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COORDENADORA:

Maria Alexandre Lousada

AUTORAS:

Ana Isabel Vasconcelos

Jani Maurício

Memórias literárias

da vida provincial antologia comentada

(1840-1926)

Centro de Estudos Geográficos Universidade de Lisboa

2013

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Obra produzida no âmbito do projecto de investigação:

Vida cultural em cidades de província. Espaço público, sociabilidades e representações (1840-1926), desenvolvido no CEG-UL, CET-UL, CHAM-UAç e CIDEHUS-UE

e apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com a referência PTDC/CS-GEO/100726/2008

FICHA TÉCNICA Título: Memórias Literárias da Vida Provincial: antologia comentada (1840-1926)

Coordenadora: Maria Alexandre Lousada

Autoras: Ana Isabel Vasconcelos e Jani Maurício

Composição & Paginação: Jani Maurício

Concepção da capa: Jani Maurício

Edição: Centro de Estudos Geográficos, Universidade de Lisboa

Lisboa, Julho de 2013

ISBN – 978-972-636-236-4

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ÍNDICE

Nota de apresentação .................................................................................................... 9

Introdução................................................................................................................... 11

Angra do Heroísmo .............................................................................................. 15 As comemorações do 22 de Junho de 1828 nos séculos XIX e XX................................... 17 Os costumes terceirenses na produção literária dos autores locais ................................ 21 Os usos e costumes locais no olhar do forasteiro ........................................................... 25

Aveiro .................................................................................................................... 27 A comemoração cívica e a festa popular aveirenses....................................................... 29 O povo aveirense na obra dos autores locais ................................................................. 31 As representações da cidade nas narrativas dos visitantes ............................................. 33

Beja ....................................................................................................................... 37 A visita régia a Beja em 1843 ........................................................................................ 39 A polémica em torno do ensino eclesiástico em Beja ...................................................... 41 Um olhar de relance sobre a antiga Pax Julia ............................................................... 45

Braga ..................................................................................................................... 47 O espaço público e as manifestações da devoção ........................................................... 49 Os tipos sociais de Braga e os seus modos de vida......................................................... 51 O processo de modernização da cidade de Braga .......................................................... 54

Bragança ............................................................................................................... 59 As salas de espectáculos e o Museu Municipal de Bragança .......................................... 61 A cidade como motivo de exaltação e sátira na obra dos autores do distrito .................. 64 A cidade de Bragança nas narrativas de viagem ............................................................ 67

Castelo Branco ...................................................................................................... 71 A festa religiosa e a comemoração laica em Castelo Branco ......................................... 73 A biblioteca, o teatro e a filarmónica albicastrenses ...................................................... 76 O urbanismo, as infraestruturas e a população da capital da Beira Baixa ..................... 79

Coimbra ................................................................................................................ 81 A procissão de 3 de Julho e o Centenário da Sebenta .................................................... 83 As memórias da cidade e da vida académica coimbrã ................................................... 86 As impressões da princesa Rattazzi sobre a cidade de Coimbra em 1879 ....................... 90

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Évora ..................................................................................................................... 93 Emergência e configuração do Teatro Garcia de Resende ............................................. 95 A intervenção de José Cinatti no espaço urbano e no património eborense ................... 98 Uma visita guiada pela cidade museu ......................................................................... 102

Faro ..................................................................................................................... 105 A inauguração do caminho-de-ferro e as festas da cidade de Faro .............................. 107 As actividades culturais do liceu de Faro .................................................................... 108 As impressões da capital algarvia nas primeiras décadas do século XX ...................... 112

Funchal ................................................................................................................ 115 A visita régia de 1901 e o centenário da descoberta da Madeira em 1922 ................... 117 A influência da cidade na obra literária dos autores locais ......................................... 119 A cidade do Funchal na perspectiva dos visitantes ...................................................... 122

Guarda................................................................................................................. 127 As celebrações de âmbito local nos séculos XIX e XX .................................................. 129 A produção lírica e memorialística dos autores guardenses ........................................ 133 A cidade da Guarda observada por Unamuno ............................................................. 135

Horta.................................................................................................................... 139 A visita régia à cidade da Horta em 1901.................................................................... 141 A cidade da Horta nas Notas açorianas de Ernesto Rebelo .......................................... 144 As impressões de Raul Brandão sobre a cidade da Horta ............................................ 147

Leiria ................................................................................................................... 149 As festividades ligadas ao teatro e à instrução na cidade de Leiria ............................. 151 Os costumes locais retratados na ficção romanesca .................................................... 153 A letargia da vida provincial e o Castelo de Leiria ...................................................... 155

Ponta Delgada ..................................................................................................... 161 As comemorações consagradas à memória dos notáveis locais ................................... 163 A intervenção de António Feliciano de Castilho em Ponta Delgada ............................ 166 Uma visita a Ponta Delgada em 1893 ......................................................................... 169

Portalegre ............................................................................................................ 173 A emergência das Festas da Primavera na cidade de Portalegre ................................. 175 As memórias centradas nas figuras locais ................................................................... 177 As actividades culturais e os elementos urbanísticos nas notas de viagem ................... 180

Porto .................................................................................................................... 185 As comemorações centenárias na cidade Invicta ......................................................... 187 O Porto na produção ficcional e memorialística dos literatos locais ........................... 191 A sociedade portuense nas narrativas de viagem ......................................................... 195

Santarém ............................................................................................................. 199 A feira franca e o culto da memória dos vultos das letras em Santarém ....................... 201 Os modos de vida e a transformação dos costumes escalabitanos................................ 205 Uma cidade monumental e progressista ...................................................................... 208

Setúbal ................................................................................................................. 211 As comemorações setubalenses em homenagem aos autores locais ............................. 213 As manifestações de defesa do património local .......................................................... 216

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As impressões da cidade de Setúbal no século XIX ...................................................... 219

Viana do Castelo ................................................................................................. 223 A Romaria da Senhora da Agonia e os bordados vianenses ......................................... 225 As polémicas fomentadas pela intelectualidade local ................................................... 228 A cidade de Viana do Castelo nas narrativas de viagem .............................................. 232

Vila Real ............................................................................................................. 235 A Feira dos Pucarinhos ............................................................................................... 237 As memórias da vida cultural e lúdica de Vila Real ..................................................... 238 As narrativas centradas nos aspectos urbanísticos da vila ........................................... 242

Viseu.................................................................................................................... 245 A visita régia de 1882 e as festividades tradicionais .................................................... 247 A população e a vida sociocultural da cidade de Viseu no século XX ........................... 250 A cidade sob o olhar de um viseense e de um visitante ................................................. 253

Índice de autores ....................................................................................................... 257

Fontes ....................................................................................................................... 259

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NOTA de APRESENTAÇÃO

Maria Alexandre Lousada

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INTRODUÇÃO

Quando nos propusemos tratar a vida cultural das cidades de província, dedicámos grande parte da nossa atenção à produção literária originada pelos seus habitantes, efectuando um levantamento exaustivo destinado à elaboração de um catálogo bibliográfico que denominámos Guia geo-bibliográfico de autores. Ao privilegiarmos a actividade nas letras desenvolvida pelos escritores locais, pretendemos disponibilizar um instrumento de pesquisa dedicado aos estudos literários, indiciador do dinamismo cultural de cada um dos meios urbanos visados.

A par das obras originadas em cada cidade, interessava-nos ainda conhecer como esses territórios específicos foram tematizados na literatura da época, impondo-se, nessa medida, a necessidade de contemplar um conjunto de produtos culturais que extravasam as obras dos literatos locais e que, captando a feição assumida por cada cidade no período lato de 1840 a 1926, se revestem de um conteúdo relevante para o conhecimento da história local.

Com o intuito de facilitar o acesso a uma porção significativa dessas obras inspiradas nas cidades de província e que se encontravam dispersas, apresentamos esta antologia comentada sob o título de Memórias literárias da vida provincial. Aqui se reúnem diversos excertos de textos publicados em volume ou na imprensa e que têm como ponto comum a representação de temáticas centradas nos aspectos culturais, sociais e urbanísticos das 21 cidades de província capitais de distrito.

À finalidade primordial de complementar o trabalho desenvolvido com o Guia geo-bibliográfico, aliaram-se alguns objectivos específicos que orientaram esta recolha e selecção dos produtos literários que, de forma concreta, focam a vida provincial com ocorrência em meio urbano.

Se, por um lado, se pretendeu dar a conhecer parte da produção literária de alguns autores visados no referido catálogo bibliográfico, por outro lado, intentou-se o aproveitamento de um conjunto de material levantado nesse trabalho inicial, mas cuja inclusão não se adequava aos critérios estabelecidos. Tratando-se

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estes de textos produzidos por autores que não viveram nem participaram na vida cultural das cidades que retrataram, não podendo assim ser assumidos como representativos dos produtos literários gerados pelos habitantes desses meios geográficos, o conteúdo dos seus escritos permitiu-nos sintetizar a relação entre o “espaço público”, as “sociabilidades” e as “representações” – principais questões visadas pelo projecto de investigação no qual esta antologia comentada se insere.

Neste sentido, procedemos a uma recolha sistemática dos textos que à época materializaram e fizeram circular representações das várias facetas da vida urbana provincial, transmitindo uma visão da cultura ampliada à sua relação com a sociedade e os espaços de uso colectivo, que foca diversas práticas de tipo cultural e lúdico ou que, de outro modo, elucida acerca dos seus contextos espácio-sociais de ocorrência.

Trazendo à luz uma variedade de autores que, embora maioritariamente hoje considerados “menores”, na sua época obtiveram reconhecimento – muitos deles possuindo uma obra de considerável qualidade literária –, o conjunto de textos contemplados nesta antologia assume ainda relevância do ponto de vista documental, dada a sua riqueza informativa para uma reconstrução das dimensões social, cultural e material da vida urbana.

Exigindo um olhar crítico, devido à perspectiva pessoal e ao cunho ficcional que tantas vezes surgem aliados às descrições da realidade, e incidindo tanto nas singularidades quanto em alguns eventos que se repetem em distintos meios citadinos do território nacional, estas memórias literárias representam um contributo significativo para o conhecimento de uma história geral do país entre a segunda metade do século XIX e a implantação da ditadura militar, constituindo-se ainda como fontes de apoio essenciais à investigação histórica de âmbito local.

Com incidência directa nas cidades de província capitais de distrito, os produtos literários contemplados nesta antologia facilitam ainda um entendimento das permanências e das transformações decorridas nesses meios geográficos. Sendo, normalmente, representativas da vida tradicional – ao retratarem costumes seculares como as festividades religiosas ou as feiras francas anuais –, por vezes, as obras revelam os sinais de modernidade surgidos com o século XIX. É o caso dos textos que têm por temática a festa cívica ou, ainda, as alterações do aspecto físico da cidade, dando conta da emergência e proliferação de novos equipamento culturais e novos lugares de sociabilidade, como os cafés e as associações de carácter cultural e recreativo, que implicaram a reformulação das práticas ligadas à cultura e das formas de relacionamento e de lazer.

Dada a importância atribuída às evocações da época, transmitidas quer pelos autores naturais da cidade que retratam

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quer pelo olhar do visitante, no que respeita às tipologias literárias selecionadas, foram privilegiados sobretudo textos do género memorial e narrativas de viagem. Embora em menor medida, contemplaram-se ainda alguns textos ensaísticos e dos géneros lírico, dramático e romanesco, em virtude da sua capacidade informativa.

Relativamente aos critérios de transcrição, foi respeitada a ortografia da época. No sentido de tornar os textos mais apelativos à leitura e por uma economia de espaço, impôs-se realizar um trabalho de edição que correspondeu, essencialmente, à supressão de alguns excertos sem relevo para a compreensão das temáticas a que reportam os textos compilados.

Repartidos por 21 capítulos correspondentes às distintas cidades de província, para uma organização do conjunto dos textos seleccionados e seus conteúdos, estes foram agrupados em 3 secções a partir das quais se enuncia o tema ou as temáticas específicas a que os mesmos aludem, fazendo-se ainda acompanhar cada um dos excertos transcritos de um comentário que pretende elucidar o leitor acerca da situação de enunciação, do conteúdo de cada texto e do seu valor informativo.

Fazendo-se assim corresponder as secções de cada capítulo a um grupo temático comum, na primeira secção conferiu-se sobretudo atenção às manifestações festivas de carácter público que estimularam a sociabilidade e frequentemente deram azo a produtos e a eventos culturais. Incluindo acontecimentos do foro tradicional, como as feiras francas e outras festividades relacionadas com a religião e a monarquia, como as procissões, as romarias e as visitas régias, neste grupo temático integraram-se ainda as descrições e os produtos literários originados por alguns eventos introduzidos com a modernidade.

Por sua vez, incidindo sobretudo na sociedade e nos espaços de uso colectivo – como o passeio público, a escola, a biblioteca e o museu –, na segunda secção atendeu-se aos produtos literários que incidem nos costumes, nas práticas e nos equipamentos de função cultural e recreativa, privilegiando-se na maioria dos casos as obras produzidas pelos autores locais. Ainda neste grupo temático couberam alguns textos centrados na biografia de diversas personalidades nascidas nas cidades de província ou que aí desempenharam uma acção de relevo.

Por fim, na terceira secção reuniram-se diversos testemunhos que dão a conhecer a visão do “outro” ou as perspectivas da cidade observada pelo visitante. Difundidas em narrativas de viagem publicadas na época em volume e, ainda, frequentemente, na imprensa lisboeta, essas percepções recolhidas em terra alheia privilegiam as descrições panorâmicas do espaço urbano ou os relatos centrados nas singularidades de cada cidade e que, ainda que imbuídas de subjectividade, devem ser consideradas do ponto de vista quer da sua permeabilidade quer do seu efeito na produção

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de representações consensuais da realidade. Partilhadas as questões que orientaram a elaboração deste

volume antológico no qual reunimos uma série de produtos literários cujo valor realçámos através de comentários fundamentados numa plêiade de fontes e obras de referência que auxiliaram esta investigação, esperamos estimular a emergência de estudos que permitam aprofundar as abordagens que aqui focamos e que podem ser aplicadas quer à escala local quer ao nível de uma história sociocultural contemporânea.

Jani Maurício

Ana Isabel Vasconcelos

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ANGRA do HEROÍSMO

As comemorações do 22 de Junho de 1828 nos séculos XIX e XX

Os costumes terceirenses na produção literária dos autores locais

Os usos e costumes locais no olhar do forasteiro

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As comemorações do 22 de Junho de 1828 nos séculos XIX e XX

Quando no relogio da catedral soáva a meia noite do dia 21 de Junho uma nuvem de foguetes estalando nos áres annunciou aos Angrenses que ía principiar o ultimo anno do terceiro lustro d’aquelle dia de gloria. Logo depois as vozes alégres dos sinos das igrejas e camaras da cidade, deram as bôas vindas á aurora de um dia feliz e risonho; e uma alvorada de harmoniosos concertos de musica, percorrendo as ruas da cidade ía interrompendo o somno dos seus habitantes como um d’aquelles sonhos deliciosos em que a imaginação nos esta fazendo ouvir lá ao longe as vozes de anjos, as harmonias do ceu. Nas janellas da sala da camara, cobertas de colchas de damasco carmezim, no meio das quaes em campo de setim azul orlado de galões de prata se lia em letras de ouro – 22 de Junho de 1828, tremolava o estandarte municipal. Nos castellos de S. João Baptista e S. Sebastião tambem estava arvorada a bandeira portugueza, e na residencia de cada um dos consules a da sua respectiva nação. Quando as torres das igrejas davam signal do meio dia que quasi éra abafado pela voz rouca de um grande sino que trazido lá da villa de Santarem onde, por espaço de seculos, tinha feito soár aos ouvidos de seus habitantes brados óra de tristeza, óra de alegria, fôra collocado neste mesmo dia na sineira da cathedral, milhares de foguetes lançados por quasi todos os cidadãos, que para isso se tinham ajustado, estaláram nos áres a um tempo, toldados por nuvens de fumo, que ainda éram augmentadas pelo dos canhões que tambem salvávam no castello e n’um navio mercante que estava surto no porto. Tudo isto produzia um alvoroço e estrondo tão alegre e festivo que inspiráva um involuntario enthusiasmo ainda áquelles a quem faltavam motivos de alegria. Mas nada tão bello como o painel que então se nos offereceu no derrocado castello de S. Luiz, que a cavalleiro da cidade, sobre um alto rochedo, e apinhado de gente que fervia entre as suas ruinas, nos appresentou por longo espaço de tempo o vistoso espectaculo de um vivo tiroteio.

De tarde houve corrida de touros de corda pelas principais ruas da cidade dados pelo Exm.º Visconde de Bruges, e commendador A. A. dos Santos, e saídos da rua de S. João. Houve innumeravel concurso de gente; e que lindo espectaculo não éra vêr da rua da Sé, os borbotões de gente que fogindo, e correndo em altos gritos como uma impetuosa torrente, saía da boca da rua de S. João, e em dous redomoinhos se espraiava para cima, e para baixo ao longo da mesma rua da Sé e depois recuava, e como maré vazante parecia ir-se escoando outra vez pela embocadura da rua de S. João, repetindo-se muitas vezes esta scena até que em fim depois de exgotada a multidão apparecia um claro, e logo desembocava um touro grande e temeroso que parava olhando com arrogancia para uma e outra banda

Resgatando do esquecimento em que havia decaído a data da revolta liberal que teve lugar em Angra do Heroísmo em 22 de Junho de 1828 e em virtude da qual foi restaurado o liberalismo na ilha Terceira, que viria a transformar-se num centro da resistência liberal, organizou-se na cidade, em 1842, uma série de festividades, às quais se refere a narrativa aqui transcrita e que visavam comemorar de uma forma condigna o 14º aniversário desse acontecimento. Constituindo um importante evento da história local, cujos efeitos foram decisivos para o triunfo da causa liberal no país, a sublevação liberal de 22 de Junho de 1828 alia-se à construção e manutenção de uma representação específica da cidade de Angra do Heroísmo, associada à bravura dos seus habitantes e como território defensor da Liberdade, concepção que é realçada e legitima esta comemoração.

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e voltando com desprezo a cabeça a quem de longe o açulava, e dando couces para a direita, e para a esquerda quando sentia as picadas das garrochas com que os rapazes lhe atiravam, mas afinal ensoberbecido, e furioso voava como raia em seguimento do toureador que o aguilhoáva de frente e metendo-lhe um galho imbravecido por entre as pernas o guindava aos ares donde, depois de dar duas e trez voltas, caía ao chão sem sentidos, entre as vozearias e aplausos da gentalha que nadando em prazer dizia: Oh! bello touro, como aquillo não ha nada. […]

A solemnidade do dia foi rematada com a representação de um drama e de uma farça mui jocosa no Theatro Angrense, que durou até ás duas horas da noite, ficando todos mui satisfeitos com a festividade do dia, a que nada faltaria para ser equiparada ás maiores solemnidades publicas se uma parada militar, e Te-Deum na cathedral, tivessem accrescido à pompa do dia: mas bem haja a camara municipal desta cidade que levada de um nobre sentimento de patriotismo acaba de pedir a S. Magestade se digne mandar declarar de grande gala, ao menos para esta ilha Terceira, este dia, bem como os de 11 de Agosto, e 3 de Março, tão gloriosos nos annaes da liberdade, e historia insulana.

“O dia 22 de Junho”. O Anunciador da Terceira. N.º 10, 1842, pp. 2-3.

Os festejos commemorativos da data gloriosa de 22 de junho de 1828, que a historia d’esta ilha Terceira regista em paginas brilhantes, foram, com certeza, a prova mais evidente, a mais cabal affirmativa de que conservamos, e conservaremos sempre, inabalaveis os sentimentos liberaes, que herdámos dos nossos antepassados, e que nunca esquecemos os enormes sacrificios d’aquelles, que tanto luctaram para acabar com o odioso jugo do absolutismo, e implantaram o systema liberal, que tão orgulhosamente gosamos.

N’um d’esses momentos, em que a todos chega o convencimento, de que é necessario mostrar, que não nos esquecemos do passado, tomou a iniciativa das festas commemorativas, que acabam de se realisar, o liberal convicto, nosso presadissimo amigo e collega nas lides da imprensa, Alfredo Luiz Campos, que depois de consultar um avultadissimo numero de cavalheiros d’esta cidade, que gostosamente adheriram ao pensamento de se solemnisar

aquella data brilhante, convocou a reunião liberal, que se realisou no dia 22 de maio findo, e em que foi eleita a grande commissão presidida pelo nosso distincto conterraneo ex.mo Theotonio Simão Paim d’Ornellas Bruges, filho d’um dos maiores e mais illustres heroes das luctas civis, que então se travaram.

Nomeou esta commissão a sua commissão executiva, dando a respectiva presidencia ao ex.mo sr. Dr. João de Mendonça Pacheco e Mello, illustre graciosense, e que n’esta cidade occupa uma elevada posição social.

Estavam dados os primeiros passos, e assim via já o nosso amigo Alfredo Campos coroados da perspectiva do melhor exito as energicas diligencias por elle empregadas, para a realisação d’aquellas festas commemorativas.

Discutido e approvado o programma das festas a levar a effeito, começaram logo as sub-commissões nomeadas os respectivos trabalhos, e da forma brilhante e enthusiastica como tudo correu, vamos fazer uma resumida descripção.

Revestidas de maior grandiosidade, as comemorações do 22 de Junho de 1828, agora designadas como “festas liberais”, celebraram-se, em 1902, com três dias de festividades, no decurso das quais se realizou um cortejo cívico que se dirigiu ao cemitério local para homenagear os mártires da revolta liberal. Organizada por uma comissão local nomeada pela Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, esta celebração motivou ainda a publicação do volume Ilha Terceira, com o qual se pretendia preservar a memória desta ilha como uma “terra eminentemente liberal”.

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Dia 21 de junho

Pelas 9 horas da noite, e depois de serem lançados do monumento de D. Pedro IV os foguetes, legado do inolvidavel liberal João Francisco d’O1iveira Bastos, foi illuminado o mesmo monumento, rompendo ali a phylarmonica Recreio dos Artistas com o hymno de D. Pedro IV, tocando depois os hymnos nacionaes: atroou os ares uma enorme girandola de foguetes, e soltaram-se enthusiasticos e ruidosos vivas á liberdade, os quaes se repercutiam por toda a cidade, onde era numerosa a concorrencia.

Ao mesmo tempo que, no monumento de D. Pedro IV, se passava o que deixamos dito, a phylarmonica Popular Angrense rompia no Largo 22 de Junho, com o hymno d’aquelle augusto monarcha, subindo ao ar uma grande girandola de foguetes, tocando depois a mesma phylarmonica os hymnos de D. Maria II, da Carta e Angrense, sempre acompanhados de estrondosos vivas á liberdade, á patria e á familia real, que eram acompanhados por milhares de pessoas, que ali se encontravam.

A Recreio dos Artistas sahindo do monumento em marcha aux flambeaux seguiu pelas ruas do Outeiro, Desterro, S. Francisco, Cruzeiro e D. Amelia, sempre acompanhada de grande numero de pessoas, que repetidamente davam enthusiasticos vivas, parando em frente do Paço Municipal, onde se achava já postada a Popular Angrense, que, depois de percorrer as ruas do Duque de Palmella, Espe-rança, Largo do Prior do Crato, Direita e Praça da Restauração, tambem para ali se dirigiu. Aqui foram delirantes as demonstrações de regosijo e repleto de enthusiasmo o modo por que foram acompanhados com vivas os hymnos nacionaes, que as duas phylarmonicas tocaram.

Seguiram depois as phylarmonicas pelas ruas da cidade, onde a concorrencia era enorme, ouvindo-se constantemente o estalar dos foguetes, calorosos vivas e applausos delirantes.

Dia 22

Pelas 5 horas da manhã, no Largo 22 de Junho, romperam a alvorada as phylarmonicas Recreio dos Artistas e Popular Angrense, lançando-se muitas girandolas de foguetes e dando-se muitos vivas á liberdade. Em seguida percorreram estas phylarmonicas as ruas da cidade, acompanhadas de muito povo, que continuou a dar calorosos vivas á liberdade e á patria.

Pelas 11 horas realisou-se na real capella da egreja do Collegio a celebração d’uma missa, suffragando a alma de todos os portuguezes fallecidos nas luctas civis.

Imponentissimo este acto, a que assistiram quasi todos os funccionarios publicos; o regimento de infanteria 25, na sua maior força, officialidade da guarnição, associações e corporações d’este districto, pessoal da repartição de saude, corpos docentes do Lyceu e da Escola Districtal, escolas primarias, pessoal da alfandega, capitania do porto, emfim, uma concorrencia extraordinaria do elemento official, achando-se o templo apinhado de damas e cavalheiros, como poucas vezes succede em actos d’esta natureza.

Á frente do cortejo ia a antiga bandeira do municipio angrense conduzida pelo sr. Dr. Pedro Paim de Bruges, seguindo-se os estabelecimentos de instrucção, camaras municipaes d’Angra e Praia, srs. commendador João Jorge da Silveira e Paulo, Ildefonso Borges, e Antonio Miguel da Silveira Moniz, que representavam as camaras das Velas, Santa Cruz da Graciosa e Calheta, etc., etc.

Conduziam as corôas a depôr nos tumulos, no cemiterio do Livramento, os srs. Theotonio Paim d’Ornellas Bruges, João de Mendonça Pacheco e Mello, Jacome de Bruges e Severiano de Bettencourt.

Atraz do prestito tocava a phylarmonica Recreio dos Artistas. Chegado o imponente cortejo ao cemiterio, onde um consideravel numero de pessoas o aguardava,

foram depostas as corôas nos jazigos do grande heroe da liberdade, 1.º Conde da Praia da Victoria, dos benemeritos João Francisco d’Oliveira Bastos e Nicolau Anastacio de Bettencourt, bem como na valla commum.

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Cumprido este preito de homenagem fallaram os srs. Diogo Paim de Bruges, Alfredo Luiz Campos e o empregado commercial Joaquim d’Oliveira, em nome da classe dos caixeiros, apresentando, todos, optimos discursos, que muito agradaram, sendo por isso repetidas vezes applaudidos com prolongadas salvas de palmas.

Depois d’isto organisou-se novamente o cortejo, que seguiu pelas ruas de D. Carlos e D. Amelia até ao Paço Municipal, onde foi lido e assignado o auto commemorativo, que ali tem de ficar archivado, tocando durante estes actos a phylarmonica Popular Angrense.

Dia 23

Em consequencia do mau tempo que fez na noite do dia 22, ficaram tranferidas para o dia 23 as illuminações e marcha aux flambeaux.

N’este dia a noite apresentou-se serena, sendo extraordinaria a concorrencia por todas as ruas da cidade, principalmente na rua da Sé, Duque de Palmella, Largo 22 de Junho e Praça da Restauração, onde se viam vistosas illuminações, d’um effeito deslumbrante.

Pelas 9 horas da noite, no largo contiguo ao palacio dos Condes da Praia da Victoria, rompeu a phylarmonica Popular Angrense com os hymnos nacionaes, subindo ao ar grande numero de foguetes e dando-se repetidissimos vivas á liberdade. Em seguida a estas demonstrações de regosijo fallaram primorosamente os srs. Dr. Antonio da Fonseca Carvão Paim da Camara e José Vieira d’Areia, sendo os seus discursos ouvidos com grande aprazimento e applausos.

Era elevado o numero de damas, que se achavam presentes. Depois d’isto o grande numero de pessoas que ali se encontrava seguiu em marcha aux flambeaux

até ao Largo 22 de Junho, onde fallou o nosso amigo Alfredo Luiz Campos, que foi delirantemente applaudido.

Findo este discurso e sempre com verdadeiras demonstrações de alegria, foi o cortejo collocar, na janella central do Paço Municipal, a bandeira portugueza, que tinha sido conduzida no mesmo cortejo.

Era mais de meia noite e ainda se conservavam nas ruas da Sé, onde tocava a Recreio dos Artistas, no Largo 22 de Junho, onde tocava a Popular Angrense e na Praça da Restauração, onde tocava a banda regimental, quasi o mesmo numero de pessoas, que ali se encontrava na hora em que as festas estavam no seu maior auge, o que demonstra quanto a todos era agradavel o que se estava ali passando, e só depois da uma hora é que começou a dispersar a grande multidão.

Por esta occasião um consideravel numero de manifestantes foi ao Paço Municipal buscar a bandeira portugueza, que ali horas antes tinha sido collocada em uma das janellas, e organisando novo cortejo percorreram varias ruas da cidade, dando vivas á Liberdade, a El-Rei, á Familia Real, á Patria, ao Exercito, á Marinha, etc. Um verdadeiro delirio de enthusiasmo!

E tendo os manifestantes encontrado no percurso o nosso amigo, sr. Alfredo Luiz Campos, iniciador d’estas festas, fizeram-lhe uma calorosa manifestação, que elle n’um breve improviso agradeceu cheio do maior reconhecimento, deixando a todos que o ouviram as mais lisongeiras impressões do seu valor intellectual e das arreigadas convicções liberaes, que intransigentemente professa.

Ao findar foi o orador freneticamente victoriado, e apesar das suas instancias em contrario não conseguiu que deixassem de o acompanhar até á casa da sua residencia, o que agradeceu altamente commovido, recebendo, outra vez, grandes applausos.

Assim findaram as festas d’este dia, cuja recordação jámais se apagará da mente de todos os que professam verdadeiros sentimentos liberaes.

Ilha Terceira. As Festas Liberais em 22 de Junho de 1902, 1902, pp. 121-6.

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Os costumes terceirenses na produção literária dos autores locais

Elmano Josino Silvano Mordomo das festas no corrente ano, Por influxos do rabo do comêta Que tem sido visivel na gazêta, Faz saber a todos os habitantes Machos, femeas, sabios e pedantes Desta cidade d’Angra do Heroismo Que vendo no seu velho catecismo O explendor, o brilho, a devoção Com que se festejou sempre a S. João Se congratula em tão feliz instante Para fazer, um brinco assaz brilhante; E para que todos saibam o que tem de ser Prestem atenção ao que eu vou dizer:

No dia vinte e dois do mez de Junho Em que Angra á liberdade poz o cunho Começarão os inclitos festejos Que teem de preencher nossos desejos Neste dia feliz logo ao raiar Ouvireis estrugir e estoirar Foguetes mil que o ar cortando Irão vosso heroismo anunciando; Mas não fica por aqui a maior graça, Que essa está p’ra ser na velha praça, Aonde haverá explendida função De fogo d’artificio e iluminação.

Ali vereis a piramide posta em pé Mais antiga que a arca de Noé Cheia de luzes de tres côres puras, Que vos hão de alumiar bem ás escuras; Mas posta com tanto engenho e arte Que dela sairão por toda a parte Sons de musica a mais sonora Que ha de ser uma coisa encantadora. Muito tereis que observar, muito que ver Mas nada ali achareis para comer; Mandai portanto guardar bem a ceia Para vos não parecer a noite tão feia

No dia vinte e tres hade haver toiros Que vos hão de fazer tremer os coiros; Olhae que eles não são para gracinhas Quando fazem seu uso das pontinhas;

Repartindo a sua vida entre a Praia da Vitória, localidade onde nasceu em 1876, e a cidade de Angra do Heroísmo na qual se viria a fixar em 1914, o escritor Gervásio da Silva Lima foi autor de uma vasta obra na qual visou, sobretudo, as figuras e os acontecimentos históricos da ilha Terceira, assim como os costumes açorianos. Dedicando-se à recolha de literatura popular terceirense, nesse âmbito fez publicar, em 1927, um volume intitulado Festas de S. João, obra na qual recolheu uma série de textos relativos a essa festividade, entre os quais se incluem diversas trovas conhecidas pela designação popular de “bandos”. Constituindo um dos mais antigos e peculiares folguedos da cidade de Angra do Heroísmo, o bando tinha por função anunciar à cidade os eventos, em cada ano, incluídos no programa das festas de S. João que desse modo era apresentado por um cómico transportado num carro de bois e que se fazia acompanhar por um conjunto de cavaleiros e peões mascarados. Dando conta do programa das festividades consagradas a S. João em 1843, transcreve-se aqui um bando extraído da obra de Gervásio Lima que foi recitado em Angra do Heroísmo a 13 de Junho desse ano, por um cortejo de anunciadores que reuniu acima de 60 cavaleiros e que percorreu as ruas da cidade, tendo como ponto de partida o pátio comendador António Tomé da Fonseca.

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E se um boléo não quereis de graça Deixai-os passear por toda a praça,

Uma dança gentil hade aparecer Que isso ha-de ter muito que vêr De gigantes, dizem que é composta, Cada um do tamanho duma lagosta. Na praça vereis quadrilhas belas De fingidos mancebos e donzelas E se bõa não fôr a mascarada Ficai certo que tudo foi charada

O dia, porem, de melhor função É do nosso milagroso Sam João! Dia de culto e de eternal memoria Que encerra a tradição que encerra a historia Neste dia vereis publica alegria; Anciosos todos, todos á porfia As janelas armando de verdes louros Como em sinal de bons agouros, Esperando pela hora da tourada, Que na praça hade ser cousa engraçada.

Ali vereis enorme toiro na grandesa A exercer as funções da Natureza E a rapar o chão com tanta graça Que aplausos levará da populaça! Esta scena gentil tão aplaudida Hade ser nos outros dias repetida;

Pois emquanto no mundo houver moiros Hão de por força gostar de toiros.

Depois de tantos dias de tourada Dizem tambem que teremos cavalhada, Uma meia seria ou burlesca Outra de pasta a pasta muito fresca! Se a primeira gorar ou não for avante A segunda está pronta num instante. Por ter vindo o Elmano da Andaluzia A melhor e mais fogosa cavalaria! Vós a vereis; ponde-vos álerta Mas não vos ponhaes co’a boca aberta!

Tenho-vos, meus amigos, anunciado Quanto o senhor Elmano tem mandado Ele espera de vós e de vós confia A paz e o socego de noite e dia E quem não tiver conduta bôa Achará o Rodrigues pela prôa, Que em metendo um sucio na cadeia Nesse dia melhor janta e melhor seia.

Agora tenho a pedir-vos um favor Que são tres vivas dados com fervor Viva a nossa rainha idolatrada E a Constituição sempre adorada; E vivam da Terceira os defensores Vivam e vivam sempre entre os louvores.

Gervásio Lima – Festas de S. João na ilha Terceira, 1927, pp. 23-7.

AO ROMPER da Alleluia, como se a treva do interior dos templos deixasse de envolver a cidade, echoam por toda a parte musicas, foguetes, salvas, cantorias, a banda regimental sopra o hymno da carta, no bastião sobranceiro á cidade, e desce do castello tocando as boas festas com que vae saudar o municipio.

Phylarmonicas de porta em porta lisongeam os socios protectores, e nas violas de arame o povo acompanha os primeiros descantes dos bailes populares.

É a victoria do verão sobre o inverno, do sol contra a bruma: o principio do «tempo da flôr» que celebravam as canções dos trovadores medievaes.

Começa o Espirito Santo, sete semanas de festas populares. Irmandades tiraram á sorte a quem pertenceria o Divino

Espirito Santo em cada semana; e a corôa de prata, com o

Da autoria do escritor e jornalista Faustino da Fonseca, natural da cidade de Angra do Heroísmo, esta narrativa constitui um dos relatos mais completos centrado em dois dos mais significativos costumes da sua terra natal – a Festa do Espírito Santo e a tourada à corda. Com uma forte expressão em Angra do Heroísmo, estes costumes foram ainda contemplados na obra dos autores terceirenses António Moniz Barreto Corte-Real, que, em 1842, publicou uma narrativa sobre as festas do Espírito Santo no jornal O Anunciador da Terceira, e por João Ilhéu, no seu volume Touradas e romarias, datado de 1928.

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respectivo sceptro, encimado por uma pomba, começa a ser exposta á adoração dos fieis. A habitação honrada pela visita enfeita-se, atapeta-se, adorna-se de cortinas, reposteiros, lustres,

candelabros, sedas e velludos que os ricos emprestam de boa vontade para maior brilho da devoção. Arma-se em capella o mais vasto aposento, põe-se a corôa n’um altar, radiante de luzes, de pratas e

de crystaes e todas as sete noites se reza ou canta diante d’ella um terço, acompanhado em côro pelos convidados:

« Bemdita, Bemdita Mil vezes e mais Ó Virgem purissima Bemdita sejaes».

Terminam rezando «pelos que andam sobre as aguas do mar» e por fim a corôa e o sceptro passam de mão em mão, sendo religiosamente beijados, tocando os devotos os olhos e a fronte com elles. Postos novamente os emblemas no altar, começam os bailes populares dos Açores, a Chamarrita, a Sapateia, o São Macaio, as Velhas, a Charamha, a Saudade cantadas á viola, ou as danças francezas acompanhadas ao piano.

O imperador, o irmão que tem o Divino em casa, ou o imperio, pavilhão ou kiosque, séde da irmandade, que realiza a principal funcção, distribuem bôdo aos pobres, matando para isso muitos bois e bezerros.

O gado destinado ao sacrificio é enfeitado de boninas pregadas com breu ao pello, testeiras e rabeiras de papel de côr, grinaldas de flôres ligando as pontas, uma bandeira entre ellas, desfraldada ao vento.

As rezes que vão a matar, e as vaccas que as acompanham para facilitarem a conducção, vão cheias de guizeiras e chocalhos.

Ranchos tocando e cantando, deitando foguetes e bombas, mantem á cacetada o gado que se espanta, quer fugir, e passa pelas ruas em tropel.

Levam-os adiante do imperio, á presença da corôa exposta nas casas terreas, e obrigam-os a ajoelhar em venia ao Divino, depois do que vão todos para o matadouro.

No sabbado ha arraial, illuminação e fogo de vistas, com muitas barracas onde se come e bebe, servindo de aperitivo ao vinho pernas de lagosta ou fava rica, franqueadas ao publico em grandes alguidares.

No domingo é o bodo e a coroação. Sae de casa ou do imperio a corôa, posta n’uma bandeja, entre alas numerosas de convidados, de

cabeça descoberta, empunhando tochas. Precede-a uma bandeira de damasco vermelho franjada a ouro, a pomba no alto da haste, a corôa

bordada a meio do panno. Dirigem-se á egreja. Os symbolos são postos no altar. Ha missa cantada ou rezada, conforme as posses dos promotores, e por fim o padre vae coroar o

imperador, pondo-lhe a corôa na cabeça, depondo-lhe nas mãos o sceptro, que elle conduz requebrando os braços pretenciosamente.

O cortejo desfila pelas ruas onde estão dispostas as esmolas em bancos interminaveis, cobertos de peças de panno de algodão.

O bôdo, um ou dois pães, um prato de barro cheio de carne, sangue e figado, perfumado a raminhos de hortelã, é benzido pelo padre que o vae salpicando com a agua do hyssope, emquanto o imperador sorri orgulhoso pela distincção, que a muitos custa as economias de longos annos, e os convidados apertam no braço a saborosa rosquilha, distribuída á sahida da egreja.

Entregues as esmolas ao povo ha o jantar que começa pela sôpa do Senhor Espirito Santo; uma

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abundante sôpa á portugueza, em que foram cozidos kilos e kilos da carne de que se fizeram as esmolas, muito figado, e muito sangue a que não falta o ramo de hortelã, e a benção do padre que fez a coroação.

Os imperios, uns de pedra, outros de armar, estão expostos aos devotos que vão adorar a corôa e a pomba.

N’uma salva de prata recebem-se esmolas, dando em troca os mezarios da irmandade rosquilhas, pombas de alfenim e vinho, servidos muita vez por deliciosas raparigas.

A mulher tem n’estas festas papel importante, havendo coroações e mudanças de corôa só acompanhadas de raparigas, que conduzem o Espirito Santo e levam a bandeira, cargos de uma alta distincção.

Domingo á tarde espairece o arraial em frente ao imperio. […] Na segunda feira ha a corrida de touros á corda, que na Terceira é o complemento de todas as

festas populares, e um precioso elemento de propaganda eleitoral. Como na antiga Roma, os grandes senhores offerecem ao povo um espectaculo gratuito, para o

captarem. Só ali se comprehende o que é a alegria, a embriaguez popular n’uma festa em plena rua, onde

todos podem tomar parte, ou gozal-a onde melhor lhe approuver, sem a tyrannia dos regulamentos, dos logares marcados, das bilheteiras e dos porteiros.

Chegam de manhã, as bolas, as cordas, os foguetes, e o touril de armar, que se installa n’uma canada.

Entra por volta do meio dia, na povoação, o curro conduzido por pastores que a pé fazem frente aos touros ensarilhando o cacete, jogando-lhe pauladas ás hastes, partindo-as ás vezes n’uma pancada em falso, e lhes açulam fortes cães de fila que lhes tomam a dianteira e, dependurando-se-lhe nas orelhas, obrigam-os a parar.

Emquanto vieram pela estrada, precedidos e seguidos por filas de vaccas, guiadas pela vacca mestra, continuaram adiante ou atraz os carros, os cavalleiros ou os peões que os encontraram e proseguem sem se atterrar, tanto se está habituado a taes espectaculos.

Regorgitam desde pela manhã as ruas e praças da povoação. Chegam de todos os pontos magotes de povo, bandos de cavalleiros, trens e carros de bois cheios

de gente. Janellas, balcões, muros, jardins, tudo repleto. Nas ruas acotovela-se a multidão. Ha um movimento febril de anciedade pelo começo da corrida. Sóbe ao ar um foguete, o signal. Sae o touro para a rua e investe contra os espectadores abrindo

larga clareira. Populares mais corajosos chamam-o, citam-o com guarda-soes, lenços, varapaus, os proprios

casacos até; o animal arranca e as mais das vezes colhe os improvisados toureiros que rolam pelo chão entre gargalhadas e apupos.

O touro corre vertiginosamente precedido e seguido por centenas de populares. Embora preso a uma corda, que quatro homens seguram para não o deixarem ultrapassar os limites da povoação, tem os movimentos livres e tão livres que no outro dia algumas dezenas de aficcionados queixam-se de haver apanhado o seu quinhão na farta distribuição de boléos.

De espaço a espaço páram repentinamente os homens da corda, muitas vezes rapazes da primeira sociedade angrense, e dão a pancada, isto é, fazem com que o touro suspenda a carreira para que das janellas, das paredes e dos balcões se gose successivamente o estranho espectaculo, semelhante ao de uma praça que se deslocasse ao longo da povoação.

Faustino da Fonseca – “Uma tourada de corda”. Serões: revista mensal ilustrada. N.º 3, 1901, pp. 141-4.

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Os usos e costumes locais no olhar do forasteiro

Cheguei numa manhã radiosa de verão, com um ceu purissimo, espléndido, sem nuvens.

De longe, quando se esboçam os primeiros contornos da ilha, começam a enxergar-se os ilhéus, depois a encosta baixa que leva á enseada, e á esquerda o Monte Brazil. A cidadesinha com as suas casas refulgentes ao sol, muito brancas, aninhadas em volta da bahia, surge, bordando alegremente as margens, até ás muralhas do castello meio desmantelado. Ao descer, em terra apparecem logo os trajes pittorescos, o feitio da vida.

É o leiteiro, com as suas grossas cabaças vergando-lhe o varapau apoiado no hombro, boné sem pala descahido sobre a testa, calças e casaco de panno aspero tapando-lhe as pernas e o tronco. Traz enrolada em volta dos hombros o que chamam a camisola, especie de camisa de dormir, mas curta, que muitas vezes usa vestida e desabotoada.

Os leiteiros colhem as cabaças ainda verdes, seccam-nas, tiram-lhes a pevide e o miolo e defumam-nas para adquirirem tom envernisado, dum castanho polido e brilhante. Ao enchê-las, tapam-nas com hervas cheirosas, abalam para a cidade e apregoam numa voz muito arrastada e cantante L-e-i-te-é!

Só ouvindo-o, se póde imaginar a plangencia, a arrastada e demorada dolencia desse pregão. As vozes da Terceira são já de si, falando naturalmente, muito cantadas, duma monotonia, que

accentua e deixa suspenso o final de todas as phrases como numa perpétua interrogação e num perpétuo espanto. Ha nellas um pouco do murmurio e do canto eterno do mar.

Foi decerto o Oceano que, com a sua voz infatigavel, lhes ensinou em quatro seculos a melancolia interminavel desse tom especial. Os michaelenses falam com a bôca contrahida, quasi cerrada; os madeirenses puros mastigam nos dentes uma araviada exquisita e imcomprehensivel. Só as vozes da Terceira traduzem fielmente a tristeza e os gemidos do mar. As mulheres dão-lhe um encanto maior e mais amoravel.

Vem a proposito dizer que na Terceira, com raras excepções, todas as mulheres são bonitas. Será do mar benefico, saudavel, oxygenado? Será tambem da velha vida tradicional, recolhida, caseira, com as noites tranquillas, bailes raros e theatro de mezes a mezes?

O que é certo é só de longe a longe apparecer uma cara feia. O que nunca se vê, porém, são olhos feios. As mulheres do campo, mulheres do monte, como lá dizem, são por vezes duma formosura extraordinaria, com olhos deslumbrantes. […]

Voltemos á cidade. Algumas varandas são tapadas inteiramente, da base ao parapeito, com madeira, e apenas a meio se abre um pequeno postigo por onde se espreita quem passa na rua, sem se ser visto. Ha uma preoccupação de mysterio nas mulheres da Terceira. Por isso usam tambem o manto, embiocado sobre os olhos, que as deixa andar pela cidade sem se darem a conhecer. A cada passo se encontram dois mantos a par, pelas ruas de Angra, com um ar de freiras de ordem mendicante, caladas e tristonhas. Estes mantos são feitos de merino preto. Ha tambem, como trajes regionaes, o capote, em geral castanho, de baetão, já em desuso; e a capa, de panno preto. Ambos descem até aos pés: mas o capote tem como accessorio um capuz, e a capa um cabeção de veludo preto.

Em meio de muita originalidade encantadora, tem inconvenientes graves esta vida, complicada com uma devoção exagerada, numa terra de interesses pequenos, muito acanhados, em que tudo o que se

Focando diversas características da cidade de Angra do Heroísmo, esta narrativa de viagem, da autoria de Luís da Câmara Reis, detém-se na descrição de alguns dos aspectos urbanísticos da cidade e, sobretudo, dos usos e costumes tradicionais da sociedade angrense. Destacando o carácter plangente que atribui ao dialecto açoriano, a atenção do autor volta-se também para a peculiaridade do traje tradicional feminino e para o fascínio que a tourada à corda exercia sobre a população local.

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faz, tudo o que se diz provoca commentarios e levanta censuras. Mas tambem ha lá, como em parte alguma, uma intimidade e relações que unem admiravelmente todos, numa crise da vida. Se morre alguem, a familia recebe comida, durante trez a oito dias, das familias das suas relações. E ella vem de tanta casa, que ainda é necessario dar os sobejos. A familia que está de lucto nada faz. – Tambem, quando ha casamento, os noivos mandam uma bandeja de doces aos parentes e pessoas de amizade que não puderam assistir ao matrimonio. Mas tudo isto hoje se sóme, varrido numa aura de modernismo. Os figurinos, as modas, os habitos, os prazeres, que Lisboa importa de Paris, vão passando, em segunda mão, para uma terra que rasga os velhos trajes e põe de lado os antigos costumes. Nas trezenas de Santo Antonio, a meia encosta do Monte Brazil, na Praça Velha (hoje Praça da Restauração), no Passeio Publico, nas soirées, no Theatro Angrense, as elegantes já inspeccionam e commentam minuciosamente as toilettes, perderam a simplicidade das attitudes, o seu riso alegre, sympathico e modesto, e caminham rigidamente, com o busto muito direito, de cara olympica, vestes rugindo sedas, pour se donner une contenance!

Na ilha visinha e rival da Terceira, S. Miguel, os sports propriamente inglezes teem invadido a pouco e pouco o gosto da população, e o lawn-tennis, o foot-ball e o cricket são universalmente adoptados pela camada mais rica da população michaelense. O inglez é mais falado que o francez. Dá-se dia a dia uma infiltração cada vez maior dos habitos, das idéas, dos trajes britannicos.

Mas Angra não tem a sua enseada cheia de uma rede emmaranhada de mastreações como o porto de Ponta Delgada.

O movimento commercial é relativamente pequenissimo. No ancoradouro ha normalmente apenas uma ou duas barcaças a partirem para o Fayal. O desregionalismo é muito lento.

Não ha jogos inglezes. No Passeio Publico fizeram um croquet para que não ha quasi jogadores. No dia em que desembarcaram o primeiro automovel, houve um frémito de espanto, quasi de indignação…

O unico sport adoptado, adorado, idolatrado unanimemente é a tourada, a velha tourada portugueza, e sobretudo a tourada de corda.

Quando eu estive em Angra, ha sete annos, havia dois partidos terriveis, que dividiam irmãos, que turvavam a paz de velhas amizades.

E esses dois grupos animavam, enchiam de mil attenções, de ternos cuidados cada um dos seus toureiros. Eram dois hespanhoes, encantados do acolhimento recebido, correndo a ilha de trem pago pelos admiradores, saboreando banquetes offerecidos com um respeito attencioso e grave. Chegaram a tal ponto as manifestações que um grupo de senhoras se organisou enthusiasticamente para bordar uma capa luxuosa a um dos toureiros.

Bordaram-na a ouro, offereceram-lh’a e agora a pavoneia o homem galhardamente pelas praças portuguezas e hespanholas. Pechuga se chama elle, creio eu.

Um commerciante lançou uma imitação de folhas de hera, tendo gravados os nomes dos dois rivaes em lettras douradas: Pechuga para os pechuganos, Zé Ito para os outros. Que novos idolos, que novas rivalidades não apaixonarão hoje as almas de Angra?

Onde, porém, mais cego, mais intratavel, mais feroz, mais selvagem – para dizer o verdadeiro termo – se mostra o enthusiasmo dos terceirenses, é nas touradas de corda!

E raro havê-las na cidade. Mas basta saber que em tal domingo ha tourada de corda em S. Matheus, S. Bartholomeu, nos

Biscoitos, na Ribeirinha, na Villa da Praia, para haver um verdadeiro exodo. Só ficam na cidade os entrevados e as creanças de mama, para guardarem as casas, de crimes muito

raros. De resto os criminosos nesses dias perdem os instinctos maus para só pensarem nas corridas.

Luís da Câmara Reis – Cartas de Portugal: para o Brasil: 1906-1907, 1907, pp. 262-71.

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AVEIRO

A comemoração cívica e a festa popular aveirenses

O povo aveirense na obra dos autores locais

As representações da cidade nas narrativas dos visitantes

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A comemoração cívica e a festa popular aveirenses

Quando um povo se levanta unanime para solver uma divida de gratidão ao homem que o enaltecera; quando, erigindo-lhe um monumento, quer tornar do dominio da posteridade os factos que celebrisaram o homem e que caracterisaram um seculo – esse povo quasi se eleva á mesma plana d’aquelle que vae ser glorificado.

N’este caso está Aveiro para com José Estevão. Cremos mesmo que, se, para perpetuar a memoria d’um talento, como José Estevão, houvesse alguma coisa de mais soberbo e de mais grandioso do que um monumento, do que o bronze que, simultaneamente, attesta a gloria d’um e a gratidão de todos, – Aveiro, para glorificar José Estevão, o orador flamejante e inspirado, o soldado valente e audacioso, não hesitaria em face de todas as dificuldades e dos maiores sacrificios.

– Tal é o fanatismo que aquella cidade sente por esse vulto aureolado, que deixou atraz de si um rasto luminoso, brilhantissimo, desde a Flexa dos Mortos, onde comprara, cara, a vida, até ao parlamento, onde o denotado campeão das garantias populares se superiorisou e enalteceu. 6-8-89.

João Vidal – “José Estevão e Aveiro”. Doze de Agosto: à memória do eminente tribuno parlamentar José Estevão Coelho de Magalhães, 1889, p. 7.

A feira de março é a Babylonia d’Aveiro. No largo de S. João, vulgo Rocio, onde a cavallaria

costuma ás vezes fazer exercicio, dispoêm-se systematicamente grandes arruamentos de barracas, onde centenas de comerciantes indigenas e de fóra expõem ao publico milhares de produtos differentes, quasi todos de industria nacional.

No seu género é a feira de março a mais importante do districto; desde a Barra ao Caramulo e de Coimbra a Ovar, n’esta área enorme que rodeia Aveiro, corre todo o povo pressuroso a gastar algumas economias, realisadas durante o anno à custa de bastantes sacrificios.

Marca distintiva do século XIX e intimamente associado ao espaço urbano, o culto da memória dos grandes homens celebrado na festa cívica ganhou expressão em Aveiro na figura de José Estevão, eminente deputado e activo impulsionador do desenvolvimento da sua terra natal. Atestando o prestígio desse ilustre filho de Aveiro, o texto de João Vidal assinala a festa da inauguração do monumento a José Estevão a 12 de Agosto de 1889. Organizada por uma comissão local segundo o modelo do tricentenário camoniano, a festa repartiu-se por três dias, incluindo no seu programa um sarau literário e tendo como ponto culminante o cortejo cívico e a inauguração da estátua, da autoria de José Simões de Almeida.

A par dos novos ritos implantados pelo ideário liberal, as marcas da tradição faziam-se ainda notar em Aveiro na celebração de costumes, como a Serração da Velha, e de outras festividades populares exclusivamente locais, como a festa de Santa Joana Princesa e a feira franca, esta última instituída no período medieval e conhecida como a Feira de Março. De longe o evento com maior repercussão na imagem externa e interna de Aveiro, a Feira de Março ++++

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E deixa o bom povo de comprar os objectos de que precisa nas feiras que têm ao pè da porta, para vir de proposito à de março, onde ás vezes vem adquirir esses objectos por mais elevado preço, sem contar as despezas de comboio ou diligencia, os mantimentos e as prendas que no regresso têm de levar á familia!!

Á entrada da rua principal, que se estende como um funil dando ingresso na feira, deveria ser levantado um solido tablado, onde Gammellas, Santo Thirso e Sollivaud, trindade colossal de obesidade, annunciassem aos forasteiros as raridades extraordinarias da pátria dos ovos molles.

Lá estão, senhores, na loja de modas do Abreu, os miscaros, de ponta de charuto ao canto da bocca, accesa depois do jantar, durando até ao outro dia; com os seus chapeus finos prehistoricos ao domingo, lustrosos á força de petroleo, sancta receita caseira. Defronte, juncto á barraca do Fontes, o enragé republicano com barbas de porta-machado, lá estão os terriveis da companha, coradinhos e descoradinhos tão conhecidos na cidade; e uns e outros lançando ás tricanas e meninas, que fazem da rua eschola de picadeiro, olhares de soslaio ás escondidas das mamãs, como quem mette n’um toiro um par de bandarilhas a quarteio. Lá se vê mais adelante, cheirando a coiro, de suissa ou barba á passa-piolho, o typico comerciante do Porto menos falsificado que o vinho seu patricio; a seu lado o genuino caixeiro tripeiro de gravata tricolor com o retrato de João Chagas e chapeu á alferes Malheiro, chamando a attenção dos feirantes com as suas caracteristicas terminações em âo.

E é vêr, a ingenuidade com que o bom povinho, para comprar um Christo o acha defeituoso, escarnecendo d’elle, com o fim de conseguir obtel-o por um preço relativamente

barato. Divisa-se ao longe, no fim da feira um enorme barracão, onde a popular companhia Dallot exhibe ao publico as suas magicas de grande espectaculo, nas quaes mulheres prenhas fazem d’ingenuas e vice-versa. O local da feira é sem contestação, durante quinze ou vinte dias, o posto obrigatorio de reunião de todas as classes, incluindo o sexo feminino.

Meninas que nós nunca vimos durante o anno, lá se encontram accompanhadas pela velha mãe, fingindo que fazem compras e pedindo aos caixeiros amostras de todos os tecidos que guardam cuidadosamente, para depois fazerem tapetes multicôres, com os quaes presenteiam os namorados em dia de seus aniversarios.

A epidemia de velocipiedistas assolou este anno a feira, chegando nós a crêrmos que alguns d’elles faziam parte de exposições de pim-pam-puns fugidos dos barracões.

Vista pelo lado comercial, com a circumstancia desfavoravel da semana sancta, deixou a feira muito a desejar; á excepção das casas de pasto e das tabernas, que vão contando dia a dia sempre com maior numero de adeptos. Por isso o vinho está cada vez mais caro.

Mário Duarte – Ovos moles e mexilhões: bisbilhotice mensal de Aveiro, 1893, pp. 29-32.

conheceu também alterações com o século XIX. As últimas décadas de Oitocentos, que marcam um período de vigor, denunciam já os indícios de modernidade nas inovações aliadas ao seu carácter mercantil e na sua progressiva afirmação, não apenas como lugar de trocas comerciais, mas ainda como espaço privilegiado de sociabilidade e de lazer, no qual se reuniam “todas as classes”. Acolhendo numerosos visitantes, a Feira de Março constituía também um evento de excepção na vida da população local, justificando o extraordinário afluxo aos serviços da Caixa Económica de Aveiro, que se verificava durante esse período do ano. Além do acesso aos mais variados produtos exibidos nos diversos barracões da feira, nesses dias a população gozava, também, de inúmeros divertimentos, como espectáculos de variedades e teatro da companhia Dallot, assinalados como um motivo de excepcional interesse para os aveirenses e remetidos à primeira década do século XX, mas cuja presença se revela já no relato de Mário Duarte acerca da Feira de Março realizada em 1893.

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O povo aveirense na obra dos autores locais

Corria o anno de 1852. Era um dia de festa. D. Maria II e El-Rei D. Fernando desciam do throno e

vinham visitar esta pobre e humilde cidade [Aveiro] que se preparava com todos os seus modestos e formosos atavios a agradecer a bondosa delicadeza dos soberanos.

Iam n’este tempo as nymphas do Vouga, atadas com diamantes as trancas de delgadas fitas de limo verde, finissimas e brilhantes como esmeraldas, entresachando sorrisos, desabrochados á flôr dos labios de coral, com as perolas da agua scintillante.

Os tritões que brincavam nas ondas acorreram meio suffocados pela agua dôce do rio, soprando nos busios cavos o grito de alarme, e do oceano vieram envoltas em curiosidade e espanto as potestades do mar.

Na ria, desdobradas as velas ao vento rumoroso da costa, singravam centenares de barcos cortando cachões, que expiravam beijando a esteira luzente aberta pelos lemes.

Era a mais rica paysagem que possa imaginar-se! jamais outra como aquella havia sido presenceada pelos nossos reis durante a sua viagem pelas provincias de Portugal que todas tinham pedido ao ceu o brilho do seu mais claro sol, a pallidez mais attrahente das noites, e as flores mais formosas da terra, e as bençãos do povo para lhes enfeitar a passagem rodeando-os de palmas e bravos n’uma ovação tranquilla e constitucional.

Os pescadores tinham também largado a lida perigosa da pesca, e corriam pressurosos ao encontro das magestades formando um extenso cortejo, e esperavam abrindo longas fileiras de barcos o barco onde os reaes viajantes se achavam.

Vinham todos de calça branca, amplas e decotadas camisas brancas deixando admirar o peito musculoso, facha e barrete encarnado, o que apezar da simplicidade do vestuario, offuscava pelo aceio e galhardia do trajo, e pela tez bronzeada, e pelas másculas feições e bizarria franca e sorridente d’aquellas frontes, toucadas já da neve dos anos, já orladas de crespos bravios anneis de cabello negro como azeviche.

D. Fernando, o rei-artista por excellencia, extasiava-se contemplando a solidez magestosa d’aquelles homens, a graça natural das suas posturas e a pictoresca expressão da sua linguagem, presando acima de tudo e maravilhando-se da confiança que tinham em si e com os outros sem que faltassem ao respeito ou deixassem de guardar as distancias e as conveniencias.

No barco toldado de damascos e brocados onde Suas Magestades estavam, ia então um rapaz de vinte e tantos annos […] em quem parecia ler-se o vivo retrato de Masaniello, o pescador d’Amalfi, feito por sete dias rei de Napoles.

El-rei comprehendeu tudo isto n’um relance, e no album de viagem principiou de esboçar-lhe a lapis o vulto e as feições, mandando-o advertir por um dos mais graduados fidalgos que se conservasse na mesma posição em que estava, e em que o surprehendera.

Joaquim de Melo Freitas – Violetas, 1878, pp. 112-4.

Inspirada na visita de D. Maria II à cidade de Aveiro a 23 de Maio de 1852, a narrativa de Joaquim de Melo Freitas consiste num relato ficcional desse facto histórico, como o denuncia a carga quase sobrenatural que o autor confere ao evento, à semelhança dos relatos praticados pelos cronistas medievais acerca dos grandes feitos dos monarcas, mas que neste caso se manifesta através do povo e da paisagem da cidade de Aveiro. Contudo, em diversos aspectos, a narrativa de Joaquim de Melo Freitas indicia também o perdurar da memória desse evento da história local, patente no realce colocado na descrição de alguns comportamentos e, ainda, na sua aproximação às versões da época que relatam a chegada da rainha D. Maria II a esta cidade por via marítima.

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Quem era o cirurgião Almeida Coimbra? Êsse homem devia fazer parte do numeroso grupo dos

arribistas, os adventícios, que se vieram estabelecer em Aveiro. A raça nativa era empreendedora, muito inteligente e, fisicamente, bela. Mas vimos que, fugindo às epidemias e à decadência mercantil, essa raça desapareceu da vila quási por completo. Só ficaram aquêles, como dizia Pinho Queimado, que não tiveram meios de ir para outra parte. Pescadores e operários dos mais pobres, ínfimos funcionários, gente, enfim, vivendo dia a dia, e mal, sem reservas para tentar qualquer negócio. Mas por maior que, fôsse a penúria a que a vila chegara, ainda esta dava margem a pequenos empreendimentos e a pequenas transacções comerciais. E, então de todos os pontos do país, sobretudo da Beira Alta e do Minho, caíram sôbre ela, para negociar, pessoas com pequenos capitais, que não podendo entrar em concorrência com o

comércio rico das suas localidades, vinham tentar fortuna numa terra onde, para especulações, o dinheiro faltava. Essa alcateia cresceu com a abertura da Barra Nova.

Não é preciso um grande esfôrço de raciocínio para presumir que tal gente seria inculta, pouco inteligente, boçal, sem idealismos, com o objectivo da ganhuça, apenas. E era-o, de facto. Mas como os de Aveiro estavam reduzidos às classes humildes, sem vintém, receberam-nos de braços abertos, e, estendendo o pescoço à canga, sofreram-lhes o jugo, deixando-os dominar. É possível que venha daí a tara, com que os de Aveiro, ainda hoje, como é voz corrente na terra, tratando mal os nativos, estão sempre de cócoras diante dos que chegam de fora.

Os pobrezitos, os ínfimos do povo, que restavam da inteligente e forte população do período áureo da vila, ficaram limitados à missão – e vamos que era honrosa – de perpetuar a beleza tradicional da raça, especialmente a das mulheres, que em todos os tempos fôra memorável, pois também será desnecessário afirmar, julgo eu, que êsses adventícios, além de brutos, eram feios (e maus, como se verá), verdadeiros ursos, e da mesma forma as mulheres, perfeitas pandorcas, – ainda conheci algumas, – que os acompanhavam.

Os ursos e as pandorcas afidalgaram-se, com o tempo; aquêles tiveram excelência, estas tiveram dom, meteram as filhas nos colégios e mandaram os filhos para Coimbra. Mas o estigma da inferioridade da raça persistiu. As filhas continuaram feias, embora já não tanto como as mães, e os filhos confirmaram o ditado popular: Quem a Coimbra vai e de Coimbra vem, se burro vai burro vem, porque Coimbra não dá nem tira juizo a ninguém.

Na festa real de Santa Joana Princesa, no dia da santa, as gentis e lindas tricanas de Aveiro esperavam-nas à porta da Igreja, à hora da missa solene, que era de grande pompa, nesse tempo, assistindo a câmara, as autoridades civis e militares, tudo quanto havia de mais graduado na burocracia e de mais ilustre na terra, e os mostrengos, mordendo os lábios, pois percebiam a troça, passavam entre risadinhas surdas.

Não era permitido entrar na igreja, para ouvir a missa e sermão, prègado sempre por um dos maiores prègadores portugueses, senão em trajo de gala ou, então, de côca, as mulheres. Algumas das mais desenvoltas e lindas tricanas arranjavam côcas e luvas emprestadas e entravam na igreja, fazendo sensação, como rainhas. Todos os olhares dos homens se fixavam nelas. Assisti um dia, em criança, a um espectáculo desses.

A beleza vingava-se do dinheiro, soberanamente.

Homem Cristo – Notas da minha vida e do meu tempo. Vol. I., 1937, pp. 63-65.

Transmitindo uma visão da cidade de Aveiro centrada na distinção da superioridade racial daqueles que denomina “os de Aveiro” face aos arrivistas, a memória do aveirense Homem Cristo reflecte a decadência mercantil e populacional desta cidade no século XIX, marcada pelo movimento migratório que havia provocado o decréscimo da população nativa, inteligente e empreendedora, e facilitado o jugo dos arrivistas, detentores do capital, sobre a cidade de Aveiro, que em termos de população nativa se reduzia às classes mais humildes que aí permaneciam.

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As representações da cidade nas narrativas dos visitantes

A terra natal do profundo polygrapho Ayres Barboza, preceptor do cardeal-rei; a cidade em que nasceu o famoso orador José Estevão, deixa agradaveis impressões em quem a visita.

O seu aspecto geral é alegre, porque a luz se entorna por igual tanto na cidade como na ria e extensa planura que a cercam, porém a esta alegria silenciosa não se associa o bulício que denuncia a vida dos grandes centros de população.

[…] A obra moderna que alli mais attrahe a atenção dos visitantes é o edifício do lyceu, que toma o lado oeste na praça ou largo em que se acham a Misericordia. Asylo da Infancia, do lado éste, casa da camara e tribunal, do lado sul, o edificio do correio e telegrapho, do lado norte.

[…] Em continuação ao lyceu ha, em principio de construcção, um edificio destinado para theatro, que ficou assim porque faltou o homem que nunca cansára no empenho de elevar Aveiro ao nivel de grande cidade.

É obra ainda mais moderna o jardim municipal, no extremo sul da cidade, situado na proximidade da igreja e convento de Santo Antonio, hoje quartel militar.

O jardim de Aveiro, dividido em alameda e jardim propriamente dito, não tem nada que invejar a qualquer dos melhores do paiz. É bonito, espaçoso, e cuidadosa e intelligentemente tractado. Tem o senão de estar a cavalleiro de uns arrozaes que lhe ficam do lado do poente, que é o único que d’alli domina largo horizonte, que abrange uma grande parte da ria e formosas campinas.

É tambem obra moderna o cemiterio, situado a E. da parte sul da cidade, sobranceiro ao braço ou canal da ria que passa a sopé da alameda do Cojo (hoje praça da herva e fructa), com a qual defronta. Tem o mas de estar muito proximo do centro da povoação.

[…] Não ha edificios elevados em Aveiro, e é por isso que a luz se derrama por igual, dando á cidade feição alegre.

[…] Os edificios mais notaveis da cidade são os palacetes do visconde de Almeidinha e par do reino Casimiro Barreto na parte meridional, e o do actual presidente da camara na parte septentrional. O primeiro occupa, com a sua bella fachada, todo o lado do largo em que está situado, proximo ao jardim. Alli se reune algumas vezes a boa sociedade aveirense, á qual a fidalga bizarria do dono da casa liberalisa attractiva recepção.

[…] Ha em Aveiro uma associação de artistas que tem uma phylarmonica marcial, bastante regular, e um pequeno theatro, propriamente seu, e unico na cidade, situado na proximidade do jardim municipal, em uma rua bastante erma, chamada do Rato. Ha também um club recreativo estabelecido na principal rua da parte septentrional, e onde de tempos a tempos se dão reuniões de familias.

M. A. Guerra Leal – “Recordações de Aveiro”. O Comércio do Porto. N.º 146, 1871.

Em 1871, o escritor portuense Manuel Alberto Guerra Leal, após a missão oficial que o levara a permanecer por largos dias em Aveiro, fazia publicar, no jornal O Comércio do Porto, uma longa narrativa, na qual manifestava uma apreciação positiva da cidade. Se por um lado a distinguiu face à agitação própria que caracterizava os grandes centros populacionais da época, por outro lado, destacou também os laivos de modernidade da capital dos ovos moles. Segundo o testemunho de Guerra Leal, na paisagem urbana de Aveiro, caracterizada pelas construções pouco elevadas, manifestavam-se já os sinais do urbanismo moderno no espaço público e em algumas edificações da cidade, nomeadamente nos edifícios do Liceu e do Teatro, este último ainda por terminar, assim como nas obras já efectuadas no jardim público e no cemitério. Distinguindo também os palacetes das figuras possidentes locais entre as construções mais notáveis, o relato de Guerra Leal evidencia ainda a existência na cidade de Aveiro de alguns organismos relacionados com as novas formas de convívio e de lazer instituídas no século XIX, como a Associação de Artistas e o Cube Recreativo locais.

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Sempre que por alli passava, no comboio fumegante e fanfarrão, impressionava-se a longa silhouette da cidade dos ovos molles, lá ao longe encravada nas verduras da paysagem humida, e apparecendo confusamente n’um grande amontoamento de casarias branquejantes, ataviadas do simples adorno da cal, em que os telhados negros alastravam e recortavam manchas uniformes, com discordâncias raras de remendos avermelhados.

[…] Entrando agora na cidade, na vertigem d’uma carruagem velha rangendo miseravelmente, arrastada por umas pilécas deploraveis que, por mercê dos chicotes magicos, teem já azas nunca depennadas por caridosas mãos policiaes, Aveiro deume uma impressão bem differente, com as suas ruas estreitas e tortuosas, de calçadas inclementes, favoraveis ao solavanco, e com o desfilar resignado das suas casas geralmente baixas, toscas e humildes, por entre as quaes palacios velhos mostram, com arrogancias carunchosas, altas fachadas sujas em que a ruina põe fendas, calafetadas de hervas tristes.

[…] Mas quando avistei a ria, tracejada de barcos negros e toda ondulando agitada por um vento surdamente ameaçador, tive um bello sobresalto espantado, natural sempre diante d’um espectaculo inesperado, e como este d’uma rude beleza sympathica e acre.

[…] De resto, devo confessar que esta bella ria nunca me pareceu um canal veneziano ou um canal hollandez; e ainda que isso lhes vá causar um justo espanto, a verdade é que a ria de Aveiro parece-me simplesmente um canal – aveirense. […]

Todas as vezes que o sol contrafeito, nos intervallos quentes das chuvadas, coáva trabalhosamente por entre nuvens leves uma luz esbranquiçada e vaccilante, nos paredões marginaes da ria viam-se corpos valentes de barqueiros deitados ao comprido, a dormir; e nos parapeitos das pontes havia tambem curiosos ajuntamentos de marnotos e pescadôres, debruçados e attentos para as aguas marulhosas da

ria. Conservavam-se n’este exercicio animado durante longas horas, sempre fitando a agua attrahente; e vistos por quem passava, tinham aspectos exquisitos, vagamente arabes, mettidos dentro dos seus gabões de velha saragoça e capuzes postos na cabeça.

Disseram-me uma vez: – São os lazzaroni d’Aveiro. E é, de facto, notável que, emquanto os pescadores de Murtosa, Ilhavo, e d’outras povoações perto

d’Aveiro, abandonam as suas terras desde que o mar se mostra safaro, indo diligentemente a regiões estranhas procurar o pão, os pescadores propriamente aveirenses, quer o mar dê quer não, nunca sáem da cidade querida, passando as inverneiras tormentosas em permanentes pasmaceiras e lamentos. São d’uma mandrice quasi orgulhosa, e tão entranhada teem segundo parece, a noção poetica do lar, que preferem resignadamente fomes tremendas a desertal-o.

[…] Estendem-se ao longo da ria, em cada margem, umas bellas ruas largas, verdadeiros passeios, alegres e convidativos, que me disseram serem por vezes extraordinariamente concorridos, havendo

Em contraste com a atenção que Guerra Leal conferiu aos atributos modernos da cidade de Aveiro, as impressões de viagem que da mesma urbe Monteiro Ramalho recolheu e fez publicar na revista lisboeta Ocidente em 1882, incidiram sobretudo nos seus aspectos mais singulares. Da morfologia urbana de Aveiro, destacando o carácter humilde das suas habitações, toscas e pouco elevadas, assim como a estreiteza das suas ruas sinuosas, as recordações de Monteiro Ramalho detiveram-se em torno da Ria, como motivo central do interesse da cidade e como ponto privilegiado para a observação da vida local. Ao longo das ruas largas que ladeavam a Ria, cuja amplitude contrastava com as outras ruas da cidade, concentravam-se os vários tipos sociais aveirenses, os barqueiros, os pescadores, os trabalhadores das salinas conhecidos como “marnotos”, a tricana e o burguês ocioso que frequentava os estabelecimentos localizados na antiga arcaria da Ria – principal espaço de sociabilidade das “distintas rodas” aveirenses. Colocando em realce algumas características primordiais de Aveiro, Monteiro Ramalho soube ainda transmitir uma noção fiel da relevância que a figura de José Estevão assumia à época no discurso identitário da cidade.

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por alli enormes reboliços e chiadeira festiva de multidão passando as tardes familiarmente. Nunca as vi senão desertas, quando muito percorridas de longe em longe por alguns nomades de gabão escorrido; e póde-se bem dizer que poucas ruas aveirenses lhe levam vantagem na concorrencia numerosa. O burguez e o pescador teem, não ha que duvidar, um decidido amor ao conforto caseiro; e quem mais se vê pelas ruas, lidando, tratando da vida, é a tricana serviçal, quasi sempre bonita, raramente mal feita, viva, risonha, respondendo aos dichotes, sorrindo abertamente se isso lhe appetece, e caminhando imperturbavelmente – se não lhe convém parar. A nossa conhecida varina encontra-se menos que a tricana elegante, e é geralmente grosseira e feia, mal vestida, e olhando-nos torvamente como que com surrateiras precauções selvagens.

[…] Mas, como em toda a parte, ha em Aveiro o indispensavel ponto de reunião da ociosidade elegante e importante, pequena imitação da Havaneza e da Arcada, canto eleito para o despejo das vistosas vaidades e exquisitices provincianas, cavacos, descomposturas, odios disfarçados ou rudemente explosivos, mexeriquices inveteradas, troças, e um rancor surdo para as capitaes. É também sobre a ria, debaixo d’uma antiga e tosca arcaria, onde ha vários estabelecimentos bons; encostam-se por alli os pequenos peralvilhos, empregados publicos com certa gravidade e bigodes, militares destacados, e mais variados especimens da fauna local, todos de fina selecção e porte garboso. […] Isto convenceu-me de que, afinal, quer seja no Chiado ou nos Clerigos, quer seja debaixo da arcaria aveirense, o centro do bom tom, o sítio escolhido e preferido pelas distinctas rodas, reúne sempre o mesmo viveiro de excelentes patuscos, – fazendo constantemente esforços desesperados para não parecerem ridiculos, na sua sua ociosidade elegante, importante, e petulante. Mesmo a proposito dos citados Clerigos, offerecese-me notar que Aveiro, como todas as principaes povoações do norte, resente-se d’uma grande influencia poderosa e incontestavel dos feitios, vida e costumes portuenses, desde o corte dos casacos até á structura das casas.

O que me espanta é eu ter vindo até aqui sem ainda uma vez só lhes falar em José Estevão! É absolutamente o contrário do que sucede lá, na bella cidade reconhecida ao seu tribuno, a quem deve prosperidades enormes; cada pessoa que encontramos nos entretem do grande homem celebrado; em cada rua que passamos são-nos apontados vestigios da sua pessoa, passadas marcadas no chão, uma velha capella que soffreu tal dito mais violento que espirituosos, um transeunte idoso que foi seu intimo amigo ou sua victima desgraçada, uma casa que elle habitou; e por toda a parte o tribuno apparece, vive, paira como uma sombra querida e protectora, a todo o instante thuribulada, religiosamente, e que para sempre existirá, amada e acrescentada com arabescos e fantasiosas pompas de lenda, em que se irá fundindo gradualmente a gratidão eterna de Aveiro. O magnifico edificio do lyceu a quem é devido? A José Estevão. A estação do caminho de ferro? A José Estevão. A larga e pittoresca estrada da Gafanha? A José Estevão. – Uma comprida rua, subindo em curva, espaçosa e bem tratada; é a rua de José Estevão; e quando um dia passava pela vasta praça Municipal, vendo lá uns obreiros desbastando laboriosamente uma bellas pedras vermelhas, perguntei indifferente para que era aquilo…

– Para o monumento de José Estevão!

Monteiro Ramalho – “Recordações de Aveiro”. O Ocidente: revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro, 1882, n.º 130, pp. 173-4; n.º 132, p. 187; n.º 134, pp. 205-206.

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BEJA

A visita régia a Beja em 1843

A polémica em torno do ensino eclesiástico em Beja

Um olhar de relance sobre a antiga Pax Julia

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A visita régia a Beja em 1843

Por uma Portaria do Ministerio do Reino, datada de 21 de Setembro, foi annunciada ao Governador Civil do Districto, a vinda de Suas Magestades á Cidade de Béja, o que sendo participado pelo mesmo Governador Civil, á Camara Municipal, o Presidente desta fez convocar uma Assembléa Geral, por cartas de convite a todas as Authoridades sem excepção, e a um grande numero dos maiores contribuintes, como representantes populares, para que se ouvisse a Portaria do Ministerio do Reino, sobre a vinda de Suas Magestades e Altezas, e se tomasse uma deliberação sobre o modo de receber tão Augustas Personagens. […]

Programma para a recepção de Suas Magestades e Atlezas na Cidade de Béja.

Artigo 1.° Dever-se-ha apromptar, com a magnificencia possivel, a melhor casa que tem a Cidade, para aposento de Suas Magestades, e toda a Familia Real.

Art. 2.° As ruas, por onde Suas Magestades têm de passar, deverão estar cuidadosamente limpas, as janellas guarnecidas de damascos; e se poder ser, caiadas de novo todas as casas, e em geral toda a Cidade.

Art. 3.° De espaço a espaço se formarão arcos triumphaes, nas ruas que Suas Magestades e Altezas têm de passar no seu transito de entrada.

Art. 4.° Ás portas d’Evora haverá um arco guarnecido e decorado com o melhor gosto, e n’uma tribuna do lado esquerdo, estará uma joven vestida de branco, representando alegoricamente a Cidade de Béja, que recitando alguns versos alusivos á entrada da Soberana, lhe lançará no regaço a chave da Cidade, guarnecida com uma corôa de flores.

Art. 5.° No acto da joven lançar no regaço da Soberana a chave da Cidade, um côro de senhoras illustres, postado no interior do arco, cantará o hymno de Béja.

Art. 6.° Em todos os outros arcos se deve juntar o gosto do ornato, a elegancia na fórma, e boa escolha nas decorações.

Art. 7.° As janellas das casas nas ruas do transito de Suas Magestades, deverão conter quanto do sexo feminino é bello e elegante; devendo cada uma das senhoras ter um lenço branco na mão para acenar na occasião de dar vivas a Sua Magestade.

A digressão da família real ao sul do país, realizada entre 4 e 31 de Outubro de 1843, revestiu-se de um significado que extravasou o âmbito meramente local, marcando a afirmação do governo instituído em 1842, com a restauração da Carta e a administração de Costa Cabral. Embora decorrendo sob um clima de ameaça e de aberta contestação à política cabralista, a viagem de D. Maria II foi, sobretudo, interpretada como um episódio de triunfo sobre a oposição, dadas as manifestações gerais de entusiasmo e vassalagem que pautaram o acontecimento e das quais dissonaram apenas as duas representações contra o governo, apresentadas à soberana pelas câmaras de Évora e Faro, logo em seguida destituídas. Documentando o cerimonial que regeu a entrada de D. Maria II em Beja, a 11 de Outubro de 1843, o texto publicado por António de Oliva e Sousa Sequeira transmite uma visão elucidativa do ambiente prestigiante em que se desenvolveu o evento, logo de início assinalado com o acto de entrega da chave da cidade a D. Maria II e a primeira declamação das quadras através das quais, ao longo da cerimónia, a cidade declarou a sua fidelidade à rainha e à Carta Constitucional.

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Art. 8.° O Governador Civil, que no dia da entrada de Suas Magestades e Altezas, tem de ir espera-las aos confins do Districto, irá acompanhado da Guarda Municipal, para quem deve solicitar a honra de servir na linha dos Batedores, durante o transito de Suas Magestades no seu Districto.

Art. 9.º Será convidada a População da Cidade, a esperar fóra della a Suas Magestades, formando um grande arraial em duas alas, occupando os homens os logares baixos, e ao nivel da estrada, e as mulheres as eminencias do terreno, e as muralhas.

Art. 10.° Á direita deste arraial, e ao lado esquerdo da estrada por onde vierem Suas Magestades, estará collocado o Regimento n.° 11, cujo Commandante, tendo chegado a Soberana á frente do Regimento, lhe mandará fazer a continencia militar, e levantará vivas a Sua Magestade a Rainha, a Sua Majestade EIRei, aos Principes seus Filhos, e á Carta Constitucional, para serem repetidos pela Tropa e Povo.

Art. 11.° Fóra das portas da Cidade, se achará a Camara Municipal com o seu Estandarte, as Authoridades Judiciar ias e Administrativas, o Clero, de Cruz alçada, e um Pallio para o caso que Suas Magestades se queiram servir delle, a pé ou a cavallo, segundo o antigo rito.

Art. 12.° Logo que Sua Magestade se aproximar á porta da Cidade, o Presidente da Camara se lhe dirigirá com um discurso, filicitando-a pela sua boa vinda, e formará depois um prestito com o Clero e Authoridades, para ir diante do coche da Soberana até á Cathedral, onde terá logar um solemne Te Deum.

Art. 13.° Serão convidadas quatro damas das mais nobres da Cidade, para quando Sua Magestade a Rainha entrar no seu aposento, lhe beijarem a mão, offerecendo-se no seu serviço domestico.

Art. 14.° Na noite do dia em que chegarem Suas Magestades e Altezas, deverá illuminar-se a Cidade, haver repiques de sinos e fogo do ar, dando-se largas a todos os divertimentos, que o Povo podér inventar em obsequio á Soberana; e o mesmo se repitará por tres noites successivas, se Suas Magestades tanto se demorarem.

Art. 15.° No dia em que Sua Magestade se ausentar, não se mostrará regosijo; e a joven que representa a Cidade, apparecerá á Soberana na galeria inversa do arco, vestida de luto.

– Béja 27 de Setembro de 1843.

Poesias dos differentes Arcos

ARCO DA ENTRADA

1.ª

Vem Excelsa Senhora honrar um Povo, Onde o Sceptro tem fulgura e brilha, Grato á memoria do Principe Famoso Capaz de sustentar o Trono á Filha.

2.ª

Quem debelou audazes Hespanhoes E o jugo sacudio dos Sarracenos, Hoje em defeza da rainha e Carta, Se necessario fôr, não fará menos.

ARCO DE S. THIAGO

1.ª

De nobres feitos, a historia antiga Nos sirva hoje de constante abono: Em gratos corações, em peitos livres Verás, Senhora, basear teu Throno.

2.ª

Nossos campos a sangue conquistados Vê oh Soberana! Examina e corre, Aqui se dillatou d’Affonso a gloria! E a gloria, Senhora, aqui não morre.

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ARCO DE SANTA MARIA

1.ª

Nunca sem premio fica A virtude observada; Se não fôras fiel ó Béja Não serias visitada.

2.ª

Jámais Béja foste tanto, Nunca foste tão honrada; Do seu Throno a Rainha desce Para tu seres exaltada.

