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Meditações Marco Aurélio (Imperador Romano) Índice

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  • Meditaes

    Marco Aurlio(Imperador Romano)

    ndice

  • Marco Aurlio

    Meditaes

  • Verso portuguesabaseada na traduo inglesa do original, com o

    ttulo MEDITATIONS,

    de autoria de MAXWELL STANIFORTHEdio da Penguin Books

  • Traduo e Tratamento em Computador

    Lus A. P. Varela Pinto

    Processado em computador (ambiente Macintosh) com recurso sseguintes aplicaes:

    Processamento de texto:

    Microsoft Word 98

    Composio e paginao:

    Adobe PageMaker 6.5

    * * *

    Esta verso electrnica, foi executada com o

    Adobe Acrobat 4 em Janeiro de 2002

    Espinho, Portugal

    2002

  • 7

    ndice

    Introduo .................................. 11

    Hino de Cleanthes ........................... 23

    Nota do Tradutor da verso inglesa .......... 25

    LIVRO 1 ..................................... 29

    LIVRO 2 ..................................... 35

    LIVRO 3 ..................................... 41

    LIVRO 4 ..................................... 47

    LIVRO 5 ..................................... 57

    LIVRO 6 ..................................... 67

    LIVRO 7 ..................................... 77

    LIVRO 8 ..................................... 87

    LIVRO 9 ..................................... 97

    LIVRO 10 ................................... 107

    LIVRO 11 ................................... 117

    LIVRO 12 ................................... 125

    Notas ...................................... 133

  • Enquanto os homens continuarem a ser atrados pelaslgrimas e triunfos da bondade humana, no faltaro leitoresa Marco Aurlio. Melanclico, compassivo e desencantado, o

    ltimo dos Esticos ainda envergonha as nossas fraquezas esilencia a nossa insatisfao.

    Maxwell Staniforth

    na Introduo

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    Introduo

    As Meditaes de Marco Aurlio eram uma leitura muito na moda h duasgeraes. Era o tempo em que o catlogo de qualquer bom editor inclua sempreuma elegante coleco de bolso dos clssicos; e, de entre estas, poucas haveriaem que no aparecessem as Meditaes. A voga j passou, mas talvez expliquea razo por que o livro ainda conhecido de nome por tanta gente, muitoembora o conhecimento do seu contedo seja mais raro do que foi outrora. Defacto, quando uma pessoa escolhe este livro, pode muito bem perguntar-se, Deque que tratar? Que assuntos irei encontrar l dentro? Devo, por isso, edesde j, prevenir o leitor de que no pode esperar encontrar nele qualquer temacontinuado ou conexo. Trata-se apenas do dirio ou livro de apontamentosonde Marco Aurlio, de tempos a tempos, registava qualquer coisa que lheparecesse merecer a pena guardar. Ora regista um pensamento sugerido porqualquer acontecimento recente ou encontro pessoal; ora medita sobre osmistrios da vida e da morte do homem; ora recorda uma mxima prtica para oauto-aperfeioamento, ora transcreve das suas leituras do dia um pensamentode que gostou particularmente. Todos estes assuntos, e uma grande variedadede outros, so registados medida que ocorreram ao escritor. O leitor podeiniciar a leitura do livro ou interromp-la em qualquer ponto sua escolha, e lertantas ou to poucas entradas quanto lhe apetea. Em resumo, Marco deu-nosum excelente livro para ter na mesa de cabeceira.Os bibliotecrios catalogam geralmente as Meditaes, e sem dvida bem, comoFilosofia; mas isto pode induzir o leitor em erro, a menos que compreenda olugar que a filosofia ocupava na antiguidade. Daquilo que ele conhece dosescritos dos representantes do sculo vinte deste ramo do saber, poucoprovvel que conclua que o seu objectivo principal e final a obteno da virtudepessoal. Isso, imagina ele, do foro da religio, no da filosofia. Mas naAntiguidade Clssica as coisas eram diferentes. A moralidade, a vida s, asrelaes do homem com os deuses tudo isto era do foro do filsofo e no dodo sacerdote. A religio romana, no tempo do Imprio, no tinha nada a ver comos problemas morais. A sua funo era simplesmente a da execuo dos rituaisque assegurassem a proteco dos deuses por parte do Estado, ou evitassemos efeitos do seu descontentamento. Era um sistema formal de cerimniaspblicas realizadas por funcionrios do Estado, e no dava resposta s dvidase dificuldades da alma humana. Contudo, ento, como agora, o homem sentia-se perplexo perante as grandes questes que so preocupao de todos ns.Qual a composio deste universo que nos rodeia, e como que eleapareceu? Teria sido fruto de um acaso cego, ou da sbia Providncia? Se osdeuses existem, ser que eles se interessam pelas coisas dos mortais? Qual anatureza do homem, e qual o seu dever aqui, e o seu destino no alm-tmulo?No eram os sacerdotes, mas os filsofos, que se reclamavam da competnciapara dar resposta a estas questes. verdade que as suas respostas no eramunnimes; havia sistemas filosficos rivais, e cada um oferecia a sua prpriasoluo (como, alis, as diferentes religies do mundo ainda fazem); mas todosconcordavam que s filosofia pertencia o direito exclusivo de se pronunciar

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    com autoridade nos campos da metafsica, da teologia e da tica. Ela eraconsiderada competente para explicar a histria da criao, definir os poderesinvisveis por detrs da ordem do mundo, interpretar a natureza e o sentido daexistncia humana, prescrever as regras para uma vida s, e revelar o futuroalm-tmulo. Assim, a filosofia ocupava o lugar que, nos nossos dias, ocupadopela religio, como instrutora e guia das almas em cada estdio das suasperegrinaes terrenas. Esta pretenso justifica-se especialmente no caso doEstoicismo, que era marcado por um carcter mais religioso do que qualqueroutro sistema da Antiguidade. Como o historiador Lecky observa, O Estoicismotornou-se a religio das classes instrudas. Ele fornecia os princpios da virtude,dava cor mais nobre literatura da poca, e guiava todos os desenvolvimentosdo fervor moral.*O que isto significa que um leitor que queira fazer uma abordagem correcta dopensamento de Marco Aurlio deve levar em linha de conta que as frequentesaluses do imperador filosofia tm sempre o tipo de implicaes que ns hojeassociamos palavra religio. Porque filosofia, para o homem que escreveuestas Meditaes, significava tudo o que uma religio pode significar. No era aprocura de verdades abstractas, era uma regra para a vida. Em certo sentido,este livro um verdadeiro manual de devoo pessoal, como A Imitao deCristo de Thomas Kempis com o qual tem sido frequentemente comparado,e que, de facto, a sua contrapartida crist.

    A Filosofia Estica

    O Estoicismo, o sistema filosfico em que Marco acreditava, foi, na sua origem,um produto do pensamento do Mdio Oriente. Tinha sido fundado uns trezentosanos antes de Cristo por Zeno, oriundo de Citium (hoje Larnaka) em Chipre, erecebeu o seu nome da Stoa ou colonata, em Atenas, onde ele costumavadissertar. O seu principal discpulo foi Cleanthes, que por sua vez foi continuadopor Chrysipo; e os sucessivos trabalhos destes trs homens, que depois foramvenerados como os pais fundadores do Estoicismo, resultaram na formao deum esquema de doutrina que abarcava todas as coisas divinas e humanas. Astrs palavras-chave do credo de Zeno eram materialismo, monismo e mutao.Ou seja, ele considerava que tudo no universo mesmo o tempo, mesmo opensamento tem uma qualquer espcie de substncia corprea(materialismo); que, em ltima anlise, tudo se pode resumir a um simplesprincpio unificador (monismo); e que tudo est em perptuo processo demudana e a transformar-se em qualquer coisa diferente daquilo que antes era(mutao). Estes trs dogmas foram os alicerces sobre os quais Zeno construiutoda a estrutura. A sua intransigente insistncia nestes princpios levou-o porvezes a expor ideias perfeitamente indefensveis; mas, nas mos dos seusseguidores, as mais rgidas asseres do fundador foram modificadas esuavizadas de maneira a torn-las aceitveis para os pensadores de espritomais realista.

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    Quando o Estoicismo passou do Oriente para o Ocidente e foi introduzido nomundo romano, assumiu um aspecto diferente. Foram os elementos morais dosensinamentos de Zeno que aqui despertaram mais ateno, e o seu valorprtico foi prontamente apreciado. Um cdigo que era humano, racional emoderado, um cdigo que insistia num procedimento justo e virtuoso, na auto-disciplina, numa fora moral inabalvel e numa completa libertao dastempestades da paixo adequava-se admiravelmente ao carcter romano. Econsequentemente a reputao e influncia do Estoicismo aumentouinvariavelmente ao longo dos sculos que assistiram ao declnio da repblica eao nascimento do principado; e por altura da ascenso de Marco Aurlio aotrono, tinha j atingido o ponto mais alto da sua supremacia. As suasconcepes e a sua terminologia eram agora familiares aos homens e mulheresinstrudos de todas as cidades importantes do ImprioOs Esticos definiam a filosofia como luta pela sabedoria; e sabedoria, porsua vez, era definida como conhecimento das coisas divinas e humanas.Dividiam este conhecimento em trs ramos: a Lgica, a Fsica e a tica.* Umavez que o primeiro requisito para a procura da verdade um pensamento claro erigoroso, que, por sua vez, depende de um uso preciso das palavras e umvocabulrio de termos tcnicos, o estudo inicial era a Lgica. Depois vinha ainvestigao dos fenmenos naturais e das leis da natureza. E esta estendia-seat interpretao metafsica do universo; pois, no esquema estico, a Fsicainclua o estudo completo do Ser na sua tripla manifestao: o prprio homem, ouniverso criado sua volta, e Deus. Por fim, colocado no lugar mais elevado eimportante do sistema, vinha a tica. Pois a verdadeira funo da filosofia, oponto para o qual convergiam todas as questes e ao qual estavamsubordinados todos os ramos do conhecimento, era a prpria conduta dohomem, definida numa palavra, virtude. Como diz Diogenes Laertius, elescomparam a filosofia a uma criatura vivente; os ossos e msculos correspondem Lgica, a carne tica, e a alma Fsica. Comparam-na tambm a um campoprodutivo, do qual a Lgica a vedao circundante, a tica, a colheita que elaencerra, e a Fsica, o solo. Convm resumir brevemente os seusensinamentos sobre estes trs pontos.(a) A Lgica. No sector da Lgica, tudo o que o leitor de Marco Aurlio precisade saber a teoria do conhecimento dos Esticos e os meios de atingir esseconhecimento. No seu sistema, o conhecimento comea com impresses, queso produzidas pelo impacto das coisas ou qualidades sobre os sentidos. Depoisfica para o poder do esprito o julgamento daquilo que os sentidos reportam:aceit-lo como representao verdadeira da realidade objectiva, ou rejeit-locomo falso. (A importncia decisiva desta fase repetidamente realada porMarco). Algumas impresses, como evidente, desencadeiam uma aceitaoimediata e espontnea como, por exemplo, a noo elementar de que o bem benfico e o mal prejudicial mas noutros casos a aceitao s vem depoisde ponderada reflexo; e pode variar entre uma aprovao hesitante, to fraca evacilante que apenas constitui uma mera opinio, e uma certeza categricaque s produzida por uma chamada impresso arrebatadora. umaimpresso to forte que, no dizer de um escritor, como que agarra o sujeito

