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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL MARCIO GOLDMAN A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL DA PESSOA NO CANDOMBLÉ RIO DE JANEIRO 1984

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Page 1: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MARCIO GOLDMAN

A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL

DA PESSOA NO CANDOMBLÉ

RIO DE JANEIRO

1984

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MARCIO GOLDMAN

A POSSESSÃO E A CONSTRUÇÃO RITUAL

DA PESSOA NO CANDOMBLÉ

Dissertação de mestrado apresentada ao

Programa de Pós-Graduação em

Antropol ogia Social do Museu Nacional

da Universidade Federal do Rio de

Janeiro.

RIO DE JANEIRO

1984

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RESUMO

Este trabalho visa desenvolver, em esboço, os princípios de

uma teoria antropológica da possessão. Para isto, toma como

ref erência empírica o modo de manifestação do êxtase nos chamados

cultos afro-brasileiros, especialmente no Candomblé, e tenta a

partir daí estabelecer qual é a estrutura básica do transe, bem

como sua posição no campo dos fenômenos ditos religiosos. O

pr i meiro capítulo é uma revisão bibliográfica das diversas

abordagens sobre a possessão na teoria antropológica geral. Adota-

se uma perspectiva histórica e o recorte é efetuado em termos de

“esc olas” do pensamento antropológico. O segundo capítulo cerra

mais a questão, abordando as diferentes teorias elaboradas sobre o

êxtase pelos estudiosos dos cultos afro-brasileiros. A partir de

uma cr í tica de todas as abordagens da possessão, tanto das mais

gerais quanto daquelas desenvolvidas no Brasil, pretende-se propor

um modelo teórico que não incorra nas principais dificuldades

detectadas nos esquemas analisados. Para isto, apresenta-se no

terceiro capítulo um “esquema etnográfico” dos fatos relativos à

possessão no Candomblé, esquema produzido a partir do confronto

entre a experiência de campo do autor com aquelas fornecidas por

outros estudiosos do tema. Finalmente, o quarto capítulo é

dedic ado à tentativa de elaborar uma antropologia da possessão,

tentando ao mesmo tempo definir estruturalmente o Candomblé,

encontrar o lugar do transe em tal estrutura e extrair algumas

conclusões de caráter mais abrangente acerca dos mecanismos de

funcionamento dos sistemas religiosos.

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AGRADECIMENTOS

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e

Tecnol ógico (CNPq) tornou possível minha primeira experiência de

campo com o Candomblé através de uma série de bolsas de pesquisa

que f i nanciaram meu trabalho em Tribobó. A Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal (CAPES) do MEC possibilitou

materia l mente a conclusão dos créditos do Mestrado através da

concessão de bolsas de estudo. A Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesqu i sa em Ciências Sociais (juntamente com a

Fundação Ford) forneceu a Dotação de Pesquisa essencial para o

trabalho de campo em Ilhéus. O Gay-Lussac Instituto de Ensino

Superior (GLIESP) assumiu as de spesas relativas à datilografia e à

reprodução deste trabalho. A todos estes órgãos e instituições,

bem como ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do

Museu Nacional, devo portanto o suporte material que tornou

exeqüível esta dissertação. Agradeço também à Marisa pela

cuidadosa datilografia dos orig i nais.

Versões preliminares do primeiro e do quarto capítulos foram

apresentadas em cursos dos professores Gilberto Velho e Luís

Fer nando Dias Duarte, respectivamente; a eles agradeço portanto a

oportunidade para determinar, de modo abrangente, o objeto teórico

e o ponto de vista adotados nessa dissertação. Foram contudo, sem

dúvida, as inúmeras conversas com Ovídio Abreu Filho que

alarg aram, esclareceram e precisaram este objeto e este ponto de

vista, fornecendo, em parte, a este trabalho sua forma e postura

finais. É preciso também registrar minha enorme gratidão ao Dr.

Roberto Augusto da Matta, pela atenção amiga com que me honrou;

infeli zmente não me foi possível dedicar aqui a devida atenção a

seus trabalhos, reconhecidamente importantes, sobre ritual e

pessoa. E isso, sem dúvida, devido às óbvias diferenças existentes

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ii

entre o nível em que eles se situam e aquele, muito mais limitado,

que me contentei em adotar aqui. Agradeço também ao Dr. Peter Fry

por ter aceito part i cipar da banca examinadora desta dissertação.

A meu orientador de curso e de dissertação, Eduardo Viveiros

de Castro, agradeço não apenas indicações e sugestões importantes

para a realização desta dissertação, mas também, e acima de tudo,

o fato de ter me oferecido um elemento essencial para o

desenvo l vimento de qualquer trabalho intelectual — a liberdade de

pensar e, consequentemente, de errar, no duplo sentido da palavra,

soz i nho; virtude que o exime, evidentemente, de qualquer

responsabilidade pelas hipóteses aqui l evantadas.

Nivaldo Pereira Bastos, Camuluaji, zelador-de-santo do Ilê

de Obaluaiê em Tribobó, ofereceu meu primeiro acesso ao complexo

universo simbólico do Candomblé, sendo um dos responsáveis diretos

pelo fato de eu ter por ele me interessado teoricamente. Depois

dele, Dona Ilza Rodrigues, Mametu Mucalê, mãe-de-santo do terreiro

Tombenci de Euá, em Ilhéus, mostrou-me que o Candomblé é muito

mais que um sistema cosmológico ou mesmo uma religião, mostrou-me

que ele é também uma prática e um modo de vida. A estes dois

Vodunsis que me honraram com seu saber, sua dedicação, sua

paciência e, sobretudo, com sua amizade, devo o pouco que conheço

de sua r eligião.

Em Ilhéus, foi imprescindível o apoio de Líscia Martins e de

toda sua família, bem como o de Mário Gusmão e Valdir Silva que me

conduziram ao Tombenci. Também foi inestimável o auxílio e a

ami zade dos membros deste terreiro, especialmente a de Gilmar e

Gilvan. A todos eles é difícil agradecer, pelo muito que fizeram.

A Wagner Neves Rocha devo, além de uma amizade profunda, o

interesse teórico pelos cultos afro-brasileiros. Durante três anos

fui seu assistente de pesquisa, e quase tudo do que é dito nesta

dissertação foi por ele sugerido. No entanto minha incapacidade

para desenvolver suas idéias e sugestões com a sofisticação

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iii

teór i ca com que foram propostas me faz lamentar que este trabalho

não faça, nem de perto, justiça ao que ele me ensinou.

Finalmente, há alguém que, ao lado das instituições citadas,

também contribuiu materialmente para este trabalho; que, junto às

pessoas mencionadas, me ajudou a entender a Antropologia e o

pr óprio pensamento teórico; que, melhor do que eu, captou junto

aos informantes o sentido do Candomblé. Por tudo isso, eu deveria

ta mbém agradecer a ela. Mas porque ela me ofereceu muito mais do

que isso, este trab alho é a ela dedicado.

Para Tânia, portanto.

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APRESENTAÇÃO E INTRODUÇÃO

Kuba ki kutexi ê,

Kuenda ki kujimbirilê 1

Se é verdade, como disse Lévi-Strauss, que o modo particular

como cada investigador pensa e escreve pode abrir novas

perspect i vas de estudo, creio ser importante no início deste

trabalho precisar este meu “modo de pensar”, bem como as

contingências pe ssoais e intelectuais que conduziram à elaboração

desta dissertação. Desse modo será possível esclarecer

preliminarmente uma série de questões que o desenrolar do trabalho

inevitavelmente colocará. Daí “apresentação” e “introd ução” virem

juntas.

O ponto de partida desta dissertação está localizado numa

pesquisa efetuada entre 1978 e 1980, sob orientação e coordenação

de Wagner Neves Rocha, num pequeno terreiro de Candomblé de nação

Angola situado em Tribobó, nos arredores de Niterói — o Ilê do

Obaluaiê. Havendo três assistentes de pesquisa, o trabalho foi

di vidido, de modo mais ou menos aleatório, entre nós, tendo tocado

a mim a coleta e análise de dados relativos ao transe e à

possessão, bem como daqueles relacionados a estes fenômenos.

Assim, comecei a me interessar por esta questão e dediquei um bom

tempo à leitura das teorias antropológicas sobre o tema, e também

aos trabalhos relativos aos cultos afro-brasileiros e ao lugar da

possessão em seu interior. Esta leitura, que acabou gerando os

dois primeiros capítulos deste trabalho, teve simultaneamente o

efeito de demon strar a existência de um rico universo simbólico

1 Dar não é desperdiçar; andar não é perder-se (dito do

Candomblé).

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conectado ao êxtase, e a produção de uma sensação de insatisfação

generalizada. Insatisfação devida basicamente à disparidade que

parecia existir entre os dados relativos à possessão — de uma

riqueza extraordin ária — e as teorias básicas simplificadoras que

procuravam deles dar conta. Assim, acabei constatando a existência

de não mais de dois modelos explicativos para o êxtase, seja entre

os autores que estudaram especificamente os cultos afro-

brasileiros, seja entre aqueles que dedicados à análise do

fenômeno em outros grupos e s ociedades, ou mesmo interessados no

desenvolvimento de um modelo geral de expl i cação.

O primeiro modelo reduzia a possessão à doença, ora tratando-

a diretamente como enfermidade mesmo (geralmente doença mental),

ora concedendo-lhe o estatuto de forma de tratamento “pré-médico”

para perturbações psico-fisiológicas. Já a segunda via explicativa

buscava antes dar conta do êxtase tentando vê-lo, e ao culto que o

encerra, como um reflexo — direto ou invertido, dependendo do

autor em questão — da “estrutura social” abrangente. Os dois

modelos me pareceram bastante decepcionantes. Não, certamente,

porque e stivessem intrinsecamente errados: eu conhecia

concretamente, em minha experiência de campo, as ligações entre

possessão, doença e manipulação sócio-política. A questão parecia

ser antes, como eu havia aprendido na obra de Lévi-Strauss, que

estas abordagens ap enas contornam o fenômeno visado. Ora, eu

também havia aprendido como este autor que a análise das

implicações , históricas ou s ociológicas, de um fato social devia

ser precedida pela determinação de sua estrutura última. Era

justamente isto que as teorias propostas não conseguiam atingir.

O problema me parecia teoricamente ainda mais grave na medida

em que era possível constatar que, no que diz respeito aos estudos

afro-brasileiros, uma espécie de bifurcação teórica havia se

pr oduzido, com o tempo, em seu direcionamento. Pois se os autores

mais antigos, a despeito do evolucionismo e do racismo contidos em

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seu modo de estudar os cultos, ainda pareciam crer na

possibilid ade de uma análise teórica do material coletado, isto

não parecia ocorrer mais a partir da década de 70. Alguns

pesquisadores co ntentavam-se em descrever o sistema da melhor

maneira possível, chegando mesmo a sustentar a impossibilidade de

um trabalho teór i co que não “violentasse” a riqueza e a

especificidade do universo estudado. Tratava-se então do que se

convencionou chamar uma “v i são de dentro”. Por outro lado, os

estudos de caráter mais sociológico ou micro-sociológico (estudos

de federações, dramas, acusações etc.) só se interessavam pelas

ligações exteriores do culto sem se preocupar muito com sua

sistematicidade específica. Pareceu-me assim que faltava uma

abordagem antropológica da que stão, na medida em que a

Antropologia moderna se caracteriza, creio, justamente em unir o

que as duas perspectivas mencionadas separam: dar conta

teoricamente , isto é, num plano distinto do v i vido pelos

informantes, de um conjunto de dados que devem contudo ser

integralmente respeitados em sua particularidade. Em outros

termos, trata-se sempre de fundir “explicação” e “compree nsão”.

A pesquisa no Ilê de Obaluaiê levou-me primeiramente a supor

que a chave explicativa do Candomblé, de um ponto de vista

estr i tamente antropológico, poderia ser encontrada no sistema de

classificação e na cosmologia adotados no culto. Para isso

contr i buíram certamente alguns caracteres pessoais do pai-de-santo

do terreiro, nosso principal informante, e homem dedicado a

elucubr ações místicas e à construção de intrincados sistemas

cosmológicos. Não que ele os tivesse prontos, ou que se tratasse

de pura inve nção pessoal: os esquemas eram flagrantemente

construídos ao longo das entrevistas e conversas, e

progressivamente aperfeiçoados. Por outro lado, não se deve supor

que isto retire de tais esquemas t odo valor etnográfico. Ao

contrário, são documentos importantes na medida em que, embora

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sintetizados individualmente, são “bricol ados” a partir de um

conjunto e de uma estrutura tradicionais. Não sendo o Candomblé

uma religião codificada, eles fornecem uma das únicas vias de

acesso possíveis a seu sistema de pensamento. É i nclusive com este

espírito que eles são utilizados no terceiro capítulo deste

trabalho. No entanto, esta peculiaridade demonstr ava — o que só

fui perceber bem depois — a quase inexistência de grandes sistemas

cosmológicos prontos e acabados no Candomblé, ponto freqüentemente

desconhecido ou mal interpretado pelos pe squisadores que trabalham

com os pouquíssimos centros de culto onde tais esquemas parecem de

fato existir e desempenhar uma função i mportante. E, apesar disto,

trata-se, como veremos, de ponto fundamental para a compreensão de

todo o sistema.

Esta impressão só foi de fato confirmada quando de minha

segunda experiência de campo, no terreiro Tombenci de Euá, em

Ilhéus, no sul da Bahia. Tendo permanecido ali apenas três meses

(contra os quatro anos no Ilê de Obaluaiê), o contato com o grupo

foi muito mais intensivo do que na pesquisa anterior, o que tornou

possível compreender que a essência última do Candomblé devia ser

buscada em outra parte que não sem sua cosmologia ou mitologia. O

Tombenci é um terreiro muito diferente do Ilê de Obaluaiê. Trata-

se de um centro “familiar” cuja mãe-de-santo já faz parte da

te r ceira geração no comando, e cuja organização repousa sobre os

quatorze filhos carnais da chefe do terreiro e em sua parentela.

Assim, em Ilhéus ressaltava muito mais o aspecto vivido do

Candomblé, enquanto em Tribobó sua faceta litúrgica era muito mais

pronunciada. Além disso, e de modo talvez coerente com sua ênfase

no vivido, a mãe-de-santo do Tombenci não parecia muito preocupada

com detalhes de doutrina ou cosmologia; seu interesse se voltava

marcadamente para o lado ritual do culto. Isto começou a me fazer

levar a sério a afirmativa, ouvida por todo pesquisador de

Candomblé, de que o importante nesta religião é o “saber fazer” os

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rituais, saber secretíssimo a que só têm acesso os iniciados, e

que as informações dadas aos estudiosos — relativas geralmente à

cosmologia, mitologia e classificação de animais, plantas, etc. —

não passam de superfície visível de realidades muito mais

profu ndas.

Assim, se minha primeira experiência de campo muniu-me de

i nformações essenciais para a compreensão da estrutura do culto, a

segunda funcionou antes fazendo-me experimentar a realidade vivida

do Candomblé, consistindo portanto muito mais num “trabalho de

campo” no sentido clássico do termo. Foi este trabalho então que,

ao produzir, em escala minorada, este “choque cultural” de que

f alam os etnógrafos, me permitiu a leitura crítica de outras

etnografias acerca desta religião. Pois ainda que não haja termo

de comparação entre a pesquisa em sociedades indígenas e a

exper i ência com o Candomblé, esta última é também a única forma de

ensinar uma perspectiva crítica na consideração de dados

fornec i dos por outros pesquisadores. Deste modo, e ainda que este

trabalho não seja uma “etnografia”, a pesquisa de campo foi

esse ncial para sua elabor ação.

Através do confronto entre minhas próprias experiências de

campo e as leituras teóricas e etnográficas que eu efetuava

par alelamente, o plano desta dissertação foi então sendo

precisado. A primeira intenção foi basicamente produzir uma

etnografia do te r reiro de Ilhéus e tentar analisá-la da melhor

forma possível. Esta possibilidade contudo logo se afigurou

desanimadora. Em parte, é preciso confessá-lo, devido a uma certa

resistência pessoal a um trabalho estritamente empírico; mas em

parte também, e principa l mente espero, em função de uma sensação

de certa inutilidade que este tipo de trabalho provocava. Durante

as leituras acerca dos cultos afro-brasileiros, impressionou-me

sempre a insistência dos autores em apontar a enorme diversidade

que marcaria as manifest ações empíricas destas religiões.

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Sustenta-se que a cosmologia e o ritual variam enormemente de tipo

de culto a tipo de culto, e me smo de terreiro a terreiro. Ora,

minha experiência em Ilhéus, bem como a consulta às etnografias,

causou-me a impressão de que o i nverso parecia mais verdadeiro.

Pois o que impressiona de fato é que uma religião não codificada

formalmente e que, estruturalme nte, dá margem a uma enorme gama de

sínteses específicas, pudesse ser tão semelhante no Rio de

Janeiro, em Ilhéus, em Salvador, e em tantas outras partes. Deste

modo, compreendi que uma etnografia corria o risco de não passar

de pura repetição, acrescentada de alguns dados novos, daquilo que

tantos outros já haviam feito — e certamente bem melhor do que eu.

O segundo plano de elaboração do trabalho foi então imaginado

no extremo oposto do precedente. Pretendi neste momento elaborar

uma “análise estrutural” do Candomblé: tomar os sistemas de

cla ssificação aí em vigor como estruturas lógicas e desvendar as

leis ocultas que presidiriam a manifestação concreta de tais

sistemas. A leitura do importante trabalho de Claude Lépine

(Lépine, 1978 — este trabalho será analisado no Capítulo IV)

colocou contudo uma série de dúvidas a respeito da viabilidade de

um tal empreendime nto. Não que, teoricamente, ele não seja

possível, e Lépine consegue mesmo alguns resultados admiráveis. No

entanto, e é o próprio Lévi-Strauss que o sustenta, a despeito dos

críticos cegos para este ponto, o que distingue o estruturalismo

do puro form alismo é o rigoroso respeito que o primeiro é obrigado

a demonstrar frente aos dados empíricos e etnográficos. Isto

porque é só o te xto etnográfico que pode fornecer a posição

semântica de símbolos que, por possuírem por definição um

significado estritamente rel acional, apenas aí podem ter seu

sentido último desvendado. Neste caso, para legitimar uma

abordagem estruturalista do Candomblé, seríamos obrigados a

indagar qual é seu “contexto etnográfico”. Seria ele africano?