ARCO DA RUA ANXA

1.ª

Na feliz Real entrada, Que emoção, Paz-Julia, sente, Robora-se o froxo corpo Exalta-se a fria mente.

2.ª

Sacro presente do Ceo, Por bom Deos a Béja dado, Nunca visto em longos seculos, Em nossos dias contado.

ARCO DO SALVADOR

1.ª

Sobre os Thronos imperar Têm podido immensos Reis Mas nas almas dominar, Só vós, Senhora, podeis.

2.ª

Não cabe em peitos humanos, Celebrar a vossa gloria, Na longa serie de annos, Durará vossa memoria.

António de Oliva e Sousa Sequeira – Narração dos acontecimentos que tiveram lugar na cidade de Beja na ocasião em que Suas Majestades e Altezas visitaram esta cidade a 11 de Outubro de 1843, 1844, s/p.

A polémica em torno do ensino eclesiástico em Beja

No dia 22 de março do corrente anno os estudantes do Seminario foram induzidos a fazer umas festas para a consagração poetica d’uma das auctoridades d’aquelle instituto, que n’esse dia fazia annos.

Estas festas, todas profanas, foram acompanhadas de muito foguetorio, que de meia noite a meia noite estrondeou sobre a cidade, de alvorada com musica, etc., etc.

[…] No dia 23 pela manhã apareceram uns infames pasquins, que, tomando por fundamento o facto alludido, insultavam todo o clero.

O sr. Bispo de Beja regressou à sua diocese no dia 24, e alguem, que queria fugir á responsabilidade dos factos praticados no Seminario no dia 22, e que tam

A existência do seminário de Beja foi desde cedo assolada por vivas polémicas desencadeadas quer no plano interno quer na imprensa local, essencialmente motivadas pela falta de ortodoxia manifestada pelos seus dirigentes e que deu azo a várias situações de denúncia, entre elas as que gravitam em torno do processo de exoneração do padre José Mendes Lima, em 1895. Nessa ocasião, fazendo publicar o opúsculo O Sr. bispo de Beja e um ex-professor do seu seminário, o lente destituído colocou em evidência a contradição entre os

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desagradavelmente emocionaram os habitantes d’esta cidade, procurou junto do prelado diocesano por meios ardilosos fazer esquecer os factos primordiaes, para só avolumar as consequencias d’elles e tornarme responsável por ellas […].

O seu informador, apesar de constituido em primeira autoridade interna d’aquelle estabelecimento scientifico, tem tanta consciencia da sua opinião e do seu caracter, que precisou, para dar força ao seu testemunho, de indirectamente promover um protesto dos estudantes seus subordinados contra mim, e cujas assinaturas em parte foram colhidas sob ameaças. […]

O procedimento que os estudantes do Seminario de Beja foram obrigados a ter commigo, (e digo, foram obrigados, porque a maioria d’elles foi violentada, como o provam as satisfações, que directa e indirectamente recebi de muitos) denota a boa disciplina que se observa n’aquelle estabelecimento, os principios de humildade, respeito e consideração, que ali se ensinam aos futuros sacerdotes.

E comtudo ha uma perfeita contradicção entre um tal proceder e as maximas do compendio de civilidade do prelado diocesano, que elle manda explicar aos alumnos do seu Seminario em instrucções bi-semanaes pelo seu vice-reitor. […]

E das suas opiniões e sentimentos exaradas nos seus livros vou dar uma amostra, para que se saiba como ellas são conducentes a formar o espirito e coração dos futuros sacerdotes […].

Assim, para arreigar a virtude da castidade e fazer manter o despreso pelos prazeres mundanos, nada como os seguintes versos:

No seio farto, ondeado, D’alvas rendas mal coberto, Tansluz um sulco nevado Doce, côr de leite… em summa, Um valle por Deus aberto Entre dois montes de espuma.

………………………………………

Eramos sós. E n’essa noute escura Sobre o seu niveo corpo avelludado, Libei o doce nectar do peccado Pela taça da lubrica ventura.

Desperto, alfim, do sonho vaporoso Aquella, que eu julgava um lirio santo, Quanto prazer tinha fruido quanto Nos braços d’um amante luxurioso!...

………………………………………

É teu olhar um sol que me fascina E teus labios de rosa que me prendem São petalas setineas que rescendem A frangancia do ceo, mulher divina!

procedimentos que regravam a vida do Seminário de Beja e os preceitos religiosos, tendo como principal alvo de crítica o vice-reitor José Maria Ançã. Para comprovar as suas afirmações, transcreveu uns excertos da obra poética que o vice-reitor havia publicado no volume Expansões de alma, datado de 1891, pouco consentânea com o pensamento de um prelado.

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Deixa sorver-te, com lascivia doce O nectar n’essa bocca preciosa… Oh! Deixa-m’o sorver, como se eu fosse A borboleta d’ouro e tu… a rosa.

E para que eu sacie estes desejos, Esta paixão libidinosa e ardente, (Tombando ébrios de gozo) Adormece comigo suavemente, Na volupia do amor, entre mil beijos.

[…] Ora já custa a acreditar que um sacerdote fizesse taes versos; mas, que os publicasse e d’elles faça gala, é rematada falta de senso, e por isso não extranho que n’aquelle estabelecimento ecclesiastico se pratiquem actos, que são a legitima consequencia de tal como de sentir e pensar; o que não chegamos bem a comprehender é como um prelado consinta que esteja dirigindo o seu Seminario um ecclesiastico, que manifesta taes sentimentos e faz gala de taes opiniões!

José Mendes Lima – O Sr. bispo de Beja e um ex-professor do seu seminário, 1895, pp. 12-7.

Beja, naquela altura, era uma cidade pequena, moirisca degenerada. Deu-me uma impressão de acachapamento que ainda hoje persiste na minha retina. Não havia outra água que não fosse a das cisternas, e nuvens de moscas zumbentes alvoroçavam-se e seguiam-nos para, ao mais pequeno descuido, nos cravejarem as mãos com seu herpes gordo e movediço. O gentio olhava para nós com ar desdenhoso e mofareiro. Estávamos em terra de infiéis, mas por isso mesmo terra de livre-exame, o que ao primeiro conspecto não me desagradou. […]

Datava de 1884 a fundação do Seminário de Beja, segundo o despacho do ministro da justiça Lopo Vaz de Sampaio ao requerimento do prelado D. António Xavier de Sousa Monteiro a assinalar que, de todas as dioceses do Reino, a de Beja era a única desprovida duma casa deste género. Ao Seminário de Coimbra, onde fora professor até a investidura, pedira o bispo para vice-reitor um moço natural de Ílhavo, que ali acabava a ordenação. Este, assim que pôde, arpoou o mano Manuel, 7 anos mais novo do que ele, da lida piscatória. À sua sombra aprendeu ele, já adulto, a ler e escrever, e à sua sombra atafulhou os preparatórios no Colégio da Probidade, de Aveiro, tudo de salto, como quem levanta redes uma após outra. Nem lhe faltou, como o irmão, versejar e depor a colectânea poética aos pés do antístite, que prezava estas especulações mais que tratados de dogmática, músico e pintor como era e todo dado às artes. Assim remontou, dir-se-ia, por iluminação do Espírito Santo, até acumular os cargos de ecónomo, prefeito, professor e secretário da Câmara Eclesiástica. De resto, como não havia de ser grimpador quem tinha a prática de subir aos mastros? Como estava na força da vida, 31 anos, até que pináculos não iria ele, se o

Em consonância com o relato de José Mendes Lima, as recordações de Aquilino Ribeiro acerca da sua experiência como seminarista na cidade de Beja, na qual se manteve desde 1902 até à sua expulsão em 1904, revelam o mesmo estado que caracterizava a existência dessa instituição na última década do seculo XIX. Enfatizando o aspecto desolador dessa estadia em Beja, que a certa altura qualificou como uma “tortura” determinada pela sua condição social, a memória de Aquilino Ribeiro confere um especial realce às figuras do vice-reitor e do seu irmão Manuel Ançã, denotando a influência exercida pelo “duo poético” na direcção do seminário e as quebras flagrantes do celibato que marcavam a vida do clero local.

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deixassem!? […] Manuel Ançã, além de se multiplicar na administração do Seminário, leccionava, se bem me

lembro, uma ou duas disciplinas do curso de preparatórios, essas em que qualquer homem bem provido do entendimento, sentado na cátedra, mesmo que seja leigo, pode figurar de mestre. Eu tinha costeado aquele promontório, e nunca tive ensejo de avaliar do seu mérito didáctico.

Em verdade, ele é que governava, o Seminário, pelo menos, superintendia na população escolar. E governava-a com voz rude, quase militar, e jeito autoritário, como seria a sua voz de arrais, se continuasse a lide de bordo. Tendo parado no escalão de grumete, ficara bastante arrais de Hollywood. Todavia, dizia-se que tinha partido os queixos a um minorista recalcitrante e alevantado com duas bofetadas que lhe mandou.

Recebera-nos na véspera, ao pôr do Sol, com poucas palavras e um olhar baixo, incisvivo, como o maioral que vai contando as reses que entram para o bardo. E distribuíra-nos a dois e três por estes e queles dormitórios ou quartos amplos, de chão de tijoleira e sem sol, e para uma camarata do segundo piso, virada a sul e à rua, não descortinando eu a sabor de que critério.

A mim destinou-se para os tais quartos que olhavam a norte. E assim entenebreceu mais o meu degredo, confinado àquela paisagem hipocondríaca das duas oliveiras, a contar uma à outra a desgraça do pobre que não tinha na almotolia azeite para a açorda. […]

José Maria Ançã, o vice-reitor, era em físico e maneiras o antípoda do mano. Tivera tempo de se polir e arredondar como os seixos nos rios, ou tomara na madre diferente configuração. Rosado, gordinho, feições correctas, oleoso, quase poupon, era uma linda estampa de cónego. Não se pode imaginar ninguém mais cuidadoso do seu natural e elegante. Deviam ser assim os soberbos monsignori da Cúria, empurrados na hierarquia do Vaticano pela mão capciosa duma marquesa Roccaberti, favorita de camerlengo, e ainda os mignons de cardeal, entrados nos anos.

Quase nunca se lhe punha a vista em cima, afora os domingos em que celebrava missa em S. Salvador, acolitado por três diáconos. Então, sob o pluvial de lhamas preciosas, escorrendo a luz irradiada dos círios, os seus traços fisionómicos de belo homem, posto que a tender para o ádipe, irradivavam em toda a plenitude. Ele próprio o devia estra a sentir na languidez com que semicerrava os olhos e lançava um dulcífico orate frates aos fiéis amodorrados. Presidia também aos júris dos exames. Furtando-se o mais possível ao contacto com a malta dos ordenandos, incivis, abusadores e malcriados, mais crescia o seu prestígio como acontece com todos aqueles que procedem por detrás de cortina. Nos resguardos, era uma espécie de sacerdos magnus, que raro saía para fora do tabernáculo. Os alunos, quando eram chamados à sua presença, tremiam como réus de pecados ocultos que subissem a uma estância omnisciente para ouvirem ler a sentença funesta.

[…] Mas no cortiço entrara a borboleta nocturna do livre-exame, e a tinha devorava os favos. Que era afinal aquele duo poético-sacerdotal dos Ançãs senão duas gordas lagartas?

[…] Ninguém, pois, em Beja, nem nós por fim, estranhávamos que o P.e José Augusto do Rego tivesse cama, casa e pucarinho à desmão do Seminário, ali se albergasse, e a desse como endereço oficial aos carteiros e amigos. O mesmo sucedia com os Ançãs, mais hipocritamente, porém. O P.e José, vice-reitor, neste artigo era diferente do mano e do mestre de cantochão. Tinha a sua amada, mas, como o freirático D. João V, debaixo de uma reserva convencionadamente tácita, digamos morganática. A criatura parece que era de certa condição, pequena burguesia, filha de militar, ou viúva pobre e afidalgada. Não era nenhuma rapariga da plebe como constava que era a do irmão Manuel, que ordenhava a vaquinha e fazia o queijo, nem como a do P.e Rego, que ela catrapiscara enquanto floria os altares e o pai abastecia as galhetas, em tudo uma digna menina de sacristia. Mas uma senhora de quem se dizia que Monsenhor José Maria Ançã, vice-reitor e poeta, era visita e amparo.

Aquilino Ribeiro – Um escritor confessa-se: memórias, 1974, pp. 49-63.

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Um olhar de relance sobre a antiga Pax Julia

Apoz o repasto, um passeio de reconhecimento pela cidade [de Beja] que é labyrinthica como todas as fortificações moriscas. Restos archeologicos, profanações, janellas com detalhes architectonicos que a iniciativa particular mantem, e afóra isto um cuidado muzeu antiquario no rez-do-chão do palacete municipal, que é deficientissimo para conter em selecta disposição essas preciosidades archeologicas e artisticas, e as colecções bibliographicas e de numismatica.

Mas façâmos a ascenção obrigatória á torre sobrevivente das fortificações de Beja, um bello trecho de muralha com trez pavimentos e portadas artisticas, construido por D. Diniz e hoje confiado á guarda d’uma mulher que amavelmente nos reverenceia… a gorgeta. É a torre de menagem a que ali se vê, ainda erecta, desafiando o poder iconoclasta dos seculos e dos alviões. Dominando a cidade e os campos circumjacentes, a vista alonga-se n’um circuito grandioso até á serra de Cintra que se esfuma na linha do horisonte.

A egreja da Conceição mostra-se aos forasteiros como joia valiosa que se restaura para a corôa bejense. Quando ali entrámos – acompanhados d’um velho marceneiro que leva o seu enthusiasmo pelas antiguidades ao ponto de trocar a plaina pela missão de cicerone – tudo era confusão e atropello de materiaes, não se podendo ajuizar da transformação porque está passando aquelle monumento onde ha muitas preciosidades artisticas.

Passêmos em revista a egreja de Santa Maria, que foi templo moirisco, S. Salvador que é uma egreja vulgaris a servir de cathedral, S. Thiago, o santuario dos Prazeres, o Paço Episcopal. . . – e vamos dar fundo no passeio publico, um recanto lindissimo de vegetação, ao cuidado de jardineiros que manteem n’aquelle logar o milagre estupendo de crear flores… sem agua!

O jardim de Beja é verdadeiramente original: tem macissos florecentes, tem vistas panoramicas, mas não tem agua! Ali nos detivemos algum tempo sem vislumbrar laguna ou cascata, té que descortinámos, sob um agrupamento arvense, um jerico em movimento: era uma nóra que funccionava. O pobre burro era ali o mais activo jardineiro e… quasi que o unico frequentador diario do passeio!

Na amável convivencia d’um inesperado cicerone, – o presidente da camara de Beja, sr. Candido de Brito Penedo, que tem por esta terra solicitudes paternaes – percorremos a cidade em todos os sentidos. Visitando o Club, os Paços do Concelho na praça de D. Manoel, e os arruamentos modernos, amplissimos, em torno da velha povoação. E ter-nos-hia escapado alguns mimos artisticos que as viellas escusas furtam á cupidez do viajor, se não fôra a amabilidade de Penedo que nol-as indicou como preciosidades qu e são, engastadas sob a forma de portal ou janella, n’algumas casas de propriedade particular onde se conservam com justificada religiosidade.

[…] D’aqui resultará por vastos annos toda a negação de Progresso e se a cidade não promove a substituição das suas archaicas estalagens que teem ainda o ranço dos tempos da mala-posta, arrisca-se a não ter por visitantes mais que algum «commis-voyageurs» que a concorrencia obriga a descer no baixo-Alemtejo, fóra da epocha em que as redondezas de Beja se despovoam para vir admirar, ao sol ardente de julho, os grandes andores de prata no devoto cortejo do Pae do Ceu.

João Arruda – Cartas de um viajor, 1908, pp. 69-74.

Denotando a escassa inspiração vertida da sua visita a Beja, a narrativa de João Arruda sobre a antiga Pax Julia coloca em realce, sobretudo, a aparência obsoleta da cidade. Ainda que atribuindo um certo destaque a uma parte dos seus bens patrimoniais e dos seus elementos urbanísticos de feição moderna, o autor contrapôs a essas imagens as impressões do aspecto labiríntico de Beja, próprio do urbanismo antigo, e a forma inadequada como a cidade expunha as suas preciosidades ao olhar, caracterizando-a, ainda, pela sua aridez e ausência de visitantes, que aí acorriam apenas por ocasião da festa religiosa celebrada no mês de Julho.

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BRAGA

O espaço público e as manifestações da devoção

Os tipos sociais de Braga e os seus modos de vida

O processo de modernização da cidade de Braga

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A feição exacerbadamente religiosa que, ainda no início do século XX, conferia à cidade de Braga a sua principal componente distintiva encontrava expressividade nas inúmeras edificações eclesiásticas que compunham o aglomerado urbano e, sobretudo, na tendência de exteriorização da devoção no espaço público. Extravasando os lugares destinados ao culto espiritual, as ruas da cidade constituíam um palco reiterado das demonstrações de religiosidade da sociedade bracarense, imbuída de uma mentalidade idólatra que assumia especial visibilidade nos aparatosos e singulares cortejos tradicionais descritos por Antero de Figueiredo. Ressaltando destes últimos uma forte vertente cénica, o autor colocou, ainda, em evidência o carácter “alegre” das procissões realizadas na cidade de Braga que, paradoxalmente, aliavam à exibição das imagens católicas elementos da simbologia pagã, desvario que, de resto, marcava a “religião do Minho”, devido a apropriações peculiares dos símbolos do catolicismo.

O espaço público e as manifestações da devoção

Em Braga havia, há poucos anos, uma procissão em que a imagem da Virgem, com o menino ao colo, ia sentada em cima de pacífica jumenta muito asseada, com fitas e flores, seus artelhos delgados, terno o olhar, e o pêlo de cetim. E o carinho que o povo dispensava à jumentinha misturava-se, em partes iguais, com a piedade que dedicava à Santa, e por isso todos chamavam a essa festa a «Procissão da Burrinha».

Outra: a do «Boi Bento», em que ia um corpulento boi, amarelo e luzidio, de pesada papeira e cornos enormes, afestoados de rosas, no meio de coros de raparigas, tostadas pelo sol, que, às arrecuas, bailavam e cantavam diante dêle, emquanto outras lhe tapetavam as pedras das calçadas com espadanas, junquilhos e ramos verdes de lírios, que perfumam e tornam bento o ar das ruas. Também nessa procissão, mais se adorava o boi que as imagens dos santos que nela iam.

A procissão de São João, em pleno solstício estival, era, tôda ela, ao longo das ruas de casas cobertas de damasco vermelho, um rio de púrpura, no brocado dos andores, nas opas encarnadas dos «irmãos», e nas grinaldas dos cravos escarlates – flor de sangue e de fogo – flor predilecta com que se faziam todos os enfeites dêste rubro cortejo, votado pelo povo, instintiva e inconscientemente, ao deus Sol.

A procissão de São Lourenço, feita na primeira hora do dia, quando os raios do sol nascente são raios de rosa, rescendia à poesia singela da vida dos campos, à das sementeiras, das searas e das colheitas.

Em Agôsto, antes de amanhecer, andavam homens pelas ruas, com tambores, a acordar a embiocada cidade que dormia. Ao chamamento, todos se vestiam pressurosos; já mulheres apareciam às janelas com caras estrouvinhadas e outras desciam à rua com o sono nos olhos piscos e a face e os cabelos quentes do travesseiro. De uma pequena capela, entre seculares carvalheiras, saía a meiga procissão. A luz da manhã pintava frescura em todos os rostos e os raios amarelos do sol rasteiro tauxiavam ouro nas processionais cruzes de prata brunida, no cetim branco e metálico dos «anjos», nas opas verdes, azúis e escarlates das irmandades e confrarias, e punha pelo chão longos rastros de sombras ocreosas. Entre cantos suaves, que, pelo ritmo singelo e forte, pareciam hinos antigos aos deuses dos primeiros frutos, aparecia o andor do santo, que era uma minúscula latada de canas amarelas, entrelaçadas de parras de onde pendiam gaipos de cachos frescos e maduros (as primícias das cepas nesse dia oferecidas) e sob ela o pequenino São Lourenço – um meigo santinho

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A par dos passos litúrgicos, encenados nas ruas de Braga por ocasião das festividades religiosas, as exibições cénicas de fundo cristão ocorriam, também, no Teatro de São Geraldo, inaugurado a 8 de Junho de 1860 e que, até à abertura do Teatro Circo, em 1915, se manteve como a única sala de espectáculos da cidade. Satirizando o modo despropositado como um grupo de amadores fez representar uma peça sacra no Teatro de São Geraldo, o relato de Júlio de Lemos Macedo denota o gosto da sociedade bracarense pelas récitas de cariz bíblico e testemunha o comportamento devoto que convencionava a vida em público.

aportuguesado, pacato e bom, que nessa noite, diz a lenda, andara, atarefado, pelas vinhas orvalhadas daqueles subúrbios a colhêr uma àbada de uvas novas para dossel do seu andor.

Assim, nesta terra ajardinada, o amor é uma festa, o culto uma romaria, e a vida um rosário de dias alegres.

Pan é Nosso Senhor, o fermento é beatificado e chama-se São Crescente; São João, asceta na Galileia, é brejeiro aqui; e o místico Santo António, doutor em Pádua, uma vez no Minho, fêz-se curandeiro e alviçareiro.

Antero de Figueiredo – Jornadas em Portugal, 1918, pp. 119-22.

Á noite récita no theatro de S. Geraldo. Edificio interior e exteriormente regular, convenientemente illuminado. Ia á scena o apparatoso drama sacro em l prologo, 3 actos e 15 quadros: Os bandidos do monte Hébal ou a redempção do mundo. Tudo sacro, como se vê, e visando á salvação eterna. Na realidade Braga (diga-se em seu abono) no emprego dos meios attinentes áquella salvação não soffre parallelo com terra alguma do paiz, o que me faz justamente suppôr que, se alguns dos nossos compatriotas alcançarem a suprema felicidade de subir ao reino da gloria, esses nossos compatriotas serão, sem sombra de duvida, recrutados na sua maior parte d’entre a devota colonia bracharense.

Era desempenhada por curiosos a récita e o seu desempenho correu sempre muito dentro da orthodoxia christã, muito catholicamente. Desde a arrependida Magdalena ao mau ladrão e do bom ladrão ao próprio Satanaz, todos se mostravam excellentes pessoas, todos comprehendiam muitissimo bem a missão moralisadora para que deviam convergir. Se alguma cousa havia merecedora de reparo era

que o diabo se mostrava talvez um pouco receoso de que o tomassem a serio. Porque, diga-se a verdade, Satanaz, um bom moço e filho de boa familia, a querer fazer de mau na sua gesticulação arremessada, na sua declamação bombastica, na sua voz cava e profunda, n’uns rompantes inopinados d’alçapão, atraiçoava afinal, no esforço do artificio, um coração simples, uma alma bem conformada e uma compleição convenientemente humorada e bem disposta para gosar das cousas do mundo n’uma pacatez catholica e inoffensiva.

Era realmente inoffensivo. Como teria sido facil a resistencia dos canonisados ás seducções satanicas, se todos os diabos assim fossem! como se teria talvez voltado o feitiço contra o feiticeiro e seria Satanaz o canonisado!

[…] Por aqui se ajuiza do effeito geral da peça. A lucta dramatica não irritava os nervos, o enredo não arrancava lagrimas nem produzia deliquios, promovia um ou outro attaque… de riso, a victoria do bem sobre o mal vinha facil e suave e o nosso espirito ainda d’ali sahia pleno de unção christã, contente com os homens e com o diabo e até com uma certa pena d’este…

Em Braga o diabo é um bom sujeito. Tem cauda que sabe disfarçar cautelosamente; mas não quer mal a ninguem, antes é dotado das melhores intenções. Farto da semsaboria do inferno, pretende apenas, emquanto houver Braga, ir gosando das doçuras do mundo sem escandalo e ao abrigo do Codigo Penal, que elle acha muito humanitario. É erudito, sabe latim, frequenta os salões,

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Reportando-se à cidade de Braga da segunda metade do século XIX, a narrativa de Antero de Figueiredo transmite uma visão pejorativa da sociedade bracarense da época, centrada na observação do habitante tradicional que classifica como “braguês” e que nas primeiras décadas do século XX representava já uma minoria na sociedade local. Desse modo, aludindo ao carácter dissimulado que caracterizava alguns tipos sociais da população nativa – entre eles, o mercador, o clérigo, o boticário, o paramenteiro, e o sirgueiro –, o autor realçou o desfasamento entre as atitudes piedosas exteriorizadas pelo braguês e as situações práticas que denunciavam a incomplacência do mesmo face aos seus semelhantes e que adquiria expressão no crescente número de crianças abandonadas e no propósito de maledicência que regulava o convívio social.

vive muito pelas sacristias, priva com os conegos e com as beatas a quem dá a sua pitada e até consta que ajuda á missa.

J. de Lemos Macedo – Através do país: notas e críticas de um provinciano, 1892, pp. 52-4.

Os tipos sociais de Braga e os seus modos de vida

Essa Braga de há uns sessenta anos, embiocada e beata, era uma cinzenta cidade de ruas esganadas, de ruelas aos cotovelos, de praças mortas e de hipócritas casas cobertas de bisbilhoteiras rótulas e de disfarçadas janelas de suspensão. […] O Têrço era rezado à noitinha, de casa para casa, às escuras, acocorando-se amas e criadas na padieira das varandas, ou nos poiais das janelas do peitoril. Quem passava, abafava os passos; e, a um desconhecedor de tais usos, o múrmuro bichanar de dezenas de bôcas piedosas, escondidas na noite, dava a impressão de que, a essas horas nocturnas, as casas tinham voz e cochichavam seus segredos…

Saía-se pouco, e sabia-se tudo. A maior parte das senhoras só iam de casa para a missa e da missa para casa, mas isto era bastante para conhecerem o que se dizia e se inteirarem do que de mais oculto se passava na cidade. Janeleiras, viviam à sacada, noite e dia. Os janelos de crivos mexericavam ditos e enredos, espionando tudo, pois das adufas se via sem ser visto, se falava sem ser ouvido.

Aos domingos, algumas famílias, raras, iam passear até ao Bom-Jesus-do-Monte, em trem fretado. Na concha do carro levavam a borracha do verde, e, num açafate, entalado entre douradas rôscas de pão de trigo, o pacato jantarzinho, que piedosamente comiam debaixo do Cedro, ou à sombra de uma capela, ou, entre sobreiros, na Mãe d’Agua. Outras, arredias, escondiam-se em passeios modestos, a pé, pelos Granjinhos, pelas Hortas, por São João da Ponte, Galos, Maximinos, Falcões; – ou até Ferreiros, pela estrada do Pôrto. Muitas, ainda mais reservadas, mais bisonhas, ficavam-se pacatamente em suas casas; e, depois do jantar, que regulava entre a uma e as duas horas (jantar que, em certos domingos, era obrigado a frigideiras ou a sôpa sêca feita no pasteleiro) recebiam pessoas amigas, que iam passar um bocadinho da tarde: e aí, em volta de cálices de vinho abafado e de pires com suplicos e forminhas de São Vicente, «desenferrujavam a língua...» Era a maledicência profissional passeada pelos domicílios; e nunca faltava, para «prato do dia», um suculento escândalo, em que mais se demoravam, mordendo-o, mastigando-o, saboreando-o – deliciadamente. Havia grandes artistas em escabichar os «fracos» dos seus semelhantes, esquecendo-se das mazelas próprias, pois defeitos e perfumes vêem-se e sentem-se mais nos outros do que em nós… Não se poupava ninguém!

Em várias classes, faziam-se grupos idênticos; e mais por aqui, mais por ali, quási todos caíam na partidinha da merenda, bem picada de má língua e bem regada com o vinhinho adamado e aconchegado da «Companhia», que confortava o estômago e a alma. Não havia outro meio de encher

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Em contraste, a cidade de 1911 descrita por José Valdez, ainda que assumindo uma feição provinciana, sobretudo evidenciada na sua escassa vida nocturna, distancia-se do quadro monótono traçado por Antero de Figueiredo relativamente às horas de ócio do “braguês” na segunda metade do século XIX. Desde logo, segundo a perspectiva transmitida por José Valdez, em 1911 as práticas de lazer da população da cidade de Braga estavam já associadas a novos lugares de sociabilidade: ao Clube Bracarense, ao Ateneu Comercial e, sobretudo, aos estabelecimentos da Arcada da Lapa, como o café Viana, o café Faria e a Brasileira. Frequentados por vários tipos sociais – o artista, o intelectual, o peralta, o “gourmet”, o conselheiro e o comendador –, os cafés da Arcada, destacavam-se pela sua centralidade no convívio social, assumindo especial relevo no cultivo da má língua e na formação da opinião pública local.

as insípidas tardes do insípido domingo braguês. […] Aos sábados à noite o Têrço era passeado pelas ruas da cidade por um lamuriento grupo de devotos

encapotados que o rezavam a meia-voz, soturnamente, atrás de um pequeno andor, entre lanternas de chamas moribundas, e uma decrépita campainha badalando, triste, de onde a onde. Nas igrejas, missionários truculentos clamavam contra os pecados da carne e denunciavam os pavores do Inferno; os homens batiam cavamente nos peitos, e, de joelhos, oravam de braços abertos, em espasmódicas expressões de olhos e bôcas escancaradas e estúpidas; e as mulheres do povo, horrorizadas, chamorravam o cabelo à escovinha, como galuchos, impunham-se a penitência de se não lavar nem mudar de roupa, e, mantéis pela cabeça, rezavam de bôrco, com as bôcas postas nas lajes das sepulturas – de bôrco, semelhando obuzes, como dizia Camilo. Havia muitas procissões e muitos «lausperenes». Algumas pessoas ouviam diáriamente três e quatro missas. No entanto, por tôda a cidade fervilhavam cartas anónimas, denunciando crimes, inventando calúnias, intrigando amigos, indispondo famílias, desfazendo lares. Os enjeitados eram expostos tôdas as noites nos pátios das casas; a Roda abarrotava; e nos tribunais jurava-se falso por meio quartilho de vinho.

Antero de Figueiredo – Jornadas em Portugal, 1918, pp. 282-7.

A vida nocturna da cidade é apática, triste e sensaborona e na Arcada toda ela se resume. Ali poisam os artistas, os intelectuais e os gourmets. À noite os cafés enchem-se e não falta o janota de Braga, que tanto pode ser caixeiro de loja de fazendas como visconde do que é seu. O peralvilho de Braga tem porém um ar especial que o carateriza. Exagerado e um tudo nada pretensioso, é geralmente uma criatura vasta de ideias, mas de grande chapéu jesuítico, grande cache-col de lã branca e sapatos americanos de grande laçarote. Sem querer recordamos logo o Damaso Salcede de Eça de Queiroz. O peralta de Braga tem ali o seu espelho. Na generalidade é retrógado e tem pelo progresso social o horror das coisas difíceis. Veste no Porto, embora os fatos sejam feitos em Braga, usa na lapela uma flor descomunal, não liga importância a ninguém, fuma cigarros finos, produz paixões nas mulheres, tem nariz de cavalete e põe bentinhos ao pescoço.

Pela Arcada aparece também o conselheiro e o comendador, principalmente este último, muito abrasileirado e solene. De ventre grande, obeso e descomunal, tem a linha falsa duma aristocracia endinheirada. Fala devagar e dificilmente, põe nos dedos grandes anéis de brilhantes e usa grossa corrente de oiro. O outro não. Tem monóculo ou luneta de aro. Fala por sete e sentenciosamente. Discute política, fuma bons charutos e não admite discussões contrárias à sua opinião.

Os cafés em Braga são muito concorridos principalmente os da Arcada. Não havendo outras distracções toda a gente os busca à noitinha e ali se cavaqueia e se joga até altas horas da noite.

O mais frequentado é, sem dúvida alguma, o café Viana onde a sociedade mais selecta da terra

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se reúne, maldizendo, chocalhando e discutindo política. Amplo, simples, mas confortável, a sua freguesia, como já disse noutra conferência, é mais amiga do cavaco do que gastadora. O imediato em concorrência é o café Faria, onde brasileiros endinheirados se reúnem jogando o dominó, o solo a tremoços e lendo as notícias frescas. Por último há a Brasileira, muito bijou e recócó, confortável também mas que, por ser de exíguas dimensões, faz com que a freguesia mal tenha tempo de saborear a cavaqueira e o cafezinho. Por isso mesmo, de instante a instante, os fregueses levantam-se para dar lugar aos que à porta esperam a sua vez, de dedinho no ar, tal qual as crianças nos colégios.

No entanto, sempre dá tempo a que se cultive a má língua, representada por certo alfaiate que dá tesouradas de mestre.

Nos cafés é que se fazem e desfazem as reputações e os grandes homens de Braga e do país. Diante duma chávena de café e dum cálice de cognac ou de genebra, os poetas inspirados escrevem os seus versos, os jornalistas redigem os seus fundos, os más línguas escovam a poeira dos lares com uma intriga picante de meio provinciano e assim se passa a noite, entre uma fumarada de cigarros, algazarra dos jogadores e gargalhadas doutros.

Por isso a vida artística em Braga, como de resto em todo o país, vegeta. O teatro está às moscas. Os rapazes coçam as esquinas e flirtam doidamente. Uma conferência de arte não desperta o interesse público e só um limitado número a vai ouvir. As damas reúnem-se em salsifrés doentios e não cultivam os jogos desportivos, onde a sua elegância e distinção se aformosearia mais. O tennis é um jogo diabólico. As salas de armas e a ginástica são utopias. O cinematógrafo só dá para três dias por semana. As tournées de arte não conseguem passar as casas e deste modo os artistas de valor, que os há em Braga, vão-se estiolando com um ar de camélias meladas.

Em compensação, uma festa de igreja mete todo o snobismo bracarense que ali se reúne com um ar compungido e doloroso e na profusão de lumes e incenso o pobre Jesus de Nazaré, esse belo Rabi todo cheio de Luz e Amor, símbolo duma soberba e grandiosa religião cheia de Vida, Paz e Humildade, decerto que se convulsiona em estrebuchões de dor, ao ver falseada toda essa doutrina que pregou […].

As reuniões mais elegantes de Braga realizam-se no Clube Bracarense ou no Ateneu Comercial. O primeiro é o poiso da alta aristocracia da cidade. Ali só aparecem velhos pergaminhos, muito sangue azul, muito dele criado no Brasil e as reuniões tomam o ar discreto e antigo duma nobreza muito fidalga.

Os gomosos bracarenses reúnem-se ali e por isso os bailes, creio, deverão ser cumpridos à rigore, isto é, de calção e meia, indo as damas com decote e cabeleira empoada. E na realidade o clube, visto externamente, acantonado e triste, tem o ar avelhentado dum casarão antigo e não sei porquê?! quando o vejo, o meu espírito voejando pelas altas regiões do sonho recorda esses velhos bailes de outrora, quando as mulheres, muito gentis e galantes, se debruçavam da sua liteirinha para descer, poisando delicadamente no solo um pezinho diminuto e prendendo nos lábios delgados cor de romã um sorriso cheio de graça e de amor.

[…] No Ateneu, os bailes, embora não revistam um tom tão aristocrático, não são por isso menos elegantes, tanto assim que la noblesse do outro clube ali concorre também.

Uma soirée no Ateneu constitui em Braga sempre um grande acontecimento. Durante dias ninguém fala noutro assunto e a cidade sente-se revolucionada, pois é mister não desmentir as tradicionais recordações de elegância e distinção desta bela casa.

José Valdez – Uma noite no Ateneu: conferência realizada no

teatro de São Geraldo em 14 de Dezembro de 1911, 1981 [1911], pp. 9-14.

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Descrevendo a cidade de Braga das primeiras décadas da segunda metade do século XIX, a narrativa de António da Costa dá conta da fase de arranque do processo de modernização da cidade, que contrastava com o carácter conservador da população local. Conferindo realce às marcas da modernidade que já se faziam sentir em Braga – anunciadas com o estabelecimento da imprensa, dos livreiros, do teatro, do jardim público e das instituições bancárias ou, também, com o incremento das construções da iniciativa pública e privada –, António da Costa enfatizou, ainda, a orientação tradicionalista da sociedade bracarense, manifestada nas suas atitudes persistentes de resistência face ao progresso.

O processo de modernização da cidade de Braga

Ó Braga fiel, Ó Porto ladrão, Que sempre quizeste A constituição.

Mal se me accendeu a luz do entendimento, affiz-me a ouvir este hymno sonoro, de que Braga se gloriava. […]

Entristecia-me o não comprehender os versos, e vejam como são as cousas! – quando os vim depois a entender, já tinha saudades do tempo em que os não sabia decifrar.

[…] O Porto, como ente masculino, era um ladrão; Braga, como dama, era fiel. Até aqui vamos muito bem. Mas, como não ha ladrão sem roubar, o ladrão intentou justificar a sua fama, e entrou a fazer das suas.

Principiaram-se a ver uns homens de rolos a tiracollo, pondo bandeirinhas aqui e acolá, e depois a dirigirem outros mais numerosos. Estes britavam pedra; aquelles faziam aterros e desaterros; desappareciam precipicios; desarredavam-se os pedregulhos; o caminho ia parecendo uma grande fita amarella. Em bom portuguez: era uma estrada que ligava o Porto a Braga.

Começaram depois a correr por essa estrada umas cousas movidas por alimarias, e que traziam muita mais gente do que até ali, para visitar a augusta cidade, ou n’ella commerciar. Chamaram a umas d’ellas diligencias publicas, e a outras carros fretados.

A par d’isto principiaram-se a vender diariamente uns papeis, que vinham do correio, todos cintados, como um titulo no alto e umas novellas no andar de baixo. Ao começo poucos os liam; depois foi pegando a moda, iam-nos lendo mais; por fim já quasi ninguém podia passar sem elles.

Ora, assim como vinham os taes papeis para cá, também acordou o appetite de os mandarem para lá. O desejo realisou-se. Publicaram-n’os na cidade, aos taes papeis; e d’ahi por diante fallou-se de Braga, por todo o reino, ainda mais do que até ali se fallava. Para se imprimir a tal papellada carecia-se de umas machinas de ferro a que se chama prélos; fundaram-se então as typographias. Eram necessários também uns homens que vendessem os jornaes nas lojas; abriram-se essas lojas, e os livreiros são hoje nem menos de quatro.

Desconfiaram depois, que, apesar de não ter ocorrido nenhuma revolução no systema planetario, as noites de inverno eram maiores do que as dos invernos anteriores. Em consequência d’isto organisou-se uma associação para fundar um theatro.

Não estremeçam. Duvidam? Pois vão ver o elegante theatro de S. Giraldo, no largo da Lapa, theatro com tres ordens de camarotes, alegre, alumiado nada menos do que pelo tradicional e brilhante lustre que foi do theatro do conde do Farrobo nas Laranjeiras.

Se lavrava já a heresia de um theatro, porque não surgiria também a heresia de um jardim? Pois então, para o abrirem, não estava ali aquelle espaçoso campo de Sant’Anna, um forno de

verão, uma lameira no inverno? Que faz um dia o perdulario do município? Commette a impiedade de contrahir um emprestimo, tira o dinheiro ás algibeiras dos contribuintes, e com elle converte aquelle campo no jardim mais risonho que têem visto os meus olhos em terras das nossas provincias. Lá está

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elle ao pé do theatro de S. Giraldo, todo á moderna, tendo na frente o Bom Jesus do Monte, à direita a grande rua dos Congregados, à esquerda a do Banco do Minho; lá está o jardim com o seu gradeamento elegante, rodeado de arvoredo frondoso, com os seus chorões esplendidos, seu bonito lago, seu coreto á chineza, seu pavilhão envidraçado a cores, ruas espaçosas, todo elle uma profusão de verdura, e de flores, recreio dos passeantes que em conversação agradavel e ao som da musica descansam dos trabalhos do dia.

Não se julgue, porém, que logo n’um repente commetteram todos o peccado de ir ao novo jardim. Da parte de alguns, e de algumas, foi pouco a pouco. Nem elles sabem como foi.

O caso passou-se d’este modo. Alguns embiocados e embiocadas, ao principio, benziam-se quando ouviam fallar no jardim. Depois aguçou-se-lhes o appetite quando á noitinha se encaminhavam pelas ruas adjacentes, presenceando o crime de revés, para dentro das grades. Depois, já não olhavam de revés, olhavam direito. Depois, atreveram-se mesmo a chegar á porta de ferro, e a olhar para dentro fingindo ser por acaso. Depois entraram, como quem se estreia n’uma casa de jogo, mas sumindo-se logo por uma das ruas lateraes, e espreitando de lá, a furto, por entre as arvores, suppondo que toda a gente os via.

Depois… – mau é principiar – passaram das ruas lateraes para a grande rua do centro, promettendo ser uma vez sem exemplo, só entrar e sair. Assim o fizeram, olhando com receio para todos os lados, como quem vae perpetrar um assassinio. Não desgostaram. Finalmente, na vez seguinte já não poderam prometter nada, porque se demoraram toda a noite emquanto a musica tocou. Tinham caido no inferno.

A pilhagem ás bolsas dos contribuintes foi mais adiante. Eram descarados aquelles ladrões dos vereadores. Ao jardim acresceu mandar a camara municipal alluir a porta do Souto para a barbaridade de fazer uma praça alindada, a nova praça do Barão de S. Martinho, o chiado de Braga; mandar também reedificar os paços do concelho, abrir um campo espaçoso para o mercado, e realisar outras obras de quejanda inutilidade. A estes desperdícios públicos juntaram-se os que saíam da iniciativa particular, e a cidade começou a ver construcções de prédios novos que a aformoseiam.

Foi então que um attentado novo e inaudito se commetteu na cidade toda, na fiel depositaria das tradições. Sabe-se que Braga era uma cidade inquisitorial. Exceptuados os palacios, quasi todas as janellas eram gelozias, isto é, vedadas com grades de madeira, janelas de rotulas. O viajante que a percorresse, ajuizava atravessar um cemitério. De repente, as grades d’aquelles milhares de carceres são voluntariamente despedaçadas, as gelozias cáem por terra como se fôra mutação de theatro, muros a dentro de todas aquellas innumeras paredes negras e doentias entra-lhes a luz, o ar, o sol, a saude, e ás janellas surge como por encanto um mundo novo, de rostos juvenis, que pede em altos brados a vida, o affecto, a justiça, e que parecia ter surgido da campa á voz da mocidade e do progresso. Alleluia! O sol de Braga alumiava as suas virgens, que ás janellas e por entre sorrisos lhe acenavam com os lenços.

Tinham desapparecido as cataratas da cidade, construíam-se prédios formosos, progrediam melhoramentos, alargavam-se as portas das lojas, estreavam-se mostradores, a letra minúscula das taboletas era substituída por letras grandes e douradas, appareciam uns cartões com figuras de senhoras francezas.

Tudo ali estava nos figurinos, o penteado, o trajo, o bico do lindo pé, e até o sorriso meio escondido no leque. A moda, o delirio? Para as ruas, minhas senhoras, para as ruas, que está aqui a moda.

É seductora a voz da moda. Para a rua pois. Então as ruas bracharenses, até ali quasi desertas, perguntavam a si próprias se eram as mesmas

ruas. As embiocadas, com seu vestido e mantilha negra, que mais pareciam caixas de pontos de theatro, foram, sem se saber como, rareando successivamente.

Cada mantilha, que se via de menos, convertia-se em mais um penteado, n’um vestido de seda, n’um chapéu ajardinado de flores. Viam-se já, á luz do sol, os rostos sympathicos, as cinturas

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Aparentemente contradizendo o relato de António da Costa, a visão transmitida por Eugénio de Castro acerca da cidade de Braga do final do século XIX indicia o predomínio que as facetas antigas da cidade mantinham em relação aos seus atributos modernos. Contrapondo a feição religiosa da Braga oitocentista e os elementos cosmopolitas que nessa urbe já se sobrepunham à paisagem antiga na segunda década do século XX, a narrativa de Eugénio de Castro denuncia os efeitos de uma nova fase de modernização urbana, situada no período de vigência da I República e associada, em grande parte, ao movimento de laicização do espaço público.

flexiveis, as figuras esbeltas. Despontava a elegancia. Les dieur s’en vont. As farricocas íam-se. Braga pedia cada vez mais ao ladrão do Porto, e ás vezes também á ladra de Lisboa, que lhe

enviasse os seus velludos, as suas sedas, os seus cabellos; e o endiabrado do Porto a rir-se, e a mandar-lhe tudo quanto ella lhe pedia.

Se o Porto havia roubado a Braga as suas noites socegadas, introduzindo-lhe theatro, jardim, illuminação de candieiros, porque não lhe daria também o exemplo de alguns fócos de ladroagem? Creou-se então o banco do Minho, e depois o banco commercial. Até ali quem necessitava de dinheiro tinha de o obter (não sendo das irmandades) por exorbitantes juros. D’ali em diante as classes soffreram a ladroeira de o alcançarem sem custo, e a seis por cento.

[…] Duvidar, depois de tudo isto, de que a fiel Braga não tenha levado sua parte na ladroagem do Porto, não me parece logico em demasia. Quem ha vinte annos visse a augusta Brachara, a Braga das tradições, a primás das Hespanhas, a cidade que de dia parecia um carcere e á noite um cemitério, e a veja hoje com a sua illuminação, com o seu theatro, com o seu jardim, com os seus predios alindados, com as suas casas francas, com as suas ruas libertas, com os seus bancos de commercio, com os seus hoteis durante a maior parte do anno a trasbordarem de hospedes, com o seu luxo, com a sua resurreição, não dirá que seja a mesma cidade.

António da Costa – No Minho, 1874, pp. 71-81.

Quando pela primeira vez visitei Braga, há perto de trinta anos, ainda a velha cidade conservava muitos restos das suas antigas e características feições: nas ruas, eram mais numerosos os sacerdotes do que os leigos, e êstes, quási todos meditabundos e de olhos baixos, tinham o ar de quem vem da comunhão ou para ela se encaminha; os sinos, uns alegres, outros tristes, uns amáveis, outros rabujentos, uns com asas e com o apetite de voar, outros com asma e com reumatismo, ensurdecedoramente badalavam, do alvorecer ao pôr do sol; entre os pequenos estabelecimentos comerciais, raro era o que não tinha lá dentro um oratório com a imagem da Virgem ou de Santo António, entre palmitos; nas vitrinas dos retrozeiros, o que mais se via eram sedas e galões para paramentos, e, nas dos ourives, os objectos profanos, os anéis e os brincos, as medalhas e as pulseiras, encolhiam-se tímidamente a um canto, como se fôssem pecados surpreendidos em flagrante, para darem o melhor lugar da exposição às custódias radiantes como girassóis, aos crucifixos e aos cibórios, aos turíbulos e às navetas; […]

Voltando, há oito dias, a Braga, custou-me a reconhecê-la, tão remoçada a fui encontrar e tão diversa daquela outra Braga, que em rapaz me parecera teológicamente pesada e bisonha […].

Esta, como atrás notei, nem uma sombra parece do que era quando pela primeira vez a conheci. Há ruas novas, e nas velhas muitos são os novos prédios que as remoçaram. As lojas de artigos piedosos, que tão numerosas eram dantes e que à cidade impunham uma tão inconfundível feição mística, já hoje

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rareiam, e, em compensação, multiplicaram-se e civilizaram-se os armazens de modas, as perfumarias e as mercearias de luxo, em cujas vitrinas as roupas brancas femininas, os frascos de essências lânguidas e as garrafas de vinhos raros acendem labaredas de concupiscência e gula na imaginação dos adolescentes, que param extasiados e pensativos diante dêsses mostruários de perdição. O número dos clérigos, que aqui foi legião, diminuiu também considerávelmente, e tanto que chega a parecer que a moléstia deu em Braga nos padres, como em outras regiões nos castanheiros. Os monte-pios e outras associações de previdência, que em Braga estavam numerosamente organizados com caracter mais ou menos religioso, se acaso existem ainda, não se mostram, vivem escondidos com vergonha ou com mêdo, e o que por toda a parte se vê, contrariando o espírito de renúncia tantas vezes aconselhado do alto dos púlpitos, e excitando, pelo contrário, a cubiça das riquezas, são casas bancárias, sumptuosamente instaladas.

Como se todas estas mudanças não fôssem bastantes para alterar completamente a fisionomia de Braga, até os seus sinos mudaram, passando de pródigos a somíticos, de sinos tagarelas a sinos de poucas palavras.

Grandes trabalhos passou o Diabo para conquistar esta cidadela do catolicismo, que durante séculos pareceu inexpugnável, mas, o certo é que a conquistou afinal, e que por lá anda agora à vontade, disfarçado ora em oficial do exército, ora em deputado da nação, ora em proprietário, ora em capitalista, e até às vezes em cónego, e sempre próspero e risonho, como quem está nas suas sete quintas. Deve ter sido êle, eterno imaginador de garotices e trapaças, quem, há pouco, por ocasião de uma peregrinação religiosa, pespegou no meio dela com uma malta de gatunos muito bem barbeados e tonsurados, os quais, de sotaina e sobrepeliz, como se fossem autênticos sacerdotes, deram uma formidável cresta nas algibeiras dos peregrinos.

Eugénio de Castro – Cartas de torna-viagem. Vol. II, 1927, pp. 101-9.

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BRAGANÇA

As salas de espectáculos e o Museu Municipal de Bragança

A cidade como motivo de exaltação e sátira na obra dos autores do distrito

A cidade de Bragança nas narrativas de viagem

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As salas de espectáculos e o Museu Municipal de Bragança

O PAGEM D’ALFARROBEIRA foi, pela primeira vez representado, no dia 8 do corrente, no Theatro de Bragança.

Por essa occasião muitas pessôas se prestavam a obsequiar-me.

Reconheço os sacrificios, a que os meus amigos se deram, para que o Drama tivesse o melhor resultado.

Se não fosse a demora, que tem havido na impressão do meu Drama, e o desejo de satisfazer quanto antes aos compromissos, que tenho contrahido com os Senhores Assignantes, seria melhor demonstrado, ainda que não mais sincero, o meu reconhecimento.

Quizera eu juntar a cada exemplar a musica composta pela Ex.ma Snr.ª Elvira Candida Garcia de Moraes, para a Canção que serve como d’introducção ao Drama, na qual aquella Snr.ª, traduzindo exactamente o pensamento, deu mais uma prova do seu talento artístico, e gosto singular pela musica. – Egual desejo tive a respeito da Chacara do segundo acto, cantada pelo Snr. Leonardo Manoel Garcia Junior, com musica de sua invenção: mas tudo isto importava longa demora, de que me podia pedir conta.

Espero pois que todos aceitem este simples testemunho de gratidão; unico agora possivel. Pela mesma occasião tive também um novo favor do meu illustre patrono, O SNR. FRANCISCO

XAVIER, que a modestia me manda callar, e o coração reconhecer.

Bragança, 30 de Junho de 1854.

Francisco Manuel Trindade - O pajem de Alfarrobeira, casamento e mortalha no céu se talha: drama em 3 actos e 5 quadros, 1853, p. 79.

Uma familia ricaça possuia ha muito um cão, que era todo mimo e graça, e era todo estimação.

Divertia o dono; a dona revia-se n’elle, e até, recostada na poltrona, o cão dormia-lhe ao pé.

Seguindo a tendência da época, Francisco Manuel Trindade compõe um drama de teor histórico, cuja representação, também como era habitual, antecede a respectiva publicação. Este breve posfácio dá-nos conta da relevânica da componente musical do espectáculo, elemento muitas vezes responsável pelo sucesso da representação de textos com fracas qualidades dramatúrgicas.

A abertura do Teatro Camões, inaugurado em Maio de 1892 com a representação do drama A mãe dos escravos e levado a cena por um grupo de amadores, constituiu um importante melhoramento na vida cultural e lúdica da cidade de Bragança, impulsionado sob a égide da Associação dos Artistas local e edificado no espaço anteriormente

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Diziam que era um portento; lambia as mãos, divertia! e lisonja e entretimento quem é que os não aprecia?

Succedeu, porém, que o bicho, ou fosse por distracção, ou por maldade, ou capricho, á dona mordeu na mão.

Ora, quer em bicho humano, quer em outro, a norma é isto: lamber… amança um tyranno! mas morder… irrita a Christo.

A Christo não! Esse exemplo de justiça, paz e amor, se expulsa os ladrões do templo, dá a outra face á dôr!

Mas, se a Christo não irrita, certo é que irrita o christão; e a mordedura maldita, fez cahir da graça o cão!

Era um mau, uma serpente, passava a ser um perigo; e ha sempre meio da gente se livrar d’um inimigo.

Sendo o caso dos mais graves, o cão, o tigre, o jaguar, foi fechado a sete chaves, n’uma baiuca sem ar:

toca estreita, immunda, infecta, impoçada, humida, fria, como uma pocilga, abjecta, como um tumulo, sombria!

Lá jazia o desgraçado, na sua grande amargura, como que em vida enterrado n’uma negra sepultura.

E se acaso alguém o via, liam-se no seu olhar supplicas de quem pedia Que acabassem de o matar.

Cristóvão Aires – Antros humanos, 1893, pp. 7-11.

ocupado pelo Teatro Brigantino, cujo encerramento havia privado a cidade de uma sala destinada à arte de Tália. Doravante constituindo a principal sala de espectáculos da cidade, o Teatro Camões foi, também, um palco frequente para a realização de saraus literários, conferências e sessões de propaganda política e, ainda, um lugar para o exercício de acções filantrópicas. Da autoria de Cristóvão Aires, poeta e historiador militar que produziu alguns poemas inspirados na cidade de Bragança à época em que aí exerceu funções como governador civil, o poema Antros humanos indicia essa função polivalente desempenhada pelo espaço do teatro, tendo sido escrito para uma récita de beneficência que, decorrida no Teatro Camões a 15 de Maio de 1893, visou a recolha de fundos em prol da melhoria das condições de vida dos presidiários da cadeia de Bragança.

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Nesses ultimos tempos tem-se desenvolvido muito entre nós o amor pelos estudos archeologicos, dando origem á criação de grande numero de museus, tanto publicos como particulares, aonde se vão reunindo todos os objectos da antiguidade que se encontram dispersos.

E bem é que os trabalhos da archeologia vão tendo o desenvolvimento que merecem, e que haja ainda quem se interesse em não deixar perder esses thesouros de subido valor para a historia de um povo e para o estudo da sua arte. A archeologia ministra ao homem muitos meios para a comprovação directa de innumeros factos que lhe servem de valiosos auxiliares para conhecer o meio em que vive e a historia do seu país.

E, alem da utilidade que tem como fonte subsidiaria da história e das leis da arte, ella é ainda um explendoroso campo de recreação para o espirito, levando-nos pela observação das ruinas e dos objectos antigos á contemplação do passado; põe-nos em contacto com elle, e habilita-nos a bem podermos avaliar dos caracteres, vida, usos e costumes do povo a que pertenceram.

Sobejos motivos ha, pois para que os homems mais cultos na sciencia historica e que mais se interessam para bem conhecerem o passado do país, em que vivem, sejam incansaveis em procurar e reunir, em todos os seus recantos, todos os vestigios da antiguidade, que a ignorancia ou a incuria tem no completo abandono.

E devemos dizer a verdade, que mal se explica como em Bragança, capital de um districto, onde as preciosidades archaicas são tão interessantes e em tão grande numero, não se tenha, até hoje, criado um museu municipal, á imitação do que teem feito muitos municipios como Santarem, Elvas, Extremoz, Figueira, Lagos, Faro, etc., não fallando nos do Porto e Lisboa, aonde se fossem reunindo todos esses objectos, que, mesmo nas suas immediações, se encontram em tanta profusão.

A criação de um museu municipal em Bragança impõe-se portanto; é uma necessidade que a illustração e o caracter dos brigantinos não devem deixar por muito tempo de satisfazer, a não quererem incorrer nas justas censuras do mundo culto.

Não é a despesa que deve prender os representantes dos municipes, por isso que ella em pouco poderá importar, se se attender a que o museu se deve ir formando pouco a pouco, com a reunião dos varios objectos, á medida que se forem encontrando, e que a vontade dos individuos leve a offerecer para os tornarem conhecidos e evitar que se percam ou se deteriorem. Basta reservar uma pequena sala do edificio da camara aonde elles se vão juntando e colleccionando.

E d’esta maneira, em toda a occasião, haverá ensejo para apreciar sem muito trabalho os elementos archeologicos, ethnographicos, anthropologicos e de historia natural, pois de tudo deve conter, de todo o concelho e até do districto. Assim deve compor-se de collecções de moedas, objectos prehistoricos, esculpturas, brasões, inscripções latinas e portuguesas, etc.; de instrumentos de lavoura, trajos

A fundação do Museu Municipal de Bragança, proposta à Câmara local pelo vereador Sebastião dos Reis Macias e aprovada na sessão ordinária de 4 de Novembro de 1896, encerra uma série de episódios revestidos de uma assinalável atitude de participação cívica que se manifestou na mobilização de diversas figuras locais em torno da ideia da criação de um museu e que teve a sua expressão nas páginas do semanário Norte Transmontano, desde o último trimestre de 1896 ao início de 1897. Desencadeado com a publicação do artigo da autoria do militar e arqueólogo Albino dos Santos Pereira Lopo, transcrito da edição do Norte Transmontano de 29 de Outubro de 1896 pela revista O Arqueólogo Português, também o desenvolvimento do processo de criação do Museu Municipal de Bragança foi, em grande medida, determinado pela intervenção de Albino Lopo que, mesmo antes de vir a ocupar o cargo de primeiro director do museu, foi responsável pela organização de uma subscrição pública a partir da qual se constituiu uma colecção museológica. Deliberada a instalação provisória do Museu Municipal numa sala dos Paços do Concelho, a cerimónia inaugural realizou-se a 14 de Março de 1897, sendo assinalada com as alocuções proferidas por Albino Lopo e pelo major Luís Ferreira Real, presidente do município, e contou, ainda, com a participação musical dos Bombeiros Voluntários de Bragança.

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caracteristicos, instrumentos musicos, apparelhos de caça e pesca, etc.; de cranios encontrados nos campos, esqueletos, collecção de cabellos, etc.; e finalmente amostras de madeira, productos agricolas, variedades de rochas, animaes embalsamados, etc.

Os museus locaes, formados nestas condições, são indispensaveis para realizar um dos princípios mais importantes da sabedoria, o nosce te ipsum.

Albino Lopo – “Museu Municipal de Bragança”. O Arqueólogo Português. N.º 1-2, 1897, pp. 48-9.

A cidade como motivo de exaltação e sátira na obra dos autores do distrito

1

Aqui torna o das cantigas, Aqui torna o cantador: A quem o ouve, saude Na graça e paz do Senhor!

………………………….

3

Ninguem reprhenda este canto Pela tristesa que tem, Que ninguem reprhende um filho Por chorar por sua Mãe.

4

Provincia de Traz-os-Montes, Ai que triste é tua sina! Que sendo grande entre as mais Te fazem tão pequenina!

………………………….

9

Bragança, terra tão nobre, N’esta provincia a primeira, É a ti a quem pertence Levar a sua bandeira.

10

Mas lá vem Villa Real Que quer ter a primazia, Não te guardando respeito, Faltando-te á cortezia!

Publicado pela primeira vez na colecção de distribuição gratuita “Folhetos para o Povo”, este poema intitulado Loas á cidade de Bragança, no qual o autor incita a cidade “para que não entregue o seu mando senão aos seus filhos”, denuncia a situação de agitação política e eleitoral vivida no plano local entre o final de oitocentos e o início do século XX. Surgindo como produto de um ambiente conflituoso e como forma de reacção aos intentos do Partido Regenerador que pretendia obter o controlo do distrito de Bragança, colocando à sua cabeça o vila-realense António Teixeira de Sousa, o poema de Trindade Coelho põe em evidência uma das principais fontes de polémica da época, decorrente da oposição encetada por algumas das figuras naturais do distrito de Bragança contra a intromissão dos adventícios na política local.

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11

Bragança, nobre Bragança, Falla tu como quem és: – Tem-te lá, Villa Real! Não venhas calcar-me aos pés!

……………………………

16

Bragança, cidade forte, E em tudo tão principal, P’ra tomar teu mando antigo Não venha Villa Real!

17

Villa Real, linda villa, É real, por ser do Rei; Mas se o Rei é de Bragança, De Bragança ha-de ir a lei.

……………………………

20

Manda a villa ou a cidade? Pois contra a lei, contra a usança, Já quer o filho segundo Ser morgado da herança!

21

Defende a tua cidade, Põe-te em guarda, povo forte! Não lhe passe a villa adeante, Nem na vida, nem na morte!

Trindade Coelho – A minha candidatura por Mogadouro: costumes políticos em Portugal, 1901, pp. 128-31.

SALGUEIRO – Mas que significa este grande ajuntamento, este enorme entusiasmo?

MOURA – Pois não sabe? Eu lhe explico: como não deve ignorar, esta cidade enferma há muitos anos, séculos talvez, de uma pavorosa enfermidade, de uma avassaladora epidemia. Diversos virus de ordem moral a atacam nos seus elementos e a derruem nas suas bases. A inveja, a calúnia, o despeito, a intriga e todos os vícios ruins, passeiam triunfalmente por

De tom eminentemente satírico, a revista em 3 actos Bragança por um canudo, da autoria do brigantino Raul Manuel Teixeira e datada de 1 de Fevereiro de 1908, tem como mote central a cidade de Bragança no tempo da ditadura de João Franco. Caracterizando a urbe a partir dos

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essas ruas numa demolidora missão. Em balde se tem procurado remédio para atacar a marcha da doença…

SALGUEIRO – Mas, os médicos, que dizem? MOURA – Homem! os médicos!... A questão não é com os

médicos. A terapêutica a aplicar é toda de ordem moral. Em vez de sinapismos, fortes doses de civismo; em lugar de reconfortantes, valentes injecções de dignidade. E é por isto que uma embaixada de sábios, de um país desconhecido e de uma desconhecida mas eficaz capacidade científico-moral vem mandada por um poder sobrenatural, tomar o pulso ao doente e prescrever o remédio que isto necessita…

SALGUEIRO – E chegam hoje, pelo visto, os tais emissários… MOURA – É verdade, no comboio correio. SALGUEIRO – Mas sendo assim, como me acaba de informar, admira-me como o governo não

tem intervido, de uma maneira eficaz, tesa, à valentona, como costuma. Deus nosso Senhor, por bem menos incendiou Gomorra e demais não era ditador… Conhece a história.

– Em Sodoma e Gomorra não era acatada a lei divina. Ignoro se alguns habitantes protestavam contra as infracções da Carta Constitucional da Corte Celeste, como há meses fizeram os heróicos vereadores do nosso município, cá na terra. O que é certo é que o Padre Eterno semeou às mãos largas o fogo pelas duas cidades réprobas.

MOURA – Bem sei. A esse incêndio se referem uns versos que conheço… SALGUEIRO – O quê? Pois há alguns versos?... MOURA – Sim, há. Uma citação de um falecido professor da nossa Universidade. Era um homem

de bons costumes, incapaz de uma má palavra. Mas como quer que uma vez visse de sua casa as labaredas vermelhas lamberem num angustioso instante um arrabalde da terra em que vivia, expressou-se de uma maneira… enérgica perante o terrível espectáculo. E daí a quadra:

Foi um incêndio voraz Bem maior que o de Gomorra… Até o Adrião Forjaz Disse à família: Que… catástrofe

(Riem)

SALGUEIRO – Tem graça… Mas tudo isto tem vindo a propósito de… Ah! sim, já me recordo: do paralelo entre esta cidade e as outras duas vítimas da cólera celeste. De resto, no caso em questão, não há que temer as consequências de uma igual calamidade…

MOURA – Ah!... Certamente… A Corporação dos Bombeiros garante bem o insucesso de tal castigo; e o seu insubstituível comandante é homem que percebe de bombas… e, por falta de líquidos não deixaria arder a cidade, mesmo com riscos de se molhar… Muito bem… São sete e meia, o comboio deve estar a chegar e temos de ir até à estação assistir à chegada dos enviados do Senhor…

SALGUEIRO – Ouça… Parece que se aproximam os manifestantes. Eles aí vêm.

(entram todos, em grande vozearia, os personagens do Coro de entrada)

VOZES – Vamos embora! São horas! É já tarde! QUEIRÓS (subindo a um banco) – Meus senhores, peço um pouco da vossa atenção. Antes de

mais nada é preciso combinar os elementos constitutivos da recepção a fazer. Em primeiro lugar: pode a música tocar sem licença da autoridade?

PINTO (vagarosamente) – Pode, pode e pode.

seus habitantes, o autor estabelece uma leitura da índole e dos costumes da sociedade brigantina, recorrendo a alguns lugares de sociabilidade, como a Praça da Sé e o Grémio Brigantino, e ainda a alguns comportamentos ligados à vida política local, neste último caso focando essencialmente a imprensa e as organizações partidárias.

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QUEIRÓS – Peço o favor de me não interromperem. Segunda pergunta: Quem há-de ser o orador encarregado de em nome da cidade cumprimentar os sábios que nos visitam?

VÁRIAS VOZES – O Silvestre! Que fale o Silvestre! LEMOS – Não apoiado! Não apoiado! Há oradores de maior vulto e que melhor podem

desempenhar da missão. Não há dúvidas, meus senhores, e olhai que vo-lo digo eu! O Silvestre é um retórico de frases ocas…

GONÇALVES – Que é que o senhor acaba de proferir? LEMOS – Isto mesmo. GONÇALVES – Retire a expressão! LEMOS – Não retiro! GONÇALVES – Então, cavalheiro, considere-se já um cadáver. QUEIRÓS – Silêncio, meus senhores, ouçam, deixem-me continuar. Aqui não é local para cenas de

pugilato. Se se querem bater vão para a estacada ou para o Grémio… Em terceiro lugar devemos ir a pé, de carro, ou em barco? Como devem saber, indo a pé corremos o risco de naufragar no lodo da estação. Além disso a noite está tempestuosa…

UMA VOZ – E a atmosfera muito carregada… VOZES (rindo-se) – Fora o bruto! Fora! Então de noite há atmosfera? PINTO – Brutos são vocês que não admitem um gracejo. Eu bem sei que não a há! Era para ver o

que diziam… Já que estou com a palavra eu vou resolver os problemas propostos pelo orador que me precedeu. Há uma maneira airosa e que corta todas as dificuldades acabadas de apontar. Transfira-se a recepção!

VOZES – Mas para quando? P’ra quando? PINTO – Ora essa? P’ra quando? Pode-se-lhes fazer a recepção quando se forem embora…

Raul Manuel Teixeira – Bragança por um canudo: revista em 1 prólogo, 3 actos e 5 quadros em prosa e verso, 1978 [1908], pp. 9-11.

A cidade de Bragança nas narrativas de viagem

A rua por onde subimos era a rua direita – aspiração, a d’este nome, nunca realisada por nenhuma das cidades e villas de Portugal, que eu conheço.

As casas dos lados, rectangulares, – feitas para o fim unico que o proprietario lhes reconhece, de viver a coberto dentro d’ellas, sem perder muito espaço, – são altas, estreitas, alinhadas methodicamente, sem saliencias de fachadas, ou janellas.

Ao principio da rua, perto da praça, tem todas as casas, no pavimento terreo, lojas de venda, com uma porta quadrada, larga, quasi apenas separada doutra muito estreita, pelas hombreiras de granito.

Mas, á medida que se chega á encosta que leva ao castello, pela rua da Costa grande, começam a estender-se mais as frontarias, só d’um andar nobre, espaçoso, com a parede alta e nua desde a verga crua e grossamente ornamentada das

Datada de 7 de Outubro de 1874 e publicada poucos anos mais tarde na revista lisboeta O Ocidente, esta narrativa de viagem transmite uma breve impressão sobre a morfologia urbana de Bragança, focando essencialmente as edificações de carácter habitacional da urbe. Votando, também, a sua atenção aos monumentos da cidade, a esse respeito o autor destaca a torre de menagem e, sobretudo, o “excêntrico pelourinho do Porco”, detendo-se na descrição deste último em virtude da estranheza que o mesmo lhe causara.

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janellas, até á cimalha alta, saliente, negra, cheia de tufos immoveis d’ervas seccas, pegadas a pastas escuras, d’onde, com a agua, teem escorrido durante annos, linhas grossas côr de sépia, com pingos, consolidados, no fim. A espaços, já sobre as telhas, moitas flexiveis e agitadas no ar, d’um verde amarellado, conservavam uma nota quente de luz nas folhas das crassulaceas, ou das parietarias, presas ás fendas e cercadas de pó.

A luz do sol muito branca, e a projecção das casas de um cinzento muito bem definido, dividiam a rua pelo meio. Nas paredes da esquerda, inteiramente illuminadas, accendiam-se aqui e ali pequenos fogos d’um amarello clarissimo, d’um alaranjado vivo, ou d’uma scintillação de vidro – brilhante e momentanea, – nas manchas da ócca, desbotada n’uns pontos, enegrecida n’outros, ou sobre o caiádo irregular e acamado, que se desprendia, a pouco e pouco, ás folhas, com rachas compridas e tortuosas.

[…] Da direita as casas tinham uma côr azulada fria, uma grande humidade no aspecto; e nas hervas que se viam menos verdes, pelos barrancos, havia a espaços uns arrepios de vento. Dentro, nos fundos palacios fechados, sentia-se de vez em quando o grande ecco, prolongado por corredores compridos e por vastas quadras sem mobilia, d’uma porta a bater ou de passadas solitarias de pessoa vagarosa e pesada.

N’um angulo, na nossa frente quasi, sobre o elmo que encimava um escudo de pedra, um leão heraldico abria a bocca com um ar enjoado e choroso.

Eram dez horas da manhã quando Bragança tinha este aspecto. Havia uma inteira solidão. Só ao fim da rua encontrámos um homem baixo, grosso, com um chapeu de abas muito largas, o

cabello longo, caindo sobre uma cara quadrada e bondosa, e uma grande capa negra de golla muito alta de cabeção comprido.

Quando saimos da tristeza aborrecida e regular das casas dos seculos XVII e XVIII, viramos á direita a torre gothica e imaginosa do castello, á esquerda, n’um largo, o excentrico pelourinho do Porco.

O caracter barbaro do monumento é completamente medieval, mas já gothico. A columna é muito fina e alta, o capitel muito pequeno, tudo dando uma impressão immediata de fragilidade e de grande aspiração infundada. Sobre o capitel, as cabeças dos animaes, a cujas boccas se prendiam os ferros das picotas para dependurar os criminosos, teem a expressão humana quem se risse no meio de grandes tormentos: uma imobilidade de esgare doloroso, pasmado e ironico. No alto, um animal quasi inteiro, amacacado, segura com ar de protecção comica um escudo de cinco quinas.

Na base, a columna enfia pelo dorso de um porco, grosseiramente talhado, que, pela esculptura, pelo caracter geral, me parece de fabrica muito anterior ao resto do Pelourinho e trazido de outro logar para ali.

B.R. – “Viagens em Portugal – em Bragança”. O Ocidente:

revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro. N.º 13, 1878, pp. 99-100.

A cidade de Bragança fica junto do Fervença, que a separa de altas montanhas, por cujas encostas entremeiam hortas, casas, capelas. Consta de duas partes: a parte moderna, ou cidade propriamente dita, e a vila. Em ambas elas as ruas são calçadas de seixos rolados, o que faz o desespêro dos pés, e o destrôço dos çapatos, não obstante o palhuço e papeis rotos que as atapetam. Os passeios laterais ou são construidos pelo mesmo sistema, apenas bordados de estreitas faxas de granito,

As impressões que José Leite de Vasconcelos recolheu da cidade de Bragança, em 1916, colocam em realce, sobretudo, a feição antiga que essa urbe assumia ainda nas primeiras décadas do século XX, sobretudo devido às escassas medidas de renovação urbana. Além das marcas de ruralidade que

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ou todos d’esta rocha, tão poídos e escavados, que quem vai por eles recebe a impressão de que se meteu num vale, – se é que antes d’isso não tropeça nas beiras. Como na terra ha muito soldados, movimentam-se bastante, passeando-a em grupos, e aparecendo por toda a parte, sobre tudo onde possam descortinar raparigas, nas fontes, nos lavadoiros do rio, na praça, e ás portas dos hoteis. De vez em quando surge de uma esquina, montado num gerico, um camponio, de chapeu de palha, e com os pés sem meias, ao dependurão: alguém que de Gimonde, Sámil, Alfaião, Rabal, Faílde, Fermil, vem á cidade prover-se de panos ou de arroz. Em Bragança ha alguns edifícios dignos de nota, a sé, o paço episcopal, outras igrejas, etc.; as casas do interior da cidade apresentam porém pela maior parte aspecto pobrissimo: frontarias velhas, com velhas janelas de caixilhos, em que se baloiçam trapos ao ar para enxugarem. […]

É á parte mais alta e mais antiga da cidade, onde de certo existia Brigantia, que se chama vila. Vai-se para lá pela Costa Grande, rua ingreme, que começa no Principal (largo). Ao alto, á direita, ha uma casa apalaçada, do sec. XVIII (como creio), com janelas rasgadas; a metade inferior d’estas é formada por almofadas de pedra, como as que se usam nas portas de madeira. Logo a cima ha outra casa mais antiga com um arco de volta redonda esculturado de flores e bólas. Na vila está a celebre porca de pedra […]: monumento funerario da epoca dos Lusitanos, que hoje serve de base do pelourinho brigantino. Tambem aí está a antiga Casa da camara, de estilo romanico, joia arquitectonica muito notavel, tanto mais que, por ser de caracter civil, constitue entre nós monumento de grande raridade. […]

O Museu Municipal deve-se originariamente ao zêlo patriotico do S.or Albino Pereira Lopo, Oficial do exército […]. Este estabelecimento não ocupa, infelizmente, edificio que condiga com a quantidade e importancia dos objectos que possue. Tudo está muito acumulado e mal arrumado, por falta de espaço e de mostradores. […] Ultimamente criou-se em Bragança um Museu regional, dependente do Govêrno; o antigo Museu Municipal ficou encorporado nele. Belo local para museu seria o paço episcopal, onde ha restos da biblioteca dos bispos, que contém muitos pergaminhos importantes. Por debaixo da biblioteca fizeram uma cavalariça militar; quem está por cima consultando os livros nem aguenta o mau cheiro que vem da loja, nem o tropear dos animais. É singular que as pessoas que superintendem nestas cousas não achassem acomodação mais propria para cavalos do que os baixos de uma biblioteca!

José Leite de Vasconcelos – De terra em terra: excursões arqueológico-

etnográficas através de Portugal: norte, centro e sul. Vol. I, 1927, pp. 98-101.

se faziam sentir na paisagem que envolvia a cidade e, por vezes, mesmo intramuros, também nos planos social e urbanístico perduravam as estruturas de tipo antigo e os modos de organização obsoletos, que adquiriam expressão no predomínio da população militar bem como no aspecto arcaico das habitações e do calcetamento das ruas ou, ainda, em equipamentos como a biblioteca e o Museu Municipal.

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CASTELO BRANCO

A festa religiosa e a comemoração laica em Castelo Branco

A biblioteca, o teatro e a filarmónica albicastrenses

O urbanismo, as infraestruturas e a população da capital da Beira Baixa

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A festa religiosa e a comemoração laica em Castelo Branco

Por iniciativa dos officiaes de cavalaria n.º 8, e mediante uma subscrição aberta na cidade de Castello Branco fizeram-se no anno de 1878 explendidas festas ao Espirito Santo. Na vespera houve trasladação do Espirito Santo da sua capella para a igreja matriz, vespera e completas, e á noute arraial na Deveza e um bonito fogo de vistas. No domingo alvorada, festa religiosa, e á noute cavalhadas á antiga portugueza na Deveza, iluminações. Na segunda feira, trasladação do santo para a sua capella, bodo aos presos, e aos pobres na Deveza, servido pelos principaes cavalheiros presentes ao acto, á noute iluminações, cavalhadas, e marcha aux flambeaux.

Houve tambem um bazar todas as tres noutes, cujo produto foi para o Monte Pio de Castello Branco.

A Deveza estava transformada em explendido jardim com repuxos e cascatas. Ás festas concorreu muita gente do districto. Não houve uma só occorencia policial.

…………………………………………………………..

O corpo docente do Lyceu Nacional de Castello Branco festejou em 10 de junho de 1880 o tricentenario de Camões. Um cortejo civico, saindo do Lyceu, se encaminhou para os jardins episcopais, o qual era composto dos professores e respectivos alumnos, camara municipal, auctoridades civis e militares, varias corporações, e grande numero de habitantes da cidade. No jardim episcopal estava o busto do grande poeta nacional, o immortal cantor dos Luziadas.

Ao descobrir-se o busto do poeta tocaram as musicas o hymno nacional, uma guarda de hora fez a continencia, e uma girandola de foguetes annunciou á cidade este acto. Seguiram-se discursos e poesias allusivas á festa. O povo applaudia com enthusiasmo todas estas manifestações á memoria do grande poeta nacional. Á noute os jardins iluminaram-se a giorno abriu-se ahi um bazar, cujas sortes eram vendidas pelas formosas damas albicastrenses, sendo o producto do bazar destinado á instituição de um premio que se dá cada anno ao professor primario do concelho que maior numero de discipulos tem approvados em exame.

Centrada na cidade de Castelo Branco e reportando a um conjunto de acontecimentos coevos, a narrativa histórica de António Roxo transmite uma visão genérica de alguns eventos festivos de cariz religioso e laico decorridos na capital da Beira Baixa nas últimas décadas do século XIX. Descrevendo eventos específicos, como a Festa do Espírito Santo de 1878 e a cerimónia de celebração local do tricentenário camoniano, realizada em 1880, o autor coloca em realce o papel impulsionador desempenhado por dois sectores na realização dessas solenidades, respectivamente organizadas pelos oficiais do Regimento de Cavalaria n.º 8, fixado na cidade na década de 1840 e à época aquartelado no Largo da Devesa, e pelo corpo docente do Liceu Nacional de Castelo Branco. A par das manifestações ligadas ao culto religioso e cívico, no que respeita às festividades locais o autor destaca, também, o ambiente de júbilo que marcou a cerimónia de comemoração da entrada da primeira locomotiva a vapor na Estação de Castelo Branco, em 14 de Julho de 1889, evento que precedeu a abertura oficial da linha de caminho-de-ferro da Beira Baixa, inaugurada em 1891.

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Póde affirmar-se que foi esta a festa mais esplendida que aquelles jardins, cujo abandono causa magoa, teem presenciado.

Durante a festa da tarde deu-se um facto que merece memorado. A concorrencia era enorme nos jardins. O povo, que enchia (litteralmente) a escadaria chamada dos Reis, encostou-se á balaustrada e fez deslocar a estatua de D. Sancho 2º, que caíu para sitio onde tambem havia gente e da altura de 5 metros, mas, caso notavel, nem a gente que estava por baixo soffreu nem a estatua de granito se quebrou!! Se a festa fosse religiosa os exploradores conclamariam logo alí que fora evidente milagre do santo festejado, assim o facto não teve mais nem menos valor do que o que merecia – extraordinario mas natural.

……………………………………………………………………………………………………..

Em 14 de julho de 1889 (domingo) ás 6 horas da tarde parou pela primeira vez a locomotiva n.º 135, denominada Fontes, em frente do recinto onde hoje se levanta a estação de caminho de ferro em Castello Branco. Mais de seis mil pessoas em que se via o melhor da sociedade albicastrense romperam então com enthusiasticos applausos e vehementes aclamações, que abafavam o som das musicas e o estralejar de milhares de foguetes e o alegre esfusiar da machina.

Todos saudavam emocionados a chegada á cidade pela primeira vez de uma locomotiva a vapor. Procedeu-se em seguida á cerimonia do lançamento da primeira pedra para o edificio da estação, que foi batida pelo então governador civil o sr. dr. Francisco d’Albuquerque Mesquita e Castro, que proferiu um brilhante discurso, allusivo ao acto.

Os engenheiros empregados na construcção do caminho de ferro ofereceram no mesmo local um copo de Champagne aos convidados, trocando-se então varios brindes ao progresso, ás damas, aos habitantes de Castello Branco, aos engenheiros, etc. etc. Todos os convivas mostravam a mais enthusiastica alegria.

Á noute alguns edificios publicos e particulares iluminaram, e as musicas percorreram as ruas da cidade.

António Roxo – Monografia de Castelo Branco, 1890, pp. 226-7 e 230.

No domingo passado abriu pela primeira vez ao publico, nesta cidade, o Museu Municipal de Archeologia.

Se á fundação d’este estabelecimento tivesse presidido qualquer ideia de popularidade politica ou de caça a uma exploração barata, a abertura ter-se-hia feito com espalhafato, como é vulgar succeder á inauguração de um simples sol-e-dó provinciano.

Tendo, porém, sido intenção do iniciador do Museu e da camara apenas dotar a cidade com um melhoramento que ao mesmo tempo servisse para chamar a attenção de nacionaes e estrangeiros para a capital da Beira Baixa e para salvar da destruição os vestigios de antigas civilizações que passaram por esta provincia, tudo se fez modestamente, sem dispendio de rhetorica, sem discursos

A fundação do Museu Municipal de Arqueologia de Castelo Branco, inaugurado a 17 de Abril de 1910, constitui uma etapa fundamental na evolução da vida cultural dessa cidade nas primeiras décadas do século XX, conferindo-lhe alguma visibilidade e marcando a sua consonância com o espírito do tempo. Instalado no Convento de Santo António e constituído a partir da colecção que o arqueólogo e seu primeiro director Francisco Tavares de Proença Júnior reuniu na sequência das suas actividades

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nem trombetas. O que importava era o facto em si. Uma vez realizada a abertura do Museu, estava conseguido

o que se desejava. O resto poderia servir para distracção de ociosos, mas não tirava nem punha á importancia e significação do facto.

Foi obedecendo a esta ordem de ideias que o illustre director-fundador do Museu insistentemente pediu que não se fizessem festas, que apenas se avisasse o publico, por meio de editaes, de que o estabelecimento lhe estava patente naquelle dia e o continuaria a estar um dia em cada semana.

Fez-lhe a camara a vontade e, em nosso entender, andou como devia.

Concorreu lá o publico. Muitas centenas de individuos de todas as classes sociaes lá foram ver e admirar os restos de civilizações extinctas, recolhidos á força de muito trabalho, muita paciencia e avultadas despesas por uma vontade de ferro servida por uma intelligencia robusta e por um coração cheio de amor pelas cousas da sua terra, a que quer como aquelles que mais podem querer-lhe.

Não conversámos com todos os que no domingo visitaram o Museu, e por isso não podemos dar conta das impressões de cada um.

É possivel que houvesse quem achasse mal empregado todo o trabalho e toda a intelligencia que se despendeu para reunir aquellas cousas velhas. É natural isso.

Os que, porém, tem olhos para ver e coração para sentir sairam com a impressão de que está ali a obra de um homem de valor, alguma cousa que ha de servir para que se fale lá fóra nesta cidade, cuja existencia mal suspeitavam até agora os sabios de outros paises.

Para os primeiros, espiritos superficiaes, um museu de archeologia não passa de um amontoado de objectos de bric-à-brac. São pedras e outras cousas toscas, que não servem para satisfazer a vaidade nem para encher o estomago.

Para os segundos, para os que tem intelligencia e coração, aquellas pedras, aquellas inscripções, aquelles restos de olaria, aquellas moedas antigas que não tem curso no mercado, todas aquelas cousas velhas são outras tantas paginas vivas da historia de civilizações mortas, são um traço de união entre o passado e o presente, são como que marcos que assinalaram no decorrer dos seculos a marcha lenta, mas incessante, do espirito humano para a perfeição, para o progresso.