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    pelos cabelos e lhe arranca a aceitao. Contudo, mesmo uma impressodeste tipo pode ser, de facto, imperfeita ou enganadora; e consequentemente asua aceitao, por muito segura que seja, pode ser errnea. Deve, portanto, ser,em seguida, submetida ao escrutnio da razo, nico poder soberano que podeemitir o passaporte para a convico. Por fim, esta convico pessoal tem de serverificada por comparao com a experincia dos tempos e sabedoriaspassados, e confirmada pelo veredicto geral da humanidade; e torna-se entoconhecimento. Ao explicar estes quatro estdios, Zeno costumava ilustrar asimpresses com os dedos da mo estendidos, a aceitao com a mo fechada,a convico com o punho cerrado, e o conhecimento com o punho firmementeagarrado pela outra mo.(b) A Fsica. Os fsicos esticos ensinavam que a fonte original do Ser em todasas suas formas uma certa substncia omnipresente em todo o universo, quepode ser mais bem descrita como Esprito. Contudo, como eles erammaterialistas consumados, consideravam este Esprito como consistindo de umamatria real e concreta, embora de uma espcie o mais fina e imperceptvel quese possa imaginar. Numa analogia com o mais subtil e vivo dos elementosconhecidos, e que tambm alimenta a vida e o crescimento, conceberam a suanatureza essencial como a do Fogo; mas um fogo to rarefeito e etreo que apalavra calor talvez esteja mais prxima para a descrever do que qualquercoisa que possa sugerir uma ideia de chama real. Este Esprito-Fogo, quepossua conscincia, objectivo e vontade, era simultaneamente o criador e amatria do universo; tomava forma em inmeras manifestaes diferentes,dando assim s coisas a sua substncia e forma, e produzindo a partir de siprprio o mundo visvel e tudo o que dentro dele se encontra. De acordo com osvariados contextos em que reflecte sobre isto, Marco d-lhe muitos nomes:quando fala da sua aco sobre o universo como um todo, pode chamar-lheDeus, Zeus, Natureza, Providncia, Destino, Necessidade, ou Lei; como um doselementos materiais da natureza, Fogo, ou Ar, ou Fora; em relao constituio do prprio homem, torna-se Alma, Razo, Esprito, Sopro, ou (nalinguagem tcnica da psicologia Estica) a Faculdade-Mestra. importantelembrar que todas estas palavras so meros termos para designar o mesmoEsprito-Fogo criador nos seus variados aspectos.O Estoicismo , portanto, um credo pantesta: isto , considera que Deus estem toda a criao, mas no tem existncia fora dela. E como tal, est em directaoposio aos ensinamentos rivais do Epicurismo. Epicuro, ao desenvolver asideias de Demcrito, defendia que os nicos constituintes do universo sotomos e espao vazio. Os tomos, em nmero infinito, esto em movimentocontnuo e em alta velocidade no vcuo, e as suas colises fortuitas produzemcertas combinaes que fazem o mundo tal como ele em cada momento. Umavez que este colidir incessante de tomo contra tomo no vrtice vai fazernascer eternamente novas combinaes e disperses, a vida do universocontinua a perpetuar-se infatigavelmente. verdade que entre as infinitamentenumerosas combinaes possveis, algumas tero necessariamente de parecercomo se fossem o resultado de um desgnio; mas na realidade tal coisa, odesgnio, no existe, e tudo se deve ao acaso. O prprio Marco, em mais do que

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    uma passagem das Meditaes, considera as implicaes desta teoriaalternativa. Haver uma Providncia sbia, ou apenas um amontoadodesordenado de tomos? pergunta ele; mas apenas para concluir que emqualquer dos casos as questes morais com as quais ele se preocupa sairiaminclumes. Pelo que a ele prprio respeita, a sua convico sobre a direcoprovidencial do mundo no vacila.Para explicar o processo de criao, os Esticos confiavam na teoria da tenso.A partir do facto de que a maioria dos corpos se expandem quando aquecidos,conclui-se claramente que o calor exerce uma presso. Por consequncia, oEsprito-Fogo, no seu estado primitivo de intenso calor e correspondente altapresso, comea logo a expandir-se; e isto traz consigo um abrandamentoproporcional da tenso. E daqui resulta que algum do fogo divino arrefece, setorna visvel e se transforma no elemento, mais humilde, do terrestre fogo; eeste, por sua vez, medida que a tenso continua a baixar, condensa-separcialmente em ar; e algumas pores de ar, por sua vez, solidificam, tornando-se gua e terra. Nesta fase, entra em campo um movimento de sentido contrrio;o calor vital contido nestes quatro elementos comea a afirmar a sua energiacriadora e a materializar-se nas inmeras formas e feitios que compem ouniverso. Fisicamente, estas diferenciam-se de acordo com as proporesvariveis de fogo, ar, terra e gua que contm; noutros aspectos, a sua naturezadepende do grau de tenso do fogo que os produz. Assim, num certo grau, estafora tornar-se- nas formas orgnicas da vida vegetal; num grau mais elevado,nos animais ou almas sem razo; e depois disso, nas almas racionaiscaractersticas do homem. Dentro destas categorias podem produzir-se tantasformas do Ser quantos os diferentes graus de tenso. Na tenso mxima, oEsprito-Fogo adquire os atributos de uma Alma-Mundo, com a mesma relaocom o universo que a alma individual tem com o prprio homem. A longo prazo,porm, vir um tempo em que esta energia em constante crescimento atinge umpico de intensidade que a torna devoradora da sua prpria criao: uma apsoutra, as diferentes formas e substncias dissolvem-se de novo nos seuselementos originais, a gua evapora-se em ar, o ar transforma-se em chamas, efinalmente o universo desaparece numa grande conflagrao a que nadasobrevive, excepto o primitivo Esprito-Fogo. Aps o que, todo o processorecomea; os sucessivos actos de criao repetem-se, e o padro histricodesenrola-se como anteriormente. E tudo isto se repete em infindveis cicloscsmicos alternados de criao e destruio; e como as leis eternas soimutveis, depois de cada conflagrao, tudo o que aconteceu nos ciclosanteriores tem de reproduzir-se uma vez mais at ao mais pequeno pormenor.Quanto ao prprio homem, ele um microcosmos que reflecte fielmente em siprprio o organismo mais vasto do universo. O seu corpo fsico formado apartir dos quatro elementos, e aquilo que o cria, que nele habita e que o controla uma partcula do Esprito-Fogo omnipresente. Assim como este gneo Poderno seu estado mais elevado e mais puro actua como alma do mundo, tambmaqui, residindo no corpo numa forma pouco menos etrea, ele desempenha omesmo papel para o homem, criando e dirigindo a sua vida, os seus sentidos, osseus pensamentos e as suas emoes. alimentado pelo sangue, e tem o seu

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    assento no corao, o principal centro do sangue. (Da que Marco se refira porduas vezes alma como uma exalao do sangue.)Na hora aprazada, a Natureza desfaz os elementos materiais que compuseramo corpo, de modo a us-los para outros fins; e isto aquilo que conhecemoscomo morte. Quanto quilo que acontece gnea partcula, os Esticos, comoos Cristos, no so unnimes. Todos concordam que mais tarde ou mais cedoela ter de ser reabsorvida pelo Esprito-Fogo original, mas havia diferenas deopinio quanto altura em que isso acontece. A doutrina mais antiga, a queMarco adere, era que, depois da dissoluo do corpo, a alma continuava a vivernas regies superiores do ar, e s era dissolvida de novo no Fogo-Mundo naconflagrao final. Eram estes os ensinamentos de Cleanthes; Chrysipo, poroutro lado, era de opinio que s as almas dos bons e dos sbios preservavam asua identidade pessoal at ao fim do mundo, enquanto que aos maus e aosignorantes era concedido apenas um curto perodo de sobrevivncia antes dasua reabsoro. Outros pensadores consideravam que em todos os casos estareabsoro se seguia imediatamente morte; e ainda outros acreditavam numestado purgatorial no qual a alma sofria um processo de purificao fsica emoral como preldio da sua reunio com a substncia-mundo.(c) A tica. Os Esticos ensinavam que o fim principal do homem, e o seu maiselevado bem, a felicidade. Na sua viso, a felicidade era alcanada vivendode acordo com a Natureza. Esta famosa frase muito facilmente malinterpretada pelo leitor moderno. No significa viver uma vida simples, ou a vidado homem natural; e muito menos viver da maneira que muito bem queremos.Para apreender o seu significado, temos de nos lembrar que a Natureza umadas designaes dos Esticos para o fogo divino que, alm de criar todas ascoisas, tambm as molda para os seus prprios fins. Assim, ela incarna a ideiaque hoje ns exprimimos pela palavra evoluo: o poeta americano queescreveu Alguns chamam-lhe Evoluo e outros chamam-lhe Deus ficoumuito perto da maneira de pensar dos Esticos. Ela era a fora que guiava edirigia todos os tipos de crescimento ou desenvolvimento em direco perfeio final; e porque ela era tambm uma fora viva, intencional e inteligente,os prprios Esticos tambm, por vezes, lhe chamavam Deus. Viver de acordocom a Natureza, portanto, no era uma mxima muito diferente da obrigaodo Novo Testamento Sede vs os seguidores de Deus, e implicava um idealigualmente sublime e uma disciplina igualmente espinhosa.Se quisermos uma definio mais precisa desta Vida Natural, Marco diz queela consiste, para cada criatura, numa estrita conformidade com o princpioessencial da constituio dessa mesma criatura. No caso do homem, esteprincpio essencial a sua razo, que parte da Razo universal. Desde que,portanto, ele siga esta lei racional do seu ser, aproxima-se da felicidade; se seafasta dela, no a alcanar. A Vida Natural , de facto, a vida controlada pelarazo; e tal vida descrita, em resumo, como virtude. o significado de virtudeque explica o dogma estico que diz que a virtude o nico bem, e a felicidadeconsiste exclusivamente na virtude.A razo diz-nos claramente que algumas coisas esto no nosso poder e outrasno. Por exemplo, a sade fsica, a riqueza, os amigos, a morte, e outras deste

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    tipo, esto fora do nosso controle; portanto, no podem ser nem ajudas nemobstculos Vida Natural. So coisas neutras. Mas a nossa prpria vontade,os nossos juzos, o nosso poder de aceitar o que moralmente correcto ourejeitar o contrrio - tudo isto est no nosso prprio poder. Da que nada exteriora ns nos pode, por si s, afectar; s quando interiormente o aceitamos ourecusamos que ele nos pode beneficiar ou prejudicar. O prazer, em si prprio,no um bem, nem a dor, por si s, um mal; tornam-se uma ou outra coisaquando ns assim as julgamos. este o significado da insistncia de Marco emque a opinio tudo. E tambm explica a presteza do sbio, que tantas vezesencontramos realada nas suas pginas, em aceitar sem ressentimento tudoque lhe possa acontecer; um preceito que claramente um dos esteios da suavida pessoal. este o princpio que est por detrs da famosa apatia, ouimpassividade, do sbio estico ideal. Este, como ensinavam os filsofos,experimentar todas as sensaes e emoes que so comuns ao homem, mas,porque se recusa a v-las como males, no ser afectado por elas.Considerando-as como coisas exteriores e portanto neutras, ele fica seguro einclume. Consequentemente, como os Esticos afirmavam (para grandedivertimento do poeta Epicurista Horcio), s o sbio verdadeiro rei, rico,apesar da sua pobreza, feliz, apesar do seu sofrimento fsico, livre, mesmo seescravo, sereno e auto-suficiente em todas as vicissitudes. Se as circunstnciasalguma vez se mostrarem excessivas para este desprendimento, ele nohesitar em deixar voluntariamente a vida; porque a vida, simplesmente, esttambm entre as coisas que so neutras. Tanto Zeno como Cleanthesmorreram pelas prprias mos, e ns vamos encontrar o prprio Marco mais doque uma vez entregue ao pensamento de que, em certas condies, fica melhorao filsofo deixar a vida do que permanecer nela.To inequvoco como o dever do homem para consigo prprio, o seu deverpara com os outros. Uma vez que todos os homens so manifestaes doEsprito-Fogo uno e criador, a doutrina da fraternidade universal tinha um papelprimordial no sistema estico. O instinto racional e social uma coisa inerente constituio do homem. A bondade para com o seu semelhante pois suaobrigao de todos os tempos; tem de aprender a ser tolerante para com assuas faltas, descontar a sua ignorncia, perdoar os seus erros e ajud-lo nassuas necessidades. Para Marco, esta nem sempre era das tarefas mais fceis; aprpria frequncia com que ele recorda a si prprio que a boa vizinhana umaparte importante da Vida Natural sugere que, na prtica, ela, por vezes,constitua uma presso sobre a sua capacidade de benevolncia. Contudo,reconhece inteiramente que o homem um ser social, feito para agirsocialmente. Aceita o axioma estico de que todo o universo uma sociedadeorganizada; uma comunidade cvica na qual o divino e o humano residem juntosnuma cidadania comum. (Anteriormente, os Cnicos tinham-na descrito como acosmo-polis: a cidade que acompanha todo o cosmos em extenso.) Nas suasprprias palavras, o mundo como se fosse uma s cidade; e assim como,para os atenienses, Atenas era a querida cidade de Cecrops, para o filsofo, ouniverso a querida cidade de Deus.

