marco aurélio nogueira - desenvolvimento estado e sociedade

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PARTE II Desenvolvimento, Estado e Sociedade: as Relações Necessárias, as Coalizões Possíveis e a Institucionalidade Requerida

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  • PARTE IIDesenvolvimento, Estado e Sociedade: as Relaes Necessrias, as Coalizes Possveis e a Institucionalidade Requerida

  • captulo 4

    DESENVOLVIMENTO, ESTADO E SOCIEDADE: AS RELAES NECESSRIAS, AS COALIZES POSSVEIS E A INSTITUCIONALIDADE REQUERIDA1

    Marco aurlio Nogueira

    No que segue, pretendo discutir precisamente aquilo que o seminrio anuncia: relaes entre Estado, desenvolvimento e sociedade, vistas sobretudo do ponto de vista das coalizes e da dinmica institucional. Tanto a ementa do seminrio como seu prprio ttulo sugerem com perfeio tudo o que fundamental para que se possa examinar a questo do desenvolvimento nos dias atuais e de uma perspectiva democrtica e progressista.

    Todos sabemos que o desenvolvimento um processo inevitavelmente com-plexo onde quer que se delineie e seja implementado, especialmente no perodo mais recente da histria da humanidade. No mundo moderno, de capitalismo industrial, nunca se discutiu desenvolvimento em termos espontneos, como algo que derivaria do mero jogo econmico ou das foras do mercado. Ele sempre foi tratado como um produto social, como um valor, expresso de um desejo, por-tanto como um processo politicamente induzido, conduzido, comandado ou ao menos regulado pelo Estado. Precisamente por isso, no h mesmo como abordar o tema sem incluir relaes, coalizes, institucionalidades.

    Em nome disso, busquei fixar uma questo inicial que espero possa orien-tar a exposio. Se o desenvolvimento que estamos discutindo induzido, e se depende de uma srie de requisitos para poder ser implementado e ganhar mate-rialidade, ento nos deparamos desde logo com um duplo problema.

    Por um lado, se pensarmos sobretudo nas condies desafiadoras deste incio de sculo XXI, precisamos partir de uma ideia de desenvolvimento: de que desenvolvimento estamos falando? J chegamos a um ponto da discusso em

    1. palestra proferida no Seminrio Desenvolvimento, Estado e sociedade: as relaes necessrias, as coalizes possveis e a institucionalidade requerida, ocorrido no auditrio do Ipea, em Braslia, no dia 17 de junho de 2008.

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    que aprendemos a distinguir desenvolvimento de crescimento. No faz muito sentido, hoje em dia, falar somente de crescimento, ainda que todo processo de desenvolvimento tenha, de modo inevitvel, uma dimenso fortemente concen-trada na expanso econmica. O conceito de desenvolvimento tem um com-ponente qualitativo forte, com o que adquire outro estatuto. Ele um fato muito mais abrangente e complexo, que envolve e exige uma ideia de sociedade, de comunidade poltica, de justia social, de Estado e de economia. Justamente por isso, necessitamos de um denominador mais consistente, de uma base firme, que estou chamando aqui de ideia de desenvolvimento um conceito, uma estratgia, um plano de voo que possa gerar consensos e adeses.

    Salvo melhor juzo, temos a uma primeira grande ausncia. No dispomos dessa ideia consensual de desenvolvimento. Na ausncia dela, ficamos despro-vidos de um impulso que projete o desenvolvimento como aspirao poltica e como possibilidade efetiva.

    Talvez no tenhamos essa ideia bsica porque o momento em que nos en-contramos hoje particularmente dramtico. Nos dias atuais, paradoxalmente, o desenvolvimento ao mesmo tempo desejado e no desejado. H muita gente que trabalha com uma ideia passiva de desenvolvimento porque valoriza ou en-fatiza os altos custos que o desenvolvimento das ltimas dcadas implicou para a sociabilidade humana no mundo. Somos hoje herdeiros de uma fase de expanso do capitalismo que levou a humanidade aos portais da barbrie. Se assim, por que mais desenvolvimento? Ser que ns, ao incentivarmos a busca por mais desenvolvimento podem perguntar alguns no estaramos incentivando o prosseguimento ampliado dessa barbrie? Barbrie no sentido de algo que est se apropriando de maneira indevida da natureza, que no est promovendo a incorporao do social, que produziu, no curso de algumas dcadas, um aprofun-damento dos abismos e das fraturas sociais e est transformando a vida humana em uma usina produtiva em tempo integral, sem intervalos.

    H na discusso atual uma vertente revestida de forte apelo tico e poltico, que pe em xeque as proclamadas virtudes do desenvolvimento.

    Alm disso, entre os defensores do desenvolvimento, no h propriamente um consenso em relao ao que ele deve ser. At muito recentemente, quando se falava em desenvolvimento se pensava estritamente em ativao do mercado, ativao produtiva. Hoje, esse discurso no est certamente morto, perdeu legiti-midade. Quando muito, s aparece de forma escamoteada. J no se pode dizer que tenha defensores combativos. No incio de junho de 2008, por exemplo, foi divulgado um relatrio de crescimento patrocinado pelo Banco Mundial. Ali a ideia de desenvolvimento, seguramente, no a de ativao produtiva pura e simples. uma ideia mais sofisticada, que apresenta o desenvolvimento como tendo um conjunto de metas que no se reduzem vida econmica e so bem mais abran-

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    gentes do que ela. Do mesmo modo, ali se reconhece de maneira atpica e surpreendente, se levarmos em conta o pensamento predominante nas ltimas dcadas a relevncia estratgica do Estado.