Tudo aquillo é ao mesmo tempo interessante e commovente. Ha ali, marcadas a pontas de silex, gravadas em pedra ou moldadas em barro, historias

completas de ambições e de amores, de sonhos de poderio e de tocante piedade filial, de grandeza e de humilhação, do trabalho que dignifica e da vaidade que mata. Basta sabê-las ler com a intelligencia do coração e com os olhos do respeito que se deve aos que trabalharam para nós, emquanto trabalhavam para se elevar acima do vulgar dos homens.

Assim, um museu de archeologia não é bem um cemiterio onde em cada tumulo se lê – aqui jaz: é antes uma historia escrita com letras indeleveis, onde em cada pagina se decifra – Aqui viveu, lutou e amou…

“Museu Municipal de Castelo Branco”. O Arqueólogo Português. N.º 1-12, 1910, pp. 120-2.

exploratórias na região da Beira Baixa, a inauguração do museu foi amplamente divulgada na imprensa local, inclusive através do artigo noticioso e crítico com o qual a revista O Arqueólogo Português assinalou o evento. Transcrito do jornal albicastrense Gazeta da Beira, de 24 de Abril de 1910, este artigo transmite uma visão geral da cerimónia de inauguração do Museu Municipal de Arqueologia de Castelo Branco, fazendo uso de um tom apologético que promove a relevância desse melhoramento citadino, assim como a necessidade de preservação dos vestígios arqueológicos da região da Beira Baixa.

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A biblioteca, o teatro e a filarmónica albicastrenses

DESDE 1834 que a cidade de Castello Branco podia e devia ter uma biblioteca, se não fosse o condemnavel indifferentismo da parte de seus naturaes por tudo quanto seja engrandecimento da sua patria.

Naquelle anno o governo participa ao prefeito que em portaria de 9 de setembro se expediram ordens para se formar uma bibliotheca publica em Castello Branco com os livros dos extinctos conventos da província.

A bibliotheca porem não se formou, não obstante os livros de alguns conventos serem recolhidos de diversos pontos do districto para o edificio do governo civil, onde os lançaram a esmo em lojas humidas, e onde ainda hoje jazem apodrecendo, os que não foram extraviados.

Depois em 25 de agosto de 1836 o governo instou para que se indicasse um edifício publico, dos que deviam vender-se, para nelle se estabelecer uma bibliotheca, um gabinete de raridades, e outro de pinturas. O prefeito indicou o edifício de Santa Izabel ou Mizericordia Velha em 18 de outubro. Mas nisto se ficaram.

Em 1864 um homem illustrado, possuidor de uma bibliotheca. o doutor José António Morão, falleceu, legando a sua livraria ao publico municipal de Castello Branco.

Depois disto parecerá que o publico de Castello Branco ia emfim possuir um melhoramento importante – uma bibliotheca, onde os estudiosos ou mesmo os simples curiosos podessem ir instruir-se. Puro engano! Ninguém, nem mesmo a camara, a quem mais do perto pertencia tornar effectiva a

disposição testamentaria, pensou em fazer cumprir o testamento nesta parte. A bibliotheca, que de direito pertencia ao publico municipal, continuou de facto a ser propriedade particular.

[…] Entretanto foi a bibliotheca mudada para a casa do lyceu nacional, exonerando-se assim os herdeiros do dr. Morão do ónus de dar casa, guarda, papel, etc. para a bibliotheca, segundo o testamento!

Antes porem da inauguração da bibliotheca no lyceu, suscitou-se a questão de se saber a quem pertencia a bibliotheca. Donde provinha esta duvida? É claro que se affirma cada vez mais a idéa de que desde o principio tudo fora armado no ár.

O reitor perguntou ao governador civil em officio de 26 de abril de 1870—quem era o proprietario da bibliotheca que se ia estabelecer no lyceu.

Este respondeu no mesmo dia "que a livraria é da cidade de Castello Branco só para o effeito de não poder sair della (!)… que a sua administração pertencia ao lyceu (!!)... que o uso della é facultativo aos alumnos do lyceu, e ao publico em geral... que os (livros) do commendador José António Morão (o fidei commissario do testamento) são doados para sempre (!!!)... que se o lyceu deixar de existir passará a guarda e administração da livraria para quem o governo (?!) determinar, mas não sairá da cidade.”

[…] Obrigada a camara, como já dissemos, a votar verba para as despezas da bibliotheca, cumpriu, votando-a, mas, curiosa renitencia, recusou-se a dár applicação a tal verba! Volvidos annos, depois

Dando conta do processo de criação da Biblioteca Pública de Castelo Branco, a narrativa histórica de António Roxo descreve as principais etapas que marcaram a fundação dessa instituição, envolvida numa polémica que, despertada pelos incumprimentos da administração municipal, teve início em 1834 e perdurou após o dealbar do século XX. Embora as primeiras investidas não obtivessem qualquer efeito prático, dado que na segunda metade do século XIX a biblioteca ainda não havia sido organizada, a questão foi retomada com o legado, em 1864, da colecção bibliográfica particular de José António Morão, e, em 1870, o governo determinou a criação da biblioteca e a obrigação de a Câmara Municipal a subsidiar anualmente, decisão que a mesma não viria a cumprir. Embora a biblioteca fosse instalada no edifício do liceu local e aberta ao público por volta de 1870, o seu estatuto mantinha-se indefinido no que respeitava ao seu proprietário legal e à sua tipologia.

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disto, ainda a bibliotheca não tinha recebido um real da camara! O bibliothecario oficiou á camara em 20 de janeiro de 1875, para que esta fizesse effectiva a disposição do seu orçamento, e que lhe enviasse o dinheiro, ou livros comprados por ella. A camara, não responde ao funccionario que se lhe havia dirigido, mas officia ao governador civil em 22 dizendo, que não entrega o dinheiro por entender “que se não póde considerar bibliotheca popular a estabelecida nesta cidade, não só por assim o haver julgado pessoa bastante illustrada, mas por a verba para a bibliotheca popular ser inserida no orçamento em virtude da portaria do ministerio do reino de 22 de junho de 1872…”

E a questão ficava assim sem se resolver, não se sabendo qual era pois a decantada bibliotheca popular nem onde existia!

O reitor do lyceu insiste por sua vez com a camara em officio de 29 de junho de 1884, para esta dar o subsidio votado.

A camara sobre o conteudo do officio retro delibera "não satisfazer importancia alguma, como não tem satisfeito nos annos anteriores, por "dever ser applicada para a bibliotheca popular, que não é a que se acha estabelecida n’esta cidade.”

Curiosa declaração – a bibliotheca popular não é a que se acha estabelecida nesta cidade –; mas onde está essa bibliotheca que o decreto de 20 de agosto de 1870 manda crear?

A bibliotheca, assim como está, não póde ser utilisada pelo publico. Ella não possue catalogos bem feitos; o local occupado por ella não podia ser mais mal escolhido; o

regulamento que lhe impoz o lyceu inutilisa-a para o publico municipal. Ha 20 annos que a bibliotheca está esperando que o bibliothecario faça uns catálogos secundum

artem, e possue apenas umas cadernetas indicativas do nome dos auctores e das obras, sem mais classificação!

Arrumada a bibliotheca no rez do chão do lyceu, que fica em uma praça de grande movimento, e alem disso contigua ao pateo do lyceu, onde sempre ha muito sussurro e até barulho incommodativo para quem estuda, tudo isto, e o barulho das aulas que lhe ficam no pavimento immediatamente superior, impossibilita qualquer pessoa de consultar com a devida attenção qualquer livro. De tudo quanto se necessita para apontamentos ha apenas tinta!

Está aberta sómente durante as horas em que funcciona o lyceu. O regulamente feito em 7 de abril de 1888 esqueceu completamente o preceituado na lei de 18 de

janeiro de 1883 na parte que ordena que as bibliothecas publicas estejam abertas algumas horas de noute.

Já nem publica será considerada?! Parece. Não só pelo que acabamos de expor, mas também porque foi desrespeitada a disposição

testamentaria do dr. Morão na parte que prohibe que os livros sejam tirados da bibliotheca, seja debaixo de que pretexto for, pois os professores (e só estes) pelo tal regulamento podem levar os livros para casa!

Por todas estas razões se evidenceia que a bibliotheca é uma inutilidade para a maioria do publico municipal.

O empregado publico, o industrial, o agricultor, o artista, etc., todos quantos podem apenas dispor da noute para estudo estão completamente privados da bibliotheca.

A camara municipal nunca se dignou dár um passo para haver esta riqueza, que de direito lhe pertence! Taes são as administrações municipaes de Castello Branco!

Se o ilustrado dr. Morão podesse prever que o seu valioso donativo havia de ser menospresado com tal desdem de certo não teria lançado aquelle punhado de perolas a… quem lhes não sabe dar o devido valor!

António Roxo – Monografia de Castelo Branco, 1890, pp. 77-81.

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Foi construido no anno de 1835 um Theatro com o titulo de – União – no edifício d’uma capella contigua pelo sul á igreja do extincto Convento de Santo Antonio, que pertencia á confraria da Ordem dos Terceiros.

Uma sociedade composta de varias pessoas é a proprietaria deste Teatro, porque o construíra, á sua custa, e adquirira a propriedade do edificio em que se acha, que lhe fora dada por decreto do governo datado de 25 de Maio de 1844, que as côrtes approvaram; e isto por esforços e deligencias da direcção que servira n’aquelle anno.

Este pequeno theatro tem 36 camarotes, e espaço para 100 logares na platéa; e com quanto seja de pequena extensão é sufficiente para os habitantes de Castello Branco, que são naturalmente pouco apaixonados por theatro, salvas mui poucas excepções. É administrado e dirigido por uma commissão composta de um director, um vice-director, um thesoureiro, um ensaiador, um contra-régra, um ponto, um procurador, e um archivista-Secretario, eleitos e nomeados annualmente pela Sociedade, da maneira disposta nos seus estatutos impressos em 1842.

………………………………………………………….

Este recreativo estabelecimento, que consiste n’uma sociedade d’assignantes, hoje em numero de 69, teve o seu principio no anno de 1849, em 2 de Dezembro.

O edificio das reuniões desta sociedade, é pertencente a Pedro d’Ordaz Caldeira e situado na parte meridional da rua de Pina. Foi arranjado e preparado com as accommodações proprias da mesma sociedade, que o arrendou para este fim, e o tem em muito aceio.

Compõe-se a philarmonica de instrumentos de sopro e de córda, e acha-se actualmente digna de ser ouvida.

Os socios dividem-se em executantes, e ouvintes, e todos contribuem com a sua quóta mensal para a manutenção do estabelecimento. Além disto tem alli estabelecido um bilhar,

para os socios jogarem, pagando um estipendio, d’onde provém um bom rendimento; de modo que já o seu estado permite dar como tem dado, explendidas reuniões e luzidios bailes, que nada deixam a desejar aos expectadores.

Segundo as disposições de seus estatutos é representada a philarmonica pela Assembléa geral, que tem mesa composta de presidente, vice-presidente, secretario, vice-secretario, e é administrada por uma direcção composta de presidente, vice-presidente, secretario, vice-secretario, e thesoureiro.

Joaquim Augusto Porfírio da Silva – Memorial cronológico e descritivo da cidade de Castelo Branco, 1853, pp. 104-6.

De acordo com o panorama transmitido por Joaquim Augusto Porfírio da Silva, no seu Memorial cronológico e descritivo da cidade de Castelo Branco, aquando da data da sua publicação em 1853, a capital da Beira Baixa encontrava-se provida de um escasso número de equipamentos de natureza cultural e recreativa. Através do impulso devido à iniciativa particular, surgiram alguns espaços de cultura e lazer na cidade que possuía, desde 1849, uma sociedade filarmónica e que, anos antes, conheceu a sua primeira sala de espectáculos, com a fundação do Teatro União, estabelecido numa antiga capela doada à sociedade promotora do teatro em 1844. Para além destes espaços, a vida cultural e lúdica da cidade de Castelo Branco, incrementada sobretudo a partir do final do século XIX, foi ainda marcada pelo aparecimento de outras salas de espectáculos, como o Teatro da Sé e o Teatro de Castelo Branco, este último inaugurado a 28 de Junho de 1896. Surgiram também vários organismos que animavam a vida local, como a Assembleia de Castelo Branco (1860), o Grémio dos Artistas (1889) e o Club Harmonia Albicastrense (1892). Após a emergência destas associações oitocentistas, no início do século XX a cidade conheceu, ainda, a fundação da Sociedade Harmonia (1900), do Club de Castelo Branco (1905) e do Centro Artístico Albicastrense (1908).

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O urbanismo, as infraestruturas e a população da capital da Beira Baixa

O ceu estava escuro como o phantasma da conspiração. Com difficuldade se distinguiam as constellacões. A diligencia atravessou ainda um pedaço de estrada bem arborisada, passou ao lado de algumas quintas e casas, e entrou em ruas empedradas, orladas de casaria.

– Onde estamos? perguntou um dos companheiros, despregando-se de um somno pouco fundo.

– Em Castello Branco. – Parece-me Preto. – É porque não tem ílluminação. É triste ver a capital da província da Beira Baixa mais

atrazada n’este ponto do que algumas pobres villas da Extremadura. Sem luz não ha civilisação, e o estar uma população ás escuras, embora n’ella haja, como ha em Castello Branco, cidadãos muito illustrados, não abona as suas aspirações ao progresso. Os candeeiros publicos são um elemento indispensavel á policia de uma cidade e á commodidade dos seus moradores. É preciso lembrar que por candeeiros públicos entendemos candeeiros accesos. Esta observação não é ociosa, porque Castello Branco tem candeeiros, mas apagados. Extínguiu-lhes a luz o sopro esterilisador das economias negativas. Sob proposta de um dos homens mais ricos do districto economisou-se a verba do azeite. Se foi para matar as corujas ou para não affrontar os mochos, desculpemos.

Tivemos de accender phosphoros para ver ao menos a configuração do magestoso edificío do paço episcopal, contiguo ao qual ha uma quinta e jardins deliciosos, que os moradores encarecem com euthusiasmo e que todos que os têem visto dizem ser dos mais bellos do paiz.

Não podemos ver a cidade porque tinhamos de seguir na diligencia. Contemplámos ainda, á luz do phosphoro, os rostos de duas ou três formosas albicastrenses que passeavam no largo, em que nos apeámos. Confessâmos que ao vel-as comprehendemos o espirito preventivo do antigo foral da cidade, quando dizia em latim bárbaro:

– «Se algum homem raptar a filha de outrem contra sua vontade, restitua-a aos seus parentes, e pague-lhes 300 maravedis.»

Tomámos uma chávena de chá, certificámo-nos da paz octaviana da cidade, e tornámos a subir para a imperial do trem, procurando no seio das trevas o castello da cidade, como ella fundação dos cavalleiros Templários, e que foi inexpugnável nos tempos em que não havia Krupps nem Armstrougs. Foi em vão. Desesperados com tal desapontamento e scismando na opulência a que chiaram no paiz os templários, e nas patifarias que elles deveriam ter feito para perderem o prestigio immenso que haviam tido, e obrigarem rei e povo a esconjural-os, tornámos a adormecer, tendo o cuidado de levar os nossos revolvers carregados, por nos aconselhar que assim o fizéssemos o cocheiro da diligencia.

Eduardo Coelho – Passeios na província, 1873, pp. 63-5.

Centrada na temática da iluminação pública de Castelo Branco, a narrativa de viagem de Eduardo Coelho captou uma questão central da história da cidade, focada por vários autores no decurso do século XIX, nomeadamente por Joaquim Augusto Porfírio da Silva que, no seu Memorial cronológico e descritivo da cidade de Castelo Branco, publicado em 1853, havia já assinalado a urgência da resolução do problema da escassez de candeeiros que iluminassem os espaços públicos mais frequentados da cidade e, como forma de incentivo, chegou a aludir ao agradecimento que resultaria de tal feito. Todavia, ainda que em 1860 a cidade inaugurasse o seu serviço de iluminação pública, como evidencia o relato de Eduardo Coelho, o problema da iluminação das ruas da capital da Beira Baixa persistia e denunciava uma estreita relação com a fraca capacidade económica da cidade que, à data já provida de candeeiros, mantinha uma feição soturna por se economizar no azeite que lhes servia de combustível, descurando com isso a segurança dos habitantes e indiciando o seu cariz obsoleto.

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A parte da cidade antiga (chamada castello) tem as ruas estreitas, ingremes e tortuosas, como acontece em todas as antigas povoações amuralhadas; a cidade moderna, quasi toda deste seculo, está assente nas faldas da collina, e construida em melhores condições estheticas e hygienicas, posto que tenha ainda irregularidades e defeitos, que não existiriam se tivesse havido mais zelo nas administrações municipais enquanto a fiscalisação do alinhamento, alçado e cota de nível das construções e reconstruções. Em geral (e o mal vem de longe) cada um edifica ou modifica como bem quer, sem que a camara municipal intervenha nisto, como lhe cumpre legalmente. Este mal porem continúa a deixar fazer aleijões que depois se tornam irreparaveis.

Assim, mesmo a parte baixa da cidade, onde hoje está concentrada a vida local, apresenta algumas ruas bonitas, largos espaçosos e casas bem construidas. As ruas são mal calcetadas.

O systema de limpeza municipal é quasi rudimentar, e o dos esgotos das aguas pluviais, dos sumidouros e da canalisação improprio de uma terra medianamente policiada. A illuminação publica, alimentada a petroleo, alem de ser deficiente em qualidade e em quantidade, tem diversos typos de candieiros, sendo grande parte do systema inventado em 1790 pelo engenheiro Martinho Antonio de Castro para a illuminação de Lisboa!

Em geral tudo quanto depende da iniciativa municipal, e que traduza a evolução em comodidade, hygiene, bom gosto, economia, etc., está por fazer.

[…] Os naturaes de Castello Branco são por indole bondosos, trabalhadores, respeitadores da auctoridade, sem extremos viciosos, mas muito rotineiros, assás conservadores, e nada communicativos. Esta ultima qualidade nas classes mais cultas é de certo proveniente da educação geralmente muito obsoleta, meio fradesca, meio feudal e assás concentrada. A sociedade em familia é a unica especie de sociabilidade cultivada nestas classes.

Em religião não toca este bom povo os estremos. As romarias são o seu divertimento favorito, não tanto pelas demonstrações mysticas, como pelos

folgares profanos dos arraiaes.

António Roxo – Monografia de Castelo Branco, 1890, pp. 129-31.

Reportando-se ao estado da cidade de Castelo Branco nas últimas décadas do século XIX e detendo-se ainda numa breve caracterização do temperamento e dos hábitos de sociabilidade dos albicastrenses, a narrativa panorâmica de António Roxo transmite uma visão crítica que destaca, essencialmente, a negligência da Câmara Municipal no que respeita à implementação de melhoramentos na cidade. A par da sua intervenção ineficaz face ao planeamento urbano, a inoperância da Câmara Municipal é ainda demonstrada pelo autor a partir da descrição do estado das infraestruturas da cidade de Castelo Branco, nomeadamente, no que respeita à iluminação pública que, ainda em 1890, persiste como um problema, ao qual António Roxo se refere, focando os defeitos do sistema e realçando, sobretudo, o seu carácter obsoleto com que, de resto, caracteriza tanto as infraestruturas quanto a sociedade local.

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COIMBRA

A procissão de 3 de Julho e o Centenário da Sebenta

As memórias da cidade e da vida académica coimbrã

As impressões da princesa Rattazzi sobre a cidade de Coimbra em 1879

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A procissão de 3 de Julho e o Centenário da Sebenta

As festas religiosas reflectem sempre as tendencias peculiares aos paizes ondo se celebram. A procissão de Santa Izabel resuscita, durante uma hora, as velhas tradições e conduz-nos mentalmente á existencia retrospectiva, de que nos separam longos seculos.

Toda a população acotovela-se na azinhaga estreita, orlada do sebes floridas, que conduz ao convento.

Raparigas de pelle queimada pelo sol o olhos negros como estrellas de azeviche assomam á porta das choças de um aspecto sordido. Velhos de camisa alva como a neve cruzam com rapazes de gravata encarnada a apertar-lhes o pescoço robusto, e mendigos passando atravez dos grupos enchem abundantemente os alforges de moedas de cinco réis.

Ao longe as tochas brilham, resoa o som estridulo do pifaro, a procissão caminha, serpente ondulante, por entre a multidão curiosa. O sol irradia, como uma grande custodia rubra, no ceo polido e sereno.

Chega a Universidade precedida pelos guardas e alabardeiros de fardas azues e encarnadas, agaloadas, e chapeo de tres bicos, preto, marchando atraz da musica assobiada pela nota aguda dos figles.

Os professores, trajando magnificas togas cuja côr indica as diversas faculdades, seguem gravemente, rodeiados de estudantes de cabeça descoberta, embrulhados nas suas amplas capas, meditando e observando.

A procissão chega á egreja. […] Primeiramente, pergunta a gente a si mesma qual a razão

porque essa orchestra, profuga de algum theatro de provincia, vem lançar a sua nota discordante na grande melodia sonora que parece descer do ceo. Um afina o violino, outro arranca algumas escalas preliminares a uma flauta constipada, um terceiro, no acto de trepar ao estrado, derruba a estante que se desconjuncta, arrastando a do visinho e espalhando as paginas da musica que fluctuam no ar como pombas espavoridas. Silencio! O ruido cessa: um cantico eleva-se, uma melopêa extatica, rythmo de uma estranha melodia suave e originalissima e corre como um fio de ouro bordando arabescos caprichosos, cambiantes, imprevistos, em que os tons maiores e menores succedem-se fundindo-se como um sorriso emperlado de lagrimas produzindo-me impressões verdadeiramente indefiniveis! Fecho os olhos. O culto feudal, a idade media com o seu cortejo de

Reportando-se a 1879, a narrativa de Maria Rattazzi transmite as suas impressões acerca da procissão de 3 de Julho, uma das solenidades que tradicionalmente tinham lugar na cidade de Coimbra por ocasião dos festejos consagrados à Rainha Santa Isabel. Assinalando a participação da Universidade no culto da padroeira desta cidade, a procissão de 3 de Julho consistia num cortejo formado pelo corpo docente da Universidade que se dirigia à igreja do Convento de Santa Clara para assistir às Vésperas cantadas em honra da Rainha Santa Isabel, acto solene que precedia o feriado dedicado à padroeira, celebrado na mesma igreja com uma missa à qual assistia também o corpo docente. Além dessas solenidades, o culto da Rainha Santa era ainda celebrado com um programa de festas que no ano de 1879 decorreram entre os dias 10 e 13 de Julho, contando com a realização de bailes, espectáculos de fogo-de-artifício e de um bazar em benefício da Associação dos Artistas de Coimbra e, ainda, com as tradicionais procissões através das quais a imagem da padroeira era transportada, na abertura das festas, para a Igreja de Santa Cruz, aí ficando exposta à veneração da população local e dos visitantes até ao último dia das festividades, retornando então, em préstito, ao Convento de Santa Clara.

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santos presididos pela Virgem, apparece evocada pela minha fantasia. A figura-se-me que penetrei n’um paiz ignorado e luminoso […].

Quando saimos da egreja o sol fugia dardejando as suas ultimas flechas de ouro no alto campanario de telhas reluzentes como escamas de reptil adormecido. A solemnidade durára tres horas, tantas quantas levei a sonhar.

O patriarcha prohibiu o canto das mulheres: nem mesmo Santa Cecilia seria exceptuada e teria de resignar-se a lições de acompanhamento.

Foi pois extraordinaria a minha surpreza ao ouvir uma voz extensa e argentina elevar-se a espaços e dominar os córos. Lembrei-me da interdicção do patriarcha e julguei-a transgredida.

Enganara-mo: o possuidor d’esse orgão vocal, melodioso e puro, não era nem soprano nem tenor da capella Sextina. Era um honesto portuguez, pae de tres filhos, um dos quaes, segundo parece, aspira á prerrogativa de baixo profundo.

Maria Rattazzi– Portugal de relance. Vol. II, 1882, pp. 116-8.

Era de mil e trezentos e vinte e nove. Eu D. Diniz, por graça de Deus Rey de Portugal e do Algarve, Poeta, Lavrador e Bacharel-Formado em Direito pela nossa Universidade, a quantos isto virem e ouvirem lêr fazemos saber que:

De nossos amores com Marrafa, filha de Minerva, natural de Pinhel, houvemos a nossa muito amada filha Sebenta – semi-Deusa, sempre sábia, poderosa, augusta, solteira, moradora na rua das cozinhas, n.º 16 – o que juramos pelos nossos graus se preciso fôr.

Por inspiração divina matriculámos esta nossa filha nas aulas nocturnas do Instituto, causando allí a admiração de mestres e alumnos, mais parecendo dos Deuses filha que de tal gente. Nunca curou de bailados em fogueiras, nem de fados, nem d’amôres com estudantes – como natural era em edade tam tenra. Um único desgosto me deu na vida: obrigar-me a fundar esta Universidade que fará dêste pôvo, com tanto azo p’rá cultura, um pôvo de sábios e de heroes do mar. Mas já que a asneira está feita – perdão Posteridade! – mando que seja minha filha Sebenta a Directora especial desta eschola, atravez dos séculos, por toda a eternidade e que de sua luminosa cabeça parta a luz que guiar deve os navegadores, que dará eloquéncia aos mestres e paciéncia aos que os aturem, que inspirará os Poetas, que fadará os Soldados e a Academia Real das Sciéncias.

E para depois no fim do anno não allegarem ignoráncia, mando que suas divinas palavras sejam meditadas, decoradas pelos músicos, desde o toque da Cabra até ao chá inclusivé; os ursos, decorarám até à última badalada do Cabrão. E todo aquelle que a estas horas encontrado fôr a tocar o fado, de batina desabotoada e de gravura de côres, à porta de qualquer

Proclamada na sessão de abertura das festividades do Centenário da Sebenta, realizadas na cidade de Coimbra em 1899, a Carta régia, de “D. Dinis”, constitui um testemunho representativo do teor burlesco que caracterizou o evento, organizado por uma comissão de estudantes dos cursos de Direito e Teologia da Universidade de Coimbra, com o objectivo de criticar a utilidade pedagógica da sebenta e parodiar a moda dos centenários cívicos, implementada na segunda metade do século XIX. Dando azo a algumas publicações, assim como à criação de uma série de produtos promocionais, como selos, medalhas e bilhetes postais, o Centenário da Sebenta foi, ainda, assinalado com um programa de festividades que, decorrendo entre 28 e 30 de Abril de 1899, incluiu, entre outros eventos, as cerimónias de recepção dos romeiros da Santa Sebenta e da mudança de nomes das ruas da Alta, um desfile naval, a inauguração do busto de Aloys Senefelder (inventor da litografia) e a atribuição das gran-cruzes da Santa Sebenta a Manuel das Barbas e a Maria Marrafa. O último dia foi assinalado com um cortejo cívico em honra da Sebenta e com a inauguração do seu monumento.

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menina da rua da Trindade, será por seus mestres apanhado em branco no dia seguinte ou na alternativa condemnado a cinco annos de casamento com a dita menina.

A alimentação desta minha filha a cargo ficará de sua mãe e minha única amante fiel, nos braços da qual a deposito ao abalar-me dêste mundo e dêste Reino de futuros génios, para que esta lhe dê a beber de seu puríssimo leite, que sempre em abudáncia deve ter – para o que fugirá ao peccado da esterilidade.

Até 29 d’abril do anno de 1899, dia em que termina a sua menoridade e em que finda o meu pátrio poder, conservar-se-ha a minha dita filha modesta em seu trajar, como convém à filha dum honrado lavrador, manifestando pela lettra redonda o ódio peculiar à sua raça, dando diariamente à rapaziada oito páginas do seu alto saber, pela módica quantia de oito tostões mensaes e adiantados.

Mais quero e mando à Academia de Coimbra de 1899 que a data gloriosa da maioria da Sebenta seja celebrada com um grandioso CENTENÁRIO, único que terá razão de ser em meu Reino, que cause a admiração dos mundos, ao qual espero assistir de companhia com as duas maiores forças vivas do País – o Burnay e o Luciano Cordeiro.

Serám considerados nullos todos e quaesquer centenários que antes ou depois desta data se fizerem, e seus promotores condemnados à leitura duma sebenta até manifestarem o primeiro symptoma de cretinismo fulminante; prós casos de reincidéncia será applicada a pena de Formatura perpétua em Direito.

Aos imponentes festejos mando que assistam as Cámaras dos Pares e Deputados, Cámaras Municipaes de Mêda, Cháo de Maçãs e Lava-Rabos, Sociedade de Geographia, Grémio do Crédito Conimbricense Bolsa ou Vida, Academia Real das Sciencias, Centro Recreativo dos Passadores de Notas Falsas, Centro Cruz e Espada das Viuvas fúnebres dos Majores mortos na guerra contra os Gafanhotos, Asylo Nacional de Mendicidade Burnay, etc., etc.

O Épico Rosalino, que representa as letras pátrias. As Companhias dos Caminhos de Ferro não levantarám nem abaixarám os preços dos seus bilhetes.

O Sr. Infante que venha a pé por causa dos atropellamentos. As mui nobres e antigas Casas de Prego do meu Reino abertas se conservarám dia e noite durante

29 dias consecutivos, a contar de 1 de abril emprestando sómente ao juro de 50 por cento ao mês. Mais mando que Sabbado e Domingo sejam considerados dias de feriado em todas as Escolas e

Repartições públicas, illuminando suas fachadas a Universidade, governos Civis, Camaras Municipaes e Quarteis.

Também quero que sejam concedidos perdões de suas penas a todos os bachareis que hajam roubado quantia inferior a doze vintens, provando por documento a extrema miséria em que se encontravam; e que tenha melhoria de rancho, nos dois dias festivos, a mui valente Real Guarda d’Archeiros.

E, finalmente, nomeio Aias do principe Godide, filho do Gungunhana I, a todas as viuvas dos Archeiros mortos em Africa.

Mando que não embarguem e que façam em guisa que se cumpra assim como eu mando; o que por alguma maneira por si ou por outrem embargar, haja a maldição de Deus e a minha p’ra todo o sempre e seja condemnado em Judas traidor no fundo do Inferno.

Foi feito isto nos nossos Passos de Santa Clara, a par de Coimbra, vinte dias de abril. Era de Mil trezentos e vinte e nove annos.

O Rey mandou, Manuel das Barbas o fez.

D. Diniz – Rey.

“Carta régia”. Resistência. N.º 437, 1899, p. 2.

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As memórias da cidade e da vida académica coimbrã

In illo tempore – no tempo em que eu andava em Coimbra, ainda a boa e immortal sebenta reinava em todo o seu esplendor! Eu nem fazia sequer ideia, ao chegar a Coimbra, do que vinha a ser isso da sebenta; – mas industriado logo a tal respeito, vim a saber que era uma especie de folhinha lithographada, formato-8º, que sahia todos os dias compendiando a explicação do lente; que se chamava sebenteiro o que a redigia; que custava sete tostões por mez cada uma; que eram tres em cada anno, visto as cadeiras em cada anno serem tres; e finalmente, que emquanto o lente explicava a lição para o dia seguinte, só o sebenteiro ouvia o lente, e que os mais, todos, e eu portanto, podiam muito bem ler o seu romance, fazer o seu bilhetinho e passál-o, ou

commentar os que vinham dos outros, – ou então, se o preferissemos, dormir ou fazer versos! Não havia nada melhor! Além d’isso, algumas mettiam tambem as suas piadas; outras davam

caricaturas; – e sebenteiro havia que amenisava por tal fórma aquella estopada, que até dava versos para o fado no fim da sebenta, e convocava os condiscipulos, em annuncios, para troupes aos caloiros, ou outras pandegas!

As sebentas tinham em geral oito paginas, e cada um ia pelas suas ao cahir da noite, e eram duas por noite; – mas se o lente se tinha alargado na prelecção, ou o sebenteiro era massador, ás taes oito paginas acresciam outras, – e a esse supplemento, que era sempre amaldiçoado, chamava-se o resto!

Ora mas no meu tempo ainda a sebenta era acatada, e ninguem se lembrava por lá de lhe fazer troça! E como ella, coitada, tinha sido a mammadeira dos ursos, e até de muitos o ganha-pão, os ursos, quando se viam lentes, não só a toleravam, mas… inspiravam-na! Havia tal que não confiando no sebenteiro, até lhe dava os apontamentos para a fazer; outros escreviam-na ipsis verbis e o sebenteiro tinha só o trabalho de a copiar; e outros havia, e até dos mais carrasquinhos, que recebiam á entrada da aula um exemplar, que o sebenteiro lhes entregava em mão! O Chaves, por exemplo!

Trindade Coelho – In illo tempore: estudantes, lentes e futricas, 1902, pp. 189-91.

O caloiro era uma besta, alieni juris, que começava na estação a carregar a mala do veterano, fazia o seu anno lectivo sob o dominio feroz e implacavel do estudante mais adeantado da republica, recolhia ás 6 horas da tarde, levava durante o dia rijo pontapé á porta-ferrea e palmatoada brava pela noite, se seus vacillantes passos não demandavam o domicilio antes do tóque da cabra.

Recordo-me que no final d’um jantar me mandaram comprar uma garrafa de vinho do Porto, pelo modico preço de 300 reis; recebi o capital, adquiri o liquido na mercearia proxima, mas num impeto do revolta contra a tyrannia

Da autoria de Trindade Coelho, estudante do curso de Direito em Coimbra entre 1880 e 1885, este volume In illo tempore constitui uma das suas obras de consagração e um dos títulos mais popularizados e significativos da sua produção literária. Inspirada na vida académica, o autor incute às suas memórias um tom humorístico que coloca em realce o ambiente de pândega e o carácter boémio da vida estudantil coimbrã.

A par da memória de Trindade Coelho, também o volume satírico O livro do Doutor Assis, da autoria de Alberto Costa – figura da boémia coimbrã, conhecido como “Pad Zé” e que, com algumas interrupções, frequentou a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra entre 1895 e 1904 –, constitui a mais significativa representação literária da boémia académica e a obra que, no género, obteve maior divulgação junto do sector estudantil.

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degradante, caminhei a casa d’um condiscipulo tambem caloiro, e com vivas e hurrahs á emancipação e á liberdade fomos bebendo a pinga, triumphantes!

Rendeu-me o impeto de revolta uma dusia de palmatoadas e a obrigação de engraixar as botas de todos os companheiros durante oito dias, pena que, aliás, me foi generosamente commutada.

Os tempos eram ominosos, sim, mas havia disciplina, havia ordem, havia respeito, condição fundamental para a manutenção e equilibrio d’uma sociedade bem organisada, como do alto da sua cathedra judiciosamente proclama ao mundo o sabio Dr. Calixto, tambôr-mór da Universidade.

Na rua da Trindade n.° 55, em casa das senhoras Teixeiras, tive por veteranos o poeta Elysio de Lima, hoje advogado em Aveiro, e o Antonio Baião, meu antigo companheiro de collegio, agora devotadissimo na Torre do Tombo, onde conserva antiguidades, ao interessante estudo das mesmas. As senhoras Teixeiras distinguiam-se por uma avareza insólita.

O alimento era revoltantemente cerceado, sobretudo nos dias feriados, nos quaes o almoço se reduzia a dois ovos mexidos e um cafésito impotavel. Nós repontavamos; e Teixeiras justificavam a parcimonia allegando que era dia feriado... não tinhamos que fazer... não tinhamos que estudar...

E como os dois estafermos denunciassem a meu Pae as justas e naturaes expansões da minha mocidade irrequieta, até então esmagada entre o poder paterno e a pata do jesuita, fui tratando de emigrar para a vizinha republica do meu amigo e patricio José Maria da Silva, confirmando-se cabalmente as minhas previsões de que seria esse mais propicio terreno á minha educação e crescimento.

Já então desfructava uma certa popularidade da rua da Trindade ao Borralho. A minha audacia de entrar a porta-ferrea sem protecção, desafiando o coice do segundanista, a descarada resistencia que oppunha ás troças, de que o veterano sahia por vozes com trombada cara de caloiro, o meu desprezo pelas troupes impotentes para me fechar em casa, roubando-me a liberdade da noitada ruidosa, e um discurso que pretendera produzir – caso nunca visto e jámais ao caloiro permittido – numa assembleia geral da Academia., haviam-me conquistado fóros do caloiro mais pur-sang d’aquella remonta, como usava dizer o veterano.

Alberto Costa – O livro do doutor Assis: pensamentos, conceitos, anedotas, larachas, chalaças, agudezas, subtilezas, facecias, ditos de espírito, calembourgs e charadas do doutor Assis capataz das finanças no primeiro estabelecimento científico do país, 1905, pp. 21-4.

Em 1850 havia em Coimbra apenas os tres theatros Academico, da Sé Velha e da Graça.

Vamos começar pelo Theatro academico, porque era este o melhor e que se tornou mais notavel.

Este theatro, cuja direcção fôra confiada á sociedade Nova academia dramatica, foi fundado no antigo Collegio de S. Paulo, situado na rua Larga, hoje rua do Infante D. Augusto.

A sua inauguração teve logar em 24 de julho de 1839, com a representação do drama A nodoa de sangue e a comedia Boda em trajes de frasqueira.

N’este theatro só estudantes eram admittidos a representar, excepto quando a Coimbra iam actores celebres, taes como Emilia das Neves, Taborda, Alves Martins e tantos outros que têem illustrado o theatro portuguez.

Entre os academicos notavam-se alguns, verdadeiros

Dando conta das suas recordações da cidade de Coimbra, a narrativa de Augusto de Oliveira Cardoso Fonseca centra-se na descrição de alguns dos principais divertimentos que animavam a vida da urbe no início da segunda metade do século XIX, entre os quais destaca algumas representações teatrais, levadas a cena nos teatros Académico, da Sé Velha, da Graça e de D. Luís, e, ainda, alguns eventos esporádicos, como as ascensões aerostáticas, os espectáculos tauromáquicos, e as exibições realizadas no Colégio da Graça e no Convento de S. Domingos pelas companhias de “cavalinhos” e de “quadros vivos”.

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artistas; e no papel de damas distinguiram-se e tornaram-se celebres, Augusto Soares Franco, José Antonio da Silva Lixa, José Gomes Arouca, Oliveira Valle e outros.

D. Pedro V, assistindo a uma recita que lhe foi dedicada pela academia e que tinha por objectivo beneficiar a sociedade Philantropico-academica, chegou a convencer-se de que um dos estudantes, que representava o papel de dama, era realmente uma actriz […].

O theatro da Sé Velha, da iniciativa de artistas, curiosos na arte dramatica, fôra construido n’uma casa situada no largo e em frente do vetusto templo que ao mesmo largo deu o nome – da Sé velha.

Era muito acanhado; mas, apesar d’isso, concorrido por bôa assistencia, devido ao esmero dos seus empresarios, na escolha e bom desempenho das peças.

Foi n’este theatro que pela primeira vez, em Coimbra, se representou o magnifico e sensacional drama Frei Luiz de Sousa, de Almeida Garrett.

Para esse fim foram a Coimbra alguns actores da capital, os quaes com outros, curiosos, d’aquella cidade o representaram magistralmente.

Foi isto entre os annos de 1850 a 1852. Pouco depois d’essa epocha foi demolido, em virtude da casa, por acanhada, como já dissemos,

offerecer um constante perigo em caso de incendio. Extincto que foi o theatro da Sé Velha, os mesmos amadores, associados com outros artistas,

fizeram construir o theatro de sociedade Bôa União, que ficou conhecido por Theatro da Graça, n’uma parte do antigo Collegio de Nossa Senhora da Graça dos eremitas calçados de Santo Agostinho, que é situado na rua da Sophia.

Na antiga rua de S. Christovam, mais tarde rua do Correio e hoje de Joaquim António d’Aguiar, existiu durante sete seculos a egreja de S. Christovam, que fôra fundada por D. João Peculiar.

Este templo foi demolido em 1860, para ser edificado o Theatro de D. Luiz, o qual foi inaugurado em 22 de dezembro de 1861, com o drama de Mendes Leal, O dia da redempção.

No anno de 1862 assistimos n’este theatro á representação, por curiosos, do drama A probidade, o qual, se não estamos em erro, era também de Mendes Leal.

Ainda nos recordamos das phreneticas e justas ovações, de que foi alvo o actor curioso, filho de Coimbra, José Novaes, que desempenhou magistralmente o papel do principal protagonista da peca, Manuel Escôta, velho e honrado marinheiro – um verdadeiro lobo do mar, que, com risco da propria vida, salvou dos horrores d’um naufragio a filha do capitão do navio.

…………………………………………………………………………………………………….

Antigamente as companhias que exibiam trabalhos de equitação e acrobaticos eram vulgarmente designadas por Companhias de cavallinhos.

Ahi por 1851 ou 1852 esteve em Coimbra uma d’essas companhias, a qual, para dar os seus espectaculos, fez construir um ligeiro circo no amplo claustro do, já n’outra parte referido, collegio da Graça, para o que lhe foi concedida pela camara municipal d’essa cidade, á qual o collegio pertencia, a competente auctorisação.

D’essa companhia era figura de destaque pela sua destreza na equitação, prodigiosos saltos pelo arco e perfeito equilibrio na corda a, então, celebre dançarina Angelina, artista que áquelles predicados alliava juvenil formosura.

Por isso, muitos estudantes e até os que o não eram traziam as cabeças tontas por Angelina, a qual, sempre que apparecia no circo, era alvo das mais enthusiasticas demonstrações de apreço, recebendo palmas e bravos, que attingiam o delirio.

E porque, n’um d’esses espectaculos, alguem de mau gôsto se lembrou de dar pateada, houve entre os espectadores scenas de pugilato que, generalisadas, degeneraram em grossa pancadaria, sendo

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interrompido o espectaculo e tendo de intervir urna força do regimento de infantaria n.º 23, já a esse tempo aquartellado n’uma dependencia d’aquelle collegio.

QUADROS VIVOS

No anno de 1853 esteve em Coimbra uma companhia de Quadros vivos, que dava os seus espectaculos na egreja do antigo convento de S. Domingos ou do collegio de S. Thomaz.

Era engenhôso o machinismo que supportava uma especie de palco, mas de movimento, para a apresentação dos quadros vivos.

O palco era formado por uma placa, de madeira, circular, medindo entre três a quatro metros de diametro e giratoria.

Essa placa, sobre a qual se exhibiam os artistas, era impellida de fórma, que, no seu continuo movimento de rotação, permittisse a todos os espectadores verem bem o grupo que constituia o quadro, geralmente, allegorico, de qualquer um facto da historia.

Recordamo-nos de que na noite em que nos fôram mostrar os quadros vivos, representava-se um quadro, em que apparecia Salomão com a sua côrte, na occasião em que elle proferiu a sua sentença n’um pleito verbal entre duas mulheres que simultaneamente disputavam a maternidade d’uma creança.

Era um quadro magnifico.

PRAÇA DE TOUROS

Na rua da Sophia e defronte da egrêja de Santa Justa, foi edificada a fabrica do gaz, junto da qual parte o caminho que segue para a capella do Amado.

Á esquerda de quem, por este caminho segue para a referida capella encontra-se uma enorme insua que em tempo foi propriedade da familia Pinto Bastos; insua anteriormente conhecida por Campo do Arnado.

N’essa insua foi, no anno de 1856 ou 1857, construida uma praça para corridas de touros. Ahi assistimos a algumas, em differentes epochas, e perfeitamente nos lembramos de ter visto

trabalhar n’ellas os arrojados e celebres bandarilheiros portugueses, Robertos. Passados annos ainda os tornámos a ver na antiga praça do Campo de Sant’Anna, n’uma corrida

em que era cavalleiro seu pae. Os Robertos, percebendo que elle ia ser colhido pelo touro contra a trincheira, procuraram, com uma coragem temeraria, salval-o; mas infelizmente foram baldados os seus esfórços.

O pae foi colhido, fracturando uma das pernas contra a trincheira.

ASCENÇÕES AEROSTATICAS

Tambem na praça de touros em Coimbra tiveram logar, em 1858, algumas ascenções aerostaticas feitas por M. Poitevin.

O Dr. Jacintho Antonio de Sousa, então professor de Introducção no lyceu de Coimbra desejou experimentar uma viagem em balão.

Assim foi; e n’uma tarde acompanhou na ascenção Mr. Poitevin, o qual não poude d’essa vez subir á altura que pretendia, porque o Dr. Jacintho, seriamente atrapalhado, o solicitára para que descesse.

Confessava o Dr. Jacintho que se sentira enjoadissimo e que não cahiria n’outra. E não cahiu; pelo menos, de balão.

Augusto de Oliveira Cardoso Fonseca – Outros tempos

ou velharias de Coimbra (1850 a 1880), 1911, pp. 13-7 e 105-8.

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As impressões da princesa Rattazzi sobre a cidade de Coimbra em 1879

Coimbra é propriedade exclusiva dos senhores estudantes. É curiosissimo observal-os trajando, como no tempo de Gil-Braz, sotaina curta, grande capa, (capa e batina) e meias de cadarço preto […].

A Universidade ergue-se sobre uma eminência e domina a cidade que se desenrola aos seus pés até ás margens do Mondego. Uma extensa galeria de columnas serve de passeio aos estudantes antes das classes e nos intervallos. É conhecida pela designação de via latina. A vasta sala, (sala do capello) destinada ás theses e ás ceremonias de tomar o grau de doutor, abre para essa galeria. […]

Um viçoso jardim, excellentemento cultivado, com alêas sombreadas por grandes platanos, prolonga-se em toda a extensão do corpo principal do edificio. No mesmo pavimento existe a bibliotheca, estabelecida em tres salas que se succedem umas ás outras […]. Não é fácil deparar-se-nos uma decoração interior disposta com tão esmerada elegancia. […]

Na extremidade da via latina depara-se-nos a porta que conduz ás geraes, especie de classes onde se reunem as faculdades de direito e theologia. O resto do edificio é destinado para residencia do reitor, typographia e archivos.

A typographia representa um capital consideravel. Todos os seus productos teem um destino especial. Os estudantes não podem matricular-se sem possuirem de antemão os livros adoptados nas classes que se propõem frequentar. Os quartos do reitor estão collocados de maneira que lhe permittem

presenciar os exames das janellas que abrem para todas as aulas, sem ser visto. […] No pavimento inferior á bibliotheca, descendo a escada de Minerva, encontra-se a prisão

academica, destinada aos estudantes presos á ordem do reitor ou de um juiz especial, (conservador) que a lei concedia ao pessoal da Universidade. O regimen constitucional aboliu o privilegio. A prisão converteu-se em arrecadação de livros. Os estudantes que incorrem em penalidade são mandados recolher ao Aljube.

[…] Da bibliotheca passámos a uma sala que contrastava em tudo com o que acabavamos de ver. Imagine-se um sonho de Goya ou de Gustavo Doré […] e ter-se-ha uma idéa approximada do que é

a sala dos exames secretos. Era alli que antigamente os lentes interrogavam os discipulos, conferindo-lhe ou recusando-lhe os

seus alvarás de capacidade. […] Penetramos n’um vasto aposento do construcção moderna. Um respeitavel professor occupa a

cadeira. A toga encarnada que o reveste accusa a disciplina que lecciona, direito. […] Quero ver tudo: infelizmente o tempo é que não me sobra; temos agora a faculdade canonica e

theologica, (toga branca.) […] atravesso rapidamente a sala das mathematicas, digna de especial apreço, a de philosophia e chego á porta do gabinete de historia natural. É immenso! […]

O laboratório pharmaceutico nada tem que invejar aos mais completos laboratorios. […] A geologia occupa tambem um espaço assignalado. […]

Que diremos do gabinete de physica, um dos mais notaveis da Europa? No seu recinto agrupam-se

Na sequência da sua estadia em Portugal, em 1879, Maria Rattazzi visitou a cidade de Coimbra, onde permaneceu por algum tempo com o intuito de recolher informações para o livro de viagens que nesse ano viria a publicar em Paris sob o título de Portugal à vol d’oisseau. Obra polémica, gerou várias manifestações de crítica de diversos escritores portugueses, que se insurgiram contra o modo depreciativo como a princesa Rattazzi retratou o país. Embora nas suas impressões sobre Coimbra a autora não poupe elogios a alguns dos seus lugares de culto, aos elementos paisagísticos e à Universidade, esse não é o tom usado relativamente a algumas habitações, que qualificou como “infectas e medonhas”, bem como às hospedarias da cidade, destacando a escassa qualidade das refeições e do serviço do “insuportável” Hotel Mondego, à época considerado o melhor estabelecimento do género nesta cidade.

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todas as curiosidades da sciencia, todos os modernos machinismos […]. As pinturas do tecto do theatro (antigo collegio de S. Paulo concedido pelo governo), foram feitas

pelos estudantes. São elles tambem que escrevem as peças e que compõem as symphonias de abertura, distribuindo,

consoante as aptidões de cada um, os differentes empregos annexos ao theatro. Os lentes não se oppõem a este género de divertimento, partilham-o tambem, intercalando assim os estudos com distracções mundanas. Essas distracções desenvolvem consideravelmente o gosto das bellas artes. […]

O observatorio da Universidade foi construido por iniciativa do marquez de Pombal. O jardim botanico merece uma analyse muito especial. O director quiz mostrar-m’o em todos os

seus variados aspectos minuciosos e confesso que fiquei encantada ao notar a disposição engenhosa da arte alliada á natureza.

[…] A cidade de Coimbra assemelha-se a um fato de arlequim onde a par dos farrapos grosseiros brilha a purpura recamada de ouro, digna de vestir uma rainha.

As hospedarias são detestaveis. As casas infectas e medonhas elevam-se, ou por outra rastejam ao nivel de monumentos admiraveis e do sitios deliciosos. O contraste é picante, – de longe sobretudo.

[…] Os estudantes offereceram-me um almoço no Choupal, que me deixou indeleveis recordações. Choupal é uma pequena ilha acantoada entre duas montanhas de areia de ouro e pinheiros

gigantescos, uma paizagem de keepsake, com um abysmo em miniatura no fundo do qual rumoreja a agua escura e opaca como aço polido. Uma casinha, ou antes um chalet, abre graciosamente para o jardim que se prolonga a perder de vista, florido, balsamico, residência constante de uma primavera inalteravel.

[…] Contraste perfeito com o espectaculo do dia: o repouso era tão profundo que sulcando o rio receei que o ruído do barco perturbasse o concerto silencioso cuja harmonia penetrava o mais intimo do meu ser. Encaminhei-me á «Lapa do Poeta.»

A Lapa do Poeta é uma casa pendurada de um outeiro que domina o rio, não deixando ver por entre o cortinado da folhagem senão o telhado e as janellas que abrem, como olhos curiosos, para o mais bello panorama do mundo.

[…] A quinta das Lagrimas é a homenagem consagrada pela tradição à formosa e desventurada Ignez de Castro, cujo tumulo existe em Alcobaça, a 85 kilometros do Coimbra.

Á sombra dos cedros centenarios murmura um regato, (as lagrimas de Ignez, conforme affirma a legenda) que serpentiando vae lavar um bloco avermelhado, gotejando ainda o sangue da martyr, segundo reza a tradição. […] Uma lapide perpetua alli a admiravel estancia de Camões, inspirada por esses poeticos e mallogrados amores.

[…] O convento de Santa Clara conserva a sua physionomia original e caracteristica. Coube-me a boa sorte de visital-o a 3 de julho, dia da festa annual da rainha santa Izabel, cujos

restos mortaes alli repousam. […] Toda a medalha tem reverso. Coimbra desfructa sitios deliciosos, possue uma Universidade

que merece occupar um logar assignalado entre as capitaes da Europa; lastimo, porém, os estomagos difficeis que ahi se aventurem. Só um asceta reduzido á mais completa abstinencia poderá elogiar Coimbra sem acrescentar o mas… Não ha nada peior do que as hospedarias!

O hotel Mondego que aloja, segundo reza a fama, as testas coroadas e as excellencias que passam por Coimbra, é simplesmente insupportavel! Nem mesmo um modesto caldo é possível ahi obter-se! Um rapaz, conhecido polo nome significativo de José Macaco, de uma feialdade socratica, accumula simultaneamente as funcções de criado de quarto, gerente, despenseiro e porteiro. Não tive a honra de agradar ao Cérbero, resultando d’ahi que nunca fui tão mal servida nem tão barbaramente envenenada.

Maria Rattazzi– Portugal de relance. Vol. II, 1882, pp. 103-15 e 118-9.

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ÉVORA

Emergência e configuração do Teatro Garcia de Resende

A intervenção de José Cinatti no espaço urbano e no património eborense

Uma visita guiada pela cidade museu

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Emergência e configuração do Teatro Garcia de Resende

Foi o Theatro Garcia de Resende começado a construir no anno de 1881 a expensas de uma companhia edificadora, legalmente constituida, cujo numero de accionistas se elevava a 340, entre os quaes figurava distinctissimamente o fallecido lavrador e proprietario, José Maria Ramalho Diniz Perdigão, a quem muito deveu a empresa.

Uma comissão especial, composta dos senhores Dr. Francisco Ignacio de Calça e Pina, Joaquim Sebastião Limpo Esquivel e Manuel José Carreta, a seu cuidado tomou a escolha do terreno preciso na cêrca do demolido convento de S. Domingos, que se aforára ao senhor conde da Costa pela quantia de quinze mil réis annuaes, bem como a direcção e approvação da planta e demais desenhos da obra.

Foram estes confiados a um engenheiro civil, filho de Evora, o senhor Adriano Augusto da Silva Monteiro. Sob sua direcção scientifica e technica e sob a pratica do senhor Manuel de Oliveira e Silva, de Lisboa, se deu principio á vasta fabrica, que, sem interrupção, continuou até ao anno de 1884, em que, por carencia de capitaes, as obras tiveram de parar, consumidos nellas uns quarenta contos de réis.

Ficára o edificio erguido exteriormente e telhado, e com as paredes divisorias de camarins internamente; mas tudo incompleto e nú, tudo vasio.

Neste estado permaneceu o theatro até ao anno de 1888, em que as obras recomeçaram sem interrupção a impulso generoso e grandissimo dos esposos felizes, cujos retratos ahi ficam, até que no dia 14 de agosto de 1890, em acto publico, presentes a Camara Municipal e as primeiras familias da cidade no salão nobre do mesmo edificio, o senhor Dr. Francisco Eduardo de Barahona Fragoso com a sua esposa, a senhora D. Ignacia Angelica Fernandes de Barahona o entregaram ao Municipio de Evora, lavrando-se a respectiva acta de entrega, que foi assignada pelos dadores e por muitas dezenas de senhoras e de cavalheiros da cidade. Seguidamente foi o Theatro illuminado a gaz por primeira vez.

Deslumbrante foi o acto em que se desdobrou em calorosas chamadas dos dadores pela concorrencia de centos de pessoas, em salvas de palmas e de vivas, e de acclamações freneticas e

A emergência do Teatro Garcia de Resende constitui um testemunho relevante do impulso da iniciativa privada na dinamização da vida cultural da cidade de Évora no século XIX e na respectiva modernização urbana. Aludindo a essa “primeira obra dos tempos modernos em Évora”, a memória de António Francisco Barata, publicada sob o pseudónimo de D. Bruno da Silva, assinala os principais intervenientes do seu processo de edificação, essencialmente impulsionado por personalidades locais. Além do papel de José Ramalho no arranque da construção do novo teatro, através da organização da Companhia Eborense fundadora do Teatro Garcia de Resende, a 1 de Abril de 1881, o autor destaca a figura de Francisco Barahona, a cujo apoio financeiro se deveu a concretização do projecto, e documenta a cerimónia do acto de entrega, pelo benemérito, deste teatro à Câmara Municipal de Évora, em 1890. Abrindo portas a 1 de Junho de 1892, a inauguração desta nova sala de espectáculos foi assinalada com a presenta da Companhia do Teatro D. Maria II que, durante 7 noites consecutivas, aí protagonizou inúmeras récitas, fazendo subir a cena na noite inaugural a comédia- drama em 3 actos O Íntimo, de Eduardo Schwalbach, e a comédia francesa O sub-prefeito, às quais se seguiram, nas restantes récitas, entre outras, as peças Marquês de Villemer, Amigo Fritz, D. César de Bazan e Leonor de Teles.

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delirantes aos magnanimos conjuges. Sucesso notavel foi: dir-se-hia ser aquella a primeira noite de espectaculo!

D. Bruno da Silva – À posteridade: esboços biográficos dos excelentíssimos esposos

Francisco Eduardo de Barahona Fragoso e D. Inácia Angélica Fernandes de Barahona, 1891, pp. 11-2.

Tive occasião de visitar ha um anno o theatro d’Evora, por esse tempo quasi concluido, e se não trouxe deslumbrados os olhos das refulgencias feericas dos seus adornos, explica-se o caso não por mesquinharia dos doadores (que abriram praça a todos os recursos estheticos do paiz) mas por inexperiencia d’artistas acordados decoradores por incidente, e incapazes portanto de conceberem a obra sob um rosicler d’arte excepcional. […] Externamente tem a configuração do piano de cauda, pesadona, que em Lisboa S. Carlos offerece ao desconsolo dos physionomistas de monumentos: a arcada vestibular com varanda por cima, dando o arremedo do teclado, janellas de volta redonda, sem friso ou coroamento ornamental de nenhuma especie, frontão d’armazem, platibanda de predio d’aluguel, e para traz um casarão esburacado de rectangulos de vidraça, caiado e com um incaracteristico aspecto de fabrica de moagens, escola academica, e quartel de bombeiros voluntarios.

Pela escada vestibular entra-se, por portas d’adega, para o salão d’espera, que tem o botequim á esquerda, e os cubiculos do bengaleiro e bilheteiro do outro lado. O salão communica com os corredores da plateia por dois porticos estreitissimos, d’um accesso difficil, e mesmo perigoso em casos de sinistro. A escada que d’aqui leva ao salão nobre e aos camarotes, tem amplidão sem duvida, mas ninguém põz mira em lhe imprimir uma feição decorativa […].

O salão d’espera é pouco extenso, de pé direito curto, e portas de volta redonda dando ingresso nas dependencias que já disse. A decoração figura, para o tecto, uma especie de claraboia ovalar, tapada por uma colcha de brocado amarello,

atada pelos cantos, e tendo no papo, ao centro, as armas da cidade. A das paredes são quatro telas a óleo, rectangulares, querendo arremedar Gobelinos onde estivessem tracejadas, em fundo amarello, estatuetas allegoricas da Comedia, da Musica, da Litteratura e da Dança, com algumas flores enramalhetando-lhes sensaboronamente os pedestaes. O conjuncto, mesquinho, e infinitamente insignificante.

Com o pouco pé direito da casa, a pintura do tecto não causa espectação: nem os retalhos de ceu entrevistos por entre a colcha e o aro da clara-boia, dão illusões do plein air, nem o brocado se distancia por forma a se tomarem por verdadeiras as pregas e atados que o artista intentou dar-lhes, sendo alem d’isso o brazão da cidade tão pequenino, a meio do estofo, que em vez d’encher a sala, levando os olhos como uma consagração do theatro á grande capital do Alemtejo, mais parece uma

Transmitindo uma visão detalhada da feição que o Teatro Garcia de Resende assumia à data da sua inauguração, a narrativa de Fialho de Almeida, embora atribuindo alguma atenção à sua configuração externa, projetada pelo engenheiro eborense Adriano Monteiro, incide, essencialmente, na descrição das características decorativas do seu interior, que teve como executantes os pintores António Ramalho, João Vaz e João Eloy do Amaral, o dourador Manuel José da Costa, o entalhador Leandro Braga, o cenógrafo Luigo Manini e o estucador Domingos Meira. Sem poupar críticas quer aos aspectos arquitectónicos quer aos elementos de decoração do interior do edifício, e em contraste com a sua apreciação lisonjeira do cenário e dos trabalhos de estuque do espaço do salão nobre, o autor expressa, sobretudo, as suas impressões de desagrado face às pinturas e aos adornos das paredes e tectos do salão de espera e da sala de espectáculos, insistindo no seu carácter desarmónico e notando a ausência de um princípio ornamental na orientação dos executantes.

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marca de linha, para distinguir a colcha das mais, quando algum vereador aceado tenha d’envial-a á lavadeira. Quanto aos retabulos dos muros, a impressão inda é mais desagradavel, pois o artista, inconsciente do papel da decoração mural, limitou-se a emoldurar em rectangulos de carvalho, composições sem o menor vislumbre de gosto ou formosura adequada, deixando pelos muros grandes claros nús, barrados de pedra pomis, descurando os frisos, e occupando os cimos de portas por grotescas plaquetas deletreando os nomes dos que entraram na obra. […] De sorte que a decoração não obedece a nenhum principio ornamental, as tonalidades são desconexas e sem convergencia a nenhuma logica de harmonia: uma coisa toda feita de bocados, e esses mal postos e quasi todos fóra do seu logar. No botequim ha uma pintura de tecto, interessantinha, a fingir envidraçamento d’estufa, e por entre o caixilhame dos vidros, trepadeiras mui leves, coqueteando; e em camafeus, nos ângulos, atributos de loja de bebidas.

Entra-se depois na sala d’espectaculo, mais pequena que a de D. Maria, e muito mais alta, defeituosamente alta, e a branco e oiro segundo a sumptuaria rotina de todos os salões onde os olhos querem gosar sem reflectir. Tres ordens de camarotes, forros de papel vermelho, columnellos doirados com capiteis ligeiros e bordaduras de talha fazendo á jour, por cima de cada ordem, uma especie d’arcaria gothica, de bom gosto. A mesma bocca de scena emmoldura n’um grande arco manuelino, leve e aereo, onde Leandro Braga fez florir alguns caprichos da sua ebenesteria tão pessoal. Todo o trabalho, delicado, sobrio, elegante, deixa uma impressão de graça vaporosa, de riqueza e de nobreza esparsas, que o espectador digere sem vertingens, e emfim d’alguma fórma aparentella este arcabruço de quartel que parecia o edificio em bruto, com alguns dos admiraveis monumentos antigos da cidade.

O panno de bocca é bem achado: por uma escadaria de terraço, que tem no fundo verduras e silhuetas d’edificios eborenses, um pagem desce, em seu costume de côrte, adolescencias d’Antinous amoroso, moreno e todo elle vibrando a vida livre dos bellos insectos d’oiro entre açucenas. Balaustradas de marmore aos dois lados, fechando jardins cercados d’arcarias, e na da direita uma colcha de raz amarfanhada, mostrando o brazão da cidade a meio do estofo.

Já não é feliz a pintura do tecto, em lona, que se me afigurou uma vasta trapalhada. Uma arcaria gothica circumtorna uma porção de ceus nublados, de cujo centro rompe uma esfera armillar, que serve á sala de respiradouro, amparada por dois microscopicos cherubins. De roda, alegorias, genios, mas n’uma agrupação tão confusa, n’uma desymetria de poisos tão maluca, que o espectador, impossibilitado d’aperceber o conceito da assoísse, imagina ver no ceu d’um claustro uma tropa d’arlequins ás cabriolas. Na zona posterior do painel, sobranceira ao palco, tres deidades morenas tangem lyra, nuas quasi, e com cabeças de creadas de hotel surprehendidas em cabello, emquanto outras, de glorias e victorias, voejam pelas nuvens, com suas azas mythologicas em guiza d’orelhas, nas espadoas, offertando corôas, palmas, e mesmo trombeteando soffrivelmente a fama do rapaz pintado no panno de bocca, e que figura ser Garcia de Rezende em estudantinho. Toda esta mythologia pecca por burgueza, as figuras não teem tranfiguração nem divindade, e a cópia excessivamente real de modelos fanados, reproduzida em tons violentos, carnes trigueiras, anatomias sopeiraes, tunicas vermelhas, verdes, azues e roxas, tira ao espectador a visão poetica, d’um olympo decorrido em regiões de meia tinta, vago e diaphano como um sonho, o que seria a única decoração de plafond conveniente a uma sala onde a coloração dominante é branco e oiro. O resto da composição inda é mais emmaranhado que o preambulo: á parte esquerda, allegorisando a tragedia, dois figurões desafiam-se a punhal... evidentemente um desordem – policia, moita! – d’espavorir duas pobres mulheres que iam passando, uma das quaes, de mão na bocca, é evidente berra, aqui-del-rei. Povinho da fabula em dia de hortas – muito me admiro até de não haver mais zaragatas. O grupo allegorico da direita, para mim permanece indecifravel. Está uma typa, de facha em gigo em torno á pinha, aceitando a parodia que lhe faz uma especie de João Baptista, ajoelhado, e por cima quatro purrios de quatro genios botam-lhes flores, a modos d’evohé. O duo desenhado por forma que o espectador

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apercebe um pouco em escorço o namorado, ao passo que ella, reteza, ao comprido, de barriga pr’a baixo, dir-se-hia pegada ás nuvens, como se fôra de papel.

[…] O palco é vastissimo, entre o de D. Maria e o de S. Carlos, mais completo quanto a machinismos e aptrechos: scenario de Manini, que fez dos cinco pannos dotaes uma maravilha de scenographia larga, na sua maneira italiana, tão pouco disposta a transigir com motivos portuguezes. Resta um pouco dizer do salão nobre, estucado em Luiz XVI de phantasia. Sem ignorar que a estucagem industrial não paga decima á grande arte, nem por isso este salão deixa de ser, para meu gosto, o bocadinho harmonioso. Tem configuração rectangular, portas dos lados, o rodapé de molduras muito simples, e pannos d’espelho alternando com almofadas de lilaz tenue, circundadas d’elegantissimas bordaduras. Nos angulos do tecto, medalhões com cabeças d’actores e dramaturgos, escolhidas em guiza de haver pr’a pobre e rico. Sobre a varanda da arcada, tres janellas, bancos de bambu doirado á roda das paredes, tremós junto aos espelhos... Sou a dizer que em toda a obra decorativa do theatro d’Evora fosse o estucador o verdadeiramente possuído d’instincto ornamental.

Fialho de Almeida – Os gatos: publicação mensal de inquérito à vida portuguesa. N.º 42, 1892, pp. 4-15.

A intervenção de José Cinatti no espaço urbano e no património eborense

Ao forasteiro que entra ao descair da tarde no passeio publico de Evora, e, deixando a rua central, sóbe á direita, pela que, por meio de multiformes canteiros floridos e verdejantes, conduz á arcada da galeria, deparam-se-lhe de subito, em deleitosa perspectiva, as ruinas […]. As sombras do crepusculo avançam já dos recantos mais profundos pelas paredes interiores, esvaecendo as fórmas e as côres dos objectos; porém as ameias da torre, as curvas caprichosas dos muros desmantellados, as columnas e as voltas recortadas das janellas destacam ao vivo no horisonte, que tinge de purpura e rosas o sol recem-escondido por detraz dos monticulos de S. Bento. Passados alguns instantes, em que a admiração e desejo de contemplar tão pittoresco espectaculo lhe embargaram os passos, aproximar-se-ha para examinar por menor as partes do todo cuja primeira e geral apparencia o maravilhou e surprehendeu.

Em vista das janellas e portaes, feitos de arcos de granito bem lavrado, assentes em columnas de marmore, julgará que tem diante de si os restos de uma das muitas casas apalaçadas que em tempo de D. Manuel se edificaram em Portugal, e particularmente em Evora. E se o viajante souber que a proxima galeria, sob cuja arcada passou, pertenceu aos paços reaes, convencer-se-ha, sem dúvida, de que de uma parte d’elles ficaram as ruinas que observa. Reconstituir-lhe-ha então a phantasia as antigas salas ricas, de tectos esculpidos, de marmores cinzelados, de alizares de azulejos, de pinturas a fresco ou de pannos de raz. Figurar-se-lhe-hão nas janellas,

Entre 1858 e 1873, a actividade do arquitecto e cenógrafo José Cinatti esteve em parte associada à cidade de Évora, na qual viria a figurar entre os principais intervenientes dos melhoramentos urbanísticos e patrimoniais conhecidos por essa urbe na segunda metade do século XIX e na qual viria a ser alvo de várias manifestações de tributo e gratidão. Destacando-se aí com a projecção do passeio público, inaugurado em 1867, foi sob a sua direcção e o financiamento de José Ramalho, que em Março de 1863 se iniciou a construção do novo palco da vida social eborense. Adaptando-se aos modos de lazer e sociabilidade modernos, a cidade beneficiou, ainda, de um novo atractivo que à época adquiriu grande visibilidade, em virtude da feição singular que Cinatti lhe conferiu, ao erigir, no passeio público, as “ruínas fingidas”, nas quais utilizou alguns elementos arquitectónicos de edifícios antigos, conforme dá conta o artigo de Augusto Filipe Simões. Concluída a edificação das ruínas fingidas e do passeio público, José ++++++

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debaixo dos refolhos dos capiteis, as damas da corte del-rei D. Manuel, e da parte de fóra, em pequena distancia, algum gentil cavalleiro enamorado a ladear galhardamente no fogoso ginete, que não o deixa demorar tanto quanto deseja.

A lição da historia e da archeologia portugueza não serviu ao nosso forasteiro senão para imaginar uma novella, em quanto pensava restituir algumas paginas do passado sobre documentos de incontestavel authenticidade. Quantas se não escreverão assim!

As ruinas foram artificiosamente fabricadas ha pouco mais de um anno. Fingiu-as um engenhoso artista, não em a téla do painel ou nos bastidores do theatro, mas alli, no campo, em vulto e tão reaes como as arvores que as cercam, as trepadeiras que as vestem, ou o ceo em que se desenham elegantes e graciosas. Excepto a torre e algum pedaço de muro, tudo o mais alli foi posto sob a phantasiosa direcção do sr. José Cinatti. Parece que pretendeu e logrou tornar palpavel e não ficticia, para lhe redobrar o encanto, a mais esplendida e maravilhosa scena que para o theatro poderia compor com o seu pincel de magico e de poeta.

Entretanto, as janellas e portaes, que é, por assim dizer, que ás ruinas imprime caracter architectonico, pertenceram, effectivamente, a uma das casas a que alludimos. Exornaram antigamente os paços dos condes de Vimioso, edificados pelo bispo D. Affonso de Portugal defronte da sé, nos fìns do seculo XV ou nos principios do immediato, isto é, no reinado de D. Manuel. Da magnificencia d’estes paços dão claro testimunho não só as reliquias que fazem parte das ruinas, mas tambem as janellas que estão na varanda da casa da camara, e que, ha obra de vinte annos, alguma pessoa illustrada, talvez o sr. Rivara, para aqui fez transportar a fim de se não perderem; e ainda os poucos restos que se conservam no interior da casa em que modernamente transformaram a nobre e elegante residencia dos descendentes de D. João I e de D. Nuno Alvares Pereira. Não é, porém, impossivel que outros muitos se perdessem no longo espaço de tempo em que ella permaneceu deserta e arruinada.

Junto da estrada que liga Evora a Arrayolos, a um Kilometro, pouco mais ou menos, d’esta villa, vêem-se as ruinas de outros paços, denominadas da Sempre-noiva, que o mesmo bispo D. Affonso de Portugal, pae do primeiro conde de Vimioso mandou construir pelos annos de 1510, pouco antes ou pouco depois, que não ha certeza na data. As janelas e portaes que restam d’este edificio são similhantes aos das ruinas, e provam que, em magnificencia, era egual ou pouco inferior ao outro de a par da sé.

Convem notar que todos estes elementos architectonicos são de estilo arabe mais puro que o que geralmente se usava no tempo de D. Manuel e lhe conserva o nome. As voltas em fórma de ferradura e recortadas, e os capiteis, são tao caracteristicos, que o sr. Alexandre Herculano, quando viu a primeira vez as ruinas do passeio, antes de saber a proveniencia dos portaes e janellas, admittiu a possibilidade de terem pertencido a algum monumento contemporaneo da dominação arabe. […]

Logo ao pé da torre, as ruinas fingidas com os muros meio derruidos e os arcos troncados, e mais adiante as ruinas verdadeiras dos paços reaes destacam mui graciosamente por meio das mantas de verdura. As ruas tortuosas, deseguaes, irregulares, correm como que abertas ao natural á roda dos lagos, feitos de pedra brutesca; dividem os canteiros, povoados de arbustos e plantas herbaceas; contorneiam os estevaes e luzernaes, orlados de ailantos, cycomoros, amoreiras e platanos; e cercam as boscagens de cedros e pinheiros, pequenos ainda, mas esbeltos e viçosos.

No meio d’esta vegetação alegre e animada erguem-se, tristes e melancolicas, as ruinas, como reliquias venerandas do passado que mãos piedosas engrinaldassem de verdura e de flores.

Augusto Filipe Simões – “Ruínas fingidas no passeio público de Évora”. Arquivo Pitoresco: semanário ilustrado. Tomo XI, 1868, pp. 281-2.

Cinatti foi por duas ocasiões solenemente homenageado pela cidade de Évora, primeiramente, em 1867, com a atribuição de uma medalha de ouro e, a 4 de Maio de 1884, com a inauguração, no passeio público, do seu busto em bronze, da autoria do escultor José Simões de Almeida.

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Em 1863 tinha desabado já a parte media do telhado que cobria o recinto da torre ou das ruinas. Algumas lapides, interessantes por seus lavores ou por inscripções que continham, alli haviam sido depositadas. Á falta de logar mais conveniente, outras muitas, por diligencia de quem escreve estas linhas, se recolheram também no mesmo recinto.

Todavia, as paredes construídas na edade media estavam em risco de vir a terra, pelas grandes fendas que as dividiam, em particular as dos lados do sul e do nascente. A falta parcial do telhado augmentava ainda o perigo da ruina, em que inevitavelmente se perderiam as columnas e a architrave ou toda a parte superior ao envasamento.

Não havia senão dois meios de prevenir tamanha perda: ou reparar as paredes arruinadas, ou demolil-as, deixando unicamente o que fosse obra romana. O primeiro alvitre, além de exigir maior despeza, perpetuaria um barbarismo, tolerável sómente no caso, em que importasse á conservação dos restos do templo. O segundo tinha a seu favor todas as razões, da economia e da esthetica. Era a obra unica racionalmente admissivel. Por isso a propuzemos em 1869 á camara municipal num relatório, que se imprimiu no mesmo anno.

Por infelicidade manifeslava-se adversa a uma obra tão necessaria a opinião de muita gente em Evora. Uns, sequazes, inscientemente, das doutrinas utilitarias, entendiam que as ruinas do templo não passavam de uma antigualha improductiva, que se havia de deixar cair ou até de pôr por terra para desembaraçar o espaço que occupa. Outros, pelo contrario, filiados, tambem sem o saberem, na eschola tradicional, pretendiam que se conservasse religiosamente não só a parte romana, mas ainda a da edade media, que suppunham representante da dominação arabe.

Era vulgar a idèa de que o templo, por ter ameias, servira de mesquita aos moiros. E corre até impressa esta fabula com as outras de que tinham tecido commodamente a historia d’aquelle edificio. Como prova irrefragavel de que fôra mesquita, não faltou em Evora quem allegasse o campanario que estava entre as ameias. Ora o campanario moirisco, mandara-o construir em 1500 el-rei D. Manuel para o sino de correr!

Presidia á camara municipal um cavalheiro illustrado que nos honrava com a sua amizade, e que de boamente nos auxiliara, mandando transportar e collocar á custa do municipio as lapides que tractavamos de colligir. Mas, ou

porque, relativamente ás ruinas, não ousasse contrariar a opinião geral, ou antes porque poucos mezes faltassem para terminar a gerencia da vereação presidida pelo sr. visconde da Esperança, findou o anno de 1869, sem que se désse um só passo para levar a effeito a obra do templo.

O relatório ficaria, pois, sem ter outro resultado mais que o de prejudicar em vez de favorecer a idéa da purificação das ruinas, numa terra em que os documentos d’esta especie tantas vezes servem

Além da sua intervenção no passeio público eborense, a figura de José Cinatti encontra-se ainda ligada a algumas das principais construções e iniciativas de melhoramentos empreendidas na cidade de Évora na segunda metade do século XIX. Responsável pela projecção do edifício residencial do lavrador e proprietário José Ramalho, que viria a denominar-se Palácio Barahona, assim como pelas obras de restauro efectuadas no Palácio de D. Manuel e na Igreja de S. Francisco, José Cinatti teve ainda a seu cargo o projecto de restauro do principal monumento da cidade – o Templo Romano de Évora – que à época se encontrava descaracterizado, dado que a estrutura antiga havia sido revestida com paredes e uma torre acrescentadas no período medieval e que colocavam em risco a estabilidade do monumento. Descrevendo o processo do restauro deste Templo Romano, a memória de Augusto Filipe Simões, figura relevante na defesa do património eborense, dá conta de alguns factos que antecederam a concretização do projecto e dos seus principais intervenientes, entre os quais se destacam José Cinatti, Manuel de Paula Rocha, presidente da Câmara Municipal de Évora entre 1870 e 1872, e o próprio Augusto Filipe Simões. Este último, distinguindo-se, desde 1869, pela sua acção preconizadora do restauro do templo através da remoção das estruturas medievais, viu os seus intentos concretizados em 1871, apesar das resistências que, de acordo com o seu relato, se verificavam no âmbito local, e que se fundamentavam na preservação dos elementos adicionados na Idade Média enquanto testemunhos da dominação árabe.

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para se fazer o contrario do que demonstram; se outro amigo nosso, o sr. Manuel de Paula da Rocha Vianna, official da bibliotheca publica, não succedesse na presidencia da camara ao sr. visconde da Esperança. Comprehendendo a necessidade da demolição das paredes e a grande vantagem que resultaria de expurgar a parte romana de todos os acrescentamentos posteriores, resolveu logo effeituar, custasse quanto custasse, uma obra indispensavel á conservação de um dos monumentos mais interessantes ao estudo das artes em Hespanha e Portugal.

Naquelle tempo ia muitas vezes a Evora o sr. José Cinatti dirigir a execução do plano que traçara para o Passeio publico. Sem prevenção alguma, lhe pedimos que examinasse attentamente as ruinas e dissesse a obra que mais conviria fazer para que de todo se não perdessem. A sua opinião saiu conforme á idèa fundamental do projecto. Completou-o, porém, com particularidades technicas, e obsequiosamente se offereceu para dirigir a obra, da qual se tornou desde logo defensor ardente e apaixonado.

O coração do artista pulsava com a idèa de libertar as ruinas das pesadas construcções que as opprimiam e occultavam, restituindo-lhes a graça e majestade que tiveram outrora, e assimilariam de novo o nosso templo aos monumentos congeneres da sua patria.

Tinha então o sr. José Cinatti grande popularidade em Evora. Todos viam maravilhados como a phantasia do artista transformara em formosissimo jardim uns logares que os muros arruinados, os montões de entulho e as plantas bravias faziam repugnante e desprezivel á vista. A transformação dera tal auctoridade a quem a imaginara e dirigira, que, em cousas de arte, as suas palavras, como de oraculo, eram acolhidas e respeitadas.

Todavia a voz do sr. Cinatti não fez as conversões que se esperavam relativamente á obra do templo. A opinião geral continuou-lhe adversa. Apenas alguns cavalheiros, por sua ilustração ou por amizade para comnosco, Vianna ou Cinatti, ousavam affrontar os obcecados contradictores do projecto.

Não desesperámos ainda de fazer persuadir uma idèa razoavel. Como presidente da camara, Manuel Vianna consultou muitos dos homens mais competentes em Portugal ácerca da obra que pretendia fazer para conservar as ruinas. Alguns não deram resposta, ou prometteram ir a Evora e não foram. Responderam, porém, e todos conformes em approvar e até em instar pela demolição das excrescencias que conspurcavam as ruinas, os srs. abbade de Castro, Francisco de Assis Rodrigues, Ignacio de Vilhena Barbosa, José Maria Eugenio de Almeida, Victor Bastos, visconde de Castilho e visconde do Juromenha. O sr. Alexandre Herculano, sem ter promettido cousa alguma, foi a Evora e deu verbalmente o seu parecer favoravel ao projecto. Lembrou também as indagações que, por interesse da archeologia, se haveriam de fazer, quando se demolissem as paredes construidas na edade media.

A unanimidade, e ainda mais, a qualidade dos votos eram para convencer os mais contumazes. Pois nem assim. Uns não se converteram, porque não conheciam aquelles nomes, excepto o de José Maria Eugenio de Almeida, que viam ás vezes em Evora e sabiam possuir algumas herdades proximas da cidade; outros porque se julgavam a si proprios superiores a todas e quaesquer auctoridades neste ou noutros assumptos.

Dirigida pelo sr. Cinatti, fez-se em 1871 a demolição das paredes que deformavam as majestosas ruinas. Ao ver-se quanto ganhara a perspectiva do templo, por se projectarem no fundo azul do céo as columnas totalmente livres, mudou a opinião de muitos que se não convencem com palavras, mas com os factos. Outros, porém, permaneceram firmes como rochedos. Tal foi a camara que succedeu áquella que tivera Manuel Vianna por presidente. Um anno depois, em 1872, chorava ainda com lagrimas de crocodilo num documento official as obras com que tinham desmantelado o templo de Diana!

Augusto Filipe Simões – Escritos diversos, 1888, pp. 136-9.

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Uma visita guiada pela cidade museu

Évora, até certo ponto, dá uma ideia de Braga. Como Braga, prima no cunho arcaico que, aliás, a torna muito atraente; como Braga, tem um valor monumental que bastaria para lustre e riqueza artística dum povoado muito maior.

E a arte antiga dá-se tão bem em Évora, que Cinatti lá foi simular com talento no Jardim Público umas ruínas venerandas, capazes de iludirem os olhos dos visitantes mais cultos.

Mas, autênticamente antiga, Évora tem monumentos bastantes para justificar as romarias frequentes dos artistas e dos críticos de arte.

O convento de S. Francisco, em estilo romano-ogival, é um museu quási. Notável pelo pórtico e arcadas, pela arrojada abóbada, pelos doze altares principais, pelo artezoado teto da capela-mór, encerra belos quadros de Grão Vasco, túmulos como o de D. Rodrigo de Vasconcelos, capitão da Ala dos Namorados, a sagrada falange de Portugal na batalha e prodígio de Aljubarrota.

A sua Capela dos Ossos, singularmente feita de ossadas e caveiras, surpreendeu os companheiros do lente como uma extravagância primorosa, e tambêm com profundo significado filosófico.

O catedrático conduziu depois os seus amigos ao Museu Arqueológico, no rez-do-chão do Palácio de D. Manuel, ruína de maravilhas da Renascença.

– Não reparem de mais naqueles escombros, mal amparados, porque artistas ignorantes os afearam sem tom nem som, disse êle, ao saírem.

Depois, visitando o grande Palácio Barahona, tornou o lente:

Veem maravilhados, não é verdade? É um belo e vasto museu do que a arte possue de melhor. As pratas são preciosíssimas, como viram. Ilustre família esta dos Barahonas. Foi o finado conde de Barahona quem, quási só à

sua custa, construiu aqui o teatro Garcia de Rezende, o mais belo de todos os de Portugal depois dos principais dos grandes centros.

Uma hora depois estavam na Praça do Geraldo ainda trocando as impressões colhidas na visita ao templo da Graça e ao convento, hoje quartel, e notando o aspecto alongado e desarmónico daquele verdadeiro centro cívico de Évora.

– A Renascença, como viram, presenteou Évora com obras importantes. Já não posso louvar assim quem levantou no meio desta praça um tão absurdo e monstruoso fontenário. E o mais interessante é que, para êle nos aborrecer assim, demoliram outro que era esplêndido. Coisas da nossa decadência, porque estava então às portas da História o ano fatídico de 1580.

– Por isso – observou o bacharel – em vez dum alegre e elegante fontenário, quiseram aquele túmulo informe… Depois, o ar velho da casaria… que nesta cidade é uma nota fortemente dominante.