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    Marco Aurlio Antnio

    Marco Annio Vero, o futuro imperador de Roma, nasceu em 26 de Abril de 121 a.D. durante o reinado do Imperador Adriano. O pai, Annio Vero, era um nobreromano, e o av, com o mesmo nome, tinha sido Prefeito da Cidade e, por trsvezes, Cnsul. Ambos os pais morreram ainda novos e, depois da morte do pai,Marco foi adoptado pelo av, de quem ele fala com caloroso afecto e respeito.Os anos da infncia foram felizes, e de estudo; uma srie de tutores dos maiscompetentes tomaram conta da sua educao e treinaram-no nas doutrinas dafilosofia estica; e embora a sua sade no fosse nunca muito robusta, gostavade montar a cavalo, caar, lutar, e de jogos de ar livre. Quando tinha dezasseteanos, o Imperador Adriano morreu e sucedeu-lhe Aurlio Antnio (vulgarmenteconhecido como Antnio Pio), cuja mulher era uma tia de Marco chamadaFaustina. No tendo filhos vares, Antnio adoptou o jovem sobrinho de suamulher, mudou-lhe o nome para Marco Aurlio Antnio, nomeou-o seu sucessore prometeu-o em casamento sua filha Faustina. O grau de felicidade queMarco encontrou neste casamento , e continuar por ventura a ser, um enigma.Os cronistas contemporneos deliciam-se a relatar pormenorizadamentehistrias da despudorada licenciosidade da mulher, e afirmam que ela eratratada com uma indulgncia censurvel por um marido de longe bom demaispara ela. Contudo, as provas de tudo isto so duvidosas; e o certo que,quando ela morreu, trinta anos mais tarde, Marco sofreu com a sua perda. Eladera-lhe cinco filhos que ele amava apaixonadamente; mas a morte roubou-lhesucessivamente todos eles, excepo do intil Cmodo, que viveu o suficientepara suceder ao pai.Dos dezassete aos quarenta anos, como companheiro prximo e colega deAntnio, Marco entregou-se aprendizagem das artes de governo e preparao para os seus futuros deveres de imperador. Nesses anos amajestosa imensido da pax romana, mantida pela administrao imperial,estendeu-se a toda a Europa Ocidental e do Sul, ao Norte de frica, siaMenor, Armnia e Sria. Mas muito do fardo da governao deste vastodomnio centrava-se na pessoa do prprio imperador; e quando Antnio morreu,em 161, caiu sobre Marco uma enorme e pesada responsabilidade. Contrariandoos desejos do Senado, levou consigo para o trono, como colega, Lcio Vero, ooutro filho adoptivo de Antnio; e, pela primeira vez, Roma assistiu aoespectculo de dois imperadores. Quase simultaneamente, os longos anos deserenidade imperial chegaram ao fim. Uma peste espalhou-se desastrosamentepor todo o mundo ocidental. Inundaes destruram grandes quantidades decereal em Roma, obrigando Marco a vender as jias reais para aliviar osofrimento dos seus sbditos famintos. A juntar ansiedade da peste e da fome,ele encontrou-se a braos com sinais de guerra. A paz foi quebrada pelo fragordas armas; nas fronteiras orientais, bandos de ferozes homens tribais doMarcomanni (homens das marcas), Quadi, e Sarmati invadiram a raia numasrie de tentativas determinadas de penetrar nas defesas do Imprio. Peranteesta ameaa, Marco deixou Roma em 167 para assumir pessoalmente o

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    comando das suas legies depauperadas no Danbio. Em 169 Vero morreu, edurante a maior parte dos treze anos seguintes Marco ficou s no seu posto.Durante um curto intervalo foi chamado sia, onde o comandante das tropas,Avdeo Cssio, se revoltou e se fez proclamar imperador. Mas Cssio foiassassinado por dois dos seus oficiais; e, como caracterstico de Marco,quando aqueles lhe trouxeram, a cabea decepada, ele recuou e recusoureceb-los. Ordenou que todos os papis de Cssio fossem queimados por ler, etratou os rebeldes com clemncia. Durante esta expedio ao Oriente, a suamulher Faustina, que o acompanhara, morreu; e Marco voltou para o Danbiopara retomar a tarefa de suster a mar invasora da barbrie. A, por entre ospntanos enevoados e as ilhas fumegantes daquela melanclica regio, elebuscava consolo para as suas horas de solido e exlio na redaco das suasMeditaes. Anos de trabalho rduo e conflito tinham-lhe exaurido o esprito;estava cansado da vida, e, nas suas prprias palavras, espera da sada parao retiro. Quando, por fim, uma doena infecciosa o atacou, ele ainda searrastou alguns dias, vindo a morrer em 17 de Maro de 180, com cinquenta enove anos de idade e dezanove de reinado. No chorai por mim, foram assuas ltimas palavras, pensem antes na pestilncia e na morte de tantosoutros.Sugerir que Marco no era um verdadeiro estico parece paradoxal. Contudo assuas meditaes revelam um tipo de carcter que dificilmente agradaria a Zenoou a Chrysipo. Os humores variando entre a esperana e a depresso, osensvel retraimento perante companheiros desagradveis ou a vista de sangue,a nsia reprimida, mas evidente, por simpatia e afecto tudo isto no eramsinais de um carcter moldado antiga maneira estica. A verdade que Marcorepresenta uma fase transitria de pensamento. Em lugar da velha afirmao deauto-suficincia, h uma timidez e uma predisposio para reconhecer osprprios fracassos; em vez da estica virtude do orgulho, ele parece antecipar avirtude crist da humildade. Por isso, ainda mais simpatizamos com as suasrepetidas lutas pelo autodomnio e pelos seus esforos por orientar todos osimpulsos naturais e emoes para o implacvel servio do dever. Sem dvidaque esta constante preocupao em se aperfeioar, esta insistncia emaperfeioar mximas e lugares-comuns morais, produziram uma impressodesagradvel em alguns leitores; e houve mesmo detractores que chamaram aMarco impostor e pedante. Penso que tal juzo mostra falta de entendimento danatureza do temperamento religioso; porque quando um homem toma a suareligio seriamente, o auto-exame consciencioso e a aspirao virtude tmobrigatoriamente de constituir uma muito grande parte de todas as suasperegrinaes interiores e meditaes. Alis, os escritos de um S. Paulo ou deum Thomas Kempis mostram tantos conselhos, exortaes santidade ecitaes de autoridades cannicas como as que encontramos em Marco;contudo, ningum teve a audcia de acusar os seus autores de insinceridade apesar mesmo das suas confessadas intenes de escrever para a edificaode uma larga faixa de leitores. Quando, por outro lado, escutamos as secretasconversas ntimas do imperador-filsofo com a sua prpria alma, e noslembramos de que ele nunca se dirige a qualquer ouvinte humano a no ser ele

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    prprio, creio que o nosso instinto nos diz que estamos na presena de umhomem simples, humilde e absolutamente sincero. Um pequeno facto, massignificativo, em que at agora, e tanto quanto eu sei, nenhum dos seus editoresreparou, parece revelar a sua genuna bondade. Quando ele tem a oportunidadede se referir a pessoas em termos de louvor, nunca deixa de registar os seusnomes. Mas quando, como por vezes acontece, ele se permite um comentriodesfavorvel, um vu de secretismo cobre o transgressor, e ns ficamos apenascom um indcio da sua identidade que nos fornecido por um nada reveladorele ou eles.* Este caridoso hbito que podia talvez ser recomendado aalguns dos que hoje escrevem as suas memrias merece particular atenoem algum cuja sensibilidade deve ter sofrido quase diariamente afrontas dasmaneiras e da sociedade de ento.Guiai-me, Zeus e Destino, diz a prece de Epicteto, para onde quer que euseja mandado. Obedecerei sem hesitar; mesmo que venha a tornar-me cobardeou me retraia, sempre terei de ir. Estas palavras exprimem adequadamente aatitude de Marco perante a vida. Se ele observa obliquamente que se tratamais de luta do que de dana, a sua firmeza no vacila; e a peculiar doura edelicadeza do seu carcter exerceu uma atraco que estes laivos depessimismo no diminuem. Santo e sbio por natureza, imperador e guerreiropor profisso, ele contempla, da solitria altura em que se encontra, as doresda mortalidade com olhos que esto desiludidos, porm serenos. E portanto,citando a homenagem de Mathew Arnold, ele continua o amigo especial e oconsolador das almas escrupulosas e difceis, mas de corao puro eempenhadas na elevao, especialmente naquelas idades em que caminham vista, e no por f, mas em que ainda no tm uma viso aberta: a essas almas,talvez ele no possa dar tudo aquilo por que elas anseiam, mas d-lhes muito, eo que ele lhes d podem eles receber. E sobre aquela sua esttua equestreque se ergue na Piazza Compidoglio, em Roma, escreveu Henry James que nacapital da Cristandade, o retrato mais sugestivo da conscincia crist a de umimperador pago.Enquanto os homens continuarem a ser atrados pelas lgrimas e triunfos dabondade humana, no faltaro leitores a Marco Aurlio. Melanclico,compassivo e desencantado, o ltimo dos Esticos ainda envergonha as nossasfraquezas e silencia a nossa insatisfao.