Brasileiro? E neste caso, qual? Baiano; Cari oca, etc.? A pergunta

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assume um ar tão estranho que é fácil perceber que a resposta é

obviamente impossível porque, submetido, a partir do processo de

escravização, a um complexo jogo histór i co, o Candomblé consiste

de fato numa síntese de diversos elementos de procedências

díspares. Assim, para que uma verdadeira análise estrutural — e

não formal — desse sistema seja possível um longo trabalho

histórico teria antes que ser efetuado, através do estudo

cuidadoso das formas de manifestação das religiões de or i gem

africana em seu solo natal, das transformações introduzidas pela

escravização, daquelas produzidas com a abolição, com a

i ndustrialização, etc. E ainda assim seria preciso distinguir

níveis, regiões de proveniência e de adaptação, misturas com

outros sistemas, e assim por diante. Só desse modo um “contexto”

poderia ser reestabelecido sem jamais termos a certeza de que as

coisas teriam se passado efetivamente desta maneira e não de outra

qualquer. O célebre trabalho de Roger Bastide (Bastide, 1960)

demonstra, para além de suas virtudes incontestáveis, a

dificuldade empírica — devida fundamentalmente a uma generalizada

escassez de documentos — de um tal empreendimento.

Finalmente, após estas duas tentativas, o plano do trabalho

se precisou. Situei-o num nível intermediário aos dois

precede ntes, decidindo que seria mais proveitoso tomar um traço

específico do culto — o transe, traço central — e elaborá-lo o

máximo poss í vel no sentido de conectá-lo com um teoria

antropológica. Esta dissertação não é portanto nem uma etnografia

nem uma etnologia, no sentido dado por Lévi-Strauss a estes

termos. Ou seja, não se trata nem da coleta e descrição de dados

relativos a um terreiro de Candomblé particular (muito menos ao

Candomblé em geral), nem da análise particular de tais dados.

Tenho de fato a pretensão de ter escrito um trabalho de

Antropologia , no sentido da construção de uma teoria geral de

determinada instituição cultural. Esta te oria geral, é verdade,

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está apenas esboçada, mas creio que esta dissertação só pode ser

compreendida se este pressuposto for lev ado em consideração. Caso

contrário, correrá o risco de ser julgada não pelo que pretende

ser, mas pelo que “deveria” ter feito, o que não seria muito justo

ou proveitoso.

Sendo assim, e embora a influência da obra de Lévi-Strauss

seja aqui evidente, seria errôneo, e mesmo, até certo ponto,

rid í culo, rotular como “estruturalista” este trabalho. Ele se

situa muitíssimo aquém de uma tal ambição e visa simplesmente

esclar ecer, do ponto de vista da Antropologia, a questão do êxtase

religioso, e, ao mesmo tempo, utilizar as manifestações concretas

do transe para repensar algumas questões chaves da Antropologia.

Eis tudo.

Estas colocações explicam, creio, o plano concreto desta

di ssertação que procura seguir o mais próximo possível a ordem de

constituição de minhas hipóteses acerca do fenômeno investigado. O

primeiro capítulo é uma resenha, bastante abrangente, das

difere ntes teorias antropológicas a respeito da possessão. O

recorte foi conscientemente efetuado em termos de “escolas” do

pensamento a ntropológico, colocadas segundo uma ordenação

histórica simples. Esta perspectiva, ainda que tenha alguns

inconvenientes, serviu para isolar os temas básicos que têm, de

Tylor a Luc de Heusch, direcionado os estudos antropológicos sobre

o êxtase religioso em suas diferentes formas de manifestação.

A partir da caracterização de duas vertentes básicas de

explicação — uma “medicalizante” e outra “sociologizante” — o

segundo capítulo procura investigar se e como estes dois modelos

se manifestam no caso das análises acerca do transe nos chamados

cultos afro-brasileiros. Constatando que estas análises

correspo ndem exatamente às teorias mais gerais sobre o fenômeno,

uma tentativa de crítica é elaborada, crítica que leva a precisar

o tipo de abordagem que se pretende adotar bem como o alvo visado.

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Isto significa que estes dois primeiros capítulos não são nem uma

análise de “campo intelectual”, nem uma simples “história das

idéias”, nem mesmo uma “arqueologia” desta área do saber. Trata-se

apenas de, através de uma leitura crítica de autores clássicos

(que me parece imprescindível numa dissertação de Mestrado),

determinar o objeto teórico a ser investigado e o tipo de análise

a ser utilizado em tal investig ação2.

Mas para que a análise teórica, esboçada no Capítulo IV,

f i casse clara e pudesse ser compreendida, o terceiro capítulo teve

de ser elaborado para fornecer os dados essenciais a partir dos

quais foram formuladas as hipóteses do capítulo seguinte. Não se

trata portanto — e este ponto é importante — de uma etnografia,

mas do que se poderia chamar um “esquema etnográfico” visando

ilustrar uma análise teórica. Os dados aí utilizados foram

colet ados basicamente no Ilê de Obaluaiê porque, como já foi dito,

o material doutrinário daí proveniente é mais abundante e rico em

detalhes. Acredito, apesar disto, que as conclusões teóricas

2 Notar-se-á uma diferença de estilo na apresentação das teses

mais gerais acerca da possessão, efetuada no Capítulo I, e aquela

das teorias desenvolvidas sobre os cultos afro-brasileiros

espec i ficamente, desenvolvida no capítulo seguinte. Neste último

caso, com efeito, as citações diretas serão mais freqüentes e mais

extensas, enquanto no primeiro será privilegiada uma forma mais

direta de exposição. Isto se deve a um duplo motivo: em primeiro

lugar porque há um esforço de aproximação no segundo capítulo, uma

tentativa de tratar mais de perto a questão do transe; em segundo,

porque — e isto não constitui a meu ver nenhum demérito — os

aut ores que trataram do êxtase no Brasil não apresentam nem a

sistematicidade nem o caráter explicitamente teórico daqueles que

tentaram esboçar uma teoria geral da possessão, o que se explica,

evidentemente, pela própria diferença de nível de abstração que se

pretende a t ingir em cada caso.

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apr esentadas no Capítulo IV possuem uma validade bem mais ampla do

que a estreita base empírica apresentada. Pois embora possa haver,

e haja efetivamente, diferenças importantes de terreiro para

terre i ro, tais diferenças não passam de manifestações concretas de

um esquema básico que permeia todas estas realizações empíricas. A

experiência no Tombenci de Ilhéus e a leitura das monografias

sobre vários terreiros convenceram-me que o modo pelo qual a

possessão foi encarada tem uma aplicabilidade bastante abrangente,

desde que se o aplique num nível mais profundo do que a pura

superfície dos dados brutos.

Estas últimas observações conduzem diretamente a um dos temas

recorrentes na literatura acerca dos cultos afro-brasileiros, a

questão da “pureza” dos terreiros investigados e do material

col etado. Por “pureza” entende-se geralmente uma maior ortodoxia

em relação à tradição africana, e neste sentido os centros por mim

investigados seriam considerados “impuros” por serem, ambos, de

nação Angola (vista tradicionalmente como sincrética, em oposição

à pureza Nagô e, em menor escala, Gêge) e por conterem elementos

nitidamente extraídos de cultos como a Umbanda e mesmo o

Kardeci smo.

No entanto, se aceitarmos que o critério distintivo entre o

Candomblé e os demais cultos de procedência africana, ou a eles

mesclados, é a possessão por divindades ligadas à natureza (os

Orixás), e não por espíritos de mortos ou “encantados”, os

terre i ros aqui em questão são de Candomblé e se opõem, explícita e

conscientemente à Umbanda, por exemplo. A partir deste ponto

contudo as coisas começam a ficar mais confusas. Como determinar

como isenção o que é “puro” ou “impuro”? E ainda que isto seja

poss í vel, através de um confronto — sempre parcial e suspeito,

aliás — com realidades africanas, qual a utilidade teórica de uma

tal di stinção? Não seria ela apenas uma certa forma de

etnocentrismo, praticada meio às avessas? Uma recente polêmica

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11

opondo Juana E l bein dos Santos e Pierre Verger, dois guardiães da

ortodoxia afro-brasileira, pôs a nu o caráter falacioso de uma tal

questão. Pois percebe-se claramente aí que neste ponto, para

retomar literalme nte uma expressão popular, cada um faz sua

África. A partir daí não é difícil reivindicar, sempre de modo

legítimo então, uma maior proximidade em relação a ela. Talvez

estas reivindicações possam apresentar um interesse político

qualquer, o que ainda é duvidoso. Mas para quem pretende uma

abordagem teórica elas não possuem, é evidente, qua l quer sentido

ou utilidade.

Este é o motivo pelo qual não me preocupei aqui com

transcr i ções fonéticas precisas. Os Orixás e seu culto fazem parte

certamente da realidade brasileira, e seus nomes e conceitos a

eles ligados estão inteiramente integrados à língua portuguesa. As

especificidades aí existentes são as mesmas observáveis em

qual quer dialeto regional, com a diferença de possuírem um sentido

eminentemente religioso. Grafo tais nomes e conceitos portanto

utilizando a transcrição clássica utilizada desde Nina Rodrigues.

Outra sutileza que não causará preocupação aqui é a distinção

entre termos como “possessão”, “transe”, “êxtase”, etc. Existe uma

série de tipologias, variáveis aliás de autor para autor (a mais

detalhada pode ser encontrada, creio, em Rouget, 1980: 25-102), e

elas são certamente válidas na medida em que distinguem realidades

que não se justapõem com exatidão. Como a pretensão aqui não é

t axonômica, mas analítica, deixei de lado estas sofisticações e

utilizei os termos do mesmo modo que os fiéis do culto o fazem, ou

seja, como denominações intercambiáveis.

Vê-se então que este trabalho situa-se no cruzamento de uma

série de experiências bastante pessoais: trabalhos de campo

específicos, preferências teóricas, certa forma de entender o que

é a Antropologia e qual sua tarefa teórica, etc. Desse modo, as

várias críticas aqui propostas contra visões teóricas e autores

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não têm evidentemente um sentido pejorativo, nem mesmo pretendem

desqual i ficar o ponto de vista visado. Trata-se antes de um

exercício para tentar pensar a possessão, o Candomblé e, de um

modo ínfimo, a própria Antropologia, de uma maneira alternativa.

Trata-se então de utilizar certas predisposições pessoais para

tentar esboçar uma nova perspectiva de abordagem sobre a possessão

e sobre todo o mundo do Candomblé.

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13

CAPÍTULO I

A POSSESSÃO NA ANTROPOLOGIA

1. Introdução

Em 1655, dois missionários capuchinhos italianos, os padres

Giovanni Antonio Cavazzi da Montecaccolo e Antonio de Gaeta, são

capturados pela então rainha de Angola, conhecida por Nzinga,

nascida em 1582 e convertida ao cristianismo em 1622, no curso de

uma tentativa de negociação com os portugueses levada a cabo por

seu irmão e antecessor no trono, Ngola Mbandi. Negociação

fracassada, o rei angolano prossegue sua guerra contra Portugal

até 1627, ano de sua morte. Nzinga assume então o poder, renega a

fé cristã e segue guerreando os portugueses de forma ainda mais

encarniçada que seu irmão. Adere mesmo ao clã “antropofágico” dos

Jagga , cujos membros professam um culto aos antepassados que se

manifestam po ssuindo feiticeiros conhecidos como singhilli . Nzinga

dedica especial devoção ao espírito de seu irmão morto, de quem

ela co nserva os ossos em uma caixa de prata.

Ao receber os capuchinhos italianos capturados, Nzinga

dec i de, devido a uma mistura de fé religiosa e razões de Estado,

tornar-se cristã novamente. Para isso, contudo, crê dever

consu l tar cinco feiticeiros singhilli através de quem cinco

antepassados deverão dizer se lhe é permitido ou não abolir a lei

dos Jagga . Os quatro primeiros espíritos (Kasa, Casange, Chinda,

Calanda) afi r mam pouco lhes importar a rainha tornar-se cristã

novamente e deixar de honrá-los, tais honrarias não lhes estariam

fazendo qualquer falta. De qualquer forma, sustentam eles, os

demais Jagga continuariam adorando-os. Mas a última palavra cabe

ao quinto dos espíritos, justamente Ngola Mbandi, irmão e

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predecessor da rainha no trono. Este, para o espanto final dos

missionários, autoriza Nzinga a fazer o que lhe aprouver e,

inclusive, a abandonar seu esqueleto e a adoração a ele dedicada

por ela, que poderia mesmo desfazer-se da caixa de prata.

Três anos mais tarde, um novo caso de possessão pelos

ant epassados confirmará para os padres aquilo de que já

suspeitavam. Em 1656, o padre Antonio de Gaeta retorna à corte da

rainha Nzi nga, realiza sua segunda conversão e, junto a ela,

começa a introduzir a vida cristã na aldeia: igrejas e cemitérios

são con struídos, um tratado de paz com os portugueses é concluído.

Em 1658, contudo, a rainha faz trazer à presença do missionário um

feiticeiro singhilli que, possuído, estaria provocando enormes

distúrbios na aldeia. O capuchinho o enfrenta de modo inequívoco —

através do exorcismo. Instigado, o possesso sustenta que seu nome

é Ngola Mbandi, o irmão morto de Nzinga. Esta deseja matá-lo como

farsante, mas o padre, querendo demonstrar o poder da fé e a força

da Igreja, proíbe a execução e procede aos rituais de exorcismo. O

feiticeiro se debate, atirando-se ao solo, rugindo, reafirmando

sua pretensa identidade, até que num arremate final escapa da

igreja mergulhando em uma profunda fossa, queda que o mataria

al gumas horas mais ta r de.

Ao padre Gaeta não resta nenhuma dúvida sobre o acontecido.

Os dois episódios por ele presenciados, o de 1655 com os cinco

singhilli e o de 1658 com o possesso suicida, nada mais teriam

consistido, em sua interpretação, do que em conflitos entre a

ver dadeira e a falsa fé, entre Deus e o Demônio. Este último, para

atingir seus objetivos, assume as mais variadas formas, entre elas

as falsas divindades cultuadas pelos primitivos. Forçado pelo

r epresentante de Deus, não tem outra alternativa: diz a Verdade

curvando-se aos poderes sagrados, ou, ao recusá-lo, termina por

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aniquilar o corpo que o abriga. Tal teria ocorrido respectivamente

em 1655 e em 1658 3.

Cerca de meio século antes destes acontecimentos africanos,

a pequena cidade de Loudun, na França, havia sido palco de um

te atro semelhante embora, sem dúvida, muito mais espetacular. Uma

dezena de irmãs ursulinas do convento da cidade são consideradas

possuídas pelos demônios e resistem a todas as tentativas de

exo r cismo que se estendem por nove longos anos, de 1632 a 1640.

Durante estes anos, o cura da aldeia será queimado como

feitice i ro, a Igreja voltará toda sua atenção para o estranho

fenômeno, e, finalmente, a principal das possuídas, Madre Joana

dos Anjos, l i berta da influência satânica pelo exorcista Surin,

encontrará a glória como visionária mística, vagando e se

mostrando por todas as paróquias francesas e, depois, por toda a

Europa (cf. Certeau, 1970).

Estes dois acontecimentos, tão próximos no tempo quanto

afastados no espaço, não são evidentemente estranhos um ao outro.

Seu confronto pode nos sugerir algo. A “possessão de Loudun” não

foi nem o primeiro nem o último ato de um enorme ciclo místico que

varre a Europa nos séculos XVI e XVII. Feiticeiros e possessos,

bem como seus algozes e exorcistas, marcam profundamente estes

duzentos anos da história européia. Mas estes personagens não são

tampouco os iniciadores desta longa e equívoca cumplicidade que o

Ocidente demonstra frente aos fenômenos extáticos. Dois mil anos

antes de Loudun, os sacerdotes levitas, em seu esforço pela

centralização do culto de Yahvé, se dedicavam a um combate contra

videntes, profetas, orgiásticos, todos aqueles enfim que se

3 A estória da rainha Nzinga, seu irmão e seus catequistas, foi

publicada de forma independente pelos padres Gaeta e Cavazzi em

1669 e 1690, respectivamente. O resumo aqui utilizado é o do padre

Laurent Kilger (cf. Kilger, 1948: 122-129).

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atr eviam a um contato direto, não mediatizado pelas instituições

sagradas, com as potências divinas (cf. Weber, 1970: cap. I).

Nesta mesma época, e ainda na bacia mediterrânea, o controle da

verdade passava, na Grécia Antiga, das mãos dos místicos, poetas e

vide ntes para aquelas do homem sóbrio, com domínio pleno de sua

vontade, o filósofo (cf. Cornford, 1975: 1 a parte; Detienne, 1967:

caps. I e IV).

Os conflitos envolvendo a possessão na Judéia e na Grécia

antigas podem ilustrar em boa medida algumas das razões da

excl usão que o Ocidente tem imposto, ao longo dos tempos, àqueles

que buscam a experiência direta do sagrado, tendo como único

interm ediário seu próprio corpo. Em primeiro lugar, o exemplo

judaico demonstra que a forma específica de desenvolvimento das

institu i ções religiosas ocidentais, através de uma centralização

progressiva, faz com que o monopólio da relação com as forças

sagradas se encontre irremediavelmente ameaçado pelo simples

reconhecimento de que esta relação poderia se efetuar por outros

meios que não aqueles institucionalmente previstos e recomendados.