Sobretudo centrada no património monumental eborense, a narrativa de viagem de José Agostinho realça essencialmente a feição histórica da cidade de Évora, consubstanciada nas várias edificações que se impunham no espaço urbano como reflexos eminentes do passado e, ainda, como repositórios da sua herança artística. Sublinha-se ainda a riqueza interior dos monumentos, dadas as preciosidades que aí se podiam observar, facto encerrado na expressão do cicerone, que os qualifica como “verdadeiros museus”. Detendo-se na descrição de alguns monumentos históricos e outros edifícios de valor arquitectónico ou com função cultural, o autor dá conta dos principais atractivos que à época a cidade oferecia ao visitante – o Templo Romano, a Praça do Geraldo, a Capela dos Ossos, a Sé, o Convento de S. Francisco, o Museu Arqueológico e o Palácio Barahona – e, através do comentário do cicerone acerca do Templo Romano, o autor refere, também, como mesmo no século XX persistia a memória do aspecto que esse monumento assumia antes do restauro concretizado por José Cinatti e como ainda existia quem lamentasse a remoção dos elementos que lhe atribuíam um falso cunho medieval.

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– E aquele templo? apontou Ricardo. – É a Sé, volveu o lente. O seu vulto é mais curioso do que primoroso. É pobre de lavores a sua

face, o pórtico ogival não tem cinzeladuras que valham muitos minutos de contemplação. As duas torres parecem divorciadas demais, pelo menos nos pormenores…

– Contudo, disse o bacharel, tem um conjunto venerando. – Como quási tudo – acudiu o lente – que nos legou a austera arte religiosa do século XII. […] E pouco depois continuava: – Mas os monumentos de Évora são, como poucos, verdadeiros museus. A Sé não me desmente. Aí

temos o Santo Lenho. A própria cruz, embora pouco graciosa, é um admirável museuzinho de pedrarias, oiro e esmaltes. E reparem nas preciosidades do Báculo, singular exibição dum edifício gótico, de caprichosas figuras, de esplêndidas pedras preciosas, como se um báculo podesse ser um mostruário de arte. Quanto à Custódia, o grande joalheiro que a fêz, nela deixou, certamente, uma verdadeira maravilha, apesar de que preferíamos que ostentasse só um dos estilos – ou o gótico ou o renascença. […]

Mas, assim falando, já visitaram a grandiosa Biblioteca que o notável Prelado Fr. Manuel do Cenáculo fundou com amor e que, ocupando parte do Paço dos Arcebispos, possue, alêm de muitos milhares de obras antiquíssimas, bons quadros e preciosidades da melhor arte.

Admiraram ainda as valiosas telas do Paço e, pouco depois, nos Loios, os jaspes, a tribuna do templo, os túmulos de bronze de mármore, as capelas e o côro, e ainda o claustro; o Palácio dos Condes de Olivença, a Torre de Sertório, observatório metereológico, o mais alto e encantador miradoiro de toda a cidade, e ainda o edifício da Universidade, hoje do liceu, com mais restos de rara magnificência do que de arte esbelta; enfim, o templo do Espírito Santo, rico de bons azulejos e obras de talha, e do Colégio, com as sepulturas do Arcebispo Fr. Manuel do Cenáculo e do Cardeal Rei, bem como os primores árabes do palácio Cordovil, a janela manuelina de Garcia de Rezende e até as masmorras do Paço da Inquisição.

Mas foi diante das ruínas do Templo de Diana, quási só colunas dum cunho genuíamente clássico, que parecem ter vindo da Acrópole de Atenas, e gozando o horizonte soberbo, que o lente retomou a palavra:

– Continuo impenitente, meus amigos. Prefiro o cunho medieval da Torre de Sertório – pois nada tem de romana, alêm do nome – prefiro o solar do Conde de Basto que está perto, e que é incontestavelmente típico no seu género, prefiro, enfim, o que vimos, embora em fragmentos, de puro estilo manuelino, como é o pórtico do claustro dos Loios, às colunas de mármore da Universidade, aos esplendores orientais da maior parte das maravilhas da Sé.

– E que lhe inspiram estas ruínas? volveu o bacharel. – Admiração e respeito. Mas não pretenderá decerto que me comovam como um templo gótico.

Para isso, seria preciso ter nascido há dois mil anos em Roma, lá ter vivido e sofrido, talvez ter pelejado em honra de Marte e andar à caça nos bosques sagrados, a ver se lobrigava a formidável matilha da deusa Diana…

– Isto é que é muito razoavelmente romano – dizia o lente, uma hora depois, a um quilómetro da cidade, apontando para os arcos magestosos e robustos do Aqueduto de Sertório. E não é porque êle assim saísse das mãos dos romanos. É porque o grande André Rezende, o eminente arqueólogo que o reconstruiu, penetrou bastante o espírito da genuína arte de Roma, em que, afinal, andava todo embevecido como ilustre humanista que era.

José Agostinho – À roda de Portugal. Vol. II, 1914, pp. 147-53.

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FARO

A inauguração do caminho-de-ferro e as festas da cidade de Faro

As actividades culturais do liceu de Faro

As impressões da capital algarvia nas primeiras décadas do século XX

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A inauguração do caminho-de-ferro e as festas da cidade de Faro

ALGARVE, esta pequena gleba fertil e inflorada, berço de tantos homens illustres, nucleo de tantas aspirações nobilissimas, theatro de tantos feitos heroicos, acaba de inscrever mais uma data memoravel nos fastos da sua historia.

Inaugura hoje esta formosa provincia, um melhoramento destinado a imprimir o mais benefico influxo nos seus futuros progressos.

Começada ha vinte e cinco annos, quando muitas outras provincias já se achavam dotadas de identico beneficio, a nossa linha ferrea é, no actual momento historico, uma realidade.

Só no ultimo quartel d’este grande seculo nos é dado ver, emfim, abreviada a distancia que nos separa do resto do paiz e, não raro, do resto do mundo.

É tarde? Embora. Esse poderoso elemento de riqueza e prosperidade, revigorando o depauperado organismo d’esta infeliz provincia, determinará, em breve trecho, a sua completa regeneração economica e moral.

Saudamos, pois, o inicio de tão civilisador commettimento. Apos festejados homens de lettras que, bizarramente, se dignaram de associar-se á nossa modesta

iniciativa, agradecemos penhoradissimos o seu tão brilhante como valioso concurso.

Jacinto da Cunha Parreira – “Comemorando”. A inauguração: folha única comemorativa do início da exploração do caminho-de-ferro do Algarve, 1889, p. 1.

A nossa Terra-Patria, o berço onde nascemos tem o mais terno culto em nosso coração; – muito embora distante, em sonhos sempre a vemos: – é como nossa Mãe a terra onde nascemos, este sólo bemdito, este adorado chão…

O céo da nossa terra é mais azul, mais doce, é mais quente o seu sol, mais claro o seu luar do que em pais estranho, ainda que elle fosse o mais feliz do mundo, – o nosso céo tão doce que se espelha a face azul do nosso mar.

Integrado na folha comemorativa publicada à data da inauguração do caminho-de-ferro do Algarve, a 1 de Junho de 1889, o texto de Jacinto Parreira assinala o acontecimento dando conta da morosidade que pautou o processo de construção desse melhoramento e exaltando a sua relevância para a regeneração económica e social da província algarvia. Motivando a realização de uma festa que durou três dias e que se estendeu da estação ferroviária às ruas da cidade de Faro, o evento foi, também, celebrado com a participação das filarmónicas locais, com a realização de uma quermesse e de espectáculos de fogo-de-artifício, e com iluminações.

Constituindo um testemunho das Festas da Cidade de Faro de 1908, o poema “Saudação à pátria” foi declamado por Rodrigues Davim, autor com participação frequente nas récitas locais, por ocasião da cerimónia de encerramento das festividades que teve lugar no Teatro Lethes. O evento foi também assinalado com uma alocução de Jacinto Parreira, à qual se seguiram a entrega dos prémios, o sarau literário e um espectáculo musical.

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São de róseo coral as suas madrugadas com orchestras a rir por entre os laranjaes, e têm mais harmonia as noites estrelladas com mysterios na sombra e sons de guitarradas sob os balcões em flor de noivas virginaes.

…………………………………………….

Como não hão-de, pois teus filhos amorosos coroar-te de flor’s a fronte enternecida, e encher te de harmonia os sonhos piedosos, e proclamar teu nome aos plainos luminosos numa ancia febril de te doirar a vida?!

…………………………………………….

Terra da nossa Patria, ó terra aonde um dia descançaram por fim nossos heroicos paes: Vimos aqui saudar-te em santa romaria: – Bendita seja a luz do sol que te alumia e que nunca essa luz p’ra ti se apague mais!

Rodrigues Davim – “Saudação à Pátria”. O Algarve. N.º 14, 1908, p. 2.

As actividades culturais do liceu de Faro

O seu Livro gentil onde palpita A alma triste e bela dêste Povo, É todo um mundo d’Arte, um mundo novo, Que a sua Musa, estonteada, agita.

Não ha, ali, a Ancia do que grita, Nem este desalento em que me movo: Ha uma paz divina, que lhe louvo E uma luz de crepúsculo bendita.

Ó pálido poeta! O Tempo corre, O Tempo tudo mata e envelhece… Mas teus versos são sempre um campo em flôr!

– A suprema Beleza que não morre, A Perfeição serena que não esquece, As orações mais lindas do Amôr!

José Dias Sancho – “A João de Deus, o poeta do Campo de Flores”. Na festa comemorativa

do grande lírico João de Deus, celebrada pela Academia de Faro: 8 de Março de 1920, 1920, s/p.

A data do aniversário do poeta João de Deus, nascido a 8 de Março de 1830, foi assinalada pelo Liceu de Faro, desde o final do século XIX, através da realização de diversas sessões culturais. Expressamente escrito para uma dessas solenidades, este poema integrou a récita de homenagem realizada neste Liceu a 8 de Março de 1920 e protagonizada por um conjunto de estudantes que declamaram uma série de poemas da autoria de José Dias Sancho e Bernardo de Passos, entre outros.

Decorridas entre 22 e 24 de Junho de 1908 e contando com a habitual realização de uma quermesse, as festividades desse ano incluíram no seu programa um espectáculo com fogo-de-artifício e iluminações, um torneio musical, a Batalha das Flores e foram, ainda, marcadas com a primeira Festa da Árvore realizada na cidade de Faro.

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Quarto classico de estudante. Quasi a meio uma tosca mêsa de pinho onde ceiam os três rapazes que trajam de capa e batina. Louça grosseira. Toalha de jornaes. Uma vela meio gasta e metida no gargalo de uma garrafa, sobre a mesa. A um canto uma viola e uma guitarra. À E. alta um leito sem colcha, varia roupa colocada ao acaso sobre êle e um bahú. Á D. baixa uma banca de estudo com alguns livros em cima, um môcho e uma estante completamente desarrumada.

A scêna passa-se em Faro em pleno seculo XX.

FIGURÕES

RAUL CARLOS DANIEL

Raul, Carlos e Daniel, sentados á mesa, ceando

Raul, visivelmente agastado

Sou chamado amanhã!

Daniel, a Raul, apontando a travessa

Coiso, vá esta isquinha!

Raul, enquanto tira para o prato as iscas

Estão-me a saber bem, marcham que nem galinha! depois olhando a Carlos e a Raul

Como cábula mór darei estanderete. Meu pai mo pagará com famoso cacête.

n’um gesto de desanimo. Amigos, ouçam bem: esta vida já cança. Dir-lhe-hei…

Carlos, interrompendo

Mas, Raul, a humanidade avança! Não é justo cerrar á nossa aspiração Como uma porta d’ouro a linda aprovação. Dir-lhe-has?... Acaso não confias na sciencia?

Raul, vehmente

É o mestre a tirania!

Daniel

E nós a intransigencia!

Cábulas

Esta pequena peça de teatro – A Ceia dos Cábulas –, de que se apresenta aqui um excerto, foi escrita por José Dias Sancho, aos 15 anos, para ser representada numa festa do Liceu de Faro. Trata-se de uma paródia ao famoso texto de Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais, obra que, apesar do êxito que granjeou, foi objecto de inúmeros pastiches. Nesta comédia, o autor coloca em cena três personagens, que desenvolvem um diálogo estruturalmente semelhante ao da peça de Dantas, tendo as recordações amorosas dos cardeais dado aqui lugar às recordações jocosas destes estudantes. Esta obra acompanhou uma tendência da época, que fez surgir títulos como “A ceia dos pardais”, "A ceia dos Asilados”, “O jantar dos serviçais”, "A ceia dos Generais”, "A ceia dos fadistas” e “A ceia das sogras", entre outras.

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Raul, chamando para dentro

Caloiro, traz mais vinho!

…………………………………………………..

Raul

Mas, amigos… Isso é decerto um grande engano. Não sou precisamente um caloiro chapado… Três anos já lá vão em que eu fico chumbado. Sou cábula tambem… Basta vêr o meu ár De quem só se diverte e vive sem ‘studar.

Carlos

És. És mui novo ainda. Em sendo veterâno Verás quanto nos custa a não passar um âno! Pomo-nos a olhar e ao vermo-nos tão velhos É mesmo sem querêr que dobramos os joelhos.

Raul

[…] Não fizemos ainda as nossas confidencias, E somos como irmãos… Tão amigos!

Daniel

É certo!

Carlos

Confidencias?

Raul Então… Achas-lhe desacerto? Olhemos para traz, lembremo-nos da vida… Nossas recordações são uma senda dorida.

Daniel

Confidencias d’exame!

…………………………………………………..

Carlos

Eu começo, amigos… Há quatro ânos ou cinco, ahi proximamente, Fui eu, por gentilesa a um rico parente, Com minha capa negra e grande cabeleira, Frequentar no liceu já não sei que cadeira. Era então um pequeno, insolente e ousado,

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Cabelo ao vento, capa ao hombro, moca ao lado, Tendo o instinto da frase e a intuição do gesto, Um Hilario no trajo e um Quixote no resto, Que seria talvez p’ra mostrar o valôr, Capaz de desafiar até Nosso Senhor! […] Detestava o estudo, encontrava-o maçada. O pagode era tudo; o resto quasi nada.

[…] Ia fazêr exame, não sei se lhes disse… A sála está á cunha. A multidão sorri-se…

Procedeu-se á chamada em tom soturno, feio. Francamente! Eu sentei-me um tanto com receio. Desfalecia… a voz faltava… e o coração Parecia-me um sino a badalar – tlão! tlão! – Tremia d’alto a baixo, as gambias a vergar… Em álgido suor sentia-me alagar… Zumbia-me o ouvido, e via tudo á roda…

Os professôres com a sua póse toda Sorriam-se baixinho e olhavam de revez. ‘Stenderam meia duzia e… Foi a minha vez!

(uma curta pausa) Oh! quanto eu padeci! (gritando) Malandrecos! Farçantes!

(num desfalecimento) Ai, o que eu sou agora! Ai, o que eu era dantes!

(ligeira suspensão) Nisto ouvi uma voz: – O senhor vae dizêr Sôbre grêgos qualquer coisa. – Puz-me a tremêr… É que era o professor de história e geografia Que me ia interrogar… Pouco ou nada sabia, Mas que fazêr? Calar-me era o mais acertado. Eu temia porém sahir dali chumbado E, mui timidamente, exausto, murmurei: – Sôbre grêgos, senhôr… franqueza! nada sei… Grêgo me estou eu vendo…

Houve fungos de riso. Toldou-se-me a cabeça, ia perdendo o siso. Inda tirei do bolso um bom palmo de móca…

O juri entre si diversas razões troca. Sentia-me perder… quando ouvi outra vez De historia o professor: – Vae dizer-me o que fez O monstruoso Nero infame e matricida. – – Descobriu o Brasil, digo em voz sumida.

Entreolharam se e… rompeu a gargalhada! Ah! Meus amigos, eu, não lhes digo mais nada!

José Dias Sancho – A ceia dos cábulas: paródia á ceia dos cardeais do Sr. Júlio Dantas, 1914, pp. 9 e 14-8.

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As impressões da capital algarvia nas primeiras décadas do século XX

Ao iniciar a nossa odyssea suburbana encarâmos com algumas matronas embiocadas, em luto, que vão para a egreja. É domingo. Seguimos essas mascaras – que o escriptor Julio Lourenço Pinto baniu quando governador do Algarve – e vâmos dar á Sé Episcopal, em plena praça D. Carlos, com a sua entrada em alpendre. É edifício venerando, legado pela dominação goda. Ha um profundo silencio, sob as trez naves do templo, apenas entrecortado pelo ciciar das culpas na meia-penumbra dos confessionarios. Pouco tem de notavel a egreja. Um sachristão, de sapatos cambados e batina esverdeada pelo perpassar dos annos – dadiva d’algum chantre que se foi d’esta para melhor – fixa-nos com os seus olhinhos de frascario, no ante-goso d’uma propina para matar o bicho. Dôce chimera de cicerone que a breve se dissipa com a nossa retirada.

Vâmos até ao mercado diario, que dá para a praça D. Francisco Gornes. Uma multidão fervilha, por entre as verduras, na contemplação dos primeiros fructos apetitosos que sorriem em grandes escrinios encanastrados. Regateia-se o preço dos tomates que n’este declinar d’abril surgem nos mercados do Algarve, como em refuerzo… ás cosinheiras. Ha um chilrear ensurdecedor, como se o mercado, com as suas portadas ferreas, representasse um viveiro descommunal. Pela verbosidade peculiar ao indigena poderá o leitor aquilatar do ruido que ali se produz. É tal, que estâmos em crer na sua propriedade efficaz para… curar os surdos!

Em torno do mercado, de modesto aspecto, os garotos divagam em bandos, empregando-se na eventual industria de conduzir compras. Estão munidos de cestas especiaes e, aos pares, filam-se como bul-dogs aos compradores, disputando, bastas vezes a murro, problematicas remunerações.

Algumas egrejas de bom aspecto – como a do Carmo – possue Faro, que foi outr’ora albergue de franciscanos e de capuchos e, mais modernamente, de jesuitas.

Para authenticar o Passado guerreiro ainda se ostenta, como signal de contrastaria, uns restos de fortaleza. Ali se abriga um batalhão de infanteria, sem musica. Quando as meninas sentimentaes de Faro sentem a nostalgia de Rossini ou de Beethoven, pedem emprestada a banda do regimento, que vem de Tavira, ás quintas-feiras, com bilhete d’ida e volta. E então, pelo jardim publico, á beira-rio, n’uma situação de desafogo, deslisam á hora da musica os dilettantes, com ar de cerimonial, a discutir a politica brava da terra, e os madrigaes succedem-se, sob a discreta vegetação das palmeiras ou em torno do grande lago que, sequiosamente, implora a clemencia das… chuvas!

[…] Os senhores edis de Faro professam – como os antigos sacerdotes gaulezes ou bretões – o devotado culto das arvores. D’ahi o aformoseamento de todos os recantos por onde estrellam as palmeiras, n’uma ancia de pittoresco, a relevar na floração mimosa das acacias. Junto ao edificio do lyceu – ainda em construcção á data da nossa visita – abre-se uma alameda bem ensombrada com a sua pequena collecção zoologica e os seus lagos caprichosos onde se espelha a flor dos nenuphares. Ao fundo, resalta um edificio arabigo que nos prende a attenção, nos seus recortes multicôres e ladrilhos d’esmalte, faiscando ao sol. Nos arremedos de portico triumphal, na graciosidade das suas ferragens arabescadas e até no luxo asiatico dos seus tapetes coloridos que se estendem no atrio silencioso, nós temos por momentos a illusão de que se ergue em frente de nós, ou uma mesquita ou um palacio encantado. Procurâmos descortinar se os sectarios de Allah deixaram á porta as babuchas côr de canella ou se essa mansão figura no descriptivo das Mil e uma noites. Mas logo tivemos, por

Incidindo sobre os elementos que, na primeira década do século XX e segundo a sua óptica, a cidade de Faro oferecia de “mor relevo à curiosidade do viajor”, a narrativa de João Arruda descreve de forma geral as principais edificações e espaços públicos da urbe, a partir dos quais observou os habitantes da cidade e alguns aspectos da vida local, fazendo realçar, sobretudo, a beleza dos recantos ajardinados da cidade e a singularidade do edifício arábico no qual se havia instalado o Matadouro.

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informes, a grata surpreza de que aquillo não era, nem palacio nem mesquita, mas simplesmente – o Matadouro.

[…] Já temos avistado tudo quanto Faro offerece de mór relevo á curiosidade do viajor, incluindo o Muzeu Archeologico Lapidar, onde se preservam do vandalismo preciosos restos da antiga Ossonoba, e a que está ligado o nome prestigioso do conego Botto. Vamos tambem ao mercado do peixe, onde predomina o Atum, de configuração massiça e ventruda, dorso enegrecido, cauda em meia-lua, que chega por vezes a pezar trezentos kilos e que percorre o Mediterraneo e o Atlantico, alimentando-se das algas limosas, de pequenos crustaceos e até dos proprios filhos, como um Saturno… do fundo das aguas. É sem duvida a mais lucrativa conquista d’essa heroica legião de trabalhadores, que tem no Muzeu Maritimo local a sua mais refulgente apotheose.

João Arruda – Cartas de um viajor, 1908, pp. 106-10.

[…] Faro, posta na foz do Valformoso, e com um porto bastante amplo, é bela e populosa, embora carimbada por um nítido tom de indolência, tristeza e rotina. O pôrto está entulhado de areais. O mar tem como praias, perigosos muladares, muito infectos na foz triste do rio.

A primeira impressão sentida pelos viajantes foi a dum povoado bastante espaçoso, mas que adormeceu, cheio de incúria, à beira-mar, em contemplação das ilhotas fronteiras, à espera dum estímulo, dum impulso para abrir os olhos e mover os braços. E êsse meio letargo notaram-no como nota frequente em quási tudo – nos melhores esforços da vida municipal, no convívio da melhor sociedade.

O lente pensava e sentia isto entranhadamente, como se vê por estas suas palavras:

– Se tirássemos a Faro o seu pequeno museu arqueológico, e a minúscula biblioteca, creríamos que esta linda cidade de casas de neve caiadas com amor, quer pouco à arte e às tradições. Se não tivesse uma boa escola industrial excelentemente dirigida pelo distinto escritor Lyster Franco, julgaríamos fácilmente, à primeira vista, que Faro só é notável pela célebre Casa de Saúde, pela tepidez, afinal enervante em alguns meses, do seu clima admirável, e ainda pelas belezas raras da região de que é centro, e não pelo amor do estudo, da vida esclarecidamente prática, do trabalho moderno. Enganávamo-nos bastante, bem sei. Faro tem uma alta sociedade escolhida, tem quem preze e aprecie a arte, é activa na indústria e no comércio, e dá mostras de querer progredir em tudo. E a linda Avenida marginal não é o que devia ser, mas representa bom critério, uma feliz compreensão, melhor do que a que tem tido Lisboa, do valor dos arruamentos que aproveitam os melhores horizontes duma cidade marítima.

«O algarvio é que não é de grandes ruídos no trabalho, nem na voz. Fala baixinho, depressa, com constante jovialidade, mas quási sempre no tom de quem reza, como que brincando. Dois homens do norte, conversando, fazem mais bulha do que dez algarvios falando ao mesmo tempo, e contudo o homem do Algarve é o mais vivaz e alegre dos portugueses. O algarvio, afinal, só é deveras irrequieto e estridente, quando trabalha no mar, o seu querido elemento. Os filhos do Algarve no mar são heróis que não temem confrontos com os mais rudes marinheiros, de Paço de Arcos, da Nazaré, da Póvoa, de Viana. E é bom lembrar que era de Faro, Brites de Almeida, a padeira de Aljubarrota, a qual, como sabem, se distinguiu em terra deveras firme... Mas Faro não é mar: é pôrto de mar, embora entulhado,

À semelhança da narrativa de João Arruda, também José Agostinho descreveu a cidade de Faro a partir de uma perspectiva que denota o escasso entusiasmo que a mesma oferecia ao olhar do visitante nas primeiras décadas do século XX. O autor sublinha a vertente letárgica do meio que tinha expressão em vários aspectos da vida local e da qual dissonavam apenas a excelência da Escola Industrial de Pedro Nunes, dirigida por Carlos Augusto Lyster Franco, e o carácter empreendedor da alta sociedade local.

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e, como o algarvio em terra é suave de voz e lento, as suas povoações em geral parece que mais dormem do que trabalham, embora o trabalho se faça com devoção e zêlo, como temos visto. O clima deve contribuir bastante para êste ar de doce preguiça e música discreta.

José Agostinho – À roda de Portugal. Vol. II, 1914, pp. 198-200.

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FUNCHAL

A visita régia de 1901 e o centenário da descoberta da Madeira em 1922

A influência da cidade na obra literária dos autores locais

A cidade do Funchal na perspectiva dos visitantes

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A visita régia de 1901 e o centenário da descoberta da Madeira em 1922

Tinha-se, finalmente, chegado ao sabbado, 22 de junho de 1901. O Funchal achava-se preparado para receber Suas Majestades, cujo desembarque estava annunciado para as duas horas da tarde. Era a primeira vez que se dava semilhante successo na ilha da Madeira. O enthusiasmo e a anciedade eram geraes. Não se pensava nem se fallava noutra cousa.

Raiara um dia formozissimo. O sol, resplandecendo n’um ceo azul, lavado de nuvens, dava ainda mais brilho e animação ás bellas e graciosas decorações do caes, das ruas, dos largos, das praças, dos jardins, das fachadas dos edificios publicos e particulares, produzindo, no seu conjuncto, um effeito admiravel. Revelava-se em tudo um apurado gosto artistico. Perpassava uma ligeira viração fresca que attenuava os ardores da calma dos fins de junho. Ás 11 horas da manhã já se notava desusado movimento nas ruas. Pessoas de todas as classes sociaes trajando as suas melhores galas, circulavam por toda a banda, impellidas pelo desejo de occuparem os logares onde melhor se podesse vêr passar o cortejo real.

Á entrada do caes mãos artisticas tinham levantado um enorme e elegante arco de triumpho, de buxo e flores, lendo-se no alto a seguinte incripção, em letras vermelhas – Bem vindo sejam os nossos reis. – Rematava-o uma grande corôa dourada. Em todo o comprimento do caes, nos dois lados, junto de cada balaústre de ferro, plantavam-se mastros, pintados d’azul e branco, em cujos topos tremulavam á brisa flammulas ostentando as mesmas côres. Ao meio extendia-se um tapete de fortes coloridos. As escadas do caes estavam egualmente atapetadas. Desde as 6 horas da manhã que aquelle recinto fôra vedado ao publico sob a vigilancia de guardas fiscaes. Surprehendente o aspecto que apresentava a frondosa alameda de platanos á entrada da cidade. Trophéos em todas as arvores, nos espaços d’estas – mastros com flammulas; cruzando-se d’um lado para outro – renques de balões de diversas côres e fórmas intermediados de grandes e pequenos copos de vidro, – encarnados, azues, verdes, amarellos, violaceos e pelo centro d’este phantastico e caprichoso tecto – arcos voltaicos. Á entrada da Praça da Constituição, em frente da alameda, a vista era logo attrahida para um segundo arco de triumpho com pilares, imitando marmore, finamente recortados de buxo, ostentando no fecho da abobada um escudo artisticamente pintado sob uma corôa dourada de bellissimo effeito. A Praça da Constituição imponha-se também pelo seu aspecto festivo. Nas restantes entradas levantavam-se arcos de triumpho, de bellos desenhos. De espaço a espaço – mastros com trophéos e flammulas. Na verdura das suas frondosas arvores destacavam-se milhares de copos de vidros, de variadíssimas côres, simulando fructos phantasticos. Identicas decorações no Jardim Pequeno e no

A par da comemoração do primeiro centenário da Guerra Peninsular, em Agosto de 1908 e cujos festejos se aliaram à celebração do quadricentenário da elevação do Funchal à categoria de cidade, a visita régia de D. Carlos e D. Amélia ao Funchal, em 1901, constitui um dos principais acontecimentos que tiveram lugar nessa cidade na primeira década do século XX. Iniciada a 22 de Julho de 1901 e prolongando-se durante seis dias, esta visita decorreu num ambiente de júbilo excepcional e foi aguardada na cidade com grande expectativa, como revela Ciríaco de Brito Nóbrega no seu relato exaustivo acerca do clima e dos preparativos que antecederam o desembarque da família real. Forjado por Ernesto Hintze Ribeiro e determinado por um propósito de afirmação política da monarquia, este evento teve como principal efeito a promulgação do decreto de 8 de Agosto de 1901, que viria instituir a autonomia administrativa do distrito do Funchal.

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Jardim D. Amelia. Á entrada do adro da Sé Cathedral erguia-se outro arco de triumpho, em ogiva, chamando a attenção particular de toda a gente, pelo seu aspecto harmonioso e grave, com o seu quê de mystico; muito bem lançado; construido de madeira, imitando marmore, com decorações d’ouro e buxo, primorosamente executadas. Todos os edificios publicos e muitos particulares, salientando-se entre estes ultimos, as casas de bordados Otto von Streit, Willy Schnitezer, Suissa e Wilhelm Marum, na rua da Carreira, Hermann Horwitz, na rua da Mouraria e Casa Allemã, do Chafariz, pela profusão de bandeiras, flôres e ramagens verdejantes, contribuiam tambem, em parte, para imprimir á cidade um cunho especial de festa e animação. Impressionavam a vista, muito agradavelmente, para o lado do mar, as lindas decorações de bandeiras do Pilar de Banger, da Alfandega do Funchal, da Associação Commercial, do Club Inglez e de todos os edifícios sobranceiros á praia. Os palanques, vistosamente adornados, da casa dos snrs. Blandy Brothers & C.ª e dos edificios da Associação Commercial, Obras Publicas, Hotel Central e Café Monaco, guarnecidos de senhoras, creanças e homens, que não tinham de tomar parte na comitiva real, constituiam egualmente um bellissimo espectaculo.

Uma hora da tarde. Debaixo da abobada verdejante do arco do caes abrigavam-se dos raios mordentes do sol, que campeava num ceo d’azul immaculado, como uma grande hostia ensanguentada, os convidados que tinham de figurar na recepção de Suas Majestades: as auctoridades locaes, chefes de repartições e respectivo pessoal, officiaes em commissão e reformados. No recinto do caes, a companhia da guarda fiscal, sob o commando snr. tenente José Calixto Ferreira, tendo como subalterno o snr. alferes Manuel da Cruz Vieira, formava duas alas, de irreprehensivel correcção; aspectos marcial, que em nada era desmanchado pelo sol causticante; fardamento do mais escrupuloso acceio. Ao longo da alameda da entrada da cidade, o olhar passeava encantado com o espectaculo que se lhe deparava: as forças militares occupavam, em duas alas, toda aquella alameda e extendiam-se pelo largo da Restauração, e, contornando a Praça da Constituição, prolongavam-se por esta até ao portico magestoso da Cathedral. […]

Esperava-se, a todo o instante, que surgisse no horisonte claro, além do Garajau, o primeiro navio da divisão naval de Suas Majestades. Todos os olhos voltavam-se, em crescente anciedade, para aquelle ponto. […] Por essa superfície lisa e aveludada deslisavam rapidamente muitos barcos embandeirados e floridos que iam, n’um grande anceio, ao encontro da frota real. […] Em toda a praia, em todos os pontos imminentes á bahia, espalhava-se um imenso formigueiro humano, irrequieto e impaciente, desafiando as inclemências do ceo em fogo. […]

Um rôlo de fumo pardacento, ténue ainda, manchando a pureza do azul, na direcção do Garajau, annunciava a presença do primeiro navio da divisão naval. Era o cruzador D. Carlos que conduzia os reis de Portugal, anciosamente esperados. D’ahi a pouco, desenhando-se confusamente, appareceu o cruzador S. Grabriel e apóz o D. Amelia, expellindo para o espaço luminoso as suas columnas compactas de fumo. Desde a ilha do Porto Santo, a divisão naval fôra objecto de constantes saudações que tocaram as raias do delirio. […] Identico espectaculo foi presenceado em Santa Cruz, de cujo porto sahiu também ao encontro da divisão naval, uma numerosa e lusida flotilha de barcos, embandeirados em arco, e a bordo dos quaes se erguiam centenares de manifestantes, n’um frémito de entusiasmo, para saudar a passagem dos Monarchas. […] Para se poder fazer uma idêa da imponencia d’este espectaculo, bastará talvez dizer que estas manifestações expontaneas, quentes, enthusiasticas, em que vibrava realmente toda a alma popular, repetiam-se em todos os pontos da costa de leste. De sorte que, quando os Regios Viajantes avistaram o Funchal, já traziam a grata impressão que o povo madeirense comprehendia e apreciava, talvez como nenhum outro, a honra insigne que os seus Monarchas se tinham dignado fazer-lhe.

Ciríaco de Brito Nóbrega – A visita de Suas Majestades os Reis de Portugal ao arquipélago madeirense: narração das festas, 1901, pp. 9-17.

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Ilha, ha quinhentos annos E ao sol que flammejava assim como uma pyra, Das amuras da ré amainados os pannos, Fundeou o barinél nas aguas de safira. Emergias viçosa: a nuvem cambiante, Cingindo-te alcantís, cimos de rocha, glábros, Aflorava o «pinhal» a sustentar ovante, E para glória tua, os brônzeos candelábros. «Robles» de tronco nu, viridente a folhagem, Dragoeiros na chã, e tis, e azevinhos, Giestaes em que ardia a floração: paisagem Onde havia o choral das fontes e dos ninhos… Madresilva em festão, urze do alto, aos mólhos, – Tudo te dava enfim um encanto vivaz Para teu Pae Oceano, ó Ilha, e para os olhos De Zarco e Tristam Vaz! Foi ha quinhentos annos… E hoje ainda tens, quando te sinto a ti Para além dos parcéis da Mágoa e Desenganos, Esse encanto suave, ó terra onde eu nasci!... Meu coração, missal de fervorosas préces, Em sua voz te réza, humilde, o Parabém; – Perfumado rosal, ilha, nunca envelheces…

És com a minha mãe.

Funchal.

Jaime Câmara – V Centenário do descobrimento da Madeira: publicação comemorativa, 1922, p. 3.

A influência da cidade na obra literária dos autores locais

O aparecimento, em volume, da «Guiomar Teixeira», despertou no espírito de amigos do autor o desejo de dar vida à peça sôbre o palco do Teatro Funchalense, a-pesar das dificuldades que o caso apresentava.

Constituíu-se, em 1913, um grupo de distintos amadores para representá-la, formando-se, a par, um outro para financiar-lhe a encenação.

À frente do grupo financeiro, achava-se o falecido banqueiro Henrique Vieira de Castro, espírito generoso e empreendedor em que a prosa dos números não empanara o senso artistico com que a natureza o dotara. Secundavam-no outros amigos comuns, entre êles, o presidente da Associação

Extraído do jornal comemorativo do quinto centenário da descoberta da ilha da Madeira, por João Gonçalves Zarco, este poema da autoria do poeta funchalense Jaime Sanches Câmara constitui um testemunho da celebração dessa comemoração centenária na cidade do Funchal, acontecimento de que este autor foi um dos principais promotores. Motivando diversas festividades na cidade, iniciadas a 29 de Dezembro de 1922 e prolongadas até 4 de Janeiro de 1923, o programa do centenário incluiu, entre outros eventos, um cortejo cívico e o lançamento da primeira pedra para o monumento a João Gonçalves Zarco. Realizou-se, ainda, uma feira e uma Exposição de Arte, assim como vários concertos e uma récita de gala, decorrida no Teatro Manuel de Arriaga, no primeiro dia das comemorações, e na qual foi representado o drama histórico Guiomar Teixeira, peça que voltaria a subir a cena no último dia das festividades.

Adaptando a sua novela madeirense publicada, em 1909, sob o título de A filha de Tristão das Damas, João dos Reis Gomes publicou, em 1912, a peça Guiomar Teixeira, a qual viria a estrear-se em placo na cidade do Funchal em 1913. Apresentada de um modo inovador que aliava à encenação teatral uma projecção cinematográfica da batalha de Safi, esta peça histórica foi novamente representada no Funchal em 1914 e em 1922, por ocasião do centenário da descoberta da Madeira.

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Comercial do Funchal, 1.º tenente da armada Luís Fialho de Alvélos, já falecido, o D r. José de Carvalho Mégre, juiz de Santa Cruz e que morreu juiz da Relação de Lisboa, e Francisco Camilo Meira, actual director do Banco de Portugal.

A convite dessa comissão, gentilmente se encarregou o Professor Cândido Pereira dos desenhos do guarda-roupa e do esbôço dos cenários, pondo-se êste artista, desde logo e para o efeito, em relações com o autor, seu admirador e amigo. Os trajos executaram-se em Lisboa e no Funchal, vindo, da Casa Cruz, as armaduras, colares, cintos, cotas de malha e espadas, e confeccionando-se em face de desenhos, com todo o rigor histórico, os vários pertences da peça, assim como as couraças e armamento moiro.

As decorações, pintadas pelos cenógrafos Gayo y Ripoli, de Madrid, – depois de apresentadas, por êstes, as respectivas maquetas aguareladas a côres – chegaram à Madeira acompanhadas das indicações necessárias à produção de todos os efeitos luminosos para que haviam sido preparadas. É de toda a justiça consignar-se a perfeição técnica dos diferentes cenários e a clara compreensão manifestada por aquêles artistas das anotações e esboços que lhes foram enviados.

A mesma comissão, por intermédio de Cândido Pereira e indicações de Nogueira Ferrão, contratou um «operador» de Lisboa para a cinegrafia do filme com que abre o 2.º quadro do 5.º acto da peça – último lance da batalha que terminou o cêrco de Safi –, inovação do autor no que respeita à conjugação do cinema com a representação teatral, ligando-se e continuando-se a acção através dos dois processos artísticos.

As cenas do filme – entre piões e cavaleiros cristãos e sarracenos, – ensaiadas pelo autor sôbre o próprio local das «tomadas de vistas», realisaram-se num só dia, sendo a película revelada em Lisboa, e tonalisada, aí, com as adequadas viragens. O terreno escolhido, no Caniço (ilha da Madeira), foi convenientemente apropriado, com palmeiras, aloés, areia, etc., aos aspectos de Safi, tomando parte na acção cinematográfica, entre outros, alguns dos amadores que se encarregavam das figuras principais da «Guiomar».

Hoje, com os progressos do cinema, incluindo a reprodução dos sons, a combinação da película com a cena far-se-ia, ainda, em superiores condições, levando o espectador ao máximo da ilusão artística.

Na altura própria do texto, vão indicados os mais importantes pormenores sôbre a adaptação do cenário ao filme, e apontadas as respectivas mutações, lògicamente executadas, sem o recurso do artifício e truques inda adoptados no palco sempre que tem de fazer-se qualquer mutação à vista.

Será talvez ocioso dizer-se que a «cabina» – empregando-se uma lente de grande ângulo, afim de poupar-se o espaço – se achava ao fundo do palco, fazendo-se a projecção por «transparência», projecção iniciada, para maior ilusão, antes do levantar do pano.

Abre, pois, o quadro, em pleno episódio da batalha travada em Safi entre moiros e cristãos, – episódio passado ao longe e iluminado pelo sol poente, com toda a perspectiva e movimento cinegráficos, – seguido e comentado pelos soldados que ficam na meia obscuridade da abóbada do primeiro plano do cenário. O alvo da projecção nunca é apercebido do espectador, como se depreende das rubricas que, ao diante, vão inscritas no texto.

A «Guiomar Teixeira» foi representada por amadores, em 1913, no Teatro Municipal do Funchal, dando uma série de três récitas; levada à cena por três vezes, em 1914, pela Companhia Vitaliani-Duse, na versão italiana do Engenheiro Virgílio Biondi, e, a despeito da sua grande movimentação, ensaiada pelo autor em oito dias, sendo a figuração masculina constituída por amadores madeirenses; e foi representada, novamente, pelo primitivo grupo de amadores, com algumas substituições, apenas, em Dezembro de 1922, nas festas da Comemoração do V Centenário da Descoberta da Madeira. Nestas duas récitas, foi de cincoenta e três o número de pessôas, entre figurantes e actores, que tomaram parte na representação da peça.

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Em consequência de todos estes espectáculos que exigiam aparelhos de resistência electrica e numerosas gambiarras para os seus múltiplos efeitos luminosos, ficou o Teatro Funchalense dotado, no palco, com o triplo da luz de que dispunha anteriormente, para o que – no empenho de coadjuvarem a melhor montagem da peça – muito contribuiu a bôa vontade das edilidades vigentes em 1913 e em 1922, o que é de justiça consignar-se aqui.

João Reis Gomes – Guiomar Teixeira, 1932, pp. 17-21.

Funchal do alto mar e de altos montes Cidade-Azul que evocas a Suiça, E onde á beira dos lagos e das fontes Ha lirios cor de neve e dizer missa.

Cidade aonde ha sempre sol doirado, Mas sempre triste de me ver chorar, E onde passeiam, a cumprir o fado, Tuberculosos pela beira do mar.

A tua belleza é toda meiga e suave – Um ar de pomba, um ar temente a Deus – O que me faz suppôr-te uma alma de ave, Sem pecados mortaes, irmãos dos meus.

Ao meu amor mereceste mil desvellos, Ó, – do Bardo Escossez, – Dama do Lago! Poiso, d’etherea paz, com tres Castellos: Tres ironias junto de um affago.

Pico das Frias leval-o á cabeça, San’Thiago e Ilheu formam-te os seios: Mas o teu corpo é como uma promessa, Canhões em ti só p’ra soltar enleios.

Bocas de fogo são: as tuas fontes, As tuas noites d’astros sobre o mar, As tuas moças de morenas fontes, O teu amante Oceano e o teu luar;

Os teus cabellos – pinheiraes sombrios, – Os teus dentes, – as casas côr de neve – E a tua alma, – os campanários pios – Tua agua, – a tinta com que Deus escreve. –

Molha-te o mar a fimbria da tunica; C’roam-te a o alto os pinheiraes da serra; Cidade! és grande, e para mim, a unica Que eu posso amar e querer em toda a Terra!

Da autoria de João Gouveia – poeta e dramaturgo nascido na cidade do Funchal em 1880 – e marcado por um pendor saudosista a partir do qual o autor capta uma série de características peculiares à sua terra natal que de imediato reportam o leitor para esse território insular, este poema foi publicado sob o título de “Minha cidade”, no volume poético Atlante: tragédia de alma, datado de 1903.

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Eis o que o sol do alto mar avista, Sem ver, tuas miserias e vaidades, Ó mais bella de todas as cidades! Perto do coração, longe da vista.

João Gouveia – Atlante: tragédia de alma, 1903, pp. 35-6.

A cidade do Funchal na perspectiva dos visitantes

Quando a formosa ilha da Madeira, levantando-se da espuma do mar, como a mithologica Citherea, crescia para nós a receber-nos, abrindo o seio benefico e maternal aos desconfortados que n’ella só depositavam as suas derradeiras esperanças, sentiamos todos penetrar-nos o coração um d’esses suaves prazeres, como o que nos produz, no meio de uma turba de estranhos, o encontro de um rosto e de um sorriso de amigo.

Formava um consolador contraste com a tremenda severidade do mar a amena perspectiva da ilha!

Horas depois de a avistar, a marcha rapida do vapor fez-nos dobrar o cabo de S. Lourenço; transportando o amplo portico que elle forma com o grupo das penhascosas Desertas, sentira-

se uma subita mudança de clima, como se, de repente, se tivessem vencido muitos graus de latitude. Afagou-nos as faces a briza tepida e perfumada da ilha, aspirámos com prazer o halito acalentador

e salutifero d’esta fada maritima; achavamo-nos sob o seu abençoado encantamento, reconheciamos emfim a Madeira!

A costa do sul ia passando em revista, com as suas rochas escarpadas, as suas ribeiras profundas, a sua vegetação vigorosa, as suas formidaveis quebradas e os altos picos onde poisam as nuvens, os valles fertilissimos e as povoações graciosas. Momentos depois, vencida a ponta do Garajao, as casas e as quintas do Funchal illuminadas por um esplendido sol de outomno, que doirava as extensas plantações de canna, saudaram-nos por sua vez.

A magia do espectaculo emmudeceu-nos. De um lado o mar, do outro as serras e, entre estas duas grandezas magestosas, a cidade sorrindo, como a creança adormecida entre os paes, que a defendem e acalentam. Dentro em pouco poisavamos pé em terra.

Não é grata a impressão recebida ao desembarcar. Costumados aos extensos e alvejantes areaes das nossas praias, tão ricas de formosissimas conchas e em cujas penhas se formam aquarios naturaes, onde aos raios do sol as actinias matizadas expandem os seus braços gelatinosos, as algas crescem em delicadissimas arborisações; costumados ás praias risonhas, que attraem as mulheres e as creanças com o animado e variadissimo espectaculo que lhes offerecem e os abundantes thesouros de pedrarias que escondem nas suas moveis areias, affecta-nos tristemente o aspecto d’esta praia negra, formada de calhaus roliços, côr de lousa, sem mistura de pedras multicôres, sem a concha do mollusco a adornal-a, sem uma d’essas pequenas maravilhas naturaes, que são o principal attractivo da beira-mar.

Esta pedra escura parece conservar ainda evidentes os vestigios do cataclismo vulcanico que a arremessou á superficie das aguas. Dir-se-ia que ainda está defumada e quente do fogo do immenso fôrno em que foi fundida. Ao seu aspecto comprime-se o coração do viajante.

Publicada pela primeira vez na revista lisboeta Serões, em 1906, e datada de Março de 1870, esta carta do romancista portuense Júlio Dinis transmite as suas impressões acerca da cidade do Funchal, onde o autor residiu por alguns meses durante as deslocações que, devido à doença pulmonar de que padecia e que o viria a vitimizar, o levaram por diversas ocasiões ao arquipélago da Madeira no período entre 1869 e 1871.

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Entramos na cidade. Ha um não sei que melancolico no aspecto d’ella. Por isso mesmo que é a generosa consoladora de tantos afflictos, por isso rnesmo que acolhe no seio maternal os que soffrem e que de toda a parte do mundo correm a abrigar-se no seu calor salutar, por isso mesmo parece annuviar-lhe os sorrisos aquelle ar de piedade e de compaixão, que é, por assim dizer, a alegria da caridade.

Não nos sentimos impellidos a saudal-a com um cantico festivo, com uma acclamação de prazer, mas apenas com uma serena commoção egual áquella com que se beija a mão generosa que se estende a soccorrer-nos ou a enxugar-nos as lagrimas.

Ó Funchal! que tristes dramas se teem passado á luz do teu sol benefico! que lutuosos desenlaces de tantas historias de paixões! que de lagrimas ardentes cahidas no teu solo sequioso que se apressa a escondel-as discreto! e á sombra das tuas arvores, quantas frontes, escaldando de febre, vergaram sob o peso de cruel melancolia! Illusões desvanecidas, esperanças desfolhadas, sonhos de amor, de gloria, de felicidade, dos quaes se desperta á beira do tumulo, tudo tens presenciado, ó humanitaria cidade, e debaixo dos cedros e cyprestes dos teus cemiterios dormem o ultimo somno muitos martyres, sem que as lagrimas dos que os amaram lhes caiam na campa como tributo!

D’ahi vem a sympathia e a tristeza que inspiras. As tuas virtudes, como irmã de caridade que consagra os dias ao cumprimento da sua missão christianissima, brilham entre scenas e espectaculos de desolação e de dôr.

Este caracter da cidade avulta aos primeiros passos dados no interior d’ella. O viajante cruza-se a cada momento com certas figuras pallidas, emaciadas, pensativas, marchando

lentamente, ou transportadas em rêdes, encontra-as nos assentos dos passeios, em ociosa meditação, ou fitando melancolicamente as ondas que se succedem na praia. São inglezes cadavericos, allemães diafanos, portuguezes descarnados, brazileiros, norte-americanos, russos, são velhos, adultos, creanças, vaporosas bellezas femininas de todas as partes do mundo, todos a convencer-nos que entramos na citá dolente, mas no portico d’esta não se vê gravado o distico desesperador que o poeta inscreveu no da região dos tormentos eternos. Pelo contrario, á entrada, aqui, revertem-se des esperança os proprios condemnados.

Júlio Dinis – “Impressões da Madeira – carta inédita de Júlio Dinis”. Serões: revista mensal ilustrada. N.º 14, 1906, pp. 99-102.

Uma primeira e desagradavel impressão que nos espera ao pôr pé em terra na formosa capital da Madeira, atravessando o seu caes desusadamente movimentado n’este dia domingueiro, é a profusão de taboletas e letreiros em inglez que a cada canto, em cada loja, em cada café, procuram atrahir a atenção dos touristes nossos amigos e aliados. Estamos, no fim de contas, em terra portuguesa, um delicioso prolongamento florido e perfumado, n’esta época de primavera, do continente que deixamos para traz, e não se compreende nem a insistencia d’esses letreiros em lingua estranha, nem a pedinchice teimosa de um penny que as creanças lamuriam correndo atraz do automovel que nos vae levar ao monte, depois de sobre ele terem lançado pequeninos ramalhetes de flôres. Já esse mesmo peditorio o gritaram para bordo, logo que o navio ancorou na desabrigada bahia, os rapazes semi-nus que em barcos

Evidenciando a forte marca que a influência inglesa e a exploração turística exerciam sobre a imagem da cidade do Funchal, a narrativa de viagem de Oldemiro César constitui um relato panorâmico através do qual o autor realça a magnificência paisagística do Funchal, da mesma forma que descreve alguns aspectos de carácter socioeconómico que singularizavam a vida local e que o próprio observou, desde o seu desembarque no cais da cidade até à visita ao interior da mesma, durante o domingo de 25 de Maio de 1924.

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rodearam o paquete, aprestando-se, habeis nadadores, para n’um mergulho de peixe apanharem a preciosa moeda lançada de bordo.

No largo, onde se desemboca vindo do caes, ha o indispensavel café com mesas á porta, ocupadas por consumidores ociosos, e uma fila de autos á espera da exploração do viajante. Vale-nos na conjuntura dificil um simpatico rapaz, Gomes de Sousa, jornalista como os que o sabem ser, o qual, feitas as necessarias apresentações, será o nosso amavel cicerone na rapida passagem pela ilha onde, de regresso, ainda havemos de tocar, infelizmente tambem com pouca demora.

E o carro lá galga a encosta da montanha, levando os jornalistas e alguns membros da missão, dos quaes não são os menos bem humorados os nossos ilustres camaradas Trindade Coelho e Joaquim Manso, este ultimo ancioso por um almocinho em terra, sem as ameaças do enjôo e os desequilibrios do balanço de bordo.

Então é a maravilha do desenrolar de um scenario esplendoroso, montanha acima, a cada volta da torcicolada estrada, magnificamente calçada de seixos, suave ao rodar do auto, descobrindo de repente a bahia inundada de sol, onde repousam, além do Lima, dois grandes paquetes entre a profusão de lanchas e barcaças – o General Saint-Martin e o Sierra Nevada. É positivamente uma vista de aeroplano, que logo se some na próxima curva do caminho, o auto galgando a encosta guiado por mão segura e habil, como é forçoso que o sejam as de todos os chauffeurs d’aqui.

Soberbo e espantoso panorama! Flôres por toda a parle, um jardim perfumado que enebria e entontece, e por todos os lados,

trepando comnosco por uma ilusão dos nossos olhos, as casinhas brancas, com os seus telhados vermelhos, de um vermelho berrante muito vivo, dando tudo aquilo, na feliz expressão de Antero de Figueiredo, uma elevada noção da propriedade capaz de desafiar as maiores audacias de um bolchevismo triunfante.

Já por nós passaram, vagarosos e pachorrentos, alguns carros de verga, seu tecto de oleado, suas cortinas e almofadas de pitoresca chita de ramagens em côres vivas, sem rodas, como trenós, puxados por bois, levando o carreiro um longo penacho de crina para sacudir, quando em vez, as moscas que teimam em torturar os mansos animaes queridos a Horacio e ao divino Virgilio.

Vão a caminho de Nossa Senhora do Monte, uma egreja encarrapitada no cimo de uma larga escadaria ingreme, onde hoje é dia de festa e romaria, com foguetes estralejando nos ares, arcos de buxo e flôres, rosmaninho espalhado pelo chão, e musica n’um coreto, e vendedeiras de doce acocoradas á beira dos seus cestos, profusão de bandeiras, repiques de sinos e uma procissão que vai sahir do templo onde dorme o ultimo sono o infeliz imperador Carlos de Austria, morto no exilio para não desmentir o fatidico destino dos Habsburgo. É ali, sob um altar, perto da capela-mór, que o exilado repousa. Prestamos-lhe a nossa homenagem e seguimos o nosso caminho. Impunha-se a material mas inadiavel e inflexivel necessidade de almoçar. E do que foi esse almoço n’um terraço do Hotel do Monte, optimamente servido, com a prova do vinho famoso da ilha á sobremesa, durante o qual a conversa esfusiou alegre e variada, espirituosa e feliz, só a penna de um Ramalho, que consagrou algumas paginas á arte de bem jantar, vo-lo poderia dizer, oh afastados leitores de Lisboa de estomago estragado pelas ementas mentirosamente francesas dos restaurantes da capital!

Foi uma boa hora bem passada, a que devia seguir-se curta digressão pelos sumptuosos jardins do hotel, na admiração do seu lago e das suas cascatas artificiaes, até ao embarque da caravana em duas canastras de verga para a descida á cidade, aguentados d’esta vez os comodos trenós a pulso de homem, no deslize rapido pela encosta de seixos brunidos e luzidios do sêbo com que untam a base metalica dos singulares transportes.

Vinho, a meio da jornada, para os homens das cordas, praxe obrigatoria a que todos nos subordinamos de boa vontade…

Trindade Coelho, em face d’aquela atrelagem humnana, declara não acreditar na liberdade dos povos, na renovação social. E pergunta aos «carreiros» se sabem ler e escrever e se teem recebido

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noticias da Russia… É que aquela gente mercadeja o seu oficio sob uma tirania despotica, a ditadura da sua propria

associação, a Associação de Classe dos Carreiros do Monte. É um dos da gerencia – o ditador de serviço em cada semana – que determina a canastra destinada a servir de momento o viajante, e o preço da descida, segundo um especial regulamento em vigor, e as multas a aplicar a quem não cumpre bem o seu dever ou abusa da ingenua ignorancia do forasteiro, multas quasi sempre constituidas pela suspensão do trabalho durante maior ou menor prazo. É certo, porém, que ao camarada suspenso acodem os outros, ao fim da semana, com um quinhão da féria recebida, compensando assim a parte mais grave do castigo imposto. E assim tudo desliza pelo melhor na peor das ladeiras possiveis e imaginaveis para quem tem de a subir com os trenós á cabeça…

Porque será que a delicada intenção dos postaes ilustrados, de tão louvavel intuito de propaganda, ainda não foi em Portugal devidamente compreendida e executada? Os que aqui se vendem, com vistas da ilha, são todos mal impressos e de um famoso colorido de um mau gosto a toda a prova. Mas que remedio senão comprá-los, e enviar n’eles saudades á família, se os não ha melhores, como em toda a parte da nossa linda terra?

E assim, cumprido esse dever sagrado, ha ainda uma visita a fazer á Sé Catedral, uma cerveja a tomar no melhor café da terra, e um salto a dar ao jardim publico, onde já o Mestre Teixeira Lopes se encontra a analisar o modesto monumento comemorando a viagem aerea Lisboa-Madeira, levada a cabo em 22 de março de 1921 por Coutinho e Cabral, e mandado erigir pelo sr. Vieira de Castro, pessoa de bom gosto e de melhores capitaes.

É obra de Francisco Franco, discipulo de Simões de Almeida, aquela cabeça de aviador n’um pedestal de marmore, e embora bem lançada e de boa execução, denunciando influencias de Rodin, não se pode dizer que seja coisa inteiramente feliz.

Uma volta ainda de automovel ao Pico de Barcelos, acedendo a um cativante convite do sr. dr. Elmano Vieira, galgando montes, zig-zagueando por estrada perigosa, aqui e além debruçada sobre abismos pitorescos, deslumbrando os olhos nos mais imprevistos estranhos trechos de paisagem, por entre a verdura das encostas plantadas de vinha e da preciosa cana de açúcar de que se destila o alcool, e eis nos de novo no caes, d’ahi a pouco legados para bordo nas lanchas a gasolina, carregados de flôres, nostalgicos já das belezas da ilha encantada que para o fim nos reserva ainda maiores surpresas…

Oldemiro César – Terras de maravilha: os Açores e a Madeira: notas de uma viagem de estudo, 1924, pp. 43-9.

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GUARDA

As celebrações de âmbito local nos séculos XIX e XX

A produção lírica e memorialística dos autores guardenses

A cidade da Guarda observada por Unamuno

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As celebrações de âmbito local nos séculos XIX e XX

I

Na mais alta cidade, onde os destinos vieram trazer-me, prezo ao sofrimento, ergo meus olhos a ideais divinos, ergo bem alto, sempre, o pensamento.

Ergo-os… Eu tinha andado, vida fóra, como andam tantos, sem entrar na Vida: – abismo onde a alma se debruça e chora, convulsa, alucinada, dolorida.

Anos e anos… – desde a infancia, quando tudo sorri de encantamento infindo, e os astros descem sobre nós cantando, e as aves cantam pelo ceu subindo.

Desde essa infancia envolta em alvoradas, em purpuras, arminhos, pedrarias… Malmequeres a rir pelas estradas! Descantes nos serões, nas romarias!

Depois, a mocidade em festa plena, – ardentias de amor cobrindo os mares! Ó lindos sonhos, brancos, de açucena, na alma dos noivos, diante dos altares!

Tudo fugira ante os meus olhos! Tudo ficara silencioso, sob a treva: Aves, estrelas, alvoradas… – Mudo borborinho que o vento arrasta e leva!

………………………………………

III

Porque não ha de a vida ser aquela que o meu ideal me diz que ser podia: – como que feita do sorrir da estrela; – como que feita do fulgor do dia?

Da autoria de José Augusto de Castro, o poema Exaltação foi expressamente escrito para a récita de homenagem realizada por ocasião do 50º aniversário da Associação dos Bombeiros Voluntário da Guarda. Fundada em 1876, esta corporação vinha ao tempo a desempenhar uma intervenção de relevo no âmbito local, não somente em função do seu carácter humanitário, destacado no poema de José Augusto de Castro, como também no que respeita à vida cultural da cidade da Guarda. Preconizando, desde 1883, a criação de uma nova sala que substituísse o velho teatro local e oferecesse melhores condições técnicas, a esta associação ficou a dever-se a fundação do Teatro dos Bombeiros Voluntários, inaugurado a 14 de Agosto de 1886, e que viria a constituir a principal sala da cidade. Aí foi realizada uma série de espectáculos que incluíam desde as peças dos autores locais às representações itinerantes levadas à cidade pelas companhias dos teatros D. Maria II e D. Amélia, entre outras.

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Vida de paz, de amor, encantamento, sem ambições e invejas, sem maldade... Todos vivendo pelo sentimento da abnegação e da fraternidade.

Todos como esses que aí vão, em bando, – bando sublime, d’alma ao ceu erguida – hinos de esforço pelo bem cantando, prontos ao bem, até perdendo a vida!

O bando dos Bombeiros Voluntarios, – corporação de todas a mais nobre... Que nos incendios tem os seus Calvarios, e que o seu lar de luto ás vezes cobre!

Bombeiros Voluntarios, – a mais alta dedicação, a mais divina e santa! A quem meu verso, embora humilde, exalta! A quem meu verso, embora humilde, canta!

A quem, como eu, exaltam muitas almas de irmãos, amigos, filhos, pais, esposas: Todos erguendo corações e palmas, cheias de amor, benditas, vitoriosas!

IV

Cincoenta anos de luta são passados, sempre em frente de tragicos abismos! Mas vendo a gloria dos ideais sagrados no sentimento excelso dos heroismos.

E prosseguem na acção, que os não desvairam os louros que já teem sobre a fronte... Pois sempre os altos sentimentos pairam num horisonte alem doutro horisonte.

Cincoenta anos passaram... Quantos ainda hão de passar, em triunfo, em ameaça, – deixando idilios d’alvorada linda onde seria noite de desgraça?

Que os sinos toquem a rebate… logo ele, o Bombeiro, ao som primeiro ouvido, assoma, avança para a luta ao fogo, alucinado, heroico, destemido!

Sobe a Magirus, e desaparece entre as ondas de fumo ao vento erguidas! Esquece os filhos, lar, esposa, esquece tudo para salvar estranhas vidas!

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Heroico, dentre as chamas, – a envolve-lo, a brilharem, sinistras, nos espaços, – lá vem, de mãos queimadas e o cabelo, com uma creança, salva, nos seus braços!

José Augusto de Castro – Exaltação: homenagem aos Bombeiros

Voluntários da Guarda no dia do seu 50.º aniversário, 1926, pp. 1-5.

Deixando os meus companheiros do comboio real prosseguir a sua viagem até à fronteira, empreguei o tempo que me restava a visitar a interessante cidade da Guarda.

O sr. Tomás Ribeiro, ministro do Reino, que o mundo das letras tem o direito de reivindicar, porque é um escritor e um poeta de grande talento, teve a gentileza de me confiar aos cuidados amáveis do governador civil da Guarda, sr. José Joaquim de Sousa Cavalheiro.

Este distinto funcionário, sendo obrigado pelos deveres do seu cargo a acompanhar suas majestades, procurou na estação alguém que pudesse falar um pouco de francês, e chamou uma pessoa que se pôs à minha disposição, com a delicadeza habitual dos portugueses.

Era o sr. João Manuel Martins Manso, professor de Legislação no Liceu da Guarda.

A cidade da Guarda está admiràvelmente situada no cimo de um monte. Uma magnífica estrada contorna esse monte. Mas a carruagem era muitas vezes obrigada a ir a passo, de tal forma o declive é acentuado.

O meu cicerone amador compreendia bastante bem francês, mas falava pior. Assim os esforços inauditos para se fazer compreender de mim e manter a conversação.

Enfim chegámos ao cimo do monte, onde um arco de triunfo com plantas apresentou-se em primeiro lugar aos nossos olhos. Era ali que a Câmara Municipal devia esperar a chegada dos soberanos. A estrada encontrava-se juncada de flores e de verdura.

O sr. Martins Manso conduziu-me em primeiro lugar ao hotel. Não havia quarto disponível. O hotel na Guarda não era mau e a comida suportável.

A cidade é aparentemente muito limpa. As ruas principais estavam todas embandeiradas e no percurso erguiam-se quatro arcos de triunfo. O primeiro, na entrada da cidade, ornamentada com plantas, os outros mandados fazer pela Associação Comercial, e pela Câmara Municipal, e a Junta Geral (que representa o distrito).

Uma destas portas triunfais era sobrepujada por uma estátua representando a Indústria. A Praça Camões é um magnífico terreiro bastante espaçoso na qual está situada a Sé. Fomos visitá-

la. A Sé foi acabada no reinado de D. João III. No limiar da Sé encontrámos o sr. Lúcio Augusto de

Constituindo um dos principais acontecimentos que marcaram o início do processo de modernização da cidade da Guarda no final de Oitocentos, a construção da linha férrea da Beira Alta vinha sendo preconizada pelo poder local desde meados do século XIX, em virtude da relevância atribuída a esse melhoramento para a evolução da indústria e do comércio beirões. Publicada pela primeira vez em Paris, no ano de 1883, a narrativa de viagem de B. Wolowski reporta à inauguração da linha de caminho-de-ferro da Beira Alta, solenizada com a presença de D. Luís e de D. Maria Pia que se encontravam entre os passageiros do comboio que fez a viagem inaugural através da região. Transmitindo uma visão geral desta cidade, agora observada num dia de excepção, para além do destaque conferido ao ambiente de regozijo e a alguns aspectos das festividades com as quais se assinalou, a 4 de Agosto de 1882, a inauguração da linha férrea e a recepção da família real, o autor faz, também, uma breve descrição da urbe, focando algumas das suas principais edificações, e destaca o avultado número de associações filarmónicas existentes no distrito.

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Andrade, secretário da administração, que se juntou a nós para fazer-nos as honras da cidade. A Sé da Guarda está dividida em três naves. O altar-mor encontra-se guarnecido com imagens

douradas, entre outras, a de Jesus Cristo conduzindo a cruz. O cadeiral dos cónegos é de madeira preta com dourados.

Uma escada ornada de azulejos conduz ao coro, cujas cadeiras são de madeira trabalhada. As pare-des do coro estão cobertas duma espessa cor verde, sinal evidente de antiguidade.

O exterior da igreja é velho. No cimo, pequenas torres de pedra de estilo piramidal. De longe estas numerosas pequenas torres dão à igreja a ilusão do estilo gótico. Quando o tempo está claro, a vista estende-se até Espanha, sobretudo colocando-se do lado da Praça Camões.

A porta principal tem duas colunas laterais, de um estilo muito antigo, esculpidas na pedra e de um efeito muito gracioso. Está colocada entre duas torres abertas com janelas góticas,

A porta lateral, do mesmo estilo, não tem colunas. Daas pequenas torres mais estreitas que as ou-tras que se encontram na porta principal flanqueiam-na dos dois lados.

O castelo da cidade é uma torre próximo da Sé, num montículo sem vegetação. A Torre dos Ferreiros, um observatório com duas portas que se abrem para as ruas, contava-se

entre as curiosidades da cidade. A igreja da Misericórdia, com duas torres, não tem nada de especial. Ao lado encontra-se o hospital

civil, fundado pela cidade, no qual existem 60 camas. O número de doentes atinge por ano cerca de 4000. Conserva-se muito limpo.

O palácio do bispo, construído com um só andar e com janelas antigas, é contíguo ao seminário. A cidade termina no Campo de S. Francisco com um quartel de infantaria.

O palácio do governo civil não possui nada de especial. As salas não são grandes, de modo que a merenda oferecida a suas Majestades e aos convidados não pôde efectuar-se na mesma sala.

O salão, onde estava colocada a mesa real, só podia comportar 24 pessoas. A outra sala de jantar tinha 36 talheres. Não tiveram lugar todos os convidados, e muitos, como eu, deixaram a Guarda sem jantar.

As ruas em que devia passar o cortejo estavam guarnecidas com plantas e ornamentadas com lampiões e flores nos mastros.

Depois do nosso passeio através da cidade, o meu amável cicerone conduziu-me à Praça Camões a casa do sr. Manuel Lopes de Sousa, habitada pela Senhora D. Teresa Augusta Gomes, onde pude ver da janela a chegada do cortejo real e o esplêndido espectáculo que apresentava a animação na praça. Havia na residência da minha hospedeira uma numerosa sociedade: muitas senhoras, das quais nenhuma sabia francês. Falámos por gestos. Estas amáveis pessoas, tendo sabido que eu era um jornalista estrangeiro, não quiseram de maneira alguma permitir que ficasse por detrás delas. Como insistisse, ameaçaram-me de se ir embora e fui obrigado a ceder e conservar o melhor lugar da janela.

À 1h 40m da tarde os sinos assinalaram a chegada do rei. A multidão fazia alas e dava vivas. Nunca vi em parte alguma maior entusiasmo.

Fiquei verdadeiramente bastante surpreendido de encontrar na Guarda muitas bandas de música das aldeias do distrito. São associações que se formam, como em França, para cultivar a arte musical.

Assim em Teixoso, onde há cerca de 3.000 habitantes e 750 casas, os conterrâneos fundaram uma orquestra muito bem constituída, cujos membros usam um uniforme pitoresco, casaco preto com o peito azul e enfeites amarelos, barrete azul. Uma verdadeira banda militar.

A assinalar ainda a banda de Manteigas, a de Castanheiro, pequenas localidades bastante afastadas da Guarda.

Quem podia pensar que os Portugueses fossem desta forma artistas?

WOLOWSKI, B. – “As festas em Portugal: inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta: viagem da família real: notas e recordações de viagem”. Gazeta dos Caminhos de Ferro. N.º 1710, 1959 [1883], pp.140-41.

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A produção lírica e memorialística dos autores guardenses

Batem leve, levemente Como quem chama por mim… Será chuva? Será gente? Gente não é certamente E a chuva não bate assim…

É talvez a ventania; Mas ha pouco, ha poucochinho, Nem uma agulha bolia Na quieta melancolia Dos pinheiros do caminho…

Quem bate assim levemente Com tão estranha leveza Que mal se ouve, mal se sente?... Não é chuva, nem é gente, Nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve cahia Do azul cinzento do ceu Branca e leve, branca e fria… – Ha quanto tempo a não via! E que saudades, Deus meu!

Olho-a atravez da vidraça. Poz tudo da côr do linho. Passa gente e quando passa Os passos imprime e traça Na brancura do caminho…

Fico olhando esses signaes Da pobre gente que avança E noto, por entre os mais, Os traços miniaturais Duns pézitos de creanca…

E descalcinhos, doridos... A neve deixa inda vel-os Primeiro bem definidos, – Depois em sulcos compridos. Porque não podia erguel-os!...

Que quem já é peccador Soffra tormentos, emfim! Mas as creanças, Senhor, Porque lhes daes tanta dôr?!... Porque padecem assim?!...

Residindo grande parte da sua vida na cidade da Guarda, que adoptou como a sua terra natal e na qual viria a notabilizar-se, também na sua obra poética Augusto Gil manifestou a íntima ligação que ao longo do tempo manteve com essa cidade e com a região da Beira, cujo ambiente gélido serviu de mote a alguma da sua produção lírica, nomeadamente ao poema “Balada da neve”. Publicado, em 1909, no volume Luar de Janeiro, livro que nesse ano conheceu pelo menos 10 reedições e a partir do qual o autor adquiriu uma enorme popularidade, o poema “Balada da neve”, marcado pela musicalidade e pela linguagem de tom popular que caracterizam a sua lírica, constitui a sua obra mais difundida à época e que viria a integrar a memória colectiva de várias gerações.

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E uma infinita tristeza Uma funda turbação Entra em mim, fica em mim prêsa. Cae neve na natureza… – E cae no meu coração.

Augusto Gil – Luar de Janeiro, 1909, pp. 25-7.

Quando Hippolyto Raposo entrou no seminario da Guarda a frequentar theologia, estava eu no ultimo anno do curso, mas conhecia-o já de ha mais tempo por um facto de sensação.

Vira-lhe um dia o busto agigantado emergir da chusma negra de estudantes alvoroçados que a distancia o rodeiavam mudamente. Por todo o claustro, dezenas de mãos apontavam-no espavoridas, algumas lividas de commoção, outras retrahidas de inveja mal velada.

«Foi aquele!... Aquele alto!...» E os dedos assestavam-se sobre elle, transidos de mysterio. Ao debandar das batinas, que foram reboar o echo do

escandalo pelo silencio dos corredores, avisinhei-me da sua figura tranquila, quasi regozijada.

O caso fôra realmente pavoroso, estupendo: o rapaz, sem ser chamado, levantára-se, pedindo licença, a impugnar uma affirmação do professor, e tam victoriosamente erguera a discordancia, que o mestre ficára vencido, de cabeça pendente na aresta da cathedra, como uma planta de collo murcho torcida no bordo de um jarrão exotico, sagrado…

Apesar de Hippolyto Raposo ter defendido, sem golpe de orthodoxia, uma opinião philologica, o caso implicava indulgencia, e á hora do terço, nas sombras sacras da capella, julguei ouvir linguas candidas de seminaristas, temerosas do incidente escolar, a resar por elle orações de desaggravo…

O escandalo fôra tão grave que mestres encanecidos – pela primeira vez na carreira profissional – reforçaram a omnisciencia com petroleo… gasto em luz por estendidos e trabalhosos serões…

Tinha elle então 18 annos. Ao voltar em outubro seguinte ninguem esquecera o

attentado irreverente. Nos corredores discutia-se-lhe a edade, contavam-se-lhe as

distincções, espiava-se-lhe o estudo, indagava-se-lhe da riqueza, e como transpirassem as suas tendencias linguisticas, visto elle ter sido alumno externo, perguntava-se quem fôra o seu mestre de latim…

Só na avaliação da estatura as vozes accordavam: «era o mais alto que lá andava».

Publicada na edição de 26 de Maio de 1910, com a qual o Notícias da Guarda homenageou o escritor Hipólito Raposo que havia obtido o 1º prémio nos Jogos Florais de Salamanca com a obra Coimbra doutora, a memória de Nuno de Montemor, pseudónimo literário de J. A. Álvares de Almeida, alude a uma das mais vivas polémicas que teve lugar no início de século XX e que teve por protagonista Hipólito Raposo, seminarista na Guarda entre 1902 e 1903. Reportando ao “incidente escolar” desencadeado por Hipólito Raposo ainda antes de iniciar o 1º ano do curso teológico, quando por ocasião do exame de acesso ao seminário desafiou a disciplina contestando uma afirmação de um professor, o autor faz um relato do ambiente criado em torno desse “escândalo”, que determinou a curta estadia do “contestatário” no Seminário da Guarda. Destacando-se pelas suas aptidões intelectuais, Raposo granjeou desde cedo a atenção dos seus pares. Porém, com a ascensão do bispo Manuel Vieira de Matos e devido ao comportamento subversivo de Hipólito Raposo, este viria a ser expulso do Seminário em 1903. Este facto desencadeou uma nova polémica estimulada pela imprensa anticlericalista e que se estendeu até 1905, ano em que o escritor fez publicar no jornal O Combate uma série de cartas dirigidas ao bispo da Guarda.

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E assim Hippolyto Raposo se tornou uma figura discutida, aggravando diariamente, por novas palavras, a nota de rebelde.

Nas horas de recreio, sentado no vão de uma janella, palestrava tranquillamente com os que se lhe approximavam. Foi talvez na distracção sincera destas palestras que se perdeu o seu barrete de levita.

Eram negramente subversivas as suas ideias do futuro. […] Alguns, receiosos do futor e deslumbrados pela novidade, valiam-se de toda a coragem para o

evitar. É que, Hippolyto Raposo, para estes, podia ser um bruxo ou um illuminado: bemaventurado é que elle não era.

[…] Ahi pelo meio do anno é que rebentou novo escandalo pavoroso: soube-se de fonte limpa que Hippolyto Raposo passava as noites entregue á Philologia e que andava já nos ultimos meses de dar ao mundo uma grammatica.

E não contente com esta audacia, aggravou-a dando á letra redonda, no Commercio da Guarda, um pequeno artigo.

«Já escreve p’rá imprensa»… murmurava-se no refeitorio, nos corredores, de quarto em quarto, em segredos de terror e admiração.

Desta vez o Raposo estava perdido! Ai delle.

Padre Álvares de Almeida – “Hipólito Raposo”. Notícias da Guarda. N.º 192, 1910, pp. 1-2.

A cidade da Guarda observada por Unamuno

Entre os dezassete lugares de Portugal que merecem ser visitados, segundo reza o mapa turístico que nos vagões de primeira classe dos comboios mandou afixar a Sociedade de Propaganda de Portugal – cujo lema é pro patria omnia – não figura a Guarda. Mas sempre que passei pela linha da Beira, quer ao ir quer ao voltar, tinham-me ficado os olhos naquela cidade que, lá no alto sobre a montanha, levantava as suas torres contra o céu. O facto de essa Sociedade não no-la recomendar era razão de sobra para que me espicaçasse o visitá-la. E lá fui, ao regressar de Lisboa, passar um dia.

[…] E ali passei um dia, todo um dia fatigante, nessa Guarda fria, ventosa, húmida, feia, denegrida e forte, que vigia Espanha. Tem razão a Sociedade de Propaganda de Portugal.

Mas quando se chega a um sítio, há que extrair-lhe o sumo, sobretudo nós, os forçados do cálamo. É coisa terrível isto de ver algo para escrever sobre isso mais do que escrever porque se viu. Mas o ofício... e, uma vez ali, não ia perder a viagem.

De vez em quando, tive momentos de desfalecimento e cheguei a dizer para mim mesmo: se eu tivesse aqui um amigo!... Mas afastei logo a tentação. Viajar em companhia não é viajar, pois tira à viagem o seu mais íntimo encanto: a solidão. Não conhecer ninguém! Não ser conhecido!

E lá fui, naquela desagradável tarde outonal, vaguear pelas ruas da Guarda. Depressa as percorri quase todas, pois é uma pequena cidade, de uns 6000 habitantes. De vez em quando, os cónegos,

Na sequência das suas jornadas por Portugal, entre 1904 e 1911, Miguel de Unamuno visitou a Guarda em Novembro de 1908, cidade para a qual as viagens que havia realizado pela linha do caminho-de-ferro da Beira tinham despertado a sua curiosidade, que cedo se converteu numa atitude de desânimo. Manifestando um desagrado geral face a esta cidade, a narrativa de viagem de Unamuno transmite, sobretudo, uma visão desencantada da urbe que o autor expressou, entre outros aspectos, ao revelar as suas expectativas goradas em relação à aparência moderna das farmácias locais, por comparação com o imaginário que construíra através dos romances de Camilo, ou ainda na sua alusão ao Liceu Nacional da Guarda que considerou uma instituição “deplorável”.

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embuçados nos seus mantos negros, com os seus barretes, engolidos pelas negras portas daquelas velhas casas; depois, estudantes do liceu, rapazotes de onze anos, em cabelo, com as suas sobrecasacas e as suas remendadas capas negras, imitando os de Coimbra. Páro junto à montra de uma loja de todos os artigos, onde também se vendem livros; entre O Bobo de Herculano e a tradução da Feira das Vaidades de Thackeray, a História de um Beijo, de Pérez Escrich. Parece mentira a popularidade que este romancista, esquecido já em Espanha, goza em Portugal. É sem dúvida, porque os faz chorar, e Portugal tem sede de lágrimas.

Vou ver o pôr-do-sol; um incêndio vulcânico entre montanhas de cinza. E logo me envolve a melancolia outonal de uma cidade desconhecida. A pensar em coisas melancólicas vou jantar, que é uma brutalidade fisiológica independente da alma, segundo Camilo.

Felizmente, os últimos dias de Novembro são muito curtos e pude deitar-me às sete, com um romance de Camilo à cabeceira da cama. Não sem antes dar um passeio pela cidade e parar diante da imagem do recanto do arco para pensar: de que tragédias silenciosas terás sido mudo confidente!

E depois, que encanto ser acordado pelo sol num silêncio posto em relevo por distantes e apagados toques de corneta militar, por badaladas da igreja próxima! Sentar-me na cama e ler outra vez Camilo. Ler Camilo é viajar por Portugal, mas pelo Portugal das almas.

Saí para ver a catedral, mais de ver por fora que por dentro. Tem, contudo, um adusto carácter de fortaleza, e do seu terraço um formoso panorama. Todo o anfiteatro de montanhas da serra da Estrela, e, do outro lado, terras de Espanha.

Um dos meus desencantos foram as farmácias. São novas, modernas, até elegantes. Eu sonhava ver a velha botica do pai de Tomasa, a heroína de O Filho Natural de Camilo, que acabo de ler, e nessa botica o terno praticante enamorado.

Estas personagens camilianas!... Levo-as tão gravadas como as de Dickens; somente que estas estão pintadas à flamenga, botão por botão, cabelo por cabelo, e as outras em quatro pinceladas; mas em vida não se lhes rendem.

Fui ver o liceu, um liceu nacional, onde se cursam os cinco primeiros anos, com uns 150 alunos. Coisa deplorável, paupérrima, de que o melhor é não falar.

Que material de Física e de História Natural! Numa mesquinha portaria, junto de um braseiro, estive uns momentos à espera. Entraram umas rapariguitas; depois um rapaz de uns catorze anos, com a sua capa, e debaixo do braço um feixe de pequenos volumes da Bibliothèque Nationale, desses que se vendem a 25 cêntimos de franco cada um. Entre eles, vi Le Sage, Mirabeau, Rousseau... Pôs-se a falar com as raparigas e falavam de lindas poesias...

O porteiro disse-me que «os quintanistas falam muito bem já o francês». Melhor que francês falarão amor... Ao sair do liceu, deixei o meu cartão-de-visita.

Nessas pequenas cidades não há nada como o diário local, sobretudo se é de combate. E chama-se O Combate um dos da Guarda: um diário republicano cujo lema é: Pela Justiça, pela Verdade, pela Equidade.

[…] Que ia eu fazer naquela Guarda, naquela terrível Guarda, senão comentar o diário local republicano? Os companheiros de mesa que me viam tomar notas do modestíssimo jornal deviam dizer consigo: quem será este sujeito e para que tomará essas notas? E não é acaso um dos encantos nas viagens o de intrigar os que nos vêem e, se for possível, fazer-se passar por uma personagem misteriosa?

[…] Que terá este Portugal – penso eu – para assim me atrair? Que terá esta terra, por fora risonha e branda, por dentro atormentada e trágica? Não sei; mas quanto mais lá vou mais desejo voltar. Cheguei a crer que estes extremos ocidentais deram as mãos espirituais aos extremos orientais, aos da Índia, e chegaram ao triste miolo da sabedoria, à compreensão da inutilidade final de todo o esforço. Dir-se-ia que ali pousa a lúgubre sabedoria do Eclesiastes. Nesse povo triste, tristíssimo, a gente diverte-se, sem dúvida, mas diverte-se como se dissesse: comamos e bebamos, que amanhã

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morreremos. […] A ler Camilo atravessei a fronteira, que naquele sítio não se assinala nem por um rio, nem por

uma montanha, nem por nenhuma demarcação natural. Atravessei a fronteira; às demasiado delicadas inflexões da triste fala portuguesa sucederam os picos da áspera fala castelhana. Já de noite, passei junto a Ciudad Rodrigo, que é a Guarda espanhola da fronteira, e ainda conserva as muralhas — umas ridículas e inofensivas muralhas —, de que na Guarda portuguesa não ficaram senão uns pouquíssimos restos.

Miguel de Unamuno – Por tierras de Portugal y de España, (tradução nossa), 1911, pp. 107-15.

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HORTA

A vista régia à cidade da Horta em 1901

A cidade da Horta nas Notas açorianas de Ernesto Rebelo

As impressões de Raul Brandão sobre a cidade da Horta

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A vista régia à cidade da Horta em 1901

Manhã esplendida. A palpitação da immensidade, serena e forte, enchia luminosamente a grande cupula azul do ceu.

As pompas exuberantes da natureza desatavam largas telas de um esplendoroso scenario onde se entornavam torrentes luminosas de sol, como uma chuva faiscante de pó de ouro, polvilhando os graciosos contornos dos montes, caindo sobre a limpidez ondulante dos mares e espalhando prodigiosamente os opulentos coloridos de uma phantastica decoração.

A risonha cidade da Horta, que, desde a vespera, sentia nas suas arterias tumultuar, de enthusiasmo e de jubilo, multidões de povo affluente, acordara, neste faustoso dia, deslumbrantemente encantadora, numa orgia de luz, de gala e de festa.

Pomposamente decorada com as suas mais vistosas louçanias e brilhantes adereços, cheia de movimento e de vida, agitando, por toda a parte, flammulas e galhardetes multicolores, annunciava a celebração enthusiastica de uma solemnissima festa e estendia os braços, tremulos de jubilosa commoção, para receber, com entranhado affecto e fervoroso respeito, a real visita dos Augustos Soberanos Portugueses, a quem, nas mais dolorosas crises historicas e nas maiores fulgurações de gloria nacional, sempre consagrou provadissima lealdade.

A seus pés, o mar, com a serenidade transparente de um lago, manso e amoroso, estendendo o largo manto bordado de tremeluzentes lentejoilas e estriado de scintillações solares, beijava cariciosamente as orlas da praia. Em frente, a Ilha do Pico erguia no espaço o seu soberbo cone, engalanado com opulentissimos pennachos de brancas nuvens.

Assim, a jubilosa festa de um povo modesto e desprovido de grandes recursos, mas rico de affectos e de sentimentos patrioticos, era realçada pelos mais deslumbrantes encantos da natureza.