    A ideia de desenvolvimento sugere hoje, de fato, algum tipo de convergncia com o intuito de evitar sua limitao dimenso econmica. Mas o modo como a economia e as demais dimenses so concatenadas nos projetos de desenvolvi-mento bastante diversificado. Por isso no poderamos partir do pressuposto de que existe um consenso preliminar para se discutir desenvolvimento.

    Temos portanto uma dificuldade inicial quando pensamos em desenvol-vimento em termos polticos, em termos pblicos, para a sociedade, que a dificuldade derivada da ausncia de uma ideia bsica daquilo que se poderia chamar de projeto de desenvolvimento.

    Essa, porm, somente a primeira parte do problema, e no me parece a parte mais complicada. Atrapalha bastante, mas se houver continuidade na dis-cusso, provvel que se consiga avanar, pelo menos em termos das formulaes mais gerais.

    O problema mais grave quando pensamos no segundo requisito bsico de um projeto de desenvolvimento, que a existncia de uma articulao social favorvel a ele, aquilo que poderamos chamar, para economizar algumas palavras e introduzir uma expresso que convida polmica e reflexo, de pacto social desenvolvimentista.

    Se reunirmos ento essas duas faces do problema, entramos num ambiente de discusso extremamente turbulento. A questo tem uma dramaticidade ex-tra porque nenhum projeto consistente de desenvolvimento poder excluir nem o social ou seja, os ganhos sociais do crescimento nem a sustentabilidade. So dois limites que freiam qualquer ideia de desenvolvimento que queira buscar legitimidade e apoio social ativo, que tenha pretenses hegemnicas e consiga angariar defensores, militantes, e que possa contar com o eventual sacrifcio momentneo das expectativas de uma parte da sociedade. Evidentemente, no podemos partir de uma perspectiva inocente e ingnua de achar que todos sero igualmente beneficiados ao mesmo tempo com o desenvolvimento. Como nossa sociedade , cada vez mais, estruturalmente heterognea, e como no modo de vida atual os desejos e expectativas dos indivduos tendem sempre a se multiplicar sem muita coordenao, haver ganhos e perdas nesse processo. Apoios e suportes tero de ser buscados o tempo todo.

    Se o desenvolvimento se apresenta inevitavelmente como uma proposio complexa em si mesma, ento ele exige um pacto social igualmente complexo, que tenha no s algum tipo de vertebrao, mas muita flexibilidade na sua agen-da e muita generosidade tica e poltica.

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    Seria interessante complicar um pouco mais o argumento do pacto social para dizer o seguinte: at por ser desesperadamente estratgico, o pacto social uma operao de viabilidade altamente discutvel. E isso assim por condies estruturais e subjetivas, associadas ao modo de vida que estamos sendo levados a viver. Se queremos pensar em desenvolvimento, precisamos no s de uma ideia de desenvolvimento, mas tambm de uma reflexo sobre o poder, de uma teoria da sociedade (uma sociologia) e de um projeto de sociedade. A teoria da sociedade talvez j tenhamos, mas a reflexo sobre o poder no temos. Quanto ao projeto de sociedade, tambm no o temos e suspeito que, no mundo tal qual existe hoje, no poderemos ter.

    Ento ficamos em uma situao delicada, difcil. Paradoxalmente, esta uma situao excelente para os intelectuais, e especialmente para os intelectuais pblicos, que se sentem inteiramente vontade para especular sobre o futuro do mundo, agindo normativamente, para dizer como as coisas devem ser, ou como elas no podem ser.

    Creio ser muito difcil, hoje, obter o fundamental, qual seja, boas condies para um pacto social de tipo desenvolvimentista. A dificuldade bsica que vive-mos numa era de esgotamento, crise e ausncia de projetos de modo generalizado. Esgotamento do qu? Antes de tudo, esgotamento da ideia de desenvolvimento que fez a fama do capitalismo. Tal ideia continua a ser reproduzida, talvez at esteja no mago dos projetos e das ideias desenvolvimentistas que trafegam por a, no mundo ou no Brasil. Ou seja, esse desenvolvimento agressivo, como fala o relatrio do Banco Mundial, a ideia de desenvolvimento que admite a ditadura do desenvolvimentismo, que fala em catch up mentality, a mentalidade de voc correr atrs. Como se fosse razovel imaginar que exista um padro desejvel nos pases mais desenvolvidos que deva ser perseguido por todos os povos. Seria como dizer que enquanto no tivermos uma renda per capita de US$ 75 mil por ano no teremos chances de ser bem-sucedidos ou felizes no mundo. Ento essa ideia continua a ser apresentada, mas parece esgotada. No obter grandes apoios no plano das diferentes sociedades.

    Tambm est esgotada a soluo neoliberal que foi proposta para as crises da economia capitalista das ltimas dcadas. Tal soluo, que tentou ser uma inter-veno para manter viva a ideia de desenvolvimento do capitalismo, tambm con-tinua a ser reproduzida, mas perdeu consensos importantes e est sendo obrigada a incorporar reformulaes que, no mdio prazo, acabaro por desconstruir toda a proclamada coerncia da proposta neoliberal.