E, mais do que isso, correr-se-ia o risco de ver a palavra divina

apresentada diretamente, quando sua legitimidade só é reconhecida

quando representada por um corpo sacerdotal institucionalizado e

hierarquizado. De fato, na tradição judaico-cristã, a revelação se

faz apenas uma vez, ou no máximo algumas vezes e sempre nos tempos

bíblicos, e a partir deste momento só pode ser (re)transmitida por

quem possui o direito de fazê-lo. As revelações trazidas pela

possessão, ao contrário, são contínuas, repetem-se

indefinidamente, podem variar, e seus portadores podem ser, ao

menos virtualmente, qualquer um.

Por outro lado, o caso grego ilustra uma outra antinomia

básica entre certos valores centrais do mundo ocidental e a

experiência do transe. De fato, o possuído é, evidentemente, um

ser unitário e, no entanto, de modo paradoxal, ele é mais do que

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um. O que fazer então desta “unidade do eu”, tão cara ao Ocidente

e que tem na Grécia, sem dúvida, um de seus focos de origem? Como

aceitar que o “sujeito” possa se colocar fora do domínio de sua

consciência, sem enxergar aí uma manifestação de um estado

“selv agem”, de uma natureza maligna, ou mesmo a irrupção de um

processo patológico? O “energoumenos” grego, o “mente captus”

latino são decididamente colocados do lado da anormalidade, pois

constituem o signo visível de uma impossível, ou inaceitável,

transformação do homem em “outro” (cf. Foucault, 1979: 88).

As formas de êxtase reconhecidas como mais ou menos

legít i mas no Ocidente, longe de questionarem essas constatações,

podem, ao contrário, reforçá-las. Pois, de um lado, o possesso

demoníaco está obviamente “fora de si”, “inconsciente”, as faltas

por ele cometidas neste estado não sendo consideradas pecados, e

sendo preciso “salvar sua alma”, ou seja, restituir a unidade

perdida de seu eu. Por outro lado, o místico cristão cuja alma

busca ascender até Deus encara sua trajetória ao mesmo tempo como

ascese e como “mergulho no interior de si”, já que é apenas aí —

São João da Cruz é claro sobre este ponto — que a verdadeira

unidade (com Deus) pode ser e ncontrada (cf. Saint-Joseph, 1948:

86-87).

A tradição cristã reunirá então as lições provenientes dos

dois universos paralelos, o judaico e o greco-latino. A vidência,

o desdobramento do eu, a possessão, serão codificados sob o signo

do demoníaco e constituirão, ao mesmo tempo, um desafio e um

in strumento para os poderes da Igreja. Desafio porque é imperativo

dar combate, sem tréguas, às manifestações do demônio no mundo;

instrumento porque através deste combate a vontade de Deus é

re afirmada perante os homens:

“Deus permite as possessões, diz São

Boaventura, com a finalidade de manifestar

sua glória, seja através da punição do

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pecado, da correção do pecador ou para

nossa instrução” (Foucault, 1979: 88-89).

Eis porque o padre Gaeta não pode permitir à rainha Nzinga

exec utar o feiticeiro singhilli possuído que blasfema contra a fé

cristã. Seu exorcismo lhe servirá, crê o missionário, para mais

uma vez reafirmar a crença verdadeira frente aos pagãos. Assim

havia acontecido três anos antes com os cinco singhilli que acabam

autorizando a conversão da rainha; assim deveria acontecer

novamente. Pois o Demônio é impotente face aos imperativos do

exorcista: acuado, fustigado, termina por ceder e confessar a

ver dade, verdade que nada mais é do que seu próprio caráter

ilusório e enganador. É esta também a inevitável conclusão de

Monsenhor Anouilh, mission ário francês que visita a China em 1862:

“Le croiriez-vous? Dix villages se sont

convertis. Le diable est furieux et fuit

les cent coups. Il y a eu, pendant les

quinze jours que je viens de prêcher, cinq

ou six possessions. J’ai vu des choses

mer veillheuses. Le diable m’est d’un grand

secours pour convertir les païens ” (citado

em Tylor, 1913, vol. II: 141 — os grifos

são meus e o trecho encontra-se em francês

no original).

Neste sentido, a partir do que foi sumariamente aqui

coloc ado, pode-se perceber claramente que o contato, cada vez mais

freqüente a partir do século XVI, entre o Ocidente e as novas

sociedades que a expansão européia põe em seu alcance, está

submetido desde o início a uma codificação mais ou menos precisa.

O encontro como o Outro jamais é inocente; somos conduzidos

atr avés dele por esquemas mentais e culturais pré-existentes que

invariavelmente buscam reduzi-lo a uma manifestação do Mesmo, ou

então a alguma forma de alteridade menos radical e ameaçadora. É

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exatamente o que parece ocorrer quando o Ocidente se defronta com

sociedades, inúmeras e espalhadas por todo o mundo, onde o transe

e a possessão são fatos, normativa e até estatisticamente,

“no r mais”. A constatação progressiva de que quase todas as

culturas apresentavam algo de semelhante às “possessões

demoníacas” abria evidentemente a teórica possibilidade do

reconhecimento deste tipo de experiência como inscrita, enquanto

virtualidade, na natureza humana e, por conseguinte, podia levar a

admitir sua normalidade potencial. No entanto, é fácil perceber

que os esquemas mentais ocidentais, culturalmente determinados, só

poderiam conduzir a um resultado diametralmente oposto, atribuindo

estes fenômenos a um tipo de natureza pré-social ou mesmo “pré-

humana”. Assim, como se acreditava que os possuídos pelo Demônio

no Ocidente eram aqueles que não possuíam o controle de si

próprios, ou seja, aqueles que não eram capazes de assumir

plenamente sua cultura — daí a pred i leção demoníaca pelas

mulheres, “melancólicos” e “insensatos”, aqueles em quem a

“vontade e a piedade” são menos fortes (cf. Fo ucault, 1968: 20-

21), seres situados então nos limiares da cultura, lá onde esta se

mescla e se confunde perigosamente com a natureza — acreditou-se

também que povos inteiros que se supunha viverem em pleno estado

de natureza estariam, com muito mais razão ainda já que não

dispunham sequer virtualmente dos mecanismos salvadores do

cristianismo, à mercê dos ataques do diabo e de suas incontáveis

falanges.

Ora, é exatamente neste contexto que o saber antropológico é

forjado e se desenvolve num primeiro momento. Não que ele seja

simplesmente o herdeiro da tradição cristã ou mesmo colonial; ou

ainda, que consista numa ciência desenvolvida como justificativa

ideológica da expansão européia, ao mesmo tempo um efeito e um

instrumento seu. Tudo isso já foi repetido inúmeras vezes e é

si mplista demais, as coisas se passando, como sempre, de modo um

Page 26: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

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pouco mais complexo. A expansão ocidental, o colonialismo, a

cat equese “descobrem” e produzem um objeto particular sobre o qual

se constituirá a futura ciência antropológica. Esta não resulta

por tanto de um confronto direto com um objeto real e inerte que

estaria pronto à sua espera, mas sim de um diálogo complexo e

equívoco do qual participam as sociedades “primitivas”, os vários

discursos que o Ocidente vai produzindo a seu respeito e a

respe i to de suas diferenças em relação a ele (o discurso do

conquistador, o do colonizador, do administrador, do missionário,

etc.) e a nascente ciência da sociedade. Num tal contexto

histór i co e ideológico, não será surpreendente constatar que

muitos dos temas analisados pelos primeiros antropólogos sociais —

alguns d eles tendo se tornado objetos “clássicos” para a reflexão

antropológica posterior — provenham não das sociedades que

prete ndem analisar, como eles certamente o supõem, mas do

confronto entre estas sociedades e aquela mesma de onde provêm os

cienti stas. Estes terminam assim por projetar sobre outros panos

de fundo culturais fenômenos inerentes a seu próprio sistema

social, fen ômenos que acabam então por sofrer uma espécie de

difração deformante.

Assim, quando marinheiros portugueses, observando a

“vener ação” demonstrada por certas populações africanas face a

determinados objetos inanimados, aproximaram estes objetos dos

t alismãs que eles próprios utilizavam e que chamavam de

“ feitiços ”, teve início a longa história do “conceito” de

fetichismo, alvo de tantos debates no decorrer do desenvolvimento

da Antropologia, e cuja utilização no caso dos cultos afro-

brasileiros é bem conhec i da (cf. Tylor, 1913, vol. II: 143). É

óbvio que os navegadores portugueses não estavam apenas projetando

um nome, mas fundame ntalmente noções e princípios. É exatamente a

mesma coisa que ocorre quando, após dois séculos de perseguições e

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fogueiras, os europeus passam a encontrar bruxos, feiticeiras e

possessos entre os “selvagens”.

Esta situação coloca um problema para as investigações da

Antropologia moderna, especialmente no campo da chamada

Antropol ogia da Religião, já que é nesta área (mas não somente

nela) que este tipo de projeção parece ocorrer com mais

freqüência. Pois é sempre essencial saber se estamos lidando com

objetos dotados de algum grau de realidade, ou se estamos apenas

às voltas com so mbras projetadas por nossas próprias luzes sobre

outras telas. Sem dúvida, a dissolução do “conceito” de totemismo

levada a cabo por Lévi-Strauss é o melhor exemplo de denúncia,

crítica e esclarec i mento de uma tal perspectiva que pode ser

chamada, com exatidão, de etnocêntrica. Demonstrando que a

substantivação e a particul arização da noção de totemismo

desempenhava uma função ideológica ao projetar

“na ordem da natureza modos de cultura que,

se tivessem sido reconhecidos como tais,

teriam logo determinado a particularização

de outros aos quais se atribuía um valor

universal” (L évi-Strauss, 1975: 14),

Lévi-Strauss acaba por chegar à conclusão de que o pretenso

tot emismo não é nada mais do que um caso particular de uma

universal classificatória onipresente nas sociedades humanas, não

podendo servir portanto para individualizar aqueles que o adotam

no seio da humanidade.

Sucederia então, talvez, com a possessão o mesmo que com o

totemismo? Estaríamos condenados irremediavelmente a vê-la se

desvanecer como objeto no momento mesmo em que a isolamos? Seria

possível tratá-la como algo menos brutal do que uma força selvagem

que individualiza e põe à parte aqueles que a experimentam?

Est aríamos às voltas enfim com uma espécie de “ilusão extática”?

Responder a estas questões significa, creio, colocar-se na via de

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uma explicação verdadeiramente antropológica para o transe.

Obser vamos anteriormente, de modo excessivamente sumário, como não

poderia deixar de ser aqui, que a possessão exerce um estranho

fascínio, misto de atração e repugnância, sobre a cultura

ocide ntal; vimos também, rapidamente, que num primeiro momento ela

foi interpretada de acordo com a concepção cristã da possessão

demoní aca. Gostaria agora de interrogar os efeitos que este tipo

de relação e este tipo de interpretação primeiras do transe

exerceram sobre a constituição de um saber antropológico a

respeito deste fenômeno. Para isto, apresentarei como as

principais “correntes” de pensamento antropológico refletiram e

teorizaram acerca da po ssessão.

2. O Evolucionismo e a Possessão

É por demais sabido que a Antropologia Social ou Cultural se

constitui em torno de um debate entre a natureza biológica do

Homem e suas modalidades de existência cultural. A articulação

entre o reconhecimento da unidade da primeira e a constatação da

dive r sidade da segunda constitui, em última análise, o solo

epistemológico desta ciência. Neste sentido, pode-se supor que as

diferentes maneiras de fazer funcionar esta articulação entre

uni dade bio-psicológica da espécie e diversidade cultural

constituem a base de diferenciação das diversas tradições e

teorias antrop ológicas.

Até meados do século XIX, os filósofos contentavam-se em

explicar a diversidade cultural através do postulado da existência

de uma diversidade paralela no plano biológico ou geográfico, ou

então, admitindo a unidade última destes planos, em aceitar o fato

das diferenças sociais sem se preocupar muito com sua

fundament ação e explicação teóricas. Foi basicamente com Morgan e

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Tylor, a partir de 1860, que uma Antropologia que se pretende

científica começa a se esboçar, sob o signo, sabe-se, de um

problemático co nceito de “ evolução social ”. Pressupondo que a

diversidade cultural empírica não passasse de uma máscara que

ocultava a verdadeira unidade da “Humanidade”, não constituindo

mais que uma defasagem no tempo entre as várias sociedades, os

autores evolucionistas buscavam não apenas classificar estas

sociedades de acordo com a l guns esquemas evolutivos, mas

fundamentalmente tentavam construir estes esquemas. Ora, construir

uma escala, qualquer que ela seja, supõe um padrão, padrão que não

poderia deixar de ser constituído pelos valores e ideais próprios

à sociedade ocidental do final do século XIX, mais

especificamente, à Europa vitoriana. Assim, um autor como Morgan,

que trata de esboçar a evolução global da hum anidade de uma “idade

étnica” a outra, adota como critérios decisivos para marcar a

passagem de um estágio ao seguinte alguns aperfeiçoamentos

técnicos ou tecnológicos que assegurariam ao h omem um maior

controle do meio natural, ou uma capacidade de transformação da

natureza mais ampla. É óbvio, hoje, que se este tipo de critério

corresponde a um certo ideal socialmente valor i zado no Ocidente

especialmente a partir da Revolução Industrial, ele se mostra

totalmente desprovido de valor objetivo para a quase totalidade

das culturas que se pretende classificar justamente através dele.

Na verdade, parece que os diferentes critérios utilizados

pelos vários evolucionistas na classificação evolutiva das

soci edades podem sempre ser reduzidos a este ideal de controle da

natureza. Para Morgan, preocupado com fenômenos mais “objetivos”

tais como o parentesco e a tecnologia, este domínio sobre o meio

ambiente aparece de forma clara e direta como capacidade real para

transformá-lo. Na obra de outros autores, mais interessados em

f atos “ideológicos” ou de ordem mental, o critério aparecerá na

forma de uma espécie de controle cognitivo sobre a natureza. Ou

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seja, uma sociedade seria considerada tanto mais evoluída quanto

melhor parece conhecer a realidade objetiva. É claro que este

“melhor” se refere ao grau de semelhança entre os conhecimentos de

uma sociedade qualquer e aqueles tidos por verdadeiros pela

ciê ncia ocidental da época.

Este ponto é bastante claro na “lei dos três estágios de

Comte”, no esquema “magia-religião-ciência” de Frazer e,

especia l mente, nos trabalhos de Tylor que, entre os

evolucionistas, parece ter sido sem dúvida quem mais se dedicou ao

estudo dos fenômenos religiosos. Dos dezenove capítulos de sua

principal obra (Tylor, 1913), nada menos que onze são consagrados

a fatos deste tipo (m i tologia, ritual e religião propriamente

dita). Ao contrário de Morgan, que acreditava ser a religião

alguma coisa completamente destituída de sentido, atribuindo-a

mesmo a um estágio inferior de desenvolvimento do próprio cérebro

humano4, Tylor sustenta a plena racionalidade das crenças e

práticas religiosas, acreditando que o antropólogo tem c omo missão

própria à sua disciplina buscar

“the reasonable thought which once gave

l i fe to observances now become in seeming

the most abject and superstitious folly.

The reward of these enquires will be a more

r ational comprehension of the faiths in

whose midst they dwell...” (Tylor, 1913,

vol. I: 421).

4 “O desenvolvimento das idéias religiosas é tão difícil de seguir

que, provavelmente, nunca poderá constituir matéria de uma

expos i ção perfeitamente satisfatória. As crenças religiosas estão

a tal ponto imbuídas de imaginação e afetividade e assentam por

cons eguinte em conhecimentos tão incertos que todas as religiões

primitivas são grotescas e, em certa medida, ininteligíveis”

(Mor gan, 1976, vol. I: 15).

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Em outros termos, Tylor parece crer que a diferença

primo r dial entre “primitivos” e “civilizados” não consiste na

ausência de racionalidade por parte dos primeiros, mas

simplesmente no fato de que eles não teriam tido “ainda” tempo

suficiente e necessário para organizar corretamente suas

observações sobre a realidade. Ou seja, haveria ao longo da

evolução da “Humanidade” uma acumulação de experiências que, por

sua própria seqüência, corrigiriam pr ogressivamente as explicações

esboçadas a seu respeito. Este “progresso” dos conhecimentos

conduziria o homem desde as prime i ras formas de pensamento

religioso (cuja função seria então fornecer estas explicações) até

a ciência moderna. Subjacente a esta evolução, e às modificações

por ela produzidas nas teorias sobre a realidade, permaneceria,

desde sempre, uma racionalidade absolutamente intemporal que se

modificaria apenas quantitativ amente e que permitiria, no fundo,

que as crenças primitivas, por mais estranhas que sejam, possam

ser explicadas nos termos do pe nsamento científ i co.

Para isso, bastaria reduzi-las a juízos promulgados acerca

do mundo objetivo, juízos certamente inadequados e errôneos quando

comparados aos modernos, mas nem por isso menos racionais ou

obj etivos. A evolução da humanidade consistiria então, em suma, no

progressivo refinamento quantitativo de uma racionalidade que, em

estado bruto, existiria desde o início. Para Tylor, a época

vit oriana estaria assistindo ao derradeiro capítulo desta vitória

da razão superior, quando as últimas formas de pensamento

superstic i oso — aí compreendida a própria religião cristã que,

mesmo sendo a mais “evoluída” das religiões, conteria ainda muitos

traços “pr i mitivos” — estariam cedendo frente ao inexorável avanço

do pensamento científico. Desse modo, o trabalho do evolucionista

era também encarado como um importante momento deste combate ao

func i onar como denúncia destes últimos resquícios irracionais,

destas “sobrevivências” (termo cujo radical coincide com

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“superstição) e contribuir para sua superação definitiva. É pois

com este duplo espírito que a investigação acerca da religião é

levada a cabo por Tylor: demonstração da racionalidade, entendida

como observação inadequada porém razoável da realidade, presente

no pensamento primitivo, e denúncia simultânea de suas

sobrevivências no mundo moderno no intuito de ultrapassar tais

superstições e instaurar o domínio absoluto das idéias claras e

positivas, do pensamento c i entífico enfim. Acompanhemos então,

res umidamente esta “démarche”.