Pormenorizemos. Na bella e ampla bahia da Horta, onde alguns navios de marinha mercante e a canhoeira portuguesa Sado se abrigavam junto do barco protector da doca, achavam-se dois cruzadores ingleses, Australia e Severn, e um hespanhol, Victoria, que tinham sido enviados a estas ilhas pelos Governos das respectivas nações para prestarem as homenagens devidas aos Soberanos

Reportando-se à visita de D. Carlos e D. Amélia á cidade da Horta, que decorreu entre 28 e 30 de Junho de 1901, a narrativa do poeta faialense José Osório Goulart transmite uma visão de alguns dos preparativos e do ambiente vivido nessa cidade nos momentos que antecederam e que marcaram o desembarque dos monarcas no cais da cidade. Iniciado com o cortejo que se dirigiu à igreja matriz para assistir ao Te-Deum e com a recepção solene no Paço Real, o programa dos festejos inclui ainda, entre outros eventos, uma garden party no Parque da Fredonia, um baile na sociedade Amor da Pátria, uma regata, dois passeios à estrada da Caldeira e ao Capelo, assim como a realização da cerimónia de colocação da primeira pedra no edifício do Observatório Meteorológico da Horta. Motivando a publicação de edições especiais dos periódicos A Gazeta Judicial, O Faialense e O Telégrafo, que contaram com a colaboração de inúmeros autores locais – entre eles, Osório Goulart, Florêncio Terra, Marcelino Lima, Manuel Greaves e Manuel Joaquim Dias –, a visita régia foi ainda assinalada com a publicação de um poemeto intitulado Salve, Rainha!, da autoria de José Osório Goulart e do qual se transcreve aqui um trecho extraído da sua memória sobre esta visita.

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Portugueses. Todos os navios embandeiravam em arco, vistosamente, e toda a bahia, até ao extremo da doca, era

cercada por uma linha ondulante de bandeiras, que no topo dos mastros palpitavam ao tépido sopro das brisas maritimas.

Em terra, uma alegre comoção de estranha ansiedade dominava todos os cerebros e todos os corações, e o povo das duas ilhas irmãs e sempre alliançadas pelos mesmos ideaes – Fayal e Pico – corria, desde cedo, em trajes garridos e com desusada animação, a tomar logar no grande festival que se ia realizar.

Eram oito horas d’esta ridente manhã de junho, quando uma nuvem ténue de fumo manchou a orla clara do horizonte, no canal entre Pico e S. Jorge, annunciando assim a aproximação da esquadra que conduzia os Augustos Monarchas Portugueses á Ilha do Fayal. Uma crescente ansiedade impeliu todos os olhares para aquelle ponto.

Meia hora depois, o yacht real Amelia, sob o comando do capitão da fragata D. Fernando de Serpa Leitão Pimentel, ajudante de campo de El-Rei, afestoado de bandeiras, rasgava elegantemente a superfície aveludada e luminosa das aguas da bahia da Horta, salvando a terra com vinte e um tiros, ao que correspondeu o Castello de Santa Cruz.

Então a Camara Municipal, as autoridades civis e militares, o clero com o Prelado diocesano, os dignitarios, os titulares, o corpo consular, os funccionarios publicos, encaminhavam-se para o caes onde deviam aguardar o desembarque de Suas Majestades.

Passava das nove, quando, ao estrondo das salvas reaes dos navios de guerra estrangeiros, entrava na bahia a divisão naval portuguesa, composta dos cruzadores: D. Carlos, onde vinham os Reis de Portugal, S. Gabriel e D. Amelia, acompanhados pela canhoeira Sado, que tinha ido ao seu encontro, seguida de uma elegante flotilha de mais de oitenta canoas baleeiras, dispostas em duas longas filas, que, galhardamente impellidas pelo destro manejo dos remos, e no meio da mais ruidosa explosão de frenéticas acclamações envolveram o cruazador D. Carlos num festivo e gracioso abraço.

[…] Está na memoria de todos, mas não é possivel descrever, a estrondosa vibração da artilharia, das granadas, dos sinos, das philarmonicas, das girandolas, que, como uma feerica e poderosissima orchestração, atroava os ares no momento em que o Real Cortejo maritimo se dirigia ao caes de Santa Cruz, onde Suas Majestades desembarcaram.

De muitos pontos da cidade esfuziavam e explodiam incessantemente, numa crepitação estridula, milhares de fogos e granadas; em todos os campanarios os sinos repicavam festivamente, numa alegria estonteante; a marinhagem da armada, sobre as vergas, em continencia, soltava no espaço enthusiasticos hurrahs, e em numerosas embarcações, palpitantes de bandeiras, reteniam os hymnos nacionaes. Por sobre tudo isto, o vibrante estampido dos canhões de todos os navios de guerra surtos no porto e do Castello de Santa Cruz, salvando ao mesmo tempo, estrugia pelos ares, onde se desenrolavam brancas nuvens de fumo que o sol dourava com gloriosos lampejos. Todo este conjunto formava um quadro phantastico, apotheotico, que punha no coração um estranho estremecimento electrico de patriotismo.

A galeota real seguia, ao som dos hymnos nacionaes, no meio das duas filas de canoas baleeiras e de outras embarcações festivamente decoradas, de onde se erguiam constantemente foguetes e acclamações numa estridente confusão.

Por todos os pontos de observação, pelas janelas, pelos terraços, por toda a muralha do litoral, alastrava-se a enorme multidão de espectadores.

No caes, alem de compacta massa de povo, a Camara Municipal, as autoridades civis e militares, o funccionalismo e officialidade dos vasos de guerra, formavam alas desde a escadaria até o formoso pavilhão, collocado no meio do aterro de Santa Cruz, onde o Ex.mo Bispo diocesano com numeroso

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clero das duas ilhas aguardava o solemne momento de offerecer o crucifixo ao osculo dos Regios Visitantes.

Na occasião em que Suas Majestades pisaram a escadaria do caes, que estava decentemente alcatifada, tendo no cimo, entre mastros embandeirados, este distico: – Bemvindos sejam os nossos Reis! – o Sr. Barão de Roches, Presidente da Municipalidade Fayalense, levantou vivas a Suas Majestades, que foram delirantemente repetidos pela multidão.

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SALVE, RAINHA!

Ao vê-la perpassando sorridente, Solemne, luciolante, escultural, Uma harmonia ecôa docemente, Harmonia de um rytmo ideal…

E nas scintillações do seu olhar, Scintillações suaves e graciosas, Transparece a sua alma a rebrilhar, Feita de estrelas, perolas e rosas…

Ao vê-la meiga, doce e perfumada, Como uma estranha e velludinea flor, As aves cantam – ó canção sagrada! – Gemem as rolas eclogas de Amor.

Ante o seu vulto esbelto e majestoso, Sentimos envolver-nos num momento O perfume subtil e vaporoso De um casto e delicado pensamento…

Quem pudesse beijar-lhe as brancas mãos, Mãos de fada, operosas, cariciantes, Que espalham sobre humildes cortesãos Thesouros mais preciosos que diamantes!

Possue a forte luz resplandecente Afugentando a sombra deleteria, E desfaz as agruras do indigente Nos dolorosos transes da miseria.

E aquelle a quem a tisica definha E a vida lentamente vae minando, No coração piedoso da Rainha, Encontra balsamo suave e brando.

A sua vida é luminoso exemplo, Um livro aberto de leaes doutrinas, E na sua alma – esse formoso templo – Abrigam-se virtudes diamantinas.

Aos orfãos, aos velhinhos e aos doentes, Sem lar, sem pão, sem luz e sem conforto, Volve seus olhos doces e clementes, Como faroes a naufragos sem porto.

O seu rico, ondulante e vasto manto É abrigo da miseria allucinada, Abafa a voz do Mal, enxuga o pranto E derrama os clarões de uma alvorada.

De mais valor que as perolas brilhantes Que se lhe engastam no diadema regio São as virtudes altas e constantes Que desabrocham de seu peito egregio.

Assim, no coração dos portugueses, Formou-se um throno de respeito e amor, Onde Ella reina e reinará mil vezes, Cheia de graça e cheia de fulgor!

Sobre Ella descem bençãos como estrellas, Entre as acclamações leaes e francas, Sobre Ella descem as canções mais bellas, Como uma chuva de camelias brancas.

Salve, Rainha Excelsa! Um hymno ecoa, Entre galas risonhas e louçãs, A vós que sois piedosa, heroica e boa, Como a santa Donzella d’Orleans!

José Osório Goulart – Álbum da vista régia à ilha do Faial: memória narrativa, 1902, pp. 7-13 e 72-3.

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A cidade da Horta nas Notas açorianas de Ernesto Rebelo

Em Portugal trabalhava-se activamente para, com o maximo esplendor, commemorar o dia 10 de Junho de 1880 e nas plagas açorianas, n’estes rochedos semeados na vastidão do oceano, mas aonde os sentimentos patrioticos e o santo amor da liberdade e independencia patria, tem tido sempre os mas dedicados deffensores, começou-se tambem, em diversas das suas localidades a estudar a maneira de compartilharmos honrosamente da tarefa em que estavam empenhados os nossos irmãos do continente.

O Gremio Litterario Faylense, associação estabelecida na Horta, desde 22 de Novembro de 1874 e cujo fim é cimentar a instrucção e o amôr ás letras, não podia ficar indifferente perante uma manifestação de respeito á memoria augusta do grande epico nacional, e tanto assim que em sua sessão de 29 de Fevereiro de 1880, propunha o seu secretario que a respectiva Direcção promovesse um sarau litterario a 10 de Junho futuro, associando-se assim aos festejos que se effectuariam em diversas terras portuguezas, como constava pelos jornaes do continente.

Achou esse alvitre a melhor, e unanime bôa vontade de todos os membros da direcção do Gremio, começando desde logo a fazer os convites a diversos oradores e mais preparativos necessarios, para que semelhante festa fosse brilhante e condigna do levantado assumpto a que era destinada.

A mesma Direcção prevendo, immediatamente, que grande devia ser a concorrencia a semelhante solemnidade e desejando tambem dar áquella festa um caracter popular e não simplesmente adstricto aos socios da associação que

representava, deliberou pedir d’emprestimo, para effectuar o projectado sarau litterario, a grande sala dos Paços do Concelho e mais aposentos, desponiveis d’aquella parte do edificio em que funcionava a Camara Municipal da Horta.

Annuiu da melhor vontade a este desejo a illustre vereação que então regia este municipio, levando o seu patriotismo a coadjuvar, por todos os meios ao seu alcance o honroso empenho do Gremio Litterario Fayalense, até á sua realisação.

Posteriormente, porem, a estes preparativos, recebeu a imprensa fayalense, por intermedio da redacção do Fayalense um convite da commissão executiva das festas do tri-centenario de Camões, em Lisbôa, para que promovêsse tambem n’esta ilha identicas demonstrações ás que se iam levar a effeito no continente.

O redactor do Fayalense, cavalheiro collocado então n’uma elevada posição official n’este Districto convocou os redactores e representantes dos diversos periodicos da Horta, para se reunirem em sua casa e accordarem no caminho mais acertado a seguir a semelhante respeito.

Houveram, pois, algumas reuniões da imprensa, promovendo uma recita no theatro «União Fayalense» realisada na noite de 29 de Maio de 1880, para com o seu pruducto auxiliar os festejos que viesse a realisar e cujo programma ainda não estava organisado.

No seu volume Notas açorianas, no qual se reúnem diversas narrativas, inicialmente publicadas na revista Arquivo dos Açores e centradas em vários acontecimentos decorridos nesse arquipélago, ou ainda na vida e obra dos literatos locais, o escritor faialense Ernesto Rebelo consagrou grande parte da sua atenção à ilha do Faial e à cidade da Horta, na qual residiu desde os dois anos de idade e sobre a qual registou as memórias aqui transcritas. Dando conta de alguns eventos de carácter cultural que tiveram lugar na capital da ilha no século XIX, a primeira dessas memórias constitui um relato do modo como, em 1880, foi organizada a comemoração local do tricentenário camoniano, pelo Grémio Literário Faialense. A par desta narrativa e reportando-se agora ao ano de 1872, o autor descreve alguns dos aspectos que marcaram o primeiro dos saraus literários que à época decorriam regularmente na sociedade Amor da Pátria, assim como destaca também um conjunto de concertos que o maestro Sá de Noronha realizou na mesma ocasião no Teatro União Faialense.

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O Gremio Litterario Fayalense continuava, porem, no seu proposito e as projectadas festas do tri-centenario alli iam tomando muito maior vulto do que na commissão da imprensa, as sessões eram concorridissimas e permanentes, muitos cavalheiros desejavam associar-se aos trabalhos da Direcção, que se augmentasse o programma dos festejos e que se promovesse um prestito civico, bem como uma esplendida illuminação alem do sarau litterario, tomando estas festas um caracter publico, em toda a sua realisação.

Tornava-se, pois, necessario ampliar a idea primordial apresentada pela Direcção do Gremio, que jamais podia suppôr tamanho enthusiasmo da parte dos seus associados, quando encetara o nobre empenho de honrar, n’esta ilha a memoria do grande epico.

Assim, independentemente de realisar os anteriores festejos que ja havia combinado, organisou-se uma grande commissão, representante do Gremio Litterario Fayalense, isto a 31 de Maio, que desde logo começou a trabalhar com actividade, não descançando um unico momento nos variados affazeres que gostosamente tomava a seu cargo.

Jamais houve, na Horta, uma egual animação.

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Os ultimos dias do mez d’Abril d’este anno e o decurso de Maio subsequente foram assaz animados na Cidade da Horta, pelas civilisadoras diversões que n’essa epocha houveram, muito a aprasimento da melhor sociedade d’esta terra.

Na noite de 27 d’Abril effectuava-se, nas salas da antiga casa da sociedade, «Amor da Patria», com a concorrencia de numero superior a oitenta damas e muito maior concurso de cavalheiros o primeiro sarau litterario, iniciado aqui por Zepherino Brandão, Domingos Mendes de Faria e o author d’estas linhas, no qual tambem tomaram parte, proferindo mimosas poesias ou bem elaborados discursos, a Ex.ma Sr. D. Hermenegilda de Lacerda e os Srs. Miguel Street d’Arriaga e D.r Henrique Herz.

A casa estava vistosamente ornamentada, luzes e flores por toda a parte, e nos intervallos que medeiavam entre as recitações algumas senhoras da nossa primeira sociedade, preenchiam esses momentos cantando ou tocando ao piano escolhidas peças de musica.

A phylarmonica «Artistas» comparecera tambem, generosamente, a esta festa, executando um variado reportorio, o qual continha duas composições originaes, expressamente escriptas para aquella noite e devidas ao apreciavel talento do seu habil mestre, o fayalense Guilherme Pereira d’Oliveira […].

A primeira d’estas composições, a que me refiro, era um brilhante hymno denominado «Sarau Litterario» e a segunda uma esplendida valsa «A Caridade».

Á meia noite, n’um dos intervallos e conforme estava annunciado, duas creanças, do sexo feminino e pertencentes ao Azylo de Santo Antonio, acompanhadas pelas Ex.mas Snr.as D. Clara Dabney e D. Francisca Guerra, correram um tronco de beneficencia pelas pessoas presentes, o qual logo produzio a quantia de 95$290 reis, sendo depois elevada a 106$290 reis, que um acto continuo foram repartidos, irmãmente, pelos representantes do Azylo d’Infancia Desvalida e Azylo de Mendicidade, que se achavam presentes.

Alliada assim a idéa litteraria a um acto caritativo, esta festa deixou a todos bem impressionados, dando em resultado uma alluvião de saraus litterarios n’esta cidade, os quaes, afinal, por muito repetidos perderam todo o interesse, tanto mais quando n’uma pequena localidade são, quasi invariavelmente, as mesmas pessoas que apparecem a orar, n’essas reuniões.

Não acontecia, porem, isto, no primeiro, havendo o poderoso incentivo da novidade. Pouco antes de começar o sarau litterario soube-se, na sociedade «Amôr da Patria» que acabava de

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entrar na bahia o «Atlantico», um dos paquetes da carreira entre Lisboa e os Açores e que se achava abordo do mesmo, vindo da Terceira, o maestro portuguez Sá Noronha, privando-o, desagradavelmente, a tempestuosa noite que estava, de poder desembarcar, e alli comparecer.

Precedia grande nomeada o notavel violinista e as cartas e jornaes anteriormente vindos d’Angra do Heroismo não cessavam de elogiar os seus grandes meritos de artista, como as suas não menos apreciaveis qualidades de perfeito cavalheiro.

Tinham rasão. […] Depois da espectativa da noite do sarau litterario, realisado afinal regularmente, toda a

attenção da gente fina da Horta, voltou-se para o recem-chegado maestro, tanto mais, e diga se isto sem menoscabo dos brios indigenas, que n’algumas n’estas terras Liliputianas rarissimas vezes temos occasião de ouvir um bocado de musica rasoavel, que falle ao coração, que nos transporte ás doces regiões do ideal.

O maestro, porem, demorou por algum tempo deixar-se ouvir, um ligeiro incommodo de saude e o cançaço de uma viagem, embora breve, assaz tormentosa, retiveram-no quasi sempre na casa em que se hospedara, proxima da egreja das Angustias.

Para o primeiro concêrto de Sá Noronha, a 9 de Maio, no theatro União Fayalense, não havia um unico logar devoluto, disputando-se os bilhetes e isto sem programmas de feira, nem solicitações ou pedidos, coisas com que embirrava muito o distincto artista.

No theatro era tamanha a concorrencia de senhoras que foi necessario, alem dos camarotes reservar-lhe logar na plateia superior, aonde tambem se achavam algumas damas e cavalheiros da ilha de S. Jorge, que no «Atlantico» haviam vindo ao Fayal, para ouvir aquella notabilidade portugueza.

O aspecto do nosso theatro, elegantemente ornamentado, destacava-se n’essa noite da pobresa franciscana com que, então, geralmente se apresentava nos seus amiudados, mas nem sempre muito escolhidos espectaculos.

[…] Havia, pois, n’aquella sala d’espectaculos, litteralmente cheia de espectadores, uma atmophera boa e festiva e uma certa expansibilidade que não é muito trivial nos insulanos, seja em que classe fôr da nossa sociedade.

Subio afinal a cortina e a figura imponente de Sá Noronha, alto, aprumado, com o cabello e barba já grisalho, com o distincto porte que lhe era peculiar e com o peito todo constellado de condecorações, apresentou-se ante o publico, sendo recebido com estrondosa salva de palmas e com férvidas demonstrações de enthusiasmo, da parte da mocidade alli presente.

O primeiro trecho de musica que Sá Noronha nos deixou ouvir, foi uma phantazia sobre motivos da opera a Traviata, o mais religioso silencio reinava em toda a caza e aquellas notas sentidas, vibrantes e replectas d’uma suave melancolia, passavam pelos nossos ouvidos como uma coisa nova e extraordinaria, como a revelação d’um novo mundo da arte, para nós completamente desconhecido, pobres desgraçados que em musica pouco mais conheciamos do que meia duzia de banaes quadrilhas ou quatro estropeadas valsas, vibradas rudemente ao piano por alguma distincta curisosa, gloria dos nossos pachorrentos e lymphaticos professores de 300 rs. por lição (indo ás casas uma vez por semana).

Para a generalidade dos fayalenses, para a gente sedentaria, para os que nunca d’estes rochedos haviam sahido, aquillo, como ja disse, era uma verdadeira revelação!...

Á Traviata seguio, no encantado violino uma Marcha Militar, depois o Carnaval de Lisboa, terminando o concêrto, isto é o acompanhamento da rabeca por um piano, com umas valsas burlescas, scintillantes de graça e desenvoltura.

A ovação ao eximio maestro foi sincera e vehemente, o theatro parecia vir abaixo com applausos, todos desejavam a repetição de tão bem passada noite.

O segundo concêrto, a 14 de Maio, constou de uma Fantasia sobre motivos da opera Trovador, de mimosissimo capricho, com variações Ai! Jesus e do Carnaval de Lisboa.

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O terceiro concêrto, a 17 do mesmo mez, de uma fantasia sobre motivos da opera Traviata e da encantadora elegia Os Tristes d’el Peru, que causou profunda sensação e o mais vivo enthusiasmo em todos os numerosos ouvintes, sendo este o trecho de musica executado pelo distincto maestro que mais nos arrebatasse.

Finalmente a 22 de Maio ainda houve um quarto concêrto, de despedida, composto do Ai! Jesus, de uma mazurka e tambem da repetição dos Tristes d’el Peru.

No dia 24 Francisco de Sá Noronha deixava a cidade da Horta, no vapor «Atlantico», dirigindo-se para Angra do Heroismo e indo penhoradissimo da bella recepção que tivera no Fayal, tanto da parte do publico, como de diversos particulares, que o obzequiaram quanto ao seu alcance.

Ernesto Rebelo – Notas açorianas. Vol. I-II, 1885-86, pp. 44-5 e 229-32.

As impressões de Raul Brandão sobre a cidade da Horta

JÁ vejo a Horta ao fundo da baía limitada por dois morros, o Monte Queimado numa extremidade e na outra o Monte da Espalamaca. É uma cidade de uma só rua, como êles dizem, a branco e cinzento. Alguns conventos, algumas igrejas pesadas, velhas e simpáticas casas de província com varandas de madeira e reixas: às vezes na varanda um postiguinho para a mulher falar ao namôro acocorada no chão. – Cheguei-me ao ralo – dizem as meninas. Calçadinhas desertas e ruas solitárias, atravessadas de quando em quando por um meteoro loiro: são as raparigas americanas do cabo, a galope de cavalo, com os cabelos ao vento. Onde a onde um solar de província com o granel ao lado. É uma terra de gente ilustrada e hospitaleira. Em frente da Horta, o Pico formidável... Do alto do Monte das Moças melhor se vê a baía arredondada e o Monte Queimado que a separa de outra concha mais pequena – o Pôrto Pim.

O que dá um grande carácter a esta terra é o capote. A gente segue pelas ruas desertas, e, de quando em quando, irrompe duma porta um fantasma negro e disforme, de grande capuz pela cabeça. São quási sempre as velhas que o usam, mas as raparigas, metidas na concha dêste vestuário, que pouco varia de ilha para ilha, chegam a comunicar encanto ao capote monstruoso. É um ser delicado e loiro e o contraste realça a figurinha que saltita em passo de ave condenada àquele pesadelo, como certos bichos de aspecto estranho que trazem a carapaça às costas. Começo a achar interêsse a este fantástico negrume e resolvo que devia ser o único trajo permitido às mulheres açoreanas. À saída da missa gosto de ver a fila de penitentes que se escoa pelas ruas... Também me explicam que é uma coisa ao mesmo tempo monstruosa e cómoda: vai-se com êle pela manhã à missa, usam-no as velhas aferradas aos seus hábitos, e uma rapariga pode visitar uma amiga na intimidade, porque está sempre vestida: basta lançá-lo sôbre os ombros. Envolve todo o corpo, e, puxando o capuz para a frente, ninguém a conhece. O que uma mulher que use o capote precisa, é de andar muito bem calçada, porque tapada, defendida e inexpugnável, só pelos pés se distingue; pelo sapato e pela meia é que se sabe se é bonita a mulher que vai no capote. O capote herda-se, deixa-se em testamento e passa de mães para filhas. O capote numa casa serve às vezes para

Datada de 16 de Julho de 1924 e publicada, em 1926, no volume As ilhas desconhecidas, esta narrativa intitulada “A ilha azul” transmite as notas que, na sequência da sua viagem aos arquipélagos da Madeira e dos Açores, Raul Brandão recolheu da cidade da Horta. Conferindo atenção essencialmente aos aspectos sociais e paisagísticos que pôde observar a partir dessa cidade, o autor detém-se sobretudo na descrição das suas impressões sobre o costume do uso do capote pela população feminina, realçando ainda o seu deslumbramento face ao impacto da montanha do Pico na paisagem envolvente.

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tôda a família. Mulher que precisa de ir à rua de repente, pega nêle e sai como está. – Êste já foi de minha avó – diz-me uma rapariga. – Era dum pano inglês escuro, dum pano magnífico que dura vidas.

A outra coisa que exerce aqui uma verdadeira fascinação é o Pico – tão longe que a luz o trespassa, tão perto que quer entrar por todas as portas dentro. Na verdade, parece um efeito mágico de luz, um fantasma pôsto aí de propósito para nos iludir e mais nada. Toma tôdas as côres: agora está violeta, logo está rubro. A cada momento uma nova transformação. Todo o céu doirado e o Pico roxo. Tarde e a lua enorme a nascer por trás daquele paredão imenso que chega ao céu. É majestoso e magnético. Está ali presente como um vagalhão que vai desabar sôbre o Faial. Esta noite é um sonho: o cone muito nítido emerge de núvens brancas que o rodeiam e parecem elevá-lo num triunfo ao céu. Às vezes, de inverno, a neve brilha lá no alto com reflexos de jóias, outras são as nuvens que lhe dão formas extraordinárias. Se eu vivesse aqui, queria uma casa e uma cama onde só visse o Pico. Êle enchia-me a vida.

Raul Brandão – As ilhas desconhecidas: notas e paisagens, 1926, pp. 103-6.

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LEIRIA

As festividades ligadas ao teatro e à instrução na cidade de Leiria

Os costumes locais retratados na ficção romanesca

A letargia da vida provincial e o Castelo de Leiria

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As festividades ligadas ao teatro e à instrução na cidade de Leiria

Assola, assoberba o mundo o forte, o açoite, o gigante. Votam-lhe um odio profundo, odio sem tréguas, nem dó, os povos, que em carro ovante calca entre nuvens de pó!

Nos paizes conquistados a extorsão, a violência era o pret dos seus soldados; era postergada a lei, e se havia conveniência tambem lhe impunha o rei.

Fomos do numero. Havia no paiz desejo ardente de pôr cobro á tyrannia de seu proconsul ducal; ardia o fogo latente desde o palacio ao casal.

Rebenta, a Leiria vendo que o fogo da liberdade (ser livres – oh crime horrendo!) ia a lavrar, declarou em rebelião a cidade, e a causa a Deus entregou.

D’ahi a dias na frente d’uns poucos de mil francezes, um Margaron, um valente, intima o povo: «Largae as armas, ou como rezes sereis dizimados» Ai!

– Não – diz Leiria. E não se olha nem ao sexo! os homicidas sem mais guarte, nem escolha, a êsmo, – á morte cruel votam cento e trinta vidas

Exaltando os mártires do massacre da Portela – episódio que teve lugar em Leiria a 5 de Julho de 1808, na sequência da primeira invasão da cidade pelas tropas francesas sob o comando do general Margaron – o poema “Os franceses em 1808”, da autoria do poeta leiriense António Xavier Rodrigues Cordeiro, além de ter por temática um acontecimento da história local, constitui um testemunho da vida cultural da cidade, tendo sido recitado na abertura do Teatro D. Maria Pia, inaugurado a 9 de Dezembro de 1880. Iniciada a sua edificação com o acto solene de lançamento da primeira pedra a 3 de Outubro de 1878, a construção do Teatro D. Maria Pia ficou a dever-se, sobretudo, à iniciativa de um grupo de personalidades locais que, numa reunião na Assembleia Leiriense, realizada a 26 de Maio de 1878, preconizaram a construção de uma sala de espectáculos que substituísse o velho Teatro de São Pedro. Para esse efeito organizaram uma comissão edificadora que teve em Miguel Joaquim Leitão o seu principal impulsionador e que viria a ser presidida por António Rino Jordão e, em seguida, pelo barão do Salgueiro.

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sem piedade, sem quartel!

No mez seguinte perdia Junot a acção do Vimeiro, e ao deixar o Tejo ouvia praguejado, a uma voz, no paiz erguido inteiro o seu governo feroz.

Erguera nação pequena no val’, no campo e na serra, essa voz que em S. Helena retumbou. Não morre, não, o povo que a sua terra defende como um leão.

António Xavier Rodrigues Cordeiro – Quadros de glória: na abertura do novo

Teatro D. Maria Pia, em Leiria, na noite do 1º de Dezembro de 1880, 1880, pp. 13-15.

Concluido o Curso, celebrou-se nas salas do Centro um sarau de despedida, em 15 de Abril de 1854.

Aberta a sessão, tomou a palavra D. Antonio da Costa, e como Presidente do mesmo Centro dirigiu a Castilho uma saudação enthusiastica. D. Antonio falava bem; era incorrecto, mas tinha calor, e arrebatamento artistico. Estou a vel-o, e a ouvil-o, no verdor dos seus trinta annos, no enthusiasmo das suas illusões. Enumerou os serviços do poeta ao Districto, congratulou-se com os professores, na sua qualidade de magistrado superior, exhortou-os a que accendessem nas suas terras o fogo sagrado que ali tinham vindo receber, e por fim, dirigindo-se a Castilho, e abraçando-o, perante a assemblêa toda de pé, e entre applausos, entregou-lhe o diploma de primeiro Socio honorario do Centro promotor da Instrucção primaria no Districto de Leiria.

Castilho commovido agradeceu aquella homenagem, e fez os mais sinceros votos pela prosperidade do Districto.

Depois chegou-se á meza um dos professores, commissionado pelos seus pares, e com uma bonita allocução depoz entre as mãos de Castilho uma medalha de oiro que todos os seus alumnos-mestres em commum lhe offereciam. Tocou uma orchestra de curiosos que ali se achava, e o enthusiasmo chegou ao seu auge.

Seguiram-se versos, musicas, discursos, felicitações, despedidas; e assim, depois de um serão delicioso, a que assisti, terminou o Curso normal de Leiria.

Júlio de Castilho – “Memórias de Castilho”. O Instituto: revista científica e literária. N.º 4, 1900, p. 238.

O relato de Júlio de Castilho, centrado na intervenção pedagógica do seu pai, António Feliciano de Castilho, reporta à sessão de encerramento do Curso normal que o poeta regeu na cidade de Leiria em 1854, com a finalidade de instruir os professores do distrito no seu método de leitura repentina, conhecido como Método Português de Castilho. Tendo lugar no Centro de Instrução Primária de Leiria, organismo criado nesse mesmo ano por um grupo de intelectuais leirienses, no qual figurava Rodrigues Cordeiro que havia já iniciado a promoção desse método na cidade através da sua aula nocturna, o Curso normal regido por Castilho incluiu no seu programa uma série de eventos paralelos, nomeadamente palestras e saraus poéticos. No último desses encontros, a 15 de Abril de 1854, foi feita uma homenagem a Castilho, que teve como ponto alto a entrega de uma medalha ao poeta, tendo-lhe também sido outorgado, nessa ocasião, o diploma de 1º sócio honorário.

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Os costumes locais retratados na ficção romanesca

Um sol ardente de Julho crestava a austera e esguia fachada da velha sé.

A missa do meio dia, lenta e somnolenta acabara finalmente, e o grande reposteiro vermelho da porta principal, afastado consecutivamente pelas mãos suadas da multidão devota, ondulava como um pendão ao vento.

Era um enorme formigueiro humano que ao sahir se dirigia apressado em todas as direcções. As mulheres, vestindo os seus trajes domingueiros e garridos, escondiam levemente a sua natureza forte que se adivinhava na tumescencia dos seios e na maternidade das ancas. Os homens soberbos de virilidade, pegavam nos varapaus lusidios com o aprumo e attitudes dos antigos lusitanos empunhando as lanças. E toda aquella multidão borbulhava vistosa e colorida, bulhenta e o offegante.

[…] Os garotos correndo n’um vaivem endiabrado vinham esbarrar gritando, de encontro ás pernas daquella gente amollecida pelo calor, que se indignava com exclamações de colera, emquanto as andorinhas, chilreando alegres, ziguezagueavam no seu vôo o azul sereno e leve do céu illuminado.

A velha cathedral, triste de ornato e pobre de elegancia, com as suas quatro tiras de cantaria gasta guarnecendo a fachada d’uma expressão jesuitica, reflectia na cal branca das paredes uma luz, que de tão crua se tornava ingrata á vista.

[…] Apenas o templo despejou a turba, começaram de sair lenta e quasi rythmicamente em grupos, as senhoras afidalgadas da terra, que enviavam aos seus conhecimentos saudações molhadas com sorrisos de sympathia falsa. Depois, lá seguiam para suas casas, criticando o gosto das toilettes, epigrammando a vida privada de todos, e se por acaso havia escandalo nunca se esqueciam de maldosamente amostardar a sua historia.

É assim que se mata o tempo na insipidez da vida de provincia. Os homens em geral parecem-se com as mulheres na bisbilhotice. As pharmacias, as tabacarias e os clubs, são por assim dizer os centros da má língua onde só os presentes são poupados. Tudo se discute n’estes logares, mas d’uma maneira quasi ridicula. A politica para elles, resume-se nos actos praticados pelo governador civil ou pelo administrador do concelho; a religião no bispo e nas procissões, e a moral nos lares que as suas calumnias abrasam e as delações envenenam.

A maledicencia constituia pois a principal occupação da gente da cidade. Logo pela manhã ao levantar, escutavam com avidez a loquacidade maldosa da criada; almoçavam saboreando intrigas com mais appetite do que os guisados recosidos do jantar da vespera, e, assim, voluntariamente perturbavam a sua digestão, com historias tenebrosas de adulterios tragicos e incestos revoltantes, de lubricidades que, á noite, nas portas das somnolentas lojas da praça, ou no interior da pharmacia do Er-vilha, fariam o successo da palestra.

Era principalmente aqui que as reuniões se acaloravam a ponto de muitas vezes terminarem por uma algazarra pouco propria de homens d’uma certa edade e condição.

Tudo lhes servia de pretexto. Forjavam-se ministerios, elegiam-se deputados, compravam-se

Publicado em 1904 sob o título de Escândalo, o romance de costumes de António de Albuquerque, tendo por cenário a cidade de Leiria e como temática central a relação extraconjugal de Elvira Neto com Caldeira, retrata, em traço realista de finais de Oitocentos, o ambiente psicossocial da vida de província dessa época, cuja insipidez se quebrava na prática constante da maledicência a que se dedicavam tanto a população feminina quanto os homens da cidade. Reflectindo a importância enquanto lugar de sociabilidade que à época desempenhavam os espaços de carácter comercial, através da cena protagonizada por um grupo de leirienses que se reúne no interior da farmácia do Ervilha para comentar o flagrante de Oliveira Neto sobre a sua esposa, o autor coloca ainda em realce outro costume da época, ao assinalar a forma como, na sequência desse escândalo, alguns dos homens da cidade se juntaram, vestidos de preto, para uma visita de pêsames ao marido traído.

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eleitores, consciencias e juizes, com o mesmo impudor, com que coroavam este ou aquelle d’um diadema que, de tão barato, andava ao serviço das cabeças de todos os maridos. Do fundo da botica, o praticante timido espreitava, surrateiro, por detraz dos enormes frascos azues e amarellos que guarneciam o mostrador, as fisionomias incaracteristicas dos contendores. O patrão Ervilha era por assim dizer o chefe d’essa malta, o inspirador de todas as calumnias que da sua cabeça chata escorregavam, mais amollecidas do que os unguentos rançosos da sua confecção. […]

Ora, nesse dia de Julho abafadiço e pesado, pairava na atmosphera como que uma commoção de drama recente.

Na pharmacia, apesar do calor e da hora matinal, haviam-se junctado todos os membros da Synagoga – como diziam – não faltando um só que fosse.

[…] Traziam o ar preocupado de conspiradores que, sentindo o desejo de encetar um assumpto grave, não se atreviam comtudo a quebrar o silencio, não sabiam por onde começar, olhando-se receosos, sem que nenhum dispuzesse da coragem de fallar primeiro.

Era o enleio que sempre precede as discussões graves, os grandes assumptos ainda não aclarados! Foi então que a voz do Mascarenhas, roufenha e anasalada, cortou bruscamente o silencio, dizendo: – Pois é verdade! desta vez não resta a minima duvida, o Caldeira foi hontem apanhado em casa do

Netto, é positivo! – e, tirando uma fumaça nervosa á ponta do cigarro réles, continuou: – sim, positivo, por signal que escapou á morte por uma unha negra!

Acercaram-se delle com curiosidade, com alegria de se vêrem emfim libertos d’aquelle silencio esmagador.

– Ora bolas meu amigo! O que o senhor diz, já eu o sabia desde hontem, accudiu o Ramalhão agitando a bengala no espaço, corpo curvado, mirada baixa. – Mas os senhores sabem que eu cá sei tudo, e que, se nada conto muitas vezes é porque a minha posição especial na terra, a discreção, que deve sêr um attributo de toda a autoridade, mo defende terminantemente, não me permittindo divulgar certos mysterios, historietas, ... eu sei cá ! – e sorria-se enygmaticameute, tendo o ar vaidoso e tanso, de quem tudo sabe, e para quem não ha segredos.

Começou então o desafogo d’essas linguas opprimidas por um longo silencio. As physionomias illuminaram-se, contrahiram-se as boccas em sorrisos cynicos, e irromperam

dellas em turbilhões as palavras que, lhes afogavam as gargantas seccas. Poz-se a nú a vida do Caldeira, os seus amores com a Elvira Netto; relataram-se pormenores,

proferiram-se nomes de testemunhas que garantiam a veracidade do acontecido. – O Caldeira era um patife, um sem vergonha, que atraiçoara um homem de quem se dizia amigo. – Vocês não os viram passar mil vezes por aqui de braço dado? – dizia o Moreira, dando murros

sobre o marmore, fazendo tremer os frascos, as balanças, o candieiro de porcelana branca – Ella é uma desavergonhada, uma meretriz!

– Ó commendador, socegue! Olhe que me quebra tudo o que aqui tenho, accudiu o Ervilha, tirando os frascos e o candieiro de sobre o mostrador. Diga-nos antes como se passou isso tudo. Quem viu? E a que horas foi?

O Moreira abancou então com ar de mysterio, e em voz baixa, gesticulando de manso, começou: – Foi hontem ás quatro da tarde, quando o Netto acabava de entrar em casa. Como vocês sabem a

Conceição, a creada – e sorriu-se... – Ó homem continue – volveu outra vez o Ervilha cujos olhos luziam de curiosidade. – Pois bem, já continuo, espere um pouco. Como lhes disse foi ella que tudo me contou: Os dois estavam, no quarto, onde tinham as entrevistas, fechados por dentro. O marido quiz lá

entrar para procurar um objecto que lhe havia esquecido, e como encontrasse a porta fechada e sentisse ruido dentro, espreitou pelo buraco da fechadura.

O Moreira calou-se n’essa occasião, para limpar o suor que lhe escorria em bagos por a fronte enrugada.

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Todos se haviam approximado delle, com curiosidade, respirações sustidas. – Pois, meus caros, foi então que elle os viu assentados na beira da cama, assustados naturalmente

com o barulho da porta. Foi immediatamente buscar o cunhado, e fez com que espreitasse tambem. Este, quando viu o Caldeira, – contou-me a Conceição, quiz logo fazer escandalo, matal-o; quanto ao Netto esse creio que desmaiou; teve um ataque. Mas o mais interessante de tudo, é que ao tempo que o Caldeira era esperado no jardim pelo cunhado do Netto, de rewolver em punho, saía elle tranquillamente pela porta da rua, sem que ninguem o visse. Um escandalo, rapazes! uma pouca vergonha! – e o Moreira acabando de fallar ficou-se a sorrir, fitando os ouvintes, que de olhos esbugalhados o olhavam com espanto.

[…] Nessa tarde viu-se entrar em casa do Oliveira Netto uma enfiada, de sujeitos, todos vestidos de preto, como para uma visita do pezames, cabisbaixos, numa gravidado de occasião.

Soube-se mais tarde nos circulos onde tudo se indagava, se discutia, se criticava, que eram visitas de pezames, de consolação e de conforto, n’essa hora em que honra e coração sangravam da punhalada d’uma mulher.

Uns aconselhavam-lhe o divorcio immediato, outros uma separação sem ruido, afim de evitar o escandalo; os ultimos emfim declaravam que devia perdoar, esquecer a affronta em vista do arrependimento da mulher, que promettera emendar-se, rojando-se-lhe aos pés.

E o pobre do Netto, ouvia uns, escutava outros, sem comprehender absolutamente nada de tudo o que lhe diziam, meio doido com tanto conselho, com tanta tolice, com toda essa falsa solicitude que o atormentava.

Outro que não fosse elle, teria posto na rua a ponta-pés, a todos esses importunos que, a titulo de lhe levarem consolação, iam apenas estudar, na sua physionomia, a impressão produzida pelo desgosto; indagar as suas resoluções, o succedido, para á noute no club, no gremio, na pharmacia, continuarem chacoteando a sua dôr, cobrindo-o de ridiculo, e rindo-se delle; – mas o seu caracter brando, irresoluto e confiante, vira em todas estas demonstrações hypocritas, provas de acrisolada amizade, conselhos sinceros; a sua indole e a sua consciência impelliam-o para o perdão, dictavam-lhe sómente esta palavra – esquecer!

António de Albuquerque – Escândalo!: cenas da vida de província, 1904, pp. 7-18.

A letargia da vida provincial e o Castelo de Leiria

Estavamos em Leiria. […] O luar era admiravel, claro como a luz do sol na Inglaterra.

Sahimos da hospedaria, deliberando percorrer ao acaso a cidade, para sentir esse grande prazer do inesperado, que os guias sempre nos tiram. Eu tinha uma grande curiosidade de vêr Leiria. Acabára de lêr o esplendido romance de Eça de Queiroz, o Crime do padre Amaro, e queria vêr os sitios escolhidos pelo romancista para scenario das situações dramaticas do seu livro. Queria adivinhar onde seria a casa da S. Joanneira, onde ficaria situada a casita do sineiro, theatro dos amores do padre. Queria vêr se o aspecto de Leiria me despertava as mesmas impressões que Eça de Queiroz analysa subtilmente nos primeiros capitulos de seu livro. […]

Relatando a sua visita à cidade de Leiria, na qual o autor pretendeu percorrer os lugares retratados no romance O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, a narrativa de Júlio César Machado e Pinheiro Chagas transmite uma visão da vida noturna da urbe nas últimas décadas do século XIX. Embora os autores elogiem alguns dos seus aspectos modernos, realçando a amplitude do Rossio e a beleza do passeio público estendido ao longo do rio Lis, as suas impressões da cidade pautam-se por um pouco

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Foi um feliz acaso o que fez residir Eça de Queiroz por algum tempo em Leiria, porque difficilmente poderia encontrar outra terra tão propria para a acção de um romance no genero da Madame Bovary, como o Crime do padre Amaro deseja evidentemente ser […].

Percorrendo Leiria á noite, eu que adoro o campo, eu que fujo sempre que posso com delicias á vida lisbonense, senti-me oppresso e como que enervado pela somnolencia da vida provinciana. A solidão de Leiria não era aquella solidão dos campos, que adormecem acalentados pela lua, e que nos enche o coração de paz e de tranquillidade, é a solidão da rua Augusta às 9 horas da noite, uma cousa pesada, triste e soturna, uma especie de modorra, ou antes uma catalepsia em

que nos sentimos como que chumbados em vida na pedra dos sepulchros. Eu, que me esquivo com intimo prazer ao macadam do Chiado, e que o esqueço profundamente, suspirei pela casa Havaneza cheia a essas horas de luz, de rumor, de cavaco, de senhoras que passam com as suas mantilhas brancas nos cabellos, demorando o passo para contemplarem a vitrine das lojas, de fumantes que sahem de charuto acceso, e se demoram indecisos no limiar da porta até que se juntam ao grupo da esquina onde se conversa e ri, de carruagens que voltam a todo o trote para o largo da Trindade, ou que passam para S. Carlos.

E comtudo Leiria é uma cidade pitoresca e cheia de encantos para o scismador como todas as velhas cidades, mas para ella nos parecer formosa é necessario reconstruir pela imaginação a forte vida municipal d’outros tempos, em que todos esses concelhos tinham actividade e iniciativa propria, reedificar o castello e povoal-o de homens de armas, vêr desfilar nas ruas estreitas as procissões com o bispo mitrado, de longa capa de sêda e ouro. Hoje nas ruas estreitissimas aninha-se o silencio e a sombra, o castello em ruinas desenha-se ao luar, com o seu grande ar historico, como diz Eça de Queiroz, o palacio do bispo é habitado por um simples vigario geral, e por cima de tudo aquillo paira a tristeza e o tedio; a tristeza, a saudade do que foi, a grande melancolia das ruinas fui eu encontral-a nas ruas que vão ter ao castello, e por onde fui subindo até poder contemplar já bem proxima a raiz das muralhas denegridas da velha fortaleza, que recortava na atmosphera clareada pela luz diffusa da lua as suas linhas senhoreaes, o seu perfil legendario como o d’um burg do Rheno; o tedio fui achal-o na praça quasi deserta, com o seu terrapleno bem calçado, onde passeavam em silencio ou conversando em voz baixa um velho official de caçadores 6, com os seus cabellos brancos destacando vigorosamente, quando passava ao clarão do luar, sobre o fundo escuro do uniforme e uns sujeitos idosos. […]

Sahi da praça, e passei ao Rocio, largo vastissimo que é por assim dizer a transição de Leiria para o campo. Percorri um instante o formoso passeio que segue ao longo do Liz, por entre um renque de arvores que perfilavam os seus copados troncos, e vendo correr mansamente a agua do rio, que arrastava na sua transparente limpidez as palhetas argenteas do luar.

Voltei á hospedaria que fica n’uma das ruas estreitas da velha cidade. Em cada bocca de rua me apparecia a miragem do castello negro e immovel, a espreitar a minha digressão de viajante scismador. Na hospedaria estavam reunidos uns poucos de cavalheiros amaveis e obsequiosos, cuja alegre conversação dissipou as impressões um pouco soturnas, ainda que não desagradaveis, de Leiria adormecendo ao luar.

Quando eu principiava também a adormecer como Leiria, um sino grave e pausado soltava melancolicamente as doze vibrações da meia noite.

Júlio César Machado e Manuel Pinheiro Chagas – Fora da terra, 1878, pp. 128-34.

soturnas, se bem que não sejam desagradáveis. Esta monotonia, que caracterizava a vida dessa cidade e que é retratada a partir da sua escassa animação nocturna, era interrompida em ocasiões excepcionais, nomea-damente com a realização dos mercados semanal e mensal e, sobretudo, na altura das festivi-dades locais ou das feiras anuais realizadas em Março e em Agosto.

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Leiria, a antiga Collipo dos romanos, mencionada por Plínio, e agora ponto de passagem, quási obrigatório, para o famoso mosteiro da Batalha, constantemente visitado por portugueses e estrangeiros, é uma pequena cidade, letárgica e banal, que, vexada pelo reconhecimento da própria insignificância, dela procura desforrar-se, alardeando aos quatro ventos a beleza e feracidade dos seus campos, a nobreza das suas tradições literárias e o tríplice valor, artístico, arqueológico e histórico, do castelo que a domina, medievalmente empertigado sôbre um formidável penhasco de formação vulcânica.

Banhada por dois riosinhos de ecloga, o Lis e o Lena, que não longe da cidade se encontram, abraçam e fundem, à sombra dos amieiros, num noivado cheio de scintilações e murmúrios, a paisagem que circunda Leiria é realmente aprazível, acidentada sem violência, e transpirando por toda a parte fartura, paz e alegria.

Pelo que toca às suas prosápias de ordem literária, ufana-se a cidade de ter visto instalada no seu seio a primeira tipografia portuguesa, glória que sem reparo usufruiu por longos anos, mas que ultimamente lhe tem sido contestada com argumentos de pêso; ufana-se também de ter visto nascer Francisco Rodrigues Lobo, o maior dos líricos lusitanos do século XVII, que morreu afogado no Tejo, em circunstâncias misteriosas, através das quais se pressente um intrincado drama de amor; ufana-se por último de ter agasalhado durante alguns meses Eça de Queirós, que aí se estreou na vida pública, como administrador do concelho, e aí delineou e escreveu o seu primeiro romance, O Crime do Padre Amaro.

O que porém mais notabiliza Leiria, impelindo para lá contínuas peregrinações de artistas, antiquários, escritores e dilettanti, é o seu castelo.

[…] De todos êsses edifícios medievais, o mais interessante, sob o ponto de vista artístico e arqueológico, é indubitávelmente o castelo de Leiria, que dentro dos seus muros encerra, além duma fortaleza própriamente dita, um palácio rial e uma igreja gótica, oferecendo-nos assim, em sugestivo conjunto, três feições bem distintas da arquitectura medieval, – militar, civil e religiosa.

Quando, há trinta e sete anos, em companhia do meu amigo e colega Dr. Luciano Pereira da Silva, visitei pela primeira vez êste castelo, cuja traça interior mal se percebia sob a desaustinada vegetação das silvas que o invadira, estava êle escancarado ao público, fornecendo gratuitamente a pedra de que os vizinhos careciam para murar os seus eidos e construir os seus currais, e sendo diáriamente frequentado, no intervalo das aulas, pelos estudantinhos do Liceu, que aí davam largas ao seu espírito de destruição, e aí se fartaram de escaqueirar inestimáveis inscrições lapidares e lindos capitéis finamente lavrados.

[…] Por compensadora felicidade do castelo de Leiria, que de tantas sevícias fôra vítima, e por felicidade também de todos os portugueses, que pelos monumentos artísticos da sua terra se inte-ressam, pouco antes ou pouco depois da minha primeira visita à cidade do Lis, em 1889, foi para lá viver um arquitecto suisso, Ernesto Korrodi, educado na Escola de Arte Industrial de Zurich.

Esse estrangeiro, que, a par duma sólida preparação técnica, possúi uma delicada e afinada sensibilidade artística, visitando, pouco depois da sua chegada a Portugal, a acropole leiriense, teve, como era natural, um grande assomo de indignação e comiseração, ao ver tão notável monumento ultrajado com tão descaroável desprezo, e a essas ruínas votou logo o mais exaltado e compassivo

Centrada no Castelo de Leiria, a narrativa de viagem de Eugénio de Castro constitui um relato das suas recordações que remontam ao período entre o final do século XIX e 1926. Dando conta do estado de abandono e de ruína a que fora votado o monumento, o autor descreve o processo de restauro do mesmo, preconizado pelo arquitecto Ernesto Korrodi, responsável pela elaboração de um projecto que, publicado em 1898, só viria a ser desenvolvido depois da primeira década do século XX. Através da intervenção da Liga dos Amigos do Castelo, que teve o arquitecto suíço como um dos seus fundadores, foi iniciada a reconstrução do monumento no mesmo ano da criação da Liga (1915), embora só a partir de 1921 Ernesto Korrodi viesse a dirigir as obras de recuperação do edifício.

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amor, o mesmo amor desinteressado que incendiara romanticamente o coração dos cavaleiros andantes, induzindo-os aos mais generosos rasgos de heroismo, na defesa e vingança das belas damas injuriadas e oprimidas.

Desde êsse dia, com uma tenacidade admirável e com uma paixão cada vez mais ateada, todas as horas que ao arquitecto Korrodi sobravam das suas ocupações profissionais, consagrou-as êle ao estudo do arruinado castelo, familiarizando-se intimamente com as pedras que ainda estavam de pé, desencantando as soterradas e adivinhando, guiado pela sua perspicácia e saber, como teriam sido as que faltavam.

Ao cabo de longas investigações, publicou Ernesto Korrodi, em 1898, numa imprensa de Zurich, os seus Estudos de reconstrução do Castelo de Leiria, excelente monografia que entre os entendidos suscitou, como era de prever, um grande movimento de interesse, despertando geralmente o empenho de se promover imediatamente a restauração da velha cidadela, segundo o plano proposto pelo arquitecto suísso.

[…] Depois de se ter gasto muito tempo, muita palavra e muita paciência na conquista efectiva do apoio oficial e na conciliação das entidades que ciumentamente disputavam a direcção das obras, começaram estas por fim, mas nem sempre orientadas com tino, tendo havido uma época durante a qual foram executadas sem a criteriosa vigilância daquele que, havendo elaborado o projecto, naturalmente estava indicado para vigiar paternalmente a sua realização. Assim, quando, há cêrca de dez anos, passei um dia por Leiria, a caminho da Batalha, essas obras, embora apenas de consolidação, estavam sendo feitas por forma tão pouco aceitável, que eu, a-pesar da minha pacatez, indignadamente as teria embargado logo, se tivesse alçada para tal.

[…] Felizmente, quando há dias lá voltei, com alegria pude verificar que a restauração tem progredido nos últimos anos, de maneira a satisfazer os mais exigentes, o que se deve ao zêlo e competência de Korrodi, com toda a justiça reconduzido agora na direcção dos trabalhos, da qual nunca deveria ter sido arredado.

O que se tem feito até aqui é pouco em relação ao muito que ainda há a fazer e à impaciência dos que, como eu, tantos desejos nutrem de ver completa a restauração; mas êsse pouco, – e mais não podia exigir-se, atendendo à exiguidade da dotação orçamental, – êsse pouco já aumentou considerávelmente o efeito decorativo da velha alcaçova, deixando prever o que ela será quando estiver completamente renovada, e permitindo aos que a visitam agora, depois da remoção dos entulhos e da eliminação das vegetações parasitárias que a pejavam, a completa recomposição mental do seu aspecto primitivo.

Do velho castelo fundado por Dom Afonso Henriques, em 1128, sôbre o alto penhasco de longa data considerado como um ponto estratégico da maior importância, e por isso, ardentemente cubiçado e ciosamente possuido por suevos, vizigodos e moiros, antes de ser conquistado pelo primeiro monarca português, dêsse velho castelo restam ainda a tôrre de menagem, denegrida e forte, a-pesar das fendas que lhe zebram as paredes, como rugas heróicas, e uma extensa cinta de muralhas pitorescamente reforçadas de quando em quando por pequenas torres quadrangulares.

O palácio, que durante muito tempo se supôs ser obra do rei Dom Denis, que aí teria passado longas temporadas, como referem as crónicas, com sua mulher, a Rainha-Santa, D. Isabel de Aragão, parece afinal, segundo a opinião de Korrodi, que é uma construção da segunda metade do século XIV, contemporânea de D. Fernando ou de D. João I.

Exemplar notabilíssimo e único da habitação nobre portuguesa no período medieval, êste alcáçar, que está sendo agora o principal objecto da restauração, simultâneamente se distingue pelas suas vastas proporções, pela sua magnificência ornamental e pela pureza e elegância das suas linhas.

A fachada principal, voltada a sudeste, mede nada menos de quarenta metros de largura, compondo-se dum vasto corpo central, flanqueado por dois torreões mais altos, e aligeirado, na altura do terceiro pavimento, por uma airosa galeria de arcos ogivais, assentes sôbre finas colunas

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geminadas. Essa galeria ilumina o salão principal do palácio, destinado às festas, às recepções e às reuniões do conselho.

Para dar uma ideia das proporções de tão notável residência, bastará dizer que, além do salão referido, da galeria contígua e das lojas, cosinhas e cavalariças instaladas no primeiro piso, ela se compunha de dez grandes salas, que certamente constituiam os aposentos privados de família real.

[…] Sôbre êsse notável conjunto, escreveu Joaquim de Vasconcelos: «Tal como hoje existe, o castelo de Leiria é talvez o monumento mais imponente da nossa grandeza militar, medieval. Seria, quando colocado em qualquer país da Europa, motivo para admiração, mesmo na Alemanha, cujas lendárias alcaçovas conhecemos, por exame demorado, em diferentes viagens».

Tais palavras denunciam bem o valor excepcional do castelo de Leiria, sendo escritas por um homem que tem a maior autoridade na matéria, e que, sem quebra do mais acendrado patriotismo, é um apaixonado admirador da Alemanha, onde foi educado e onde teve a fortuna de encontrar um dia a excelsa senhora que foi sua esposa, Carolina Michaëlis de Vasconcelos.

Eugénio de Castro – Cartas de torna-viagem. Vol. II, 1927, pp. 151-63.

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PONTA DELGADA

As comemorações consagradas à memória dos notáveis locais

A intervenção de António Feliciano de Castilho em Ponta Delgada

Uma visita a Ponta Delgada em 1893

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As comemorações consagradas à memória dos notáveis locais

HYMNO

Em homenagem ao arrojado e intrepido explorador

ROBERTO IVENS

Voz

A Sciencia é uma luz que illumina Qual um astro d’intenso fulgor, É na terra quem tudo germina, É no mundo outro sol creador.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado D’esta terra – seu berço natal, Da Sciencia ao amor dedicado É no mundo um brilhante phanal.

Voz

O apost’lo que induz ao Progresso, O asceta da Deusa da Luz, É aquelle que dá mais ingresso Na Sciencia – pharol que seduz.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado etc.

Voz

Quem esparge o clarão no escuro E no cháos vae a luz projectar, Tal acção, no presente e futuro, Ha-de todo o Universo lembrar.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado etc.

À semelhança das comemorações que tiveram lugar, sobretudo, na cidade de Lisboa, iniciadas a 16 de Setembro de 1885 e prolongando-se por oito dias, para comemorar a travessia de África empreendida pelos exploradores Brito Capelo e Roberto Ivens, também na cidade de Ponta Delgada este feito deu origem à realização de uma festa de consagração que aí assumiu uma conotação particular: a homenagem à figura de Roberto Ivens, em virtude da sua naturalidade do concelho de Ponta Delgada. Preconizada pelos sócios locais da Sociedade de Geografia de Lisboa, esta comemoração realizou-se em Ponta Delgada, a 6 de Dezembro de 1885. Motivando a publicação de um jornal de número único intitulado Ivens e Capelo, o evento foi ainda celebrado através de um programa festivo que incluiu, além de um cortejo cívico, a colocação da primeira pedra de um monumento comemorativo, uma sessão solene decorrida na Câmara Municipal e uma “marcha aux flambeux”. A par destes festejos, o programa da comemoração em Ponta Delgada teve também como ponto alto o sarau músico-literário realizado no Teatro Micaelense, no decurso do qual se distribuiu uma litografia do africanista açoriano e foi executado o Hino a Roberto Ivens, musicado por Quintiliano Furtado e cuja letra, aqui transcrita, tem por autor Manuel Duarte.

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Voz

Só o amor da Sciencia embutido No trabalho e vontade e prazer, Póde o homem levar foragido Para as plagas onde acha o soffrer.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado etc

Voz

O arrojo entre p’rigos e feras Um caminho ao commercio traçou; Tremedaes e abutres, cratéras, Não temeu, nem jámais vacillou!

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado etc

Voz

As incultas regiões africanas Onde o cafre domina o sertão, Lapidadas por forças humanas Bellas joias mais tarde serão.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado etc

Voz

Um enorme edificio selecto Já construe a Sciencia ao porvir: É o amor ao saber predilecto – Perfeição – quando a méta attingir.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado etc

Voz

Portugal teve heroes, na conquista Que a attenção do Universo prendeu, E ainda hoje accrescenta na lista Mais um nome que essa honra mer’ceu.

Côro

– Roberto Ivens – um filho illustrado D’esta terra – seu berço natal, Da Sciencia ao amor dedicado É no mundo um brilhante phanal.

Ponta Delgada 11 d’Outubro de 1885

Manuel Duarte – “Hino em homenagem ao arrojado e intrépido explorador Roberto Ivens”. Arquivo dos Açores. N.º 45, 1886, pp. 254-6.

Foi domingo a inauguração solemne, na ampla sala da nossa Bibliolheca Publica, da livraria que ao municipio d’esta cidade legou Anthero de Quental, uma das maiores glorias litterarias do nosso paiz e um nome que na historia michaelense refulgirá sempre nas suas mais brilhantes e douradas paginas.

O acto, pela numerosa e selecta concurrencia, teve o valor d’uma consagração. Estavam alli os idosos, que viram crescer, medrar e agigantar-se litterariamente o que na sua terra veio finar-se; estavam os que foram rapazes com elle e não poucos dos seus companheiros de estudo que assistiram á formação do seu caracter e ás primeiras scintillações do seu genio; e estavam muitissimos dos que tem apenas começado o jornadear que leva aos templos do saber e ao alcacer da gloria.

E eram os ultimos os que alli tinham melhor lição. A apotheose do merito e da virtude é o exemplo mais salutar ás

Extraído do jornal A Persuasão, este relato de Francisco Maria Supico descreve a cerimónia através da qual foi inaugurada na Biblioteca Pública de Ponta Delgada, em 1 de Janeiro de 1893, a sala de Antero de Quental, composta por um total de 782 volumes legados pelo poeta a essa instituição. Determinada pela Câmara Municipal de Ponta Delgada numa sessão ordinária, realizada em 14 de Setembro de 1891, e constituindo um dos primeiros eventos consagrados à memória do poeta pela sua terra natal, esta cerimónia foi, ainda, assinalada com a oferta à biblioteca de um busto em mármore de Antero de Quental, esculpido por Simões de Almeida.

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gerações que se preparam para encher as vagas, que os velhos vão deixando n’estas fainas civilisadoras em que o grande motor é a intelligencia cultivada.

A camara acceitando o legado mostrou-se a toda a altura digna do povo que representa. Deu-lhe logar d’honra entre bastantes milhares de volumes que constituem a nossa bibliotheca; acautela-o, como reliquia, n’um mobil expressamente construido para este fim, a que augmenta o grande valor intrinseco e artistico, que em todos os tempos fará honra ao trabalho micaelense; e ao lado poz um busto em proporções quasi naturaes, exactissima copia de Anthero, devido ao cinzel de Simões d’Almeida, um dos mais eminentes esculptores portuguezes, que o talhou em marmore finissimo.

Devia fazer isto a nossa municipalidade. Mas poderia deixar de o fazer, ou entibiar-se em presença do dispendio, se á frente d’ella deixasse de estar, como esteve até 1 do corrente mez, um homem illustre por muitos titulos, entre os quaes sobreleva o do merito litterario a que deve a alta comprehensão das civicas obrigações que contraimos com os beneritos.

O sr. dr. Caetano d’Andrade, o presidente da camara que da sua administração deixa as melhores lembranças, na sua phrase facil, amena e insinuante, fez em traços rapidos a photographia moral e intellectual de Anthero, encarecendo devidamente o valor do legado, que d’ora ávante ficava confiado á guarda e veneração dos michaelenses.

Não fez discurso, nem fez rhetorica o sr. dr. Caetano. Disse o que foi occorrendo á sua luminosa intelligencia, mas cada palavra obedecia á nitida expressão d’um pensamento e em cada phrase estava um conceito por todos comprehendido e por todos applaudido.

Seguidamente o sr. João M. de Faria e Maia, que só ha pouco tempo conhecemos por author de escriptos de subido valor e andam no publico firmados por pseudonimo, que foi em toda a vida de Anthero da sua intimidade, poz em evidencia a personalidade d’aquelle grande vulto, com referencias a uma grande correspondencia que d’elle possue, e de que leu a parte em que mais se expandia a alma pura, o coração altruista e o espirito com que imprimio cunho á obra da sua mentalidade. O sr. João Machado defendeu ainda a memoria de Anthero de uns pequenos senões que lhe attribue um distinctissimo biographo, e principalmente o de não ter Anthero de Quental produzido tanto como era de esperar dos seus vastos recursos. D’aqui felicitamos o sr. Faria e Maia, pelo correcto da sua exposição e pelo bello effeito que ella produziu.

O sr. Visconde de Faria e Maia poz o fecho de ouro á sessão de apotheose ao eminente michaelense. […] Não se preparou s. ex.ª para falar em tal occasião, mas excitando-se lhe alli o espirito, n’um extenso e sempre elevado improviso expoz como conhecera Anthero em Coimbra, como nas verduras e mesmo travessuras da mocidade lhe descobriu o quid que o engrandeceria […].

O sr. Visconde apreciou o homem moral e o homem de genio. Quanto ao primeiro soube ainda acrescentar toques de fino artista ao retrato já feito pelos srs. dr. Caetano d’Andrade e João Machado. Do homem de genio, apreciou a obra immortal que nos legou com um criterio sensatissimo, merecendo-lhe o maior apreço a que produziu como poeta. N’um esto de inspiração disse o sr. Visconde que se Portugal pudesse ter muitos Antheros, quando este paiz desapparecesse da lista das nações se estudaria no futuro muito distanciado a sua lingua, para se interpretarem e apreciarem as obras n’ella escriptas, como hoje se estudam o latim e o grego para se apreciarem os monumentos litterarios da antiguidade.

[…] Terminou a solemnidade com a leitura d’um auto d’esta inauguração para guardar na livraria de Anthero, assignado primeiro pela commissão municipal, depois pelas senhoras presentes e seguidamente por grande numero de cavalheiros.

A municipalidade fez o que lhe cumpria e por isso a louvamos. Alguma coisa mais ha a fazer; mas isso pertence ao povo michaelense.

Francisco Maria Supico – “Inauguração da Biblioteca de

Antero de Quental ”. Arquivo dos Açores. N.º 68, 1893, pp. 222-3.

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A intervenção de António Feliciano de Castilho em Ponta Delgada

Florescia em Ponta-Delgada uma associação, já então benemerita: a «Promotora da Agricultura Michaelense». Fundara-a André do Canto, senhor da Casa dos Cantos, e seu irmão José […].

Tornou-se aquillo um centro, e poderoso estimulo para agricultores. Graças aos fundadores, contribuiu aquelle nucleo de homens, abastados e amantes da terra, para o desenvolvimento da principal fonte da prosperidade insulana: a exploração agricola.

André do Canto era a alma da associação; homem benefico, serio, dedicado a quanto fosse grande e nobre, manifestava em tudo o desejo de ser util á sua patria michaelense. […]

Ora ainda um pouco antes da legalisação da Sociedade Promotora, tinham os dois irmãos Cantos creado um periodico mensal O Agricultor Michaelense, que deitou dois volumes, e viveu de outubro de 1843 a 45 […]. Lamentavam todos o facto; e n’uma sessão da Sociedade, em 10 de dezembro de 1847, foi unanimemente approvada uma proposta para se tornar a publicar a folha, encarregando-se a redacção d’ella ao notavel hospede da Ilha.

Fallou-se-lhe n’isso, e elle annuiu. Em 2 de janeiro seguinte, de 1848, na sala das sessões da

direcção, celebrava-se contracto entre André do Canto, Presidente, José Jacome Corrêa, Vice-Presidente, Manuel José Ribeiro, Thesoureiro, José do Canto, Secretario, Antonio Borges de Bettencourt, Vice-Secretario, e Antonio Feliciano de Castilho, pelo qual se estatuia o seguinte:

1.º – Encarregava-se Castilho da redacção da 2.ª serie do jornal O Agricultor.

2.º – Os seus honorarios seriam 800$000 réis annuaes; quantia essa, que, attenta a carestia dos generos, equivalia a uns 500 ou 550 mil réis do Reino; o que, nas apertadas circumstancias em que se achava a familia, era quasi opulencia.

[…] Ao publico michaelense annunciava a Direcção da Sociedade Promotora que o jornal passava a ser redigido pelo poeta portuguez, e expressava-se n’estes termos perante a sua Assemblêa geral:

«Vamos causar-vos uma agradabilissima surpreza, communicando-vos que um dos maiores Ingenhos

Portuguezes, a quem coube a sorte dos grandes homens – a ingratidão da Patria –, e que longe d’ella foi arremessado para o nosso seio, nos prestará a arma poderosissima da sua voz e espirito. Já tereis pronunciado o nome do sr. dr. Antonio Feliciano de Castilho.

Este insigne Litterato, que nunca em nossas mais elevadas aspirações imaginámos poderia ser ainda

Da autoria de Júlio de Castilho, esta memória centrada na vida do seu pai, António Feliciano de Castilho, relata parte da intervenção que o poeta desenvolveu na cidade de Ponta Delgada, na qual viria a estabelecer residência entre 1847 e 1850. Aí desenvolveu uma activa intervenção na imprensa e nos organismos associativismos locais, concebendo e pondo em prática o seu método de leitura. Iniciando a sua intervenção junto da Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, no âmbito da qual foi investido do cargo de redactor da segunda série do jornal O Agricultor Micaelense, em 1848, foi nessa função que António Feliciano de Castilho introduziu a prática da gravura em Ponta Delgada, sendo responsável pela iniciação de alguns locais nesta modalidade artística que encontrou grande adesão e passou a ilustrar as páginas do jornal O Agricultor. Ainda em 1848, António Feliciano de Castilho foi também responsável pela fundação, a 9 de Setembro, da Sociedade dos Amigos das Letras e Artes, no âmbito da qual foi desenvolvido, em Ponta Delgada e em várias freguesias do concelho, um conjunto de cursos nocturnos nos quais foi adoptado o método repentino de leitura de Castilho. Após estas primeiras actividades o poeta granjeou um grande prestígio na cidade, que motivou, logo em 29 de Novembro de 1848, a realização de um sarau de homenagem, no decurso do qual foram recitados vários poemas em seu louvor e lhe foi ofertada uma coroa artificial de louro com a inscrição “A Castilho, génio sem par. Eterna glória”.

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o nosso farol de salvação, não se despréza, antes muito obsequiosamente se dignou a acceitar um convite que em nosso nome lhe dirigimos, rogando-lhe com muito encarecimento se quizesse encarregar da redacção do jornal agricola d’esta Sociedade. O seu nome e a sua generosidade dizem tudo.

Esperamos que delibereis definitivamente a reapparição do jornal d’esta Sociedade; que voteis agradecimentos á obsequiosa condescendencia do sr. dr. Antonio Feliciano de Castilho.»

[…] É lindissimo notar como a parte pratica e litteraria do Agricultor se viu auxiliada pela arte, n’uma terra estagnada, onde não havia vislumbre de sentimento artistico! Graças á boa vontade, ao engenho, á perseverança do redactor, adornou-se o jornal com gravuras em madeira, executadas alli mesmo por pessoas que nunca tinham gravado, e algumas nem desenhado sequer!

– Como foi isso? – perguntará o leitor. Eu lh’o explico.

Pegou-se no Manuel du graveur da collecção Roret, e no artigo Gravure do Dictionnaire technologique; leram-se com muita attenção, e por essa doutrinação ficou o cego Castilho tão mestre como Henriquel Dupont, ou Brendamour. Ensinou o systema de gravar em madeira ao sr. Luiz Filippe Leite, e ao sr. Alfredo Lambert, de dezassete annos, joven Francez, filho do sympathico Monsieur Lambert acima mencionado. Eram dois rapazes de talento, desejosos de trabalhar para o bem, e ainda enlevados nas illusões da adolescencia.

Mandaram-se apromptar uns tóros de madeira de buxo muito lizinhos; cobriram-se de uma nuvem de alvaiade ligada com gomma-arabia; o sr. Pedro de Alcantara Leite, pae do moço neophyto da gravura, e bom desenhador, debuxava este ou aquelle apparelho ou instrumento agricola, este ou aquelle exemplar botanico, esta ou aquella figurinha, esta ou aquella lettra inicial de capitulo, e os excellentes rapazes iam gravando.

Iam gravando como? com que instrumentos? É simples; a boa-vontade faz milagres. Como não havia burís, nem em mãos de particulares, nem á venda, em Ponta-Delgada, lembrou-se

Castilho, com a sagaz intuição que o distinguia, de mandar encabar agulhas muito grossas, que se afiavam na pedra de amolar até lhes dar o corte obliquo, com o viez necessario. (Depois mandaram-se vir uns burís de Londres).

Era uma porfia de enthusiasmo! este inventava um instrumento bom para adiantar os claros; aquelle aperfeiçoava o que já se tinha conseguido; aquell’outro chegava muito ufano com um formão pequeno talhado a primor; o outro, munido apenas de um canivete magnifico, fazia capotes e milagres! e n’esta contenda amigavel, civilisadora, e verdadeiramente edificante, ia o Agricultor Michaelense revelando ao publico, atonito de taes novidades, o que póde a teima, e a vontade bem dirigida.

[…] Em consequencia das obstinadas insistencias de Castilho, corroboradas com a sua extraordinaria vis docente, foi a empreza avante. Os juvenís artistas, cheios de brio, empenharam-se na prosecução dos trabalhos; e nos doze numeros do Agricultor de 1848 appareceram sessenta e uma gravuras, executadas por nove pessoas […].

O anno de 1849 foi menos rico em ilustrações. Tinham esfriado um pouco as vontades, como era inevitavel; tinham-se dispersado alguns dos gravadores. […]

………………………………………………………………………………………………………

ENtre os amargores do seu lucto de familia, continuava acceso no coração de Castilho o grande amor ao trabalho, e a mais intima dedicação aos povos insulanos. Da convivencia d’elles com o illustre cego, que os guiava, nasceu em 9 de setembro de 1848 a nunca assaz encarecida

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«SOCIEDADE DOS AMIGOS DAS LETTRAS E ARTES EM S. MIGUEL»; data celebre aquella, e para sempre, nos annaes da civilisação açoriana.

Foi á noite, em casa de Castilho, e por sua idêa e iniciativa, que, estando acaso reunidas algumas pessoas, despontou a benemerita Sociedade, que tanto havia de fomentar e proteger a civilisação do Archipelago. Essas pessoas foram, além de Castilho, Antonio Joaquim Peixoto de Sequeira, Filippe do Quental, Francisco Lambert, Luiz Carlos do Couto Severim, e Marianno José Rebello; e como na sala se achavam tambem tres senhoras, aggregaram-se á ideia dos socios fundadores: eram minha Mãe, e as senhoras D. Anna Eulalia Férin, e D. Emilia Férin.

Como o iniciador foi Castilho, deu ao illustrado synedrio um titulo que recordava, não só a ephemera «Sociedade dos Amigos das Lettras», de 1836, mas tambem a outra, mais antiga, que, segundo contei, reuniu em Coimbra, em casa do velho Doutor José Feliciano de Castilho, bom numero de estudiosos academicos. Esse titulo, «Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes» era já por si um programma; com effeito, no amor ás Lettras e ás Artes contém-se o amor ao trabalho, e a alta aspiração a tudo que ha nobre e grande; e n’essas aspirações generosas continha-se, ou podia vir a conter-se, toda a civilisação do Districto.

Boas vontades e talentos não faltavam; era indispensavel e urgente agremial-os e encaminhal-os. Os trabalhos agricolas, incitava-os, no seu tanto, a «Promotora da Agricultura»; faltavam as Artes, e faltavam as Lettras; essas, tomava-as a si a nascente «Sociedade dos Amigos das Lettras e Artes em S. Miguel».

[…] Apenas se começaram a angariar adhesões ao nobre pensamento, vieram agremiar-se aos Amigos das Lettras e Artes muitissimas pessoas; e como não ha commettimento grande sem o auxilio da mulher, muitas senhoras insulanas se juntaram ás que acima indiquei, e augmentaram as phalanges d’esse batalhão sagrado. As senhoras (progresso memoravel!) bafejaram por mil modos os trabalhos da Sociedade, já apparecendo nos saráus litterarios e artisticos, já figurando n’elles, já contribuindo com desenhos, bordados, e flores, para os bazares e exposições, já incitando os fracos, e animando-os ao combate.

[…] Por todo esse setembro de 1848, por todo esse outubro, por aquelles mezes, por aquelles annos proximos, foi lá um enthusiasmo, de que nada saberia hoje dar idêa. Cresciam as adhesões de dia para dia; ao chamamento da civilisação encontravam-se, fraternisavam, os da rosa branca, e os da rosa vermelha; reuniam-se as sessões ora em casa de Castilho, ora na sala do theatro de S. Sebastião; todos andavam n’uma porfia nobilissima, a qual havia de ser o primeiro nos alvitres e nas obras. E elle, o mestre, elle, o cego, elle, o utilitario sonhador, elle, o pobre, elle, o forasteiro, era a alma e o centro de todo o movimento, era o sol d’aquelle systema de sattellites, era a encarnação da pacifica revolução do bem.

Viu-se um espectaculo tocante: familias desunidas até então pela politica, entraram a conviver no terreno neutro que se lhes abria. Reconciliaram-se inimigos; esqueceram-se aggravos; triumphou mais uma vez o Evangelho.

A noite de 29 de novembro congregou no theatro, illuminado e enramado de flores, toda a sociedade n’um sarau alegre e despretencioso. Cerca de quinhentas pessoas assistiram.

Foi aquelle, diz o citado 1.º secretario José de Torres, Official do Governo Civil, e rapaz de vinte e um para vinte e dois annos, cheio de talento, foi aquelle sarau «o marco que separou os prejuizos da antiga dissociabilidade, e nos apontou nova era de risonha e racional civilisação; foi um monumento moral……… ante o qual o porvir deporá verdadeiros testemunhos de reconhecimento».

Concorreu a numerosa banda orchestral dos curiosos, e rompeu com o magnifico Hymno do Trabalho.

Castilho, á mesa da Presidencia, collocada no palco, proferiu o discurso de abertura. Castilho não era orador no sentido tribunicio da palavra; não commovia, mas convencia; era suave, e ao mesmo

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tempo academico; ninguem falava mais correcto, e com mais uncção. Os poetas principiantes recitaram versos: Filippe do Quental, Luiz Filippe Leite, José de Torres, e

outros mais.

[…] Eram já em 1849, seis mezes depois da fundação, quatrocentos e vinte e oito os associados. Entrou todo aquelle conjunto a prosperar, e a produzir admiraveis resultados. A saber:

Castilho regeu em sua casa um curso de versificação […]. Pedro de Ancantara Leite, auxiliado por Francisco de Andrade e Albuquerque, Antonio Joaquim

Peixoto de Sequeira, Manuel José de Salles, e Manuel Monteiro, regeu um curso publico de desenho, frequentado por vinte e um alunos. […]

José de Torres tomou a si um curso de geometria. Luiz Carlos do Couto Severim e Luiz Filippe Leite acceitaram o de arithmetica. O Doutor Adriano Antonio Rodrigues de Azevedo, um de hygiene. […] Promptificaram-se a leccionar desenho topographico Antonio Joaquim Peixoto de Sequeira,

agrimensura José de Torres, inglez João Guilherme Rendall, e geografia Caetano Antonio de Mello. Projectou um cursosinho de economia politica D. Pedro da Costa de Sousa de Macedo, Secretario

geral servindo de Governador Civil. Projectou outro curso de chimica José Honorato Gago da Camara. Uma senhora franceza, da respeitavel casa commercial do seu appellido, a sr.ª D. Anna Férin,

promptificou-se a ensinar francez ás senhoras que o desejassem. Castilho, em summa, sem descançar no seu empenho de aperfeiçoamento e nacionalisação do

systema de Lemare, ensinava, elle proprio, cerca de duzentas creanças analphabetas, auxiliado pela dedicação exemplar de Christiano Frederico de Aragão Moares, Filippe do Quental, Francisco de Bettencourt Ataíde, e José Joaquim de Oliveira Machado.

[…] Que espectaculo! que admiravel espectaculo! As varias salas do extincto Convento dos Frades da Graça, de proposito cedido para este intuito, eram uma pequenina Universidade, onde todas as noites enxameava a actividade de mestres e alumnos; alumnos pobres, famintos de saber quasi todos (principalmente n’estas aulas de caracter mais popular); mestres gratuitos, zelosos, dedicadissimos. Que espectaculo!!

Júlio de Castilho – “Memórias de Castilho”. O Instituto: revista científica e literária. N.º 3 e 8, 1895, pp. 159-66 e 491-7.

Uma visita a Ponta Delgada em 1893

Deixemos o porto e entremos na cidade que, quando desembarquei, estava em festa para celebrar a inauguração do cabo telegraphico, que ia ligar os Açores ao mundo inteiro. A primeira impressão não é agradavel, como no Funchal, onde, sob um palio de plátanos, a nossa entrada tem o quer que seja de triumphal e deslumbrante. Do caes passa-se por uma especie de arco de triumpho, que não é certamente o da arte, para a Praça do Municipio, onde está o hotel açoriano, mais vulgarmente conhecido pelo nome do seu proprietario sr. Manuel Corrêa. Se a impressão da entrada na cidade não é

Publicada primeiramente no jornal Diário de Notícias, de Lisboa, esta narrativa produzida no âmbito da viagem de Emídio da Silva à ilha de S. Miguel, em 1893, transmite uma visão panorâmica da cidade de Ponta Delgada, na qual o autor foca o Hotel Açoriano, o terrado da Mãe de Deus, as principais ruas e passeios públicos da cidade e ainda o costume do uso do capelo.

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agradavel, a da hospedaria chega a indispôr o animo do forasteiro que vae a S. Miguel, unica e exclusivamente em viagem de recreio. Pouco asseio nos quartos e na mesa, alimentação pouco nutritiva, cujo menú é por vezes copiado de algum rancho de soldados, em dia de melhoria, camas duras, emfim, uma falta de asseio e de conforto, exterior e interior, que põe a gente de mau humor. É justo dizer que os preços estão em relação com o serviço, o que não succede nas outras hospedarias do nosso paiz, as quaes, vergonha é confessar, mal sustentam o confronto do Azorian hotel (como elle pomposamente se intitula) e roubam ainda por cima, os hospedes.

Como compensação, se os donos da hospedaria nos não dão commodidades, mostram-nos bom modo, o que, no fim de tudo, sempre é alguma cousa para registrar com agrado…

A má impressão que as primeiras horas de Ponta Delgada me deram, devia pouco depois desapparecer com uma rapida visita a alguns jardins particulares e á Mãe de Deus.

Entre os mais bellos jardins que conheço na Europa occupam os de Ponta Delgada logar notavel. Os jardins dos srs. conde de Jacome, José do Canto e Antonio Borges, o primeiro no genero dos jardins inglezes, o segundo como jardim botanico propriamente dito e o ultimo pela phantasiosa imaginação com que foi delineado e plantado, e todos elles, pela exuberante vegetação que os continentaes desconhecem, e pela escolha dos mais bellos exemplares da flora de todas as regiões, dão-nos a nota alarmante do prazer que deslumbra e que nos domina incondicionalmente.

[…] Foi só depois de ter percorrido muito apressadamente, os magnificos jardins de Ponta Delgada, dos quaes decerto dei uma pallida idéa da sua belleza, a quem os não conhece, que me dirigi ao alto da collina, onde está situada a egreja da Mãe de Deus, por onde devia ter começado a minha course de orientação, em vista do esplendido panorama que se disfructa do terrado que circumda a egreja ou ermida, como aqui é classificada.

A Mãe de Deus não dá o seu nome unicamente á ermida da sua invocação. Sob esta designação é conhecida a collina em que assenta a ermida e parte da qual foi transformada em logradouro publico, depois de convenientemente aformoseada e ajardinada.

Esta transformação é commemorada em versos brancos em uma lapide que se encontra no muro direito da escadaria que conduz á ermida. […]

O terrado da Mãe de Deus domina toda a cidade, que é disposta em amphiteatro e cercada por collinas mais ou menos elevadas, e uma grande extensão da costa sul da ilha.

Virados para o mar e começando por leste, vê-se a grande distancia a ponta da Galera, especie de morro que é um contraforte da serra de Agua de Pau, que lhe fica por traz e corresponde á parte mais elevada da costa que avistamos […]; depois descobre-se a grande e importante villa da Lagôa […]; em seguida vem a enseada do areal do Rasto de Cão, onde amarra o cabo submarino e fica a estação da companhia concessionaria; logo após o ilheu de Rasto de Cão […]; do ilheu para cá, a cidade começa a desenrolar-se, primeiro como uma fita, que corresponde á casaria da estrada que vem de Alagôa e alargando-se mais adiante, desdobrando á nossa vista, todos os seus templos, jardins e edificios publicos e particulares, cerrando no bello fundo de luxuriante vegetação que emmoldura a cidade, um numero consideravel de estufas de ananazes que similham grandes estendaes de lençoes.