    Esgotou-se tambm a ideia desenvolvimentista que fez a glria dos pases perifricos nos anos 1950, 1960 e 1970. Um desenvolvimento unilateralmen-te induzido pelo Estado, forte, substitutivo de importaes, nacionalista etc.

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    No conseguiremos extrair muita coisa da repetio, mais ou menos mecnica, dessas ideias de desenvolvimento.

    Ao lado desses esgotamentos, h algumas crises que tambm ajudam a complicar a discusso. Vou reduzi-las a um nico elemento: a crise da esquerda. E por que dar tanta importncia assim crise da esquerda? Basicamente, porque a esquerda foi nos ltimos 150 anos o motor da unidade poltica da sociedade. Foi ela que promoveu todas as grandes agregaes virtuosas na sociedade. No foram os liberais, que no tm capacidade tica e doutrinria para fazer isso. No foi evidentemente a direita, ainda que a direita que organicista tenha ajudado a organizar a sociedade. Fez isso, no entanto, em um sentido inflexvel, centra-do na autoridade e em valores tradicionalistas, bem mais que na liberdade de pensamento ou em valores democrticos. Foi a esquerda que conseguiu traduzir politicamente a insatisfao social e organizar o protesto, o conflito. E se esse per-sonagem entra em crise, praticamente ele despoja a sociedade dessa capacidade de traduzir politicamente a insatisfao. Com isso, as sociedades ficam sem o poder de produzir snteses, ficam flutuando entre as suas contradies sem que isso gere novas solues, ou uma nova forma de Estado, de comunidade poltica.

    A crise da esquerda me parece hoje evidente, para dizer o mnimo, e no evidente apenas no Brasil, um fenmeno mundial. Ela complica bastante a montagem de qualquer arranjo social, de qualquer coalizo que tenha no hori-zonte um desenvolvimentismo de novo tipo, mais flexvel, inteligente e generoso do que qualquer outro do passado.

    A sociedade em que vivemos no se caracteriza pela passividade, uma so-ciedade que verbaliza a insatisfao com bastante frequncia, tanto no sentido literal como no metafrico. A insatisfao ostensiva na vida de hoje. No est politicamente organizada porque essa sociedade est despojada de atores capazes de alcanar as devidas snteses. No est, evidentemente, despojada em absoluto, mas em nvel suficiente para atrapalhar bastante o processo poltico e social. Po-deramos ficar discutindo um bom tempo esse ponto, mas agora, nesta ocasio, vou somente deix-lo registrado com um sinal de gravidade.

    Observo por fim levando ao limite a linha esgotamentos-crises-ausncias que estamos vivendo em uma poca de ausncia de projetos nacionais, no ape-nas em decorrncia da crise da esquerda, mas tambm como resultado do modo de ser do capitalismo globalizado em sua fase informacional-tecnolgica. Nesse estilo de vida e de produo, que se espalha rapidamente pelo mundo, temos pou-cas condies de encontrar elementos que produzam novos projetos nacionais.

    Primeiro porque unidade nacional, hoje, em uma viso otimista, mais se as-semelha a uma meta e um desejo do que a um dado de realidade. No existem uni-dades nacionais dadas, elas existem, eventualmente, como algo a ser construdo,

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    conquistado, obtido com o passar do tempo, e nem sempre com uma dose alta de confiabilidade. Isso porque o mundo que est se organizando diante de ns, como sugere o socilogo polons Zygmunt Bauman, est disseminando um modo de vida lquido e flutuante.2 Esse modo de vida que necessitaria ser esmiuado criticamente, evidente complica bastante qualquer esforo de unificao.

    Somos brasileiros e estamos sendo levados, de boa ou m vontade, a entrar no mundo da vida lquida. Independentemente de se concordar com essa me-tfora, e passando ao largo de uma discusso terica e epistemolgica sobre as proposies de Bauman, creio que podemos us-la com as devidas ressalvas e os necessrios cuidados. inegvel que ela contm uma elevada dose de sugesto. Tambm no Brasil estamos ficando supermodernos, intoxicando-nos de tecnolo-gia, de velocidade, de rapidez. Estamos nos individualizando e convertendo a in-dividualizao (ou seja, o movimento de descolamento relativo dos indivduos em relao aos grupos e instituies sociais) em critrio de estruturao da sociedade. Estamos tambm nos democratizando em termos comportamentais, em termos sociais. Estamos questionando a autoridade, a ordem, a hierarquia, problemati-zando as instituies, tornando-nos mais reflexivos, ou seja, absorvendo muitas informaes, processando-as e forando-as a repercutir sobre a vida social, que se dinamiza e se instabiliza bastante. Por essa via, podemos pensar em vantagens e desvantagens da vida lquida.

    O problema que estamos entrando na vida lquida em condies perifricas, pagando o custo do legado colonial e autoritrio que nos tpico. Ou seja, esta-mos nos tornando lquidos sem deixarmos de ser pobres, com taxas de excluso e misria muito altas, o que seguramente produz uma qumica altamente explosiva, que s no explode de fato em uma guerra civil porque no tem elos, porque no tem personagens que politizem isso. Mas a situao explosiva no sentido passivo se que seja possvel pensar numa explosividade passiva qual seja, o de conspirar justamente contra a elaborao de projetos, de pactos, de unidades, de organizaes, bem como contra a fixao de instituies que sejam capazes de comandar minimamente a ordem social.

