e conversas dos adultos e muita empolgação e felicidade das crianças, igualmente numa vontade de participar e brincar com a cidade.

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Encontrei Ángela e Miguel na casa deles, no apartamento simpático de um predinho antigo de três andares no bairro de Santa Cecília. Es-panhóis, de Madrid. Ele, arquiteto, ela, designer e ilustradora. São eles que formam a equipe fixa do Basurama aqui no Brasil. Logo na chega-da, acompanhando o café, fui apresentada ao Guia Fantástico de São Paulo. Um projeto dos dois, e desenhos expressivos de Ângela, que foi pontapé inspirador para a nossa conversa que era: falar sobre a cidade.

Iniciamos com o clichê da discussão de como é morar em São Paulo e viver a dualidade de angústias e ânimos que os fazem permanecer por aqui até agora. Questões muitas, mas a vontade de transformar o imaginário coletivo inexistente na cidade pareceu ser a grande força resistente que ainda dá a eles a vontade de trabalhar. Espaço público inutilizado, proibido, e o sentido do coletivo são os temas que se con-tinuaram. Eles percebem que em São Paulo, aquilo que é bem comum é quase barrado, muitas vezes proibido.

Angela – Os parques estão fechados, a praça com bancos e arvores

com copas bonitas está fechada, mesmo com manutenção e cuidado

que alguém da prefeitura faz. É muito maluco isso, pois ninguém está

usando aqueles espaços mas alguém está cuidando dele (...) No Bra-

sil, o imaginário da cidade parece estar se desvendando agora para

seus habitantes.

Para eles, a discussão a respeito dos usos dos espaços urbanos está na pauta, pois o Brasil vive um momento de euforia. Sem julgar o caráter dessa euforia, mas admitindo que de fato ela existe, eles dizem que per-cebem uma vontade quase inconsciente de seus habitantes de mudar realidades e emergir o novo.

Mister – Pudemos ver isso no ano de 2013, com o início da preparação

conversa, 10/03/2014

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e reflexão para os eventos esportivos internacionais que chegam ao

Brasil este ano, as manifestações contra aumento da tarifa e a ocupa-

ção da ruas de muitas cidades nas jornadas de junho. Muita discus-

são efêmera, sim. Mas euforia existiu e parece continuar. A cidade es-

teve presente como tema principal da Bienal, que participamos como

expositores, ações e palestras no módulo Modos de Fazer, Modos de

Usar, instalada no Sesc Pompéia, o centro cultural que mais admira-

mos na cidade.

O Parque Minhocão foi um projeto que tinha várias intervenções.

Uma delas realizamos na Praça da Amaral Gurgel, localizada aqui no

bairro de Santa Cecília. É uma praça bem cuidada com muitas árvo-

res, e por ordem do Metrô, é mantida fechada. Ali criamos uma nar-

rativa convidando as pessoas a visitar o zoo da Praça, com mapa que

alertava os perigos dos animais que ameaçam os espaços da cidade

– personagens históricas que deveriam ser apagadas. A intervenção

não durou muito, foi apreendida pelos funcionários do metrô em me-

nos de duas horas.

É triste como fecha-se um espaço público desse porte – para que não

cause “problemas” para a vizinhança –, sendo que há potencial de

ser usado de maneira democrática e saudável. Ainda mais perversa

é a situação quando os próprios vizinhos, desaprovam a manuten-

ção de um espaço aberto comunitário e de alguma forma depredam

mobiliários ou equipamentos para não conviver com situações ruins

– moradores de rua, noias, etc. A relação do espaço público brasileiro

está muito deteriorada. Os conceitos de Jane Jacobs estão longe de

acontecer aqui em São Paulo, parece. Lógico que a violência existe,

em muitas escalas, principalmente na periferia e nas regiões mais

pobres com ainda mais carência de espaço público.

Angela – Na periferia, atuamos no projeto Parque para Brincar e Pen-

sar, [proposta coordenada pelo coletivo Contrafilé, em 2011, no Jar-

dim Miriam, zona sul de São Paulo]. O trabalho de longo prazo junto

com a comunidade foi feito pelo coletivo e nos ajudamos com a cons-

trução do parque com o Lixo Não Existe. E foi aí que conhecemos

melhor o contexto do Jardim Miriam, que deve ser igual a muitas

outras comunidades. O espaço público não existe porque a situação é

muito difícil, não é só questão de ter ou faltar de vontade da comuni-

dade, mas por aspectos da violência muito forte. No centro da cidade

parece ser mais fácil de trabalhar de certa maneira.

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É mais fácil trabalhar no centro então?

Mister – É e não é. As vezes é mais fácil uma intervenção na periferia,

onde o espaço está mais livre, onde há menos disputa real pelo es-

paço físico e menos controle. Foi muito bacana a construção do par-

quinho que fizemos no assentamento do MST DomTomás, em Franco

da Rocha que já tinha tido contato com pessoas do EPA! da FAU e da

assesoria técnica do USINA, na construção das casas.

Como foi a experiência da Virada Cultural aqui em São Paulo?

Mister – Chegamos muito por acaso na Virada de 2013. Já havíamos

tentado fazer laguma coisa na Virada, levados outras propostas em

anos anteriores, pois do ponto de vista do retorno financeiro é muito

relevante. Mas nunca havíamos chegado na hora certa e falado com a

pessoa certa. Já havíamos feito intervenção para outras viradas fora

de SP, mas aqui não tinha rolado ainda. Mas antes de falar da Virada,

queríamos apontar o que foi o Parque Minhocão, o maior parque de

diversões da América Latina. O Parque Minhocão foi realizado du-

rante o Festival Baixo Centro e tinha como papel interpretar os es-

paços existentes do elevado, dando um uso alternativo para esses

espaços por meio de três intervenções: Balançar eu Adoro, Zoológi-

co de Santa Cecília e as Fontes do Minhocão. A Fontes do Minhocão

era uma intervenção mais ligada a água. Queríamos a participação

dos moradores e vizinhos, que jogassem água desde mangueiras de

suas varandas sobre o elevado, formando uma grande cachoeira em

uma hora combinada. Só que, obviamente, não deu certo, por falta

de comunicação com os moradores e falta de dinheiros para financiar

todas aquelas mangueiras. E também neste dia choveu muito. Não

houve mesmo recursos e a maneira como festival funciona, totalmen-

te independente, sempre fica aquela dúvida se vai rolar o programa-

do ou não, todo mundo chega sempre muito tarde... Com as coisas

rolando devagar e tal.

E vocês tem contato direto com o pessoal do Baixo Centro?

Angela – Sim. Somos muito amigos. Trabalhamos já há um tempo

juntos, na mesma luta pelo espaço público acessível e para todos. E

esse ano tem outro, com nossa participação em conjunto. Mas vou

terminar de contar como foram as intervenções no Festival em 2013.