A oeste fica a doka ou porto de abrigo, o castello de S. Braz, onde está aquartellada a bateria de artilheria do commando do capitão Virgilio Soares de Albergaria […]; em seguida ao castello e transversalmente á costa, isto é, a norte, vem o hospital de S. Francisco, a egreja de S. José, a grande fabrica de alcool de Santa Clara […]; depois vem os bellos jardins dos srs. conde de Jacome e José do Canto, a avenida da Liberdade, aberta no local onde D. Pedro passou em revista os seus 7:500 bravos e ouviu em seguida a missa campal, sitio onde está um pequeno monumento levantado ao sr. Roberto Ivens, que é filho de S. Miguel, commemorando a sua exploração e travessia africana. Esta avenida foi ultimamente transformada em aviario, onde ha uma collecção de gallinhas e pombos já apreciavel, embora esteja em começo, á avenida succede-se outro estendal de estufas de ananazes, com as

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vidraças caiadas de branco; a nordeste a povoação suburbana de Fajã de Baixo […], seguindo-se-lhe depois a de Rasto de Cão […].

Uma vez orientados, graças ao bello panorama da Mãe de Deus, estamos habilitados a percorrer a cidade que, de resto, como quasi todas as que estão situadas á beira-mar, é composta de ruas mais ou menos paralellas á costa e de outras transversaes a estas. Uma das cousas que impressiona immediatamente é o escrupuloso, direi mesmo, meticuloso, aceio das frontarias das casas; parece que foram todas caiadas na vespera. […]

As ruas são calçadas a basalto, e algumas d’ellas teem passeios. As mais commerciaes estão situadas em volta da egreja matriz, que fica em frente do caes de desembarque. Algumas d’ellas estão arborisadas, predominando o olmeiro entre as essencias empregadas. A cidade tem dois passeios; um á beira mar, formosissimo, o aterro, ou passeio Anthero do Quental, denominado assim em homenagem ao grande pensador e primoroso poeta, orgulho dos michaelenses e gloria das lettras patrias.

O outro passeio é o Campo de S. Francisco, cercado de ruas pelos quatro lados; é arborisado e ajardinado e tem um coreto ao centro, rodeado por um lago. Ás quintas e domingos a musica de caçadores 11, que, diga-se de passagem, é muito melhor do que algumas bandas da capital, executa concertos que são concorridissimos; o high-life, como em Lisboa na Avenida, senta-se a leste nos bancos do passeio e em cadeiras de aluguer, notando se aqui que estas são tambem tomadas por gente do povo quando os seus grupos não cabem nos bancos do jardim. Foi n’este local, ao norte, junto do muro do convento da Esperança que Anthero do Quental ha pouco mais de dois annos disparou contra si duas balas de rewolver, morrendo momentos depois.

A oeste desta bella praça fica o hospital de S. Francisco, com a monumental fachada do seu corpo central, executada em calcareo de Lisboa; ao lado a egreja de S. José e a de Nossa Senhora das Dôres; ao norte, o convento da Esperança, dos outros lados da praça, edificios particulares de construcção antiga.

As ruas, cujo pavimento está bastante deteriorado pelos trabalhos da canalisação de agua e gaz, apresentam em geral pouco movimento nos dias de semana, exceptuando as da parte maritima e commercial. A cidade possue muitas carruagens particulares e não lhe falta trens de aluguer, que em geral são bons. O typo do carro de aluguer é o landeau, como nas cidades allemãs; ha tambem victorias e charrelles de varios modelos. Estão n’isso os michaelenses relativamente melhor do que em Lisboa onde, o caleche é ainda fabricado em larga escala, ao passo que os landaus de aluguer são raros.

Uma das cousas que tambem impressiona quem entra pela primeira vez em Ponta Delgada, é o grande numero de araucarias de grande porte, espalhadas pela cidade, nos passeios, em frente de egrejas, nos cemiterios, pelas encostas das colinas, não falando nas dos jardins. A araucaria está para Ponta Delgada, como os obeliscos para Roma.

De tudo, porém, o que mais chama a attenção do continental é o capello, que tanto póde ter sido inventado por um marido ciumento como por uma mulher de Cesar, fim de seculo, que procure afastar suspeitas… O capello faz parte de uma desgraciosa toilette feminina insulana, um tanto decaida de moda e que hoje é quasi que unicamente usada nas classes media e inferior da sociedade. Esse trajo consiste n’um capote, como os que antigamente eram usados pelas continentaes, mas de côr azul ferrete, ao qual está fixado, como a um gabão, um capuz ou capello que occulta os rostos… que não queiram deixar-se ver.

O capello é uma especie de sacco deitado, da mesma fazenda do capote, fixado sempre em posição horisontal por meio de uma barba de baleia, que está cozida á costura superior e que vem até ao cabeção, contornando a curva do collo de cysne, na sua posição normal, avançando uns vinte centimetros de cada lado á frente da cara, que só de frente póde, portanto, ser apercebida, se a dona o permite… Não se imagina como o capello causa arrelias! Uma vez são uns lindos olhos que

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rapidamente fulguram ao cruzarmos um passeio ou dobrando uma esquina, olhos que dizem muito, sem duvida, mas de que o maldito capello occulta o precioso estojo que os devia ostentar em todo o seu esplendor. Outra vez é uma decepção que nos prepara. E que decepções, Santo Deus, o capello nos reserva, porque de certo já o suppozeram, são poucos os rostos formosos que se submettem ao capello…

M. Emídio da Silva – S. Miguel em 1893: coisas e pessoas, 1893, pp. 4-10.

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PORTALEGRE

A emergência das Festas da Primavera na cidade de Portalegre

As memórias centradas nas figuras locais

As actividades culturais e os elementos urbanísticos nas notas de viagem

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A emergência das Festas da Primavera na cidade de Portalegre

O Gremio Planetario viu coroados de um bom exito as festas da Primavera que acabou de iniciar nesta cidade. A feira, como sempre, foi fraca, mas todos os numeros anunciados no programa das festas, tiveram farta concorrencia, obtendo o Gremio receita suficiente para a conclusão da sua grande obra, o Monumento, – unico objectivo das festas neste ano. A Exposição na Escola de Artes e Oficios, abrilhantada pela excelente Banda do 22, teve uma extraordinaria concorrencia de visitantes, embora nela se notasse a ausencia de muitos expositores que poderiam ter dado com os seus productos maior realce á exposição, cujo aspecto geral, era deficientissimo, embora cuidada e artisticamente disposta. Ali apreciamos quadros a oleo do sr. Abel Santos, director da Escola, quadros cheios de verdade, quer na luz do crepusculo ou de vivissimo sol, quadros cheios de vida, copias fieis de trechos dos nossos campos, trechos da vila de Castelo de Vide, Niza, etc., em que á realidade do assunto ligou com mão de mestre a realidade dos tons.

A Firma Robinson Bros, fez-se tambem representar de uma forma brilhante. Alem da diversidade de rolha de cortiça expôz grande variedade de trabalho, em corticite, manufacturados na sua fabrica e que constitue já hoje um dos grandes elementos de exportação desta cidade. As tapessarias de corticite, revestimentos para salas e quartos, que são um primôr de acabamento, foram bastante admirados bem como os demais artefactos feitos em cortiça e corticite. A fabrica de lanificios do sr. Meca, levou o seu altruismo a oferecer ao Gremio as fazendas que expôz e cujo valor era superior a 1.000$. A tipografia Casaca teve a feliz ideia de expôr uma grande e variada colecção de impressos, a duas, trez e cinco côres, destacando-se pela sua nitidez, um grande jornal «A Cidade», impresso em setim branco (numero especial dedicado a Italia Vitaliani quando da sua estreia no Teatro Portalegrense) e que constitue um trabalho de alto valor tipográfico. O mozaico da Fabrica de Luiz Barradas, tambem honra muito a industria portalegrense. A colecção de mozaicos expostos eram dum efeito surpreendente e são de um requintado bom gosto denotando-o o desenvolvimento e producção enorme que a fabrica tem. Das oficinas de marcenaria sómente as do sr. Paiva e Caetano Serra se fizeram representar com artisticos moveis que foram muito admirados. O sr. Jacinto Serrão, tambem demonstrou o seu genio de artista nos pequenos mas dificeis e aborrecidos trabalhos de recorte á serra mecânica, oferecendo parte do produto da venda daqueles objectos para o Monumento. Predominavam os bordados a branco e matiz e os trabalhos de serralharia e carpintaria da Escola, e que bastante contribuiram para animar a exposição pois que, a ter-se efectuado noutro local, teria redundado um completo fiasco. Salvou-a, porém, a Escola de Artes e Oficios.

A Batalha de Flôres, animaram-na dois ou tres carros, apenas. Os restantes nem lhe deviam ter autorisado o ingresso, para não termos a impressão, que tivémos, de estar assistindo ao desfilar de

Após a iniciativa da organização, em Maio de 1920, das Festas da Cidade de Portalegre, no decurso das quais se comemorou o lançamento da primeira pedra do Monumento aos Mortos da Grande Guerra, o Grémio Planetário foi responsável pela realização de um novo evento celebrado anualmente na cidade – as Festas da Primavera. Contando com uma primeira edição decorrida nos dias 5 e 6 de Junho de 1921 e cujo programa é descrito no artigo que aqui se transcreve, com este evento pretendeu-se promover a cidade e facilitar a angariação dos fundos necessários à edificação do monumento consagrado às vítimas da I Guerra Mundial.

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carros em cortejo funebre. Os concertos musicais das Bandas dos Bombeiros e Euterpe, resultaram magnificos. A Corrida de Caça, foi ótima. […] Desafio de Foot-Ball, entusiástico. Os grupos «Portalegre» e «Bombeiros», deram provas de

«teams» disciplinados e bem treinados. Os Bombeiros demonstraram mais uma vez a sua grande resistencia. Houve empate.

O sarau no Portalegrense, foi concorridissimo e decorreu na melhor ordem. A grande orquestra de 30 figuras, sob a regencia do sub-chefe do 22, sr. Bahia, tocou magistralmente varios trechos de opera. Da representação do episodio em verso, Ao fim do dia, interpretado por Guapo e Ribeiro, agradou-nos não só o tema, que é explendido, mas a dicção. O quinteto que tocou no palco, teve execução primorosa, pelo que foi muito aplaudido.

Uma partida de Quino. É a peça em verso, bonita, leve, mas de velho e repisadissimo têma. Desempenho bom da parte dos tres interpretes D. Emilia, Fernandes e Oliveira, prejudicando-os, talvez, o acentuarem demasiadamente a rima.

Nos cantos regionais não foram muito felizes. Friêsa absoluta… absoluta monotonia e alguma desafinação. Valeu-nos o fado cantado pela Ex.ma Sr.ª D. Inêz Castelo, acompanhada ao piano por sua mana D. Maria Castelo. Apresentação distinta e voz suave e harmoniosa, recebendo calorosos aplausos. Foi um numero, estamos certos, que faria morder de inveja alguma estrela cadente… das altas regiões etereas onde quasi sempre se escondem e morrem sem luz nem brilho… Este numero foi a prova bem frisante de quanto vale a boa vontade e a demonstração mais evidente como sem auxilio de pretendidos sóes brilham astros mais pequenos… Nos aplausos da platea não houve equivocos. O sr. José Castelo, com a prata de casa deu a nota mais brilhante do Sarau.

“Festas da Primavera”. A Rabeca. N.º 280, 1921, pp. 1-2.

Bravo, bravo, á comissão das Festas da Primavera. Dou-vos o meu coração. Se fosse rico, quizera dar-vos até um milhão.

Mas o chá irei tomar N’essas barracas catitas. Ou então, p’ra refrescar, bebo duas groselhitas e depois vou passear.

Vou ouvir o 22 Com mistura 35. 57 por 2 dá 28 vírgula 5, e bate certo. Depois?

Mas que grande confusão! E se vem a trovoada! Pede chuva a ’xposição! Pedirá chuva a parada? É o que se verá então.

Extraído da secção “Gazetilha” do jornal portalegrense A Rabeca e assinado sob o pseudónimo de “Zig-Zag”, este poema alude às Festas da Primavera, celebradas na cidade de Portalegre em 1922. Decorrendo entre 3 e 5 de Junho, além dos eventos realizados no seu ano de estreia, o programa das festas de 1922 incluiu ainda um concurso de montras e uma festa escolar no Liceu Mouzinho da Silveira. Mantendo-se sob a organização da mesma associação, agora designada Grémio Transtagano, estes festejos foram interrompidos após 1924. Ressurgindo na década seguinte, a cidade de Portalegre assistiu ainda às Festas da Primavera nos anos de 1935, 1936 e 1938, embora nessa época estas fossem impulsionadas por outros organismos locais.

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Se o senhor Aguas batisou estas festas grandiosas que a Dona Amaia encharcou, serão as festas chuvosas! Já cá não está quem falou!

Zig-Zag – “Gazetilha”. A Rabeca. N.º 335, 1922, p. 2.

As memórias centradas nas figuras locais

Para a maioria da gente que hoje habita a garrida Portalegre, Frederico Porto é um ignorado, um individuo que vivia em Lisboa e que, de longe em longe, quando as suas economias de austéro e honesto grilheta do trabalho lh’o permitiam, vinha de abalada até aqui, passar o seu mez de descanço, para reviver tempos passados, encontrar velhas e leais amizades, percorrer sitios saudosamente recordados, frequentar a farmácia provinciana, contando anedótas, evocando figuras desaparecidas, factos esquecidos, acontecimentos de outrora!

E com que graça o fazia, com que chiste os descrevia, com que alegria e verve os contava. Era já idoso, um pouco alquebrado, apoiando-se desde novo na sua típica bengala de pau preto, pequenina como ele. Todas as tardes nos aparecia para o cavaco ameno, saudando-nos com um dito espirituoso e mordaz, a saltar da boca ou uma anedóta nova e cheia de graça, engatilhada, fazendo-nos assim passar uns momentos alegres e despreocupados.

Acentuei, umas linhas atraz, que Frederico Porto era um Homem! E é consciente e convictamente que o escrevi e afirmo.

Desde criança ainda, que me acostumei a vê-lo na sua loja de honesto e habil comerciante, ali, na Rua Direita, vendendo, – entre mercearias, vidros, vinhos, novidades e brinquedos – os jogos educativos, chegados de paizes extranhos e que ao tempo eram os meus encantos e a alegria não menor ainda de meu velho avô, que lá os ia adquírir para meu divertimento.

Frederico Porto não era o vendedor do brinquedo vulgar; negociava com o brinquedo que instruia, que servia para ensinar, que levemente nos educava, divertindo-nos.

Algum tempo depois, já estudante do liceu citadino, era lá que um grupo de rapazes, que ao tempo o frequentava, passávamos umas horas de folga, conversando, fumando os primeiros cigarros, ouvindo discretear os frequentadores assiduos da loja, assistindo pasmados a discussões acaloradas, esperando, a todo o momento, vê-los engalfinharem-se, mas notando, espantados, que no dia seguinte novamente discutiam ou entravam estendendo, amigavel e bondosamente, a mão ao antagonista da véspera.

E que troupe brilhante ali se encontrava! Era Angelo Ferreira da Silva, António José Lourinho, Antonio Maria de Matos, Joaquim

Da autoria do escritor portalegrense Luís Alves de Sousa Gomes, esta memória, publicada dias após a morte de Frederico Porto, recorda alguns aspectos ligados à vida desse comerciante que, quer a partir da sua loja situada na Rua Direita quer através da sua actividade enquanto amador dramático e propagandista republicado, foi uma das figuras que maior popularidade obteve em Portalegre entre o final do século XIX e o início do seguinte. Focando a relevância que a loja de Frederico Porto assumiu na vida dessa cidade, o autor destaca a sua função como lugar de sociabilidade, no qual reunia o grupo conhecido como Ripert Clube. Salienta ainda a sua ligação à emergência do Clube Inferno, assim como do jornal O Comércio do Alentejo e do primeiro triângulo maçónico de Portalegre.

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Fernandes, o Dias, engenheiro, para só falar dos que a Morte nos roubou, todos artistas, vivos, liberais, com multiplas aptidões e todos marcando um caracter e uma inteligencia.

Foi ali, na velha Rua Direita e na loja que é hoje do Amadeu Ascensão, que esse grupo brilhante se juntava e onde nasceu o histórico «Riper-Club», d’onde saiu o não menos célebre «Inferno» e onde, a par do amigo, cujo passamento hoje marco em letra de fôrma, pontificava o nervosismo do Joaquim Fernandes, a gaguez marcante do Engenheiro Dias, a placidez de Antonio de Matos, o lápis fecundo e desperdiçado do Eleutério Alvarrão, a leitura artistica do José Castelo e toda a vida intelectual e teatral, boémia dourada de outros tempos em que os homens eram melhores e as amizades mais fortes e sincéras.

E Frederico Porto, uma inteligencia, sem estudos, vindo do escritório da fábrica já desaparecida de Costa & Irmão, ali estava atendendo os freguezes, aturando os amigos, escrevendo artigos para as gazetas e preparando polémicas jornalisticas, proficiente e argutamente feitas.

Habil guarda-livros, amador dramático de mérito, jornalista de merecimento, era um dos mentores d’esse núcleo de inteligencias liberais, que ao tempo ali se reunia e que marcou.

Ali nasceu o primeiro triangulo maçónico de Portalegre, ali foi idealisado, feito, escrito, o «Comércio do Alentejo», ali se reunia o grupo mais completo de amadores dramáticos que os velhos da minha terra natal, recordam ainda com saudade.

Liberal, foi naquela loja que os núcleos de republicanos locais do 31 de Janeiro, esperaram ansiosamente a eclosão da vencida revolta. Foi ali que fremiram de esperança e choraram de dôr!

Foi ali, detraz do balcão d’aquela lojinha provinciana, que eu via todos os dias o homem que, no tablado do Portalegrense, me fazia vibrar de entusiasmo nas inolvidaveis noites de bom teatro; era ali que eu o vi, inumeras vezes, escrevendo os seus artigos; foi ali que eu recebi as primeiras luses de liberdade e entrei, pela convicção, para as hostes da República e do Livre Pensamento.

Luís Gomes – “Frederico Porto”. A Rabeca. N.º 604, 5 Fev. 1928, p. 2.

Guardo uma sua carta em que me dizia, numa caligrafia cuidada e miudinha: «Espere-me você ámanhã que lhe vou fazer uma visita. Quero abraçá-lo e conhecer a terra do Guílherme de Azevedo.» Era assim que José Duro se exprimia pouco tempo antes de morrer.

Com que alvoroço o fui esperar ali á estação! Conheci-o em Portalegre, sua terra natal, moço adolescente,

olhar insinuante e vivo, aí por março de 1896. Fui-lhe apresentado por um meu chorado amigo, o Antonio de Matos, que ha meses se sumiu no barato da eternidade.

Eu estava na bela cidade alentejana ha poucos dias. Entristecia-me o comprimento polar das suas noites a que o isocronismo da vida e a má lingua da loja do Figaro davam a nota duma monotonia desesperadora. Achava-me ali como uma ave a quem cortassem a liberdade do vôo.

A minha aproximação de José Duro trouxe-me uma nova alma e tornei-me um outro muito diferente. Talvez por afinidade de temperamentos, eramos dois amigos para a vida e para a morte… Irmanavamos-nos de fórma que pareciamos fundidos num mesmo cadinhol. Sempre que o encontrava ficava possuido dum estranho encantamento pelo poder sugestivo da sua linguagem, em que transparecia a doce melancolia portuguesa, tão acentuada nos poetas desde

Homenageando a memória de José Duro, poeta decadentista natural de Portalegre, esta memória, publicada pelo seu amigo José Osório em 1922, alude a alguns traços da vida e características desse poeta com o qual conviveu quando ambos residiam na cidade de Portalegre. Evidenciando o impacto que a tuberculose teve na vida de José Duro, até o vitimar em 1899, o autor realça também a influência que essa doença exerceu na sua obra lírica, de que é exemplo o poema inédito A Morte, escrito em 1895.

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Bernardim Ribeiro até Soares de Passos. José Duro era um desgraçado tuberculoso, que sentia a vida a fugir-lhe dia a dia e observava pelo

horoscopo da sua grande desgraça o grande charco do mundo, onde tanta mediocridade se ostenta e triunfa impante.

O seus mais intimos pensamentos comunicavamos, com verdadeiro regalo espiritual, pensamentos que eram um sudario negro da sua vida sempre tocada pela aza sinistra da Fatalidade!

Todas as noite passeavamos horas seguidas no largo da Sé e quando o bronze badalava a meia noite ainda nós andavamos na conversa. Para o seu espirito morbido tinha particular predilecção uma noite sinistramente negra, ameaçadora de tormentas, com um destes céus carrancudos que dão o pressentimento de desgraças!

As nossas mutuas comunicações espirituais eram quasi sempre sobre assuntos literarios, apreciações de escolas, citações de obras e autores e raramente abordavamos a questões sociais e politicas. Entretanto, ele, como eu, alimentava com fervor os ideais democraticos e mal pensava o pobre José Duro – um verdadeiro entusiasta por José Falcão, essa alma tão nobre de patriota como outra não conhecerei jámais – que já em 1910 haviam de triunfar as instituições republicanas na terra portuguesa, essas instituições que ele sonhava tão ardentemente para ressurgimento da sua patria abatida.

Quando foi da revolta do Porto, em 31 de janeiro de 1891, assitiu com desgosto ao seu malogro, e, verdadeiramente comovido, dizia-me este elevado pensamento:

«Os Luziadas são a historia do passado; 31 de janeiro a historia do futuro, que o povo ha de decorar quando souber lêr».

Efectivamente chegou esse momento, que o desgraçado poeta não poude conhecer!

A leitura era a particular pedilecção de José Duro e com ela procurava esquecer o mal que minava fundo no seu organismo. Nesse tempo tambem eu tinha, como ainda hoje, grande dedicação pelas letras que são a melhor distracção desde mundo; a questão é tomar-lhe o gosto.

Fazia as minhas gazetinhas no Campeão de Portalegre, de que era redactor o meu muito amigo Eleuterio Alvarrão, um excelente rapaz possuidor duma bela inteligencia. José Duro arquitectava então o seu livro de versos, para o qual já tinha varias composições, que me leu, e ao qual pensava dar o titulo Triste.

De todos os seus sonetos, dum me recordo, feito pelo poeta quando uma crise da sua doença o obrigou a recolher ao leito, a que deu o titulo de A Morte. Aqui o deixo registado, por não o vêr enfeixado nas poesias publicadas:

Sentára-se a meu lado uma figura – Feições de bronze num sorriso adusto – Erguendo para mim com certo custo A mão pesada e fria mas segura…

E esse olhar, como o olhar que conjetura Pela mudez da noite o crime injusto, Fitava-me indeciso como um susto Nos tragicos esgares da loucura…

E eu perguntei-lhe – quem és tu, visão. Estrela má talvez da minha sorte Quero dizer aos homens o teu nome?

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«Gemea da treva, irmã da Escuridão, Vago desde o principio… sou a Morte… Mas não te quero ainda e abandonou-me!

«Naquele dia estive prestes a morrer», dizia-me ele. Foi em 27 de outubro de 1895 que assim o escreveu!

José Osório – “O poeta José Duro”. Diário de Lisboa. N.º 439, 1922, p. 3.

As actividades culturais e os elementos urbanísticos nas notas de viagem

Era quasi noute e ganhámos muito com isso, porque havia luar, e quando chegámos á altura de Portalegre a lua erguia-se já no horisonte illuminando com a sua branca luz a cidade toda e dando-lhe um aspecto verdadeiramente phantastico.

Chegámos ao hotel perto das noves horas. Uma commissão do monte-pio operario portalegrense

esperava-nos á porta amavelmente, para nos acompanhar ao theatro, onde n’essa noite havia um concerto dado em nossa honra e promovido gentilmente pela direcção do monte-pio.

E seguimos logo para o theatro. A elegante sala do theatro Portalegrense estava

ornamentada com simplicidade mas com muito gosto e o sarau musical, litterario e dramatico, foi excellente, muito melhor do que se podia esperar, d’uma terra de provincia onde não se encontram elementos abundantes para festas d’este genero; muito melhor do que alguns saraus a que temos assistido em Lisboa. O programma fôra intellegentemente organisado; – o que deve ser um programa d’estas festas, pequeno, variado e bem distribuido.

Começou por um deliciosa poesia do sr. Costa Santos, um rapaz modestissimo que tivemos o prazer de conhecer e que é um poeta de raça.

O sr. Costa Santos exerce em Portalegre o logar de delegado do ministerio publico e nos ocios dos seus trabalhos officiaes faz versos e versos magnificos, como os do seu poemeto D. Diniz, como os do livro que tem agora no prélo e de que o Correio da Manhã tem dado algumas amostras, como os que abriram esse sarau litterario e que Caldeira Rebollo recitou excellentemente, com um grande colorido, que lhes fez valer todas as bellezas, com a arte primorosa e disttincta d’um magnifico recitador.

Aos versos de Costa Santos seguiu-se a Estudantina, organisada entre artistas e amadores de Portalegre pelo sr. Gloria Reis, o distincto mestre da banda de infanteria 22 e que na cidade é professor de musica e de canto, e professor dos melhores. A estudantina executou tres numeros – um ordinario hespanhol, a Jota portugueza do sr. Gloria Reis, e o Burro do sr. Alcaide, sendo calorosamente applaudida.

A segunda parte do sarau, constou d’uma fantasia do Carnaval de Veneza, executada brilhantemente ao piano pela sr.ª D. Emilia Costa, da scena comica José do Capote, representada com graça por um distincto curioso dramatico, muito conhecido e estimado em Portalegre, o sr. Mendes

Após visitar a cidade de Portalegre, em Junho de 1892, na companhia de João Caldeira Rebolo, o escritor e dramaturgo Gervásio Lobato publicou, na revista O Ocidente, uma extensa narrativa relatando as suas impressões acerca da “Sintra do Alentejo”. Dirigindo-se a Portalegre a convite do Montepio Operário e Artístico local, para assistir à representação da sua peça O Comissário de Polícia, desempenhada por um grupo de amadores no Teatro Portalegrense, a par do resultado obtido por esse evento, o autor dá-nos ainda conta da forma como decorreu um sarau músico-literário que o Montepio organizou em sua homenagem, na mesma sala de espectáculos daquela cidade.

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Gil, e d’um treceto de piano, flauta e violino, Flôr dos Alpes, composição felicissima do sr. Gloria Reis e excellentemente executada pela sr.ª D. Emilia Costa, e pelos srs. Ferreira e Prat, o illustre professor de desenho da escola industrial e que não é só um professor habilissimo, e um pintor distincto, é tambem um rabequista de primeira ordem.

A terceira parte começou por uma romanza Viver senzo di te, cantada com muito sentimento artistico pela sr.ª D. Maria Amalia Perdigão Rosa, esposa gentilissima do sr. José Maria Rosa, e que possue uma voz de pequeno volume mas de bello timbre e muito afinada.

Seguiu-se a Ave Maria de Gounod, executada no violino pelo sr. Prat, que mais uma vez evidenciou as suas bellas aptidões artisticas e fechou a brilhante festa a farça O Hollandez, desempenhada por alguns dos mais distinctos curiosos dramaticos de Portalegre, farça antiga, já um pouco fóra do gosto do publico mas que ainda assim arrancou algumas gargalhadas.

E assim terminou o sarau, que me deixou encantado pela sua primorosa execução e penhoradissmo pela gentilissima amabilidade com que me foi dedicado, sarau que levou ao teatro de Portalegre tudo o que ha de mais distincto e elegante na formosa cidade alemtejana.

No dia immediato passei o dia fazendo as minhas visitas de despedida a todas as pessoas que na minha curta estada em Portalegre tanto me tinha obsequiado e a quem tantas provas de estima e de consideração fiquei devendo. […]

Á noite era a primeira representação do Commisario de Policia pelos distinctos curiosos de Portalegre, e essa primeira representação deixou-me perfeitamente surprehendido e maravilhado.

É claro que mentiria se dissesse que o desempenho que a peça teve fora superior ou egual ao que tivera em Lisboa pelos primeiros artistas do Gymnasio, que são em Portugal os primeiros no seu genero, mas a verdade é que a execução do Commisario de Policia, muito correcta por parte de todos, foi distinctissima por parte de alguns que concorreram brilhantemente para o grande exito que a peça alcançou e que conquistaram com muita justiça os applausos enthusiasticos com que o publico coroou o seu trabalho.

Não queremos fazer destincções, mas seria d’uma flagrante injustiça não destacar dos melhores interpretes do Commisario o que fez o papel de Conselheiro, o sr. Manuel Torres, que é o curioso dramatico mais distincto que eu tenho encontrado na minha já longa perigrinaçao por theatros particulares.

Manuel Torres é um rapaz muito novo ainda, empregado nos telegraphos mas a quem uma vocação irresistivel impelle para a scena.

Em Portalagre e em Elvas tem representado com grande succeso papeis comicos importantes, como o rei da Mascotte, o rei Bobeche do Barba Azul, etc.

Do Conselheiro do Commisario de Policia, que elle nunca vira representar em Lisboa, fez uma bella creação comica, cheia de verve, de bom humor, e ou eu me engano muito ou está ali um actor comico de primeira ordem, um actor no genero do pobre e grande Ribeiro, um actor que ainda hade occupar lugar brilhante no nosso theatro, e espero muito breve vêr se me engano ou não.

O papel de Commisario foi feito pelo sr. engenheiro Dias, um homem muito intelligente muito illustrado, director de Obras Publicas do Districto e que tem pelo theatro uma verdadeira paixão.

O sr. Dias porém tem um defeito de pronuncia que ao principio impressiona desagradavelmente. Confesso que quando o vi pela primeira vez no ensaio me cahiu a alma aos pés. – Está enganado, disseram-se, este homem tem muita graça e agrada muito ao publico que já está

habituado ao seu defeito. E d’ali a nada vi que era assim, porque eu proprio me costumara á sua maneira de fallar e

começava a gostar d’elle e a achar-lhe graça e imprevisto. No Commisario houve mais dois papeis de homem feitos excellentemente, o do caseiro Bernardo, e

o do Melchior, o que não quer dizer que fossem menos correctos os outros.

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Das mulheres, actrizes de profissão, porque apesar de não haver nem em Portalegre nem em Elvas nenhuma companhia artistica, o amor pelo theatro é tanto e as recitas repetem se tanto a miudo que ha actrizes que vivem unicamente do que os curiosos lhes pagam para essas recitas, havia uma que tinha realmente geito, a que fazia o papel em Lisboa desempenhado pela ilustre actriz Barbara.

As outras não desmancharam. A peça teve um acolhimento enthusiastico que me encheu de jubilo: o publico de Portalegre, os

artistas e os jornalistas foram para mim d’uma gentileza enorme, fazendo-me uma verdadeira festa d’essa representação do Commissario e acompanhando-me no fim do espectaculo ao hotel no meio de ovações que só se explicam pela extrema amabilidade e pelo espirito hospitaleiro de todos aquelles bons amigos que me deixaram profundamente captivado com as suas distincções e que fizeram com que na minha rapida passagem por Portalegre nunca mais se apague da minha memoria, e tome lugar entre as mais gratas e saudosas recordações da minha vida.

Gervásio Lobato – “Oito dias no Alentejo: notas de viagem”. O Ocidente: revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro. N.º 490-91, 1892, pp. 174 e 179.

Portalegre! Portalegre! – ouvi eu clamar ao longo do comboio pelo seu guarda-freio, na gare da ridente cidade alemtejana. Peguei na minha pequena mala e pertences de pintura, e eis-me saindo da estação do caminho de ferro, isto já proximo do sol posto, em demanda da deligencia do correio, que me transportaria, mais uma vez, á alcandorada povoação transtagana, onde ia tomar parte no jury de exames da sua excelente Escola Industrial.

Emquanto me acomodava na carripana puchada por robustas muares regionaes, lembrava-me, sorrindo, da minha confusão, a primeira vez que ali fôra ha anos.

Eu viera entretido a ver prepassar, durante a marcha do comboio, a paisagem mais ou menos identica de longinquos

horisontes do imenso Alemtejo; e chegado á estação de Portalegre, procurara, com a vista, a silhueta da celebrada Cintra alemtejana; mas nada, só e sempre os extensos e ondulados campos continuavam a dilatar-se ante os meus olhos curiosos.

Perguntei, ali, a alguem, onde ficava a cidade, e mostraram-me uma distanciada colina: – é ali, disseram-me. Eu nada via da casaria, pelo que inquiri, então, a que distancia ficava! A perto de doze kilometros – foi a resposta; e acrescentaram: – á hora do comboio vem o carro da carreira para os passageiros.

[…] No dia seguinte, depois de ter repousado no provinciano hotel, aliás inferior ao valor da cidade, eis-me a deambular pelas ruas e praças de Portalegre, sendo a principal e mais alta aquela exactamente aonde eu chegara na vespera, pois d’ali para quasi todos os lados as calçadas «degringolavam» por ali abaixo.

[…] Assim apreciei a elevada Sé portalegrense no seu fácies barôco-jesuita, século XVII, com as suas duas torres symétricas de cada lado; o fronteiro bem arquitectado palacete brazonado, actual séde do Gremio ou assembléa do elemento preponderante da cidade; agora, mais afastado, deambulava pela alomgada praça lageada do mercado citadino, observando as suas vendedeiras com os seus caracteristicos trajes campezinos, emquanto a um lado, o longitudinal, eu seguia com a vista o extenso edificio do Governo Civil no seu harmonico estylo pombalino.

Nesta narrativa de viagem extraída da Revista de Turismo, o pintor João Ribeiro Cristino da Silva transmite-nos as impressões que recolheu da cidade de Portalegre na segunda década do século XX, detendo-se na descrição de algumas características das suas edificações de maior vulto, entre as quais destaca a Sé de Portalegre e as ruínas da cerca-muralhada, assim como os edifícios do Governo Civil e do quartel de Infantaria.

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Interessante era observar agora n’outro ponto os velhos arcos, ou postigos, da desmantelada cêrca-muralhada da cidade, d’onde em onde se ergue ainda algumas arruinadas quadrélas emergindo da casaria, esta com o seu branco de cal faiscante sob os raios solares […]

Agora na parte baixa – pois Portalegre tambem tem Baixa – a vista desafoga-se, n’esse outro horisonte que é muito alegre e interessante pelo aspecto de varios edificios, alguns de belo e acidentado porte, como seja o antigo seminario, hoje quartel de infantaria; pelo frondoso arvoredo que a enfeita e tendo por fim o remate de um excelente jardim publico, muito bem cuidado e sombreado que é um magnifico refugio dos ardores estivaes.

[…] De varios pontos da cidade, vê-se relativamente proximo erguer-se um agreste e acidentado cêrro, conhecido pelo Calvario, o qual parece avançar ameaçador em direcção a Portalegre, e que afinal ostenta no ponto mais alto da sua pedraria um singelo cruzeiro, que lhe dá o nome.

O turista, que a esta altura já deve estar moído das pernas – porque a pitoresca cidade não é nada pequena – tem ainda que ir admirar mais um ponto de vista, que não deve deixar de ir ver, e é ele uma capelinha chamada de Sant’Ana, a qual fica n’um alto, a cavaleiro da cidade, de forma que toda a Portalegre se observa d’ali no seu pitoresco conjunto, e que parece estar o observador vendo-a de aeroplano […].

Ribeiro Cristino – “Uma visita a Portalegre”. Revista de Turismo. N.º 139, 1924, pp. 506-9.

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PORTO

As comemorações centenárias na cidade Invicta

O Porto na produção ficcional e memorialística dos literatos locais

A sociedade portuense nas narrativas de viagem

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As comemorações centenárias na cidade Invicta

Foi com um brilhantismo desusado que a cidade do Porto solemnisou o centenario de um dos seus filhos mais illustres, o infante D. Henrique, filho do rei D. João I.

Essa solemnisação revestia um duplo caracter: com ella prestava se uma homenagem de admiração ao grande impulsionador das nossas primeiras descobertas maritimas e honrava-se ao mesmo tempo a memoria de um principe que viu a luz dentro das muralhas do velho burgo portuense.

Assim a cidade preparou as suas melhores galas para dar a uma commemoração tão sympathica, o lusimento de que era digna.

Viera de longe a ideia da solemnisação d’este centenario, mas extincta a corporação em que ella nascera, (a Sociedade de Instrucção do Porto), a camara municipal tomára a iniciativa de a levar a effeito, organisando para esse fim uma commissão executiva que ficou assim composta:

Presidente, conselheiro Antonio Ribeiro da Costa e Almeida, presidente da camara municipal; secretario, padre Francisco José Patricio; vogaes, conde de Samodães, Augusto Luzo da Silva, Bento Carqueja, Eduardo Sequeira, Henrique Kendall e Fernando Maia.

Installada esta commissão, encetou ella logo os seus trabalhos, ficando resolvido que a commemoração do centenario fosse realisada, nas suas linhas geraes, do modo seguinte:

Organisação de uma exposição insular e colonial no Palacio de Crystal.

Organisação de um cortejo civico. Organisação de um cortejo fluvial, em que figurasse uma

imitação das antigas caravellas da epocha do Infante. Uma sessão solemne no edificio da Bibliotheca Publica, em

honra do Infante D. Henrique. Collocação de uma lapide commemorativa na fachada da

casa existente no local onde existiram os paços onde nasceu o Infante.

Um espectaculo de gala no theatro de S. João. Festejos e illuminações em varias ruas e praças da cidade,

durante tres dias. Concurso para a apresentação de uma memoria ácerca da

Dando conta do evento festivo de maior significado e amplitude que teve lugar na cidade do Porto no final do século XIX, esta narrativa constitui um relato breve das linhas gerais em que se desenvolveu o programa das comemorações do 5º Centenário do Infante D. Henrique. Iniciado a 1 de Março de 1894 com a recepção da família real e tendo como ponto alto o cortejo do dia 3, esse programa integrou ainda uma exposição realizada no Palácio de Cristal, um préstito fluvial e várias sessões solenes que tiveram lugar no edifício da Bolsa, na Biblioteca Pública, no Grémio Serpa Pinto e na associação local dos Bombeiros Voluntários. Assumido como um acontecimento de carácter instrutivo e patriótico, essas comemorações integraram-se num movimento iniciado pela Sociedade de Instrução do Porto, que, desde 1882, desenvolveu os primeiros trabalhos para obter os fundos necessários para edificar um monumento ao Infante D. Henrique na cidade Invicta e para que a mesma obtivesse preferência na celebração desse centenário. Dissolvidas as várias comissões que ao longo do tempo se haviam organizado no âmbito da Sociedade de Instrução do Porto e extinta esta associação em 1889, a organização do 5º centenário henriquino foi assumida pela Câmara Municipal do Porto que, em 1893, nomeou uma comissão constituída por António Ribeiro da Costa e Almeida, Augusto Luso, Francisco José Patrício, conde de Samodães, Bento Carqueja, Eduardo Sequeira, Henrique Kendall e Fernando Maia.

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vida do infante. Erecção de um monumento á memoria do mesmo Infante na praça fronteira ao edificio da Bolsa,

collocando-se a primeira pedra para elle em um dos dias dos festejos. […] Planeada por esta fórma a celebração do centenario e convidada a familia real para assistir a

ella, os festejos e solemnidades publicas effectuaram-se do modo como vamos deixar rapidamente consignado.

El-rei D. Carlos, a rainha D. Amelia, o principe real D. Luiz e o infante D. Manuel, acompanhados dos srs. conselheiro Hintze Ribeiro, presidente do conselho de ministros, João Franco Castello Branco, ministro do reino, Carlos Lobo de Avila, ministro das obras publicas e Neves Ferreira, ministro da marinha, e pessoas da comitiva de SS. MM. e AA., deram entrada no Porto, na tarde de quinta feira 1 de março, sendo recebidos com as demonstrações de respeito e sympathias costumadas.

No dia seguinte houve no paço da Torre da Marca, recepção, e terminada ella realisou-se no Palacio de Crystal a inauguração da exposição insular e colonial.

[…] No dia 3 teve lugar o cortejo civico. A cidade apresentava um aspecto brilhantissimo de festa. As ruas que o cortejo tinha de percorrer e ainda outros locaes, distinguiam se pelas decorações

caracteristicas que as aformoseavam. Eram mastros, simulando varios typos de vergas de embarcações, com bandeiras e flâmulas, plintos

com decorações e disticos apropriados, recordando factos da vida do Infante, coretos para musica figurando antigas fortalezas ou uma caravella antiga, como na rua de Santa Catharina, em que os proprios musicos vestiam como os maritimos da época, etc., etc.

Na rua de Santo Antonio havia tambem dois arcos triumphaes em estylo ogival; na praça de Carlos Alberto, outro em estylo classico; no largo dos Loyos um grande obelisco encimado por um globo, vendo-se na base o busto do Infante, e no Campo da Regeneração, igualmente outro grande obelisco, em que do mesmo modo se destacava o busto do heroe.

A tudo isto acrescente-se o embandeiramento das janellas, as colchas de damasco que as ornamentavam e a multidão de senhoras que as enchiam e far-se-ha ideia do aspecto encantador e indiscriptivel que essas ruas offereciam.

As festas do centenario tinham attrahido ao Porto um numero consideravel de forasteiros, de todos os pontos do paiz. Não havia um unico logar nos hoteis, nem nas casas particulares de hospedagem, tendo a auctoridade mandado alugar alguns armazens devoluto, para albergar os visitantes, de recursos pecuniarios mais limitados.

A esta cidade nunca, em occasião alguma, affluira tanta gente de fóra. […] Quando o cortejo chegou á rua do Infante D. Henrique, procedeu se ao descerramento da

lapide que fôra collocada na fachada da casa onde aquelle principe nascera. A familia real tinha ido para junto da referida casa, sendo el-rei quem descerrou a cortina que

cobria a lapide. […] A familia real, terminada essa cerimonia dirigiu-se para o Campo da Regeneração, afim de

assistir de um palanque que fôra construido junto á entrada do quartel de infanteria 18, ao desfilar do cortejo.

Logo que este entrou no Campo, foi executado o grande hymno do Centenario, composto pelo illustre maestro Alfredo Keil e ensaiado pelo distincto professor Antonio Canedo.

Na execução tomaram parte um grande numero de creanças de ambos os sexos, coristas adultos, e as bandas de caçadores 7, infanteria 18 e 20 e da guarda municipal.

O hymno foi applaudissimo, tendo o seu author uma verdadeira ovação.

R. – “As festas do centenário do Infante D. Henrique, no Porto”. O Ocidente: revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro. N.º 550, 1899, p. 83.

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D’entre os genios bons da nossa terra, nenhum mais do que Almeida Garrett merece as homenagens posthumas dos seus compatriotas, porque ninguem contribuiu mais do que elle para a reviviscencia da sociedade portuguêsa.

A sua nobre figura destaca á frente da legião sagrada dos audazes campeadores da liberdade entre nós. Não ha só a tyrannia das instituições e dos costumes, ha tambem, e é a sua alliada, a tyrannia dos preconceitos, das academias e dos classicos, da moda e da rotina; e, emigrado e soldado da nossa emancipação politica, pela qual se bateu dentro das linhas de defesa d’esta invicta cidade, Garrett foi ao mesmo tempo um dos principaes caudilhos da emancipação do espirito nacional. Camões, Fr. Luis de Sousa, as Viagens na minha terra, desferem golpes tão decisivos no absolutismo, como Almoster e Asseiceira.

E com que enternecido affecto elle se desvelou sempre pelos fracos e humildes! Tudo com o povo e pelo povo! exclamava. É que effectivamente não são só os sabios e os artistas que possuem o condão das idéas e das emoções originaes, como não só ás classes altas da sociedade pertence privilegiadamente o arbitrio do poder. Assim como aquella simples creada Brigida e até a pobre da mulata Rosa de Lima foram as dôces collaboradoras de Garrett, assim o povo, ainda o das raças conquistadas para a civilização, deve ser discretamente chamado a collaborar com o seu voto no governo da collectividade. No povo reside a inspiração profunda de todo o progresso, e é preciso consultá-lo.

D’esta concepção resulta o grande principio moderno da democratização do ensino. Quantas observações que não teem podido desabrochar na consciencia publica por falta de cultura! e quantos sentimentos delicados e generosos se não perdem á tôa, que preciosamente se deviam engastar no ouro puro da lingua vernacula! Como havemos de ter sciencia, arte e industria, como havemos de respeitar a justiça, se não prepararmos cabalmente a massa dos operarios e cidadãos? Onde iremos recrutar os mestres e os magistrados? Onde acharemos publico para as nossas obras primas, onde apoio para a virtude? Por isso Garrett se dedicou tanto á causa do ensino, e publicou o seu tratado da Educação e ambicionava mesmo que toda a sua obra se diffundisse educativamente pelo povo. «A missão do litterato, do poeta, disse elle, é revestir das fórmas mais populares o estudo dos factos, e derramar assim pelas nações um ensino facil, uma instrucção intellectual e moral que, sem apparato de sermão ou prelecção, surprehenda os animos e os corações da multidão.»

E não só a educação, mas toda a assistencia se deve ao povo. Neste sentido, o socialismo é uma verdade incontrastavel; e Garrett foi dos primeiros a proclamá-lo. Na camara dos pares, dos magnates, proferiu elle estas notaveis palavras: «A sociedade deve esforçar-se em fornecer trabalho ao que precisa trabalhar para viver; a sociedade tem obrigação de sustentar o que envelheceu e se impossibilitou no serviço d’ella.» E accentuou: «Amparar o seu semelhante, valer-lhe nas afflicções, na pobreza, na doença, na morte, é innato desejo, é natural precisão de todo o homem social: o que será entre portuguêses!»

Quer isto dizer que Almeida Garrett fôsse um revolucionario? Foi-o, sobretudo, com a penna na mão; mas não que elle não preferisse que a evolução, que é a lei suprema tanto da sociedade como da natureza, se operasse serenamente entre os homens. Num prefacio do Catão, – tragedia que, com visivel intento, dedicou á sua terra natal, ao Porto, chamando-lhe «illustre pelo sangue dos seus martyres» –, elle tracejava assim a litteratura do porvir: «Da união da arte antiga com a arte moderna,

Evidenciando o fundo instrutivo e o pendor patriótico à época conferido às comemorações centenárias, o discurso laudatório de Bernardino Machado, no qual se realça o papel de Almeida Garrett na defesa dos ideais liberais, foi proferido na sessão decorrida, a 4 de Fevereiro de 1899, no Ateneu Comercial do Porto, por ocasião da celebração do primeiro centenário do nascimento daquele autor. Celebrado na cidade Invicta entre 4 e 5 de Fevereiro e contando com a participação da tuna e de um vasto número de estudantes da Academia coimbrã, o programa dos festejos do centenário garrettiano no Porto incluiu uma recepção que teve lugar na Escola Médica, assim como a realização de um sarau e de uma sessão solene, realizados em ambos os dias no Teatro Príncipe Real.

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da plastica com o espiritualismo, do bello das fórmas com o bello ideal, do consorcio da Helena homerica com o Fausto dantico, é que tem de nascer o bello Euphorion, o genio, o principio, o symbolo da arte regenerada». E esta foi essencialmente tambem a formula do seu pensamento politico; queria conciliar o progresso com a ordem. Mas, para que na marcha das nações a evolução se realize ordeiramente, é mister que as classes dirigentes, a exemplo de Garrett, se inspirem com toda a lisura no bem publico, que é sobretudo a integridade e a honra nacional. Se os poderosos abandonam o povo, e elle se encontra apenas com um punhado de intransigentes para revindicar todos os seus direitos, direitos individuaes, direitos associativos e corporativos, direitos constitucionaes, todos, desde o direito de prover á alimentação e instrucção dos seus filhos até o direito de não ver polluida nem infamada a bandeira augusta dos seus antepassados, que admira que um dia estale novamente a revolução, com todo o seu infando cortejo de desastres e dôres? Num d’esses desesperados transes tambem Garrett teve de pegar em armas.

Procuremos evitá-lo, Senhores e minhas Senhoras. A todos me dirijo neste momento solemne. Façamos tudo por combater o mal sem ferir a ninguem; que, para afugentar as cubiças dos maus, bastará, – espero-o –, que sempre, como hoje, ergamos bem alto para o ceu, com inalteravel brilho, a chamma ardente do nosso patriotismo.

Bernardino Marchado – “A Garrett”. O Instituto: revista científica e literária. N.º 3, 1899, pp. 174-6.

ERA tempo de consagrar, com um monumento publico, a homenagem nacional ao maior dos romancistas portuguezes.

Coube a O COMMERCIO DO PORTO, a primazia na realisação d’esse pensamento.

Confiado o projecto do monumento ao talentoso esculptor Henrique Moreira, discipulo de Teixeira Lopes, por elle foi modelado o busto de Camillo e respectivo pedestal, com destino a ser erigido no jardim fronteiro aos Paços do Concelho de Villa Nova de Famalicão, terra onde elle morreu.

No seu numero de 23 de novembro de 1924, dava O COMMERCIO DO PORTO a noticia d’esse monumento e publicava a gravura do busto, apresentando no numero seguinte a gravura de todo o monumento, que posteriormente foi mais ornamentado pelo proprio auctor d’elle.

A Camara Municipal de Villa Nova de Famalicão, sob a presidencia do dr. Carlos Bacellar, prestou valiosissima cooperação a esta iniciativa, tomando a seu cargo a construcção do pedestal, que confiou ao mestre de obras Gesteira.

A fundição do busto, confiada á conceituada casa Peres, Corte Real & C.a, Limitada, ficou concluida a 16 de janeiro de 1925.

Na mesma fundição foi remontado um segundo busto, para ser offerecido por O COMMERCIO DO PORTO á Camara Municipal do Pôrto, depois de ter servido em ceremonia de coroação de Camillo, no dia do Centenario.

O senado municipal, em sessão de 6 de março do referido anno, deliberou que o busto fosse condignamente collocado em um jardim publico.

“Monumento a Camilo”. O Comércio do Porto no centenário de Camilo Castelo Branco: 1825-1925, 1925, pp. 57-8.

Após algumas iniciativas sem êxito desencadeadas no Porto desde o final do século XIX em prol da consagração da memória de Camilo Castelo Branco, assumido como um dos principais vultos do panorama literário da cidade Invicta, também este romancista foi homenageado no Porto, a 16 de Março de 1925, por ocasião da comemoração do seu primeiro centenário natalício, evento que foi assinalado com a inauguração do busto que nessa ocasião o jornal O Comércio do Porto, ofereceu à cidade.

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O Porto na produção ficcional e memorialística dos literatos locais

Era uma das ultimas noites do carnaval de 1855. […] A animação era geral na cidade. Todos corriam com ancia... a enfastiarem-se, fingindo que

se divertiam. Alguma cousa havia tambem na Aguia d’Ouro, a anciã das

nossas casas de pasto, a velha confidente de quasi todos os segredos politicos, particulares e artisticos d’esta terra; alguma cousa havia n’essa modesta casa amarella do largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.

Desde as tres horas da tarde que o tinir dos cristaes e das porcellanas, o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrepito das gargalhadas, das vozerias tumultuosas, e dos hurrahs ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal d’aquelle bem conhecido edificio; e por muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das aguas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda, através do grande rumor, que enchia as ruas.

Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contradictorias, vinham apressar os collegas na cosinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.

No entretanto o modesto e solitario freguez, a quem uma velleidade estomacal convidára a ir ceiar a humilde costelleta, principal trophéo culinario da casa, era pouco attendido e, farto de esperar, retirava-se sorrateiro e cabisbaixo.

Sob apparencias de modestia, a Aguia d’Ouro parecia d’esta vez aureolada de não sei que magestade, condigna do seu emblema.

A luz escassa d’um lampeão da rua, batendo sobre a ave de Jupiter, que corôa a taboleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais brilhantes do que os do costume.

Que era noite solemne para a casa, aquella casa que tem já dado que entender a ministerios e a emprezarios lyricos, não podia haver dúvida.

Cá em baixo, os serventes do café fallavam a meia voz e mostravam no olhar certo ar de preoccupação, certa importancia no gesto, como se effectivamente se estivesse passando cousa de momento no andar de cima.

O café contrastava porém com a animação que se percebia nas salas da hospedaria. Estavam desertos os logares d’aquella abafada quadra, em cujas paredes ainda então existiam, e

ameaçavam perpetuar-se, reproducções em lona dos combates, que restabeleceram a independencia da Grecia; a luz amortecida dos candieiros não dissipava as sombras dos recantos.

O marcador do bilhar cabeceava com somno. Os bailes de mascaras tinham derivado d’alli até os homens politicos. N’aquella noite as discussões

sobre a guerra da Crimeia, então na ordem do dia, travavam-se ao som das walsas e das mazurkas, nos theatros.

Não é pois n’este logar, agora melancolico e quasi lugubre, que eu pretendo demorar o leitor. Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e corredores, penetremos na sala

d’onde provém o ruido de festa que já noticiamos.

Inicialmente divulgado em folhetins no Jornal do Porto e publicado em volume em 1868, o romance da actualidade de Júlio Dinis, Uma família inglesa – centrado numa história de amor desenvolvida entre duas personagens oriundas de distintas classes sociais –, constitui uma das obras mais representativas da estética realista de que este romancista portuense foi um dos principais cultores. Além da tematização da vida urbana burguesa, que constitui um dos temas primordiais visados pela tendência realista, também o gosto pelo detalhe constitui uma das principais marcas do romance dinisiano, característica evidenciada no modo pormenorizado como o autor faz a descrição dos tipos sociais, dos discursos e do ambiente geral em que se desenvolve o jantar de Carnaval decorrido no café Águia de Ouro.

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O leitor por certo conhece o recintho. As suas particularidades architectonicas não requerem tambem as fadigas da descripção.

É um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir. Chegamos, porém, tarde. O fumo dos charutos ennevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar vae no fim, a desordem

portanto no ponto culminante. Ha já calices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas as posições, algumas

indescriptiveis. A vozeria é atordoadora. A confusão póde dar uma ideia de Babel. Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transições fazem-se com uma rapidez, que

surprehende e embaraça os proprios interlocutores; attenção, que se desvie um segundo, é attenção perdida; não encontra depois já o dialogo onde o deixou; ás vezes a conversa generalisa-se; momentos depois, distribue-se em especialidades por diversos grupos; mais tarde, generalisa-se de novo; em certas occasiões, todas as bôcas fallam, cada um se escuta a si; n’outras algum orador consegue por instantes fazer-se escutar de todos, até que um áparte, um incidente, um gesto, restabelece a independencia primitiva. Dão-se tambem verdadeiros encruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que ouve ao da cabeceira, emquanto que os intermedios se entreteem de outros objectos; é um baralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a expressão do pensamento.

Alli falla-se em litteratura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto, discute-se politica e julgam-se n’um momento, e com a mais desenganada critica, as primeiras capacidades financeiras, diplomaticas e militares da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com tão agradavel prática, o dialogo d’outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo exalta-se, tratando assumptos de theatro lyrico e premeditando pateadas e ovações; juntos d’este, dous enthusiastas de hippicultura fazem a historia pittoresca de compras, vendas e manhas de cavallos. A propria philosophia allemã fornece alimento á animação dos discursos; e tudo isto interrompido de gargalhadas, de cantigas, de juras e exclamações em todas as linguas.

Seria igualmente difficil determinar o elemento commum dos individuos reunidos alli. Ha-os das mais diversas condições; desde o joven padre, que põe a tractos a sciencia e a paciencia

dos cabelleireiros para disfarçar, quanto fôr possivel, os vestigios da tonsura, até o official do exercito, todo possuido das branduras civilisadoras do seculo e para quem a mesma caça é occupação barbara e afflictiva da sensibilidade; ha-os das mais diversas idades, desde o collegial de hontem, ainda imberbe e embriagado com as primeiras commoções da vida de adolescente, até o velho, que, ingenuamente persuadido de que o tempo se esqueceu de lhe ir contando os annos, deixa passar a geração, contemporanea sua, e insiste em viver, entre rapazes, vida de rapaz; ha-os em diversas circumstancias monetarias, desde o capitalista, que vê correr descuidado a fonte dos seus rendimentos, com tranquillisadora confiança no inexgotavel manancial que a alimenta, até á classe dos encostados, verdadeiros martyres da moda, cuja vacuidade de bolsa lhes constrange a imaginação a fabricar systemas quotidianos para os manter, embora á custa de humiliações n’aquella atmosphera, fóra da qual já não sabem respirar; ha-os de todos os graus de intelligencia, desde o escriptor applaudido e que, sem favor ou com elle, conquistou reputação nas lettras, até o analphabeto, cujas sandices são saudadas com gargalhadas que ninguem procura reprimir na presença d’elle proprio.

Finalmente esta reunião de elementos, debaixo de todos os pontos de vista tão heterogeneos, é uma porção da sociedade, que pretensiosamente se decora com o titulo de elegante e para pertencer á qual é difficil fazer resenha dos requisitos necessarios; pois que nem a própria elegancia – na verdadeira accepção do termo – é dote generico dos seus membros.

Júlio Dinis – Uma família inglesa: cenas da vida do Porto, 1875, pp. 20-3.

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Era a noute do beneficio do actor Firmino, representando-se «Os dragões de Villars» e uma parodia da zarzuela «Gran-Via». Estava-se no ultimo acto do espectaculo e quando o publico pedia a repetição do terceto buffo os «Tres ratas», o panno desceu subitamente.

Isto causou estranheza nos espectadores e Cyriaco de Cardoso, director da orchestra e emprezario da Companhia, ao mesmo tempo que batia com a batuta na concha do ponto para o panno subir, voltava-se para a plateia procurando serenar o principio de agitação que aquelle facto produziu.

– Não é nada, soceguem – dizia Cyriaco de Cardoso. Mas n’esse momento já o panno começava a inchar por

effeito do fumo que havia no palco e algumas faulas eram impellidas para a sala.

– Fogo! – clamaram umas poucas de vozes. E então os espectadores começaram a sahir em tropel,

possuidos do maior panico, convergindo quasi todos elles para a porta do lado da rua de Santo Antonio.

No entretanto, no palco, reinava a maior confusão. Uma gambiarra communicára fogo a uma bambolina, alastrando-se logo o incendio pelo urdimento. Os artistas fugiam desvairados, com os proprios fatos com que estavam a representar, Dorinda Rodrigues era levada desmaiada para a rua, e Aurelia dos Santos era conduzida tambem em braços.

Como o fogo se propagava, o illuminador, junto do contador do gaz, exclamava: – Saiham depressa porque vou fechar o gaz. E immediatamente fechou o contador, fugindo tambem. O incendio apossára-se com uma rapidez espantosa de todo o theatro e d’ahi a momentos uma

fogueira enorme, medonha, projectava o seu clarão no espaço, illuminando varios pontos da cidade, ao mesmo tempo que nuvens de faulas cahiam como a chuva de um fogo de artificio a grande distancia, impellidas pelo vento.

O clarão do incendio foi visto, no mar, a quatro milhas de distancia da barra, pela tripulação de um vapor, segundo a narração feita depois pelo capitão.

O theatro, quando o fogo se propagou, parecia estar completamente evacuado, porque Cyriaco de Cardoso e outras pessoas entrando na sala e perguntando em altas vozes se alli estava alguem, não obtiveram resposta, presumindo-se no primeiro momento que ninguem tivesse succumbido.

Comtudo, que scenas horrorosas não se davam então nos corredores! Os espectadores da 2.ª e 3.ª ordem dos camarotes e do paraizo, já meio asphyxiados pelo fumo,

cegos de terror e perdidos na escuridão, precipitavam-se para os corredores, cahiam pelas escadas e formavam montes humanos, inertes.

Alguns que poderam caminhar por sobre esses montões de corpos, chagavam á porta do lado da rua de Santo Antonio, onde a multidão se atropelava tambem para sahir. Outros porém, desvairados, não dando com as portas do atrio continuavam a descer até ao fundo, entrando para o café do theatro, situado por debaixo do mesmo atrio e refugiando-se até nas sentinas, onde foram encontrados alguns cadaveres!

Os gritos lancinantes, as exclamações de dor, e de desespero, cortavam o coração.

Manuel M. Rodrigues – “O incêndio no Teatro Baquet no Porto”. O Ocidente: revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro. N.º 334, 1888, p. 75.

Descrevendo um dos episódios mais trágicos da história da cidade do Porto no século XIX, a memória de Manuel Maria Rodrigues, publicada na revista lisboeta O Ocidente, constitui um relato pormenorizado do incêndio deflagrado durante um espectáculo que teve lugar no Teatro Baquet na noite de 20 para 21 de Março de 1888. Edificado a expensas do alfaiate francês António Pereira Baquet e oficialmente inaugurado a 16 de Julho de 1859, com a representação da peça Segredo de uma família, o Teatro Baquet não voltou a abrir portas após a ocorrência dessa catástrofe que originou inúmeras vítimas mortais e motivou várias manifestações de solidariedade no país, inclusive da parte de D. Maria Pia que se deslocou de imediato à cidade do Porto.

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N’esta linda terra portugueza – que repousa ao lado das ondas embravecidas sem as temer e dorme no sopé das serras sem que a assalte o medo de que os gigantes a soterrem, despenhando-se dos alcantis azues –, o Jornal é sempre a lava aureolada d’uma erupção historica.

Passado o momento que o gerou, morto o homem que o fundara, encannecida a geração que o lia, o Jornal entra a definhar, a voz enfraquece-lhe e expira, sem sequer ao menos os parentes deitarem luto por esse patriarcha pobre.

O Commercio do Porto é dos raros que vivem mais do que a hora d’um enthusiasmo, por isso que não brotou nem cresceu com o ardor e o interesse d’um nucleo partidario, mas medrou sempre com o favor anonymo e difficil das multidões.

Nunca os seus redactores comeram o pão clandestino d’um subsidio ministerial; jamais forneceu aos seus consumidores o alimento espiritual da opinião, falsificado com as drogas de qualquer cabotino interesse politico.

Foi toda a vida o orgão clemente das populações portuenses, cujo programma synthetico e expressivo se pode reduzir a uma linha: fazer sempre bem, sem nunca nem a ninguem levar o mal.

E nos momentos de panico, de angustia, de arrebatamento ou de colera, o Commercio do Porto pronunciou sempre a palavra da esperança, de alento, de cordura e de paz.

Ninguem teve jamais delicadezas para os vencidos como essa folha, radicalmente conservadora, ao publicar os nomes dos conspiradores do 31 de janeiro e ao relatar os julgamentos de Leixões; nenhum periodico de New-York ou de Paris soube vestir tão pesadamente de luto as suas columnas e commover a solidariedade publica, como o Commercio do Porto perante a catastrophe do incendio do Baquet.

E quer se trate d’um centenario (Infante D. Henrique e Garrett), quer se trate d’um melhoramento (Porto de Leixões), d’uma pauta ou d’um alto problema de estado (o Ultimatum), o velho e honrado burgo do Porto encontrou sempre a seu lado, entre os primeiros, entre os mais sinceros, entre os mais enthusiastas, a ponderada gazeta cuja idade veneranda a não impede de apparecer em todos os momentos de gala collectiva e em todas as horas d’amargura.

Na vida da humanidade, meio-seculo nada é; mas na lucilação que é a existencia d’um homem, cincoent’annos são um cyclo historico, uma Edade sobretudo quando esse homem os passa em pleno combate, consumindo a luz dos olhos a alumiar a treva das massas populares.

Não é em 48 horas que vão entre o convite recebido para escrever este articulo e a remessa do original, que se pode manusear os ponderosos volumes que formam a historia d’este periodico. Outra antecipação houvesse tido esse convite, que eu comprazer-me-hia em folhear aqui a collecção do Commercio do Porto e mostrar-lhes como as suas edições acompanham paralellamente a trajectoria da nossa cidade e do nosso paiz, n’uma ascensão de jubilos ou n’um acabrunhamento uniforme, n’essa correspondencia rigorosa e incessante da vida das populações portuguezas.

Provar-lhes-hia como n’essa sobria figura de jornal fica sempre agarrado a empreinte do Facto, e como o Commercio do Porto cumpriu logicamente a lei evolucionadora da vida da imprensa, que n’uma pennada tracei ali sobre as edades da imprensa universal.

Nunca o Escandalo subiu as escadas d’aquella redacção, nem jamais o furor da Noticia levou esse camarada á publicidade d’um boato ou d’uma mentira.

Desde creança que ouvia dizer: – «Vinha no Commercio do Porto.»

Da autoria de Joaquim Leitão – poeta e escritor portuense –, esta narrativa laudatória – transcrita do volume comemorativo, publicado, em 1904, sob o título de Nas bodas de ouro do Comércio do Porto – centra-se no elogio da actividade desenvolvida por esse órgão da imprensa local durante os seus 50 anos de existência. Contando-se entre os mais importantes jornais publicados no Porto, este periódico constitui ainda uma das publicações que maior longevidade adquiriu na cidade Invicta, tendo sido fundado a 2 de Junho de 1854 e iniciada a sua publicação sob a designação de O Comércio, título que manteve até 1856.

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Fosse a catastrophe mais norte-americana, a morte mais inesperada do amigo com que se jantara na vespera, a queda do gabinete mais forte, uma alta brusca do cambio, a explosão da communa ou a morte de Leão XIII – ninguem mais duvidava, desde que «vinha no Commercio do Porto»!

Joaquim Leitão – Nas bodas de ouro do Comércio do Porto: homenagem, 1904, pp. 18-20.

A sociedade portuense nas narrativas de viagem

Uma das primeiras necessidades do touriste quando chega ao Porto, é comprar luvas, lustrar o chapéo, e ir passear. Attende-se muito á forma n’esta cidade, e as pessoas distinctas são muito parisienses no esmero com que se occupam da toilette. Não questiono brasões de elegancia entre Porto e Lisboa, mas atrevo-me a assegurar que se é mais escrupulosamente aceado alli. É preciso que o leitor não cuide por isso que toda a gente na cidade invicta faz profissão de ser elegante; ao que se attende principalmente, é ao que os francezes chamam ser soigné; isto é, andar sempre de luvas, não arriscar um coleirinho menos engomado, e evitar cautelosamente uma botta cambaia, uma calça com joelheiras, ou uma gravata pouco fresca.

Em quanto ao chapéo... – que a minha observação é verdadeira, asseguro; o porque ignoro-o: ou os chapéos no Porto se conservam novos... até depois de velhos, ou nunca teem tempo de perder a graça e o lustro!...

Tudo isto se observa de passagem apenas, n’uma rua ou n’uma praça; não ha occasião de o ver no passeio ou nos botequins, porque é rarissimo encontrar alguem no passeio!

A sociedade do Porto, divide-se, classifica-se, e conhece-se da maneira seguinte:

A mocidade doirada vae ao Club. A sociedade media vae ao Café portuense, ou Café de D.

Pedro; ou Café da Praça Nova, – que é um só café com estes tres nomes distinctos, o que faz suppor nos primeiros dias que no Porto haja ainda mais café... do que vinho!...

A sociedade mais confusa vae ao Guichard, – botequim celebre pelos romances, pelos folhetins, e que deve, creio eu, á litteratura a sua reputação, visto ser tão feio que não póde devel-a... aos freguezes!...

Em quanto á sociedade litteraria, a sociedade de jornalistas, romancistas e poetas, essa anda dispersa, e de ordinario concentra a sua existencia o mais que póde. É uma coisa curiosa, e para se louvar, a applicação, o estudo, e ao mesmo tempo a modestia que caracterisa os escriptores do Porto.

É debalde que se procura algum d’elles na Praça Nova durante a manhã, no hotel Hardy á hora de jantar, no theatro á noite. Entregues cada um d’elles ás occupações da sua vida positiva, – visto que o nosso paiz não permitte que seja vida... ser escriptor! – é preciso ir encontral-os, honestos moços, este n’uma loja d’ourives, aquelle n’uma loja de pannos, o outro n’uma oficina!... Ah! É nobre que o

Centrada na vida social portuense do início da segunda metade do século XIX, a narrativa de viagem de Júlio César Machado dá conta de alguns hábitos que caracterizavam a sociedade local e o seu quotidiano, focando os principais espaços de sociabilidade da cidade da Porto da época, cuja frequência remete para sectores sociais específicos, entre os quais destaca os literatos. Referindo-se a vários espaços de sociabilidade existentes na cidade, como o Café Portuense, a Praça Nova e o Hotel Hardy, o autor passa também em revista os seus principais cafés literários, nomeadamente o Guichard e o Águia de Ouro, nos quais reuniram, entre outras figuras das letras locais, Júlio Dinis, Soares de Passos, Camilo Castelo Branco, António Coelho Lousada, Faustino Xavier de Novais, Arnaldo Gama, Alexandre Braga, António Girão, Ricardo Guimarães, Evaristo Basto e Augusto Soromenho.

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talento triumphe assim de todas as crueis condições da vida material, e encontre, no centro das difficuldades, e das amarguras, uma hora de repouso para dar a medida da sua vocação!...

Já infelizmente não cheguei a tempo de conhecer o primeiro poeta, a meu ver, da geração nova, – Soares de Passos. A morte roubára-o bem cedo aos seus admiradores: á gloria, não; resta d’elle o livro admiravel dos seus versos, e a sua alma, a sua probidade, a sua inspiração vivem eternamente alli.

Não era um poeta de largo folego, no sentido em que costumam tomar-se as condições de fertilidade litteraria. Desceu á campa sem uma extensa bagagem de volumes; – um livro apenas, e um livro breve e ligeiro, – ligeiro, como elles dizem, os que só acreditam nos in-folio!...

Todavia, que talento ameno e docemente triste! […] Ha um grupo á parte, de jornalistas retirados, jornalistas aposentados, jornalistas em terceira secção

que se encontra ás tardes na Aguia de Ouro. Reunidos a uma mesa, uns poucos de homens de erudicção e de espirito como Evaristo Basto, Girão, Arnaldo Gama etc. entreteem alli um cavaco animado e vivo.

A Aguia de Ouro, é um botequim no estylo do nosso immortal café de Marcos Filippe ao Pelourinho. O mesmo genero de pintura, de architectura, e de serviço, – como todos os botequins do Porto aliás, a exceptuarmos o de D. Pedro, que pecca apenas por ser de um exaggerado estylo. É uma casa escura, antipathica por fóra, feia por dentro, humida, velha, embirrante. Foi alli que eu pude encontrar uma tarde Arnaldo Gama e uma noite Evaristo Basto. Arnaldo Gama é um homem magro e louro, de estatura mediana, e attitude despretenciosa. Arredado hoje da litteratura, vê-se ainda bem, no entanto, o amor que lhe consagra, pela attenção com que falla d’ella. […]

Em quanto a Evaristo Basto é tão conhecido em Lisboa, que me dispensa de o daguerreotypar; eu não tinha idéa de o haver encontrado na capital, e ao vel-o no Porto tive uma impressão agradavel: é um folhetinista que honra a classe, além da distincção do seu espirito, pela distincção das suas maneiras: elle, Camillo Castello Branco e Ricardo Guimarães, foram os plantadores do folhetim no Porto; a esse tempo, porém, infelizmente para o Porto e infelizmente para as lettras, Camillo Castello Branco estava na prisão, Ricardo Guimarães no parlamento, e Evaristo Basto feito escrivão de direito! Ou le feuilleton va-t-il se nicher!

Júlio César Machado – Cenas da minha terra, 1862, pp. 168-75.

Saí da rua do Bomjardim. Eis-me na Praça Nova, no centro da vida portuense, no Chiado da cidade invicta.

De um lado sobe a rua de Santo Antonio, defronte empina-se a dos Clerigos. A celebrada torre ergue-se-lhe ao cimo, e campeia desassombrada, arrojando aos céos a sua airosa estatura! Que vida, que movimento, que agitação! […]

A estas horas, os elegantes do Marrare aproveitam a tregua, e encostam-se á hombreira do botequim, as senhoras lisbonenses atravessam a lama, aproveitando a occasião para revelarem aos seus admiradores particulares, ou (tal é a sua generosidade) aos mesmos profanos, a perfeição do mimoso pésinho que a natureza lhes doou. As carruagens perpassam

salpicando os passeiantes, que se indignam, segundo o costume de certos democratas, contra a desigualdade das condições e a petulancia dos ricos, e que, tambem segundo o costume dos democratas, apenas teem cinco tostões, mettem-se n’uma carruagem de praça, e salpicam os peões, que se indignam a seu turno, e que fazem o mesmo, apenas se acham em identicas circumstancias.

Aludindo à vida socioeconómica do Porto Oitocentista e partindo de um confronto de olhares entre Lisboa e a cidade Invicta, o relato de viagem de Pinheiro Chagas descreve alguns aspectos da vida económica das ruas da cidade do Porto, através dos quais o autor coloca em realce a índole comercial que marcava a sociedade portuense, característica que atribui à influência da colónia britânica estabelecida na cidade.

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O sol regala-se com este espectaculo, ri a bandeiras despregadas, e, malicioso como um folhetinista do céo, quando lhe parece, corre outra vez as cortinas, deita-se a dormir, e as nuvens, que voltam a formar-lhe alcova, desprendem as suas torrentes d’agua, dispersam os espavoridos passeiantes, obrigam as senhoras a fugirem, e innundam os chapéos de chuva dos democratas, que fazem n’essa occasião novas despezas de estylo.

No Porto não gosa o sol tal divertimento; quando se lembra de acordar, não vê senão pessoas que correm azafamadas a tratar dos seus negocios, que vão, que vem, que voltam, e, se encontra um ocioso como eu, que anda de nariz para o ar saboreando a doçura dos seus raios, bayant aux grues como Alfredo de Musset, diz logo comsigo: «Este é de Lisboa.»

Não se ouve tambem aqui aquelle concerto de pregões floreados, variados, prolongados infinitamente, que se escuta na capital; o pregão aqui é curto e monotono; assimilham-se todos uns aos outros. O vendilhão em Lisboa é um vadio, que, a pretexto de vender, atordoa os ouvidos de quem passa. O vendilhão escuta-se a si mesmo, mais do que escuta os freguezes. Se ha de cantar o Fado, canta o pregão, se ha de andar de guitarra, anda de cangalhas; mas o que elle deseja primeiro que tudo é berrar, berrar bastante. A concorrencia entre elles não é commercial é lyrica; não se trata de ver quem vende mais, trata-se de ver quem grita mais alto. Não lhes chega o rendimento para tomarem gemmadas. Estão perfeitamente nas idéas da musica moderna. O mais applaudido é o que dá o dó do peito. Esse é venerado no bairro, conhecido na praça, e louvado nos jornaes. A condição essencial para se ser vendilhão ambulante, não é ter fundos para fazer as compras, é ler pulmões valentes.

Aqui nada d’isso! O vendilhão é um homem de negocio! Apregôa para apregoar, para annunciar a sua mercadoria; se póde dispensar-se de tal incommodo, melhor! Por isso berram menos, e negoceiam mais.

É esta, por fim de contas, a indole verdadeira dos portuenses. Não gostam de perder tempo! Os laivos de estrangeirismo, que por aqui ha, são inglezes, os de Lisboa francezes. O Porto, nas coisas em que não é portuguez de velha tempera, é inglez. Os nacionaes da Grã-Bretanha enraizam-se aqui cada vez mais, attrahidos provavelmente pelo nome de Porto, que lhes recorda o vinho! […]

Pois effectivamente, da mesma fórma que a Madeira está sendo uma ilha ingleza, o Porto resente-se tambem muito da influencia do espirito britannico. O proverbio Time is money tem aqui fóros de cidade; a indole reflexiva, calculadora, sensata dos nossos fieis alliados inoculou-se tambem no animo dos portuenses.

[…] É isto o que resgata o Porto de muitos defeitos de que o accusam; é a veneração, é o respeito, que o trabalho aqui inspira; é a immensa actividade, que se nota n’esta vasta officina. Accusam o Porto de não pensar senão em transacções, em negocios, em dinheiro, de não prestar culto á intelligencia, quando é dirigida n’um sentido que não seja o de colher interesses positivos. Não sei o que ha verdadeiro na accusação; sei apenas que, a ser exacta, é uma ventura para o paiz, que haja no seu territorio uma cidade, que se digne pensar n’estes interesses prosaicos, que são a base da prosperidade das nações. Esse defeito (se existe) desapparecerá tambem á medida que o Porto se for desenvolvendo, e que, conservando sempre principalmente a sua indole commercial, preste justiça a todas as aspirações e tendencias da actividade humana.

Manuel Pinheiro Chagas – Contos e descrições, 1866, pp. 48-57.

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SANTARÉM

A feira franca e o culto da memória dos vultos das letras em Santarém

Os modos de vida e a transformação dos costumes escalabitanos

Uma cidade monumental e progressista

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A feira franca e o culto da memória dos vultos das letras em Santarém

Em outubro d’este anno, 1903, fui de proposito assistir á feira da Piedade.

Encontrei na cidade um movimento e animação extraordinarios, um borborinho constante de trens, de cavalleiros, de peões, que chegavam a cada momento. Santarem estava em festa. No Campo Sá da Bandeira armavam-se as barracas dos feirantes, de brincheiros, de fanqueiros, de quinquilheiros, de ourives, de bebidas, de pim-pam-pum (estas então em grande numero), havendo tambem armados alguns theatros populares.

N’um dos recantos do Campo havia enorme estendal de fructas, principalmente os magnificos pêros de Alcobaça, em altas pilhas, de vivissimas côres.

No largo do Espirito Santo, sobre a terra, e arrumadas contra as paredes, estavam expostas as alfaias agricolas e as madeiras de construcção.

No largo – Pimentel Pinto – era a feira do gado, muito abundante de exemplares e de especies.

Junto ao Presidio Militar estabeleceu-se o acampamento dos ciganos, e funccionava a commissão de remonta.

Contornando o Passeio da Rainha havia alinhamentos de taboleiros com bôlos, brinquedos, logares de fructas, legumes e hortaliças, etc.

As ciganas com os seus fatos acatasolados, tendo algumas (especialmente as creanças) ornatos de metal nas saias, punham, no conjunto da multidão, uma nota agradavelmente brilhante e intensamente caracteristica.

Depois d’ellas, eram as raparigas de Almeirim, com os seus lenços vivazes na cabeça e no peito, que animavam o brilho do quadro, vitalisando-o, entre o fato escuro dos homens e das mulheres dos arredores de Santarem.

Havia pelas ruas, principalmente nas vizinhanças da feira, uma correria incessante de cavalleiros macabros, alguns d’elles encarapuçados, que faziam trazer a gente o Credo na bôcca para salvar a pelle.

As lojas da cidade não tinham mãos a medir, e os hoteis estavam em plena barafunda.

Realisaram se tres corridas de touros, em dias successivos.

Descrevendo alguns aspectos que caracterizavam o mais importante mercado que, a par da também secular Feira do Santo Milagre, se realizava anualmente em Santarém, a narrativa de Alberto Pimentel dá conta do ambiente vivido na cidade por ocasião da Feira da Piedade de 1903. Constituindo um período de excepção na vida local, nos dias em que se realizava a Feira da Piedade a vida da cidade era marcada por uma nova dinâmica e por uma animação extraordinária, para as quais contribuía a grande afluência de visitantes que se deslocavam à feira atraídos pela “facilidade e pela barateza dos transportes”. Estabelecida no vasto Campo Sá da Bandeira, no qual se agregava um grande número de barracões com os mais variados produtos, a feira estendia-se, ainda, por vários locais da cidade, nomeadamente pelos largos do Espírito Santo e Pimentel Pinto e pelo Passeio da Rainha, nos quais se vendiam alguns bens alimentícios e onde decorriam a exposição das alfaias agrícolas e a feira do gado. Favorecendo as trocas mercantis e funcionando como um importante estímulo para a economia local, dado o acréscimo de clientela que o evento proporcionava às lojas e aos hotéis da cidade, a feira oferecia, ainda, à população local e aos visitantes diversas possibilidades de lazer, facilitando-lhes o acesso aos mais variados divertimentos, entre os quais se incluíam os espectáculos de teatro e as corridas de touros que se realizavam durante três dias consecutivos.

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Muito gritador o sol: eram ribatejanos entendidos, que se desesperavam a cada instante. Entre os espectadores, contava-se grande numero de mulheres de Almeirim, que se distinguiam pelo colorido alegre do traje.

Todas as tres corridas da feira da Piedade são dadas pela Misericordia, que, não sendo rica, só com esta receita eventual consegue fazer face ao deficit do seu orçamento ordinario.

A facilidade e barateza dos transportes attrae hoje grande concorrencia á feira da Piedade, como a quasi todas as mais afamadas do paiz.

Alberto Pimentel – A Estremadura portuguesa. Vol. I, 1908, pp. 288-9.

Outro melhoramento não menos digno de mencionar-se é a construcção, ha pouco effectuada, de dois pequenos edificios, um destinado para aulas de instrucção primaria de ambos os sexos, outro para bibliotheca publica.

[…] Consta esta casa de tres salas, sendo a central destinada para as respectivas estantes. Ao meio de duas d’estas, que ficam encostadas á parede fronteira á porta principal do edifício, está um pedestal de vinhatico com um plinto da mesma madeira, terminado por uma pedra de marmore branco, sobre a qual assenta um busto, feito de gesso, do immortal cantor das nossas glorias. Junto da peanha do busto, e apoiada pelo capitel do pedestal sobresae uma bella e valiosa corôa de bronze.

Esta corôa foi mandada fazer em Lisboa por uma commissão, em que tomámos parte, e que promoveu em Santarem os festejos do tricentenario de Camões.

Realisou-se com pompa essa festa ruidosa, que serviu em Santarem, como em todo o paiz, cremos nós, de affirmar o sentimento da nossa nacionalidade. Ainda bem; e que se multipliquem todos os dias as sinceras e desinteressadas manifestações n’esse sentido, para firmeza das verdadeiras crenças politicas e religiosas, e lustre e prosperidade da nação portugueza.

A 13 de junho de 1880, primeiro dia dos festejos em Santarem, inaugurou-se a bibliotheca, dando-se-lhe a denominação de Bibliotheca Municipal Camões, como consta de uma acta, archivada na secretaria da camara, e a corôa foi levada dos paços do concelho para a bibliotheca, sendo acompanhada de numeroso sequito, de que faziam parte as principaes auctoridades e pessoas de Santarem.

[…] Aberta ao publico a bibliotheca, ainda restava alguma cousa a fazer: inspirar ao povo o gosto da leitura.

Qual o modo de o conseguir? Lembrámo-nos de dar na casa da bibliotheca prelecções

populares publicas e gratuitas, sobre assumptos de interesse pratico e social, e communicámos o nosso pensamento a

As comemorações do tricentenário camoniano na cidade de Santarém assumiram um carácter particular, sendo assinaladas com a fundação da Biblioteca Municipal Camões, cuja inauguração, a 13 de Junho de 1880, marcou o primeiro dia das festividades. Constituindo um dos espaços nos quais decorreram as solenidades locais, onde foi ainda inaugurado um busto de gesso de Camões e instalada uma coroa de bronze transportada num cortejo cívico pela cidade de Santarém, o espaço da biblioteca viria ainda a ser utilizado, a 8 de Dezembro do mesmo ano, para a realização de um tributo a Alexandre Herculano, quando, na sequência de uma romaria à casa de Vale dos Lobos e ao túmulo do historiador, foi organizado um sarau literário no qual se descerrou um retrato de Alexandre Herculano, pintado pelo visconde de Atouguia. Organizado por um núcleo de personalidades locais que haviam sido responsáveis pela realização das Conferências Populares, que tiveram lugar na Biblioteca Camões desde 18 de Outubro de 1880, este evento de homenagem ao nosso historiador teve como principais promotores Zeferino Brandão, Joaquim Maria da Silva, António Mendes Pedroso, José Peixoto da Silva, João Fagundo da Silva, Bernardino Júlio dos Santos, António Bernardo de Figueiredo, João Serras Conceição, Frederico Augusto Pimentel e Joaquim Tavares Serrano.

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pessoas, que n’aquella tarefa podiam coadjuvar-nos. […] A nossa missão, a nossa propaganda, consistia em ensinar o povo, derramar conhecimentos uteis

pelas classes menos favorecidas da fortuna, e isto sem torpeza ou corrupção, sem sedição ou anarchia, sem impiedade ou fanatismo.