De início, Tylor preocupa-se em encontrar para a religião

uma definição suficientemente abrangente, capaz de conter as

di versas espécies do gênero e não se restringir a um ou outro tipo

de crença religiosa. Esta é aliás sua principal crítica aos

aut ores que negavam a existência de vida religiosa entre os povos

ditos primitivos: terem utilizado uma definição demasiado restrita

que acabava fazendo com que só fosse considerado “religioso”

aqui lo que coincidia com as próprias crenças do investigador.

Sendo assim, propõe como “definição mínima de religião” a crença

em Seres Espirituais (cf. Tylor, 1913, vol. I: 424). É justamente

esta crença que recebe o nome de “ Animismo ”. Este,

consequentemente, não consiste para Tylor, como alguns autores

chegaram a interpr etar, erroneamente, numa etapa primitiva e

original da religião que tenderia a ser ultrapassada ao longo da

evolução. Ao contrário, trata-se para ele da própria essência do

pensamento religioso, de seu traço característico, e que,

portanto, estaria presente em t odas as modalidades que a vida

religiosa teria assumido ao longo do tempo.

A forma mais elementar — e então mais primitiva e original —

que o Animismo (isto é, a religião) assume é vista como sendo a

crença na “alma” (“Doutrina das Almas”), entendida pelo primitivo

como um princípio misterioso que anima o corpo que habita mas que,

por ser distinta dele, pode afastar-se em certas ocasiões. Esta

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27

“Doutrina” não teria aparecido contudo como obra do acaso ou da

difusão, mas derivaria inevitavelmente, como resposta lógica e

r acional, dado o baixo nível de desenvolvimento da humanidade

nascente, de um duplo problema colocado ao homem por sua própria

natureza: de um lado, a crença na alma explicaria a diferença

entre a vida e a morte (bem como estágios intermediários como a

doença, por exemplo); de outro, forneceria uma satisfação

intele ctual ao enigma proposto pelas figuras humanas e paisagens

naturais que aparecem nos sonhos e nas visões. A morte, em

primeiro lugar, poderia ser explicada como a separação total e

definitiva entre o corpo e a alma que o animava (quando a

separação é parcial e pr ovisória ter-se-ia as enfermidades); os

sonhos e as visões, por seu turno, nada mais seriam do que

afastamentos temporários da alma, período durante o qual ela

visitaria outras regiões e encontraria outras pessoas, vivas ou

mortas, regiões e pessoas que comporiam justamente as aparições

que se percebem nos sonhos e visões (cf. Tylor, 1913, vol. I: 428-

429).

Esta Doutrina das Almas, primeira manifestação do Animismo e

da vida religiosa, é encarada como se ampliando e complexificando

progressivamente, atravessando estágios como a Doutrina dos

Espí ritos, o Fetichismo, o Culto aos Antepassados, Naturismo,

Politeísmo, Dualismo e, finalmente, o Monoteísmo, forma mais

avançada da religião, mas nem por isso menos presa nas malhas das

ilusões animistas na medida em que seu deus único não passa do

r esultado da generalização e da abstração lineares das idéias de

alma e espírito. Para Tylor, apenas o materialismo científico

poderia nos libertar de nossos ú l timos devaneios.

Para os objetivos deste trabalho, no entanto, não é preciso

acompanhar o pensamento de nosso autor até tão longe. Basta deter-

se no ponto em que uma explicação para o transe e a possessão é

deduzida de sua teoria geral da religião. Este ponto situa-se no

Page 34: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

28

momento em que a “Doutrina das Almas” original seria ampliada numa

general i zada “Doutrina dos Espíritos”:

“Spirits are simply personified causes. As

men’s ordinary life and actions were hold

to be caused by souls, so the happy ou

di sastrous events which affect mankind, as

well as the manifold physical operations of

the other-world, were accounted for as

caused by soul-like beings, spirits whose

essential similarity of origin is evident

through all their wondrous variety of power

and function” (Tylor, 1913, vol. II: 108-

109).

Ora, do mesmo modo como sustentavam que as almas podiam existir

por si próprias, encarnando-se nos corpos para dar-lhes vida

(“e mbodiment of souls”), os primitivos creriam também que os

espíritos — espécie de almas hiperbólicas de existência paralela

às almas comuns — poderiam perturbar a alma normal de alguém, seja

tomando seu lugar no corpo que anima, seja influenciando seu

comportamento por aproximação. No segundo caso estaríamos às

voltas com uma obsessão ; no primeiro com uma possessão (cf. Tylor,

1913, vol. II: 123-124). Estas seriam as duas modalidades básicas

de “possessão demoníaca”, nome dado por Tylor aos fenômenos

relativos ao transe e ao êxtase religioso. Trata-se certamente,

ele não tem dúvidas sobre o assunto, de crença totalmente falsa

mas que no entanto, de acordo com os pressupostos positivistas do

evolucionismo acima mencionados, deve cumprir alguma função útil

para o desenvolvime nto da humanidade. Para Tylor a função das

crenças na “possessão demoníaca” seria fundamentalmente fornecer

uma explicação, falsa e provisória é claro, para o fenômeno

universal da doença:

Page 35: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

29

“it provides na explanation to the

phenomena of morbid exaltation and

derangement, especially as connected with

abnormal utt erance, and this view is so far

extended as to produce an almost general

doctrine os disease” (Tylor, 1913, vol. II:

123).

A possessão consistiria dessa maneira numa interpretação

cuja existência corresponderia a uma primeira etapa dessa “teoria

geral das doenças”. Com o progresso do saber médico-científico

esta explicação se retrairia primeiramente para o campo das

perturbações mentais fornecendo um quadro explicativo para

distú r bios como a epilepsia, a histeria, etc., para, finalmente,

desaparecer, cedendo frente ao avanço da medicina positiva também

neste setor (cf. Tylor, 1913, vol. II: 135). Neste sentido, Tylor

acha-se então em condições de concluir que:

“It has to be thoroughly understood that

the changed aspect of the subject in modern

opinion is not due to disappearence of the

actual manifestations which early

philos ophy attributed to demoniacal

influence. Hysteria and epilepsy delirium

and mania, and such like bodily and mental

derang ement, still exist. Not only do they

still exist, but among the lower races, and

in superstitious districts among the

higher, they are still explained and

treated as of old (...). It is in the

civilized world, under the influence of the

medicine doctr i nes which have been

developing since classic times, that the

early animistic theory of these morbid

phenomena has been gradually superseded by

views more in a ccordance with modern

science, to the great gain of our health

Page 36: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

30

and happiness” (Tylor, 1913, vol. II: 142-

143).

Deste modo, assim como os fenômenos reais do sonho e da

mor te teriam a capacidade de gerar a ilusória idéia de “alma”, que

no entanto, num estágio evolutivo primitivo, funcionaria

adequadame nte ao fornecer uma explicação intelectualmente

satisfatória para os mistérios levantados por essas duas

realidades, também o fen ômeno, igualmente real, da doença poderia

ser plenamente explicado através da idéia de espírito e das

perturbações, obsessão ou po ssessão, que este poderia causar. É

evidente não ser aqui necess ário tornar a levantar todas as

críticas de que a visão evolucionista pode e tem sido objeto. Seu

intelectualismo e pos i tivismo ingênuos, bem como seu etnocentrismo

não tão ingênuo, têm sido denunciados repetidamente já há quase um

século e seria mais ou menos inútil retomar aqui estas denúncias.

Dentro do espírito desta revisão bibliográfica acerca das teorias

antropológicas s obre a possessão — tentar determinar a natureza

geral destas teorias e, a partir daí tratar de esboçar uma visão

alternativa — basta evocar algumas características importantes do

pensamento de Tylor relacionadas com os desenvolvimentos teóricos

posteriores e que podem mesmo ajudar a compreendê-los.

Em primeiro lugar, fundar a própria definição de religião na

adoração de “seres espirituais” e, simultaneamente, estabelecer

sua origem em torno da dicotomia corpo/alma, parece bastante

cri stão, demasiado cristão mesmo. Isto só pode ser confirmado e

reforçado quando o transe é “classificado” em obsessão e

posse ssão, justamente as duas categorias utilizadas pelo

cristianismo para catalogar e combater as influências do Demônio

sobre os h omens. Em outros termos, tudo indica que Tylor, que no

final das contas pretende elaborar uma crítica materialista da

religião que fira o próprio universo cristão, utiliza na

construção desta cr í tica termos e conceitos forjados por este

Page 37: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

31

sistema de crenças. É talvez para ultrapassar este paradoxo que

ele se vê obrigado a e nraizar essas “falsas teorias” mentais na

realidade material do corpo, da morte e da enfermidade. E ele não

está sozinho neste e mpreendimento. Toda a segunda metade do século

XIX, da Filosofia à Psiquiatria, passando pela nascente ciência

social, se une nesse esforço reducionista e positivista que,

entretanto, não se esgot ará com o final do século. Ao contrário,

este tipo de visão fundará todo um modo de tratar a possessão que

irá permear as mais vari adas perspectivas teóricas, e isto até

hoje.

No campo propriamente antropológico, Tylor, ao inverter

si mplesmente a perspectiva teológica anterior — pois, como vimos,

os temas e problemas básicos são mantidos — instaura todo um campo

para as análises científicas do transe. Este campo se encontra,

parece, balizado por dois marcos essenciais: a possessão como

enfermidade real (re)conhecida através de uma falsa explicação . O

preço a ser pago então para se atingir uma perspectiva considerada

científica a respeito do transe é a dissociação deste fenômeno

sobre dois planos qualitativamente distintos. De um lado, a

verdade de uma realidade objetiva enraizada na natureza biológica

do homem — a doença, mental ou não; de outro, a falácia de uma

explicação subjetiva, embora racional, originada no

desconhecimento parcial e temporário da verdade última do mundo

real.

Esta dissociação teórica do fenômeno estudado, bem como o

duplo reducionismo, biologizante (a “realidade” da doença) e

ps i cologizante (a “falsidade” da explicação), que a acompanha

invariavelmente, permanecerá de forma direta ou transformada em

praticamente todas as tentativas teóricas de dar conta do êxtase

religioso, mesmo nos modelos explicativos mais recentes.

Page 38: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

32

3. A Explicação Funcionalista e o Transe

Admite-se correntemente hoje em dia que a história de uma

disciplina científica não consiste em um processo único e contínuo

de redefinições e aperfeiçoamentos constantes e progressivos. Os

discursos ditos científicos parecem apresentar inflexões, pontos

de rompimento, descontinuidades, “rupturas epistemológicas” enfim.

Também as ciências humanas refletem deste modo acerca de seu

pr ocesso de desenvolvimento histórico. Que ele tenha efetivamente

se dado assim ou que os cortes tidos como fundamentais realmente o

sejam é uma outra questão que não cabe tratar aqui. O importante é

somente lembrar que, no caso da Antropologia Social ou Cultural, o

grande ponto de ruptura que a teria desligado finalmente de seu

passado filosófico e especulativo, costuma ser usualmente situado

no início deste século em torno de dois desenvolvimentos teóricos

paralelos: de um lado a obra de Franz Boas na América do Norte; de

outro, o surgime nto do funcionalismo britânico.

Não é difícil perceber o que há de comum entre esses dois

estilos, de resto tão diferentes, de fazer Antropologia: tanto

Boas quanto Malinowski opõem-se radicalmente às elucubrações

reconstrutivistas do evolucionismo, bem como do difusionismo,

vi torianos. A este tipo de história, “conjectural” como foi

pejorativa e justamente denominada, estes dois pensadores passam a

opor uma exigência estrita de dados concretos confiáveis que

possibilitem induções seguras e generalizações legítimas. Ora,

sabendo-se que as sociedades estudadas preferencialmente pelo

antropólogo encontram-se, em sua imensa maioria, desprovidas de

praticamente qualquer registro histórico de seu passado, esse tipo

de exigência só poderia vir a ser preenchido através do recurso às

técnicas de trabalho de campo e observação participante. É

just amente aqui que se costuma localizar o nascimento da moderna

Antropologia, ou seja, no contato direto, longo e intensivo

Page 39: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

33

est abelecido pelo pesquisador com a sociedade estudada. Boas e

Malinowski forneceriam assim os paradigmas desse “corte

epistem ológico” que fundaria as bases de uma disciplina

verdadeiramente científica. A questão que se poderia colocar a

esta pretensão é a de saber se uma descontinuidade no plano

metodológico , ou antes, ao nível das técnicas de pesquisa, de uma

ciência pode de fato ser considerada como uma ruptura tão radical.

Cumpriria antes indagar acerca de possíveis cortes no plano

teórico , isto é, não nos pr ocessos de coleta de material empírico,

e sim na forma de procedimento das generalizações analíticas.

Deste ponto de vista a posição de Boas (a que retornarei mais

adiante) parece mais sólida do que a de Malinowski, embora

paradoxalmente termine numa negação quase total do verdadeiro

trabalho antropológico, a construção de teorias gerais sobre as

culturas e sociedades humanas. Tudo se passa como se, pressentindo

sua incapacidade para transpor de modo positivo para o nível

teórico as inovações obtidas em termos de métodos e técnicas de

pesquisa, bem como o grau de rigor exigido, Boas terminasse por

evitar cuidadosamente toda e qualquer tentat i va de abstração

teórica e mesmo de generalização empírica.

Malinowski, ao contrário, procederá de modo bastante

dif erente. Recusando, como Boas, o “método comparativo” que

caracterizava para ambos as fracassadas tentativas teóricas do

evolucionismo e do difusionismo, ele não se furta contudo às

generalizações e abstrações teóricas. O problema é que quando a

base empírica, essencial para essas operações intelectuais, foi

reduz i da desde o início a apenas uma sociedade, ainda que

pesquisada de forma intensa e extensiva, fica muito difícil

generalizar e ab strair sem cair em armadilhas epistemológicas

comprometedoras.

A saída funcionalista para este dilema é o recurso à idéia

de “natureza humana” que, na antropologia malinowskiana, longe de

Page 40: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

34

corresponder a um virtual ponto terminal da análise aparece, bem

ao contrário, como seu pressuposto inicial e foco de resolução de

todos os problemas teóricos. Esta “natureza humana” é encarada

primeiramente de um ponto de vista quase biológico como o conjunto

de processos vitais que caracterizam o homem enquanto ser vivo e

que, portanto, geram determinadas necessidades que têm que ser

preenchidas. Num tal contexto, a cultura (bem como qualquer

cult ura particular) é reduzida a um conjunto de respostas

instrumentais dadas pelo homem a certos problemas colocados por

sua própria n atureza (as “necessidades”). Num primeiro momento

estes problemas são puramente biológicos, adaptativos,

correspondendo ao que Mal i nowski denominava “ necessidades básicas ”

(“metabolismo”, “reprodução”, “saúde”, etc.), necessidades que

engendrariam “re spostas culturais” na forma de instituições

(“aprovisionamento”, “parentesco”, “higiene” e assim por diante).

O preenchimento cu l tural dessas necessidades básicas produz

contudo um efeito de geração de novas necessidades, chamadas

conseqüentemente de “der i vadas”. Assim, por exemplo, o

“aprovisionamento”, instituição que funciona como resposta

cultural para a necessidade básica “metab olismo” se transforma em

novo “imperativo” (na forma de “necessidade derivada”) porque

exige uma “aparelhagem” cultural de implementos e bens de consumo,

ou seja, a instituição da “econ omia”. Nesse sentido, para

Malinowski, explicar uma instituição ou costume significa

exclusivamente indagar a respeito de sua “fu nção”, isto é,

determinar que “necessidade”, básica ou derivada não importa, esta

instituição ou costume contribui para satisfazer 5.

5 A posição teórica de Malinowski sobre a “teoria das

necessid ades” está explicitada em Malinowski, 1941: passim. Para

uma crítica radical desta perspectiva, cf. Sahlins, 1976: 73-91.

Page 41: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

35

É a partir desses pressupostos que deve ser entendida a

abordagem funcionalista dos fenômenos que aqui nos interessam,

“religião” e “magia” (já que Malinowski, influenciado certamente

pelas colocações de Frazer, trata sempre destas duas instituições

em conjunto). Seria certamente difícil considerar os fenômenos

mágico-religiosos como respostas diretas a necessidades básicas,

ou mesmo derivadas. Para se compreender perfeitamente a posição de

Malinowski em relação a este tipo de fenômenos, é preciso

acre scentar que sua concepção de “natureza humana” não se esgota

nos componentes biológicos desta, englobando também uma dimensão

psi cológica. Isto porque é o indivíduo que experimenta as

necessidades; é ele que tem que se adaptar a um determinado meio-

ambiente, a cultura não sendo vista mais do que como um

instrume nto a serviço desta adaptação, instrumento do qual o ser

humano detém o monopólio certamente, mas que não difere

substantivamente, fazendo-o apenas em grau, dos diferentes

mecanismos adaptativos encontrados na natureza entre os animais.

Ora, quando os processos culturais não asseguram uma adaptação

perfeita, quando a incerteza se interpõe entre o indivíduo e o

meio, aquele experimentaria uma sensação de temor e angústia

frente ao desconhecido e àquilo que não consegue controlar

materialmente. A magia e a religião são consideradas então

justamente como mecanismos culturais destinados a minimizar estes

sentimentos, porque forneceriam ao indivíduo tanto uma ilusão de

que o que é incontrolável por meios técnicos objetivos poderia sê-

lo por meios mágicos, quanto um canal através do qual ele pode

manifestar legitimamente sua angústia e assim exorcizá-la — os

comportamentos e atitudes rituais (cf. Malin owski, 1974; Nadel,

1957).

Deste ponto de vista acabamos por nos encontrar estranha e

espantosamente próximos às teses evolucionistas sobre a religião.