Foi muito interessante! A gente fez o Balançar Eu Adoro e foi um su-

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cesso realmente incrível, lá na praça Marechal Deodoro. Foi a inter-

venção nossa mais bem sucedida de todas. As fotos do dia apareceu

em um monte de jornais, e as pessoas que passavam por lá comen-

tavam que estava bacana e tal. Falávamos do controle dos espaços

na cidade, mas na verdade, aquele dia, a polícia deixou os balanços

acontecerem. Não houve ninguém que estava por ali, que fazia manu-

tenção da praça ou que passava pelo elevado, que passou para retirar

ou verificar se as cordas realmente eram seguras. E na verdade, foi

muito simples. Colocamos os balanço amarrados em corda desde o

elevado para a Praça Marechal Deodoro, com assentos de pneus e

tudo funcionou muito bem!

Mister – Queria agora fazer o link desse momento com a Virada Cul-

tural. Fizemos então essa intervenção em abril, foi sucesso! E quando

estava chegando o momento de organizar a Virada Cultural, a Pre-

feitura de São Paulo, que com a nova gestão está bem mais aberta

para acontecimentos inovadores e diferentes do que já se viu, abriu

uma chamada pública e convidou o Baixo Centro, como quem diz, “oi

Baixo Centro, vocês tem alguém interessado a participar da Virada

este ano?” Essa abertura, a meu ver, foi maravilhosa! Principalmente

sabendo que a intervenção no Festival Baixo Centro rolou e foi um

sucesso mesmo sem recursos.

--

Essa primeira conversa foi muito gostosa e em outras de suas ações ao longo deste ano, pude dar continuidade ao diálogo e às crenças que compartilhamos.

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Contrafilé

ORIGEM São Paulo

AÇÃO SP Desde 2001

PESSOAS Cibele Lucena, artista-educadora

Joana Zatz, socióloga e jornalista

Jerusa Messina, artista-educadora

Fábio Invamoto (Peetssa)

Rafael Leona, artista-educador

MATÉRIA Pre-existências urbanas

IMAGEM Crítica situativa, transformação poética

PROJETOS Programa para a Descatracalização da Própria Vida

A Rebelião das Crianças

Cubo

Parque para Brincar e Pensar

Quintal

Formado no ano 2001, o Contrafilé é um grupo de investigação e pro-dução de arte que trabalha a partir de sua experiência cotidiana na cidade de São Paulo. O grupo tem como foco lugares e espaços da rua, onde desenvolve trabalhos de intervenção pública misturando técni-cas de performance, instalação, escultura e narrativas poéticas. O mais importante para eles é o estado, matéria ou situação propulsores das ações. Ou seja, desenvolvem suas ações a partir da a imersão em pro-blemáticas situacionais. É daí que partem para entender e apoderar-se do sentido de construção de outros discursos e modos de vida urbana, criando com isso uma multiplicidade de formas, representações e so-luções performáticas.

Desde suas primeiras experimentações o Contrafilé atuou em projetos em parceria com outros coletivos tais como: Frente 3 de Fevereiro, Po-lítica do Impossível, EIA – Experiência Imersiva Ambiental, JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube, Corposinalizante, BiJari, entre outros grupos e Pontos de Cultura. Esses encontros criativos com diferentes pessoas, coletivos e comunidades se consolidam em práticas críticas e ações educadoras daquilo que defendem.

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Iniciaram seu processo de discussão acerca das realidades urbanas no fim da faculdade com intervenções pontuais críticas por meio de cola-gens táticas pelos muros, debates públicos na rua, ativação de peque-nos espaços da cidade com objetos de encontro, cafés coletivos no cen-tro, etc. Uma das grandes potências de sua prática frente à realidade da cidade se evidenciou com o projeto Programa de Descatracalização da Própria Vida, quando da instalação do Monumento à Catraca Invisível em um espaço público da cidade, em 2004.

A ação foi resultado das conversas e depoimentos pessoais de mora-dores da Zona Leste desenvolvidas dentro do projeto Zona de Ação, no Sesc Itaquera, de onde se extraíram histórias, narrativas, expe-riências cotidianas diversas e inquietantes tendo a catraca como re-presentante. Nessas conversas, oficializou-se a o símbolo do controle na cidade em situações visíveis e invisíveis. E, por meio dessa reflexão construída coletivamente, uma catraca velha foi instalada anonima-mente em um pedestal no Largo do Arouche. A experiência simbólica desta ação gerou repercussões significativas na mídia no mesmo ano e foi fundamental para dar força ao trabalho do grupo nas ações que se seguiram. O Contrafilé percebeu o quanto o símbolo é importante para a contaminação social em relação às ideias que se pretende ativar com as intrervenções sobre o espaço da cidade24.

Ao mesmo tempo que avançava na sua pesquisa sobre o papel da inter-venção artística sobre o espaço urbano na tranformação de realidades socias, o grupo participava de performances urbanas, de ações artíti-cas em ocupações de moradia, e outros projetos de arte ativista com expressões visuais diversas que também resultaram na particpação de algumas exposições locais e internacionais de relevância.

24 A função social da arte é transformar formas de represntar, de paresentar e simbolizar a realidade. Trans-formar as formas de pensar só faz sentido se a arte se inscreve no tecido social. A política e a arte não estão separadas uma da outra. O símbolo só tem potência polí-tica se tiver potência estética e vice-versa. (Joana Zatz)

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Um importante processo de pesquisa artístico-reflexivo nomeado A Rebelião das Crianças foi iniciado em 2005, a partir de um olhar aten-to à grande rebelião que aconteceu no início do mesmo ano na Fun-dação para o Bem Estar do Menor (FEBEM). A reflexão tinha como objetivo a percepção da condição da criança como representante má-ximo do estado degenarativo da sociedade25. A pesquisa levou a um en-tendimemento de que o direito à uma cidade plena, como construção social permanente, só se realiza quando diferentes grupos e gerações dialogam e constroem juntos - ao imaginá-los e executá-los.

Para tornar públicas essas reflexões, praticaram algumas experiências neste sentido. A primeira intervenção ocorreu no viaduto Okuhara Koei, a conexão entre a Avenida Paulista e a Avenida Dr. Arnaldo. Sob o viaduto, foi organizada uma Assembléia Publica de Olhares26 com os moradores e a ação final foi ativar o espaço, pendurando um balanço para uso daqueles que por ali passavam. Outras experiências no mes-mo sentido continuaram ocorrendo. Os lugares escolhidos eram es-tratégicos: ao mesmo tempo que destacavam a situação que ali ocorria e todas as tensões que ela envolvia, criavam uma imagem visualmente inquietante. Para o grupo, buscava-se instaurar um território de exis-tência no qual todos brincam juntos - tanto ao imaginar o brinquedo que irão construir como ao experimentá-lo.