    Essa condio de supermodernidade perifrica a base do nosso dilema atu-al. Digo dilema porque acho que vale a pena explorar as coisas positivas que exis-tem na supermodernidade: a liberao dos indivduos, a converso dos indivduos em polos ativos da sociedade, com alguma indiferena institucional, algum des-respeito organizacional e uma dose talvez elevada de autossuficincia. Trata-se de algo que pode produzir vida comunitria de novo tipo. D-se o mesmo com a

    2. Zygmunt Bauman, socilogo polons radicado na Inglaterra, define a vida lquida como a forma de existncia contempornea marcada pela mercantilizao das relaes, caracterizada pela fluidez, incerteza, fragmentao e pre-cariedade (BauMaN, Zygmunt. Vida lquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007) (Nota dos organizadores).

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    alta reflexividade, a facilidade de manusear informaes, de pensar, de estabelecer comunicaes, de interagir com os demais. No h como negar que tudo isso so recursos importantes, assim como a democratizao, que real e promove muitas alteraes emancipatrias nas clulas bsicas da sociedade, na famlia, na escola, onde quer que seja.

    Mas h o outro lado, que ganha proeminncia quando se entra em conta-to com a misria e que d origem a uma srie de coisas que causam espanto ou horror entre ns, como, por exemplo, as novas formas de pobreza e de excluso, o desemprego estrutural, a sofisticao do crime. O crime hoje no Brasil s so-fisticado porque existem essas duas portas: a modernidade radicalizada e a misria expandida. O somatrio disso d origem ao PCC em So Paulo, para mencionar um exemplo fcil. Evidentemente isso deve ser mais bem discutido, mas para mim um exemplo emblemtico, que sugere com clareza a existncia de um problema que precisa ser includo em uma agenda dedicada ao desenvolvimento.

    Em condies de modernidade radicalizada na periferia, nas quais esto da-dos o esgotamento dos modelos, a crise da esquerda e a ausncia de projetos nacionais, como pensar em desenvolvimento num registro complexo e sofistica-do, ou seja, em uma ideia sustentvel de desenvolvimento? Se mergulharmos na defesa de um projeto de desenvolvimento que no traga consigo uma soluo, ou pelo menos um equacionamento para esses problemas de base, poderemos assistir a um longo ciclo desenvolvimentista no final do qual haver apenas melhorias das condies da economia e do mercado, e poucos ganhos sociais, poucos ganhos em termos de comunidade poltica no sentido autntico da expresso.

    Como pensar ento em desenvolvimento sustentvel? Gostaria de arriscar um caminho exploratrio, preliminar, que no resolve a questo, mas pode ser importante para sua soluo.

    Primeiro ponto: temos de pensar em desenvolvimento sustentvel excluindo a centralidade unilateral do Estado. Ou seja, encontrando um modo de pensar coalizes que efetivamente liguem pedaos da sociedade, no pedaos do Estado como so os partidos polticos. Os partidos hoje, concretamente, na vida bra-sileira, expressam algumas partes do Estado, mas no expressam, efetivamente, partes da sociedade. Temos de pensar em coalizes que saibam manter o aparelho do Estado e uma ideia de Estado no centro, mas que no se limitem a isso; que tragam para o palco do projeto de desenvolvimento aquelas foras sociais que no esto necessariamente representadas no aparelho de Estado ou no sistema poltico do pas.

    Como fazer isso? Como operacionalizar tal perspectiva? Teremos de esquen-tar um pouco nossas cabeas para descobrir um modo de trazer com serieda-de e democraticamente para o palco da discusso, pedaos da sociedade que

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    parecem ter dificuldade para se agregar. Porque a sociedade a cuja constituio estamos assistindo uma sociedade de indivduos, no uma sociedade que se deixe modelar, como antes, pela dinmica e pela cultura das classes, ainda que as classes existam e continuem a ser fundamentais. Mas os indivduos esto soltos das classes, esto soltos dos grupos de referncia, das organizaes, por mais que se relacionem com elas.

    meio paradoxal, mas vivemos em uma sociedade hiperfracionada e muito conectada. Todo mundo est interligado e encaixado. No entanto, so baixas as taxas de lealdade. Onde est a adeso aos parmetros institucionais? Como promover o ingresso organizado dos pedaos de uma sociedade que se est con-vertendo em uma sociedade de pedaos que so indivduos, que formam muitas vezes grupos fugazes, nos quais se compartilham desejos, mas no pautas de ao?

    Trata-se, portanto, de um exerccio complicado. Precisamos de um desen-volvimento que seja estatal, que tenha uma dose expressiva de conduo do Esta-do, de interveno de seus aparatos, mas que no se reduza a isso; que produza e traga consigo coalizes que sejam supraestatais, que agregue os mltiplos pedaos de sociedade e encontre um jeito de se disseminar. As instituies que daro re-gras e operacionalidade ao desenvolvimento tero de ser mais amplas do que as instituies polticas, mesmo que venhamos a reformar a face sistmica (as regras do jogo) da poltica no Brasil.