De fato, para Malinowski, esta continua sendo uma falsa explicação

Page 42: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

36

sobre fenômenos reais. A diferença essencial é que aqui o

intele ctualismo vitoriano é substituído por uma perspectiva

afetivista que privilegia os sentimentos, as emoções, e não o

raciocínio. P ara Tylor a falsa explicação imaginada pelo primitivo

possuía a virtude de lhe proporcionar uma satisfação intelectual

acerca do sentido do mundo e de abrir o caminho para o progresso

constante do saber e da razão; para Malinowski, as ilusões mágico-

religiosas do “selvagem” impediriam um “stress” emocional frente

ao misteri oso e ao incontrolável, não sendo contudo dotadas de

qualquer caráter lógico ou racional. Com o avanço da ciência e o

aumento dos conhecimentos sobre o mundo objetivo, os procedimentos

relig i osos tenderiam, para ambos os autores, a diminuir

progressivamente. Para o primeiro, devido a uma superioridade

natural dos conhecimentos mais recentes sobre os anteriores; para

o segundo, porque cada vez menos situações apareceriam como

desc onhecidas e/ou incontroláveis, diminuindo conseqüentemente o

número de momentos angustiantes para o homem. Neste contexto, as

difere nças realmente básicas distinguindo Malinowski dos

evolucionistas que ele tanto criticava, parecem muito menores do

que se costuma crer. Na verdade, elas praticamente se reduzem ao

fato de que M alinowski não pretendia reconstruir o processo

evolutivo da humanidade. E isso não porque discordasse

teoricamente da utilid ade ou da validade desta reconstrução, mas

simplesmente porque acreditava não dispor de informações e dados

seguros que permiti ssem fazê-lo. Ele não deixava contudo de tomar

a idéia de evolução, se não como pressuposto teórico, ao menos

como evidência material. Eis porque, talvez, um método tão

diferente do comparatismo tyl oriano podia conduzi-lo a resultados

bastante semelhantes àqueles obtidos pelo pensamento

evolucionista. Algumas análises do transe extático direta ou

indiretamente influenciadas pela teoria malin owskiana sobre

religião e magia permitirão aprofundar esta estranha aproximação.

Page 43: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

37

Malinowski parece jamais ter se interessado diretamente pelo

estudo da possessão, mas alguns de seus discípulos e seguidores

tentaram algumas incursões neste campo de trabalho. Assim, Raymond

Firth, cuja teoria sobre a religião pretende estar diretamente

vinculada às teses funcionalistas (cf. Firth, 1951), e que afirma

ter se interessado pelo transe ao presenciar diversas sessões

mediúnicas durante seu trabalho de campo em Tikopia, esboça uma

análise do êxtase completamente deduzida das principais hipóteses

da antropologia da religião de Malinowski. Trata-se, como sempre,

de descobrir a “função” do transe:

“For societies lacking modern psychological

medicine, spirit medium treatment of

pat i ents can be an extremely interesting

instance of self help” (Firth, 1969: XI).

E, de modo ainda mais explícito, algumas páginas adiante no

mesmo texto:

“But the most important social function is

to provide treatment for sick people. This

the cult do by operating a set of extra-

normal behavious in speech and gesture.

They offer to the sick person, who is

himself behaving in an abnormal way, a

fr amework of ideas and practices which is

very different from that of normal,

everyday l i fe. For the more purely physical

ills the therapeutic effect of spirit

medium pract i ces may be no more than

reassurance. But for the mentally ill (the

‘possessed’), the conceptualization in

spirit idiom gives d i agnosis and prognosis

in terms of the patient’s own fantasies.

Such a mode of f i ghting fire with fire

often seems to have great stress-reducing

effect , for both p atient and audience”

Page 44: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

38

(Firth, 1969: XIII-XIV; os gr i fos são

meus).

O esquema explicativo é portanto, a despeito das diferenças

de doutrina, rigorosamente paralelo ao de Tylor. A doença é aqui

também tomada como uma realidade substantiva que introduziria um

elemento exógeno, perturbador e disruptivo, na vida social normal.

Tylor se contentava em acreditar que uma explicação, ainda que

falsa, desse elemento seria suficiente para conjugar a ameaça que

ele traria para a sociedade. Já Firth supõe que o mais importante

não consiste numa solução intelectual para o problema, mas sim que

haja um controle cultural sobre a enfermidade que beneficie todo o

grupo ao impedir que a ansiedade causada pela doença influa

negativamente na estrutura social. Que este controle seja encarado

como relativamente eficaz (no caso das doenças mentais) ou apenas

forneça “segurança simbólica” (no caso de doenças físicas) não é a

questão essencial. O importante é que em ambos os casos atingir-

se-ia aquilo que Firth denomina “stress-reducing effect”. Em suma:

existiria um impulso natural (a doença, especialmente mental) que

deve provocar necessariamente uma resposta cultural que minimize

seus efeitos negativos sobre a vida social — a crença no transe e

os rituais de possessão. A explicação de Firth para o êxtase é

perfeitamente congruente então com a “teoria das necessidades” de

Malinowski: a possessão apareceria como instituição cultural

der i vando de uma necessidade fundamental, a cura das enfermidades

(ou, ao menos, seu controle simbólico). Neste sentido parece que o

transe está relacionado com um tipo de necessidade que se poderia

considerar como básica, uma vez que na doença joga-se

simultane amente com a vida e a morte. Mas por outro lado, Firth

apresenta uma outra “função social” da possessão que a encara mais

como r esultante de processos relaci onados com necessidades

derivadas:

Page 45: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

39

“But in many societies spirit possession

and spirit medium cults offer a field for

some degree of individual self-expression,

may be of a fantasy order, going well

beyond the convention of tradition (...).

Spirit possession allows an individual to

throw off ordinary restraints and, in

speech or in non-verbal behaviour, to act

in ways not sanctioned by his ordinary role

in society (...). Whatever be the physical

and psychological difficulties entailed by

the ‘possession syndrome’, some personal

benefits may at times accrue. Redress or

enhacement of status is one such

compens ation...” (Firth, 1969: XI-XII).

Na Introdução à mesma coletânea sobre cultos de possessão

africanos (Beattie e Middleton, 1969), em cujo prefácio Raymond

Firth efetua as observações citadas, os organizadores do livro

r etomam várias de suas colocações, concluindo que esses cultos

ext áticos podem funcionar ora reforçando a estrutura social (ponto

que nos leva a uma outra vertente do funcionalismo que será

abordada mais adiante), ora fornecendo uma via de “letting off

steam”, ou seja, exercendo uma função catártica ao permitir que:

“behaviour which would not be tolerated in

everyday life may be permitted, even

expe cted, in possessed persons (...). It

would appear that the relief of anxiety

thus brought about may be definitely

therape utic” (Beattie e M i ddleton, 1969:

XXVIII).

Esta última “função” do transe agiria então como estratégia

de alívio de ansiedades e como modo de exprimir tensões sociais

ligadas a fenômenos como a mudança social, por exemplo. Neste

sentido então, a sociedade ou cultura aparece nitidamente em

Page 46: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

40

confronto com o indivíduo, assim como a natureza o estava na

pr i meira forma de explicação. Isto porque embora os mecanismos

culturais sejam basicamente respostas aos imperativos naturais,

eles passariam, uma vez instituídos, a exercer sobre o indivíduo

uma pressão semelhante àquela exercida por esses últimos,

prov ocando conseqüentemente angústia e tensão que devem também ser

aliviadas para a satisfação individual e perfeito funcionamento

social. Este aspecto das teorias sobre a possessão de inspiração

malinowskiana é fundamental, pois irá informar, ao se cruzar com

modelos derivados da vertente estruturalista do funcionalismo, a

maior parte das análises contemporâneas sobre o êxtase. Antes

contudo de chegarmos até elas convém uma rápida passagem por uma

outra tradição teórica que, de alguma forma, possui uma série de

princípios e pontos em comum com as teses de Malinowski, apesar

das aparências em contrário.

4. Cultura e Possessão

De fato, não parece haver nada superficialmente mais

disti nto do que o brutal reducionismo malinowskiano de um lado e o

chamado princípio de relativismo cultural, postulado pelos

cult uralistas, de outro. Lá onde Malinowski supunha sempre o peso

dos imperativos naturais determinando respostas culturais, os

cultur alistas norte-americanos privilegiariam justamente a imensa

diversidade de tais respostas, e a apontariam como sinal da

inf i nita riqueza e complexidade da natureza humana. Na verdade, a

questão é mais complicada e esta oposição pode não ser tão nítida

quanto parece.

A chamada escola de “cultura e personalidade” representa

ni tidamente um desenvolvimento transformado das idéias de Boas.

Este, como foi dito acima, recusava toda e qualquer tentativa de

Page 47: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

41

generalização teórica por acreditar não dispor de base empírica

suficiente para isso, base que só seria obtida quando todas as

sociedades — ou, para ser mais exato, um número excepcionalmente

elevado delas — tivessem sido pesquisadas e analisadas com o rigor

e a profundidade almejadas por ele próprio em seu estudo dos

Kwakiutl, estudo que após meio século de investigação empírica

Boas continuava considerando incompleto e portanto inadequado para

o trabalho teórico. Como disse Lévi-Strauss, as exigências de Boas

eram tão rigorosas que, no caso de seguidas à risca, terminariam

por paralisar todo o trabalho antropológico.

Seus discípulos, consciente ou inconscientemente, parecem

ter pressentido esta armadilha e, como que para escapar dela,

re stringiram suas análises às interações entre o meio social e os

indivíduos que nele vivem, ou, em seus próprios termos, entre a

cultura e a personalidade . Este tipo de abordagem é perfeitamente

coerente com as posições de Boas, e já está sem dúvida presente em

sua obra, especialmente em seus últimos escritos. Pois quando nos

colocamos como tarefa essencial a descrição completa de uma

soci edade ou cultura antes que qualquer abstração possa ser

efetuada, esta termina por aparecer como um aglomerado de

instituições, v alores e símbolos que só podem encontrar alguma

unidade e substância no modo pelo qual um indivíduo concreto os

absorve e sintetiza, já que desde o início o investigador condenou

a si pr óprio a não observar as leis de ligação entre os diversos

componentes do todo social (sobre todos esses pontos, cf. Boas,

1966).

A partir desses pressupostos, o culturalismo se vê

constra ngido a imaginar a existência de uma base bio-psicológica

para o comportamento humano. O que caracterizaria esta base seria

sua e xtrema fluidez e diversificação, constituindo um “leque”

sobre o qual cada cultura executará uma escolha e procurará a

partir daí impor a todos os seus membros a “personalidade”

Page 48: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

42

(pensada então c omo inscrita virtualmente na natureza humana)

eleita como sendo a ideal. O problema, óbvio, é que nem mesmo a

mais simples e “ind i ferenciada” das sociedades apresenta uma

homogeneidade integral nos padrões de personalidade de seus

membros. Para contornar esta dif i culdade empírica os culturalistas

pressupõem que a base bio-psicológica individual, inata, exerce

uma certa resistência ao trabalho de seleção e moldagem executado

pela cultura. Em outros termos, existiria uma personalidade

substantiva individual anter i or ao processo de socialização e, no

caso desta “personalidade original” ser diferente demais daquela

culturalmente escolhida c omo adequada, o indivíduo portador desta

personalidade jamais poderia ser plenamente integrado à sociedade,

convertendo-se in evitavelmente em um desviante, ou como preferem

os culturalistas, num “inadaptado”.

O culturalismo adere então a uma certa concepção de

realid ade que remonta ao positivismo e que talvez tenha sido

totalmente explicitada na idéia de “superorgânico” proposta por

Kroeber. Esta concepção supõe uma estratificação do real em níveis

de complex i dade crescente: do inorgânico ao cultural, passando

pelo orgânico e pelo psicológico (individual). Cada nível é

pensado como engl obando o anterior, sendo mais complexo e, de

algum modo, distinto dele. Neste sentido, a cultura é encarada

como uma modalidade de tratamento de fenômenos integralmente

constituídos em outros n í veis, sendo sua tarefa exclusiva a

seleção entre as diversas possibilidades oferecidas em cada plano

e sua difusão homogênea através de todos os membros da sociedade.

Esta é a razão última do fascínio exercido sobre os culturalistas

pelas ciências do compo r tamento individual, psiquiatria (Ruth

Benedict), psicologia (Margareth Mead), psicanálise (Abram

Kardiner). Pois tais ciências pareciam poder fornecer a eles os

elementos substantivos sobre os quais seria exercida a seleção

cultural, ainda que um efeito de “retorno” pudesse também ser

Page 49: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

43

observado (a posição culturalista f i ca evidenciada com nitidez em

Kroeber, 1948).

Deste ponto de vista, as posições da escola de cultura e

personalidade é extremamente próxima à de Malinowski que, como

vi mos, também encarava a cultura como um conjunto de respostas a

questões formuladas e produzidas a outros níveis, biológicos e

psicológicos. A diferença entre essas duas correntes se reduz ao

fato de que o funcionalismo se dedicou mais — no momento de

refl etir teoricamente, e não nos trabalhos etnográficos — a

apontar os elementos bio-psicológicos aos quais toda cultura

particular pod eria ser reduzida, sem conceder muita atenção à

variação de respostas que um mesmo problema pode comportar. Os

culturalistas, por outro lado, sempre gostaram de enfatizar a

infinita variedade e diversidade das elaborações culturais, mas

jamais se preocuparam em explicar nem o porquê destas variações,

nem um possível caráter sistemático delas, contentando-se em

atribuí-las a alguma forma de acaso totalmente estranho aos

procedimentos científicos de pesqu i sa, e terminando assim por

repousar sobre o mesmo solo teórico que sustenta Malinowski.

Neste contexto, alguns recentes estudos acerca do transe e

da possessão derivados, direta ou indiretamente, dos esquemas

cul turalistas são ao mesmo tempo esclarecedores deste esquema e

podem ser perfeitamente compreendidos à sua luz. Num trabalho

datado de 1972, Sheila Walker se propõe apresentar uma visão

“multidimensi onal” do êxtase, pretendendo encará-lo sob vários

pontos de vista, única forma segundo ela para que uma explicação

adequada para o fenômeno possa ser atingida:

“The phenomenon of spirit possession has

existed in most areas of the world down

through history. The form and

interpret ation of the experience vary from

culture to culture but there is a common

Page 50: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

44

substratum. Possession, to be really

understood, must be studied from various

points of view b ecause no simple

explanation appears adequate to it (...).

My aim in this book is to consider the

various elements invo l ved in possession,

such as neurophisiology, hypnosis,

socialization and culture dete r minism, to

see how each one junctions and what its

role is alone and in relationship to the

others (...). I am concerned with what

possession is on various levels, from

physiological to cultural, and what general

role it plays in societies and in

indiv i duals” (Walker, 1972: 1).

Em termos mais teóricos, poder-se-ia dizer então que Walker

supõe a existência de uma base neurofisiológica e psicológica para

a possessão, base que algumas culturas selecionariam como

compor tamento adequado a certas ocasiões e imporiam a seus membros

através de processos de socialização. Em outros meios culturais,

esta mesma base poderia originar formas de doença mental, como a

histeria por exemplo. O fato de que, jamais, todos os membros de

uma sociedade sejam possessos, nem mesmo em potência, é explicado

a partir de possíveis diferenças genéticas entre os indivíduos que

experimentam o transe e aqueles que nunca o fazem. A possessão é

encarada então como uma reação neurofisiológica normal a situações

de “stress”, seja este artificialmente provocado (através de

dr ogas, toque de tambores, danças e cânticos, que compõem os

rituais onde ela tem lugar) ou não. Assim, as variáveis culturais

não f azem mais do que estimular ou reprimir um comportamento dado

a nível psicofisiológ i co (cf. Walker, 1972: 25).

Erika Bourguignon, teórica da chamada “antropologia

psicol ógica” que deriva em linha direta do culturalismo, propõe um

modelo similar ao de Walker, advogando também uma “abordagem

Page 51: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

45

multidime nsional” que encare todos os aspectos do fenômeno do

transe (cf. Bourguignon, 1972: 429). Para isto, seu primeiro passo

é estabel ecer um plano de identificação entre o sonho e a

possessão, imaginando a existência, entre ambos, de um continuum.

Ora, como o sonho é considerado uma característica universal do

homem (enqua nto ser natural mesmo, já que compartilharia esta

propriedade com todos os mamíferos), o trabalho da cultura fica

reduzido à prod ução de algum “grau de institucionalização” tanto

para o sonho quanto para o transe, estando aqui a raiz da

diversidade de modos de tratamento a que ambos estes fenômenos

estão submetidos em di stintas socied ades.

Desse modo, tanto Sheila Walker quanto Erika Bourguignon

pressupõem então a existência de uma base biológica invariável

que, diferentemente trabalhada por cada cultura, pode dar origem

ao que ambas denominam “ altered states of consciousness ”,

categ oria que abarca, entre outras manifestações de “dissociação

da personalidade”, o transe e a possessão. O esquema se aproxima

bastante, como pode ser facilmente percebido, daquele proposto por

Raymond Firth, inspirado no funcionalismo malinowskiano, para dar

conta do êxtase religioso.

Subsiste contudo uma diferença entre os dois modelos, o

fu ncionalista e o culturalista: enquanto Firth (assim como Beattie

e Middleton) supõe que a crença na possessão por espíritos pode

fu ncionar ao mesmo tempo como explicação simbólica e terapia para

doenças mentais, Walker e Bourguignon enfatizam sistematicamente o

caráter normal dos processos fisiológicos e psicológicos

envolv i dos no transe, aproximando-o de estados hipnóticos e do

sonho, respectivamente. Esta diferença é contudo, do ponto de

vista em que procuro me colocar aqui, bastante superficial. O que

importa é que tanto funcionalistas quanto culturalistas imaginam,

ao tratar da possessão, estarem às voltas com simples explicações

ou vest i mentas culturais para fenômenos (patológicos ou não)

Page 52: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

46

integralmente const i tuídos em esferas não sociais, biológicas ou

psicológicas.

Tanto isto é verdadeiro que alguns autores podem considerar,

ao mesmo tempo, o transe como ligado ou não a distúrbios

patológ i cos. Assim, Vincent Crapanzano em uma excelente monografia

sobre o culto marroquino do Hamadsha, combina as duas perspectivas

e enc ara a possessão como fruto de distúrbios neurofisiológicos ou

psicanalíticos e, simultaneamente, como terapêutica para estes

problemas (cf. Crapanzano, 1973). O mesmo ocorre com Edward Foulks

que analisa o xamanismo esquimó (juntamente com a “histeria

árt i ca”, o que já é significativo), seja como conseqüência

patológica, seja como alívio terapêutico, de múltiplas influências

negativas provenientes do meio ambiente (hostilidade e monotonia),

substrato biológico (carência alimentar), características

psicológicas (in adaptação à sociedade), e traços culturais

(tradicionalismo) (cf. Foulks, 1972).