O Contrafilé envolveu esse trabalho, por meio de debates, criação de símbolos e utilização de linguagens artísticas, diversos teóricos, edu-cadores, jovens e artistas que exercem papel de destaque nas situações analisadas pelo grupo. Em 2007, com a colaboração das pesquisadoras Conceição Paganele, Maurinete Lima e Suely Rolnik, a reflexão resul-tou em uma publicação/sistematização dessas reflexões e ações.

25 Trecho de A Rebelião das Crianças, Contrafilé, 2007.

26 Assembleia Pública de Olhares é uma metodolgia construída pelo grupo Contrafilé para colocar em paura, junto a um coletivo mais amplo, sensações, reflexões a partir de exepriências cotidianas, a fim de construir um projeto comum de ação. É utilizada em todos os processos propostos pelo grupo.

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O Parque para Brincar e Pensar foi o mais importante projeto conse-quente da pesquisa A Rebelião das Crianças. Elegi ele aqui, pois se si-tua exatemente na transformação física de um espaço da cidade. Com desenvolvimento em 2011, ele foi pensado como um acontecimento: um processo de contrução e reflexão coletiva junto ao JAMAC e a Comunidade Brás de Abreu no bairro do Jardim Miriam na Gran-de São Paulo. Neste tempo-espaço, uma área abandonada no meio de uma favela (na qual a Eletropaulo colocou abaixo diversas casas para passar fios de alta tensão) foi sendo reapropriada pelas pessoas da co-munidade. Um brinquedo gigante – com a escala da cidade – e outros pequenos brinquedos e jogos periféricos foram inventados, construí-dos e instalados, dentro de um processo criativo que, em si, segundo o grupo, foi um verdadeiro território de invenções.

Para contrução desse imaginário coletivo, criou-se um grupo multipli-cador constituído pelas pessoas da comunidade, integrantes do Con-trafilé, pela Monica Nador e Mauro, pelo músico Cássio Martins e por jovens arquitetos da FAU, integrantes do mesmo grupo EPA! do qual participei em 2009. Aos poucos outros atores apareceram para contribuir com o processo colaborativo de trabalho, somando esforço físico, material e conceitual com a comunidade.

Para o Contrafilé, a experiência da construção colaborativa do Parque, se apresentou como alternativa à cidade onde os espaços do comum e da fantasia estão desvalorizados e o jogo da convivência é regido pelo valor imobiliário do mercado. Da mesma forma, percebendo que as pessoas se vêem fora da possibilidade de se pensarem criadoras e gesto-ras de seu próprio ambiente, o Parque se apresentou como lugar possí-vel para a elaboração de outra visão da realidade, onde cada um, como parte de um coletivo, foi responsável e criador de seu ecossistema.

O Parque para Brincar e Pensar foi inaugurado no mesmo ano com uma bonita festa junina. Em 2013, ocorreu o Quintal, um desdobra-mento dessa experiência em parceria com as comunidades do Jardim dos Químicos e Vila Esperança, em São Bernardo do Campo.

parque para brincar e pensar

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conversa, 28/03/2014

Encontrei a Joana Zatz pela primeira vez no casarão da FAU, na Rua Maranhão. Formada em Ciências Socias na USP, ela estava em seu in-tervalo de uma das aulas teóricas para o doutorado que desenvolve sob orientação da professora Vera Pallamin. Como uma das integrantes do Contrafilé e do coletivo Política do Impossível27, se demonstrou muito curiosa por meu interesse pelo trabalho. Nos apresentamos e paramos para um café por ali mesmo. Fui preparada com algumas questões, após a leitura de sua tese de mestrado28 defendida em 2012, na qual analisa os processos de criação e impacto social das ações de alguns coletivos de São Paulo e Buenos Aires. O desenvolvimento da tese, ela mesmo pessoalmente apresenta, como resultado de seus 12 anos de trabalho junto à pessoas implicadas em refletir e agir para que vida adquira sentidos compartilhados mais amplos. Iniciamos com essa tema, e perguntei como ela havia encontrado esses caminhos al-ternativos para discussão urbana.

Joana - O mais interessante do caminho que escolhi foi ter sido orien-

tada pela professora Vera Pallamin, arquiteta. Nos conhecemos já há

um tempo, no início dos anos 2000, quando ela fazia sua pesquisa

sobre arte e começou a pedir uns materiais sobre o que estávamos

fazendo. A catraca, a intervenção no Monumento às Bandeiras. Então

ela que se aproximou da gente, e isso foi muito bacana. Ela nos cha-

mou para fazer um grupo de estudos quando pude conhecer outros

coletivos também através da pesquisa que ela estava preparando. Aí

que conheci ela de verdade e aí que fez sentido eu fazer mestrado

com ela e agora o doutorado. Mas quais são suas perguntas?

Meu foco é entender os coletivos, o papel deles na construção do es-paços urbanos, não caracterizando seus tipos, mas entendendo como eles atuaram nos últimos anos. Como o Contrafilé começou?

O Contrafilé assim como os coletivos, da forma como pensamos hoje,

que atuam no âmbito da arte, cidade e política, passam a estar pre-

sentes no final dos anos 1990, que é quando o neoliberalismo entra

solapando o planeta. Então, é mais ou menos nessa época. Pode ser

explicado assim: a ditadura termina mesmo em 1985; eu tenho 38

anos, e a minha geração tem 20 anos em 1995, época que todo mun-

do é universitário, mas que também passou pela ditadura. A experi-

ência da ditaura está inscrita no corpo desses jovens da minha gera-

27 O coletivo Política do Impossível - PI cria projetos de investigação e ação no espaço urbano que colocam participantes como ativos na dinâmica da cidade, contra sua perpetuação como espaço dissociado da vida, tomando visíveis possibilidades e desejos de transformação no sentido de criação de vida pública. In: Cidade Luz - Uma investigação-ação no centro de São Paulo. São Paulo: Funarte, 2008

28 MUSSI, 2012

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ção, tanto de memória concreta, até como no sentido subconsciente

- que antes não sabíamos. Por exemplo, coisas que não sabíamos

que eram resutados da ditadura militar, como as sensações de ter

medo de atuar no espaço público. Isso é totalmente relacionado, e

não era uma coisa consciente. Só depois que tomamos consciência

dessas ausências. Principalmente pelo contato com outros coletivos.

A conexão com o GAC, coletivo argentino, trouxe um pouco essa re-

flexão sobre a memória. A memória da ditadura militar na Argentina

é muito forte. Primeiro porque o país é muito politizado, há um acú-

mulo histórico de tomada de consciência. Nessa época, os jovens de

lá já estavam com o pensamento formado acerca dessas resistências.

Lembrar sobre o que aconteceu, sobre traumas, é uma postura polí-

tica para não permitir que isso ocorra novamente, entendendo como

isso ainda reverbera hoje. Então, um primeiro passo da formação dos

coletivos foi politizar e tomar conciência dessas situações, libertando

o corpo para ação no espaço social.

Qual era a preocupação de vocês no momento do surgimento de suas ações, no ínicio do trabalho?