    Ganharemos mais se melhorarmos o sistema educacional. A institucionali-dade mestra do desenvolvimento o sistema educacional, a comunidade acad-mica, cientfica. Essa rea que no imediatamente poltica pode interagir com o sistema poltico, pode participar dessa coalizo maior do que a coalizo promovida pelo aparelho do Estado, e pode seguramente dar uma instituciona-lidade forte para o desenvolvimento. Esta, no entanto, uma institucionalidade que ter de ser no apenas criada, mas educada para vivenciar isso e se tornar, digamos, desenvolvimentista.

    Ela no est preparada para isso por diferentes motivos, por algumas des-graas que vm do passado, outras que podem ser atribudas aos governantes ao longo do tempo, ao Estado e organizao das escolas. Mas o sistema educacional tambm vtima de um processo autoimune de inflamao, por problemas que esto dentro dele e dependem dele, e que o paralisam e enfraquecem na medida em que no so resolvidos. Porque no sistema educacional tambm h um mundo de dissonncias, tambm ali se vive em situao de sofrimento organizacional, ou seja, tudo muito difcil, tem um custo muito alto e um rendimento muito baixo, com o que se cria um clima insuficiente para que se produzam lealdades e projetos coletivos, para que as pessoas se agreguem em torno de algumas coisas que tenham a ver com o bem comum.

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    Hoje o palco das organizaes tambm est individualizado e todo esforo para superar isso altamente custoso e demorado. Vivemos um momento muito paradoxal no mundo, com vantagens e desvantagens que se acumulam sem muita clareza. Reitero a ideia-fora desta exposio: este um mundo que est roubando da sociedade as chances que ela tem de se agregar em torno de algumas ideias, como por exemplo, a de desenvolvimento. Ele tambm est reduzindo, como consequncia lgica, a capacidade que os governos tm de governar. A au-sncia de governo ou os erros governamentais que podemos contabilizar no so apenas provenientes da eventual incompetncia dos governantes, por mais que ela possa ser denunciada, mas so problemas que derivam da estrutura da vida. Se hipoteticamente pudssemos ficar trocando sem cessar os governantes, no acredito que teramos ganhos substantivos em termos das polticas pblicas. Elas seriam mais ou menos as mesmas, e obteriam mais ou menos os mesmos resulta-dos, porque hoje o poder tem menos poder, o poder poltico tem menos poder e est o tempo todo sendo atropelado pelo poder da economia, pelo poder dos indivduos, o que complica bastante a organizao da vida coletiva.

    Tudo isso paradoxal porque ao mesmo tempo em que podemos registrar esse gargalo, podemos perceber que est nascendo um novo tipo na sociedade com o que se est reinventando o protesto, o conflito, as formas de contestao, de confrontao. Estamos no comeo desse espetculo, e no comeo dos espe-tculos histricos todas as coisas tendem a ganhar um grau de impreciso, uma dificuldade muito grande de se traduzir em termos de comunidade. Creio que est a o impasse maior da discusso a respeito do desenvolvimento.

  • captulo 5

    DESENVOLVIMENTO, ESTADO E SOCIEDADE: AS RELAES NECESSRIAS, AS COALIZES POSSVEIS E A INSTITUCIONALIDADE REQUERIDA1

    Francisco de oliveira

    Vou direto ao ponto: eu no queria estar na pele do Ipea, isto , a de um autor em busca de um personagem.2 Um autor tecnicamente preparado em busca de um personagem, que o desenvolvimento. Isso uma situao extremamente custo-sa, desconfortvel, como talvez nunca tenha se apresentado na histria brasileira, exatamente pelas razes que Marco Aurlio to bem cercou e explicitou, pelo que ele chamou, tomando emprestado de Zygmunt Bauman, de vida lquida, um enigma torturante que come vocs diariamente.

    Como comeou tudo isso? No uma histria muito longa. No Brasil te-mos a mania de remeter para o passado, l na escravido, mas no foi, no. Isso se passou aqui, h 30 anos vem se desenvolvendo e tem um ponto de inflexo. Este ponto foi a destruio da capacidade do Estado brasileiro; se situa na transio de Fernando Collor para Fernando Henrique. a que foi dada uma paulada fundamental que desmontou as estruturas do Estado. Aquele enorme esforo ins-titucional, histrico, que custou vidas, que custou geraes e que no foi fcil, foi desfeito de um momento para o outro.

    Da a consequncia importante que as polticas subsequentes do governo Lula s podem ser da vida lquida, que elas s podem ser funcionalizao da pobreza, ser Bolsa-Famlia e outros quetais para tentar transformar esse lqui-do em algo concreto. O projeto Lula teria sido outro se as condies do Estado brasileiro no tivessem sido despedaadas naquele momento. claro que tem a ver com a internacionalizao, com a globalizao, com todos esses processos.

    1. palestra proferida no Seminrio Desenvolvimento, Estado e sociedade: as relaes necessrias, as coalizes possveis e a institucionalidade requerida, ocorrido no auditrio do Ipea, em Braslia, no dia 17 de junho de 2008.2. o autor faz referncia a pea de luigi pirandello intitulada Seis personagens procura de um autor (Nota dos organizadores).