    Estoicismo e Cristianismo

    Em concluso, o leitor pode com algum proveito ser levado a pensar que ateologia da Igreja Crist tem uma grande dvida para com o Estoicismo. Noevangelho original de Cristo predominavam os elementos morais e espirituais, eo elemento intelectual estava-lhes perfeitamente subordinado. Mas quando amensagem se espalhou para alm dos confins da Palestina, e as suasimplicaes foram assimiladas pelos pensadores de outras terras, fez-se sentir anecessidade de concepes mais exactas da verdade. Tornou-se evidente que a

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    nova f tinha de levantar uma multiplicidade de questes nos campos dacosmogonia, da metafsica, da psicologia e da tica; e para todas elas a Igrejatinha de descobrir um qualquer sistema coerente de respostas. Felizmente,muita da matria necessria para a tarefa estava ali mo. O solo j tinha sidoexplorado pelas escolas da filosofia pag, e as suas descobertas constituram ocorpo de conhecimento cientfico contemporneo aceite. Muitos dos homens queintegraram a comunidade crist durante o segundo sculo tinham sido educadosnestas doutrinas desde a juventude; a sua maioria, nos princpios do Estoicismo,uma vez que este sistema, mais do que qualquer outro, atraa o tipo de espritonaturalmente religioso. Para eles se viraram, pois, os homens da igreja naprocura de ajuda para a construo da estrutura da sua teologia. Isto no implicauma apropriao acrtica e por atacado das ideias pags. Muito pelo contrrio,quando uma teoria filosfica parecia sugerir as linhas ao longo das quais opensamento cristo podia procurar a sua prpria soluo de um problema, eraadoptada como hiptese de trabalho e testada nas suas possibilidades; aps oque, numa forma adequadamente modificada, podia encontrar o seu lugar nanova religio. Nas palavras do Dr. Prestige, era a ideia que era afeioada paraservir f crist, e no a f que era afeioada para nela poder caber aconcepo importada.*Por exemplo, o autor do quarto evangelho declara que Cristo a Logos. Estaexpresso (que significa razo ou palavra) fora j durante muito tempo umdos principais termos do Estoicismo, escolhido originalmente com o objectivo deexplicar como a divindade entrou em relao com o universo. De acordo com osfilsofos, a Razo divina dera existncia ao mundo por meio de inmeraspartculas de si prpria que habitaram e deram forma a toda a criao. Estaverso da origem do universo, j profundamente arreigada na gerao suacontempornea, foi aceite, em princpio, pelo evangelista. Ele afirma, contudo,que o meio pelo qual Deus se manifestou na criao e manuteno do mundono uma Logos mltipla, mas sim una e pessoal, gerada de si prprio. Noprincpio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Todasas coisas foram criadas por ele, e sem ele no existia nada do que foi feito.Assim recebe a metafsica estica o baptismo cristo.Outro conceito estico que inspirou a Igreja foi o do Esprito divino. Ao quererdar um significado mais explcito ao fogo criador de Zeno, Cleanthes fora oprimeiro a descobrir o termo pneuma, ou esprito para o descrever. Como ofogo, este esprito inteligente foi imaginado como uma tnue substnciasemelhante corrente de ar ou sopro, mas possuindo essencialmente aqualidade do calor; era imanente no universo, como Deus, e no homem, comoalma e princpio criador de vida. evidente que isto no est muito longe doEsprito Santo da teologia crist, o Senhor e Criador da vida, manifestadovisivelmente como lnguas de fogo no Pentecostes e desde ento sempreassociado no esprito cristo bem como no estico s ideias de fogo vital ecalor benfico.Tambm na doutrina da Trindade, a concepo eclesistica do Pai, Verbo eEsprito encontra o seu grmen nos diferentes nomes Esticos para a DivinaUnidade. Assim, Sneca, ao escrever sobre o supremo Poder que molda o

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    universo, afirma, A este Poder chamamos ns umas vezes Deus TodoPoderoso, outras vezes, Sabedoria incorprea, ou Esprito santo, ou aindaDestino. A Igreja apenas teve de rejeitar o ltimo destes termos para chegar sua prpria definio aceitvel da Natureza Divina; enquanto que a posteriorafirmao de que estes trs so Um s, que o esprito moderno consideraparadoxal, era um perfeito lugar-comum para aqueles mais familiarizados comas noes esticas.Outros exemplos de ideias crists que j tinham sido ensacadas pelos Esticosso a convico de que os homens so filhos de Deus e partilham da suanatureza, e a consequente crena de que devemos considerar todos os homenscomo nossos irmos e no perder nenhuma oportunidade de fazer bem aonosso semelhante. Um dos ltimos escritores do Novo Testamento tambmavalizou com a autoridade crist a crena estica na conflagrao final douniverso.* Tambm uma notvel contribuio estica para a Igreja, e que teveuma influncia duradoura, foi a prtica do ascetismo. Os cristos que desejavamseguir os conselhos da perfeio tomaram o sbio estico e o seu modo de vidacomo exemplo formal. As vestes grosseiras, o cabelo e barba descuidadosforam adoptados como distintivos da aspirao santidade. Assim como oprofessor estico costumava deixar a sociedade e meditar em solido, os seusimitadores cristos no s seguiram o seu exemplo como se apropriaram da suaterminologia. No vocabulrio estico, aquele que se recolhia num retiro era umanacoreta; aquele que praticava a autodisciplina era um asceta, aqueles queviviam separados dos seus semelhantes eram monacais e o lugar do seurecolhimento era um mosteiro. Cada uma destas expresses manteve o seulugar e significado na linguagem da Igreja at hoje.Contudo, talvez o melhor testemunho da maneira como as ideias esticaspenetraram no pensamento cristo se encontre num tratado que se tornou abase da filosofia moral medieval, Os Deveres, de Santo Ambrsio de Milo.Aqui, os conceitos bblicos da rectido e da santidade so quase totalmentesubstitudos por doutrinas anteriores da ortodoxia estica. A voz a de um bispocristo, mas os preceitos so de Zeno. No a santidade, mas a felicidade queaparece como ideal de vida; e a vida feliz uma vida de acordo com a natureza.Tal vida alcana-se pela virtude, porque a virtude o mais elevado bem; e avirtude uma vez mais decomposta nos seus elementos pagos de justia,prudncia, temperana e fora moral. E o mais notvel de tudo isto que sedeclara a vida feliz e virtuosa como completamente realizvel durante a nossaestada aqui na terra; e a esperana de uma futura bem-aventurana torna-se ummotivo no primordial, mas secundrio.Perante estas e outras afirmaes semelhantes de um prelado e doutor daIgreja, quem ser capaz de negar o direito do Estoicismo de ser chamado, naspalavras de um escritor do nosso tempo, uma raiz do Cristianismo?

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    O HINO DE CLEANTHES

    ALTSSIMA GLRIA DA COMPANHIA DOS CUS,SENHOR DE VARIADO NOMEETERNO E PERPTUO SEJA O TEU PODER!

    ABENOADO SEJAS, GRANDE ARQUITECTO DA CRIAO,QUE ORDENAS TODAS AS COISAS SEGUNDO AS TUAS LEIS!

    EVOCAR O TEU NOME PRPRIO E JUSTO PARA O MORTAL,POIS SOMOS NASCIDOS DE TI;SIM, E A NS, S A NSDE ENTRE TUDO O QUE VIVE E SE MOVE SOBRE A TERRA, CONCEDIDA A VOZ E A PALAVRA.

    CANTAR-TE-EI, POIS, LOUVORES, AGORA!GLORIFICAREI, POIS, AGORA E PARA SEMPRE, O TEU PODER!

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    Nota do tradutorda verso inglesa

    Temos que admitir que esta obra comea logo por uma traduo errada. O ttulogrego no topo do livro de Marco no significa de modo nenhum Meditaes; osignificado das suas duas palavras simplesmente Para Si Mesmo. No seiquem foi o primeiro responsvel por parafrase-las como Meditaes, mas asua prolongada utilizao habituou o pblico leitor a este ttulo de preferncia aqualquer outro, e portanto pareceria pedantismo substitu-lo a pretexto de umamaior preciso literal.As mais antigas tradues inglesas de Marco Aurlio foram feitas por MericCasaubon (1634) e Jeremy Collier (1701). O estilo de Casaubon, alm dearcaico, pesado e confuso; a verso de Collier afasta-se tanto do original que pouco mais do que uma parfrase. De nenhuma destas obras se pode dizer quetenha tido grande sucesso. A primeira pessoa a atrair para Marco Aurlio umalarga audincia foi o erudito do sculo dezanove George Long. A sua traduofoi publicada em 1862; admiravelmente correcta, to literal como as traduesescolares, e, quanto a mim, pelo menos perfeitamente ilegvel. Contudo,depressa se tornou um must para a gerao de meados da poca vitoriana,desde grandes e eminentes personalidades como o Deo de Canterbury eMathew Arnold, at s inmeras pessoas menos importantes; e durante osquarenta anos seguintes o nmero de edies e reedies em diferentes estilose tamanhos deve ter sido de legies. Talvez isto no seja surpreendente, porqueno necessria muita imaginao para retratar o prprio Marco como umafigura de uma pessoa vitoriana admirada; a dignidade grave, os sentimentos deaperfeioamento, a sria piedade das Meditaes estavam no mais completoacordo com o gosto daquela poca.Em 1898 apareceu uma traduo que muitos crticos desde ento classificaramcomo a mais viva, erudita e idiomtica de todas as verses inglesas, e eu gostode recordar que esta foi obra do meu velho reitor G. H. Rendall. (Uma vez queMarco nos ensina a lembrar com gratido os mestres da nossa juventude, umdever religioso registar aqui a minha dvida para com G. H. Rendall, que foi oprimeiro a apresentar-nos, na escola, as Meditaes, que ele amava, e de queme deu uma cpia que ainda conservo.) Outra boa traduo foi publicada porJohn Jackson em 1906, e l-se bastante bem parte a sua constrangidalinguagem literria mas, quanto a mim, fica desfigurada pela poucosimptica opinio sobre o prprio Marco na nota introdutria de C. Bigg. Averso muito precisa de C. R. Haines (1915) na srie Loeb, emboraindispensvel aos estudantes que queiram uma traduo exacta do grego,dificilmente se poder ler com prazer.*Excelentes nas suas diferentes formas, estas tradues tm prevalecido pormuito tempo sobre um grande nmero de rivais de menor importncia. Mas jpassou quase meio sculo desde que a ltima delas apareceu, e aos olhos dosmais novos elas tm vindo a parecer um pouco anquilosadas. Seria pena se istoimpedisse uma nova gerao de descobrir por si prpria a sabedoria humana e o

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    gentil encanto de Marco Aurlio; e foi portanto nesta modesta esperana defazer alguma coisa para evitar tal infelicidade que a presente verso foi feita.Devo acrescentar que no h aqui qualquer tentativa de reproduzir o curiosoestilo do original. Eu tenho a ideia de que escrever em grego no teria sido muitofcil para o romano Marco; as suas expresses so frequentemente obscuras, eele usa construes desajeitadas e pouco usuais. Ao mesmo tempo, a sualinguagem tem dignidade, e o seu vocabulrio o de um homem instrudo. necessrio qualquer coisa como o ingls lmpido e belo de John Henry Newman(entre o qual e Marco h manifestas afinidades) para fazer justia s qualidadesespirituais das Meditaes. Eu no podia esperar conseguir isto, e assim nadamais procurei fazer do que uma verso simples e honesta para o leitor que nosabe grego.Os meus melhores agradecimentos so devidos ao amigo Henry Neill pela suaamabilidade em ler o manuscrito e fazer muitas sugestes valiosas para o seuaperfeioamento. Tambm estou muito grato ao generoso encorajamento econselho do Dr. E. V. Rieu, e o grau da minha dvida para com sua assistentepara o corpo editorial, Mrs. Betty Radice, pela sua ajuda e conselho napreparao do livro para a imprensa, s pode ser medido por aqueles que jtiveram o benefcio do seu interesse solidrio e da sua grande erudio.

    MAXWELL STANIFORTH

    Sixpenny Handley, 1962

  • Marco Aurlio

    Meditaes

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    LIVRO 1

    1. A cortesia e a serenidade, aprendi-as eu, primeiro, com o meu av.

    2. A virilidade sem alardes, aprendi-a com aquilo que ouvi dizer e recordo domeu pai .

    3. A minha me deu-me um exemplo de piedade e generosidade, de comoevitar a crueldade no s nos actos, mas tambm em pensamento e deuma simplicidade de vida completamente diferente daquilo que habitual nosricos.