Os grupos não tiveram muito uma forma objetiva de atuar no inicio.

A forma como começou veio mais de uma urgência de se libertar o

corpo para a ação sobre o espaço público, frente a situação pós ditau-

ra. Num espaço público que não é só material, mas também social.

O corpo angustia. E o que posso fazer para organizar essa angustia

em um pesamento enquano ação política. O Colectivo Situaciones

da Argentina, por exemplo, é um coletivo de pensamentos. Eles tem

milhares de pubnlicações maravilhosas, sobre espaço público, ação

na cidade, arte. E em um dos textos que publicam, eles utilizam um

termo que é politizar a tristeza, que pode ser entendido na questão:

como transformar uma angústia em uma urgência? Como transfor-

mar algo que é individual, pessoal, intimo e entender que isso é uma

questão coletiva, comum e que pode ser inscrita no espaço como pro-

belma? A chave do início dos coletivos é essa. Não foi uma questão

formal, foi uma questão política. Foi a busca por uma resposta à essa

negação da atuação do corpo sobre a cidade, portanto uma ques-

tão também micropolítica. A vontade passou a ser entender a cidade

como matéria-prima, não como suporte para ação dessas vontades,

mas como escala visível e invisível de embate e de conflito. A relação

do corpo, enquanto pensamento, tentando entender uma problemáti-

ca dada na cidade, passa a atuar nessas múltiplas escalas.

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E quais são essas formas de fazer e agir sobre a cidade?

As formas são múltiplas, e são acionadas a partir do que é necessário.

Então, não é a catraca, o lambe-lambe, a instalação, uma performan-

ce. A forma é aquilo que for necessário, aquilo que é mais preciso

para transformação do espaço público, porque ela tem a ver com tá-

tica. Quando você politiza uma questão, que parece ser apenas de um

grupo pequeno ou um corpo coletivo, esse esforço de politizar essa

questão e enteder que talvez ela possa abranger uma relação maior, é

que é válido como forma. E aqui, é importante entender que Coletivo

é aquele corpo que se faz público. Não é o Coletivo como moda, mas

aquele que propõe politizar uma questão de fato. David Harvey fala

sobre isso quando aciona o Don Mitchell, em A Liberadade da Cida-

de: só é possível reclamar o espaço público no público. Não dá para

inventar espaço publico comum, se você não estiver inscrito nele. A

ação da criação do comum ela deve ser em si, comum. É impossível

você criar a vida pública e a vida comum dentro de casa. Então é

nesse sentido que nascem os coletivos. Nasceram de uma angústia

comum. O Contrafilé pelos estudantes do curso de Ciências Socias,

assim como outros coletivos com um monte de gente dos cursos da

escola de Arquitetura, como o BiJari, da Geografia, das Artes Visuais.

Era uma mistura. E isso é uma outra questão desse tipo de fenômeno.

Necessariamente ela supera as disciplinas. Ele é transversal. É um

atravessamento.

Mas como o Contrafilé começou exatamente?

Éramos um grupo de amigos que conversava sobre diversas ques-

tões. Ainda não tínhamos nomeado, pois dar nome é uma ação polí-

tica. As angústias foram tomando forma. Nos reuníamos 2 ou 3 vezes

na semana para discutir as questões daquele momento, ou o posi-

cionamento da mídia frente a fatos sociais. Líamos jornal em conjun-

to, buscávamos outras informações e teorias e tentávamos entender

várias coisas ao memso tempo, seus significados ou como que cada

um se sentia frente a algumas situações urbanas. Pensávamos como,

onde e de que forma se expressar. Passamos a sentir que nos conc-

távamos a partir dessas mesmas angústias, desse vazio. Experimen-

tamos algumas ações sobre o espaço urbano, mas ainda eram expe-

riências muito frágeis: stencils, cartazes ou outros tipo de linguagem

questionavam algumas situações urbanas... A grande entrada do

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grupo nas ações sobre a cidade ocorreu na Bienal dos 500 anos, em

2001, que havia se posicionado como a grande celebração histórica

do país, negando extermínios indígenas, escravidão ou quaisquer lu-

tas inerentes à nossa existência. Alguns dos participantes estavam fa-

zendo parte do curso de formação do educativo da Bienal. Tínhamos

uma consciência corporal e não uma consciência intelectual crítica a

respeito da exposição. E fora isso, naquele momento, se consolidou a

entrada do neoliberlaismo no sitema cultural brasileiro e nas artes vi-

suais. Foi bem simbólico sob este ponto de vista. Então tínhamos um

fato: a Bienal dos 500 anos celebrando a entrada do neoliberalismo

do Brasil, da relação construída entre cultura e mercado. E aí resol-

vemos agir. Fizemos um manifesto: “Chega de Mickey, 500 anos de

Mito”. Foi aí que começaram de verdade as ações políticas. As ações

seguintes caminharam nesta direção: entender uma ausência, a partir

de uma situação que toca no corpo, e propor uma política, agindo do

micropolítico para o macropolítico, ou vice-versa.

E o tempo que se seguiu, em meados do anos 2000 até o final da déca-da? Como você entende o decorrer das ações pelo tempo?

Acho que houve um boom do fim dos anos 1990 até o início dos anos

2000, que foi de ação. Mas tem uma coisa importante que caminha

junto com o Contrafilé e outros coletivos que é a reflexão. O pen-

samento e a ação são totalmente conectados. Então, o entender o

que está fazendo e propondo sobre realidades exsitentes se deu pa-

ralelamente às ações, mas se consolidou em seguida, com textos,

exposições e publicações. Não apenas como manifestos, mas como

entendimento intelectual, sistematizando as experiências e refletindo

sobre elas. Até porque faz parte da compreensão estética, essa siste-

matização do pensamento. Neste nível que estamos falando, é muito

importante tornar visível e sistematizar, pois isso também é criar uma

dimensão política que está inserido em um território de pensamento.

Publicar é criar uma imagem densa, na qual vários conhecimentos e

disciplinas que se articulam: imagens gráficas, cartografias, textos,

conversas transcritas.

--

A conversa foi rápida, mas o encontro possibilitou o canal de abertura para a continuidade do diálogo acerca do posicionamento do grupo às questões do corpo intervindo na cidade.

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Muda_

ORIGEM Escola da Cidade, São Paulo

AÇÃO SP Desde 2012

PESSOAS Julia Pinto

Marcella Arruda

Naiara Abrahão

Pedro Norberto

MATÉRIA Madeira, pallet, plástico, papel

IMAGEM Mobiliário resignificando o espaço

PROJETOS Palletmob Papelação [In] depedência day Park[in] day Parque de Diversões do Minhocão

Praxis_ Cidade Playground

Objetos Temporários

Sinta-se em casa

O Muda_, formado por um grupo de estudantes do curso de Arqui-tetura e Urbanismo da Escola da Cidade, nasceu a partir da vontade comum de transformar o ensino e a maneira como as pessoas se re-lacionam a cidade. Para o coletivo, as teorias estudadas e as práticas desevolvidas ao longo da graduação, na maioria das vezes não cor-respondem às realidades enfrentadas na cidade existente. Portanto, entendendo que uma reflexão alternativa sobre essas realidades se faz urgente, passam a propor novas maneiras de olhar e lidar com a vida urbana. Para tal, o grupo acredita ser fundamental o trabalho coletivo, no sentido de prática do comum, daquilo que sai da esfera pública e que engloba tudo e todos, preservando suas diferenças.