  • 58 Dilogos para o Desenvolvimento

    A tem um ponto de inflexo fundamental, porque aquele fantasma havia sido ma-terializado por sculos de histria nacional, por esforos desesperados de conseguir chegar ao padro que, segundo nos diziam, todos os pases deveriam alcanar. E o trgico no capitalismo que devem ir mesmo, seno voc fica jogado ali onde s h choro e ranger de dentes, seno voc fica na vida lquida. Se no tentar-mos alcan-los, essa a tragdia, a seremos reduzidos a uma ndia de menores propores. J somos quase: as nossas cidades j so acampamentos. Elas no so mais cidades, elas so acampamentos onde cada um faz o que pode custa do outro, porque a caracterstica do sistema capitalista, como ele divide a sociedade, que, ao contrrio do que pensvamos, ns socialistas, internacionalistas de longa data, de cem anos atrs, a misria s rouba do miservel, no rouba do rico. O crime s se d entre os miserveis, no se d do miservel para o rico. Ento essa sociedade lquida, ou uma sociedade de exceo,3 como diria Agamben, perpetra essa perversidade.

    A construo do Estado nacional desenvolvimentista sem recursos foi um esforo para sair daquela situao e tentar construir uma sociedade onde os desti-nos no fossem desse indivduo lquido. Isso foi detonado e tem consequncias muito srias para decifrar esse enigma. Porque planejar, eu tambm j passei por cursos de planejamento, sou mais velho do que vocs e sou calejado. Tem um co-mercial do PPS que diz: planejando d certo! Doce iluso! Doce iluso! Planejar no nada do que aprendemos nos manuais de planejamento. E eu fiz dos bons! Eu segui o que de melhor o pensamento latino-americano criou no sculo XX. Mas planejar no nada disso.

    Planejar escolher, planejar , usando uma palavra mais forte, discriminar. Voc tem de discriminar, e discriminar contra algum e a favor de algum. E a vida lquida torna impossvel voc discriminar e escolher, porque se trata exa-tamente de indivduos lquidos e no h escolhas. O Estado se dedica a uma tarefa impossvel, que exatamente, seguindo essa pauta, de atender a cada indi-vduo. impossvel! A se multiplicam as ONGs, os programas focais, nenhum deles chega ao alvo, nenhum deles consegue o objetivo, que retirar o indivduo da vida lquida nenhum deles consegue.

    Pelo contrrio, se cria um efeito perverso pelo qual o que voc faz para manter a pobreza, no para elimin-la. para mant-la em nveis razoveis, em nveis decentes. Vou usar uma coisa muito forte: para, como diz o presidente Lula, dar um prato de comida a cada um. Isto o fim da picada! Isto o Estado realmente no pode fazer a no ser recriando, no o indivduo, mas os grupos.

    3. o filsofo italiano Giorgio agamben, seguindo a trilha de Walter Benjamin em suas teses sobre a Histria, defende a ideia de que o estado de exceo, aquele no qual a normalidade jurdica suspensa, ou seletivamente empregada pelo poder soberano, tornou-se o paradigma poltico dominante do mundo contemporneo (aGaMBEN, Giorgio. Estado de exceo. So paulo: Boitempo, 2004.) (Nota dos organizadores).

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    Recriando de alguma maneira as coletividades por meio das quais, e pelas quais, a ao universalizadora pode atuar e chegar a resultados.

    Ao longo dos ltimos anos, qual foi a nica reduo da desigualdade que se operou no Brasil? Os estudos do Ipea dizem, s os benefcios da seguridade social conseguiram esse objetivo, nenhum outro. Nenhum dos programas focais, ne-nhum dos programas funcionais conseguiu o mais medocre resultado. S aquele que realmente saiu do estado lquido e atacou de frente o problema, que o lugar desse indivduo na classe, nesta sociedade. No houve nenhum outro resul-tado, nem pelo salrio real direto, nem pelas outras atividades de benefcio, s ali onde a sociedade em perodos passados se organizou no para socorrer, porque esse outro mito perigoso que j devamos ter aprendido com Keynes a teoria geral est fazendo 70 anos. Pelo amor de Deus! Pensar que o social est fora da economia! Quando eu vejo os ministros, da Fazenda e outros, falarem uma bo-bagem dessas... O social tornou-se, no capitalismo contemporneo a partir dos anos 1930, a alavanca estrutural da economia. Qual o segundo oramento da Repblica? possvel considerar a seguridade social, o segundo oramento da Repblica, como algo fora da economia? a alavanca fundamental da economia, muito mais do que o setor privado, muito mais! Mas a paulada que desfez essa estrutura tornou o enigma mais difcil, mais estranho e, redundantemente, mais enigmtico.

    Quais so as foras a quem voc deve beneficiar? Contra quem voc deve discriminar e a favor de quem voc deve escolher? E ns continuamos seguindo modelos e pistas de baixa complexidade quando o contrrio que se deve fazer. Ns temos de trabalhar com os enigmas mais complexos e no com os mais fceis. fcil nomear os atores que esto na cena social e econmica brasileira. Eu posso dizer do alto da minha indignao que foram os banqueiros, o agronegcio. Tudo bem, e da? O que que eu fao? Como discrimino? Como escolho? At porque esto bastante emaranhados. uma caracterstica do capitalismo contemporneo que voc pode dar a paulada na cabea de um e acertar o outro, naquele que voc no queria acertar. Portanto, no se trata de reduzir a modelos simples, mas tratar a questo com uma nova complexidade. uma sociedade lquida, mas altamen-te complexa, na qual no fcil discriminar, no fcil fazer escolhas, que toda a tarefa do planejamento. Sabemos distinguir os interesses? Dificilmente!