5. Estrutura e Função do Êxtase Religioso

Criticando as explicações de fenômenos religiosos que tendem

a reduzi-los a soluções culturalmente inconscientes, embora

sati sfatórias na prática, de problemas higiênicos e de saúde, Mary

Douglas as denomina pejorativamente, utilizando uma expressão de

William James, de “ materialismo médico ” (cf. Douglas, 1976: 43-

46). Poderíamos também utilizar este termo para designar a

prime i ra vertente antropológica de explicação para o transe, que

acaba de ser apresentada. Isso porque tanto no evolucionismo de

Tylor, quanto no funcionalismo malinowskiano e na chamada escola

de cu l tura e personalidade (e seus seguidores contemporâneos que

adotam a significativa rubrica de Antropologia Psicológica), este

fenômeno é analisado ora como o “disfarce” cultural de

Page 53: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

47

enfermidades reais, ora como procedimento “clínico” para

tratamentos destas e nfermidades, correspondendo tanto num caso

quanto no outro a elaborações secundárias sobre fatos totalmente

constituídos a n í vel fisiológico ou psicológico (patológicos ou

não, pouco importa) dos quais — cumpre assinalar — apenas a

ciência contemporânea (Neurofisiologia ou Psiquiatria)

reconheceria a verdadeira natur eza.

Existe contudo uma outra modalidade de teorização acerca do

êxtase da qual a própria Mary Douglas é um dos principais

expoe ntes. Esta outra vertente — que possui, veremos, inúmeras

conexões com a outra — encontra suas raízes e bases

epistemológicas num d esenvolvimento teórico paralelo ao

funcionalismo malinowskiano e ao culturalismo norte-americano.

Desde 1887, Durkheim advertia que a atividade social só poderia

ser compreendida como visando final i dades também sociais, e ano

aquelas do indivíduo (cf. Sahlins, 1976: 109-110). Apesar desta

profissão de fé na importância das funções sociais das

instituições, Durkheim parece jamais ter acr editado que as

primeiras pudessem explicar integralmente as segundas, sustentando

ser necessário o conhecimento de sua “morf ologia” (e não apenas de

sua “fisiologia”) para sua justa compree nsão. Radcliffe-Brown, o

grande inspirador de todo o estr utural-funcionalismo, tomou como

ponto de partida a primeira idéia de Durkheim, mas não a segunda.

Ou seja, ao contrário de Malinowski, ao falar em “função social”

ele tem em mente a contribuição que uma dada instituição presta

para a manutenção da sociedade como um todo. Mas também ao

contrário de Durkheim, Radcliffe-Brown reduz o sentido total desta

instituição a essa função em benefício da t otalidade, sem se

interessar muito pelo aspecto morfológico da questão.

A explicação estrutural-funcionalista consiste então,

inv ariavelmente, em tentar captar a relação entre a parte e o todo

manifesta na função desempenhada pelo elemento analisado para a

Page 54: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

48

manutenção da estrutura da totalidade. Levado até as últimas

conseqüências, o modelo acaba por desembocar num raciocínio

psicologizante mais ou menos tautológico: qualquer uso ou

instit uição sociais contribuem para a criação, reforço e

manutenção dos sentimentos de solidariedade que mantêm agregados

os membros do grupo. Ou seja, a preservação da “forma estrutural”

(esqueleto da “estrutura social”, entendida significativamente

como a totalidade das relações sociais diádicas interpessoais)

acaba sendo atribuída à criação e manutenção de difusos

sentimentos psicológicos indiv i duais.

A partir dessa perspectiva teórica, Radcliffe-Brown pode

concluir a respeito dos sistemas de crenças que:

“a religião desenvolve na humanidade o que

se pode chamar de senso de dependência”

(Radcl i ffe-Brown, 1945: 217),

proposição que, neste nível, não se importa com qualquer espécie

de particularidade do fenômeno religioso assimilando-o, através de

sua “função” (comum a todas as instituições sociais) à totalidade

dos fatos sociológicos. Radcliffe-Brown sugere contudo que a

especificidade das funções desempenhadas pela religião tanto na

amplitude tomada pelos laços de dependência criados, alcançando os

mortos, os antepassados, as divindades e a natureza, quanto na

“sobre-autoridade” que adquirem na medida em que, do ponto de

vi sta do fiel, atuam de fora, a partir do sobrenatural, sobre a

totalidade social (cf. Radcliffe-Brown, 1945: 218).

Neste sentido, é verdade, a religião deixa de ser tratada

como simples preenchimento de uma necessidade bio-psicológica do

homem enquanto indivíduo isolado (como em Malinowski ou no

cult uralismo) e passa a ser encarada como atendendo a pré-

requisitos sociológicos. No entanto, como mostrou Marshall Sahlins

(1976: 109), isto só é possível porque a própria sociedade passa a

Page 55: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

49

ser vista como uma espécie de “super-indivíduo”, dotada de

necessid ades e exigências. Por causa disto, as pretensas

“necessidades sociais” acabam reduzidas a alguns indefinidos

sentimentos indiv i duais (no sentido próprio) de simpatia, atração,

solidariedade e auto-preservação.

Ora, este esquema de interpretação da religião frutificou na

antropologia britânica: trata-se sempre de estabelecer as

presum í veis conexões entre o sub-sistema religioso (conjunto de

crenças e ritos pertencentes ao universo simbólico da “cultura”) e

o sistema social “concreto” (a “sociedade” propriamente dita,

entendida como conjunto de relações inter-individuais), tentando

demonstrar como o primeiro reflete o segundo e, ao mesmo tempo,

contribui para sua manutenção. Na área dos estudos sobre os

fenômenos extáticos par ece que as duas contribuições estrutural-

funcionalistas mais importantes consistem, sem dúvida, nos

trabalhos de Mary Douglas (1982) e de Ioan Lewis (1970; 1977).

Lewis parte da questão estrutural-funcionalista clássica:

como estabelecer uma “sociologia do êxtase”? Ou seja, sendo o

êxtase um fenômeno religioso e sendo que a religião, como conjunto

de símbolos e valores, se situa a nível da “cultura”, como reduzir

o transe às “relações concretas entre os homens”? Para responder a

essas questões seria preciso primeiramente notar, de acordo com

Lewis, que a possessão consiste em um mecanismo cultural que não

pode deixar de exprimir a estrutura última da sociedade em que ela

se processa. Neste sentido, o êxtase tanto pode ser

“um agudo grito de protesto contra os

membros mais afortunados da sociedade”

(Lewis, 1977: 256),

quanto pode expressar

“uma estentórea voz de comando, a linguagem

da autoridade legítima em termos da qual o

Page 56: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

50

homem de substância compete pelo poder”

(Lewis, 1977: 256).

A evidente contradição entre as duas “funções sociais” da

posse ssão seria superada, segundo Lewis, se se admitisse que cada

uma dessas funções corresponderia a um determinado tipo de

segmento social envolvido no grupo, bem como a um certo padrão de

estrutura social. Assim, os segmentos de uma sociedade — escravos,

servos, mulheres, e todo tipo de “inferiores estruturais” —

tenderiam a se organizar em grupos de cultos específicos: os

“ cultos perifér i cos ”, onde indivíduos situados em posições

socialmente inferiores, dentro de dada estrutura, incorporariam

espíritos igualmente “ma r ginais” (inconstantes, rebeldes, etc).

Este tipo de culto funcionaria, pois, invertendo as posições

sociais ordinárias, ao colocar como agentes e pacientes principais

do culto pessoas e e spíritos social ou religiosamente

marginalizados. Aqui, portanto, alguém tornar-se-ia xamã ou

possesso como compensação por sua ba i xa situação cotidiana.

Quando o culto de possessão não inverte a ordem social mas,

ao contrário, parece reforçá-la, não estaríamos mais,

evidenteme nte, diante de “cultos periféricos”, mas sim frente às

“ religiões de moralidade principal ” praticadas pelos segmentos

superiores e dominantes da sociedade e da qual participariam

apenas espíritos ancestrais, divindades também dotadas, num certo

sentido, de mor alidade e de status elevados. Assim, as “religiões

de moralidade principal” contribuiriam para a manutenção da ordem

social abra ngente na medida em que, deslocando da esfera dos

homens para aquela dos deuses as decisões tomadas e as ordens

proferidas, r eforçariam a subordinação e a obediência das camadas

sociais inferiores e, consequentemente, o grau de integração

social. Isto não quer dizer, em hipótese alguma, como se poderia

imaginar, que os “cultos periféricos”, constituam alguma espécie

de ameaça co ntra a ordem estabelecida. Ao contrário, ao inverterem

Page 57: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

51

apenas “simbolicamente” (isto é, ilusoriamente) as posições

sociais dos indivíduos estruturalmente inferiores, esses cultos

também estar i am contribuindo para o reforço dela na medida em que

forneceriam a estas pessoas uma espécie de “válvula de escape”

para a pressão social a que elas estariam submetidas. Vê-se logo

quão próximas estas teses se encontram daquelas elaboradas por

Raymond Firth a partir do funcionalismo malinowskiano.

Paralelamente, Lewis tece algumas considerações a respeito

das condições psicofisiológicas adequadas para a possessão,

questão respondida em consonância com a análise sociológica

resumida acima. Nos “cultos periféricos”, o transe seria possível

devido à própria posição social inferior de seus participantes,

posição que os tornaria extremamente vulneráveis a “crises

histéricas” (cf. Lewis, 1977: 247). Já no caso das “religiões de

moralidade princ i pal”, seus praticantes — os membros das camadas

superiores da sociedade — estariam, de acordo com uma proposta de

Yap aceita sem restrições por Lewis, ao abrigo dessas “crises

histéricas”, fruto de pressões sócio-políticas fortes. Neste caso,

o autor sustenta então que a possessão deve aparecer como resposta

a condições s ócio-econômicas altamente instáveis, transferindo

consequentemente o foco das pressões da estrutura social para o

meio-ambiente (cf. Lewis, 1977: 250-251). Em síntese, o transe

derivaria da submissão dos indivíduos seja a sistemas sociais

opressores (nos “cultos p eriféricos”), seja a realidades naturais

hostis (no caso das “religiões de mor alidade principal”).

As hipóteses de Ioan Lewis a respeito das “religiões

extát i cas” correspondem então, sem dúvida, a um certo tipo de

“teoria de compensação”, que, considerando essas religiões como

“deprivation cults”, se dedica a demonstrar a que “privações” elas

respondem simbolicamente. Ora, a outra grande teórica

funcionalista da po ssessão, Mary Douglas, dirige a essa modalidade

de explicação uma crítica i ncisiva:

Page 58: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

52

“The theory is couched in vague

psycho analytical terms, made to include too

much and too many contradictory cases in

its scope (...). Compensation theory treats

the symbolic order as a secondary result of

the social order, as purely expressive”

(Douglas, 1982: XIII-XIV).

Como alternativa a este tipo de teoria “compensatória”, Mary

Douglas propõe o que ela denomina “replication hypothesis” — a

suposição de que o ritual, assim como todo sistema de símbolos,

consiste em um “código restrito” que não inverte ou compensa o

“código abrangente” (a sociedade), mas, basicamente, tende a

rep eti-lo a outro nível e com outra eficácia (cf. Douglas, 1982:

XIV). Em outros termos, o tipo de estrutura social e o tipo de

sistema simbólico (e ritual) encontrado em seu interior seriam

sempre co ngruentes. Assim, as sociedades rigidamente estruturadas

(seja em termos de grupos exclusivos fortemente marcados ou de

códigos de relações interpessoais restritivos — “group” e “grid”

como os ch ama respectivamente Douglas) corresponderiam rituais

ligados a proibições alimentares, sacrifícios, purificações,

proteção de orifícios corporais, etc. Isto porque nesse tipo de

sistema social o corpo humano funcionaria como metáfora adequada,

devido a seu alto grau de estruturação e a seus limites bem

marcados, caract erísticas homólogas àquelas desse tipo de

estrutura social. Ao contrário, em sociedades ou grupos de

estrutura mais fluida, menos submetida portanto aos

constrangimentos do “group” ou do “grid”, o corpo só poderia

funcionar de maneira inversa, como metáfora de negatividade,

devendo portanto ser negado em sua ordem e sistem aticidade. É por

isto que os cultos de possessão (ao menos aqueles que encaram o

transe como positivo) encontram seu substrato prop í cio nesse tipo

de ordem social, frouxa e instável, da qual eles “repetiriam” a

estrutura (ou a falta dela) no momento em que pr omovem a

Page 59: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

53

dissociação da personalidade e do próprio corpo: o transe

reproduziria então a nível ritual e simbólico um certo tipo de

padrão real de relações sociais vigentes (cf. Douglas, 1982: 74).

Assim, apesar de discordâncias aparentes e de críticas

explícitas, o esquema de interpretação proposto por Mary Douglas

para a possessão é rigorosamente paralelo àquele apresentado por

Ioan Lewis, correspondendo apenas, por uma simples diferença de

ênfase, a duas vertentes possíveis dentro do mesmo arcabouço

estrutural-funcionalista. De fato, a questão de base de ambos é

exatamente a mesma: como relacionar um fenômeno de ordem

“religi osa” com o nível “sociológico”. Tanto um quanto o outro

admitirão tratar-se de uma relação de “reforço” (Lewis) ou de

“repetição simbólica” (Douglas) da estrutura social por parte da

religião. A diferença é que Lewis pressupõe que, em alguns casos

(“cultos p eriféricos”), a modalidade de relacionamento

cultura/sociedade pode deixar de ser a de reflexo direto passando

a constituir uma inve r são simbólica do segundo termo efetuada pelo

primeiro. Mas esta diferença é superficial. Mary Douglas que, como

vimos, critica e ste tipo de posição por não reconhecer o poder

específico dos símbolos, argumenta entretanto, justamente para

defender esta fo r ça do simbólico, que

“The symbols themselves lash back at the

people and divert their attempts to change

their lot into channels which do more to

symbolise than to improve it” (Douglas,

1982: XIV),

chegando assim, paradoxalmente, à mesma posição de Lewis, para

quem os símbolos apenas fornecem falsos meios de compensação para

os desprivilegiados, sem que a harmonia, a unidade, e a

estabil i dade da estrutura social fiquem por isso comprometidas. Em

suma, pode-se dizer que o teórico da inversão e da compensação

admite a reprodução direta da estrutura social ao menos nas

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“religiões de moralidade principal”, e que a defensora da

“replication hypoth esis” aceita, ao menos implicitamente, a

inversão ao sustentar que ao proceder simbolicamente os agentes

sociais terminam por aband onar a ação social real.

Essa concordância entre estes dois autores deriva

evident emente dos postulados básicos do estrutural funcionalismo

que ambos adotam explicitamente. Firmemente ancorada na tradição

durkheimi ana, essa corrente de pensamento antropológico começa por

recusar todo reducionismo de tipo bio-psicologizante a que chegam,

como vimos, tanto o evolucionismo quanto o culturalismo e o

funcion alismo de inspiração malinowskiana. Para isso, contudo,

termina por transpor este reducionismo externo para um plano

interno, press upondo que todo o “social” não passa de expressão,

direta ou invertida, da estrutura social , entidade que em tal

sistema não pode deixar de ser definida, em termos quase

psicológicos, como o somatório das relações pessoa a pessoa. Tudo

se passa como se, de modo evidentemente absurdo, houvesse “dentro”

da sociedade uma s ociedade mais real do que ela, e da qual a

primeira não passaria de projeção. Os funcionalistas tentam

resolver a óbvia contradição apelando para a tradicional dicotomia

sociedade/cultura, mas, ao fazê-lo, terminam por restringir o

simbolismo ao segundo destes domínios, reduzindo-o no mesmo golpe

a uma espécie de elaboração secundária efetuada sobre a realidade

(não-simbólica) das relações sociais concretas (para uma

elaboração refinada em torno deste ponto, cf. Sahlins, 1976: 117-

120).

É possível então, neste ponto tentar resumir as principais

posições do funcionalismo em relação à questão da possessão. Dos

quatro pontos abaixo, os dois primeiros são enfatizados pelos

autores de influência malinowskiana, enquanto os dois últimos

aparecem com mais nitidez naqueles seguidores da vertente

estrut ural-funcionalista. Isto não significa uma exclusividade,

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55

uma vez que os quatro temas aparecem em praticamente todos os

autores fu ncionalistas, bem como, de alguma forma, também nas

análises evolucionistas e culturalistas do transe:

a) A “ideologia” da possessão fornece uma explicação para

fenômenos psico-fisiológicos (mórbidos ou não) e provê a

soci edade com um mecanismo simbólico para lidar com as

enfermidade, esp ecialmente com as doenças mentais.

b) A possessão é uma estratégia de alívio de tensões,

seja a nível das relações da sociedade com o meio-ambiente,

seja a nível das relações do indivíduo com a sociedade.

c) A possessão fornece um meio pelo qual indivíduos

soc i almente desprivilegiados manipulam sua situação buscando

atingir status mais elevados e obter maior prestígio e poder.

d) A possessão possibilita a manutenção da ordem social:

seja porque transfere para os deuses decisões tomadas pelos

homens — impedindo assim um conflito entre grupos com

interesses opostos — seja porque, invertendo apenas

simbolicamente as p osições sociais, evita uma inversão real que

transformaria a própria estrutura da sociedade.