Sua experiência sobre territórios e lugares da cidade se posiciona com um caráter experimental e provisório. As ações propostas não são per-manentes em seus sentidos material ou físico, mas tentam atingir o sen-sível da discussão de determinada situação que é imposta ou escolhida. A ideia defendida pelo grupo é a de que a partir da intervenção, seja possível ativar uma reflexão crítica sobre aquilo que existe ou que é au-sente. Ou seja, propciar a abertura de uma possibilidade de modificação

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do que está dado, ou promover a ocupação de determinado espaço, a partir da reflexão daqueles que olharam ou participaram daquela ação.

Na análise dos projetos realizados e propostos pelo grupo, evidencia--se um caráter lúdico que buscam enfatizar em cada momento da ação, desde sua concepção até o processo final. A construção participati-va da ideia é um convite ao encontro de várias gerações que ativa e instiga a curiosidade de colaborar e integrar-se à cidade. Ao mesmo tempo todos os projetos são desenvolvidos pelo como projetos piloto. Sua criação deve possibilitar replicação em outras situações e outros lugares e devem ser publicados através de manuais para poderem ser apropriados como projetos coletivos possíveis.

A prática do Muda_ é também multidisciplinar. Infatizam o ser coleti-vo por trabalharem conjuntamente com pessoas de outras disciplinas que não só a arquitetura. Colaboradores diversos realçam a transver-salidade das ações e potencialidades porfissionais, dentre fotógrafos, geógrafos, catadores, sociólogos, artistas, advogados, etc.

Algumas das ações foram realizadas em colaboração com o Basurama, com o qual o grupo mantém relacionamento afetivo muito grande. O projeto de uma arquitetura inflável que deu origem à Bolha Imobiliá-ria, foi um deles. A ideia era chamar a atenção para a tensão existente cidade por conta da especulação, ao memso tempo que criar um mo-mento de bricadeira a partir da espacialidade da bolha gigante. Esse projeto foi construído junto à Cooperativa de Catadores do Glicério, com materiais fornecidos por eles, e pôde ser levado e instalado em di-versos ponto da cidade: minhocão, Parque Ibirapuera, Vila Mariana, em frente à ocupações de moradia no centro.

A mesma colaboração ocorreu na ação Balançar Eu Adoro, ocorrida dentro de um projeto maior que foi Parque de Diversões do Minho-cão, já apresentado aqui na entrevista com o Basurama. Para o grupo, a percepção resultante dessa ação foi que há ausência de espaços na cidade onde seja possível brincar e se divertir. Segundo eles, a Praça Marechal deodoro esteve ocupada o período todo que os balanços estiveram por lá, não porque o projeto tinha sido divulgado em de-terminada mídia, mas sim pela vontade emergente das pessoas que passavam por ali.

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Uma prática importante foi a participação ativa na Ocupação Marco-ni do Movimento Moradia para Todos, situada na Rua Barão de Itape-tininga no centro. Duas integrantes do coletivo residiram na ocupação durante alguns meses e procuraram entender quais eram as dinâmicas locais e realações afetivas estabelecidas dentro e fora da ocupação. A residência das estudantes ali repercutiu em ações colaborativas com os vizinhos e principalmente procurou ativar a relação dos morado-res com o entorno, a partir de uma reflexão sobre microresistências e micropolíticas ali estabelecidas. A percepção do coletivo foi a de que, embora esteja positivamente localizada sob ponto de vista de acesso à infraestrutura pública, as relações além da vizinhança lhe são negadas.

Entendido isso, as intervenções passaram a explorar a possibilidade de recriar e resignificar o convívio com o entorno, numa tentaiva de proporcionar aos moradores da ocupação um direito de experienciar, de suas maneiras, a cidade. Várias práticas com grupos pequenos ou maiores, estudantes, comunidades, e junto à outros coletivos, foram desenvolvidas ao longo de sua curta existência. A ideia sempre defen-dida pelo Muda_ é a de propciar possibilidades de reflexão, ocupação e aprendizado contínuo da cidade a partir da criação de microespacia-lidades urbanas temporárias, que tensionam o existente e desalienam do estado presente, propondo novos discursos. Ao mesmo tempo, buscaram sempre uma ação colaborativa, entendendo que as pessoas externalizarem aquilo que a elas fazem bem e dividem com outras pes-soas aquilo que elas acreditam.

Portanto, para eles, é urgente e deve ser constante, criar esses lugares imaginários, espaços de troca, de modo colaborativo, para que a inte-ração entre pessoas e cidade se efetive e convivência coletiva não seja destruída.

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Encontrei a Marcella em um fim de tarde nos arredores da Escola da Cidade, em seu intervalo entre uma aula e outra. Ela é estudante do quinto ano de arquitetura e uma das criadoras do Muda_coletivo. Muito carinhosa, sentamos para a conversa que ocorreu, finamente, depois de trocas de emails e tantos desencontros. Iniciei apresentando o foco do trabalho e a maneira como pretendia abordar a pesquisa sobre os coletivos de ação urbana em São Paulo. Disse à ela que a con-versa tinha como intuito conhecer de perto o Muda_ e, portanto seria legal apontar de tudo um pouco, desde o surgimento, as angústias vi-vidas, as intenções propostas e como o grupo entende a importância das ações dos coletivos na cidade hoje e a rede que delas se estrutura ou não. E ela o fez.

Marcella - Bom, acho que posso colaborar de 2 formas. Primeiro con-

tando como foi a experiência com o MUDA, as ações que participa-

mos através dele. Segundo, contando sobre o evento do ano passado

que ajudei a organizar dentro da Virada Sustentável, o Como Virar

Sua Cidade. A ideia foi justamente fortalecer a rede de coletivos que

estavam pensando a transformação da cidade mas que muitos vezes

não se comunicavam entre si. Então a ideia era: vamos potenciali-

zar essas ações articulando essas pessoas. Assim, organizamos no

Centro Cultural São Paulo, uma exposição/seleção de vários tipos de

trabalho, ou tecnologias como preferimos chamar, tentamos separar

isso por áreas de atuação, por exemplo: agricultura urbana, mobili-

ário, articulação comunitária... E desde então, a gente continuou o

trabalho da rede e fez uma ação disso na Zona Leste, agora no início

de 2014 com esses vários coletivos.