    O capitalismo contemporneo no Brasil operou aquilo que outros perse-guem h sculos. Operou o milagre de fazer com que os interesses da frao orga-nizada da classe trabalhadora coincidam hoje com os do grande capital. Como isso se faz? Onde isso se fez? Onde esses interesses coincidem e se reforam? Ns fizemos, o Brasil fez. Pode-se erguer esse galardo mais alto do que a bandeira que est na Praa dos Trs Poderes. Os interesses de uma frao organizada dos

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    trabalhadores so os mesmos do grande capital por meio dos fundos de penso. simples: chega um projeto no BNDES, no seu Conselho de Administrao, no qual tm assento as centrais sindicais, e o projeto vai para apreciao dos conse-lheiros. O projeto para, digamos, homenagear o Caldo Maggi,4 para expandir o agronegcio no Mato Grosso. Vai a julgamento e l esto os conselheiros das centrais sindicais, que vo decidir em torno do seguinte dilema: se eu negar esse projeto, as aes dos fundos que fazem parte do portflio do meu fundo de pen-so podem no se valorizar; se eu aprovar, elas certamente vo se valorizar, mas eu mato 50 ndios, desemprego 200 camponeses. Pra onde devo decidir? Ele decide, inevitavelmente, a favor do projeto que d a maior taxa de retorno. fatal! E se no fizer isso, um mau gestor. Se fizer, um assassino. Esse o dilema.

    O fantasma tornou-se mais espesso, mais confuso, menos delineado, no se v sua face. Isso cabe s decises que os governos tomam todos os dias. No est se decidindo sobre as bobagens que preenchem a pauta de trabalho do Congres-so. Est se decidindo sobre questes reais que afetam o cotidiano. Como disse o economista Luiz Gonzaga Beluzzo: fenmeno interessante que no o Estado que perturba a economia, a economia que perturba o Estado. o inverso! E na velha piada infame, neste caso o rabo que balana o cachorro! Como assim? Du-rante a crise poltica de quatro anos atrs, quando eu ouvia os comentrios, acha-va um escndalo o que todos os comentaristas, todos os ncoras de televiso, toda a imprensa era unnime em dizer: essa crise, qualquer que seja o seu desfecho, no deve afetar a economia. Ora! Uma crise poltica que no afete a economia. No tem mais o que fazer! Pois a poltica exatamente a inveno grega funda-mental por meio da qual voc corrige as assimetrias que a economia cria. Isto que poltica! Poltica no fofoca de Renan Calheiros. Poltica decidir sobre isso. Ora, se voc retira da poltica essa capacidade, no h mais poltica. Acabou. isso o que Marco Aurlio estava tentando nos dizer. Anula-se a capacidade da poltica e, portanto, o enigma permanece: como planejar? O que escolher? O que hierarquizar? No sabemos mais.

    A sociedade ganhou em complexidade. Para Juscelino Kubistchek, o heri desta cidade,5 era fcil discriminar. Aqui no cerrado era um imenso vazio, as la-cunas do setor industrial eram visveis e enormes, era relativamente fcil. Assim mesmo, ateno: custou-lhe trs tentativas de golpe de Estado. Mesmo sendo fcil escolher, mesmo sendo fcil discriminar. Imagine hoje com essa teia de interesses extremamente emaranhada, que se refora, e que na verdade expulsa o Estado das decises. A no d outra: nesta sociedade lquida, o que sobra ao Estado

    4. o autor faz um trocadilho com o nome de Blairo Maggi, governador do Mato Grosso (Nota dos organizadores).5. a palestra aconteceu em Braslia (Nota dos organizadores).

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    aquilo que Agamben chama de a vida nua.6 O que sobra socorrer os pobres no extremo da linha. O que sobra no deixar que morram de fome no extremo da linha. Mas resgat-los, retir-los da pobreza no mais tarefa do Estado. O Estado renunciou e ns renunciamos a isso. Ns renunciamos por meio de nossas aes e de nossas opes. Esse o dilema real.

    O Brasil cumpriu a misso de fio a pavio. Esta , certamente, depois da ndia, a sociedade com organizao democrtica mais completa. Temos tudo. O Brasil cumpriu tudo, tem instituies polticas notveis, firmes. O eleitorado brasileiro, paradoxalmente, cresceu enormemente devido obrigatoriedade de votar. E a Folha de S. Paulo me vem com essa besteira neoliberal de que o voto deve ser livre, de vota quem quiser. Wanderley Guilherme dos Santos mostra como, sistematicamente, a democracia brasileira cresceu, expandiu-se. Voc pode votar hoje no Maranho alm da opo de Sarney ou Sarney. Quem fez isso? O crescimento do eleitorado brasileiro. O crescimento da democracia brasileira, a fundamentao das instituies democrticas do Brasil. De forma que cumpri-mos a lio de casa perfeitamente. Temos todas as instituies necessrias para um bom funcionamento da sociedade e da economia. S no temos o personagem, s falta ele. Porque este est sendo roubado pelo predomnio da economia. Enquan-to todos os ministros e qualquer funcionrio da Unio podem ser processados, o presidente do Banco Central no pode. Ele ganhou estatuto de ministro para qu? Para blindar a economia. Para qu? Para retir-lo da ao poltica ao alcance dos cidados.