    4. Ao meu bisav fiquei a dever o conselho de que dispensasse a educao daescola e, em vez disso, tivesse bons mestres em casa e de que mecapacitasse de que no se devem regatear quaisquer despesas para este fim.

    5. Foi o meu tutor que me dissuadiu de apoiar o Verde ou o Azul1 , nas corridas,ou o Leve ou o Pesado2 , na arena; e me incentivou a no recear o trabalho, aser comedido nos meus desejos, a tratar das minhas prprias necessidades, ameter-me na minha vida, e a nunca dar ouvidos m-lngua.

    6. Graas a Diogneto3 aprendi a no me deixar absorver por actividades triviais;a ser cptico em relao a feiticeiros e milagreiros com as suas histrias deencantamentos, exorcismos e quejandos; a evitar as lutas de galos e outrasdistraces semelhantes; a no ficar ofendido com a franqueza; a familiarizar-mecom a filosofia, comeando por Bacchio e passando depois para Tandasis eMarciano; a redigir composies, logo em pequeno; a ser entusiasta do uso doleito de tbuas e pele, bem como de outros rigores da disciplina grega.

    7. De Rstico4 obtive a noo de que o meu carcter precisava de treino ecuidados, e que no me devia deixar perder no entusiasmo sofista de comportratados especulativos, homilias edificantes, ou representaes imaginrias de OAsceta ou de O Altrusta. Tambm me ensinou a evitar a retrica, a poesia, e aspresunes verbais, os amaneiramentos no vesturio em casa, e outros lapsosde gosto deste gnero, e a imitar o estilo epistolar simples utilizado na suaprpria carta a minha me, escrita em Sinuessa. Se algum, depois de sezangar comigo num momento de mau humor, mostrasse sinais de querer fazeras pazes, devia mostrar-me logo disposto a ir ao encontro dos seus desejos.Tambm devia ser rigoroso nas minhas leituras, no me contentando com asmeras ideias gerais do seu significado; e no me deixar convencer facilmentepor pessoas de palavra fcil. Por ele, vim tambm a conhecer as Dissertaesde Epicteto, das quais ele me deu uma cpia da sua biblioteca.

    8. Apolnio5 convenceu-me da necessidade de tomar decises por mimmesmo, em vez de depender dos acasos da sorte, e nunca, nem por um

    Notas1As cores dos aurigrios no Circo. O entusiasmo dos romanos por estas corridas no tinha limites; os vencedores ganhavam grandes fortunas e tornavam-se dolos populares.Notas2Num tipo de combate de gladiadiores (o Trcio) os contendores eram armados com escudos redondos leves; noutro (o Samnita) eles traziam escudos rectangulares pesados.Notas3Pintor e filsofo a quem Marco, ainda um rapaz de onze anos, ficou a dever os primeiros contactos com o Estoicismo. De Bacchio, Tandasis ou Marciano nada se sabe.Notas4Q. Jnio Rstico, um professor estico que foi tutor de leis e amigo de Marco.Notas5Professor de filosofia que veio da Calcednia para Roma. Quando Marco o chamou pela primeira vez ao palcio, dizem que ele respondeu, O mestre no deve ir ter com o aluno, mas o aluno com o mestre.Notas Notas
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    momento, perder de vista a razo. Tambm me instruiu no sentido de encarar osespasmos de uma dor aguda, a perda de um filho e o tdio de uma doenacrnica sempre com a mesma inaltervel compostura. Ele prprio era umexemplo vivo de que nem mesmo a energia mais impetuosa incompatvel coma capacidade de descansar. As suas exposies eram sempre um modelo declareza; contudo, era claramente algum para quem a experincia prtica eaptido para ensinar filosofia eram os talentos menos importantes. Foi ele, almdisso, que me ensinou a aceitar os pretensos favores dos amigos sem merebaixar ou dar a impresso de insensvel indiferena.

    9. As minhas dvidas para com Sexto6 incluem a bondade, a maneira comodirigir o pessoal da casa com autoridade paternal, o verdadeiro significado daVida Natural, uma dignidade natural, uma intuitiva preocupao pelos interessesdos amigos, e uma pacincia bem disposta com os amadores e os visionrios. Adisponibilidade da sua delicadeza para com toda a gente emprestava suaconvivncia um encanto superior a qualquer lisonja, e, contudo, ao mesmotempo, impunha o completo respeito de todos os presentes. Tambm a maneiracomo ele precisava e sistematizava as regras essenciais da vida era to amplaquanto metdica. Nunca mostrando sinais de zanga ou qualquer emoo, eleera, ao mesmo tempo, imperturbvel e cheio de bondosa afeio. Quandomanifestava a sua concordncia, fazia-o sempre calma e abertamente, e nuncafazia alarde do seu saber enciclopdico.

    10. Foi o crtico Alexandre7 que me ps em guarda contra a crtica suprflua.No devemos corrigir bruscamente as pessoas pelos seus erros gramaticais,provincialismos, ou m pronncia; melhor sugerir a expresso correcta,apresentando-a ns prprios delicadamente, por exemplo, numa nossa respostaa uma pergunta, ou na concordncia com as suas opinies, ou numa conversaamigvel sobre o prprio tema (no sobre a dico), ou por qualquer outro tipode advertncia.

    11. Ao meu conselheiro Fronto8 devo a percepo de que a maldade, a astciae a m-f acompanham o poder absoluto; e que as nossas famlias patrciastendem, na sua maior parte, a carecer de sentimentos de humanidade.

    12. O platonista Alexandre9 acautelou-me contra o uso frequente das palavrasEstou muito ocupado na expresso oral ou na correspondncia, excepto emcasos de absoluta necessidade; dizendo que ningum deve furtar-se sobrigaes sociais devidas, com a desculpa de afazeres urgentes.

    13. O estico Catulo,10 aconselhou-me a nunca menosprezar a censura de umamigo, mesmo quando pouco razovel, mas em vez disso, fazer o possvel porvoltar a agradar-lhe; a falar pronta e abertamente em louvor dos meusinstrutores, como se l nas memrias de Domtio e Athenodoto; e a cultivar umgenuno afecto pelos meus filhos.

    Notas6Oriundo de Caernia, na Bocia, e neto de Plutarco. Um dos primeiros professores de filosofia de Marco.Notas7Reputado erudito grego, conhecido por o GramticoNotas8M. Cornlio Fronto, famoso advogado e professor que dava lies de retrica, e reconhecidamenteapenas inferior a Ccero, como orador. Foi encarregado da educao dos futuros co-imperadores Marco Aurlio e Lcio Vero. A publicao da correspondncia de Fronto que contm muitas das cartas que lhes escreveu, bem como as suas respostas, lanou muita luz sobre o carcter e os hbitos de Marco, e tambm revela o afecto que os seus pupilos reais dedicavam ao seu tutor.Notas10Cinna Catulo era outro dos professores que davam lies de filosofia.Notas9Secretrio do imperador
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    14. Com meu irmo Severo11 aprendi a amar os meus familiares, a amar averdade e a justia. Por ele tomei conhecimento de Thraseia, Cato, Helvidio,Dio e Bruto, e familiarizei-me com a ideia de uma comunidade baseada naigualdade e liberdade de expresso para todos, e de uma monarquiapreocupada sobretudo em garantir a liberdade dos seus sbditos. Ele revelou-me a necessidade de uma avaliao desapaixonada da filosofia, do hbito dasboas aces, da generosidade, de um temperamento cordial, e da confiana noafecto dos meus amigos. Recordo, tambm, a sua franqueza para com aquelesque mereciam a sua repreenso, e a maneira como ele no deixava dvidas aosamigos sobre aquilo de que gostava ou que detestava, dizendo-lho claramente.

    15. Mximo12 foi o meu modelo de autocontrole, firmeza de intenes e de boadisposio em situaes de falta de sade e de outros infortnios. O seucarcter era uma mistura admirvel de dignidade e encanto, e todos os deveresinerentes sua condio eram cumpridos sem alardes. Deixava em toda a gentea convico de que acreditava no que dizia e agia da maneira que lhe parecia acorrecta. No conhecia o espanto ou a timidez; nunca mostrava pressa, nuncaadiava; nunca se sentia perdido. No se entregava ao desnimo nem a umaalegria forada, nem sentia raiva ou inveja de qualquer poder acima dele. Abondade, a simpatia e a sinceridade, todas contribuam para deixar a impressode uma rectido que lhe era mais inata do que cultivada. Nunca se superiorizavaa ningum, e contudo ningum se atrevia a desafiar a sua superioridade. Era,alm disso, possuidor de um agradvel sentido de humor.

    16. As qualidades que eu admirava no meu pai13 eram a sua brandura, a suafirme recusa em se desviar de qualquer deciso a que tinha chegado, a suacompleta indiferena s falsas honrarias; o seu esforo, a sua perseverana evontade de ouvir atentamente qualquer projecto para o bem comum; a suainvarivel insistncia em que as recompensas devem depender do mrito; o seuhbil sentido de oportunidade para puxar ou soltar as rdeas; e os esforos quefazia para suprimir a pederastia.Ele tinha conscincia de que a vida social tem as suas exigncias: os seusamigos no tinham qualquer obrigao de se sentarem sua mesa ou de oacompanhar nas suas viagens oficiais, e quando eles eram disso impedidos poroutros compromissos, isso no lhe fazia qualquer diferena. Todas as questesque lhe eram submetidas em conselho eram examinadas meticulosa epacientemente; nunca ficava satisfeito em despach-las apenas com umaprimeira impresso apressada. As suas amizades eram duradouras; no eramcaprichosas nem extravagantes. Estava sempre altura das circunstncias;alegre, mas com uma viso de alcance suficiente para mandar discretamentecumprir os seus planos at ao mais pequeno pormenor. Estava sempre atentos necessidades do imprio, conservando prudentemente os seus recursos esuportando as crticas da resultantes. No era supersticioso frente aos deuses;e frente aos seus concidados nunca se rebaixava para alcanar popularidadenem namorava as massas, mas prosseguia o seu caminho calma e firmemente,desprezando tudo o que lhe soasse a ostentao ou moda. Aceitava sem