O MUDA começou em 2012, logo após o estopim de ideias que rola-

ram após uma palestra de um professor da ETH Zurich, aqui na Escola

da Cidade. A palestra mostrou vários pavilhões e estruturas efêmeras

que os alunos e professores estavam testando por lá. Isso nos levou a

pensar a nossa produção de espaço como estudantes de arquitetura.

A angústia de não estar em contato com a realidade diretamente, mas

apenas estar numa discussão projetual sem tangibilizar a prática do

projeto foi o que nos motivou naquele momento. Para nós, não adian-

tava pensar o projeto como algo finito e imutável. Devíamos trazer ele

pro mais real e tangível, fortalecendo a relação de projeto-pessoas,

conversa, 03/04/2014

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admitindo que a mudança de projeto e o processo e apropriação do

projeto deve ser admissível. A diferença é que os trabalhos apresen-

tados em Zurique levavam mais em conta uma experimentação de

materiais e encontro de soluções. Aqui, pensamos em ir além disso e

trazer a discussão inserida no contexto da cidade de São Paulo: pen-

sar a carência de experimentação do espaço público pelas pessoas.

Aqui ninguém se apropria. Ninguém cuida. É muito diferente nossa

relação com aquilo que é de todos.

A ideia que buscávamos neste início de discussão era de como, por

meio da nossa ação de projeto, poderíamos criar e intensificar essas

relações entre habitante e espaço público. E começar a especular por

que que não existe esse sentimento de pertencimento com relação

aos lugares da cidade. Então a primeira intervenção que a gente fez

foi na Lapa no começo d 2012, em parceria com um movimento de

moradores que chama Movimento Boa Praça. A organização, que

existe há mais de 5 anos, tem como interesse cuidar e incentivar a

apropriação de espaços verdes dos bairros da Lapa, Pompeia e Alto

de Pinheiros, por meio de eventos que ocorrem uma vez por mês que

tentam mudar a percepção dos moradores e vizinhos quanto aquele

espaço coletivo. Não existe apropriação do espaço público porque

o desenho dele não é convidativo e porque as pessoas também não

se relacionam, aí o espaço não é experimentado e a relação com ele

muito menos se consolida. Em uma atividade junto com os estudan-

tes da Escola da Cidade, identificamos um canteiro de esquina da Rua

Cerro Corá com a Av. Heitor Penteado. O espaço estava vazio, subutili-

zado, pela ribanceira que tem e pelo alto fluxo de veículos, e foi esco-

lhido para ação coletiva dos estudantes junto com o Movimento Boa

Praça. Em uma semana, montamos atividades com nossos colegas

da Escola que começou com conhecimento da área, visitas, maquetes

e discussão das possibilidades de intervenção.

No fim de semana, faríamos a ação definitiva, a partir das ideias

compartilhadas de melhoria do desenho do lugar para uma possível

apropriação, mas principalmente levando em conta importância da

construção coletiva e da participação de todos daquele objeto ou mo-

biliário que iria surgir. O resultado foi a construção de um mobiliário

com paletes, conseguidos por de doação, numa tentativa de se virar

com o que está disponível. O legal foi a ideia de construir juntos e

de consolidar a relação daquilo que foi construído, criando laços de

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confiança importantes de pertencimento àquele lugar, principalmente

pela chegada de vizinhos e moradores do entorno que se interessa-

ram pela ação e participaram da construção junto com a gente.

A discussão naquele dia nos levou a pensar de que o espaço na ci-

dade não é convidativo para a apropriação coletiva, e por isso não

cuidamos e não enxergamos as possibilidades de usá-lo. E é lógico.

Cuidamos da nossa casa, porque construímos cada espaço dentro

dela e sabemos o que cada um deles significa, por isso elas são acon-

chegantes e convidativas. Daí a ideia de pertencimento. A relação da

pessoas com suas casas é assim, pois nos preocupamos com cada

espaço dela. Se construímos juntos, se participamos da ação, a ideia

de pertencimento se consolida, aquilo passa a ser mais seu. Cria-se

um vínculo muito mais profundo com os espaços da cidade. A inter-

venção que era para durar duas semanas. Durou dois meses, com

gente usando. E os próprios moradores que foram parceiros da cons-

trução cuidavam do espaço. O que restou, após dois meses de uso foi

levado para a Praça das Corujas para fazer adubo para uma horta que

construíam lá. Esse foi nosso começo.

Um tempo depois, no mesmo ano, fizemos o Park(in)Day, em frente

à Escola. A ideia era trabalhar a possibilidade de ocupação das vagas

destinadas a carros, como uma extensão da calçada ampliando o es-

paço de experiência coletiva e troca. Isso já havia sido feito em outra

cidades pelo mundo e é uma ação bacana para extrapolar o comum

do dia-a-dia nas cidades. As ideias que vieram surgindo em segui-

da, nos levaram a pensar que nossas experimentações deveriam ser

como projetos piloto de uma coisa que poderia ser maior, e alcançar

o replicável em outros lugares. Do ponto de vista de ações na cidade,

pensamos elas como estratégias de novas leitura de cidade e ativa-

ção temporária dos espaços, já que as tecnologias que inventamos

ou nos apropriamos se acabam, são efêmeras. A ativação de espaços

não utilizados na cidade com um novo mobiliário, feito de material

reaproveitado, é um exemplo dessas estratégias. Utilizar infraestru-

turas existentes na cidade, como viadutos e pendurar balanços por

exemplos é uma outra estratégia de nova leitura dos espaços da ci-

dade.

Em alguns casos, a gente desenvolveu um processo de mapear nossa

intervenções. E isso foi muito ineterssante. Fazer manual para que

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essa tecnologias fossem de fato difundidas e possíveis de ser rea-

propriadas e replicadas. Vira uma receita de bolo. Com os balanços

do minhocão, isso aconteceu e uns amigos de Belo Horizonte fizeram

lá só com o manual que publicamos. O potencial do efêmero é ser

imagem que possa ser replicada, levantando a discussão e cutucando

mesmo. Pois só a experência na cidade é que transforma as pesso-

as e a própria cidade. É participar das manifestações de junho, por

exemplo, e perceber que andar no meio da Paulista, é sim muito legal

quando não há carros em volta. O balançar no minhocão, o deitar

numa praça para tomar sol... Por isso a potência das ações efêmeras,

pois elas provocam, criam imagens novas e outros modos possíveis

de cidade – e é barato é rápido e fácil. O problema das ações na cida-

de, sua contaminação, é que o grau de envolvimento, apropriação e

atitude das pessoas quase não existe para a maioria.

No meio da fala da Marcella, chegou a Naiara, uma outra integrante do Muda. Ela não pode ficar, mas jogou uma crítica no ar que discuti-mos um pouco...

Nairara – Duas coisas, construção colaborativa é uma mentira e méto-

do de participação também. A experiência como um todo, dos mode-

los e métodos participativos, que aconteceu na cidade de São Paulo,

nenhuma deu certo. O que se construiu a partir de uma intervenção

coletiva e colabirativa no espaço urbano da cidade? O que se criou foi

uma indústia cultural que tem como plataforma o território da cidade,

como Fora do Eixo em absoluto.