    E o nosso ministro da Fazenda que um homem honrado, devo dizer logo de sada, pois algum pode pensar que eu estou aqui com ressentimento props o Fundo Soberano.7 O que quer dizer Fundo Soberano? Voc aprende com Ber-told Brecht: leia pelo avesso que a verdade sai! Fundo Soberano quer dizer investir na soberania dos outros. O Fundo Soberano sai do alcance dos cidados. Ele vai estar no exterior para aes no exterior. retirar de novo uma parte importante do PIB brasileiro do alcance dos cidados. isso o Estado da vida lquida. A voc desmonta o pouco que a sociedade conseguiu duramente construir para sair de uma vida lquida pretrita, anterior, onde era cada um por si e, me descul-pem os crentes, Deus contra. Agora ns voltamos a isso. A confuso to grande que um diz que para uma finalidade e o outro diz que para outra. O ministro

    6. agamben define como vida nua, a vida pura, isto , a simples vida, desprovida de todos os seus atributos polticos. a vida nua, zo para os gregos, se contrape ao bos, a vida qualificada, aquela exercida dentro dos muros da polis (aGaMBEN, Giorgio. Homo sacer I. o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: uFMG, 2003) (Nota dos organizadores).7. os fundos soberanos, tambm conhecidos como Sovereign Wealth Funds (SWF) ou Fundos de Riqueza Soberana (...) so, pois, um patrimnio em moeda estrangeira, em geral aplicado fora do pas. administrados por organismo estatal, geralmente so utilizados no apoio produo nacional ou em projetos internacionais de interesse do governo que os detm. (BEllo, teresinha da Silva. um fundo soberano brasileiro: o momento?. Texto para Discusso FEE, n. 25, jan. 2008) (Nota dos organizadores).

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    da Fazenda, o presidente do BNDES e o presidente do Banco Central, ningum se entende a respeito do Fundo Soberano. Mas no tenham dvida que ele ser criado. Vai tirar uma parcela a mais da riqueza brasileira produzida pelo conjunto da sociedade das decises polticas que dizem respeito a ela. Uma espcie de cul-minao desse processo glorioso.

    Hoje, seria fcil discriminar portanto, planejar. Todas as lacunas anteriores foram preenchidas, mas falta o personagem. Este personagem cabe institucio-nalidade poltica tambm, largamente completada, sobretudo completada como no Ocidente, quando entrou para valer na arena poltica o partido de massas; enquanto isso, a democracia brasileira era algo como perfume francs: uma coisa excitante, mas evanescente. Mas entrou para valer o partido de massas na arena poltica e a comeou a democracia. Portanto, havamos completado a estrutura poltica necessria para essas coalizes, para essas escolhas, e a, de repente, nos escapou das mos, foi-se por entre os dedos. Como explicar isso?

    Explica-se, primeiro, pelo fato de que a estrutura fundamental que suporta-va o projeto desenvolvimentista brasileiro, sem vergonha e sem rebuos, foi para o espao, foi detonado. Reconstru-lo no fcil, nem necessrio, pelos velhos caminhos. Por onde ir? Os movimentos sociais que deram a pauta em algum mo-mento foram tragados, s restou o MST, e ele anacrnico. O movimento social vigoroso que restou rigorosamente anacrnico. Ele quer de novo o pas de trs alqueires e uma vaca. Este no mais o problema, esse problema foi superado, est para l disso. O Brasil um paradoxo constante, um pas de famintos que o maior exportador mundial de carnes. Quem j viu uma coisa dessas? Portanto, o projeto dos trs alqueires e uma vaca est superado. Trata-se de outra coisa: trata-se de realmente apropriar de forma pblica e democrtica essa superao. colo-car o Maggi no fundo da panela, de onde ele nunca devia ter sado, e apropriar esse enorme avano que o agronegcio fez. Deixar de pensar em escolhas fceis; elas no so mais fceis, elas requerem uma alta complexidade poltica e social.

    Uma vez, eu estava em um seminrio do PT discutindo com ningum me-nos que Joo Pedro Stdile; estava discutindo um paper, tentando desemaranhar a estrutura de classe brasileira e Joo Pedro veio e me disse facilmente: existe a burguesia, os latifundirios... e eu disse: que fcil Joo! E por que voc no pega eles e os enforca todos como prometeu Voltaire um dia? Enforca o ltimo bur-gus nas tripas do ltimo cura! Por que voc no faz isso? Porque voc no pode, Joo! Porque os seus assentamentos s existem se o Estado brasileiro der dinheiro, e para de conversa.

    No , portanto, voltar, nem dar um passo atrs. O velho mestre insuper-vel, e o ttico mais eminente que a poltica mundial criou, chamava-se Vladimir Lnin e ele disse que era preciso dar um passo atrs e dois para frente. isso que

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    temos de fazer! um passo atrs e dois para frente e vocs do Ipea esto com a massa na mo. Vamos amassar essa massa, seno s haver espao para polticas funcionais. Vocs sero convocados para desenhar em mincias a cesta bsica. O salrio mnimo decretado por Vargas em 1940 tinha mais dignidade semntica, ele chamava-se mnimo mesmo. E no essa histria de cesta bsica; isso tuca-ns segundo Jos Simo, que o melhor analista poltico do Brasil.