[…] Teve logar a primeira conferencia no dia 18 de outubro de 1880. […] Tambem na sala principal da bibliotheca está o retrato de Alexandre Herculano. Nem lá devia

faltar. Foi ali collocado no dia 8 de dezembro de 1880. Não olvidemos o acontecimento que motivou essa feliz lembrança. Por proposta nossa deliberaram os conferentes ir em piedosa romaria visitar o tumulo, onde

descançam ainda os restos mortaes do inspirado auctor do Eurico, do poeta da Harpa do Crente, do illustre e austero anachoreta de Valle de Lobos, do nosso imortal historiador emfim. Deviamos todos essa homenagem de respeito pela sua memoria, e fomos vêr os seus dois jazigos por elle escolhidos: um a sua casa de Valle de Lobos, singela habitação, paraizo modestissimo, aonde alojára por muito tempo o seu espirito gigante; o outro a triste morada da morte, no adro da igreja da Azoia, um dos mais simples presbyterios ruraes de que temos conhecimento; e sendo ambos a representação eloquente de dois traços vigorosos da sua physionomia moral.

Orgulhamo-nos de havermos ido, em cortego sincero, e em pompa, ajoelhar junto d’aquelle tumulo. Sentimos a nossa alma ennobrecida, e a nossa consciencia satisfeita, por termos dado á memória de

A. Herculano tudo quanto a lousa da sua campa nos pedia – uma saudade e uma oração. Sem o esperarmos, acompanhou-nos a camara municipal de Santarem. É digno de louvor esse acto. Teve logar esta manifestação espontanea de meia duzia de homens, que prezam as letras patrias, no

referido dia 8 de dezembro de 1880, e na noite d’esse dia realisámos na bibliotheca um saráo litterario, dedicado exclusivamente á memória de Herculano. Por esta ocasião foi posto ali o seu retrato devido ao primoroso pincel de um dos nossos romeiros, o visconde de Athouguia, e oferecido por elle para esse fim.

Vem de molde repetir estas palavras cheias de verdade, que transcrevemos do livro do sr. Antonio de Serpa Pimentel, A. Herculano e o seu tempo: «Tres seculos depois da morte de Camões, morre A. Herculano, e n’este longo intervallo não ha um só nome em Portugal que aos dois se possa igualar. Estes dois nomes sós dão uma litteratura e uma nacionalidade.»

Ao lado do busto do nosso epico devia estar, pois, o retrato do nosso historiador.

Zeferino Brandão – Monumentos e lendas de Santarém, 1883, pp. 442-9.

Conheci este homem, de quem se podia dizer – feio de corpo bonito d’alma – em 1872, na sua terra natal, Santarem. Tinha publicado recentemente o seu segundo livro de versos – Radiações da noite, que lhe trouxeram celebridade.

Eça de Queiroz singularisava com effusão – Os abutres. É a poesia moderna, commentava elle, a poesia da revolução e da justiça que dá signaes de vida tambem entre nos: que venha, que venha.

Anthero de Quental dedicou-lhe um estudo critico, que Guilherme, decorridos dois ou tres annos, poz á frente do seu terceiro e ultimo volume de versos: – A alma nova.

N’aquelle anno, os poetas que o traziam em vibração, eram Baudelaire (Flores do mal) e Leconte de Lisle (Poemas

Centrada na figura do cronista e poeta Guilherme de Azevedo, natural da cidade de Santarém, na qual residiu até 1874 e iniciou a sua actividade nas letras, a memória de Henrique das Neves constitui um relato da forma dual como o poeta era visto pelos seus conterrâneos. Por um lado, destaca-se a polémica gerada em torno do jornal O Alfageme, no qual Guilherme de Azevedo fez o elogio da Comuna de Paris, dando azo a uma onda de indignação na cidade, onde começava a ser apelidado de “diabo ++++++

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barbaros). Mas, os seus conterrâneos, esses, é que não o viam com

bons olhos, nem julgavam da orientação das suas faculdades d’homem de letras, como Eça ou Anthero.

Que razão extraordinaria haveria para divergencia tão funda e radical? Por que seria?

Porque Guilherme, que redigia um jornal seu – O Alfageme – impellido, tal como succedêra a Bocage, pelo espirito novo que nos vinha de França, abriu-se calorosamente, ao 6.º n.º, n’uma apologia á intenção do movimento communalista de Paris.

Não será necessario entrar em considerações sobre o caso; bastará relembrar o que foi aquella explosão socialista, mal norteada e terrivel, e o que é a vida pacata e ordeira, conservadora e burgueza, de qualquer pequena cidade de provincia, em geral.

O menos que succedeu ao redactor socialista d’O Alfageme foi ver a debandada dos assignantes, devolvendo-lhe o 6.º n.º; o mais seria, queimarem no vivo para o… purificar, conforme a doutrina da Inquisição.

Alguns graves sujeitos também deixaram de lhe falar, lançavam-lhe olhares atravessados e ferinos, e começaram d’então a tratal-o na sua ausencia pelo diabo coxo, aludindo assim cumulativamente ao seu espirito malefico e à sua perna cambada.

Escusado era dizer, que Guilherme ria de tudo isto. É que elle abrira a sua alma generosa ás ideias fundamentaes dos socialistas, assim como, poucos mezes antes, Victor Hugo não sómente lhes abrira a sua grande alma, mas tambem hominizava sob o tecto da sua casa, em Bruxellas, os communalistas de Paris que vinham de se salvar vivos da derradeira hecatombe, a «semana de sangue». […]

Se entre alguns santarenos Guilherme era um réprobo, em compensação, a sua fama ia alargando e avigorando entre a gente lettrada, de temperamento revolucionario e progressivo, ao ponto de mercer d’Anthero o ser agrupado ao numero dos 12 conferentes do Casino. Era a consagração.

[…] Não passarei adeante sem registar, que os conterraneos illustrados de Guilherme d’Azevedo teem procurado honrar, desde a sua morte em Paris, a memoria do poeta revolucionario e brilhante prosador, que conquistou logar proeminente nas lettras do seu tempo e do seu paiz, especialmente como chronista moderno, em que ainda não foi egualado.

[…] N’aquelle sentido, o município de Santarem fixou o seu nome no respeito publico, dando-o a uma rua, e os seus apreciadores pretenderam trasladar-lhe os restos mortaes para a terra do seu berço. Mau grado de todos, esta idéa surgiu tarde, já decorridos os cinco annos regulamentares do repouso na terra mãe, e assim, ao tempo os seus ossos já estavam baralhados no ossoario do cemitério de St. Ouen. Todavia, a lição que resulta d’este reconhecimento postumo, ficou para louvor dos seus conterraneos e estimulo a quem saiba manejar uma penna com talento e sinceridade.

Henrique das Neves – “Guilherme de Azevedo”. Brasil-Portugal: revista quinzenal ilustrada. N.º 127, 1904, p. 483.

coxo”; por outro lado, o autor realça o prestígio que o poeta adquiriu entre os seus conterrâneos mais “ilustrados”, que desde as últimas décadas do século XIX vinham desenvolvendo algumas iniciativas em prol da memória de Guilherme de Azevedo. Contam-se, entre estas, o projecto gorado que visava a construção de um mausoléu e a trasladação dos ossos do poeta do cemitério de Saint Ouen para a sua terra natal. A par desta iniciativa, promovida por uma comissão local criada em 1892 e que viria a provocar uma polémica na imprensa que questionava o destino dos fundos angariados por subscrições abertas em Lisboa e Santarém, a figura de Guilherme de Azevedo foi também celebrada no plano local através de distintas manifestações. Entre elas, o aparecimento dos periódicos O Guilherme de Azevedo (1888-89) e Alma Nova (1897-99), a atribuição do seu nome a uma rua da cidade, assim como ao primeiro centro republicano local, fundado em 1895, e ao Grémio Literário, inaugurado em 1905, e, ainda, a criação do prémio Guilherme de Azevedo, instituído pela Câmara Municipal, em 1902.

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Os modos de vida e a transformação dos costumes escalabitanos

MEU Eduardo: Pedes me da Serra da Estrella, onde estás a mais de 1800 metros acima de nós – da altura em que respiras um sopro de liberdade, vivo e tonificante – que te dê noticias da nossa terra. É estranhavel que quem vive no ceu... queira saber alguma coisa dos miseros habitantes terrenos. E demais o que posso eu acrescentar, meu bom amigo, ao que lês em todos os dias e no fim de cada semana nas gazetas da capital e lamparinas locaes, onde não falta um noticiario condimentado a gosto para uma bôa digestão espiritual?

Olha, meu caro, a vida d’esta bemdita terra, é a mesma de todos os dias: charra e mazomba, cortada aqui e acolá por alguma nota de critica mal intencionada no soalheiro de senhoras visinhas.

Passam-se os dias da semana no trabálho, os que de ele precisam para vivêr. Aos domingos vái-se ao Jardim da Republica para ouvir a banda militar, o que acontece em toda a parte. De resto… uns vivem em suas cásas outros vão para as de fóra dizêr mal da vida alheia. Como em toda a parte tambem…

Pelo que tóca a sustentar o canudo da existencia, é que está coisa muito séria!

A minha consorte assim o diz, barafustando, em ancias de revolta, contra a carestia dos generos de alimentação. O arranjinho caseiro d’um burocrata obscuro custa os olhos da cara, meu amigo!

Os merceeiros, como não póde deixar de sêr, aguentam com calotes bravios dos empregados, e os que pagam bem é que se amólam porque págam pelos caloteiros.

A contrastar, porém, com tudo isto temos o luxo a dar uma nota impressiva de riquêza e fausto a esta terra, que afinal não tem para isso. O forasteiro que nos visita vae dizer lá para fóra que vivemos n’um Eldorado. Vejo por ahi muitas senhoras ostentando cáros vestidos – com o aprumo de fidalgas de alta linhagem – mas o meu Figaro diz-me que são altos prodigios de finanças domesticas…

O que é certo é que ha ménages atribulados, ou ha bolsa oculta que ajuda os consortes a levar a cruz das suas desditas!... Sendo certo que, com quinhentos mil réis por mês, o chefe de familia opéra um verdadeiro milagre conseguindo pagar a renda da casa, a comida, a lavadeira, a agua, o gaz ou petroleo, o carvão e ainda ao sapateiro, ao alfaiate e modista!

A par d’estas manifestações de... miseria social, temos os clubs, animatografos, teatros e touradas, com grande frequencia e toda a gente por ahi anda muito satisfeita, a rir de contente, como se lhe tivésse saido a sórte grande.

Os felizes preparam as malas para a vilegiatura veraniéga á beira-már. Já partiram para a Figueira e Espinho alguns citadinos irrequiétos de aspirar as emanações marinhas que, como tu dizes, são de

A narrativa em forma epistolar de José Osório – poeta e escritor que fixou residência em Santarém e foi autor de várias obras literárias inspiradas nessa cidade – transmite as suas impressões acerca do ambiente socioeconómico que marcava a urbe escalabitana na segunda década do século XX. Centrando-se nos modos de vida da população local, o autor dá conta da forma como esta se havia apropriado das novas práticas civilizacionais implementadas com o século XIX, e associadas à burguesia e aos grandes centros urbanos, começando por realçar o hábito generalizado de ostentação de riqueza, assim como o gosto pelo divertimento, a partir dos quais caracteriza os habitantes da cidade de Santarém. Aludindo às formas de lazer da sociedade escalabitana, entre as suas práticas de carácter lúdico e cultural, o autor destaca, por um lado, as actividades que tinham lugar na cidade – como os passeios dominicais ao Jardim da República, para assistir aos concertos da banda militar, e a frequência do clube, do teatro, do animatógrafo, e dos constantes espectáculos de corridas de touros – , e, por outro lado, dá conta da adesão generalizada à moda da vilegiatura marítima – prática de ostentação e forma de distinção social que se vinha a desenvolver entre as populações citadinas e que, no que respeita à sociedade local, tinha lugar sobretudo nas praias de Espinho e da Figueira da Foz.

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grande desiquilibrio das funcções economicas... Se os dias de setembro trouxérem d’aquele sól que chove fogo fulminador, pouca gente, como de

costume, por cá ficará. Tudo debanda para as praias ou para qualquer remanso rural, a dar treguas ás canceiras da vida. Sómente eu, meu caro, por aqui me quedarei no berço do Alfageme, até que um dia a deusa Fortuna me dê tambem um ar do seu sorriso... Apreciaria sair é certo porque me incomoda o ofêgar da vida urbana, o rumorejar das multidões.

[…] Eu que desejo passar esquecido, como o mais obscuro bicho da terra, mas que não posso, ter o isolamento que mais se cuadunava com o meu temperamento, sinto, podes crer, meu amigo, impulsos doidos de regressão ao tempo patriarchal e seria um feliz mortal morrendo na paz das serranias. Será talvez isto uma influencia que vem dos primeiros dias da minha meninice, passados n’um pedaço de terra galhardamente portugueza, em que o meu espirito se habituou a sentir a imponencia e severidade dos rudes penhascos e a minha alma ajoelhava em adoração ante as grandiosidades das montanhas! É certo, porém, que reconheço em mim o tedio profundo por esta falsa civilisação do nosso tempo e não tenho feitio para acompanhar o côro politico que é ahi o pão nosso de cada dia e de cada noite da pasmaceira indigena.

Faço sinceros votos para que ao contacto d’essas rijas penedias adquiras uma forte e robusta saude como tu precisas.

José Osório – Por Santarém: impressões e fantasias, 1915, pp. 74-7.

AI, romarias!... N’esta pingue região aonde a vinha colga de esmeraldas as

lezirias d’aquem e d’além-Tejo, as romarias são uma silhueta muito tenue d’esses festivaes inda nativos no recesso das províncias do Minho e Beiras […].

Tirante a saude – que é, inda a despeito da decrepitude trovadoresca em que cahiram estas festanças, a romaria mais rumorosa p’los suburbios da Scalabis – apenas nos restam: a visita annual á rustica capellinha dos Anjos que os pinhaes ensombram e os ruidos d’apotheose ás virtudes do velho romeiro egypciano, nas Omnias, com grandes festins de peixe-assado no espeto, na franca e hilariante liberdade que dão os hervaçaes sempre ridentes da beira d’agua.

É que as romarias se encontram em briga co’a corrente avassaladora e dominante do Progresso e creio bem que elle amortalhará de vez esses festivaes puramente luzitanos, aonde a alma do povo ruricola se expandia inda ha pouco por entre as rutilações d’um jubilo todo seu.

Presentemente, a decadencia da festa dos Arrieiros evidenceia-se á maneira que as garrafas de capilé côr de topasio – com toda a sua exhibição de exemplares da fauna mythologica, em lata, tão interessante e tão provocadora e a sua bateria de limões tão appetitosos – vão cedendo o passo ás garrafas de pirolitos com rolhas de vidro de moderno invento e á exposição de chinezerias de consólo, que na lucta p’la

Datada do final do século XIX e da autoria do escalabitano João Arruda – acérrimo defensor dos bens patrimoniais da sua terra natal e da região do Ribatejo –, esta narrativa de fundo “saudosista” tem como temática central a decadência dos costumes populares de Santarém, que o autor denuncia focando o modo como as romarias tradicionais tendiam a cair em desuso ou a ser modernizadas, em razão dos efeitos do progresso. Dos costumes tradicionais, além da visita que se realizava anualmente à Capela dos Anjos, restavam apenas a Festa dos Arrieiros e a Romaria da Senhora da Saúde – realizada no primeiro domingo de Agosto com a partida do Círio da Ribeira de Santarém para o lugar da Saúde. Estas evidenciavam sobremaneira a descaracterização dos usos antigos, perceptível, entre outros aspectos, na alteração dos “pitorescos” meios de locomoção e dos trajes utilizados nos cortejos e na introdução dos produtos de “moderno invento” e das “chinezerias” que se expunham nos bazares.

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concorrencia derivam dos grandes bazares á tentação das aldeias broncas. Hoje já se não convocam, como em tempos idos, as familias numerosas, d’avós a netos, que

partiam p’la frescura que a madrugada entorna, nos archaicos vehiculos ribatejanos, puxados a bois, caminhando com aquella celeridade que deveria ter o Sancho Pansa de Cervantes, levando sobre o cabeçalho os grandes cestos de verga de marmelleiro, abarrotados de merendas succulentas e cuidadosamente amparados aos fueiros.

Por isso, no primeiro domingo de agosto, quando o cyrio parte da Ribeira, precedido dos cherubins… terrestres, com azas de gomma, cavalgando bucefalos brancos como o de Bonaparte, a recitar lôas sem metro e sem grammatica, e o guião, erecto, em meio d’um trio de cavallos d’aluguer... – vem p’ra mim uma sensação de mau estar por estas coisas chinfrins, de barraca de feira, sem paridade com o antigo cortejo tão pittoresco e tão suggestivo, de grande cauda: carros a dois bois, com topes azues, vermelhos, cor de violeta e d’esperança nos grossos chavelhos; os carrejões de camisa alva, ostentando ao hombro a jaqueta d’ir á desobriga e pendendo-lhes dos bolsos, como um rèclame á industria de Peniche, os lenços de rendas complicadas; as carapinhas d’um vermelho ardente, côr da flôr dos catos, orlando os barretes phrygios e o aguilhão dos dias celebrados – castanho puro, olé!

Depois, sobre o matto perfumado dos pinhaes, junto das balseiras aonde as amoras luzentes parece exigirem boquinhas polpudas para mordel-as com tresvario, e ainda sob os chorões que mergulham constantemente e, eternamente, os seus cabellos verdes na agua dos tanques – abençoados os que se banham! – estendia-se a toalha, d’uma alvura d’açucena, ímmaculada como um branco seio de virgem ao luar, e então era de vêr como a pequenada alegre cantava e ria diante do altar da meza que tinha por calix a borracha de grande bocal torneado o por ostia a loura gallinha tostada, escorrendo manteigas...

Os que se não acommodavam furtivamente p’los pinhaes, vinham p’r’as hortas, á luz do dia, fazendo docel dos laranjaes ou estendendo-se junto das noras aonde a agua cahe em ruido, dando uma appetitosa sensação de refrigerio, e ahi, ao pó-pó-pó dos foguetes do Pimenta – até este pyrotechnico vae passando de moda! – deslacravam-se as garrafas, esmagava-se a alface, ia-se retalhando em fatias a perna avermelhada do carneiro, praticava-se a anatomia nos frangãos tostados servindo d’engaste aos pratalhões d’arroz de forno, distribuiam-se ovos cosidos e os pequeninos queijos cabreiros, redondos e brancos como jaspe e espalhavam-se na brancura da toalha as azeitonas, muito negras e luzidias de azeviche.

Ao levantar da meza, quando roxos de crepusculo pincelavam o ceu e o sol se afogava, irradiando palhetas d’oiro velho, iam todos proferir, ante o altar da Santa, a salve-rainha do ritual, pedindo lhe saude per omnia secula...

Só quando começavam de scintillar as primeiras estrellas indecisas da noite, é que os pachorrentos vehiculos se punham em movimento: havia grandes harpejos de guitarra e os ranchos voltavam satisfeitos, repletos, dispersando-se aos pares, caminhos fóra, sob um ceu discreto, sem lua, deixando-se ficar ás vezes, na penumbra que as grandes oliveiras projectam nas terras de pão, ou sob as moitas de loireiros – a recompôr pedaços de Belot...

Hoje, o char-á-banc, co’a barateza de transportes eclipsou radicalmente os pittorescos carros campesinos que iam chiando, ao sol, toldados com coberturas polychromas, e, pelos mattos e hortejos, merenda-se, é certo, mas sem esse cunho sympathico, patriarchal, que levava as familias a reunir-se ali, no mais fraternal convivio, como nas terras provinciaes p’la longa noute do Natal.

Tudo tem soffrido mutação... Só a Virgem da Saude se conserva inalteravel – mãe de misericórdia, esperança nossa – no rosado

das suas faces menineiras, adorada em cada anno p’los enfermos, já hoje raros, que descreem da Medicina e se apegam co’a milagrosa senhora...

Ai, romarias!...

João Arruda – Através de Santarém: notas de um cronista, 1898, pp. 64-8.

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Uma cidade monumental e progressista

Dos antigos edificios que a mão do homem tem abandonado, ou, o que peior é, injuriado com successivas reformas dentro da Alcaçova de Santarem, o mais notavel é a igreja de Santa Maria. Não que o aspecto do templo nos revele a epocha em que foi fundado: nada ha nas suas linhas architectonicas que não seja de dous dias. É um casarão ao divino esquadriado, caiado, prosaico e mesquinho. Nem sequer tem a magestade das grandes dimensões. Uma inscripção do seculo XII, gravada em marmore branco sobre a porta principal, é que nos ajuda a substituir pela imaginação o que essas pilastras e paredões lisos e massudos, essas portas sem

elegancia e sem arte, esses telhados de armazem não podem dizer-nos. É ella que nos faz galgar por cima das successivas restaurações e dos vandalismos de não sei quantas gerações de conegos, para reconstruirmos a velha igreja ahi fundada pelos templarios […]. Que mal fizemos nós aos gordos e anafados conegos e aos condes de Unhão, padroeiros da Igreja de Santa Maria, para hoje nos empalmarem a porta ogival com que harmonisavam esses caracteres do seculo XII, que lhe serviam de diadema; para amanhã nos picarem ou derribarem as columnas gothicas das naves, adornando-as impiamente de capiteis corinthios, e arredondando sobre ellas as voltas ponteagudas do tecto; para em cada seculo, ou talvez em cada decada, porem o estygma, a dedada sebenta do mau gosto, do prosaismo estupido, no livro de pedra de Pedro Arnaldo? Reprehendemos o vandalismo da epocha actual, mas nos crimes de lesa-arte e de leso-patriotismo commetidos no meio das revoluções e no ardor das luctas civis ha muito menos imputação do que n’estes assassinios barbaros das velhas edificações, perpetrados a sangue frio por conegos, e por frades, e por commendadores, e por magistrados, e por nobres, para entreterem os ocios das poucas horas inertes que tinham de supportar entre os succulentos almoços, os jantares opiparos, e as lautas ceias recheiadas das apoplexias nocturnas, que por via da regra conduziam aquelles dignos varões ao campo do eterno repouso. […]

Duas inscripções, a do frontispicio da igreja e a de um tumulo na escada do côro, eis tudo o que resta de S. Maria de Alcaçova, a primitiva e legitima.

Alexandre Herculano – “Na Estremadura”. O Panorama. N.º 26, 1854, pp. 203-4.

APRECIO muito Santarem. […] Procura a gente ali uma cidade antiga, e encontra uma

cidade nova. Procura uma cidade nova e tem a memoria cheia de tradições de uma cidade antiga. É que em Santarem ha hoje reunidas n’uma só cidade muitas cidades de diversas epocas: ha a cidade mythologica do rei Abidis […]; ha a cidade romana de Julio Cesar […]; ha a cidade gothica do tempo de Receswindo […]; ha a cidade moirisca […]; ha a cidade medieval […]; ha, finalmente, a cidade moderna, onde o recinto da alcaçova foi convertido no lindo jardim da Porta do Sol e as ruinas do convento de S. Domingos […] transformadas na actual praça de touros.

Junto ao jardim das Portas do Sol, esta igreja foi fundada no século XII pelo cavaleiro templário Frei Pedro Arnaldo. A igreja original de traça românica serviu de capela ao Paço Real e foi reconstruída nos séculos XVI e XVIII. Da primitiva traça nada resta, sendo os retábulos laterais, de cunho maneirista, os elementos mais antigos deste templo de ambiência neoclássica.

Transmitindo uma visão geral da cidade de Santarém, em 1903, a narrativa de viagem de Alberto Pimentel realça a feição progressiva da urbe que, evidenciada na sua vitalidade socioeconómica e nos seus novos elementos urbanísticos que se sobrepunham à cidade histórica, adquiria expressão na intensa actividade comercial e no cunho moderno que caracterizava os equipamentos da cidade, assim como as formas de sociabilidade dos seus habitantes.

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[…] A cidade actual continua a manter a sua variedade de aspectos, porque se conserva dividida em tres bairros distinctos; Marvilla no alto, Alfange n’uma quebrada á banda do sul; Ribeira, na margem do Tejo.

[…] A extensa ponte, que mede 1.195 metros de extensão e foi inaugurada a 17 de Setembro de 1881, communicando as duas margens do Tejo, completa desde logo a convicção de que está ali construida para servir os interesses de uma cidade importante e populosa, que trasborda o seu movimento e vitalidade para toda a vasta região ribatejana.

É pelo bairro da Ribeira que passa a linha ferrea do norte, a pequena distancia do rio. É ahi que se encontra a «estação de Santarem». […]

Entrámos finalmente na cidade, surgem-nos fachadas de grandes edificios, os conventos da Trindade e S. Francisco, que são hoje o quartel de artilharia, e logo adeante d’elles, tambem á direita, o Passeio da Rainha D. Amelia, contiguo ao vasto Campo Sá da Bandeira; passamos o largo de Passos Manuel, que se nobilita com o amplo edificio do Seminario, e penetrámos nas estreitas ruas de Santarem, que são um defeito de origem, já quanto possivel corrigido por alinhamentos modernos.

Fére-nos logo a vista a exuberancia de movimento commercial. De um lado e outro de cada rua abundam as lojas de fazendas, de quinquilharias, de modas, de utensilios domesticos, de generos alimenticios. Ha montres elegantes, algumas luxuosas; e extensos estabelecimentos que rivalisam com os de Lisboa na capacidade e na provisão.

O vasto armazem de fazendas de Alexandre da Silva Telhada & Irmão, installado em edificio proprio, bem póde chamar-se o Grandella de Santarem.

A cidade historica tende a desapparecer, é certo, os monumentos antigos teem sido transformados ou abatidos, bem ou mal, mas a Santarem moderna é uma cidade viva, activa, rica, especialmente pela abundancia e energia dos factores commerciaes.

Não se encontra um unico vestigio de mendicidade; dos moradores do bairro alto os que não são ricos parece serem remediados.

[…] É que as familias santarenas, algumas das quaes são de boa origem, possuem os recursos pecuniarios sufficientes para uma existencia despreoccupada; e da sua facil communicação social com Lisboa tiram o gosto pelo theatro, pelos passeios, pela toilette, pela convivencia e trato polido, por todo esse «verniz de vida» que caracterisa os grandes centros populosos.

Assim, não obstante a cidade estar alcandorada e como solitaria sobre uma alta montanha, cujo accesso é difficil, o seu aspecto interior revela alegria e a sua população, longe de ser bisonha, diverte-se e trabalha, enriquece e gosa, vive e convive, aproveitando todos os regalos e distracções das sociedades modernas.

Não se limita, pois, a ser fanatica por touros e touradas como aliás todo o Ribatejo; divertimento que por tradição regional alvoroça sempre o espirito dos santarenos e lhes fornece assumpto para animadas discussões.

Tem um lindo theatro, que tomou o nome da actriz «Rosa Damasceno» e que, se exceptuarmos o de Evora, é um dos melhores e mais elegantes que conhecemos nas provincias do sul.

[…] Ha ainda na cidade alta, por detraz do Museu de S. João d’Alporão, o modesto theatrinho «Taborda».

Possue Santarem uma excellente assembléa, onde todas as noites se reunem os mais grados habitantes da cidade e onde, pelo Carnaval, se realizam bailes muito concorridos e brilhantes.

Não vá suppôr-se que esta tendencia de sociabilidade se circumscreve apenas ás familias principaes. Não. Os empregados do commercio organisaram uma Tuna para seu recreio. E as classes operarias também se divertem e convivem. O leitor ainda ha de estar lembrado do pavoroso incendio que destruiu o Gremio artistico de Santarem n’uma noite de Carnaval, 18 de fevereiro de 1896, fazendo 36 victimas.

Como rendez-vous elegante, ao ar livre, ha em Santarem o Passeio da Rainha onde, aos domingos

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e quintas feiras toca a banda regimental, e que costuma ser frequentado pela melhor sociedade scalabitana.

N’este Passeio o trottoir elegante é a rua fronteira á fachada lateral do Seminario. […] Mas o Passeio da Rainha, com ser o mais elegante de Santarem, não é o mais pittoresco, pois

em formosura de situação o desbanca e supplanta o jardim da Porta do Sol, fundado em 1895 no monte da Alcaçova.

Construiu-se uma larga avenida, que se intitula Conde de Alto Mearim, e que duas filas de olaias marginam gentilmente.

[…] A linda Avenida Conde de Alto Mearim predispõe excellentemente o viajante para d’ali a pouco ir gosar um dos mais bellos panoramas da provincia da Extremadura.

[…] Ha na cidade um movimento quasi constante de trens, particulares ou de aluguer, além dos que diariamente fazem carreiras para a estação do caminho de ferro. No districto residem muitos agricultores abastados, e até illustres, que possuem carruagens, e que frequentes vezes visitam a cidade em passeio de recreio ou para realisar transacções e fazer transferencias de fundos.

Em Santarem funciona uma agencia do Banco de Portugal, o que por si só dá a medida da importancia commercial da cidade.

Os cereaes, o vinho e o azeite constituem os principaes ramos de negocio. […] Ha em Santarem dois asylos: um de orphãos e inválidos, sustentado pela Misericordia; outro,

de Santo Antonio, para raparigas, sustentado pelo districto. Estão organisadas na cidade duas corporações de bombeiros: municipaes e voluntarios. Estes

ultimos crearam uma banda de Saxe, que se faz ouvir em alguns actos publicos. Funccionam em Santarem diversas fabricas: duas de cortumes, uma de moagem (dizem-me que

está agora parada), uma de alvaiade na estrada da Corrente e uma de lanificios estabelecida por um individuo de Minde.

[…] Voltemo-nos agora para um de dois institutos novos, que modernisam o districto de Santarem, e que o viajante não quererá deixar de vêr.

É a Escola de regentes agricolas Moraes Soares. O outro é a Coudelaria Nacional […]. Entre as inovações uteis de Santarem deve mencionar-se a bibliotheca municipal, que não é por ora

rica em volumes, mas que está bem installada. Fui visital-a á noite e acheia-a aberta. Leitores, havia um ou dois. Folguei de que uma lei, que é da minha unica iniciativa, e que tanto me custou a fazer passar no

parlamento, a lei que estabeleceu a leitura nocturna nas bibliothecas publicas, fosse pontualmente observada n’uma cidade de provincia.

[…] Santarem não ficou improgressiva, abraçada aos seus poentos pergaminhos, nem apontando apenas para as memorias historicas, que tanto a enobrecem. Não. Renovou-se, seguiu a evolução dos tempos, acommodou-se ás circumstancias, e n’isto lhe seguiu o exemplo a sua vizinha da margem fronteira, a villa de Almeirim.

Alberto Pimentel – A Estremadura portuguesa. Vol. I, 1908, pp. 261-87.

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SETÚBAL

As comemorações setubalenses em homenagem aos autores locais

As manifestações de defesa do património local

As impressões da cidade de Setúbal no século XIX

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As comemorações setubalenses em homenagem aos autores locais

Em 1902 passei parte do verão em Setubal. Uma tarde recebi um recado de Paulino de Oliveira para ir a casa d’elle, porque estava lá o Cantador, a quem eu desejava conhecer. Fui, e confesso que, quando encarei com aquelle velho de 81 annos, rijo e de aspecto inculto, a recitar bellos versos de sua lavra, me senti bastante impressionado. O Cantador é alto, encorpado, de voz grossa. Diz os versos com emphase no tom e no gesto, dá-lhes vida, e communica tambem a propria emoção a quem o ouve. Que forte organização poetica! E comtudo é analphabeto; mal sabe lêr lettra redonda, e só esta, pois na de mão não entra. […]

O nosso poeta dedicou-se toda a sua vida ao mister de cantador, que elle exerceu concomitantemente com o de calafate. Agora já não calafeta barcos, e só raro canta; mas a veia poetica não se lhe extinguiu. Nas terras do Sul do Tejo estão muito em voga, no povo, décimas feitas por cantadores. Ha mesmo cadernos manuscriptos com ellas, que passam de mão em mão, e de casa para casa. As décimas, como nos exemplos que acima vimos, servem de glosa a uma quadra que tem a fórmula a b c b; e esta quadra é extremamente simples, e as décimas, em que já fica assim havendo versos conhecidos, tornam-se um pouco mecanicas. Á sua disposição natural para rimar junta o Calafate prática e exercicios continuos, desde os verdes annos; em virtude d’isso, e da relativa facilidade com que se fazem as décimas, compõe as suas poesias com muita rapidez, não obstante empregar de quando em quando rimas difficeis; os versos saem-lhe fluentes, e geralmente correctos.

Não é lyrico nem sentimental; nas suas poesias ha poucas imagens e comparações. As décimas limitam-se por vezes a meras enumerações. Todavia o Calafate tem grande poder de observação; pinta o que vê em volta de si, – as arvores, os trajos populares, os objectos domesticos; discute os assuntos que no momento preoccupam a opinião pública […]; verbera, com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade lhe não agrada. O caracter fundamental da sua poesia é este: realista, sentencioso e satirico. Na satira usa frequentemente da licenciosidade, como verdadeiro conterraneo, que elle é, de

Publicado no jornal comemorativo Folha de Saudação, o texto de José Leite de Vasconcelos constitui um testemunho da homenagem que os setubalenses prestaram ao poeta popular António Maria Eusébio – conhecido como o “Calafate” ou o “Cantador de Setúbal” –, por ocasião do seu 82º aniversário. O evento foi promovido por Henrique das Neves que, em 1902, fez publicar, no jornal setubalense O Distrito, um artigo em defesa da realização de uma récita de beneficência e tributo ao poeta, ideia a que aderiram Ana de Castro Osório e Paulino de Oliveira. Numa reunião decorrida no Teatro D. Amélia no dia 30 de Novembro, constituiu-se uma comissão que teve a seu cargo a realização dessa homenagem. Responsável por uma subscrição e pela edição do jornal de número único acima referido, essa comissão local organizou também a sessão solene realizada no Teatro D. Amélia, de Setúbal, a 15 de Dezembro de 1902, na qual participaram alguns artistas amadores de Setúbal. O evento contou ainda com a participação do actor Valleque, que interpretou os monólogos Aldghieri Junior, Mania métrica e O Terrível; do actor Roque, que desempenhou as peças O Pinguinhas e Uma viagem em burro e recitou um poema de Tomás Ribeiro; e da actriz Mercedes Blasco, que interpretou as árias Serenade e Dernier etreints e, ainda, o poema de Paulino de Oliveira, Aos 82 anos de Calafate, que, tal como o poema Agradecimento, da autoria do Cantador de Setúbal e também aqui transcrito, foi distribuído pelo público nessa ocasião.

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Bocage. N’um homem sem instrucção de especie alguma, a não ser a que espontaneamente colheu na

prática da sua longa vida, é admiravel esta malleabilidade de talento, e esta facundia metrica.

Lisboa, 5 de Dezembro de 1902

J. Leite de Vasconcellos

AOS 82 ANNOS DO CALAFATE

(Na noute da sua festa)

MOTE

Oitenta e dois hoje conta, Oitenta e dois bem contados; Todos á uma proclamam: Que annos tão bem empregados!

GLOSA

Vem de longe, e a caminhada Não foi de cantos sómente. Fizeram-no velho e doente As inclemencias da estrada. Alma p’ra cantar fadada Como a ave sempre prompta, Repartiu-se sem affronta Na mais trabalhosa lida. De rude e afanosa vida Oitenta e dois hoje conta.

Por milagre sem segundo, A sua ideia tão vasta De trovador e sarcasta Não o fez um vagabundo. Andou cantando p’lo mundo Mas castigando em seus «fados» Cousas, factos, potentados… Luctou de varias maneiras Annos de riso e canceiras, Oitenta e dois bem contados.

«Sem fazer mal a ninguem», Sem queixa dos proprios f’ridos, Oitenta e dois annos idos Combatendo e rindo bem, – Tal força o genio contém! Contra elle não reclamam E até lhe querem, o acclamam, – Tal sua graça e bondade! Pura gloria da cidade, Todos á uma proclamam.

Vae já seu corpo a dobrar, Mas o estro – menos escasso Do que a força do seu braço – Muito ainda hade vibrar. Nem a morte o hade calar. Pois seus versos afamados P’las gerações decorados Echoarão além da morte… Que longa e gloriosa sorte! Que anos tão bem empregados!

Setubal, 15-12-1902

Paulino de Oliveira

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AGRADECIMENTO

1

Nesta patria dos enganos Onde há mal e padecer Não sei o que possa ser Quem conta 82 annos; É sofrer males tyrannos, Que outro remedio não tem, É andar n’um vai e vem Remando com remo torto, É um homem quasi morto, No mundo não é ninguem.

3

Agradeço á comissão, Agradeço aos jornalistas, Agradeço aos bons artistas Que me vieram dar a mão, Agradeço a promptidão, Agradeço a boa vontade, Agradeço á auctoridade Que tanto apoio me deu, Por saber que não morreu A virtude – Caridade.

6

Tambem estou muito grato A um generoso amigo Que por ser o mais antigo Nunca quer ser nomeado. Mas ha um dever sagrado Que não me deve esquecer Tenho que lhe agradecer Todo o bem que se agradece E se assim o não fizesse Mais me valia morrer

8

Agradeço á orchestra, Esses typos de bondade Que de tão boa vontade Abrilhantaram esta festa. Bem sei que muito me resta Mas a ideia está cançada; Adeus casa abençoada, Adeus povo bemfazejo, Que o bem que lhes desejo É uma noite descançada.

Setubal, 15 de Novembro de 1902

António Maria Eusebio, Calafate

J. Leite de Vasconcelos, Paulino de Oliveira e António Maria Eusébio – Folha de saudação aos 82 anos de António Maria Eusébio: calafate o "Cantador de Setúbal”, 1902, s/p.

Bocage afigura-se-me um génio retórico, cuja prodigiosa abundância declamatória quase sempre fatiga, como é costume, antes de comovêr.

Se tivesse vivido na Renascença, este pródigo mental, devia ter sido á maneira de Camões, um escriptôr-literatura; – como no seu próprio tempo, – o tempo de Goethe, – o haveria de sêr tambem se, florescido num meio europeu, amestrado com a naturêsa, disciplinado pela cultura scientifica, elle tivesse respirado o ar vivo das ideias, e tivesse tocado o coração das coisas.

Assim, parece-me Bocage um dos maiores desgraçados do seu século – que é um monte de estêrco, em estilo rococó.

A comemoração do I Centenário da morte de Bocage constitui o evento festivo mais significativo que teve lugar em Setúbal no início do século XX. Contando com um programa de festas iniciado a 20 de Dezembro de 1905 e encerrado a 22 desse mês, com uma récita de gala no Teatro D. Amélia, o evento teve como ponto alto o cortejo cívico realizado no dia 21, data na qual foi ainda publicado o jornal comemorativo editado por Ana de Castro Osório e Paulino de Oliveira e do qual se transcreve o texto de Afonso Lopes Vieira.

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O que ha de artificial na sua obra, – tanta Nise, e nem uma árvore!, – e o que ha de infeliz na sua vida, – das mais limpas comtudo se as compararmos ás dos pedinchões da época, – foi a Baixa que os engendrou. Bocage vingou-se da Baixa cravando-lhe os tiros dos seus epigramas da rua, das suas sátiras obscenas, o lixo por vezes admirável da sua obra satirica e secreta, que é a máscara mais humana e sincera da sua dôr.

Mas a Baixa matou-o, – que é afinal o que ella sempre faz com certa perfeição…

Novembro de 1905

Afonso Lopes Vieira – “Bocage desgraçado”. Bocage: a nossa homenagem ao insigne poeta setubalense na passagem do 1º centenário da sua morte, 1905, p. 6.

As manifestações de defesa do património local

A casa em que nasceu (15 de Setembro de 1765) e passou a juventude aquelle que, poucos annos depois, havia de immortalisar o seu nome como o do maior poeta de Portugal – depois de Camões, – é aquella modesta casa de que dâmos traz duas gravuras. […]

Ha já muitos annos (desde 1864) que esse predio em que uma familia distincta de poetas viveu e poetou, não passa desapercebido. Por sobre a porta da escada que conduz ao primeiro e único andar, que foi o berço d’Elmano, existe uma lapide commemorativa, com a seguinte inscripção gravada a preto:

NESTA CASA NASCEU O INSIGNE POETA MANUEL MARIA BARBOSA DU BOCAGE A 15 DE SETEMBRO DE

1765 ALGUNS DOS SEUS CONTERRANEOS MANDARAM

FAZER ESTA MEMORIA NO ANNO DE 1864

Foi em 10 de abril de 1864 que, com «numeroso concurso de povo e com assitencia da comissão dos subscriptores» se inaugurou esta simples lapide, padrão que, mais do que «ao insigne poeta», honra os setubalenses que o promoveram. A cerimonia daquela colocação, segundo ainda as informações fornecidas pela «Memoria sobre a Historia e administração do Municipio de Setubal» foi uma «festa popular, posto que muito singela e sem nenhuma intervenção oficial»; e a honrosa ideia foi suggerida pelo jornal Voz do Progresso que o sr. Manuel Maria Portella redigia.

Da casa em que o árcade Elmano Sadino ensaiou os seus primeiros carmes era ultimamente proprietario Antonio Maria de Sousa, thesoureiro da egreja de S. Sebastião. Por sua morte,

Além da celebração do centenário bocagiano, em 1905, o culto da memória de Bocage vinha a adquirir expressão na cidade de Setúbal através de várias manifestações que aí tiveram lugar na segunda metade do século XIX. De salientar a inauguração da estátua do poeta, em 1871, sete anos depois de ser colocada uma lápide na casa onde o poeta nascera. Esta lápide foi financiada através de uma subscrição promovida no periódico setubalense Voz do Progresso, por Manuel Maria Portela. Dando conta deste último evento, decorrido a 10 de Abril de 1864, e defendendo a utilização da casa de Bocage para a instalação de um “museu artístico”, a narrativa de Paulino de Oliveira denuncia a polémica que desde o final do século XIX se vinha a gerar em torno do aproveitamento dado a esse edifício. Este fora comprado e recuperado pelo visconde Edmond Bartissol, que, num gesto de elevada consciência cívica, o ofereceu à cidade de Setúbal, em 1887, para que aí fosse instalada a biblioteca local ou um museu bocagiano. Esta vontade seria ignorada pela Câmara Municipal que, após alguns anos, ocupou a casa com o hospício dos expostos.

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foi ella posta em praça. Na imprensa aventou-se então a ideia de ser adquirida pela municipalidade de Setubal, para, em aproveitamento condigno, mais se perpetuar a memoria do glorioso poeta setubalense. Quem estas linhas escreve, alguma cousa fez neste sentido, contribuindo assim para a doação que pouco depois era feita, já que a edilidade, como todas remissa em assumptos desta natureza espiritual, não se resolvêra a tão grande desperdício… Foi necessário que um estrangeiro viesse dar-nos, em nossa casa, uma alta lição de civismo, para que a cidade de Setubal possa hoje ufanar-se de possuir, como pertença sua, a casa em que abriu os olhos ao mundo o seu filho mais illustre. Nem uma resolução patriotica do seu senado municipal; nem um rasgo de generosidade e de patriotismo por parte de um setubalense, de um portuguez emdinheirado…

A 10 de abril de 1887 era adquirida em hasta publica pelo sr. Manuel Joaquim da Costa, com procuração de M. Edmond Bartissol, proprietario da Herdade do Pinheiro neste concelho; e, depois de soffrer as reparações de que carecia, era doada por aquelle illustre cidadão frances ao Municipio de Setubal. […]

Quanto ao aproveitamento daquelle pequeno edificio, tão intencionalmente offertado á cidade de Setubal por um cidadão de um paiz acostumado a honrar as casas dos seus poetas e artistas, tambem… temos conversado. Primeiro foi hospicio de enjeitados – o que até parecia troça!... Depois, agora, o aproveitamento é mais nobremente cívico – aula de primeiras letras, e collegio eleitoral.

Não se poderia, de preferencia, instalar ali um pequeno museu artistico, em que uma bôa bocagiana tomasse o capital lugar?... Assim, sim. Assim é que seria propriamente perpetuado o poeta – o filho daquella casa. Assim é que a cidade de Setubal mostaria bem comprehender a oferta do generoso cidadão frances, e sêr digno della.

Paulino de Oliveira – “A casa em que nasceu Bocage”. Bocage: a nossa homenagem ao insigne poeta setubalense na passagem do 1º centenário da sua morte, 1905, pp. 10-1.

Ill.mos e Ex.mos Srs. – Sendo Setubal uma das mais formosas terras do país, aquella onde parece que a natureza caprichou em juntar os seus melhores dons, como um clima doce, um céu de esplendido azul, aguas de transparencia e limpidez incomparaveis, pomares, pinhaes, serras pittorescas, valles amenos, tudo o que a poderia tornar a estancia mais famosa e linda de Portugal, carece quasi por completo de uma sã orientação artistica que dê aos seus habitantes uma alta e nobre noção da Arte e lhes ensine a usar intelligentemente os beneficios tão prodigamente espalhados neste recanto privilegiado.

Parece-nos, pois, Senhores, que a criação de um Museu, que seja ensino do passado e incentivo para o futuro, é da mais urgente necessidade numa terra que deseja progredir, não somente pelo numero das suas fabricas e enriquecendo as industrias e commercio, como educando os seus filhos e mostrando aos estranhos que, a pari passu, se vae engradecendo materialmente, vae educando a intelligencia, rasgando vasto campo para se exercerem as aptidões artisticas do povo, que as tem incontestaveis.

Nas vossas mãos está hoje entregue a direcção do

Em consonância com as atitudes de defesa patrimonial que, desde o final do século XIX, reivindicavam a criação de instituições museológicas nas várias cidades de província, também em Setúbal se intentou a fundação de um museu municipal em 1901. Preconizado por várias figuras locais e tendo Ana de Castro Osório como principal promotora, foi criada uma comissão no Clube Setubalense que apresentou à Câmara Municipal a exposição aqui transcrita, na qual se defende a fundação de um museu na Capela do Corpo Santo. Ignorando-se essa proposta, ainda que no final de 1930 se instalasse provisoriamente um museu nas salas da Câmara Municipal, a partir de uma colecção doada à cidade por Olga de Morais Sarmento, somente no início de 1961 foi inaugurado o Museu de Setúbal, então instalado no Convento de Jesus.

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Municipio, e por isso a vós nos dirigimos para que nos auxilieis com o vosso concurso para a criação de um Museu Regional, que se nos antolha ser um dos melhoramentos inadiaveis numa cidade da importancia da nossa.

Se fossemos bastante ricos para edificarmos uma casa com todas as condições que a hygiene requer nas modernas habitações hospitalares, de construcção ligeira, rez-do-chão, bem arejada, e dividida propositada para o fim a que se destinava, não hesitariamos um instante em propôr á Santa Casa da Misericordia a troca por essa joia de inestimavel preço que se chama Convento de Jesus. Ahi instalariamos o Museu que Setubal requer, nessa casa que já por si representa um momento unico de grandeza na historia artistica do país, e que hoje, embora menos mal conservado, não é respeitado como devem ser os monumentos de arte, visto que as adaptações, por melhor que ellas se façam, nunca podem passar de triste remedio, e, quasi sempre ainda os mais criteriosamente dirigidos, são mutilações desastrosas para a esthetica. Mas, infelizmente, não dispomos de recursos monetarios, e tão somente de muito boa vontade de servir a nossa terra.

E, porque nas vossas mãos está dotar esta bella cidade com o mais artistico e suggestivo Museu que poderiamos sonhar, a vós nos dirigimos, Senhores, conscio de que vos fazemos um bom serviço.

Pequeno é o edifício em que pensámos, nem por emquanto poderemos pensar em grandezas, porque nos ha de ser ardua tarefa reunir objectos numa terra ha tantos annos posta a saque pelos amadores de fora, e que, com a mais inconsciente indifferença tem deixado levar as suas melhores cousas; mas a casa já de si é digna de figurar como preciosidade no Museu de arte que alvitramos. Como decerto já vos occurreu, referimo-nos ao que vulgarmente se chama «Capella do Corpo Santo», e que de capella pouco ou nada tem, a não ser o oratorio, todo de manifica talha dourada, por estranha fortuna em regular conservação.

Numa cidade que possui arte ás mãos cheias, o «Corpo Santo» não seria para desprezar; em Setubal, em que a carencia de monumentos e objectos de arte é muito sensivel, elle devia ser exposto com envaidecimento aos seus hospedes e tratado com o intelligente carinho com que se cuida nos paises civilizados de todas as manifestações de genio artistico.

Parece-nos, pois, Senhores, que não poderá continuar aquella preciosidade no desconhecimento de tanta gente, e quasi totalmente entregue ao bafio do abandono de velha casa deshabitada e trancada. Porque aquelle edificiozinho, que algumas cousas de custosa valia enthesoura, só de vez em quando é aproveitado para reuniões de uma associação de pescadores, que, – diga-se de passagem, para honra d’eles, – não o teem tratado com o vandalismo que a sua ignorancia nos faria suppôr, – differençando-se nisso de algumas pessoas de educação ou de posição elevada que já por vezes o teem esbulhado.

Não é digno, Senhores, de uma cidade civilizada, como se preza de ser a nossa, que se continue a deixar aquella casa tão artistica, ou a servir de associação de maritimos, ou a estar fechada a sete chaves, custando horas e dias de trabalho o desejo de a mostrar a alguem que procure conhecer Setubal.

Afigura-se-nos, Senhores que de maneira nenhuma ella seria utilizada melhor do que num pequeno, mas bello Museu local, porque tem condições para isso […]. Dupla e nobremente poderemos servir a terra em que exercemos as nossas actividades: dotá-la de um Museu para recreio dos olhos e do espirito, e resgatar um edificio do olvido, dando-lhe o unico aproveitamento condigno que deve ter.

E porque estamos convencidos da grande justiça do nosso pedido, a vós recorremos, esperando a graça da vossa criteriosa attenção e do vosso prompto deferimento.

E.R.M.ce

Setúbal, 24 de Outubro de 1901.

Ana de Castro Osório et al. – “Projecto de um Museu Arqueológico em Setúbal”. O Arqueólogo Português. N.º 1, 1902, pp. 19-21.

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As impressões da cidade de Setúbal no século XIX

Era então a Festa de Santo António. Longe, na noite, ardiam grandes fogueiras, tanto em frente, nos cumes dos montes, até onde a vista podia alcançar, como diante das casas dos camponeses nos laranjais. Moços e moças dançavam à volta do fogo até de madrugada. Toda Setúbal estava iluminada e em festa. Fogueiras atrás umas das outras resplandeciam em praças, ruas e becos. Foguetes subiam no ar, lançados de toda a parte, da cidade, dos barcos e até mesmo das dunas onde só marítimos ou pastores se poderiam encontrar.

O nosso vizinho Martinez levou-me com uma sobrinhinha à cidade para ver melhor todo o chamejante esplendor. Foi uma verdadeira viagem de «quebra-costas», por estradas terríveis e cheias de covas, ora envolvidos pelas sombras da noite, ora sob a luz deslumbrante das fogueiras diante das casas por onde passávamos. Assim foi por todo o caminho até entrarmos na cidade, onde só lentamente se podia circular. Andava quase toda a gente na rua. Muita gente havia também nos pequenos becos, onde, aqui e acolá, se exibia uma imagem de Santo António iluminada com lamparinas ou um pequeno altar com velas havia sido erguido em honra do santo. Chegou um grande cortejo de gente do mar, seguido de mulheres e crianças, cantando e tocando, isto é, tocando flautas e tambores. Nas ruas estreitas tínhamos de atravessar, não havia outra coisa a fazer senão passar com a carruagem por cima das fogueiras. Rapazinhos seminus divertiam-se a saltá-las e fagulhas e centelhas voavam por toda a parte. A música soava tão selvática que fazia lembrar um batuque de negros. Bombas de Santo António e foguetes saltavam por todos os lados, esguichando e zumbindo nas pedras da calçada, ora para baixo ora para cima, da carruagem e do cavalo. Não ter este desarvorado a galope, foi coisa que não consegui entender, nem como não termos virado com todo aquele fogo e trevas alternando-se. Estava inteiramente convencido que acabaria por quebrar uma perna ou um braço.

A cidade mostrava-se naquela noite, com toda a iluminação festiva, viva e alegre, em contraposição com o dia em que, sob o sol ardente, tomava um aspecto desolado. Nas ruas ou nas praças apenas se via uma ou outra pessoa, sob a protecção dum grande chapéu de sol branco, montada num cavalo ou burro. A maior e mais bonita praça é incontestàvelmente aquela que tem o nome do poeta português Bocage, nascido em Setúbal e que, como é frequente com os poetas, morreu em pobreza. Vai agora ser-lhe levantado um monumento, para o qual se está a fazer uma subscrição. Setúbal é orgulhosa do seu vate. […] Animação ruidosa observei apenas na referida festa de Santo António e numa grande tourada, que, no dia de São Pedro, se realizou no anfiteatro erguido entre a cidade e a estação de caminho de ferro.

Todo o barbárico e sanguinário que uma tourada apresenta em Espanha foi eliminado com as alterações introduzidas desde o tempo de Dom Pedro. Os cornos do touro são envolvidos para que não possam ferir de morte os pobres cavalos.

O anfiteatro é um grande edifício quadrado com três andares de camarotes, todos cobertos por um telhado. A arena octogonal, em contraposição, fica sob céu descoberto. Era na maior parte gente do

Durante a sua estadia em Portugal, país no qual permaneceu entre 6 de Maio e 14 de Agosto de 1866, Hans Christian Andersen visitou a cidade de Setúbal, para a qual se deslocou a 8 de Julho desse ano. Instalado na Quinta das Bonecas, propriedade da família do seu amigo Carlos O’Neill, situada nos arrabaldes de Setúbal, das suas deslocações à cidade o autor recolheu algumas impressões que, entre outros aspectos, focam o contraste entre a feição monótona que caracterizava a vida regular da urbe e o ambiente de euforia que aí testemunhou por ocasião da Festa de Santo António ou, ainda, quando assistiu a uma corrida de touros, espectáculo que constituía um dos principais divertimentos locais e que à época se realizava no claustro do Convento de S. João.

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povo, camponeses e pescadores, a que aí vi junta. Os camarotes estavam completamente cheios e apresentavam o mais colorido aspecto. A orquestra tocava boleros espanhóis. Entrou, então, a cavalo um jovem vestido a rigor e bem penteado que foi saudando para todos os lados. O touro foi intro-duzido e não levou muito tempo que fosse atingido com um ferro no cachaço. Dois moços aficionados saltaram para a arena, exibindo-se como hábeis bandarilheiros. Eram esbeltos homens, vestidos de veludo e ouro e de belas cabeleiras, como se estivessem num baile. Além destes havia ainda três bandarilheiros mais velhos e moços de calções brancos e jaquetas variegadas, com grandes flores estampadas. Como em Espanha, também aqui vi, depois de cada lide, abrirem-se os curros para entrar um grupo de touros mansos com chocalhos ao pescoço, levando para dentro os touros bravos que, rugindo e pingando sangue dos muitos ferros espetados no lombo, assim abandonavam o terreno de luta. Algo novo, que não havia visto em Espanha, foi o facto de os moços que haviam trazido os touros do campo, também exibirem a sua destreza. Colocavam-se a pequena distância da porta do curro ou deitavam-se no chão em frente, deixando que o touro os atacasse para logo se erguerem com um salto ou, com uma volta rápida, subtrairem-se ao ataque, suspenderem-se entre os cornos deste, e deixarem-se, para júbilo geral, arrastar um pouco por ele. Os outros moços agarravam então firmemente e com toda a força os cornos e a cauda do touro, libertando o companheiro. Um destes audaciosos moços foi de tal modo pisado pelo animal raivoso que teve de ser transportado para fora para ser sangrado pelo médico.

Esta espécie de tourada tem também a participação de particulares, contando-se que o rei exilado D. Miguel, mostrava precisamente desta forma grande coragem, tendo sido muito aplaudido pelo povo.

Hans Christian Andersen – Uma visita em Portugal em 1866, 1971, pp. 70-4.

Setubal é, como naturalmente sabem, uma cidade pequena, na margem do Sado, vivendo magramente de banhistas e fabricas de sardinha. Tem quatro velhas parochias, de roda de cujas igrejas se enroscam viellas nauseabundas, dois conventos ou tres, sem maior importancia archeologica – excepção feita ao de Jesus […] – e como obras modernas, uma extensa avenida marginal sem terraplenos de caes occultando a immundicie da praia coberta de dejectos, alguns desmazellados jardins impasseaveis, e uma estatua a Bocage, vestida de creado d’opera, defronte d’um portal gothico, e ao pé d’um chafariz secco. Na varruscadella á pressa das ruas, na brunidura módica de certas casitas novas, na ornamentação dos passeios e alamedas suburbanas, uma pelintrice salta, de cidade que se acapitala, sem estipendios fixos, particulares ou municipaes, e a quem a necessidade da clientella banhista impõe no verão, despezas, cujos fructos a penuria do inverno inutilisa.

Nos bairros velhos, como as construcções são primitivas, nullo o conforto, a hygiene um mero accinte, acontece que a

podridão dos lares córre nas ruas, descoberta, em jorros negros, cujo fartum humano se intromette ao do peixe podre, e ao dos monturos acoagulados pelos cantos. Esta povoação de meias sujas, velha e mesquinha, especie de Ribeira Velha complicada d’Alfama e Cruzes da Sé, alastra-se á beira rio n’um

As impressões recolhidas por Fialho de Almeida acerca da cidade de Setúbal, no final do século XIX, transmitem, essencialmente, uma imagem decadente da urbe que o autor coloca em realce, destacando a feição desmazelada da mesma. Criticando as condições higiénicas da cidade, ambiente que, afectado pelo cheiro nauseabundo e pela escassa limpeza das ruas e da praia, contrastava com a fragância dos laranjais, num tom jocoso o autor refere, ainda, a necessidade de demolir grande parte dos edifícios, excepto determinadas edificações antigas, nomeadamente o Convento de Jesus e os castelos de S. Filipe da Serra e de S. Tiago de Outão.

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leque branco, circumtornado de pomares e d’arvoredos, para além de cuja fimbria se altea depois um aro de serras magnificas, com thiaras de rochas e pinhaes.

Estes pomares, laranjaes na maior parte, que a epidemia arrasou em alguns annos de devastações não combatidas, foram por muito tempo em Portugal um oasis raro, tornando o vale de Setubal n’uma corbeille-caçoila […]. De sorte que o forasteiro sincero, depois que passeado na cidade, se vai desinfectar do seu máu cheiro aos campos, ao surprehender o contraste da obra de Deus com a dos homens, a primeira oração que faz é pedir aos ceus o terremoto, agora que o marquez de Pombal já cá não volta, com um indulto para o convento de Jesus, para os castellos de S. Fillippe da Serra e S. Thiago d’Outão, para os portaes da igreja do Sapal, e algumas miudezas mais de que este exiguo roteiro não dá conselho.

Foi o que eu fiz em toda a consciencia, depois d’um dia de passeios no Bomfim e gazosas no Lapido, vendo as sécias alemtejanas com coláres de varina, pavonear módas confeccionadas nos ateliers da rua do João Gallo e becco das Donzellas, sobre fazendas de quatrocentos e quarenta o metro, entrando as guarnições.

Fui-me pr’os campos, e como tinha os ouvidos cheios das sumptuosidades reaes da torre d’Outão, tomei um carro e fiz-me transportar té lá, no decidido proposito d’um inquerito formal sobre as quantias e o luxo esparso n’aquelle thronicio estabulo de verão.

Fialho de Almeida – Os gatos: publicação mensal de inquérito à vida portuguesa. N.º 34, 1892, pp. 3-6.

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VIANA do CASTELO

A Romaria da Senhora da Agonia e os bordados vianenses

As polémicas fomentadas pela intelectualidade local

A cidade de Viana do Castelo nas narrativas de viagem

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A Romaria da Senhora da Agonia e os bordados vianenses

A feira principia a 18 de agosto, e ordinariamente prolonga-se até setembro.

A romaria, com os festejos organisados pela cidade, dura tres a quatro dias – de 18 a 20 ou 21.

Sou adverso a longas citações, mas não me posso esquivar a uma, duplamente validada por a exactidão dos pormenores e pela auctoridade testemunhal da pessoa que a subscreve: o fallecido conego bracarense Antonio Lopes de Figueiredo:

«De todos os locaes onde se usa fazer feiras, nenhum campo ha em Portugal tão espaçoso e tão bonito como o d’Agonia: […] assentado á beira do oceano e nas fraldas do monte d’Agonia sob um céo claro e limpido, guarnecido pela comprida e abundante alameda do palacio dos viscondes de Geraz do Lima, é a perspectiva d’este campo indiscriptivel nas noutes dos dias 23, 24 e 25 de agosto, em que tem logar o arraial e festa da Senhora da Agonia.

«Como todas as romarias e arraiaes da provincia do Minho, o da Senhora da Agonia é esplendidamente poetico. É difficil descrever a maga impressão que produzem no Minho estas festas essencialmente populares. Não se encontram ahi, é verdade, os esplendores do diamante, nem os artisticos enfeites da toilette; mas, em troca, sobejam ali as inspirações sinceras e francas d’um povo […], que tão facilmente se perdem no agitado tumultuar das cidades, mas que o bonançoso viver do campo apura e conserva.

«Ascende a mais de 50:000 o numero de romeiros que todos os annos concorrem á festividade da Senhora d’Agonia: e apesar de tão subida concorrencia, e no meio dos variados e incessantes folguedos a que se entregam durante os 3 ultimos dias da romagem, a ordem publica nem sequer é ligeiramente alterada.»

Então durante alguns dias, Vianna […] offerece o mais deslumbrante mostruario de fatos variegados que a mulher do campo exhibe em terras de Portugal, ao norte ou ao sul.

É uma polychromia estonteadora […]. É o vermelho alegre e radioso, sem laivos sanguineos; é o amarello brando dos mal-me-queres; é o azul macio do myosote, fundindo-se n’um iris complicado, mas bello. É o oiro das arrecadas, dos

Dando conta da mais significativa e concorrida festividade realizada na cidade de Viana do Castelo, Alberto Pimentel publicou, em 1906, o opúsculo intitulado Nossa Senhora da Agonia em Viana do Castelo, aí descrevendo, de modo geral, as características dessa romaria, no âmbito da qual se realizava a maior feira franca da região do Minho. Assinalando o forte cunho lúdico desse evento, no qual o bulício e a mundanidade se sobrepunham aos ritos litúrgicos, o autor descreve a singularidade do ambiente que marcava essa romaria, aludindo ao seu carácter citadino e à riqueza de cores dos trajes femininos. No sentido de elucidar acerca da proporção dessas festividades, o autor fez ainda publicar no mesmo opúsculo um programa das Festas de 1906 que, decorrendo entre 18 e 21 de Agosto, anunciava, para além das cerimónias religiosas e da feira franca que tinha lugar no campo do Castelo, diversos espectáculos e divertimentos. A par da animação nas ruas da cidade proporcionada pelas bandas de música, pelas esturdias minhotas e pela presença dos Gigantones, dos Cabezudos e dos Zés P’reiras, as festas de 1906 foram, também, assinaladas com a realização de três touradas e de um arraial, com os espectáculos de fogos preso e de artifício, com iluminações e com um festival nocturno que teve lugar no jardim público. No último dia de festa realizou-se ainda a cerimónia da fundação da Junta Local da Liga Naval Portuguesa, assim como uma regata e uma serenata no rio Lima.

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cordões, dos pingentes, dos anneis, reluzindo em fulvas scintillações, como escamas de sol. É o polimento das chinellas espelhando a claridade da atmosphera sobre a poeira do chão.

Todos conhecem essas lindas saias e aventaes entrançados em cordõesinhos multicores, com vistosas barras subjacentes, que caracterisam o traje da mulher do campo no districto de Vianna do Castello.

Todos conhecem esses garridos collêtes, que deixam livres as mangas entufadas da camisa, e que parece servirem de ponto de apoio á turgidez opulenta do seio.

Todos conhecem essa original maneira de atar o lenço no alto da cabeça, n’um gracioso laço, cujas azas pendem para um e outro lado como enfeite que não encobre o rosto, antes o emoldura bellamente.

[…] Durante as festas da Agonia a minhôta de Vianna põe um clarão de elegancia e belleza nos grupos do arraial. Mas essa belleza marmorea não é fria nem morta como a das estatuas. Pula, canta, replica, sorri, e a sua voz harmoniosa eleva-se, como a da cotovia, quando recorda alguma trova da romagem, por exemplo:

A Senhora d’Agonia É madrinha de João. Eu tambem sou afilhada Da Virgem da Conceição.

[…] Na festa da Agonia, a cidade reforça certamente o aspecto mundano do arraial. Uma romaria realisada dentro de uma povoação de dez mil habitantes não póde seguramente ter o mesmo caracter apagado de outras que se effectuam em montanhas ermas ou aldeias sertanejas. Não. Em Vianna o bulicio, a mundanidade, a onda fervente dos romeiros e touristes sobrepõe-se aos actos lithurgicos e ao esplendor do culto marial. Mas isto não quer dizer que a crença religiosa seja ahi tibia e, muito menos, nulla.

A fé na Senhora da Agonia está no fundo dos corações, é uma tradição e herança de familia, uma corrente de devoção solidamente estabelecida entre as aldeias e villas do districto.

[…] Mas quando chegam as festas da Senhora da Agonia, todo o districto, toda a provincia afflue a Vianna, porque esta grande romaria, pelo seu brilho citadino, desbanca todas as outras.

Nos ultimos anos, a comica exhibição de «Gingantones y Cabezudos» com todo o seu cortejo de gaitas-de-foles e Zé-P’reiras, tem obtido um grande exito de popularidade, traduzido nos ruidosos applausos da multidão.

Eu estive n’aquella cidade, em 1903, poucos dias antes das festas. Havia por todo a parte uma ruidosa azáfama de preparativos. No vasto Campo da Agonia, que não é senão a antiga explanada do castello, armavam-se muitas

barracas para a feira e coretos para as bandas de musica. […]O Hotel Central, onde me hospedei, preparava-se para receber numerosos hospedes

augmentando a sala de jantar e renovando as mobilias. […] No theatro Sá de Miranda, que por signal é bem bom, andava-se fazendo limpeza, porque

haveria ali tres espectaculos por uma companhia contratada. […] Na Praça da Rainha, ás portas dos estabelecimentos, havia grupos caturrando sobre o

programma das festas. Aqui, a nota dominante era bem provinciana. Mas no Passeio Publico, aberto, illuminado e concorrido, a impressão que recebi foi de vida

elegante e mundana; pude então calcular quão agradaveis seriam ali as noites da festa com musica, muita gente, e o claro luar de agosto.

Alberto Pimentel – Nossa Senhora da Agonia em Viana do Castelo, 1906, pp. 13-4 e 19-30.

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Êste ano, nos três dias das Feiras de N. Sr.a da Agonia (18, 19 e 20 de Agôsto), esteve patente, no rés-do-chão do «Colégio Vianense», a anunciada exposição de lavores das aldeãs dêste concelho, – exposição que ultrapassou a espectactiva e, por maneira frisante, revelou uma preciosa indústria regional, cheia de mimo e carácter, obra delicadamente artística de mãos acostumadas a trabalho rude.

Além das conhecidas cobertas de lã e «de farrapos» (trapo tecido), e além das rendas de bilros, viam-se expostos numerosos bordados em pano de linho, de característicos riscos «tirados da cabeça» das próprias aldeãs, que, no seu vistoso e fino labor, se inspiravam fundamentalmente na natureza, no que as cerca e mais lhes atrai a atenção, – sem falar no amor, cujo símbolo – o coração – jamais esquece.

Os bordados, feitos a «pontos» que estão fora da classificação francesa da Moda, são a linha vermelha, azul e branca [algodão vulgar e algodão de lustro (perlé)] – em duas côres ou nas três conjuntamente. As aldeãs reproduziram, raras vezes tais quais, quási sempre mais ou menos estilizados à sua maneira, objectos vulgares (lançadeira de tear, chave, foice), e, sobretudo, animais (aves, peixes e, dos quadrúpedes, cães) e partes de vegetais (fôlhas, flores, futos), alêm de cruzes (especialmente a de Malta) e estrêlas – sem falar, tornamos a dizê-lo, no «coração», órgão do amor, e outros emblemas amorosos, como a «carta», mensageira do amor, no bico de uma ave.

Vai-te carta f’liz voando nas asas dum passarinho; quando ela lá chegar, dá-lhe um abraço e um beijinho.

[…] Em regra, fizeram as combinações dos desenhos simétricamente, introduzindo figuras geométricas diversas (linha quebrada ou serpeante, quadrados sós ou entrelaçados, losango, rectângulo, triângulo, circunferências isoladas ou concêntricas, etc.), de maneira a darem ao conjunto harmonia e vista, nem sempre se importando com o rigor da verdade; viam-se, por exemplo, botões de rosa com fôlhas que estavam muito longe das da roseira. As flores, para bem dizer, como as fôlhas, são sujeitas, no geral, aos caprichos estilizadores das bordadeiras, não se adivinhando quási nunca de que sejam, se bem que o seu aspecto agrade e encante. O que dizemos de fôlhas e flores, dizemos do mais.

Verifica-se que as camponesas se inspiram no que as rodeia, mas que vêem, assimilam e reproduzem a seu modo, com arte própria, sem hesitações, numa unidade de execução decidida, – assente e animada pela Tradição.

Havia no entanto, como já indicámos, desenhos evidentes, como os de fôlhas de vinha e de hera, e de cachos de uvas, – do que, aliás, as formas representativas estão já consagradas.

A fôlha de hera tem significação amorosa. É bem sabido o costume de os namorados escreverem datas, nomes, frases e até versos, em fôlhas de hera. O envio de fôlhas destas é uma delicadeza de amor.

Aludindo à I Exposição de Lavores que teve lugar na cidade de Viana do Castelo, por ocasião das Festas da Senhora da Agonia de 1917 e sob a organização da subcomissão local da Cruzada das Mulheres Portuguesas, o etnólogo Cláudio Basto – consagrado investigador da cultura popular da região do Minho – fez publicar na revista vianense Lusa, fundada e dirigida por si, um artigo no qual descreve as principais características dos produtos expostos nesse evento. Marcada, sobretudo, pela exibição dos bordados vianenses executados por aldeãs, dessa exposição, que viria revelar “uma preciosa indústria regional”, o autor destaca a ligação do tema amoroso a uma série de motivos frequentemente utilizados nos bordados da região, como as folhas de hera e o coração, ou, ainda, as aves que levavam cartas no bico aos namorados, a propósito disso transcrevendo uma quadra de uma carta de amor escrita por uma rapariga do concelho de Viana do Castelo.

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[…] Entre os bordados, especializaremos a combinação de «chave» e «coração», que motivou estranheza a alguns visitantes. Aqui, alia-se a «coração» a poética ideia de «cofre» amoroso, e, por isso, calhada é ao pé dêle a «chave». […]

Como se vê, o «coração» com a «chave» não podia também deixar de ser frequente nas manifestações da arte popular, como realmente é […]. E as aldeãs vianenses, usando o simbólico adôrno, não fizeram mais que seguir a poética tradição.

[…] A associação de «flores» e «corações» é vulgaríssima (coração entre flores, flores que nascem do coração, etc.), como é sabido, e como nesta exposição fartamente se notava. Lá vimos cercaduras só de flores e corações e corolas de pétalas cordiformes.

Lenços e outros panos com os dois «corações unidos», tanto ao centro como nos cantos, são vulgares, e disso havia também muitas amostras.

O que não apareceu foi o lencinho com palavras, frases ou versos, que – todos o sabem – é usadíssimo entre a gente das aldeias.

O lenço desempenha um dos mais importantes papéis na vida amorosa popular, – e muitas são as cantigas que há dedicadas àquele adorado companheiro de amores, que solicita, promete, faz senhas, fala, canta… – tam complexa e vária significação êle tem no dicionário dos namorados!

Cláudio Basto – “Arte popular. Exposição de lavores em Viana do Castelo”. Lusa:

revista quinzenal ilustrada de investigações regionais, ciências & letras. N.º 12, 1917, pp. 91-3.

As polémicas fomentadas pela intelectualidade local

Onde estão hoje os hombros, que nos hão de guiar, para chegarmos a um possivel conhecimento do Passado?

Desapparecida a figura de Herculano, o que é que ficou? Apenas o trabalho, quasi sempre precipitado e incerto, de Pinheiro Chagas, cuja intervenção directa e apaixonada na politica de Fontes lhe não permitte ver os homens e os acontecimentos, a nação e a monarchia, com a independencia que a Verdade e a dignidade historica do nosso tempo hoje reclamam: e, depois delle, o dilettantismo pseudo-encyclopedico de Oliveira Martins – o homem funesto, o cortesão frustrado em seus mizeraveis intentos, cujo espirito, intermittentemente lucido, apenas serve agora de implacavel relêvo á humilhantissima historia da sua apostasia moral.

Depois, e por ultimo, fizera-se o silencio cumplice e abjecto por toda a parte. A evangelisação da sciencia historica nas escolas passou á cathegoria degradante do pamphleto sectario, que o estipendio parcialista do Estado fecunda e protege. Consciencias rectas, se ainda as havia, jaziam no silencio de um forçado ou voluntario esquecimento, dando apenas realce a que uma verdade historica, tão falsa como os seus fautores, fôsse abrindo caminho largo, rico de incitamentos e de promessas de um futuro melhor.

Assim degradado, o publico, durante muito tempo, apenas

Da autoria de José Caldas, escritor panfletário e historiador, natural da cidade de Viana do Castelo, este excerto, integrado no opúsculo Benigna verba, datado de 1907, constitui uma resposta às críticas desencadeadas, desde 1903, pela publicação do seu volume de história local intitulado História de um fogo-morto, no qual o autor se insurgiu contra uma historiografia tendenciosa e fundamentada na lenda. Originando uma polémica no interior da sociedade vianense, motivada pelo modo como o autor interpretou a história local, o volume História de um fogo-morto deu também azo a uma pugna travada na imprensa do Porto com Anselmo Braamcamp Freire. Esta polémica viria a ser retomada por José Caldas no folheto Benigna verba e que, por sua vez, suscitou uma extensa resposta do seu opositor na obra Amarrado ao pelourinho, também de 1907.

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conheceu dois mentôres: – Martins, que doutrinava praticamente a mentira e a adulação, como arte de crescer na consideração social e nos favôres da côrte; e Eça de Queiroz que, anecdoticamente, e nas suas novellas aristocraticas, nos representava sempre como uma nação decadente, burlêsca e intellectualmente esgotada, a qual, á luz do seu criterio de sibarita sceptico e satisfeito, estava fatalmente destinada a não poder produzir senão figuras como a do conselheiro Accacio, janotas como Fradique Mendes, ou parasitas do lar-alheio, como o primo Bazilio.

Concordantemente os reis lá continuavam, para a grande massa nacional, encaixados nos nichos das suas alcunhas consagradas: – umas, como as de Affonso II. e D. Fernando, respectivamente, o gôrdo e o formôso, as mais proximas da verdade, certamente; outras, como a de D. João III. e as dos principes da Caza de Bragança, sem duvida as mais mentirosas e impudentes.

E assim se tem vivido e vae vivendo ha muito entre nós, com este criterio, com esta razão, com esta dignidade: – os entendidos louvando-se, discretamente, nas palavras falsificadas de Goes, ou nas que a censura deixou correr de Couto; pensando, quanto ao Passado, por Fernão Lopes e Ruy de Pina, e, quanto ao Presente, pelo Diario do Governo; os ignorantes circumspectos integrando-se automaticamente na abjecta e conspurcada psychologia de uma tradição sem sinceridade e sem grandêsa.

José Caldas – Benigna verba, 1907, pp. XVII-XIX.

Existe em Viana-do-Castelo uma associação que se diz Instituto histórico do Minho e que é dependência da Academia de Sciências de Portugal, mais conhecida por Academia do sr. António Cabreira.

Já na LUSA, em 1919, houve ocasião de se declarar o se-guinte: «nessa publicação [«Conclusões aprovadas» do 1.º Congresso de estudos galegos, realizado na Corunha em Agôsto de 1919] figura o dr. Cláudio Basto como «presidente del Instituto Histórico do Minho» por lapso lamentável, – pois que o referido director da LUSA não é presidente nem presidido daquele Instituto, do qual se afastou quási ao principiar o seu funcionamento.» (LUSA, III, pág. 78).

Torna-se necessário agora repetir a declaração, porque os magníficos Anais das Bibliotecas e Arquivos, em seu n.º 5, pág. 74 do vol. II, me chamam «director do Instituto Histórico do Minho».

Repito, pois: – eu não sou director nem dirigido daquele Instituto, do qual me afastei completamente quási ao principiar o seu funcionamento.

Quero deixar bem frisada esta afirmação – e oxalá eu não tenha de voltar a fazê-la! –, porque eu não me sinto nada honrado com o chamadoiro de «sócio» do mencionado grémio, e muito menos com o de seu «presidente» ou «director», porquanto eu não tenho quaisquer responsabilidades na orientação nem na vida dessa coisa, – nem quero que ninguém tal suponha.

Convidado, em 1916, para ser um dos fundadores do Instituto histórico do Minho, aceitei, na persuasão de que se tratava de constituír uma sociedade honestamente scientífica, onde houvesse a

Inaugurado em Viana do Castelo, em 1916, o Instituto Histórico do Minho teve entre os seus sócios-fundadores algumas das principais figuras da intelectualidade local e regional, entre os quais se incluía o etnólogo Cláudio Basto. Este último, afastando-se desde cedo dessa instituição e vindo a figurar entre os seus principais detractores, fez publicar, em 1922, o opúsculo O chamado Instituto Histórico do Minho, no qual o autor esclarece as razões que motivaram a sua dissidência, da mesma forma que se insurge contra a constante associação do seu nome a esse organismo vianense que considera “insusceptível de orientação científica e útil”, assim como um motivo de troça para a sociedade local.

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gravidade, a independência, o espírito e o trabalho que de exigir são em sociedades scientíficas, especialmente de carácter histórico.

Fundou-se o Instituto com esta atmosfera de convicção e esperança, não só da minha parte como da parte de outros amigos.

Assisti às primeiras sessões, – e logo vi com surprêsa e desgôsto que tal sociedade não correspondia, nem podia corresponder, ao que se desejava, e que flagrantemente era insusceptível da orientação que também se desejava, porque a parte dominante dos sócios activos (que me era desconhecida) não tinha a mínima preparação scientífica, nem sequer a consciência dessa falha! E esta inconsciência, como o Leitor sabe, é invencível...

Assisti, apesar de tudo, às primeiras sessões, complacentìssimamente, – e só quando me capacitei à farta de que tal agremiação era sem dúvida alguma insusceptível de orientação scientífica e útil, e já quando outros consócios, que pensavam como eu, se haviam escapulido vexados (como eles próprios diziam), é que me afastei, com a mágoa – devo confessá-lo – que sempre causam as ilusões duramente desfeitas.

Creio deixar bem patente, para apuro de responsabilidades passadas, presentes e futuras, que sou inteiramente estranho ao funcionamento da referida sociedade e que nunca intervim na sua orientação.

O chamado Instituto histórico do Minho tem vindo, dia a dia, tombando num ridículo cada vez mais ignóbil, entre as crudelíssimas troças da gente de Viana-do-Castelo que o conhece, sem ser através das longas e insistentes notícias laudatórias que êle próprio, Instituto, faz publicar a seu res-peito nos jornais.

À sua inicial incompetência e inutilidade, ajuntou-se uma charlatanice, tam barulhenta como vazia, – na pacóvia crença de que as pessoas e as agremiações valem não pelo que produzem, mas sim pelos elogios com que se enfeitam ou com que, a pedido seu, as enfeitam!!!

Já o Leitor vê os motivos por que eu não quero confusões.

Cláudio Basto – O chamado Instituto Histórico do Minho, 1922, pp. 3-4.

Algumas linhas sôbre o assunto, que vem a-propósito, consoante factos recentes o demonstram. […]

Segundo a organização do Instituto Histórico do Minho (Diário do Govêrno de 17-VII-916), êste anexo da Academia de Sciências de Portugal visa aos seguintes fins:

«1.º – A cultura dos estudos históricos, principalmente no que concerne à provincia do Minho; 2.º – A coordenação e critica de tudo quanto interesse à região, desde remotas origens até hoje.»

E, conforme ainda o referido diploma, para a consecução de tais fins, são fixados ao Instituto êstes meios:

«1.º – Ter sessões periódicas; 2.º – Estabelecer, quando possível, delegações concelhias; 3.º – Proceder a investigações locais e elaborar diversos estudos; 4.º – Realizar expozições, excursões, conferências, palestras e leituras públicas; 5.º – Fazer as publicações que julgar necessárias para a educação e propaganda; 6.º – Propôr às Câmaras Municipais e autoridades dos distritos de Viana-do-Castelo e de Braga as providências e iniciativas que reputar convenientes; 7.º – Promover a criação de uma biblioteca e doutras instituições de alcance regional, e auxiliar todos os empreendimentos conducentes a qualquer dos seus fins.»

Respondendo às críticas de Cláudio Basto, o escritor Júlio de Lemos, destacada figura da intelectualidade local e secretário perpétuo do Instituto Histórico do Minho, fez também publicar, em 1922, o texto aqui transcrito a partir do opúsculo intitulado O Instituto Histórico do Minho e os seus detractores. Defendendo a utilidade científico-cultural desse organismo, para dar conta da conformidade entre os princípios que motivaram a sua fundação e a orientação seguida pelo mesmo, o autor expõe de modo detalhado as actividades que o Instituto vinha a desenvolver, realçando a existência entre os seus sócios de alguns dos “mais nobres espíritos da região” e o prestígio alcançado por essa instituição.

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Terá o Instituto, no curto periodo da sua existência (um lustro apenas), obedecido àquêles fins e adoptado aquêles meios? Vejamos. Um exame retrospectivo da obra realizada nos cinco anos decorridos nos dirá se a Academia minhota cumpre, ou não, a sua elevada missão.

[…] Assim, teve já 65 sessões; procedeu a 30 investigações locais; elaborou 35 memórias de positivos intuitos regionais; efectuou 11 conferências públicas; fez 38 publicações; propôs às Municipalidades da área da sua jurisdição várias providências e iniciativas de reconhecido proveito; alcançou dos Poderes Públicos diferentes concessões de utilidade incontestável; etc., etc.

Além disso tudo – que é muito, e só nada será para quem nada prodús e, por consequência, é incapaz de avaliar o que tudo isso representa de esfôrço persistente e fadigas ímprobas – , além de tudo isso, o Instituto interessou-se por quantas coisas implicam progresso mental, moral e material da região e do país; esclareceu problemas de história; ultimou diversas indagações scientíficas; refutou alguns detractores das nossas glórias marítimas; preiteou sábios, literatos e artistas; louvou diversas entidades; apreciou inúmeros livros; colaborou em vários empreendimentos cívicos e académicos.

Mais. Cooperou nos centenários de Gomes Freire, Fernão de Magalhães, Colombo, e da Ordem-de-Cristo, na comemoração teofiliana, bôdas-de-oiro de D. Maria-Amália, e jubiléu de Rui Barbosa, nos Congressos Nacional Arqueológico e das Sciências Luso-Espanhol; contribuiu para a inquirição vocabular com copiosos subsídios regionais; respondeu a muitas e muitas consultas; estimulou vários estudiosos; abríu concursos literários e premiou autores distintos; salvou manuscritos inéditos, etc.