6. As Estruturas Elementares do Xamanismo e da Possessão

O estruturalismo antropológico, talvez mais do que qualquer

outra corrente de pensamento nesta disciplina, é acima de tudo

obra de um autor. Aplicando à análise etnológica princípios

dese nvolvidos em outros campos científicos, especialmente na

Lingüística estrutural, e transformando-os de acordo com as

nece ssidades, Claude Lévi-Strauss tentou explicitamente forjar

para a Antropologia um método de análise que evitasse e superasse

os principais impasses e dificuldades contidos nas abordagens

anter i ores. E se existisse algum traço marcante na perspectiva

Page 62: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

56

estruturalista, que paira, creio, acima das inúmeras discussões

por ela levantadas, é seu caráter e ssencialmente anti-

reducionista. Trata-se sempre, no caso do estruturalismo, de

est udar um fenômeno a partir de sua estrutura , definida aqui como

o jogo de transformações lógicas internas ao campo enfocado. Em

outros termos, qualquer que seja o fenômeno em questão —

parentesco, totemismo, mitologia, etc. — o estudo parte sempre do

pressuposto de que cada nível da realidade social é definível e

compreensível através de relações que lhe são imanentes, evitando-

se conseque ntemente reduzi-lo a alguma outra instância do real

tida, aprioristicamente, como mais substantiva ou determinante. É

verd ade que Lévi-Strauss, em seus últimos escritos, tende a

pressupor a existência de um tipo de redução cientificamente

legítimo mas, c omo veremos mais adiante, ele não tem nada em comum

com o tipo de reducionismo que temos tratado até aqui.

Os fenômenos de transe e possessão são tratados apenas

mar ginalmente não obra do próprio Lévi-Strauss. Apenas três

artigos (Lévi-Strauss, 1949a; 1949b; 1950) de sua extensa produção

cient í fica referem-se de uma forma mais direta ao assunto,

abordando-o principalmente pelo lado do xamanismo. Os dois artigos

de 1949 não se preocupam muito com a questão do êxtase

propriamente dito, co nsistindo antes, o primeiro numa tentativa de

explicação psico-sociológica para o recrutamento e a conversão de

xamãs, e o segu ndo, numa análise das condições simbólicas de

possibilidade para a eficácia fisiológica da cura xamanística. Já

na famosa “Introdução à Obra de Marcel Mauss” (Lévi-Strauss, 1950)

o tema é abordado de mais perto. E muito embora Lévi-Strauss

sugira a existência de a l gumas semelhanças estruturais entre os

fenômenos extáticos e as chamadas doenças mentais, o que convém

por ora (já que este ponto será retomado) é chamar a atenção para

a advertência feita por ele contra a apressada assimilação destes

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57

fenômenos seja a perturb ações psicológicas, seja a técnicas

“médicas” para seu tratamento:

“Cela ne signifie pas que les sociétés

di tes primitives se placent sous l’autorité

de fous; mais plutôt que nou-mêmes traitons

à l’aveugle des phénomènes sociologiques

comme s’ils relevaient de la pathologie,

alors qu’ils n’ont rien à voir avec elle,

ou tout au moins, que les deux aspects

doi vent être rigoureusement dissociés. En

fait, c’est la notion même de maladie

mentale que est en cause” (Lévi-Strauss,

1950: XXII).

A análise estrutural da possessão permanece então apenas em

estado de esboço na obra de Lévi-Strauss, e será preciso talvez um

dia completá-la. Enquanto isso devemos constatar que a tentativa

de elaboração desta teoria se encontra, de forma mais acabada, nas

mãos de Luc de Heusch que em três artigos, datados respectivamente

de 1964, 1971 e 1974, procura encontrar o sentido subjacente às

diferentes formas de manifestação empírica do transe nas várias

sociedades humanas. Autores como Gilbert Rouget (1980) ou Jean

Pouillon (1975) que, implícita ou explicitamente, pretendem

ass umir um ponto de vista estruturalista, limitam-se, no que diz

re speito especificamente ao tratamento teórico da possessão, a

retomar as teses de Luc de Heusch, analisando sua conexão com

f enômenos marginais aos objetivos deste trabalho (música no caso

de Rouget; relações entre medicina, psicanálise e possessão no

trab alho de Pouillon). Para o que aqui interessa, o texto central

é sem dúvida o artigo de Heusch de 1971 que, retomando as

principais c olocações de 1964, pretende oferecer uma visão

sintética do fenômeno em questão. Parece conveniente, pois, seguir

as idéias deste artigo, na medida em que elas indicam, por suas

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58

virtudes, o caminho a ser seguido na busca de uma teoria

antropológica da po ssessão, como também mostram, por seus

defeitos, as armadilhas a serem evitadas num tal empreendimento.

Em primeiro lugar, Heusch busca definir logicamente um campo

estrutural próprio aos fenômenos extáticos. Para fazê-lo, sugere

que este campo estaria composto por quatro tipos de manifestação

extática que formariam, devido ao jogo de seus afastamentos

dif erenciais internos, um “grupo de transformação”: xamanismo e

possessão se oporiam globalmente entre si, pois enquanto o

prime i ro consiste numa ascensão dos homens até os deuses, a

segunda é sobretudo uma “descida” das divindades até o mundo e o

corpo hum anos. Por outro lado, cada uma dessas duas modalidades de

transe se subdividiria em duas formas de manifestação: o xamã

tanto pode operar através da recuperação de almas perdidas pelos

homens — e temos aqui o que Heusch denomina de adorcismo , ou seja,

a cura através da introdução de alguma coisa no corpo do enfermo;

ou, p ara ser mais preciso neste primeiro caso, a reintrodução de

sua alma perdida — como através da extração de um suposto corpo

estr anho que haveria se introduzido em alguém causando-lhe uma

doença — estaríamos às voltas então com um exorcismo , cura através

de e xtração.

Por seu turno, a possessão também apresentaria esses dois

tipos de manifestação, o adorcismo e o exorcismo. O primeiro

oco r reria no que Heusch denomina “possessão benéfica”, ou seja,

naqueles casos em que o próprio objetivo do culto é provocar a

i ncorporação das divindades nos fiéis; já o segundo tipo de

possessão seria encontrado nas “possessões maléficas”, casos em

que a incorporação ou influência espiritual é diagnosticada como

causa de uma enfermidade, devendo então proceder-se à expulsão do

espírito responsável. Existiriam portanto os quatro tipos

segui ntes de manifestação extática:

Page 65: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

59

a) o “xamanismo adorcista”, representado pelas práticas

siberianas classicamente estudadas por historiadores da

relig i ão e antropólogos, onde o xamã viaja pelos espaços

míticos em busca da alma perdida do enfermo;

b) o “xamanismo exorcista”, que encontra seu exemplo na

prática terapêutica do xamã cuna descrita por Lévi-Strauss

(1949a), onde a cura depende da “extração” de uma criança que

se recusa a nascer, obstruída que está por determinada entidade

espiritual;

c) a “possessão adorcista”, caso clássico dos cultos

afro-brasileiros, entre outros, onde a intenção das práticas

rituais é provocar a descida dos deuses para que estes se

encarnem no corpo dos homens; e

d) a “possessão exorcista”, da qual poder-se-ia citar

como exemplo o tratamento dado à “possessão demoníaca” na

tradição judaico-cristã, e que consiste na expulsão de um

esp í rito cuja encarnação é pensada como causa de perturbações

físicas e mentais.

Estes quatro tipos de manifestação extática mantêm complexas

relações lógicas entre si, constituindo o que Luc de Heusch chama

de uma “geometria da alma”, e que ele sintetiza no seguinte

di agrama caracterizado, em seus próprios termos, por uma “dupla

sim etria”, horizontal e vertical ao mesmo tempo:

ADORCISMO EXORCISMO

Xamanismo A Xamanismo B

(retorno da alma) (extração de uma presença estranha a si

mesmo)

Possessão A Possessão B

(injeção de uma nova

alma)

(extração de uma alma estranha a si mesmo)

Page 66: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

60

(Heusch, 1964: 266)

Teríamos assim nas linhas verticais adorcismo e exorcismo , que se

opõem logicamente termo a termo, e nas horizontais, ascensão (os

dois casos de xamanismo) e descenso (as duas formas de possessão),

que também estão opostos em bloco: completar-se-ia portanto o

“grupo de transformação” esboçado por Luc de Heusch e

caracterí stico, sabe-se, do método estrutural.

No entanto, e conforme o próprio Lévi-Strauss o sustentou

(cf. Lévi-Strauss, 1975: 26), a constituição de um grupo de

tran sformação não corresponde ao objetivo último da análise

estrutural mas, ao contrário, pretende fornecer apenas seu ponto

de partida ao corresponder ao momento de construção de seu objeto

teórico, objeto que deve então ser exaustivamente analisado. Ora,

é aqui justamente que se encontra o ponto cego do trabalho de Luc

de Heusch, uma vez que, ao invés de buscar esgotar as

determinações internas a seu objeto, ele se dedica apressadamente

a explicá-lo através de uma comprometedora redução a outro nível

de realidade, esquecendo, parece, a lição levistraussiana de que a

explicação se encontra já, de forma imanente, nas relações lógicas

entretidas pelos componentes do grupo, não havendo portanto nem

necessidade nem sentido em buscá-la em outra parte.

Heusch, por sua vez, pretende fundar a razão última do

tra nse, seja ele de possessão ou xamanístico, na experiência

“universal” da infelicidade e da desgraça, representada da forma

mais pura, s egundo ele, pela enfermidade:

“A prática religiosa universal das

socied ades chamadas arcaicas mostra

suficientemente que no plano individual o

rito é, muito freqüentemente, resposta à

desgraça e ao fracasso. E sem dúvida a

experiência pessoal mais dolorosa da

Page 67: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

61

desgraça não cessou de ser a da

enfermidade. Nosol ogia e religião se acham

sempre estreitamente soldadas; nas culturas

pré-científicas esses domínios não chegaram

a se separar completamente nem no próprio

seio do cristianismo” (Heusch, 1971: 280).

A primeira redução operada por Heusch conduz portanto da religião

à angústia experimentada frente à “desgraça e ao fracasso”; a

segunda leva da infelicidade à enfermidade. Finalmente, a terceira

conduzirá da enfermidade em geral até sua forma específica de

“d oença mental”:

“Pode-se inclusive dizer que a doença

mental é a doença por excelência, já que a

propriedade ‘sobrenatural’ de toda doença

se afirma nela com o máximo de notoriedade.

Nela é onde se expressa em estado puro o

vínculo entre doença e religião,

subst i tuindo o ser do espírito, momentânea,

periódica ou definitivamente, ao ser do

homem, na mais inquietante das epifanias”

(Heusch, 1971: 284).

A partir dessa tríplice redução fica bastante fácil

“expl i car” o transe. Este consistira então num mecanismo

universalmente apto a funcionar como uma “resposta para a

enfermidade”; os dive r sos tipos de possessão e xamanismo isolados

(poder-se-ia talvez perguntar para que) trabalhariam e utilizariam

um dado natural — a doença, especialmente a mental — construindo

intrincados sistemas simbólicos cuja única função, parece, seria a

de se oporem à a ngústia sentida em relação à degradação do próprio

corpo (cf. Heusch, 1971: 283). Assim, alguns sistemas investiriam

nas doenças fisiológicas, outros nas mentais, seja arrebanhando

Page 68: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

62

entre os e nfermos seus xamãs e/ou possessos, seja encontrando

entre eles os pacientes adequados para seus sacerdotes-médicos,

seja, finalme nte, fazendo uma coisa e outra:

“o transe pode aparecer como o aspecto

cul tural da doença mental (...) ou, pelo

contrário, em virtude de uma inversão

rad i cal que fundamenta o campo estrutural,

como o instrumento generalizado da ação

terapê utica” (Heusch, 1971: 294).

Procedendo desta maneira Luc de Heusch afasta-se do

estrut uralismo que pretende praticar, dirigindo-se aos terrenos

menos sólidos do culturalismo e do funcionalismo (especialmente

malin owskiano) e, atrás deles, do evolucionismo vitoriano. Um

estudo verdadeiramente estruturalista deveria adotar uma

perspectiva mu i to diferente. Criticando aqueles que pretendem

explicar determinados tipos de ordem através de sua redução a

conteúdos de outra natur eza, Lévi-Strauss escrevia em 1971:

“Le structuralisme authentique cherche, au

contraire, à saisir avant tout, les

propr i étés instrinseques de certains types

d’ordres. Ces propriétés n’expriment rien

qui leur soit extérieur” (Lévi-Strauss,

1971: 561).

O estruturalismo autêntico se opõe então diametralmente ao

reducionismo e é esta, vale repetir, uma das inúmeras novidades

introduzidas na Antropologia por Lévi-Strauss, na medida em que,

como vimos, todas as correntes anteriores estão marcadas por um

reducionismo global que assume em cada autor uma feição

partic ular. Deste ponto de vista, a teoria de Luc de Heusch

somente se acrescenta às anteriormente resumidas sem apresentar

Page 69: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

63

qualquer n ovidade. Uma explicação “autenticamente” estruturalista

para a possessão deveria, ao contrário, ser construída a partir de

certas observações de Lévi-Strauss acerca da religião em geral

(especia l mente em Lévi-Strauss, 1971; 1975; 1976) e do transe (cf.

Lévi-Strauss, 1950). Por ora, contudo, convém abandonar esta

discussão teórica mais geral que será retomada e desenvolvida no

último c apítulo deste trabalho.

A partir do que foi exposto acima então, creio ser possível

isolar dois temas recorrentes no discurso antropológico a respeito

da possessão, temas que fornecem para os diferentes autores

supo stas chaves explicativas para dar conta deste complexo

fenômeno. Em primeiro lugar, a conexão postulada entre possessão e

enfermidade (ou, ao menos, certas formas às vezes consideradas

como não-patológicas de “dissociação da personalidade”, o que não

altera em nada a questão): ora considerando o êxtase como doença,

e mais e specificamente como doença mental, ora tomando-o como

forma de tratamento “pré-científico” para perturbações

psicofisiológicas, a Antropologia tem sustentado desde Tylor que

transe e doença tran scorrem sobre um mesmo plano lógico. O outro

tema presente nas análises antropológicas da possessão é o de seu

caráter político, funcionando como canal de manifestação para

segmentos sociais oprimidos ou como estratégia de manutenção da

ordem social, tr atando-se então nestes casos de um terreno aberto

para manipulações individuais que procurariam alterar o equilíbrio

do poder em seu próprio benefício. Duplo reducionismo pois: ao

bio-psicológico no primeiro caso; ao sócio-político no s egundo.

Tentarei mostrar mais adiante as razões pelas quais

consid ero inadequadas, de um ponto de vista estritamente

antropológico, essas duas concepções fundamentais acerca do

transe, tentando el aborar sua crítica e indagando a respeito da

possibilidade de construção de uma teoria antropológica da

Page 70: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

64

possessão que escape a esses dilemas. Antes disso contudo, parece

conveniente tentar pe r ceber como princípios teóricos gerais operam

quando aplicados a realidades etnográficas concretas. Para isso

procederei a uma r evisão das diversas modalidades de explicação do

transe geradas a partir das análises de manifestação deste

fenômeno nos quadros dos chamados “cultos afro-brasileiros”.

Perceber-se-á então que os t emas básicos isolados acima aparecerão

aí também, de forma ainda mais explícita, e nesse ponto será

possível elaborar uma crítica e tentar seguir adiante.

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65

CAPÍTULO II

A POSSESSÃO NO BRASIL

1. Introdução

Vimos no capítulo anterior que o tipo de interesse

manifest ado pelo Ocidente em relação aos fenômenos extáticos

observáveis nas “outras” sociedades com quem a aventura colonial o

colocava em contato pode ser entendido, ao menos em parte, como

resultado de uma projeção da relação que a própria sociedade

ocidental tem ma ntido com o transe e a possessão em seu próprio

interior. Ora, sendo esta relação marcada fundamentalmente por uma

exclusão e p ela recusa do êxtase como resultante de uma natureza

patológica, e sendo que as sociedades “primitivas” ofereciam uma

espécie de im agem invertida desta situação, por localizarem

freqüentemente a possessão no centro de suas atividades “normais”,

a observação do transe e de seu lugar nessas sociedades não

poderia deixar de pr ovocar um certo questionamento, implícito, de

alguns dogmas ocidentais. Este questionamento, contudo, não foi

evidentemente levado adiante, ao menos nesse primeiro momento,

tendo-se produz i do ao contrário uma tentativa de neutralização

desta ameaça lógica. Para esta tentativa, a recente “ciência da

sociedade” p arece ter contribuído de alguma forma, ao buscar

reduzir os fenômenos extáticos a formas de patologia ou de poder

bastante c onhecidos pela sociedade ocidental.

Ora, se esse violento processo etnocêntrico de rejeição

oco r re quando de um contato com sociedades “exóticas” e distantes,

próximas apenas em função de contingências políticas e econômicas

derivadas da exploração colonial, pode-se imaginar o que

acontec eria quando os fenômenos sujeitos a esse processo se

Page 72: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

66

encontram no seio, ou ao menos ao lado, da própria cultura que

busca rejeitá-los. É claro que algo assim também se passa na

Europa vitoriana, na medida em que o nascimento da Antropologia

Social e de sua pr eocupação com o êxtase, preocupação aliás

compartilhada com fervor pela psiquiatria da época, coincidem com

a formação de um culto extático, o espiritismo “científico”

europeu. Mas não pode haver termo de comparação entre este

processo e o que ocorre numa soci edade onde convivem, lado a lado,

as ambições cientificistas do século XIX ocidental, e

manifestações religiosas de transe e po ssessão oriundas de

“primitivas” sociedades africanas. É exatamente isto que ocorre no

final do século XIX no Brasil, onde o segmento branco dominante

busca afirmar e reafirmar seu alto grau de “civ i lização” e

libertar-se das amarras de um passado visto como obscurantista e

inferior.