Marcella – Para mim, o fica é imaterial. A construção coletiva é um

processo. O impacto que essas ações tem na vida real não há como

medir, não sei mesmo se é possível. Mas a especulação da validade

das expeiências é mais imaterial que concreta.

Naiara – Fica pra vocês discutirem mais pra frente.

Discordamos em partes. A Naiara teve que ir embora, mas de fato foi muito válido esse questionamento para entender até que ponto en-carar as ações coletivas como essenciais. Dei continuidade às minhas outras curiosidades das ações do Muda e perguntei como tinha sido o processo na Ocupação Marconi.

Marcella – Na Marconi, o que aconteceu foi um sonho de trabalhar

com os moradores. Conheci a ocupação por meio de um workshop

que fiz com o Breno Silva e seu projeto Ativador de Espacialidades

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Temporárias. Pensamos na oficina que são as ocupações que estão

nesse limiar entre o espaço privado e o o espaço coletivo, os luga-

res de grande potencial de ação. Aí eu conheci o Manutti, que é ar-

tista morador da ocupação, com quem compartilhei muitas lógicas

e angústias e entendimento de mundo e vontades de atuação. Fui

lá com a Naiara e descobrimos que dentro do prédio tem uma vida

comunitária muito interessante. Aí pensamos que qualquer ação e

intervenção com os moradores só faria sentido se entendessemos

de fato a realidade do lugar. Nos propusemos então uma imersão

total na ocupação e nos mudamos para lá onde vivemos por um mês.

A ideia de viver ali era praticar o mesmo dia a dia dos vizinhos que

estão inseridos na estética do possível: o de viver e ser criativo com

os recursos que temos e solucionar os problemas com os materiais

disponíveis. Embora tenha durado pouco tempo, aprendemos muito

no com os moradores e entendemos a dinâmica da ocupação. Demos

continuidade com a relaçñao com ele quando tentamos praticar no-

vos exemplos de ação na cidade para que eles pudessem também se

apro priar do público que lhe é sempre foi tão negado, mesmo ali no

centro. A relação com o espaço público não exitia.

Começamos a fazer eventos na rua, em frente, ali no calçadão da Ba-

rão de Itapetininga, pensando como podia se tornar a sala de estar da

ocupação, que possibilitasse a atuação dos moradores no espaço que

também é deles, os tornando iguais aos outros moradores da cidade

que passam por aquele lugar. Uma delas foi o Café da Manhã na Rua,

quando conseguimos levar um mesão lá pra baixo e a doação das

padarias do bairro e algumas cadeiras emprestadaspara comer cole-

tivamente. Outra foi o objeto urbano parte do Praxis_cidade, quando

construímos junto às crianças da ocupação, um carrinho de passeio,

ou para levar alimentos, que foi utilizado ali no calçadão também. A

potência criada nessa sala de estar era a troca de realidades entre mo-

radores da ocupação e os outrso habitantes da cidade, que em suas

diferenças, poderiam encontrar as igualdades reveladas na ocupação

do espaço público, tanto de dentro pra fora, como de fora pra dentro.

A tentativa foi também de superar estigmas ao criar um momento

comum, de convivência nas suas diferenças. Tem um professor meu

que fala que a cidade é você se encontrar no outro. E é isso que a

gente buscava. Por meio desses eventos, que desprograma as pes-

soas sobre espaço público, local por excelência que está aberto ao

inesperado, poderíamos criar essas outras dinâmicas.

--

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Retomando a vontade inicial do trabalho de entender esse movimento coletivo que se forma na metrópole e suas interferências para criação de imaginários e novos projetos de cidade, analiso esses fenômenos com algumas das questões que balizaram seu desenvolvimento.

Em São Paulo, avalio o porque de sua importância para a discussão contemporânea dos espaços na cidade, a partir da aproximação às prá-ticas dos coletivos Basurama, Contrafilé e Muda. Os fatos apresenta-dos por eles nas conversas expostas aqui foram de essencial importân-cia para compreender sua maneira de agir sobre o território e modos de questionar aspectos da vida urbana.

Nas ações propostas por cada um deles, fica evidente que a maneira como trabalham converge para um processo único entre si. Esse pro-cesso se configura em etapas de ação comuns que são essencialmen-te: refletir sobre determinada situação/tensão da cidade; evidenciar a tensão por meio de uma ação tática construída publicamente; e con-solidar a ação com a ocupação do espaço urbano a fim gerar de novas experiências sensíveis e despertar consciência àquela tensão.

No momento da reflexão, o que acontece é a ativação de um outro modo de olhar para a cidade. Ou seja, quando agir e como agir solicita aos coletivos, antes de tudo, um processo de aproximação da realidade em que se quer trabalhar por meio de intuição e experimentação. Essa reflexão possibilita o olhar a cidade e uma compreensão mais clara en-tre espaço, tempo e relações. Entendem-se fatos situativos para além do que foi dado como informação primeira ou final, como por exem-plo: refletir sobre o que pode estar acontecendo com os movimentos de moradia, ou as várias dimensões dos protestos nas ruas, ou as rela-ções entre pessoas e o espaço público da cidade. É isso que os coletivos

Evidências coletivasAnálise

o processo

a reflexão

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aqui analisados assim como as demais ações pontuadas neste trabalho desenvolvem previamente.

Em suas diferenças, os coletivos revelaram suas potências visíveis: os lugares transformados, a imagem criada pela ação, ou o objeto pro-posto naquele momento. O Basurama, com suas propostas lúdicas de criação de objetos com resíduos, tem a matéria física e o brincar como a grande imagem de suas ações sobre a cidade. O Contrafilé é situativo, pontual. Os problemas situados – as situações escolhidas para cada intervenção, tem como imagem a própria reflexão daquilo que pretendem evidenciar. Sua materialidade é mais variada. O Muda entende suas ações como pequenos projetos efêmeros que modificam determinados espaços visíveis e invisíveis. A imagem é a do objeto novo, ativador dos espaços em suas várias escalas.

Nos três coletivos, no entanto, as imagens criadas são matéria e ao mesmo tempo discurso, que alimentam e evidenciam as ausências da cidade. Essas ausências estão essencialmente pautadas no espaço pú-blico. Por serem ausências coincidentes, é que a escolha dos coletivos se justifica neste trabalho. Esse espaço ausente, que também é espaço urbano, se coloca como o campo estratégico para construção do pen-samento ou situação que dê conta do múltiplo e do comum. Pois é no espaço urbano em que ocorrem fluxos, circulações, mobilidade am-pliadas, encontros e desencontros, fenômenos e realidades fundantes para a realização das ações.