    Notas11Marco no tinha qualquer irmo. A palavra pode ser uma aluso jocosa a Cludio Severo (cujo filhocasou com uma das filhas de Marco), uma vez que Marco tambm se chamara originalmente Severo,embora tivesse mais tarde eliminado o nome. Trata-se mais provavelmente de erro do texto. Muitos editorespreferem o nome Vero, isto , o Lcio Vero que, como o prprio Marco, for adoptado pelo ImperadorAntnio Pio como seu filho; mas o retrato lisongeiro aqui traado no corresponde de modo nenhum ao que se conhece do carcter de Vero (ver nota 14)Notas12Cludio Mximo, filsofo estico especialmente admirado por Marco. A sua coragem na doena recordada com gratido (I,16) e a sua morte, bem como a da mulher, Secunda, lembradas com pena (VIII,25).Notas13No o pai natural, Annio Vero, mas o Imperador Antnio Pio, o pai adoptivo.
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    complacncia ou compuno os bens materiais que a sorte pusera suadisposio; quando estavam mo aproveitava-os, e quando no estavam, nosentia qualquer mgoa.No lhe podiam ser apontados quaisquer vestgios dos sofismas dos casustas,do atrevimento do adulador, ou do escrpulo exagerado do pedante; todos oshomens lhe reconheciam uma personalidade madura e acabada que erainsensvel lisonja e perfeitamente capaz de se orientar a si prprio e aosoutros. Alm disso, tinha grande respeito por todos os filsofos genunos; eembora abstendo-se de criticar os outros, preferia passar sem a sua orientao.Na convivncia era afvel e atencioso, mas sem exageros. Os cuidados quedispensava ao corpo eram razoveis; no havia nele qualquer ansiosapreocupao de prolongar a existncia, ou em embelezar a sua aparncia,contudo estava muito longe de ser descuidado em relao a esta, e de factocuidava to bem de si prprio que raramente precisava de cuidados mdicos oude medicamentos. No se notava nele o mais pequeno vestgio de inveja no seupronto reconhecimento de qualidades notveis, quer em discursos pblicos, quernos domnios da lei, da tica ou qualquer outro, e esforava-se por dar a cadapessoa a oportunidade de conquistar reputao no seu prprio campo. Emboratodas as suas aces fossem guiadas pelo respeito pelo precedenteconstitucional, nunca abandonava o seu caminho para buscar o reconhecimentopblico disso. Tambm no gostava da agitao e da mudana e tinha umaarreigada preferncia sempre pelos mesmos lugares e sempre pelas mesmasactividades. Depois de uma das suas enxaquecas, voltava logo aos seusdeveres sem perda de tempo, com novo vigor e completo domnio das suascapacidades. Os seus documentos secretos e confidenciais no eram muitos, eos raros temas neles tratados referiam-se exclusivamente a assuntos do estado.Revelava bom senso e comedimento na exibio de espectculos, naconstruo de edifcios pblicos, na distribuio de subsdios, etc., tendo sempremais em vista a necessidade dessas medidas do que o aplauso que elasprovocavam. Os seus banhos no eram a horas inconvenientes; no tinha aobsesso de construir; no era nada esquisito em relao sua alimentao,nem ao corte e s cores das suas vestes, nem apresentao daqueles que orodeavam. As suas roupas eram-lhe enviadas da sua casa de campo em Lorium,e a maior parte das sua coisas eram de Lanuvium. A famosa maneira como eletratou um inspector em Tusculum era tpica do seu comportamento, pois a faltade cortesia, bem como a brusquido ou a jactncia, eram estranhas suanatureza; nunca ficava encalorado, como diz o povo, ao ponto de transpirar; eraseu hbito analisar e pesar todos os incidentes, devagar, calma, metdica,decisiva e consistentemente. Aquilo que se diz de Scrates, no menosaplicvel a ele: que tinha a capacidade de se permitir ou negar a si prprioindulgncias que a maioria das pessoas so incapazes de recusar por fraqueza,ou de apreciar, pelos seus excessos. Ser assim to forte para, sua vontade, seconter ou ceder revela uma alma perfeita e indmita como Mximo tambmdemonstrou no seu leito de doente.

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    17. Aos deuses devo os meus bons avs, os meus bons pais, uma boa irm, eos professores, camaradas, parentes e amigos, todos bons, quase semexcepo; e ainda o facto de nunca ter tido qualquer zanga com eles, apesar deum temperamento que podia bem ter precipitado qualquer coisa desse tipo, seas circunstncias no se tivessem providencialmente combinado para nunca mepr prova. A eles tambm devo o facto de a minha educao ter deixado,desde cedo, de estar a cargo da amante do meu av e assim a minha inocnciater sido preservada; e tambm o facto de nunca ter sentido qualquer nsia deme tornar adulto e me ter contentado com um lento desenvolvimento. Agradeotambm ao cu que, sendo o meu pai o Imperador, eu tivesse ficado imune atodas as pompas, e me fizessem compreender que a vida na corte pode servivida sem escoltas reais, mantos reais, luminrias, esttuas e outrosesplendores exteriores desse tipo, mas que o nosso modo de vida pode serreduzido quase ao nvel do cidado comum, sem perder o prestgio e autoridadenecessrios quando as questes de estado requerem liderana. Os deusesderam-me tambm um irmo14 cujas qualidades naturais eram um desafio minha prpria autodisciplina, ao mesmo tempo que a sua afeio atenciosa meaquecia o corao; e filhos que no eram intelectualmente nada diminudos, nemfisicamente deformados. Foram os deuses que limitaram a minha competnciana retrica, na poesia e noutros estudos que me podiam ter tomado o tempo seeu tivesse encontrado menos dificuldade em progredir. Eles cuidaram de que eu,na primeira oportunidade, tivesse elevado os meus tutores categoria que eupensava que eles mereciam, em vez de adiar a questo com expectativas defuturas promoes, a pretexto da sua juventude. Aos deuses devo oconhecimento de Apolnio, Rstico e Mximo. A eles tambm devo a minhapercepo vvida e recorrente da verdadeira espiritualidade da Vida Natural; naverdade, pela sua parte, os favores, ajudas e inspiraes que recebi deixam semdesculpa o facto de eu no ter conseguido alcanar esta Vida Natural; e se euestou ainda longe do objectivo, s eu prprio sou responsvel por no tertomado ateno aos sinais melhor, s orientaes virtuais que recebi decima.Aos deuses deve ser atribudo o facto de a minha constituio ter sobrevividotanto tempo a este tipo de vida; de nunca me ter envolvido com uma Benedicta,nem com uma Theodota, e tambm de ter sado inclume de outras relaessubsequentes; e embora Rstico e eu tivssemos frequentemente as nossasdiferenas, nunca levei as coisas ao ponto de ter de me arrepender; e de osltimos anos de vida da minha me, antes da sua morte prematura, terem sidopassados comigo. E mais, de em certas ocasies, quando eu pensava ajudaralgum na sua pobreza ou desgraa, nunca me terem dito que eu no tinha osmeios necessrios; como tambm de eu prprio nunca ter estado em situaode pedir a algum semelhante ajuda. E devo agradecer ao cu pela mulher quetenho, to submissa, to adorvel, e to despretensiosa; por ter sempre tutorescompetentes para os meus filhos; e pelos remdios que me eram prescritos emsonhos especialmente nos casos dos escarros de sangue e das vertigens,como aconteceu em Caieta e Chrysa. Finalmente, o facto de, dada a minhainclinao para a filosofia, no ter ainda assim cado nas mos de um qualquer

    Notas14Lcio Ceinio Cmodo, depois conhecido como Lcio Vero. Foi adoptado por Antnio Pio juntamentecom Marco, com quem ele foi co-imperador e com cuja filha, Lucila, casou. Homem, a princpio corajoso ecapaz, Vero veio depois a fraquejar, tornando-se um amante da boa vida. Como comandante dos exrcitosromanos na guerra Partiana, revelou-se um indolente e um incapaz, e s se salvou da desgraa devido destreza dos seus generais. Quando voltou do Oriente com as suas legies, estas trouxeram consigo assementes da peste que se propagou, com terrveis efeitos, por todo o Imprio. Vero morreu em 169 segundo alguns, s mos de um envenenador.
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    sofista ou ter passado todo o meu tempo agarrado aos livros e s regras dalgica ou amarrado ao estudo das cincias naturais.Por todas estas coisas boas o homem precisa da ajuda do Cu e doDestino.15

    Entre os Quadi, no Rio Gran.

    Notas15Aparentemente uma citao, cuja fonte no foi descoberta.
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    LIVRO 2

    1. Comea cada dia por dizer a ti prprio: Hoje vou deparar com a intromisso,a ingratido, a insolncia, a deslealdade, a m-vontade e o egosmo todosdevidos ignorncia por parte do ofensor sobre o que o bem e o mal. Mas,pela minha parte, j h muito percebi a natureza do bem e a sua nobreza, anatureza do mal e a sua mesquinhez, e tambm a natureza do prprio culpado,que meu irmo (no no sentido fsico, mas como meu semelhante, igualmentedotado de razo e de uma parcela do divino); portanto nenhuma destas coisasme ofende, porque ningum pode envolver-me naquilo que degradante. Nemeu posso ficar zangado com o meu irmo ou entrar em conflito com ele; porqueele e eu nascemos para trabalhar juntos, como, de um homem, as duas mos,os dois ps, as duas plpebras ou os dentes de cima e de baixo. Criardificuldades uns aos outros contra as leis da Natureza e o que a irritao,ou a averso, seno uma forma de criar dificuldades aos outros?

    2. Um pouco de matria, um pouco de respirao e uma Razo para tudo dirigir isto sou eu. (Esquece os teus livros; deixa de suspirar por eles; no faziamparte do teu equipamento.) Como algum j beira da morte, no penses naprimeira no seu sangue viscoso, nos seus ossos, na sua teia de nervos eveias e artrias. E a respirao, o que ? Uma lufada de ar; e nem sequer omesmo ar, mas, antes, sempre diferente a cada inspirao e expirao. Mas aterceira, a Razo, a mestra nela que te deves concentrar. Agora que o teucabelo j est grisalho, no deixes mais que ela tenha um papel de escrava, quese contora, qual marioneta, a cada acesso de interesse pessoal; e deixa de teexasperares com o destino, resmungando com o hoje e queixando-te doamanh.

    3. Toda a organizao divina est impregnada da Providncia. Mesmo oscaprichos do acaso tm o seu lugar no esquema da Natureza, isto , no intricadotecido das disposies da Providncia. A Providncia a fonte donde fluemtodas as coisas; e a ela aliada, est a Necessidade, e o bem-estar do universo.Tu prprio s parte do universo; e para qualquer das partes da natureza, aquiloque lhe atribudo pelo Mundo-Natureza, ou a ajuda a existir, bom. Almdisso, o que mantm todo o mundo em existncia a Mudana: no meramentea mudana dos elementos bsicos, mas tambm a mudana das formaesmaiores que elas compem. Contenta-te com estes pensamentos, e considera-os sempre como princpios. Esquece a tua sede de livros, para que, quando oteu fim chegar no resmungues, mas o encares com boa vontade e verdadeiragratido aos deuses.

    4. Pensa nos teus muitos anos de adiamento; como os deuses repetidamente teproporcionaram mais perodos de graa que no aproveitaste. Est na altura dete dares conta da natureza do universo a que pertences, e da daquele podercontrolador de que s filho; e de compreenderes que o teu tempo tem um limite.

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    Usa-o, portanto, para avanares no teu esclarecimento, seno ele vai-se enunca mais voltar a estar de novo em teu poder.

    5. Decide com firmeza, a todas as horas, como romano e como homem, fazertudo aquilo que te chegar s mos com dignidade, e com humanidade,independncia e justia. Liberta o esprito de todas as outras consideraes. Istopodes tu fazer se abordares cada aco como se fosse a ltima, pondo de ladoo pensamento indcil, o recuo emocional das ordens da razo, o desejo decausar uma boa impresso, a admirao por ti prprio, a insatisfao pelo que tecalhou em sorte. V o pouco que um homem precisa de dominar para que osseus dias fluam calma e devotadamente: ele apenas tem de observar estespoucos conselhos, e os deuses nada mais lhe pediro.

    6. alma minha, que mal, que mal vs estais a fazer a vs prpria; e muito embreve vs j no tereis mais tempo para fazerdes justia a vs prpria. O homemno tem seno uma vida; e a vossa est j prxima do fim, contudo, continuais ano ter olhos para a vossa prpria honra e estais a hipotecar a vossa felicidades almas de outros homens.16

    7. A tua ateno desviada para preocupaes exteriores? Ento, concede-teum espao de sossego dentro do qual possas aumentar o conhecimento do beme aprender a refrear a tua inquietao. Defende-te tambm de outro tipo de erro:a loucura daqueles que passam os seus dias com muita ocupao mas carecemde um qualquer objectivo em que concentrem todo o seu esforo, melhor, todo oseu pensamento.

    8. Dificilmente encontrars um homem a quem a indiferena pelas actividadesde outra alma traga infelicidade; mas para aqueles que no prestam ateno aosmovimentos da sua prpria, a infelicidade certamente a recompensa.