Mais ainda. Arrolou riquezas étnicas; lançou os fundamentos do Museu de Arte Regional, e continúa a lidar em pró dêste melhoramento; iniciou diligências para a criação de um Arquivo Distrital e Biblioteca Erudita; conseguiu do Ministério do Comércio o estabelecimento de uma oficina-de-rendas na Escola Nun’Alvares; do Ministério da Instrução, a adopção nas escolas oficiais de páginas educativas que recomendára; e do Ministério dos Estrangeiros, uma condecoração para o lusófilo sueco, imprimindo a este galardão um cunho nacional, por isso que ofereceu a Göran Björkman as respectivas insígnias mediante uma subscrição aberta entre as colectividades scientíficas e patrióticas e as Câmaras Municipais do país.

Ainda mais. Promoveu a aproximação intelectual galáico-minhota, pelo que principia agora a ser uma realidade o intercâmbio entre as duas margens do rio «rival do Lima»; obteve da Câmara de Viana as medidas atinentes à defesa do precioso arquivo comunal; alcançou do Govêrno verba para a reparação da igreja românica de Bravães; divulgou no território da República as épicas façanhas de Frei Gonçalo Velho, vinculando o nome imortal do navegador ao Liceu desta cidade e a uma das suas praças, como também obteve que o nome do Prior do Crato fôsse aposto a uma rua de Viana.

Recebeu o Instituto louvores da Academia, Institutos de Coímbra, do Algarve, e da Beira, Associação dos Arqueólogos, Conselho de Arte e Arqueologia, Conservador do Museu de Arte Antiga, Câmaras Municipais de Lisbôa, Viana, Valença, Caminha, Arcos-de-Valdevez, Paredes-de-Coura, Monção, etc. Têem-lhe sido oferecidos, dedicados e consagrados pelos seus autores vários livros que se acham publicados; e é o delegado, no Minho, do aludido Conselho de Arte e Comissão dos Monumentos e, outrossim, da Junta Arqueológica Nacional.

Tem merecido o aplauso de abalisados homens de sciência e de preclaros escritores e artistas – e ainda há pouco o Ex.mo Ministro da Instrução de Espanha lhe enviava as suas mais eloquentes saüdações. Mencionarei, igualmente, as saüdações de Suas Excelências os Senhores Presidente da República, Ministro de Espanha em Lisbôa e Embaixador do Brasil, da Real Academia Galega, Sociedades de Geografia de Madrid e de Lisbôa, Junta dos Estudos e Investigações Scientíficas de Madrid, Ateneu de Vigo, Academia de Artes e Letras, Sociedade Propaganda de Portugal, Liga de Instrução de Viana, Delegação do Patriarcado Latino de Jerusalém, etc., etc.

Pertencem ao seu grémio os mais nobres espíritos da região e muitos outros do país; tem a honra de contar entre os seus sócios grandes nomes da literatura espanhola; sustenta as melhores relações com as sociedades scientíficas nacionais e algumas estrangeiras; tem recebido inequívocas,

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penhorantíssimas provas de aprêço de vários organismos e da imprensa portuguesa e estrangeira; etc., etc.

Em suma, e como eu escrevi em Novembro último, ao concluir o Relatório da Academia minhota relativo à gerência de 1920-921: «O Instituto Histórico do Minho é bem o expoente irrecusável e magnifico da cultura da laboriosa Provincia de que tomou o nome».

Júlio de Lemos – O Instituto Histórico do Minho e os seus detractores, l922, pp. 3-6.

A cidade de Viana do Castelo nas narrativas de viagem

A cidadezinha de Vianna é a capital condigna d’esta região. O viajante é agradavelmente surprehendido, logo ao chegar,

pelo aspecto da gare, uma das maiores e mais bella do paiz. Essa construção, dirigida por um jovem engenheiro do Porto, reune a uma perfeita elegancia de linhas gerais e a uma harmonia de proporções a mais esmerada mão d’obra, o mais fino acabamento de todos os detalhes. O granito empregado é o mais bello que se pode ver, e o modo como elle se acha trabalhado desafia toda a comparação. Uma unica impressão amarga paira sobre o espirito dos viajantes ao encontrarem-se dentro d’este vasto edificio. Acommete-os naturalmente o desgosto de serem tão poucos para tanta casa. E á noite, o silencio que se succede á partida do trem em que viemos, ha uma tristeza saudosa em ouvir n’este palacio de grande cidade o bucolico respiro nocturno do campo e das aldeias; o cantar dos grillos toupeiros entre os milhos e o ladrar longinquo dos cães de quinta, como nos simples apeadeiros dos pequenos circulos rurais ao longo da via ferrea minhota.

Pela disposição das casas Vianna consta de um grupo de habitações emmassadas n’um pequeno ambito, e do appenso excentrico de uma longa rua. Vista do alto de uma das collinas adjacentes, a casaria de Vianna offerece o aspecto de um

grande papagaio de papel branco cahido no chão, entre os campos, á beira do rio. Vista por dentro, a cidade é encantadora de modestia, de simplicidade, de silencio e de asseio. A grande abundancia de granito explorado nos arredores permitte calçar todas as ruas com grandes

pedras indestructiveis, dando ao pavimento uma superficie lisa como a de um muro de cantaria. Não há tramways, não ha botequins, não ha cartazes nas esquinas, não ha realejos nem músicos

ambulantes, não ha lixo, não há môscas, e não se vê policia. A praça principal, destinada por D. Manuel, que a edificou, para as festas publicas, tem um lindo ar

de Renascença, com o seu grande chafariz e a sua fachada historica do palácio da Misericordia. […] O jardim publico junto do cais, á beira da agua, é certamente o mais bem situado do paiz.

Faltam-lhe apenas algumas grandes arvores para ser inteiramente delicioso como todo o passeio d’ahi até o enorme campo da Senhora da Agonia, sobre a foz do Lima.

[…] Reduzida presentemente ao seu pequeno commercio de consumo interior, Vianna é uma

Transmitindo uma visão panorâmica da cidade de Viana do Castelo, à qual se refere como uma “terra de vilegiatura e de prazer”, a narrativa de Ramalho Ortigão dá conta de alguns elementos de cunho social e urbanístico que caracterizavam a urbe nas últimas décadas do século XIX. Destacando o carácter pacífico e hospitaleiro da sociedade vianense, assim como a feição cuidada e tranquila da cidade – evidenciada pelo silêncio e no asseio das ruas –, o autor faz ainda o elogio de algumas das construções modernas da urbe – como o jardim público e os edifícios da gare e do teatro –, da mesma forma que confere atenção aos seus elementos tradicionais, focando as “vestimentas” pitorescas exibidas entre as vendedoras do mercado semanalmente realizado nesta cidade.

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cidade morta para a labutação mercantil. D’ahi, pelo lado esthetico, uma boa parte do seu encanto de terra de villegiatura e de prazer.

Um estabelecimento de banhos, um casino, um grande hotel e alguns cottages mobilados para alugar, sobre a praia, na margem esquerda do rio, e esta seria de certo uma das mais bonitas estações balneares de toda a Europa.

A gente é affavel, hospitaleira, carinhosa e a mais pacifica do mundo. Um bacharel meu amigo, que exerceu aqui, durante um anno, o logar de substituto do delegado do ministerio publico, contou-me que no anno em que elle serviu se não fizeram audiencias porque não houve crimes na comarca.

[…] Acabam de construir um lindo teatro, e têem uma assemblea recreativa, que é um dos mais extraordinarios exemplos que se podem invocar em favor das vantagens da associação nas condições economicas da existencia. Nas salas d’esta benemerita sociedade joga-se o bilhar, o voltarete e o whist, ha um gabinete de leitura com todos os jornaes do paiz, o Gil Blas e o Figaro, e toma-se todas as noites, das nove para as dez horas, chá preto ou verde acompanhado de biscoitos, e servido por creados em toilette. […]

Além desta assembléa, existe em Vianna um centro d’arte: é a botica do commendador Reis, estabelecida na praça principal da cidade. […]

O mercado semanal em Vianna celebra-se ás sextas-feiras, n’um largo lanço de estrada macadamisada, á beira da agua, ao pé do jardim. A feira é constituida por mulheres de todas as freguezias circunvizinhas, d’aquém e d’além rio. Chegam de manhã, enfileiram-se ao lado uma das outras, em tres ou quatro ordens de extensas alas parallelas, pousam no chão os cestos com as respectivas mercadorias, e vendem de pé á multidão que preenche os espaços intermedios de fila para fila, os ovos, a manteiga, o panno de linho, a sirguilha, as riscas, as rendas, todos os variados e curiosissimos productos das industrias caseiras dos arredores. Não ha uma barraca nem um toldo, nem um guarda-sol aberto. […]

As vestimentas das vendedoras, conservando aqui, excepcionalmente, toda a pureza do costume tradicional, são as mais pittorescas, as mais graciosas, as mais variadas de côr e de linha, as mais felizmente achadas para fazer realçar a graça das formas, a ondulação dos movimentos, o mimo da expressão feminil.

Ramalho Ortigão – As farpas. Tomo I, 1887, pp. 17-30.

A cidade, silenciosa e branca, com a garridez dos «costumes» das lavradeiras tão meigamente cariciosas, com a sua luz dourada coando-se pelos vitraes da ramaria, com as remançosas aguas do Lima que parece deslisar entre suspiros de pastoraes, é uma das mais bellas estações balneares – sem concorrentes.

Assim o verifiquei, depois de confiar ao pessoal do Hotel o recheio da minha bagagem […] eu procurei – onde era a praia.

A frescura deliciosa da manhã, n’este rincão minhoto em que os melros parece assobiarem ironias nos arvoredos, convidava me á contemplação do oceano.

Mas por toda a costa que o mar varre cariciosamente eu apenas consigo descobrir, á embocada do Lima, depois d’uma

Centrando-se na cidade de Viana do Castelo enquanto estância balnear, o relato de João Arruda transmite uma perspectiva crítica acerca do comportamento desadequado que marcava tanto a utilização quanto o aproveitamento turístico das praias da cidade, evidenciado na forma como a população local ia a banhos. Critica ainda o não aproveitamento do monte de Santa Luzia para a edificação de um grande hotel e também de um elevador, vindo ambos a ser construídos apenas no início da década de 1920.

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travessia em bote que um remador me proporciona, commodamente – por um vintem! – algumas barracas perdidas na vastidão do areial, como um feixe de palmeiras em pleno deserto.

Ao norte da fortaleza de S. Thiago, entre as irrupções penhascosas capeadas de limos, outro grupo de barracas permitte aos que se banham communicar com o mar sem terem comtudo necessidade de communicar – com o rio.

Assim, eu verifiquei que os banhistas de Vianna não são propriamente banhistas, mas pessoas graves, circumspectas, que vão inclinar-se sobre as ondas, na praia, da mesma maneira que poderiam inclinar-se sobre o lavatorio, no quarto de «toitelle». Ninguem dá pelo movimento balnear. É assim uma espécie de contrabando, que se faz quasi a occultas; muitos, receiosos talvez de que a visinhança venha a saber que elles levam o seu atrevimento ao ponto de se lavarem... na agua salgada. Para saber-se que na costa maritima de Vianna ha barracas de banho, torna-se preciso pousar por algum tempo sobre os paredões do caes, ou assestar o binoculo de sobre as muralhas que Affonso III construiu á foz do Lima. Só assim se constatará que o habitante local, sahindo para o mar com a mesma compostura com que sahe para a repartição ou para ouvir missa na capella da Agonia, transpôe o rio no batel de passagem para voltar a casa, furtivamente, á formiga, a triturar o bife do almoço, emquanto não chega a hora da triturar a reputação dos politicos que, n’esta cidade minhota, teem ferocidades... contundentes.

De maneira que Vianna só poderá vir a ser uma seductora estancia de veraneio quando no cimo do monte de Santa Luzia – que ergue a sua corpulencia, assignalando um dos mais grandiosos pontos de vista do norte do paiz – se localisar um grande hotel em meio de parque olorantes, e se fizer riscar pelas vertentes a bicha de um elevador que traga á ourella do mar, os bafejados da riqueza que ora vão accrescer as colonias veranicas do Bussaco e do Bom Jesus, mais soberbas na grandeza florestal mas menos suggestivas pela falta d’esse grande espectaculo orchestral que é – o mar.

João Arruda – Cartas de um viajor, 1908, pp. 263-5.

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VILA REAL

A Feira dos Pucarinhos

As memórias da vida cultural e lúdica de Vila Real

As narrativas centradas nos aspectos urbanísticos da vila

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A Feira dos Pucarinhos

PELO Sam-Pedro, é de costume realizar-se em Vila-Real, na província de Trás-os-Montes, uma curiosa «feira» tradicionalmente chamada «feira dos pucarinhos».

Tal feira é uma como exposição de trabalhos regionais, não só de olaria como de tecidos de linho; – aparecendo aínda à venda mantas, cobertas-de-cama e coisas assim. Tudo isto proveniente de incansável indústria caseira, que ali, embora rústica, se revela artística na ideação e na execução.

[…] Logo de manhãzinha, na véspera de Sam-Pedro, vão chegando carros e carros de louça de barro, de ordinário negra, à Rua Central, em frente à capela do nome daquele santo, – que é onde a «feira» se efectua.

Esta louça vem hoje de Bisalhães, mas dantes o fabrico estendia-se a Lordelo.

É fabricada por processos primitivos, mas com rara habilidade e perfeição. […]

Chegados ao local da «feira», os louceiros tratam de ocupar os sítios que lhes pertencem.

Cada um tem o seu lugar tradicionalmente marcado, desde muito. Dias antes da «feira», porém, a fim de que algum feirante não julge livre qualquer dos lugares, por ausência do respectivo proprietário, e lho vá depois ocupar, os louceiros acorrem à Rua Central e, no chão, com tinta, zarcão ou pós dos sapatos, marcam os seus lugares. Assim mantêm a posse dêles.

No espaço que a cada louceiro compete, vai êle, tanto que chega em véspera de Sam-Pedro, estendendo com seu vagar a louça, – munido, por causa das traiçoeiras arremetidas do rapazio, de um varapau ou simples vime.

Ao redor da rua, que tem seu ar de «largo», vão-se entretanto dispondo as tendas de biscoitos da «Teixeira», refrescos, e o mais com que na «feira» se faz negócio.

O mercado tem comêço já neste dia, 28 de Junho. Á noite, cada vendedor de louça acastela as suas peças, cobre o monte com uma vélha manta, e

queda-se ao lado, semi-dormindo, semi-vigiando. Enquanto se não faz tarde – noite dentro, aí até às duas horas –, pelos carreiros abertos no Largo,

por entre as pilhas de louça, os festeiros passarinham, folgam, – namoram. A maior e melhor parte de tais festas cabe sempre ao amor…

No dia seguinte – o ruidoso dia de Sam-Pedro –, muito cedo aínda, os vendedores estendem outra vez a louça, como na véspera.

Por ocasião da Festa de São Pedro, celebrada a 29 de Junho, em Vila Real decorria em simultâneo um dos mais tradicionais e concorridos mercados anuais que se realizavam na província de Trás-os-Montes, evento conhecido pela designação popular de “Feira dos Pucarinhos”, que tinha início na véspera do dia de São Pedro, e cujo período de esplendor se situa entre meados de Oitocentos e a primeira metade do século XX. Tinha como principais produtos as louças de barro negro que, à época, advinham sobretudo de Bisalhães e, que, durante a Feira dos Pucarinhos, eram expostas ao longo da Rua Central e no largo em frente à Igreja de São Pedro. O aspecto que mais singularizava esse mercado vila-realense consistia na existência das peças em miniatura aí vendidas, que davam o nome à feira, e que tradicionalmente se trocavam como presentes entre os namorados no dia de São Pedro.

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É este o verdadeiro «dia de feira». O povoléu é denso; a animação é viva, embora sem a viveza de uma colorida multidão minhota. Ao findar a tarde, já não há «pucarinhos»…

É verdade! Aínda não disse que, entre a louçaria da feira, ocupa especial e mimoso lugar uma louça minúscula, de barro enegrecido, verdadeiros brinquedinhos de boneca, – tam leves e tam miúdos, que os não sentimos nas mãos e que nas mãos dificilmente os retemos.

Esta louça, a final, é que dá sainete e nome à «feira». São os «pucarinhos», – nome geral de variados objectos de uso vulgar representados em dimensões

pequeninas, com graça deveras risonha. […] Os «pucarinhos» são feitos, particularmente, em Bisalhães, e, como não é raro em artistas

populares, há famílias que, de pais a filhos, sem interrupção, têm sustentado a tradicional habilidade. – É arte que anda na casa! Disseram-me em Vila-Real, acêrca de uma família assim.

[…] Como em tantas outras feiras que pelo país se realizam, mas nenhuma (que eu saiba) neste género, – na de Vila-Real é uso trocarem-se «prendas». A êsse uso jàmais faltam os namorados. E as «prendas» são ali «pucarinhos».

Aí está o motivo por que os gráceis «pucarinhos» vão passando, ràpidamente, da quietação em que os tinham os louceiros, para o peito das raparigas e rapazes, do qual pendem, saltitantes, por laços de fitilhos multicores.

E não faltará namorado que, imitando inconscientemente a Camões, compare a delicadeza da sua Dionisa a um «pucarinho»… de Vila-Real!

Cláudio Basto –“A Feira dos Pucarinhos em Vila-Real”. Lusa: revista quinzenal ilustrada de investigações regionais, ciências & letras. N.º 71-76, 1924, pp. 118-21.

As memórias da vida cultural e lúdica de Vila Real

ELLE tinha desoito annos e eu vinte e dois, se bem me recordo, quando em 1848 nos preoccupavamos de romances, e tracejavamos de negro as nossas inspirações caudalosas em resmas de papel ordinario. O nosso gabinete de leitura e de escripta era a bibliotheca publica de Villa Real. Ora, o publico da bibliotheca era elle e eu. A fallar verdade, a livraria era uma desgraça litteraria, uma mole indigesta que nem a traça nem as ratasanas seculares do extincto convento de S. Francisco tinham ousado esfarellar. Havia algumas theologias moraes e dogmaticas em edições baratas para uso de frades mendicantes, muitos sermonarios do peior periodo da parenesis portugueza, poucos classicos latinos com valor bibliographico, e de historia nacional lembro-me ter visto dois tomos truncados da Monarchia Lusitana, uma edição parda do Portugal restaurado e o fallacioso Anno-historico do padre Francisco de Santa Maria.

Pois n’este meio esterilisador, Guilhermino de Barros e eu alinhavavamos romances – elle com uma calligraphia que dava

Aludindo a um dos períodos em que residiu em Vila Real, a memória de Camilo Castelo Branco constitui um relato das suas impressões acerca da Biblioteca Pública local em 1848, espaço onde então desenvolvia as suas actividades de leitura e de escrita, na companhia de Guilhermino de Barros. Implementada num meio que define como “esterilizador”, na sua caracterização da biblioteca de Vila Real, o autor realça o escasso número de pessoas que à época a frequentava e a colecção diminuta a que os leitores tinham acesso, constituída pela secção da livraria franciscana, por algumas publicações de fundo teológico e outras obras de menor importância.

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ares de idioma semítico, e eu com um bastardinho correcto que fazia de mim um invejavel guarda-livros de uma mercearia, – armazem de escripturações mais alimenticias. Guilhermino de Barros inspirava-se da edade media: – cavalleiros, pontes levadiças, pagens, menestreis, adais, castellãs, cathedraes, torres de menagem, monges e laminas de Toledo. Eu ja fisgava osgas nos escombros contemporaneos.

Não sei se nos admiravamos reciprocamente. Elle de certo me invejava o bastardinho. Eu de mim confesso que lhe invejava principalmente os remates dos capitulos, em que ficava suspenso, a vibrar, o punhal do monge sobre a gorja do cavalleiro spatario; ou Hildegonda, a castellã, estava a ponto de se atirar aos braços do cytharêdo. Ah! que saudades eu tenho da edade-média, e da bibliotheca de Villa Real, e do aspecto gentillissimamente juvenil do Guilhermino de Barros de ha trinta annos!

Camilo Castelo Branco – Boémia do espírito, 1886, pp. 203-4.

Fiz exame de admissão aos liceus. Transitei da Vrêa para Vila Rial – onde se fixaram, onde estabeleceram residência aqueles de cuja vida vivo, e cujo amor me fortaleceu. Pois não minto, meu querido Amigo, e tu bem o sabes, garantindo que na capital do meu distrito, linda cidadezinha provinciana, de ruas arejadas e suaves, de horizontes largos de planalto – a ouvir no inverno o rugido das águas do Córgo, e a rever-se, na primavera, no encanto dos socalcos de vinha e horta sobranceiros ao Agueirinho, – não exagero afirmando que, em Vila Rial, ao menos nesse tempo, a indiferença e o alheamento por coisas de arte era quási tão grande como o de Vila Pouca, como o da Vrêa de Jales. Não se pensava na acção educadora da literatura. Não se sonhava com o renovamento das almas à luz tónica da Arte. E se havia oito ou dez pessoas que espreitavam o mundo pela fresta iluminada dos livros; e se havia cinco ou seis criaturas que liam Camilo, condimentando-o com a prosa orquestrada de Eça; com os comentários irreverentes de Fialho; com os vôos épicos de Junqueiro, essas pessoas, essas criaturas, pela sua idade, estavam tão longe da minha sêde de leitura – que lhe não podiam dar uma gota de água.

Porque, na verdade, aí pelos quatorze ou quinze anos, a ânsia de ler havia despertado em mim com a intensidade duma crise febril.

Comecei a ler, a sorver, inquieto e insaciável, tudo quanto me vinha à mão. Mas o que lia eu – o que me emprestavam, o que me facultavam? Os enredos macabros de Ponson, as aventuras trágicas de Richebourg. Por vezes, como esquecia os compêndios escolares pelos romances dos folhetinistas, intervinha a autoridade de meu Pai proibindo-me os romances – e eu faltava às aulas, fechado num quarto escuso, a palpitar, a chorar sôbre as agonias da Toutinegra do Moinho, sôbre o calvário do poeta fúnebre da Mulher Fatal.

Eram estes os evangelhos literários do meio. Foram êles, durante alguns anos, os meus evangelhos. E só em Coimbra, já o bigode apontava, verdadeiramente me relacionei com Camilo, um pouco com Eça, e Junqueiro, e Fialho, e Zola, e Flaubert, e Daudet.

Sousa Costa – Os que triunfam: novela romântica, 1916, pp. 21-2.

Da autoria de Alberto Mário de Sousa Costa – escritor que desde cedo fixou residência em Vila Real, onde deu início à sua actividade literária –, esta narrativa em forma epistolar, publicada como abertura da segunda edição da novela Os que triunfam, transmite as impressões do autor acerca dos hábitos culturais da população no final do século XIX. Notando a atitude de “indiferença” e “alheamento” face à literatura e à arte que a sociedade vila-realense manifestava, ainda que residindo numa sede de distrito, o autor chama também a atenção para a escassa divulgação que aí tinham as obras literárias de alguns dos principais escritores da época.

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Naquele tempo... eu e outros estudantes de Vila Real, levavamos à cena, durante as férias grandes, alguns dramazitos, comédias e cançonetas.

Como não havia dinheiro para pagar o aluguer do teatro de Vila Real, conseguíamos que, para o efeito, nos cedessem qualquer sala; e, depois de distribuídos os papéis, emquanto uns ensaiavam sob a direcção do António Mendes, outros carpinteiravam o palco, outros encarregavam-se do cenário, etc.

Na véspera do ensaio geral ia uma comissão convidar várias famílias da terra para assistir ao espectáculo. E tôdas elas nos enviavam presentes no dia da récita. Umas, vinho fino; outras, vinho maduro; outras, pastéis, variados doces e biscoitos; e ainda, outras, o belo bôlo de carne, etc., etc.

Terminado o espectáculo que, diga-se a verdade, não corria de todo mal e em que todos eram muito aplaudidos, iam os «actores» e os componentes da orquestra – que era regida pelo João Botelho – tratar de comer os petiscos fornecidos e, a seguir, organizavamos serenatas com que íamos agradecer às famílias que nos tinham mimoseado com a sua presença e com os bons «comes e bebes».

Lembro-me de que, uma das récitas, que foi efectuada no rés-do-chão do edifício onde hoje está instalada a Estação Telégrafo-Postal, constou do drama em 3 actos Sombras e coloridos e da comédia O Manecôco.

No desempenho do drama entravam os seguintes «artistas»: Guilhermino Gomes, no papel de «centro» (Barão da Lagarteira); eu, no de «galã»; Octávio Monteiro, no de «Prior»; António Pinto de Lemos, no de «João Rebôlo»; e Olívio Malheiros, no de «ingénua», filha do Barão. Na comédia, fêz o Manuel de Carvalho o papel de patrão e o António Pinto o de «Manecôco».

Já antes disso tínhamos levado à cena, nos baixos de uma casa da rua da Alegria, onde em tempos esteve instalada a Agência do Banco de Portugal, o pequeno drama Nobreza do Artista e a comédia Casa de Babel.

No drama fazia o Artur de Carvalho o papel de «centro»; o Guilhermino Gomes, o de «cínico»; eu, o de «galã»; e Agostinho de Carvalho, o de «ingénua».

Na Casa de Babel fazia também o Artur Carvalho o papel de «velho surdo»; eu, o de «espanhola», sua sobrinha; António Félix, o de «inglês»; e António Pinto, o de «criado».

Na noite desta récita deu-se um caso engraçadíssimo. A sala não era grande; e nós, para arranjar mais espaço para o público, fizemos um palco reduzido,

de modo que o «artista» que devia entrar pela porta do fundo (que ficava em frente da janela, muito baixa, do rés-do-chão), tinha de estar no vão, muito pequeno, da mesma janela, antes de abrir o pano, porque dali não havia comunicação para fora, a não ser pelo próprio palco. Quem estava no vão da janela, à espera da sua entrada, era o Artur Carvalho.

Em certa altura, aparece-lhe na rua o Luiz Claro, já muito «tocado» e diz-lhe: – «Ó Naralhas, vai abrir a porta, que quero ir ver o espectáculo.» – «Não posso sair daqui», – diz o Artur. – Mas olha: bate à porta, e dize ao António Mendes ou ao

Jaime Coelho que te deixem entrar. – «Vai tu abrir a porta, senão arranco-te uma suíça!» – Não posso, já te disse. – E explicou com muito bons modos, ao Luiz, que só podia sair dali

entrando no palco e que o pano já estava aberto e o drama a correr.

Intitulada “Furiosos dramáticos” e transcrita do volume memorialístico Naquele tempo, publicado em 1940, a narrativa de Lotelim, pseudónimo de Joaquim de Azevedo, constitui um relato das suas recordações da juventude, a partir do qual o autor descreve alguns episódios ligados às actividades teatrais organizadas em Vila Real por um grupo de jovens no qual o próprio se incluía. Dando conta dos protagonistas e de algumas das récitas que esse grupo de jovens amadores levou a cena na vila, além da comédia O Manecôco, o autor destaca as representações do drama em 3 actos Sombras e coloridos, de Joaquim Augusto de Oliveira Mascarenhas, da comédia-drama Nobreza do artista, de Luís de Castro Soromenho e, ainda, da comédia em 1 acto Casa de Babel, da autoria de António Martins dos Santos.

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– «Não vais? Pois então, olha!» – E, com grande rapidez, arranca meia suíça da caracterização do Artur!

Calcule-se a arrelia dêste e o riso da assistência quando o Artur entrou no palco com suíça e meia!...

Mas... estava escrito que não seria esta a última arrelia que o Luiz Claro fazia ao Artur Carvalho.

LOTELIM – Naquele tempo...: recordações da mocidade, 2008 [1940], pp. 35-7.

HAVIA, por todas as redondezas da capital trasmontana, principalmente na sede e, pelo menos até à minha saída para o Sul, o vício inveterado, por vezes prejudicial, dos bailes, organizando-se uma dança a propósito de tudo e de nada. Casamento, baptizado, aniversário que surgisse, logo as valsas, polcas, mazurcas, lanceiros, quadrilhas, pas-de-quatre, pavanas, minuetes e outras danças em moda nessa época, animavam os salões, ou simples terreiros do lugar da festa. Podemos chamar a essa época, com toda a propriedade e verdade, a «Era de Alegria».

Hoje, meus amigos, só carpideiras se atropelam por toda a parte, estando a chamada «Alegria», por aqui, por ali e mesmo por acolá, no mais completo declínio, em perfeita agonia, fora de moda.

Ora, como ia dizendo, a dança chegava-nos ao coração, fascinava-nos.

E dentro deste sistema, e para melhor levar a vida e mais frequentemente darmos à perna, resolvemos – uns tantos rapazes da minha igualha – organizar um Clube, o qual não passou da sua formação, sem os respectivos Estatutos, devo acrescentar, mas conseguiu ter nomeada, pelo menos até à sua desgraçada liquidação.

Para ornamentar e mobilar o salão que alugámos num 1.º andar na Rua de São João, tivemos de recorrer ao crédito, visto nem um tostão possuirmos – como fundo de reserva – para tal fim, ficando nós de fiadores, em nome individual, como, por exemplo, o Carlos Purificação era o fiador da mobília; o fotógrafo Teixeira de alguns artigos; eu e o Henrique Bandeirinha, comprávamos o petróleo a crédito, já se vê, e assim íamos vivendo.

Com certa antecedência, íamos, à noite, varrer a casa e tratar dos candeeiros. […] Como nunca pagássemos a respectiva renda; como não amortizássemos as dívidas; como tudo

continuava a viver em perfeito regime de «deves», a dona do salão abriu-nos falência e tudo nos foi penhorado, porque deixamos correr à revelia o processo.

E assim acabou tão simpática organização! Durante a vigência de tal Clube, deram-se ali importantíssimos e distintíssimos bailes, frequentados

– à força de empenhos – pela mais distinta sociedade de Vila Real e circunvizinhanças. Para uma dessas soirés dançantes, recebemos fortes solicitações, por interpostas pessoas, para autorizarmos a entrada dos oficiais do Quartel General da Divisão, ao tempo a 6.ª, figurando, entre eles, distintos oficiais, como, por exemplo, o Chefe do Estado Maior, sr. Capitão May, hoje general e pai do também General May, comandante da Guarda Fiscal. E como se dizia que esses recém-chegados desejavam ir ao baile, simplesmente para se rirem de nós (eram todos do Sul) foi a diabo para darmos o nosso «deferido» a tal pedido, que foi facilitado, depois, por se comprometerem, esses oficiais, a levar a

Extraída do volume Histórias… para a história, no qual o autor descreve algumas das suas recordações de Vila Real entre o final de Oitocentos e o início do século XX, a narrativa de José Luís Rebelo da Silva centra-se nas peripécias e nas actividades lúdicas organizadas na vila por um clube recreativo fundado pelo autor e outros jovens. Durante algum tempo, realizaram diversos bailes nos “salões da Roda” e num 1º andar da Rua de São João, os quais seriam frequentados “pela mais distinta sociedade de Vila Real e circunvizinhanças”, chegando um deles a contar com a presença de um ministro.

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banda do 13, para tocar durante o baile, o que realmente aconteceu. Lá foram, divertindo-se imenso, sempre com a maior correcção, porque, na verdade, eram

distintíssimos no seu todo, de educação esmeradíssima, e não se cansaram sempre de elogiar a compostura, entusiasmo, frequência, etc., desse nosso baile.

Episódio importante a registar: Por baixo do referido salão, residia o bombeiro José Bessa Monteiro e a família. Como era uso fazermos grande barulheira lá por cima, principalmente nos dias de baile ou de lições de dança, incomodando, portanto, essa família. Zé Bessa amigo resolveu, uma noite, pegar fogo a lenha muito verde, nos baixos da casa, para fazer muito fumo, e, de machadinho de bombeiro em riste, no fundo da escada, gritava: «Malandragem, garotões, inconscientes. Não vos cansais de nos arreliar e torturar, todas as noites, mas aqui estou à vossa espera. Desçam se querem ficar sem orelhas, seus patifes».

E foi o diabo para sairmos daquela desgraçada e temerária situação. É que ele, além de ter razão, bebia a bom beber, chegando-lhe valentemente como um catita, estando, nessa ocasião, como um cacho! Nós bem lhe dizíamos de cima «Ó Zé Bessa amigo, nosso companheiro de bomba, querido Zé, perdoa-nos e deixa-nos descer», mas nada o comovia. Foi preciso vir gente de fora pedir por nós, e foi um compadre dele quem o levou a embainhar o machadinho ameaçador.

Um também importantíssimo, e especial e histórico baile, foi dado por nós, antes de organizarmos tal Sociedade Recreativa, que era o seu verdadeiro nome, nos salões da Roda, no Largo do Hospital. A esse foram todos os chamados «Latagões» e até um dos Ministros da Nação, Snr. Dr. António de Azevedo Castelo Branco. Por sinal que nos fechamos num quarto, os da Organização de tal dança, para quase todos jogarem a pancada, enquanto, no salão, se jogava loucamente o carnaval.

Curioso: socamo-nos, descomposemo-nos, dissemos as últimas uns aos outros, mas tudo em surdina, resolvendo sair do referido quarto de cara alegre, amigos e sem dar a perceber as nossas zangas. É que – dizíamos nós – parecia mal, principalmente por ali estar o Ministro!

José Luís Rebelo da Silva – Histórias... para a história: Vila Real do meu tempo, 1959, pp. 127-9.

As narrativas centradas nos aspectos urbanísticos da vila

Na assentada d’um pequeno e verdejante monte, que se ergue em natural amphitheatro, fronteiro ao alcantilado e gigantesco Marão, correndo lhe aos pés os rios Corgo e Cabril, levantou D. Diniz, o rei lavrador, em 1289, a risonha e formosa villa, que denominou a Real, porque, diz a chronica, foi por sua real indicação que se escolheu tão aprazivel sitio ou porque, d’entre as demais villas do reino, a futura capital da região transmontana sobrelevava ou havia de sobrelevar a todas.

E, ou fosse vaidade de momento ou predicção do poeta coroado, o que é facto, é que hoje, o vaticinio se vaticinio houve, está realisado. Villa Real é incontestavelmente uma das primeiras e principais villas do paiz.

Tem sido ponto controverso a etymologia do nome d’esta importante povoação do Norte, fazendo-o alguns derivar da situação topographica da terra banhada por dois rios, vindo

A narrativa de viagem de Carvalho Cordeiro, publicada no semanário Branco e negro, transmite algumas impressões acerca de Vila Real no final do século XIX, essencialmente centradas nas principais edificações, instituições e espaços públicos da vila. Destacando os asilos e escolas locais, os edifícios do hospital, da Câmara Municipal e do governo civil, ou ainda o jardim público do monte do Calvário e a avenida que se estendia entre as praças de Camões e Lopo Vaz, o autor dá ainda conta dos benefícios turísticos de que Vila Real usufruía, enquanto ponto de passagem para as estâncias das Pedras Salgadas e Vidago.

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d’esta sorte a chamar-se Rial e por corrupção, mais tarde, Real.

[…] A villa, que é toda illuminada a luz electrica, tem aproximadamente 7.000 habitantes nas suas duas freguezias de S. Diniz e S. Pedro.

Logo á entrada da villa, quando chegamos da Regoa, corre um vasto e ajardinado boulevard, formando as praças de Camões e de Lopo Vaz.

Destacam-se n’uma das extremidades d’este largo passeio o importantissimo edificio do hospital civil e a camara municipal que tem ao seu lado esquerdo o governo civil, um verdadeiro palacete moderno; e na outra extremidade o velho convento de Santa Clara, uma elegante praça para os tres mercados semanaes e uma archi vetusta casaria, onde está installado o lyceu. Encontram se aqui tambem tres bons hoteis. Villa Real conta hoje tres importantes institutos de beneficencia, alem do hospital civil, – asylo d’infancia desvalida para o sexo feminino; asylo-escola para o masculino e asylo para invalidos d’ambos os sexos.

Submetidos a todos os principios da hygiene e da architectura moderna, existe n’esta villa um collegio para instrucção primaria e secundaria, que pode comportar mais de duzentos alumnos.

Este importamente melhoramento moral e material deve-se ao benemerito villa realense dr. Jeronymo do Amaral, que o fundou a expensas suas.

Foi tambem ha pouco aqui creada uma escola central para habitação ao magisterio primario, creação devida á rasgada iniciativa do digno Director Geral de Instrucção Publica, conselheiro José d’Azevedo e de seu irmão, o nobre ministro da Justiça, dois illustres filhos de Villa Real.

No extremo da Villa, á margem esquerda da estrada de Chaves, Pedras Salgadas, Vidago, Murça e Sabrosa, e fronteiro ao elegante quartel d’infanteria 13, depara-se-nos o lindissimo jardim publico que o bom gosto foi collocar n’um socalco do monte do Calvario e d’onde se disfructa um soberbo panorama, espraiando-se a vista pela formosa bacia formada pelo Marão e outras pequenas montanhas, povoadas de pittorescas aldeias das quaes se destaca a de Matheus, importante pelo magnifico palacio do actual conde de Villa Real.

Ponto forçado para as Pedras Salgadas e Vidago, Villa Real offerece n’esta epoca de touristes e de banhistas ou melhor aguistas, como sóe dizer-se em linguagem moderna, um movimento desusado, imprimindo-lhe durante quatro mezes muita vida e animação.

Carvalho Cordeiro – “Viagens no país”. Branco e negro: semanário ilustrado. N.º 23, 1896, pp. 1-3.

Villa Real não possue monumentos architectonicos de vulto, nem sob o ponto de vista archeologico, nem como manifestação artistica. A epoca em que foi fundada, além de relativamente recente, não se prestava a arrojos e emprehendimentos d’Arte. Estava-se em pleno periodo da reconquista, sob a influencia cavalheiresca e guerreira da Edade-media, os espiritos absorvidos pelo ardor das suas luctas e pela densidade das suas trevas – apenas rasgadas, n’uma ou n’outra cidade, pela refulgencia espiritual e germanica do gothico. Não se encontra atravez das suas ruas, das suas praças, um unico edificio grandioso e forte, ou sequer d’uma edade tão remota que recue a imaginação para as epocas feudaes da sua origem, n’um sonho evocador d’um passado glorioso. Apenas o palacio, em ruinas, dos marquezes de Villa Real se destaca do typo

Dando conta do escasso número de edificações com relevância artística e arqueológica existentes em Vila Real, a narrativa crítica de Sousa Costa, publicada pela primeira vez na revista Ilustração Portuguesa, em 1907, coloca em destaque algumas das suas construções de tipo antigo e moderno a partir das quais denuncia a atitude de incúria face ao património e ao planeamento urbano de algumas direcções da Câmara Municipal de Vila Real.

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uniforme e banal das construcções urbanas. Muito afastado dos muros da villa velha, de construcção muito posterior, pois que as janellas da fachada que dá para o poente são puro estylo renascença, como de resto toda essa fachada, desde os alicerces ao dentado esbelto das ameias, elle revela uma tentativa que infelizmente não se reproduziu. Ficou só, completamente só, entre o casario desgracioso e acanhado que o cerca e a monotonia rigida e pesada dos conventos e das egrejas. A propria Capella Nova, com uma vistosa frontaria sustentada em quatro poderosas columnas de granito, rendilhada de arabescos em baixo relevo, com S. Pedro lá ao alto, enorme e denegrido, a thiara pontifical, a cruz de Trea Regno na mão direita e o manto de pedra agitado n’um movimento de prophecia, não passa d’uma obra rocócó e inesthetica do fradesco seculo XVIII.

E agora que me referi ao palacio dos marquezes de Villa Real, vem a proposito um facto que revela o mais profundo desprezo ou a maior irreverencia pela integridade esthetica d’aquelle edificio. Uma parte da fachada, a mais perfeita e completa, aquella em que se abre a larga janella central em columnas retorcidas, muito delgadas, d’uma elegancia leve de espiral, com o escudo de Villa Real no remate superior, entre florões, foi reconstruida ha uns quatro ou cinco annos. Lavaram-na do musgo secular, eliminaram pretenciosamente as ameias quebradas e cobriram-lhe o telhado – parece uma ironia do seculo XX lançada á face veneranda do seculo classico do nosso esplendor – da mais berrante telha de Marselha! É como se resuscitassemos o proprio rei Venturoso, no seu ar austero de senhor absoluto, vestindo gibão escarlate e calção esticado apertando a meia grosseira de lã, e sobre a cabelleira farta lhe plantassemos um luzidio chapéu alto, marca Costa Braga.

A telha de Marselha está destinada a representar o mais dissolvente papel em face da arte, na minha provincia. Chega a gente a lamentar não poder encarnar, por um momento ao menos, o espirito catholico d’um pontifice romano para a fulminar sob a inclemencia d’uma excommunhão que a relegasse d’estes reinos orthodoxos. Pois se até a utilisaram, ultimamente, para cobrir a capella romanica da Senhora de Guadalupe na antiquíssima povoação de Ponte – uma das suppostas capitaes da Panonia!

E a verdade é que a maior parte dos desacatos que em Villa Real se teem commettido, e continuam a commetter, contra a coherencia esthetica d’aquelles monumentos e contra a belleza geral da terra, são devidos aos seus municipios que, salvas as raras e consagradas excepções de sempre, não ligam importância a taes assumptos. E isto provam-no não só aquelles dois factos, mas ainda o bairro que começa a construir-se junto da estação do caminho de ferro. Devendo obedecer a um plano geral harmonioso e perfeito, tem sido deixado ao arbitrio, ao gosto inculto e conforme com a maxima commodidade de cada um. Assim, n’um bairro inteiramente novo, que podia constituir dentro em pouco um trecho de cidade moderna e elegante, denunciando manifesto desejo de solidariedade com as tendencias artisticas da epoca, os predios vão-se accumulando na mais confusa desordem. E o peor é que não se encontra entre todos elles um só que se imponha pela estructura architectural, ou pela fidelidade a um typo definido. Uns atarracados, como que com medo de se erguerem no ar purissimo e luminoso, com telhados multiformes e frontarias de casa de cartão colorido; outros com o ar bonacheirão e pelintra de estações ferro-viarias provisorias, e fortes doses de tinta côr de rosa e verde; outros ainda não indo além de microscopicas cantinas destinadas ao commercio barato de vinhos e petiscos a retalho – e todos elles, cobertos á maneira de chalet, são d’um aspecto desgracioso e incaracteristico que causa verdadeira dôr.

Sousa Costa – Os meus pecados: aspectos íntimos, [1909?] pp. 110-5.

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VISEU

A visita régia de 1882 e as festividades tradicionais

A população e a vida sociocultural da cidade de Viseu no século XX

A cidade sob o olhar de um viseense e de um visitante

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A visita régia de 1882 e as festividades tradicionais

O programa do primeiro dia da estadia em Viseu era muito fatigante.

Recepção no palácio às pessoas mais importantes da cidade, autoridades e Portugueses vindos de todos os arredores ao encontro de suas majestades. […]

Quando a família real se dirigiu à Sé, muitas mulheres do povo rodearam a carruagem real e seguiram-na dando vivas ao «Anjo da Caridade», à «Mãe dos Nobres» – porque são estes os nomes que se dão geralmente à rainha de Portugal.

Muitas dessas boas mulheres choravam de alegria e era um espectáculo impressionante ver a expansão deste entusiasmo cheio de ingénua sinceridade.

Nunca vi nas nossas sociedades indiferentes um espectáculo semelhante a esse. A rainha não se continha de alegria.

A esta manifestação sucedeu uma outra em honra da soberana.

Os artífices de Viseu enviaram uma deputação a D. Maria Pia composta de 17 pessoas para lhe oferecer uma medalha de ouro, colocada num cofre, dum trabalho e de um gosto primorosos. Os Portugueses têm-se sempre excedido na arte da joalharia.

Este cofre possui um duplo valor, o do fim artístico, e o do sentimento que motivou esta recordação.

A medalha tem a seguinte inscrição: «Ao Anjo da Caridade».

A deputação dos artífices era precedida pela música municipal, da qual um dos componentes conduzia, em forma de estandarte, a bandeira azul e branca.

Creio que este dia foi um dos mais agradáveis para a rainha, que, na opinião de todos, é muito amada em todo Portugal pelo carácter e pela bondade.

O Baile no Grémio de Viseu

Na mesma noite realizou-se o baile dado em honra do rei por subscrição. Puderam apenas convidar 400 pessoas, nenhum sítio em Viseu conteria mais gente.

[…] A família real chegou ao baile às 11 h. As salas do Grémio estavam ornamentadas com muito gosto. A rainha tinha um magnífico vestido de cetim azul claro, bordado com flores matizadas de

Reportando-se a 1882, a narrativa de B. Wolowski centra-se em alguns aspectos do cerimonial do primeiro dia das festividades realizadas por ocasião da visita régia à cidade de Viseu, para onde D. Luís e D. Maria Pia se deslocaram depois da inauguração da linha de caminho-de-ferro da Beira Alta. Marcada por um ambiente de júbilo manifestado nas ruas da cidade – animadas pelas bandas regimentais e filarmónicas e decoradas com iluminações, balões venezianos, bandeiras e painéis com várias inscrições –, a visita régia decorreu nos dias 6 e 7 de Agosto de 1882. Iniciado com o cortejo que se dirigiu à Sé para assistir ao Te-Deum, o programa do primeiro dia das festividades incluiu ainda um jantar de gala, seguido de um baile no Grémio de Viseu, e a cerimónia de recepção das deputações, em que discursaram os presidentes da Câmara Municipal e do Monte-Pio dos Artistas, oferecendo este último uma medalha à rainha. O segundo dia do programa, marcado com o acto inaugural do Asilo do Anjo da Caridade, foi ainda assinalado com uma visita pela cidade, com a audiência das comissões locais – na qual foi solicitada a construção de um ramal que ligasse Viseu à linha férrea da Beira Alta – e, também, com um banquete, seguido de um espectáculo de fogo preso.

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ouro. Diadema e colar de estrelas de brilhantes, e outros diamantes de grande valor. O rei e a rainha não foram rodeados por pessoas, como se pratica noutras cortes. Depois do hino, a família real foi colocar-se no trono preparado ao fundo do grande salão, onde

tinham lugar as quadrilhas de honra. […] Toda a cidade estava essa noite brilhantemente iluminada. O Passeio D. Fernando, que se encontra em frente do Grémio (Círculo), onde era dado o baile, a

Rua D. Maria Pia, e a Rua Direita apresentavam um aspecto feérico.

B. Wolowski – “As festas em Portugal: inauguração do caminho-de-ferro da Beira Alta. Viagem da família real: notas e recordações de viagem”. Gazeta dos Caminhos de Ferro. N.º 1712, 1959 [1883], pp.176-7.

Portugal vem de festejar seu santo nacional, o milagroso santo Antonio de Lisbôa. Em Vizeu, apesar das chuvas e dos ventos, os festejos foram excepcionaes. […] De festa religiosa, houve apenas uma missa cantada e sermão. Talvez seja a exaggeração, muito commum neste paiz, para o bem como para o mal, porém dizem que nunca ouviram ao bispo pratica assim eloquente e profunda.

Á celebração da Egreja concorreram as damas vizienses o mais galantemente possivel. As senhoras de Vizeu são famosas por seu esmero e luxo no vestir. Contam que a rainha D. Amelia, que costumava dar esmolas para os pobres em todas as cidades onde demorava, depois de examinar-lhes em silencio a toilette, uma tarde de recepção, dissera:

– Uma cidade onde as mulheres se vestem assim, não tem pobreza, não precisa de esmolas.

A rainha enganava-se assim julgando as senhoras de Vizeu. Em Vizeu ha fortunas, gente que passeia no extrangeiro; mas aquelle primor de vestuarios, as sêdas, os vidrilhos, as rendas finas, eram a exhibição dum dia extraordinario, a chegada de sua magestade, tão magna e tão grata á capital deste districto

então, como outrora e ainda hoje, o dia de Santo Antonio. Aqui se diz: «Quem não põe vestido novo dia de Santo Antonio, é porque não póde». E quando se vêem taes vestidos novos: «Os brincos, os anneis devem estar empenhados.» A viziense pobre passa resignadamente em casa o anno inteiro, poupando, para apparecer bem nas festas de Santo Antonio. E si nas festas não tem economizado o necessario para um vestido conforme o ultimo gosto, possuindo alguma joia, põe-na no prego e veste-se, embora o resto do anno passe-o comendo mal, sem sair, para juntar com que a desempenhar. […]

Quando me falaram a primeira vez no Santo Antonio, pensei numa novena, missa cantada, Te-Deum, e procissão dentro da Sé. Quanto se illudira a minha supposição! As festas começaram por uma toirada. Cerimonias religiosas, houve-as, e muito concorridas e solemnes, mas as boccas pouquissimo dellas publicaram, subindo o enthusiasmo sómente até ao sermão. Ao contrario, os toiros foram recebidos na estrada de Repezes por milhares de pessôas, animadas todas de um regosijo parecido áquelle com que antigamente eram recebidos os grandes do reino. Logo que Vizeu teve por hospedes os bois da toirada, as creaturas encheram-se de um contentamento que nem as chuvas, nem as névoas de junho puderam arrefecer. Desceram aos toiros por uma tarde fresca, com chuviscos, molharam-se na volta, molharam-se nas passeiatas nocturnas da rua do Commercio, sob os fogos chinezes da Cava

Centrada nos eventos festivos de carácter tradicional realizados na cidade de Viseu na segunda década do século XX, a narrativa de José Vieira transmite uma visão geral de alguns aspectos que caracterizavam a Festa de Santo António em Viseu e a feira franca anual, denominada Feira de São Mateus. Conferindo um destaque particular à feição mundana e lúdica assumida por esses eventos, o autor coloca em realce, sobretudo, o hábito generalizado de ostentação de um vestuário luxuoso, que se verificava entre as mulheres viseenses nessas ocasiões, assim como o gosto pelos divertimentos que constituíam a principal marca da Festa de Santo António e do ambiente nocturno da Feira de São Mateus.

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de Viriato e, ainda em baixo de grossas nuvens e juizos ameaçadores, encheram o Rocio para a batalha. Não se poderia medir então o contentamento popular. Avaliemol-o por isto: o notario, homem de cabellos brancos, cheio de filhos e de achaques, foi de automovel a Coimbra, á noite, reentrando pela madrugada, para solicitar ao director do theatro coimbrense mais um espectáculo da companhia em que anda Palmira Bastos. Vieram romeiros do Porto, de Coimbra, de toda a margem do caminho de ferro da Beira. As aldeias proximas despovoaram-se. Já não havia commodos nos hoteis, e os bilhetes de theatro, estando duas companhias trabalhando diariamente, eram adquiridos por favor.

As quinze mil almas de Vizeu, com umas duas mil de fóra, fartaram-se de «guzar». Tiveram para isso duas toiradas, a missa cantada da Sé, seis espectaculos, fogos chinezes na Ribeira, na segunda, de nove da noite até uma da manhã, exposições no hospital, na casa da Camara, festejos nos quarteis, musicatas nas ruas illuminadas, uma tarde de batalha de flôres, e tudo coube em quatro dias chuvosos.

A batalha de flores esteve desanimada, para batalha. Mas sempre rodaram uns seis carros magnificos. Dentre elles destacavam-se dois pela originalidade: um aeroplano e um moinho de vento. O moinho levava moleirinhas que atiravam rosas dos postigos. O catavento não rodava. Effeitava, no emtanto, excellentemente. O aeroplano marchava sobre um carro de bois. Porém a mesa desapparecia como simples succubo para uma cobertura de hera nova, e o cabresto da canga era tirado por uma camponeza muito bonita, vestida á moda do Minho. De cima, os aviadores atiravam bonbons e confetti á multidão. Deram-lhe o primeiro premio. Premiaram também um carro de chinezas. As carinhas beirãs que lá iam, ficaram muito bem achinezando-se. Para que não faltasse a politica nessa tarde de flôres e lindas raparigas, um automovel conduzia cinco meninas vestidas de azul e branco. Chamaram-lhes talassonas.

A praça em que os carros passearam, é pequena. Ha no centro um coreto, onde a musica tocava o tango argentino; por fóra, rente ás arvores, uma rua de oito metros, que foi o campo da batalha; mas, dos lados, sobrados e rampas que o povo encheu completamente. Familias de socios do Gremio, puderam ver tudo do alto, recostadas a um largo gradil. La estavam as toilettes custosas que ellas mostravam com orgulho.

………………………………………………………………………………………………………

Desço á Ribeira, á noite, attraido pela musica extranha duma trompa acompanhada a bombo e tambor, que me vem de la baixo, e pelo clarão dum nevoeiro rosado que paira sobre a praça. O que é, bem o sei; pois se me aventuro á humidade e ao pó das ruas mal cuidadas, é para ver a feira franca, a feira de S. Matheus, a feira annual de Vizeu, creada por D. João I, restabelecida por D. Affonso V e continuada nos tempos prosperos e nos dias desanimosos de Portugal.

Deante dos dois socalcos da Cava de Viriato, no campo onde se fazem as toiradas, construiu-se uma rua provisoria de barracas de pinho e estabeleceu-se o commercio urbano, com outros negocios, especialidades industriaes, fantochadas e cosmoramas, vindos de fóra. Uma espessa multidão de familias, gente de todas as classes da cidade e da aldeia, mercadores, pregões, ao estrepito de orchestras, campanhinhas e gramophones, vai e vem, passeando na extensa rua sob uma fila de enormes globos electricos. As senhoras edosas, as pessôas commodistas alugam, a vintem por assento, os bancos expostos ao longo das barracas. Os mais comem, bebem ou andam.

A feira franca é uma exposição dos productos nacionaes, objectos de luxo e de uso commum, de que quasi todo o Districto, principalmente os lavradores, vendidas as colheitas, se vae munir, mas que todos, afinal, com um profundo amor aos gosos e folganças, procuram para se divertir. Concorrem cutelleiros de Guimarães, ourives do Porto, fanqueiros, lanificios da Covilhã, loiças das Caldas, doceiros de Lisbôa, peixeiros de Estarreja, quantos têm que vender e lobrigam compradores no Campo da Feira. De quinze a trinta de Setembro, o commercio da cidade abre succursaes nas barracas de madeira. Lojas de modas, lojas de peso, casas de chapeu e sapato, joalheiros, taverneiros, latoeiros,

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albardeiros, esvasiam mostruarios e depositos e, um frio amanhecer, são vistos na Ribeira, a cabeça quasi tocando o tectosinho das barracas, a chamar aos camponezes.

[…] Para os fins económicos a que a destinaram D. João I e D. Affonso, a feira corre principalmente, de dia. Pela manhã realisa-se, nos claros da barracaria do peixe, o negocio de gado. Conglomeram-se, ás juntas, os pequenos bois fulvos da Beira, carneiros, chibas, porcos, perus e gallinhas. As transacções fazem-se com gravidade, ajustam-se com o ar sério que reclamariam casos de honra, e as mais avultadas findam sempre em vinhaça. Crê-se que pela feira franca se vende tudo mais barato. […]

Nos domingos á noite a espaçosa rua não comporta a gente da cidade e os camponezes confundidos entre as barracas amarellas. As senhoras vizienses vão á feira como vão ás festas de Santo Antonio, trajando sêda, calçando caro, com o luxo possivel. É preciso uma infinita modestia associada a uma invencivel pobresa, para se mostrar tres vezes o mesmo vestido sobre aquelle piso irrigado. […]

[…] O corredor dos «reservados» desemboca no pateo, sobre as dansas e o remoinho dos passeantes voltando-se, á claridade, á alacridade dos jogos e patuscadas. A barraca maior annuncia com luz «farturas» de Lisbôa, das que se vendem na feira d’Alcantara. A outra, contigua, é a do tiro ao alvo, a do Pim-pam-pum. […]

O animatographo enche-se. Nos quinze minutos d’intervallo, o caixeiro duma confeitaria distribue bon-bons ás creanças. […] Contaram-me que um anno se exhibiu, na feira, a tragedia de Ignez de Castro, em cera. Foi um extraordinario successo urbano e rural. Mas a attracção maxima são os fantoches, o indefectivel Roberto esmocando as irmãs de caridade e destroçando á pancada, até um enterro. […] A satisfação dos camponios é tamanha, que representa, por si só, tambem um espectaculo no terreiro dos theatrinhos. Porém a musica do circo chama com a sua polka barulhenta. Entra-se. O palhaço defronta o cavallo e pergunta-lhe quem é a senhora mais bonita da funcção, e o animal vai balançar o focinho sobre os joelhos duma menina bem trajada. Em pouco, circula na feira a opinião do cavallo, e é de ver-se o bom humor dos conhecidos repetindo-a entre piadas. Porque, depois das nove, a feira-franca se converte numa estupenda pagodeira.

José Vieira – Sol de Portugal: crónica da Beira Alta, 1918, pp. 88-92 e 108-15.

A população e a vida sociocultural da cidade de Viseu no século XX

Viseu era uma cidade um pouco menos dormente que Lamego, mas airosa e desenxovalhada. A população foi sempre afável por temperamento e prazenteira. E continua a sê-lo. De modo geral, não há ali ninguém que responda a um recado ou deprecada com duas pedras na mão ou de cenho franzido. Vê-se que um optimismo salutar é de regra na sua vida das relações. Porventura os problemas que se pousam à família portuguesa oprimem ali as pessoas e obrigam-nas a iguais inquietudes e sobressaltos. Mas o transe decorre entre as quatro paredes na azenha interior ou familiar.

Nada do que eu tinha de bom se estragou ali. A cidade não é perversora, nem desafia o homem para o jogo das ambições e da aventura. Também o ideal carece ali de rampas de lançamento para aquelas altitudes em que é fácil perder-se a

Fazendo incidir as suas recordações nos traços de carácter da população da cidade de Viseu – que qualifica como “afável” e “prazenteira” –, assim como em alguns dos lugares de sociabilidade locais – sobretudo o Hotel Cadete, “o Santa Rita” e a Rua da Carvoeira –, a memória de Aquilino Ribeiro reporta a 1902, ano em que, desde 16 de Junho, se fixou por algum tempo em Viseu, aí frequentando a cadeira de Filosofia, a partir da qual obteve acesso ao curso de Teologia no seminário de Beja, cidade para onde se mudou em Outubro desse mesmo ano.

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tramontana. Tão-pouco melhorou nesta terra sensivelmente a minha personalidade. Quando me fui embora, tive ocasião de notar que insignificante fora o desbaste que sofreu em mim o bisonho ou a minha idiossincrasia de serrano. Todavia o Viseense é um senhor polido, curial e comunicativo. Que trazia eu dentro de mim, que não me deixava impregnar das virtudes e ruindades do meio? Ainda não caíra suficiente água mole na minha compleição de pedra dura que fosse suscepítvel de alterá-la. No meu transcurso por Viseu a crónica ficou em claro. À parte uma rixa, no caminho para o arraial de Vil de Moinhos, do meu rancho, em que avultava o senhor António Latoeiro, com outro rancho, predominantemente estudantil, quando, entrechocando-se, se arrogava cada qual o exclusivo de gargantear a plenos foles e sem competição a Mulher ingrata, em que eu fiz costas com o Esteves, valentão dos valentões; à parte umas breves controvérsias de política social com este e aquele, transcendentes como cocoricós de galo de poleiro para poleiro; à parte ainda uns vagos e timoratos amores com uma costureira da Rua Direita e as minhas serenatas com o Silva Simões, que veio beber a ciência filosófica na mesma fonte de mergulho que eu […]; não falando dos deambuleios no Rossio à hora em que a banda do 9 ali executava os seus pase-calles sob a batuta afinada do maestro Manuel Joaquim – nada mais haveria que registar. Todavia, eu ganhava audiência. Impunha-me, não pela senhoria, nem pela autoridade, que foi sombreiro com que jamais me cobri, mas pela minha virilidade e o selo de sério que punha em tudo. Por isso, cedo passei a gozar de certa preitesia de parte da rapaziada.

Viseu, como capital dum distrito bastante vasto, tinha uma vida burocrática que excrescia das repartições para os botequins e confeiteiros. A caminho do Hotel Cadete, onde outrora o bispo Alves Martins não se acanhava de vir jogar o bacará com os principais do burgo, inclusive o Bota-Carvão, dono do estabelecimento, formigavam a certas horas os cocos e as cartolas. Armava-se depois a banca francesa e havia quem todas as noites perdesse, não digo as orelhas, mas a sua libra de cavalinho. Nós, os estudantes, a puxar a petisca, jogávamos o bilhar e as damas no Santa Rita. Já a alguns quem os quisesse encontrar procurasse-os na Rua da Carvoeira, empório da Vénus mercenária. O trivial, em matéria delico-doce, era a mocidade do liceu – e havia lá matulões de bigode e pêra – ocupar o tempo a namorar ou namoriscar, estudando pouco e dormindo muito. Mas assim se iam desemburrando os filhos dos morgados, que tendo aportado de bota de carda à cidade de Viriato, a Divina Providência, como dizia já o conselheiro Acácio, encaminhava de sapato de verniz para a famosa Coimbra, onde aprendiam a versejar, a cantar o fado e aquelas doutrinas in utroque jure que faziam da lusa Atenas o cérebro teológico mais terso da cristandade.

Aquilino Ribeiro – Um escritor confessa-se: memórias, 1974, pp. 40-1.

A Vizeu onde estou, cidade de reminiscencias e contrastes, vivendo entre formosas serras verdes, abriga uma população conservadora animosa na politica e no amor, inesgotavel d’imaginação phantassista, mais disposta aos prazeres que á tristeza.

[…] A soldadesca barafusta dia e noite pela Praça, pelos jardins e ruas, concorrendo, indefectivel, sebretudo nas festas e sarilhos; envolve-se na vida urbana tão intimamente, que, nos ajuntamentos, quer profanos, quer religiosos, parece ser tudo um e soldados e paisanos aguardarem apenas a occasião de trocar a fardeta pelo jaleco.

Duas vezes na semana, ás quintas e domingos, a banda do

Da autoria de José Vieira – escritor brasileiro que por ocasião da I Guerra Mundial permaneceu por algum tempo na região da Beira Alta, na qual se inspirou para produzir o seu volume de crónicas publicado no Brasil sob o título de Sol de Portugal –, esta narrativa descreve, essencialmente, algumas impressões apreendidas pelo autor acerca das características da população local e da vida sócio- cultural da cidade de Viseu na segunda década do século XX.

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14º dá retreta no coreto do Rocio, que é centro civico da cidade. A gente moça – senhorinhas trajando segundo os figurinos de Paris, estudantes com longas capas negras esvoaçando, vão dum extremo a outro do passeio, á noite, de verão e, pelo inverno, de uma ás tres da tarde, por entre os renques de bancos, onde as mães e os homens graves conversam olhando-os passar. As exhibições faustosas fazem-se no Theatro Viriato, na Sé, nas toiradas e nos bailes do Gremio, dos Bombeiros, do Montepio, nos quaes, os velhotes se agglomeram no bufete ou nas bancas de jogo e as mães de familia, vestidas rigorosamente de preto, se assentam ao longo do salão emquanto as filhas dansam. A aristocracia costuma ir aos domingos á missa do meio dia, na Sé. Á sahida os estudantes formam álas nos degráos da entrada, com a cabeça ao sol, e assistem descer e esmadrigar-se para as ruas esconsas

uma multidão de olhos pretos mysteriosos e encantadores. […] […] Á terça-feira, o Rocio, a rua Formosa e a Praça transbordam de povo das aldeias. Os homens,

com o casaco pendurado ao hombro, falam alto e muitissimo debaixo dos seus beirudos chapeus. As mulheres, com crucifixos de oiro sobre o peito e enormes argolas nas orelhas, agitadiças, attenciosas para os soldados, falam tambem muito e alto, e prolongam o final das phrases numa agudeza aflautada, tão forte, que o coro das vozes fica vibrando por cima dos negocios. E, sem dispensar o carago! hespanhol, usam todos uma rude pronuncia em que o c brando sôa tch. Depois das onze, as carreteiras reerguem as suas canastras, traçam o chaile e distribuem-se pelas quatro estradas poeirentas de Vizeu. Em meio aos grupos que se vão descem, de regresso, familias inteiras, endomingadas, cada pessôa com o seu ramo tangendo para a aldeia a porca e os bacorinhos não vendidos.

[…] Nos dias communs Vizeu é quieta e repoisante. Ao amanhecer, os padres e as beatas sobem lentamente as ruas ingremes, caminho das egrejas. Ás nove horas, um cura inda joven galga a sineira de S. Sebastião e toca á missa. Defronte, num sobrado de caiadura limpa, os doentes de todas as classes esperam a consulta do dr. Cortez; depois da qual o illustre clinico accende um cigarro, abre o guarda-sol e, saudado por quantos o vão encontrando, caminha para o Hospital, que a sua direcção traz merecedor dos maiores elogios. Depois das missas, a casa da Camara enche-se de advogados, escrivães e partes interessadas na faina do tribunal e dos cartorios. Damas dai alta, caprichosamente enchapeladas, saem a compras. Algumas dellas, seguidas da creada, param ante as canastras da Praça, indagam preços, regateiam. Quando relógio da Sé badala meio dia, a Praça, o Rocio, a rua Formosa e as mais ruas melhores caem num grande silencio.

Até as duas, só a espaços a calma dessa sesta de provincia é ferida pelo raspar dalgum sapato ferrado nas lages do calçamento, ou o martello do latoeiro isolado, batendo na sua tenda.

Entre o almoço e o jantar, pessôas gradas, officiaes e letrados conversam na livraria coisas da terra, politica é lavoira, enquanto o comboio do Val do Vouga, apitando no valle, lhes não traz as folhas do Porto com assumptos novos para as mesmas conversas. Á tardinha, um sujeito magro apregôa os jornaes de Lisboa pela avenida, e é quasi assaltado junto aos quíosques do Rocio. Cae a noite. Vizeu como que adormece. Do interior das casas vem uma luz parca. Pelas quelhas, nas visinhanças da Sé, attraentes pela sua cumplicidade lugubre, juntam-se em namoro estudantes e costureirinhas desvalidas. Nos bancos do Rocio, conversa-se; mas os individuos mais qualificados, os da justiça, do commercio e da industria, se param nos bancos do logradoiro, aguardam a hora de affluir para o Gremio, onde passam a noite no cavaco. Alguns se recolhem á casa pela madrugada.

José Vieira – Sol de Portugal: crónica da Beira Alta, 1918, pp. 83-7.

Conferindo atenção aos modos de vida da sociedade viseense que define pelo seu cunho conservador e, simultaneamente, alegre, José Vieira destaca alguns dos seus comportamentos e actividades quotidianas, por vezes atribuindo-os a sectores sociais específicos. Da mesma forma o autor assinala ainda alguns dos principais lugares ligados à vida social e lúdica da cidade, como a zona do Rossio e o Teatro Viriato, ou os espaços das associações locais, como o Grémio Viseense, entre outros.

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A cidade sob o olhar de um viseense e de um visitante

FRANQUEZA maxima – não é uma cidade essencialmente moderna, embellezada por largas e compridas ruas, amplas praças, mirabolantes jardins, sumptuosos palacetes; e nem se nota, tão pouco, um movimento continuado e extraordinario em todas as suas arterias, ainda as de somenos importancia, que possa dar-nos a impressão d’um grande centro populoso, porque o não é. Todavia deve dizer-se desde já, em completo abono da verdade, que Vizeu é uma das raras cidades nacionaes onde se vive relativamente bem. Ha aqui convivencia, animação e bastante vida, ainda que o não pareça nos primeiros momentos da sua visita ao forasteiro e ao touriste. Para os que gostam do meio termo nos diversos aspectos da existencia vivida no interior dos povoados, – uma existencia placida, methodica, sem grandes e exaggerados ruidos de distracções varias a succederem-se em volta e a todo o momento, causando a attenção, transtornando os habitos e exgottando as algibeiras, o que é bem peior, Vizeu convém. Não é uma terra de luxo com disposições abundantes para «cavallarias altas», permitta-se-nos o termo tão nosso, mas por isto mesmo sempre seria querida dos que ainda apreciam e sabem avaliar bem dulcissimo remanso do viver adoravelmente simples e beneficamente honesto.

Cidade antiquissima, Vizeu é irregular, e tem ainda muito d’aspecto pesado que caracterisa os burgos cuja origem se dilue e apaga por completo na profunda treva dos seculos. Comtudo, são para notar os melhoramentos materiaes, mais ou menos importantes, que vem gosando ha annos a esta parte, – melhoramentos que lhe transformaram bastante já a feição vetusta e fria que a dominava em epochas idas, dando-lhe uma nova caracterisação agradavel e mesmo distincta. Portanto, se ainda não é, como dizemos atraz, uma grande cidade um centro de luxo, uma estação especial regorgitante de grandiosidades, que periodicamente possa chamar a si centenares de viajores e touristes, é, apezar d’isto, uma localidade onde aquellas faltas – mui sensiveis para uns, com pouco interesse aliás para outros, – são largamente compensadas com o que se gosa na proverbial hospitalidade dos seus habitantes e na intimidade ou exteriorisação sympathica, bem pouco vulgar dos usos e costumes. Vive-se bem aqui, porque não ha odios nem preconceitos, não ha vicios que envenenem nem motivos de qualquer ordem que possam incommodar ou acarretar prejuizos de maior. […]

Vizeu apresenta dentro de seus muros alguns monumentos e edificios importantes, dignos de ser vistos e mencionados. Logo á sahida da estação do caminho de ferro e ao cimo do campo de Viriato, local onde se realisa a grande feira de S. Matheus e que apesar de sensivelmente decahida ainda é a primeira do paiz, se encontra a famigerada Cava do valente guerreiro luzitano. […]

A Sé é uma fabrica enorme, antiquissima, pois nasceu com a monarchia, e repositorio de verdadeiros primores artisticos, desde a interessantissima e notavel abobada dos nós, trabalho unico no seu genero em Portugal, até á esplendida collecção das pinturas gothicas atribuidas a Vasco, o Grão Vasco, tão apreciado e debatido pelos criticos d’arte de diversas nacionalidades. O Seminario diocesano, com a sua magnifica bibliotheca, considerada de primeira ordem, e a escadaria suspensa, maravilha de tal ordem, que só vendo-se póde ser devidamente apreciada. O hospital civil da Santa Casa da Misericordia, é um edificio grandioso, amplo, decentissimo, em bella localisação, que póde ser considerada modelo. […] Fontello, o velho paço dos bispos, ao qual conduz uma encantadora

Natural da cidade de Viseu, na qual residiu grande parte da sua vida e à qual aludiu constantemente na sua produção escrita, António Xavier de Campos transmite uma perspectiva laudatória da sua terra natal no final do século XIX. Reconhecendo a escassa modernização conhecida à época pela cidade, o autor faz a apologia da vida plácida que Viseu proporcionava, em detrimento do movimento e do ruído excessivo dos grandes centros urbanos, e, da mesma forma, estende o seu louvor a alguns monumentos e instituições da cidade, como a Cava de Viriato, a Sé Catedral e o Mosteiro de Jesus, entre outros.

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carreira ladeada por frondosas arvores bastantes vezes seculares. Na sua capella admiram-se a «Ultima Ceia» e «Jesus em casa de Martha», quadros que o sr. Carlos Justi, distincto critico allemão, julga superiores ás grandes e afamadas pinturas da sachristia da Sé. O Asylo de infancia desvalida, que merece ser notado pela ordem e aceio que n’elle se observam funcciona desde 1879. Possue aulas e officinas para educação dos internados […]. S. Miguel do Fetal é uma capella humilde mas notavel, por ser o templo mais antigo de Vizeu, pois é anterior a 1110, sendo doado por D. Henrique de Borgonha a Theotonio, bispo de Vizeu e depois canonisado pelas suas virtudes. Egualemente o extincto mosteiro de Jesus […] desperta interesse por o insigne e grande Camillo fazer passar junto da escadaria principal d’este convento essa tragica scena do seu emocionante Amor de Perdição, – Simão Botelho estoirando a zagalotes e cabeça do repugnante primo Balthazar de Castro Daire. Também foi n’este mosteiro que Thereza, essa candida e delicada protagonista do romance passou em reclusão parte da sua amarissima existencia, acompanhada por essas religiosissimas freiras, que Camillo desenha magistralmente.

A. Campos – “Viagens no país”. Branco e negro: semanário ilustrado. N.º 43, 1897, pp. 269-70.

Tudo parecia, pois, anunciar uma cidade linda e alegre, qualquer coisa da divina Florença depois da delícia lendária do vale de Arne.

A frequência de casais e pequenos povoados anunciava cada vez mais Vizeu. E, realmente, a cidade não tardou a aparecer, apinhada, com serras à roda, traços da Estrêla, do Caramulo e de Santa Luzia, oferecendo no seu principal arruamento – a rua Formosa – uma animação de pequeno centro que progride.

Mas o tom geral depois é triste, arcaico, talvez desconsolado. As ruas, quási todas velhas de casaria e pavimento, são completamente desertas. O Passeio Público, uma praça ajardinada, mas irregular e pequena, impõe-se apenas pelo vulto majestoso dos Paços do Concelho.

Há falta de espaço em quási todos os recintos que costumavam ser amplos e luminosos. A própria vasta praça em que se ergue a catedral parece pequena e escura, porque as negras faces dos edifícios da cadeia e do govêrno civil e liceu só projectam sombras em suas linhas banais e descaídas, sugestivas demais do bolor dos tempos ou da incúria.

Os lagedos que no dorso da maior parte de tantas ruelas subsistem os passeios laterais, os bairros velhos, alguns com tão mesquinhos casebres, enfim, uma excessiva nota aldeã que contrasta excessivamente com a exibição comercial e bastante citadina da rua Formosa e de poucos arruamentos ainda, oprimem, não satisfazem; como que inquietam, fazendo parecer Vizeu mais sombria e acanhada do que outras povoações, afinal menores, da Beira Alta.

Estas impressões desconfortavam com mil decepções a curiosodade do lente e dos seus companheiros, depois de elogiarem, contudo, o lindo vale em que o Paiva rola as suas águas modestas.

E em vão notaram depois a parte moderna, os bairros de S. Miguel e do Maçorim, o elegante arremedo que da Coimbra Nova pretende fazer Vizeu. A avenida, que tem edifícios grandiosos como o do Hotel e a agência do Banco de Portugal, estava por concluir, e como que sem um claro pretexto de

Em contraste com a perspectiva do viseense António Xavier de Campos, a narrativa de José Agostinho realça a feição antiga que caracterizava a cidade de Viseu na segunda década do século XX. Embora elogiando as riquezas patentes na Sé Catedral, assim como vários aspectos da vida social e do urbanismo moderno que detectou em alguns arruamentos e avenidas, o autor descreve a cidade a partir de um tom desanimado. Caracterizando-a, de modo geral, pela escassa animação das ruas e pela feição arcaica e acanhada, que lhe conferiam uma “excessiva nota aldeã”, o autor destaca, ainda, o “exagero das paixões políticas” que grassava na sociedade local e ao qual atribui a responsabilidade pelo descuramento que à época a cidade manifestava face à preservação da memória de Grão Vasco.

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existência legitima. Igualmente, a Avenida Navarro, começando abruptamente depois duma ladeira arcaica, embora com uma bela curva, cheia de majestade e pitoresco, e animada por alguns vastos estabelecimentos, interrompia-se de súbito, sem se notar logo muito bem quando e como é que tocará no coração da cidade, para ser bela e até lógica no traçado. É o prejuízo das obras de plano pouco justo, ou desconhecido pelo visitante que, de ordinário, não pode demorar-se muito. As modernizações parecem então simples afectações, exibidas excêntricamente, como que sem proveito nem método positivo.

Contudo, Vizeu fácilmente seria uma cidade bela, por mais que o seu horizonte perca no grande contraste com os serenos e perfumados encantos dos seus arrabaldes. Dois golpes audaciosos, que partissem do centro da cidade, arrazando casarias tão velhas como tristes, fariam talvez tudo.

– E a Vizeu monumental e artística – comentava o lente – é digna dum grande respeito. É que os viajantes vista depressa a cidade, visitavam agora a catedral, medíocre de exterior, mas

preciosa de riquezas artísticas no seu interior. Surpreendia-os, além das três boas naves, o teto admirável, o encordoamento dos lavores da

magnífica abóbada, a preciosidade e grandeza do côro, e o que poderia chamar-se a obra de Grão Vasco. As telas do nosso imortal pintor valem um monumento inteiro. […] Na capela do Santíssimo, a tela da ceia, não destôa daquelas impressões. E o clautro, pequeno, mas belo, oferece capelas curiosas, algumas históricas.

Os viajantes contemplavam tudo em êxtasis, como quem anseia por encontar uma expressão justa que nunca se encontra.

Foi o lente quem proferiu as primeiras palavras. – Eis a inestimável riqueza de Vizeu. A obra de Vasco Fernandes, ou Grão Vasco, glorifica esta

cidade, tão ufana ainda com o facto de ter sido moradia do heróico e rude Viriato. – Mas – observou o bacharel – parece que Vizeu deveria testemunhar melhor o respeito pelo que

mais a glorifica. Ao valente luzitano rendeu ela homenagem na Cava do Viriato, passeio que, afinal, não tem um símbolo educativo da alma do povo. Mas de Grão Vasco? Como tenho lido, se não fôsse o ardor erudito do dr. Maximiano de Aragão, ilustre advogado viziense, do portuense Joaquim de Vasconcelos, o notável crítico de arte, e de poucos mais, esta boa cidade mal se lembraria da sua glória mais autêntica e pura. Não mereceria êle uma formosa estátua? Levantaram-na com justiça a Alves Martins, bispo de Vizeu. Mas nesse preito colaborou, infelizmente, uma espécie de sectarismo, apontando-se o honrado antístite antes como um heterodoxo do que como um austero crente. A estátua ou monumento que celebrasse o génio de Grão Vasco, falaria rigorosamente da nossa raça no século XVI, e diria como ela, heróica e religiosa, soube elevar-se a uma genialidade que só as grandes civilizações podem produzir.

– Sim – volveu o lente – Vizeu tem no seu Grão Vasco uma figura inteiriça e luminosa que não se presta a ser joguete das desvairadas paixões modernas. Mas, como temos notado, Vizeu enferma de politiquismo. O cacique vale mais ainda que o homem de génio que, deitado no seu túmulo, simples, nem pede benesses nem convulsões sectárias.

– E disse o bacharel – parece o defeito de grande parte da Beira Alta. […] É apenas a inveja e o desdêm dos contemporâneos pelo melhor do passado, e êsses maus sentimentos são ainda exagerados pela suposta intransigência do politiquismo actual.

[…] E o lente concluía, quando já a caminho de S. Pedro do Sul, num lanço formoso da estrada: – Podemos afirmar talvez que em Vizeu a matéria prima é sempre de bom quilate, mas que

predomina bastante, por desventura, um singular abastardamento, uma preocupação doentia de se imitar a capital na leveza dos costumes e no exagero das paixões políticas. A boa cidade é um mixto curioso de grande aldeia rotineira e de pequenino recanto da Baixa de Lisboa.

José Agostinho – À roda de Portugal. Vol. II, 1914, pp. 6-12.

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ÍNDICE de AUTORES

Agostinho, José .................. 102-3, 113-4, 254-5

Aires, Cristóvão ......................................... 61-2

Albuquerque, António de ......................... 153-5

Almeida, Fialho de .......................... 96-8, 220-1

Almeida, Padre Álvares de (Nuno de

Montemor) ............................................... 134-5

Andersen, Hans Christian ....................... 219-20

Arruda, João ................. 45, 112-3, 206-7, 233-4

Basto, Cláudio ................. 227-8, 229-30, 237-8

B.R. ........................................................... 67-8

Brandão, Raul .......................................... 147-8

Brandão, Zeferino .................................... 202-3

Caldas, José ............................................. 228-9

Câmara, Jaime ............................................ 119

Campos, A. .............................................. 253-4

Castelo Branco, Camilo ........................... 238-9

Castilho, Júlio de ............................. 152, 166-9

Castro, Eugénio de .......................... 56-7, 157-9

Castro, José Augusto de ......................... 129-31

César, Oldemiro ....................................... 123-5

Chagas, Manuel Pinheiro .............. 155-6, 196-7

Coelho, Eduardo ........................................... 79

Coelho, Trindade ................................. 64-5, 86

Cordeiro, António Xavier Rodrigues ........ 151-2

Cordeiro, Carvalho ................................... 242-3

Costa, Alberto ............................................ 86-7

Costa, António da ...................................... 54-6

Costa, Sousa .................................... 239, 243-4

Cristino, Ribeiro ...................................... 182-3

Cristo, Homem.............................................. 32

Davim, Rodrigues .................................... 107-8

Dinis, Júlio.................................... 122-3, 191-2

Duarte, Manuel ........................................ 163-4

Duarte, Mário .......................................... 29-30

Eusébio, António Maria .............................. 215

Figueiredo, Antero de...................... 49-50, 51-2

Fonseca, Augusto de Oliveira Cardoso ....... 87-9

Fonseca, Faustino da .................................. 22-4

Freitas, Joaquim de Melo ........................... 30-1

Gil, Augusto ............................................ 133-4

Gomes, João Reis ................................... 119-21

Gomes, Luís ............................................. 177-8

Goulart, José Osório ................................. 141-3

Gouveia, João .......................................... 121-2

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Herculano, Alexandre ................................. 208

Leal, M. A. Guerra ........................................ 33

Leitão, Joaquim ....................................... 194-5

Lemos, Júlio de ........................................ 230-2

Lima, Gervásio .......................................... 21-2

Lima, José Mendes .................................... 41-3

Lobato, Gervásio ..................................... 180-2

Lopo, Albino ............................................. 63-4

Lotelim .................................................... 240-1

Macedo, J. de Lemos ................................. 50-1

Machado, Bernardino............................. 189-90

Machado, Júlio César .................... 155-6, 195-6

Neves, Henrique das ................................ 203-4

Nóbrega, Ciríaco de Brito ........................ 117-8

Oliveira, Paulino de ......................... 214, 216-7

Ortigão, Ramalho..................................... 232-3

Osório, Ana de Castro .............................. 217-8

Osório, José ................................ 178-80, 205-6

Pimentel, Alberto .............. 201-2, 208-10, 225-6

Parreira, Jacinto da Cunha........................... 107

R. ............................................................ 187-8

Ramalho, Monteiro .................................... 34-5

Rattazzi, Maria ................................. 83-4, 90-1

Rebelo, Ernesto ....................................... 144-7

Reis, Luís da Câmara ................................. 25-6

Ribeiro, Aquilino ............................ 43-4, 250-1

Rodrigues, Manuel M. ................................ 193

Roxo, António ............................ 73-4, 76-7, 80

Sancho, José Dias ...........................108, 109-11

Sequeira, António de Oliva e Sousa ......... 39-41

Silva, D. Bruno da Silva (pseud. António

Francisco Barata) ....................................... 95-6

Silva, Joaquim Augusto Porfírio da ............... 78

Silva, José Luís Rebelo da........................ 241-2

Silva, M. Emídio da ............................... 169-72

Simões, Augusto Filipe ................... 98-9, 100-1

Supico, Francisco Maria........................... 164-5

Teixeira, Raul Manuel ............................... 65-7

Trindade, Francisco Manuel .......................... 61

Unamuno, Miguel de ............................... 135-7

Valdez, José ............................................... 52-3

Vasconcelos, José Leite de .............. 68-9, 213-4

Vidal, João.................................................... 29

Vieira, Afonso Lopes ............................... 215-6

Vieira, José ................................. 248-50, 251-2

Wolowski, B. ................................ 131-2, 247-8

Zig-Zag ................................................... 176-7

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FONTES

AGOSTINHO, José – À roda de Portugal. Vol. II. Porto: António Figueirinhas, 1914.

AIRES, Cristóvão – Antros humanos: versos alusivos à cadeia de Bragança recitados pela Exma. Sra. D. Cândida Rosa Furtado na noite de 15 de Maio de 1893 no Teatro Camões em Bragança. Bragança: Imprensa Brigantinha, 1893.

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ALMEIDA, Fialho de – Os gatos: publicação mensal de inquérito à vida portuguesa. Porto: Casa Editora Alcino Aranha, n.º 34, 2 Jan. 1892, pp. 3-6.

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