Uma dimensão presente em todos os três trabalhos, é a da brincadei-ra. O brincar, para os coletivos analisados, é entendido como prática. Para mim é também metáfora bastante saudável para o rompimento de segregações espaciais, sociais e geracionais. Várias das práticas de-

potência visível

o brincar

o espaço público

a imagem

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senvolvidas no território da cidade, constituem uma busca por expe-rimentar a cidade como campo de ação, de possibilidades criadoras, onde podem ser reinscritas as histórias cotidianas. A cidade, a partir dessas práticas, se constitui um grande parque, lugar de brincadeiras que, apesar de divertidas, revelam-se como muito sérias na medida em que ora questionam, ora evidenciam as relações sociais sobre o urbano e a nós mesmos.

A potência invisível de cada trabalho está na transformação de menta-lidade das pessoas através da possibilidade da experiência. Essa expe-riência é proposta ativa e ocorre, em todos os casos estudados, como proposta sobre o espaço público. É o modo como buscam criar essa nova experência de território, a partir do simbólico, que potencializa a transformação e a tomada de consciência. Entendi que é possível, somente a partir da experiência, a criação de novos personagens e a reinvenção do espaço-social. Ou seja, transformar mentalidades e fa-zer mais pessoas conscientes da dimensão comum, coletiva e humana dos espaços da cidade.

Ao mesmo tempo, a potência das ações se completa com a possibilida-de da circulação desses imaginários construídos. Entendo que, quan-do alcançam representação, os trabalhos podem adquirir vida própria e serem multiplicados em outros meios e contextos distintos da ação inicial. Por meio de protótipos de transformação do espaço urbano, contribuem para construção social de outras formas de pensar e agir sobre o espaço da cidade.

Quanto ao conceito do próprio fazer coletivo, apresentado no traba-lho com suas várias dimensões e localidades, hoje se torna fundamen-tal repensar o próprio conceito de sociedade. Novas relações sociais

potência invisívela experiência

a circulação

o fazer coletivo

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se concretizam, múltiplas e transversais, já que elas contemporanea-mente se fazem em rede, conexão e movimento. Além disso, a obsoles-cência programada do trabalho desses coletivos se mostra como algo supreendentemente necessário e livre de conotação negativa, a partir do momento em que permite diferenciá-los de outros tipos de associa-ções formais menos transformadoras.

Como evidenciado pelas experiências na Espanha e pelos relatos dos coletivos estudados, trabalhar com outros e em rede – além da tran-versalidade de várias disciplinas que contribuem entre si nas suas com-petências – possibilita que a intervenção urbana que ali surja seja par-te de uma experiência comunicatica que se despegue de ser apenas do entorno imediato para se concretizar em um cenário cotidiano mais amplo. A possibilidade de divulgação por meio de plataformas online, igualmente à vontade de alguns grupos e indivíduos em organizar, re-gistrar a ação, criar manuais para replicação de ações são fundamentais para a corroborar para essa circulação de práticas urbanas.

Em São Paulo, é provável que muitas intervenções artísticas na cidade se percam rapidamente em seus fluxos. Mas acredito que esse fato não impede de maneira alguma que os coletivos de ação urbana chamem a atenção para suas questões ao agir taticamente em situações de conflito.

O que pude perceber é que a circulação se faz pesente, mesmo que de forma inicial, a partir da constatação de que uma rede de coletivos existe e se conhece entre si, como exposto neste trabalho. Essa exis-tência garante a abertura de uma plataforma de dicussão em diversos níveis e contribui para a ideia de que os coletivos entendam que estão inseridos em um contexto mais amplo de ação sobre esse lugar comum com o qual podem partilhar e se apoiar entre si.

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Em resumo, as práticas dos coletivos analisados, assim como as outras intervenções sobre o espaço público das cidades pontuadas no traba-lho são acontecimentos urbanos que, enquanto fatos empíricos expe-rimentais, partem da informalidade ou do efêmero para transformar as realidades e realções existentes.

Para mim, elas se configuram, portanto, como a transição para uma efetiva apropriação coletiva da cidade, nas potências visíveis e invisí-veis que constroem para a cidade e pessoas. O fenômeno, da maneira como acredito, foi apresentado e discussão começada. No entanto, a conclusão que coloco aqui é inacabada, pois essas ações sobre a cidade – os imaginários emergentes, tal como esse tempo coletivo e sentimen-to do comum – a euforia, estão em permanente transformação.

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Inteligencias Colectivas (Espanha) – www.inteligenciascolectivas.org/

Left Hand Rotation (Espanha) – www.lefthandrotation.com

Lotes Vagos – http://lotevago.blogspot.com.br

Micrópolis – www.micropolis.com.br

Movimento Boa Praça – www.facebook.com/movimentoboapracaantigo

MUDA_coletivo – www.facebook.com/MUDAcoletivo

Paisaje Transversal (Barcelona) – www.paisajetransversal.com/

Partizanning (Rússia) – http://eng.partizaning.org

Project for Public Spaces (Nova York) – www.pps.org

Recetas Urbanas (Barcelona) – www.recetasurbanas.net

Revista Contravento – http://contravento.tumblr.com

Revista Pise a Grama – http://piseagrama.org

Rios e Ruas – http://rioseruas.com

Sampa Criativa – www.sampacriativa.com.br

SampaPé – www.sampape.com.br

Supersudaca (Chile) – http://supersudaca.org

The Social Life of Small Urban Spaces – http://vimeo.com/6821934

Think Commons – http://thinkcommons.org

TXP (Espanha) – www.todoporlapraxis.es

Urban Tactics (França) – www.urbantactics.org/home.html

UrbanThinkTank (Caracas, São Paulo, NY, Zurich) – www.u-tt.com

Urbano humano (Colômbia) – http://urbanohumano.org

Vapor324 – www.vapor324.com

Vazio S/A – www.vazio.com.br

VIC (Madrid) – www.viveroiniciativasciudadanas.net

300.000 Km (Barcelona) – www.300000kms.net

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Agradeço aos coletivos entrevistados, em especial ao Mister, Angela, Marcella e Joana, por me inspirarem pela generosidade, poesia e potência de seus trabalhos para a cidade e para as pessoas.

À Ana Barone, por ter acompanhado a jornada inicial deste trabalho e ao Jorge Bassani, por aceitar o convite e ter me conduzido no momento principal desta caminhada.

Aos meus pais, pelos valores ensinados e por continuarem sendo minha essência, ainda que com a saudade.

À Sâmia, pelo amor e energia diários.

Aos amigos André, Bernardo, Caio, Leo e Leila, pela companhia, conversas e alegrias neste último ano.

À Anelise, à Camila, ao João e à Selma, por serem minha família por aqui, pelo aprendizado em conjunto na FAU e por dividirem durante esses 6 anos, as lições de viver a cidade.

E ao Kim, pela companha, crítica, cuidado e, simplesmente, pela vontade constante de me fazer imaginar.

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fontes: garamond e univers papel: polen bold 90gjunho de 2014

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