    9. Tendo sempre em mente aquilo que o Mundo-Natureza , e aquilo que aminha prpria natureza , e o que uma em relao outra uma fraco topequena de um Todo to vasto lembra-te de que ningum pode impedir-te deconcertar cada palavra e cada aco com a Natureza de que s parte.

    10. Quando Theophrasto compara os pecados tanto quanto comummente sereconhece que so comparveis ele afirma a verdade filosfica de que ospecados do desejo so mais censurveis do que os pecados da paixo. Porquena paixo, o afastamento da razo parece trazer consigo, pelo menos, um certodesconforto e uma impresso meio sentida de constrangimento; enquanto queos pecados do desejo, entre os quais predomina o prazer, revelam um carctermais auto-indulgente e mais feminino. Tanto a experincia como a filosofiaapoiam a alegao de que um pecado que d prazer merece uma censura maisgrave do que aquele que faz sofrer. Num caso, o prevaricador como umhomem amarrado a uma perda de controle involuntria; no outro, a nsia desatisfazer o seu desejo leva-o a fazer o mal de sua prpria vontade.

    Notas16Isto , deciso dos outros em aprovar ou criticar as tuas aces.
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    11. Em tudo o que fizeres, disseres ou pensares, lembra-te de que est semprena tua mo o poder de te retirares da vida. Se os deuses existem, no tens nadaa temer em te despedires da humanidade, pois eles no deixaro que teacontea qualquer mal. Mas se no h deuses, ou se eles no se metem nosassuntos dos mortais, o que a vida para mim, num mundo desprovido dedeuses ou desprovido da Providncia? Os deuses, contudo, existem, epreocupam-se com o mundo dos homens. Deram-nos o poder suficiente parano cairmos em qualquer dos males absolutos; e se houvesse verdadeiro malnas outras experincias da vida, eles teriam providenciado nesse sentidotambm, para que estivesse na mo de todos os homens evit-lo. Mas quandouma coisa no piora o prprio homem, como pode ela piorar a vida que ele vive?O Mundo-Natureza no pode ter sido to ignorante a ponto de descurar um riscodeste tipo, ou, dele conhecedor, no ser capaz de inventar uma salvaguarda ouum remdio. Nem a falta de poder, nem a falta de competncia poderiam terlevado a Natureza a cair no erro de permitir que o bem e o mal visitassemindiscriminadamente o justo e o pecador. Contudo, viver e morrer, fama edescrdito, dor e prazer, riqueza e pobreza, e por a adiante, so quotas- partesque cabem igualmente aos homens bons e maus. Coisas como estas noelevam nem aviltam; e portanto no so nem boas nem ms.

    12. Os nossos poderes mentais deviam permitir-nos perceber a rapidez comque todas as coisas se desvanecem; os corpos no mundo do espao, e aslembranas no mundo do tempo. Devamos tambm observar todos os objectosda percepo particularmente aqueles que nos enchem de prazer ou nosafligem com sofrimento, ou so clamorosamente impelidos at ns pela voz davaidade a sua vulgaridade e baixeza, como so srdidos, e como sedesvanecem e morrem rapidamente. Devamos distinguir o verdadeiromerecimento daqueles cuja palavra e opinio conferem reputao. Devamosapreender, tambm, a natureza da morte; e que basta contempl-la fixamente edissecar as fantasias a ela mentalmente associadas, para acabarmos por pensarnela como nada mais do que um processo natural (e s as crianas se assustamcom um processo natural) ou melhor, como qualquer coisa mais do que umprocesso natural, uma contribuio positiva para o bem-estar da natureza.Tambm podemos aprender como o homem tem contacto com Deus, e com queparte de si prprio esse contacto se mantm, e como essa parte se comportadepois da sua remoo daqui.

    13. Nada mais triste do que fazer o circuito de toda a criao, esquadrinhandoas profundezas da terra, como diz o poeta, e espreitando curiosamente ossegredos das almas dos outros, sem por uma vez compreendermos que agarrarfirmemente o esprito divino que neles reside e servi-lo lealmente tudo aquilode que precisamos. Tal servio implica o mant-lo livre da paixo, e da falta deobjectivos, e da insatisfao com a obra dos deuses ou dos homens; porque aprimeira merece o nosso respeito pela sua excelncia; a segunda, a nossa boa-vontade, em nome da fraternidade, e por vezes tambm, a nossa piedade, por

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    causa da ignorncia dos homens a respeito do bem e do mal uma fraquezato mutiladora como a incapacidade de distinguir o preto do branco.

    14. Mesmo que vivesses trs mil anos, ou at trinta mil, lembra-te que a nicavida que um homem pode perder aquela que est a viver no momento; e mais,que ele no pode ter qualquer outra vida a no ser aquela que ele perde. Istosignifica que uma vida mais longa ou mais curta vo dar ao mesmo. Porque ominuto que passa o bem igual de todos os homens, mas o que j passou no nosso. A nossa perda, portanto, limita-se quele momento fugaz, uma vez queningum pode perder o que j passou, nem o que est ainda para vir porquecomo que ele pode ser despojado daquilo que no tem? Assim, duas coisastemos de ter em ateno. Primeiro, que todos os ciclos da criao, desde oprincpio do tempo, tm o mesmo padro recorrente, de modo que no importaque o mesmo espectculo se observe durante cem anos ou durante duzentos,ou para sempre. Segundo, que quando aqueles de ns que vivem mais, e osque vivem menos, morrem, as suas perdas so perfeitamente iguais. Porque anica coisa de que o homem pode ser despojado o presente, uma vez que isso tudo o que ele possui, e ningum pode perder o que no seu.

    15. H bvias objeces afirmao do cnico Mnimo de que as coisas sodeterminadas pelo que vemos nelas; mas o valor do seu aforismo igualmentebvio, se aceitarmos a sua substncia at ao ponto de considerarmos que elacontm uma verdade.

    16. Para uma alma humana, o maior dos males auto- infligidos tornar-se(podendo) uma espcie de tumor ou abcesso no universo; porque contendercom as circunstncias sempre uma rebelio contra a Natureza e a Naturezainclui a natureza de cada parte individual. Outro mal rejeitar um semelhante ouopor-se-lhe com ms intenes, como os homens fazem quando estozangados. Um terceiro, render-se ao prazer ou dor. Um quarto, dissimular emostrar insinceridade ou falsidade em palavras ou em actos. Um quinto, a almano dirigir os seus actos e esforos para um objectivo determinado, e gastar assuas energias sem qualquer fim e sem o devido pensamento; porque mesmo amais insignificante das nossas actividades deve ter um fim em vista e paracriaturas dotadas de razo, o fim a conformidade com a razo e a lei daCidade e Comunidade originais.

    17. Na vida de um homem, o seu tempo apenas um momento, o seu ser umfluxo incessante, os sentidos uma vela mortia, o corpo uma presa dos vermes,a alma um turbilho inquieto, o destino, negro, e a fama, duvidosa. Em resumo,tudo o que do corpo, como gua corrente, tudo o que da alma, comosonhos e vapores; a vida, uma guerra, uma curta estadia numa terra estranha; edepois da fama, o esquecimento. Onde, pois, poder o homem encontrar opoder de guiar e salvaguardar os seus passos? Numa e s numa coisa apenas:a Filosofia. Ser filsofo manter o esprito divino puro e inclume dentro de si,para que ele transcenda todo o prazer e toda a dor, no empreenda nada sem

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    um objectivo, ou com falsidade ou dissimulao, no fique na dependncia dasaces ou inaces dos outros, aceite todas e cada uma das prescries comovindas da mesma Fonte donde ele prprio veio e final e principalmente, paraque espere a morte com dignidade, como nada mais do que a simplesdissoluo dos elementos de que todo o organismo vivo composto. Se essesprprios elementos no se danificam com a incessante formao e re-formao,porqu olhar com desconfiana a transformao e dissoluo do todo? Trata-seapenas do curso da Natureza; e no curso da Natureza no se encontra malnenhum.

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    LIVRO 3

    1. A consumio diria da vida, acompanhada da permanente reduo doremanescente, no a nica coisa que temos de ter em considerao. Porque,mesmo que os anos de um homem se prolonguem, temos ainda assim de levarem linha de conta que duvidoso que o seu esprito continue a manter a suacapacidade para a compreenso da actividade ou para o esforo contemplativonecessrio apreenso das coisas divinas e humanas. O comeo da senilidadepode no envolver qualquer perda dos poderes de respirao ou alimentao,ou das sensaes, impulsos, etc., contudo, a capacidade de usar plenamente assuas faculdades, de avaliar correctamente as exigncias do dever, de coordenartodos os problemas que se lhe levantam, de ajuizar se chegou a altura de prfim aos seus dias na terra, ou de tomar qualquer outra das decises querequerem o exerccio de um intelecto experimentado, j est em declnio.Devemos, pois, apressar-nos, no simplesmente porque a cada hora nosaproximamos mais da morte, mas porque mesmo antes disso o nosso poder depercepo e compreenso comea a deteriorar-se.Outra coisa em que devemos reparar no encanto e na fascinao que hmesmo nas casualidades dos processos da Natureza. Quando um po, porexemplo, est no forno, comea a ficar com fendas aqui e ali; e estes defeitos,no intencionais, na cozedura, tm um carcter prprio, e aguam o apetite. Osfigos, tambm, quando maduros, abrem-se em fendas. Quando as azeitonasesto para cair, a prpria iminncia do declnio acrescenta a sua beleza ao fruto.Assim, tambm a cabea cada de um p de milho, a pele enrugada de um leoassanhado, o pingo de espuma caindo das mandbulas de um urso selvagem, emuitas mais coisas deste tipo, no so nada belas se vistas em si prprias;contudo, como consequncias de um outro processo da Natureza, elas do asua contribuio para o seu encanto e atraco.

    2. Assim, a um homem de suficientemente profunda sensibilidade e capacidadede penetrao intelectual nas obras do universo, quase tudo, mesmo que maisno seja do que um mero subproduto de qualquer outra coisa, pareceacrescentar o seu galardo de prazer adicional. Um homem assim olhar asfauces escarninhas de um leo real com a mesma admirao com que olharia asua representao plstica feita por um artista ou por um escultor; e o olhar dediscernimento deix-lo- ver do mesmo modo o encanto maduro dos homens emulheres de idade e a frescura sedutora da juventude. Coisas deste tipo noatraem toda a gente; s quem cultivou uma intimidade real com a Natureza e assuas obras fica impressionado com elas.

    3. Hipcrates17 curou os males de muita gente, mas ele prprio adoeceu emorreu. Os Caldeus previram a morte de muita gente, mas o destino apanhou-ostambm a eles. Alexandre, Pompeu e Jlio Csar devastaram e voltaram adevastar cidades inteiras e abateram batalhes de cavalaria e infantaria emcombate, mas tambm a sua hora chegou. Herclito18 especulava

    Notas17Hipcrates (460-355 a.C.) era oriundo da ilha de Cos e o mais famoso mdico da Antiguidade. Os seus numerosos tratados constituram os fundamentos de toda a cincia mdica do mundo clssico. Parece no haver razo para pr em dvida a sua autoria do Juramento Hipocrtico; e tambm lhe atribuda a autoria do ditado, A vida curta, a arte longa.Notas18Herclito (540-475 a.C.), filsofo jnico, ensinava que a essncia do Ser o Devir: isto , um movimento incessante de mudana pelo qual um aspecto de uma coisa est sempre a levar a uma outra. O tipo deste movimento perptuo, e a forma primitiva de toda a matria, o fogo; e o processo elemental do universo a passagem do fogo a gua e terra e de novo a fogo. Todas as coisas esto em fluxo e No se pode mergulhar duas vezes na mesma gua de um rio eram dois dos conhecidos ditados em que ele exprimia asua doutrina; e Marco refere-se a outros em IV,46. Muito do posterior sistema estico da fsica baseava-se nas teorias de Herclito.
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    interminavelmente sobre a destruio do mundo pelo fogo, mas no fim foi a guaque lhe saturou o corpo e morreu num emplastro de excrementos. Demcrito19

    foi destrudo por insectos; Scrates por insectos de outro tipo20 . E a moral detudo isto? Esta. Embarca-se, faz-se a viagem, chega-se ao porto: desembarca-se, ento. Noutra vida? H deuses por toda a parte, mesmo no alm. Nainsensibilidade final? Ento ficaremos fora do alcance da dor e do prazer, e jno escravos desta embarcao terrena, to incomensuravelmente maismesquinha do que o seu ministro assistente. Porque um esprito e divindade; eo outro, apenas barro e corrupo.

    4. No desperdices o que resta da tua vida a especular sobre os teus vizinhos,a no ser que tenhas em vista qualquer benefcio mtuo. Interrogares-te sobre oque fulano est a fazer e porqu, ou sobre o que ele est a dizer ou a pensar oua planear numa palavra, sobre qualquer coisa que te desvie da fidelidade aosoberano governador dentro de ti significa uma perda de oportunidade paraoutra tarefa qualquer. Repara ento que o fluir dos teus pensamentos estliberto de fantasias ociosas ou casuais, particularmente daquelas de naturezaindiscreta ou maldizente. Um homem devia habituar-se de tal maneira a estemodo de pensar que, subitamente perguntado, Em que ests a pensar nestemomento? pudesse responder honestamente e sem hesitao, provando assimque todos os seus pensamentos eram simples e bondosos como convm a umser social, sem o gosto pelos prazeres de imaginaes sensuais, cimes,invejas, suspeitas ou quaisquer outros sentimentos que o fariam corar aoreconhec-los em si prprio. Um homem assim, determinado aqui e agora aaspirar s alturas, , de facto, um pastor e ministro dos deuses; porque est ausar plenamente aquele poder interior que pode manter um homem limpo deprazeres, prova da dor, indiferente ao insulto e impermevel ao mal. umconcorrente ao maior dos concursos, a luta contra o domnio da paixo; ficacompletamente impregnado de rectido, recebendo com sincera alegria o quequer que seja que lhe caiba em sorte e raramente se perguntando sobre o queos outros possam dizer, fazer ou pensar, excepto quando o interesse pblico oexija. Limita as suas actividades quilo que lhe diz respeito, deixando a suaateno presa ao seu particular fio da teia universal, procurando fazer com queas suas aces sejam honradas, e na convico de que tudo o que lhe possaacontecer tem de ser para o melhor porque o seu prprio destino est, eleprprio, sob orientao superior. No esquece a relao fraterna de todos osseres racionais, nem que a preocupao por todos os homens prpria dahumanidade: e sabe que no so as opinies do mundo que deve seguir, masapenas as dos homens cuja vida est confessadamente de acordo com aNatureza. Quanto aos outros, cuja vida no est assim organizada, ele lembraconstantemente o carcter que eles mostram diariamente, dia e noite, em casa,e c fora, e o tipo de sociedade que eles frequentam; e a aprovao de taishomens, que nem sequer se sentem bem consigo prprios, no tem, para ele,qualquer valor.

    Notas19Demcrito, contemporneo de Hipcrates, afirmava que o universo era formado de combinaesinfinitamente variadas de um nmero infinito de tomos, crena em que foi depois seguido por Epicuro e a sua escola. Ao contrrio do sombrio Herclito, o filsofo choroso, a sua boa disposio trouxe-lhe a alcunha de o filsofo risonho. Esta referncia de Marco o nosso nico testemunho para esta verso da sua morte.Notas20 uma referncia ao poeta Mlito, ao curtidor nito e ao orador Lycon. Eles fizeram a Scrates a acusao pela qual ele foi condenado morte. Pouco depois da sua execuo, os Atenienses arrependeram-se da sua injustia, apedrejaram Mlito at morte, e baniram nio e Lycon.
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    5. Que haja nas tuas aces solicitude, sem deixares, porm, de ter em atenoo interesse comum; ponderao, mas sem indeciso; e que nos teussentimentos no haja excesso pretensioso de refinamento. Evita a loquacidade,evita a solicitude excessiva. O deus que h dentro de ti deve presidir sobre umser que seja viril e maduro, homem de estado, romano e soberano; um homemque no ceda terreno, qual soldado espera do sinal de retirada do campo debatalha da vida, pronto a dar as boas vindas ao seu alvio; um homem cujareputao no necessite de ser afirmada por si prprio, nem avalizada pelosoutros. Eis o segredo da alegria, de no depender da ajuda de fora, e de noprecisar de implorar a ningum o favor da tranquilidade. Temos de nos pr de ppor ns prprios, e no ser postos de p.

    6. Se a vida mortal te puder oferecer alguma coisa melhor do que a justia e averdade, o autodomnio e a coragem isto , paz de esprito na evidenteconformidade das tuas aces com as leis da razo, e paz de esprito nasprovaes de um destino que no controlas se, digamos, conseguiresdiscernir um ideal mais elevado, nesse caso, aproveita-o com toda a tua alma ealegra-te com o prmio que encontraste. Mas se nada te parece melhor do que adivindade que mora dentro de ti, que orienta cada impulso, que pesa cadaimpresso, que abjura (nas palavras de Scrates) as tentaes da carne, e queconfessa fidelidade aos deuses e compaixo pela humanidade; se, emcomparao, achares tudo o resto mesquinho e sem valor, ento no abras em tiespao a quaisquer outras causas. Porque se alguma vez hesitares e tedesviares, j no sers capaz de oferecer lealdade firme ao ideal que escolhestepara ti prprio. Nenhumas ambies de outra natureza diferente podem disputaro ttulo bondade que pertence razo e ao dever cvico; nem o aplauso domundo, nem o poder, nem a riqueza, nem a alegria do prazer. primeira vista,parece no haver incompatibilidade nestas coisas, mas logo elas levam a melhore desequilibram o homem. Dir-te-ia, ento, que escolhesses simples eespontaneamente o mais elevado e aderisses a ele. Mas o melhor para mim o mais elevado, dizes tu? Se o melhor para ti como ser racional, segura-obem; mas se o meramente como animal, ento di-lo abertamente e mantm oteu ponto de vista com a correspondente humildade assegura-te apenas deque ponderaste bem o assunto.

    7. No prezes as vantagens advindas de qualquer coisa que envolva quebra daf, perda do respeito por ti prprio, dio, suspeita, ou maldio dos outros,insinceridade, ou desejo de qualquer coisa que tenha de estar dissimulado ouescondido. Uma pessoa cuja principal ateno vai para o seu prprio esprito epara a divindade que h dentro de si, bem como para servir a sua excelncia,no toma atitudes afectadas, no se queixa, e no suspira pela solido nem topouco por uma multido. E o melhor de tudo que a sua vida ficar livre decontnuas buscas e esquivas. No se preocupa se a alma dentro do seu corpomortal ser sua por muitos ou poucos anos; se neste preciso momento for aaltura de partir, avanar to prontamente como para desempenhar qualqueroutra aco que possa ser realizada de maneira digna e tranquila. No tem outra

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    preocupao na vida que no seja a de manter o esprito fora de caminhosincompatveis com os de um ser social e inteligente.

    8. Num esprito disciplinado e purificado no h sinal de corrupo, mancha porlimpar, nem ferida supurante. Nunca o destino poder arrancar a tal homem avida por realizar, como se fosse um actor a deixar o palco no meio darepresentao, antes da pea acabada. No h nele nada de servil, nem topouco de vaidoso; nem se encosta aos outros, nem se isola deles; e no ficaresponsvel por ningum, mas tambm no culpado de evaso.

    9. Respeita o teu poder de formar uma opinio. S assim o timoneiro dentro deti evita formar opinies que estejam em desacordo com a natureza e com aconstituio de um ser racional. A partir dela podes esperar obter acircunspeco, boas relaes com os teus semelhantes, e conformidade com avontade de Deus.

    10. Renunciando a tudo o resto, apega-te s poucas verdades seguintes.Lembra-te que o homem vive s no presente, neste momento fugaz: todo o restoda vida ou passado e j ido, ou ainda no revelado. Esta vida mortal umapequena coisa, vivida num cantinho da terra; e pequena tambm a maisduradoura fama dependente, como , de uma sucesso de pequenos homensde curta durao, desconhecedores das suas prprias pessoas, e muito maisainda de uma outra j h muito morta e enterrada.

    11. A estas mximas acrescenta ainda uma outra. Quando um objecto seapresenta tua percepo, arranja uma definio mental para ela, ou pelomenos traa-lhe um perfil, para lhe discernires o carcter essencial, para nelapenetrares para alm dos seus atributos separados e obteres uma viso distintada nudez do seu todo, e para identificares tanto o prprio objecto como oselementos de que formado e em que de novo se dissolver. No h nada quemais dilate o esprito do que esta capacidade de examinar metdica erigorosamente cada uma das experincias da vida, com vista a determinar a suaclassificao, os fins que serve, o seu valor para o universo, e o seu valor paraos homens, como membros da Cidade suprema em que todas as outras cidadesso como pessoas de casa. Vejamos, por exemplo, aquilo que est a produziruma impresso sobre mim neste momento. O que ? De que formado? Quantotempo est destinado a viver? Que reaco moral espera de mim; docilidade,fora moral, franqueza, boa-f, sinceridade, autoconfiana, ou alguma outraqualidade? Em todos os casos, aprende a dizer: Isto vem de Deus; ou, Isto uma das disposies do Destino, um fio da complexa teia, uma conjuno decasualidades; ou ainda, Isto obra de um homem da mesma cepa, criao eirmandade que eu, mas que no sabe aquilo que a Natureza exige dele. Euprprio, contudo, no posso alegar tal ignorncia e portanto, de acordo com a leinatural da fraternidade, tenho de trat-lo justa e amigavelmente embora aomesmo tempo, se uma questo de bem ou mal no estiver envolvida, devaapontar as minhas lanas ao merecimento do caso.

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    12. Se cumprires a tarefa que tens diante de ti aderindo sempre ao rigor darazo com zelo e energia, mas tambm com humanidade, desprezando todos osfins menores e mantendo pura e vertical a divindade dentro de ti, como semesmo agora fosses enfrentar o seu chamamento se te ativeres firmemente aisto, sem te deteres para nada, nem te esquivares de nada, procurando apenasem cada aco que passa a conformidade com a natureza e em cada palavra eafirmao a verdade intrpida, ento a vida s ser tua. E neste caminhoningum tem o poder de te deter.

    13. Assim como os cirurgies tm sempre mo as lancetas e bisturis para assbitas urgncias da sua arte, tambm tu deves ter os teus princpios sempreprontos para a compreenso das coisas, tanto as humanas como as divinas,nunca esquecendo, mesmo na mais trivial das aces, como as duas esto tointimamente ligadas. Porque nada de humano pode ser feito com acerto semreferncia ao divino, e reciprocamente.

    14. No te enganes mais; j no lers mais estas notas, nem os anais dospassados romanos e gregos, nem aquela seleco de escritos que guardastepara a tua velhice. Continua com vigor at ao fim; afasta esperanas vs; e se teinteressas pelo teu eu, zela pela tua prpria segurana enquanto ainda podes.

    15. Eles no sabem tudo o que palavras como roubar, semear, adquirir,estar em paz, zelar pelos nossos deveres significam; isto requer uma visodiferente