Neste sentido, quando começam a surgir no Brasil os esboços

de uma ciência social, é exatamente para este problema, mais

sócio-político do que teórico, da convivência entre uma sociedade

civilizada, branca e “européia”, com uma outra, primitiva, negra

ou indígena, que as atenções se voltam. E se, num primeiro

momento, são as populações indígenas e sua assimilação que

constituem o foco das preocupações, já a partir de 1873 com Silvio

Romero a questão negra começa a ser encarada no contexto de uma

problemát i ca geral com a formação étnica e cultural da sociedade

brasileira (cf. Pereira de Queiroz, 1978: 101-102). Mas será

apenas com Nina Rodrigues, a partir da última década do século

XIX, que o “negro” passa a ser um objeto de investigação em si

mesmo, investigação incitada por um problema central, aquele da

“integração do negro” na sociedade abrangente a partir da

Abolição: como pensar a co existência igualitária de duas raças

intelectual e culturalmente desiguais sem pôr em risco a harmonia,

o ordem e o desenvolvimento do país (cf. Rocha, 1973)? Os autores

Page 73: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

67

que se sucedem — Euclides da Cunha, Manuel Querino, Oliveira

Vianna, Gilberto Freyre, Arthur Ramos — permanecerão todos dentro

desta questão “dualista” básica, variando apenas o “pessimismo” ou

o “otimismo” respectivo de cada um deles, desde o temor de Nina

Rodrigues pelo “enegrecimento” da civilização branca brasileira

com sua conseqüente e inevitável queda na barbárie e na

selvageria, até a apologia integracionista de Gilberto Freyre. Em

outros termos, como sustenta Maria Isaura Pereira de Queiroz, a

noção central a todos esses autores é:

“a noção de que a integração só é possível quando há

harmonia entre as diversas partes que constituem o conjunto —

harmonia que para alguns resultaria da semelhança indiscutível

entre estas partes (...) e para outros se basearia na indiscutível

dominação de uma raça superior sobre as raças inferiores” (Pereira

de Que i roz, 1978: 110).

É assim num tal contexto, simultaneamente teórico e político,

que surge o interesse nos chamados cultos africanos no Brasil.

Afinal, estes não poderiam deixar de ser vistos como prova e

exemplo claros da “heterogeneidade dos espíritos” para retomar uma

expressão significativa de Nina Rodrigues: cultos “bárbaros e

pr i mitivos” no próprio coração de uma moderna sociedade cristã e

científica. E é bastante evidente que no interior dos estudos

sobre tais cultos a possessão ocupará um lugar central compondo,

como um de seus traços mais aberrantes, o quadro primitivo e

ate r rorizante que se imaginava poder pintar da cultura negra no

Brasil. Roger Bastide, um tanto ingenuamente, parece acreditar que

a ênfase obstinada com que a possessão foi estudada pelos

prime i ros pesquisadores dos cultos afro-brasileiros se deveria ao

fato de que, em sua maioria, estes pesquisadores eram médicos de

form ação. Ora, parece óbvio, ao contrário, que, além da questão

central da “eugenia” (seja em sua forma diretamente biológica da

mestiç agem racial e dos males por ela pretensamente causados, seja

em sua transformação antropológica com o “sincretismo religioso”,

esta “mestiçagem do espírito” como a chamava Nina Rodrigues — cf.

Page 74: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

68

Rocha, 1973: 08), são exatamente esses estados “mórbidos” do

transe que parecem ter feito com que médicos-legistas e

psiquiatras t i vessem se dedicado ao estudo de um objeto tão

distante de suas preocupações cotidianas. A partir de tais

pressupostos, o destino do transe nos cultos afro-brasileiros só

poderia ser mesmo o gab i nete médico, e o diagnóstico que lá o

espera será, inevitavelmente, o de “enfermidade mental”. É

justamente esta a posição dos primeiros estudiosos do assunto.

2. As Explicações Médico-Psiquiátricas

Foi então Raimundo Nina Rodrigues o primeiro a se interessar

de forma mais direta pela posição ocupada pelos negros africanos

trazidos como escravos e por seus descendentes no seio da

socied ade brasileira. Seus primeiros trabalhos sobre este tema são

explicitamente médicos, ou de medicina “social” talvez. Consistem

eles numa série de artigos escritos entre 1883 e 1898, publicados

por Arthur Ramos meio século mais tarde (cf. Nina Rodrigues,

1939). Estes artigos tratavam basicamente dos problemas

patológ i cos, tanto individuais quanto sociais, causados pela

mestiçagem racial, desde sublevações populares como Canudos

(episódio class i ficado como “loucura epidêmica”) até bárbaros

assassinatos como aqueles prat i cados por Lucas da Feira (cf.

também Rocha, 1973: 05-07). A partir desses estudos, Nina

Rodrigues projeta um grande trabalho a respeito do “problema da

raça negra na América Port uguesa”, trabalho do qual o estudo dos

fenômenos religiosos deveria constituir apenas uma parte, mas que

terminou por ser a única co i sa publicada pelo próprio autor,

primeiramente em 1896 na “Revista Brazileira” e depois, quatro

anos mais tarde, como livro editado na Bahia em francês. Tratava-

se, de seu ponto de vista, de contr i buir para a solução dos

problemas raciais e sociais levantados pela formação do povo

Page 75: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

69

brasileiro, de estudar ao mesmo tempo as mestiçagens “racial e

espiritual” às quais ele estaria submetido, tudo isso sem jamais

perder de vista sua condição de médico, tal como afirma na

Introd ução de sua principal obra:

“Je suis médecin, j’ai à peine besoin

de le dire et n’ai pas d’autre ambition.

Les excursions de la médicine dans le

domaine de l’amélioration ou du

perfectionnement des peuples ont inspiré

ces pages consacrées au service — petit

sans doute, car je ne saurait faire mieux —

de ma chére patrie” (Nina Rodrigues, 1900:

VI-VII) 6.

Dentro deste projeto global bastante ambicioso, o estudo dos

fenômenos religiosos de procedência africana possuía um duplo

objetivo, objetivos igualmente importantes para a demonstração da

tese geral: em primeiro lugar estabelecer a própria realidade das

“sobrevivências africanas”, negando que a catequese a que tinham

sido submetidos os escravos, bem como o catolicismo que eles

hav i am aparentemente adotado, fossem mais do que um simples verniz

encobrindo o segredo de tradicionais práticas mágico-religiosas (e

nesse ponto Nina Rodrigues se considera um inovador lutando contra

os “lugares-comuns da ciência oficial”). Além disso, tratava-se de

demonstrar que, por sua existência mesmo, essas “sobrevivências”

eram prova cabal de uma inferioridade mental da raça negra que a

6 Nina Rodrigues abre a edição em francês de “O Animismo

Fetichi sta” (publicada contudo em Salvador) com uma “Advertência”

que chama a atenção para a “ignorância dos nossos tipógrafos” em

rel ação à língua francesa, o que explicaria os inúmeros erros

ortográficos da edição. As citações aqui utilizadas mantêm a forma

original da i mpressão do texto.

Page 76: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

70

tornava incapaz de absorver plenamente as “altas abstrações do

monoteísmo cristão”. É com esse intuito, para provar esta tese

básica, que Nina Rodrigues passa cinco anos visitando e estudando

os terreiros de Candomblé de Salvador e do Recôncavo Baiano (cf.

Nina Rodrigues, 1900: 03-04).

A hipótese de Nina Rodrigues é pois, desde o início,

biolog i zante, na medida em que atribui um determinado tipo de

religião a um certo grupo racial. Mas, de uma forma um tanto

curiosa este biologismo racista se encontra mesclado com uma série

de conce pções extraídas do “evolucionismo social”, especialmente

de Tylor e de Andrew Lang. Curiosa porque, sabe-se, o

evolucionismo social vitoriano tendeu sempre, explícita ou

implicitamente, a colocar-se em oposição ao determinismo racial,

ao admitir como princípio fu ndamental uma “unidade do espírito

humano” formalmente invariável, sendo o progresso considerado

antes como função do acúmulo e ape r feiçoamento de experiências e

conhecimentos do que de transformações de ordem biológica. Nina

Rodrigues, num primeiro momento, cruza estas duas concepções,

sustentando que as “leis da evolução psicológica” seriam as mesmas

em todas as raças , e não em todas as sociedades ou culturas como

tendia a dizer o evolucioni smo social clássico (cf. Nina

Rodrigues, 1900: 135). Procedendo assim, ele transforma a analogia

darwinista presente no pensamento evolucionista numa verdadeira

homologia, tratando os diferentes ramos da humanidade como

verdadeiras espécies biológicas substa ntivamente distintas umas

das outras. Deste modo, a catequese e a conversão, e de modo mais

geral a própria integração do negro na sociedade brasileira teriam

que esperar que este atingisse um ce r to grau de maturidade

intelectual, fruto direto de sua lenta evolução racial. Só então,

acreditava ele, a integração teria a l guma possibilidade de sucesso

e, enquanto isso não acontecia, o mais indicado e o mais saudável

Page 77: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

71

seria manter as duas “raças” t otalmente separadas, evitando assim

os perigos da miscigenação racial e intelectual.

Uma segunda etapa do pensamento de Nina Rodrigues consiste

então em tentar classificar, numa escala de tipo evolucionista, a

religião afro-brasileira. A tarefa não parece muito fácil já que a

seus olhos coexistiriam em tais cultos elementos oriundos de

dif erentes estágios evolutivos, indo desde

“le fétichisme le plus étroit et le plus nuancé aux bornes

des généralistions polythéistes...” (Nina Rodrigues, 1900: 11).

Finalmente, após uma série de considerações ele termina por

considerá-la uma manifestação de “animismo difuso” de um

“fet i chismo” global, tomando de empréstimo a André Lefèvre essas

expressões. Isto significa, para simplificar, que, para Nina

Rodrigues, os negros afro-brasileiros atribuiriam vida a seres

inanimados (o que corresponderia ao “fetichismo”) e, de modo mais

específico, emprestariam a cada ser ou coisa um “duplo”

indepe ndente de seu corpo (o que caracterizaria o “animismo

difuso”). Essas religiões ocupariam portanto uma posição bastante

baixa na escala evolutiva dos sistemas de crenças, posição tida

como co ngruente ao parco nível de desenvolvimento mental da “raça

negra”, inferior mesmo para nosso autor àquele atingido pelo

indígenas brasileiros (cf. Nina Rodrigues, 1900: 14). Ora, é

dentro deste quadro de referências, ao mesmo tempo evolucionista e

biologiza nte, que uma explicação para o transe e a possessão será

buscada.

A esse respeito, pode-se dizer talvez que existe um certo

exagero na afirmativa de Roger Bastide de que Nina Rodrigues — por

sua condição de médico, novamente — teria centralizado todo o

cul to do Candomblé no transe extático, negligenciando outros

aspectos fundamentais do ritual e da mitologia. Na verdade, menos

de um quarto do “Animismo Fetichista” é consagrado à possessão, e

temas como o sistema mitológico, o panteão divino, os sacrifícios,

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72

os ritos fúnebres, a divinação, etc., ocupam também uma porção

sign i ficativa do trabalho. No entanto, é certo que o autor

localiza no transe um dos pontos capitais dos cultos afro-

brasileiros, e isto não devido a sua profissão, mas basicamente

porque Nina Rodrigues acreditava que, tanto para o fiel quanto

para o cientista, estava aí, na possessão, a prova definitiva seja

da eficácia, seja da e specificidade última desse tipo de culto.

Para o fiel, em primeiro lugar, porque:

“La meilleure prouve de la sincérité

et de la conviction des nègres fétichistes

— simples croyants, prêtres ou pontifes —

c’est précisément cette manifestation de

phénomènes étranges et anormaux, cette

aliénation passagère, mais vraie,

inconte stable, dont ils ignorent les causes

et qu’ils attribuent à l’intervention

surnat ureelle du fétiche” (Nina Rodrigues,

1900: 78).

Ou seja, tudo se passa como se a possessão, encarnando o

deus no homem, materializando sua existência invisível e abstrata,

criasse no fiel, que ignora as verdadeiras causas do fenômeno em

questão , a certeza de sua presença e de sua eficácia.

Mas a possessão também é essencial para o cientista que

busca justamente descobrir as “verdadeiras causas” do fenômeno.

Estas serão encontradas, sem muita dificuldade, no estreito

parentesco presumivelmente existente entre o transe e certos tipos

de distú r bios e perturbações psicológicas:

“D’aprés ce que j’ai entendu, d’aprés

les cas que j’ai observé et les examens aux

quels je me suis livré, je suis porté a

croire que les oracles fétichistes possédés

de saint ne sont autre chose que des états

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73

de somnambulisme provoqués avec

dédoubl ement et substitution de la

personnalité” (Nina Rodrigues, 1900: 81) 7.

Tais distúrbios e transformações seriam provocados por uma

série de técnicas em ação durante os rituais do culto: ingestão de

ervas alucinógenas, abstinência alimentar e sexual, esgotamento

causado pelas danças, efeito hipnótico da música, e assim por

di ante. Seriam também em tudo homólogos àqueles estados e

comportamentos observáveis nas crises histéricas, e é dessa

semelhança de forma que Nina Rodrigues extrai a causa última da

possessão. Esta consistiria simplesmente numa determinada forma

cultural de que é investida a perturbação de origem histérica 8:

“Quel que soit d’ailleurs le procédé

employé, l’état de somnambulisme une fois

provoqué, la création de la forme

psychol ogique est toujours affaire de la

suggestion ambiante” (Nina Rodrigues, 1900:

84).

Extraindo então de Pierre Janet e de seus estudos sobre o

mediunismo os conceitos de “histeria”, “sonambulismo” e

“desdobr amento da personalidade”, Nina Rodrigues faz do transe o

reflexo direto destas perturbações psicológicas, atribuindo ao

7 É interessante observar como a explicação de Nina Rodrigues,

apesar de tudo, se aproxima do modelo nativo. A primeira iniciada

em cada grupo de noviças é chamada “Dofona”, palavra Yoruba que

si gnifica literalmente “tornar-se vazio em primeiro lugar”.

8 Essa combinação, tantas vezes efetuada, entre possessão e

hist eria, é significativa. Sabe-se que com Freud a noção de

histeria foi desubstantivada e privada de toda realidade

discriminadora. Aconteceria então com a possessão o mesmo que com

a histeria (e, evide ntemente, com o totemismo — cf. Lévi-Strauss,

1975: 13)?

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74

“meio soc i al” apenas a capacidade de direcionar essas

manifestações. Mas restava ainda uma “última” dificuldade: os

psiquiatras da época tendiam a negar a existência da histeria

entre os membros raça n egra. Ora, se isto fosse verdade, como

explicar então o êxtase pela histeria se as “vítimas” mais

constantes do primeiro eram imunes à segunda? Para contornar a

objeção, Nina Rodrigues começa por te ntar comprovar a existência

de crises histéricas entre os “negros baianos”, embora admitindo

que sua freqüência seria aí muito menor do que aquela observável

entre brancos ou mesmo entre mestiços. Por fim, ele concorda em

admitir, seguindo Janet, que outras ca usas poderiam gerar o

“desdobramento da personalidade”, causas entre as quais estariam a

“alienação”, a “neurastenia”, a “estup i dez”, a “imbecilidade” e a

“idiotia”, entre outras formas de perturbação:

“Or, étant donné le faible

développ ement intellectuel des nègres

africains et la néurasthérie devant être la

conséquence de l’épuisement où les plongent

toutes ces pratiques ne constitueraient-

elles pas, par hasard, les conditions de ce

dédoublement de personnalité avec état de

possession s ugestive, que nous avons

étudiées sous la dénomination d’état de

saint (...). Le fa i ble développement

intellectuel du nègre primitive, aidé par

les pratiques épuisa ntes des superstitions

religieuses, envisagé comme facteur de

l’état de possession de saint, équivaut

donc à l’hystérie qui, pour les nègres plus

intelligents, constitue ce fa cteur” (Nina

Rodrigues, 1900: 105-106).

Em suma, uma dimensão biológica é acrescentada à explicação

psico-social esboçada de início, já que a causa do “desdobramento

Page 81: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

75

da personalidade” entre brancos, mestiços e “negros mais

intel i gentes” — a histeria — teria como equivalente entre os

“negros primitivos” uma característica racial sua, seu “fraco

desenvolv i mento intelectual”. Pode-se então resumir esta primeira

posição acerca do êxtase nos cultos afro-brasileiros dizendo-se

que, para Nina Rodrigues, a possessão é um estado patológico

provocado por uma histeria individual associada a um fraco

desenvolvimento de uma certa raça e a um impulso social do meio

que fornece tão s omente as direções que o comportamento desta

personalidade patológica tomará: psiquiatria, biologia e

antropologia mesclam-se então através da ação solvente de um

evolucionismo global extrem amente bem marcado.

Cerca de trinta anos depois de Nina Rodrigues, o estudo

si stemático dos cultos afro-brasileiros será retomado por Arthur

Ramos. Seu ponto de partida não é muito diferente daquele de quem

ele se considera um discípulo direto. Também médico-legista e

ps i quiatra, seu primeiro livro, datado de 1926, intitula-se

significativamente “Primitivo e Loucura”, mas, apesar disto,

pr ocurará marcar alguns pontos de discordância e ruptura em

relação a seu predecessor e mestre. A principal censura dirigida

por Arthur Ramos a Nina Rodrigues diz respeito ao fato de este

último ter b aseado, como acabamos de ver, seus estudos e suas

explicações num pretenso estado mental inferior, próprio ao negro

enquanto raça , estado que explicaria desde o sincretismo religioso

(pela incap acidade de compreensão do monoteísmo cristão) até a

possessão (por gerar, ao lado da histeria, os “estados de

sonambulismo com desd obramento da personalidade”). Ramos, ao

contrário, deslocará a ênfase da psiquiatria para a psicanálise e

da antropologia evol ucionista intelectualista para os estudos de

“mentalidade primitiva” de Lucien Lévy-Bruhl. Neste sentido, as

particularid ades dos cultos afro-brasileiros deveriam ser buscadas

Page 82: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

76

e explicadas não através de possíveis caracteres biológicos, mas

nas estruturas “psico-sociológicas” de uma “mentalidade primitiva”

que, longe de constituírem apanágio dos negros como raça, seriam

encontradas também entre as crianças, entre os neuróticos, e nas

obras de arte e sonhos de qualquer grupo racial, inclusive entre

os “brancos c i vilizados” (cf. Ramos, 1940: 27-31).

Assim, por exemplo, ao invés de explicar o sincretismo

rel i gioso pela suposta incapacidade negra em absorver a abstrata

teologia cristã, como havia feito Nina Rodrigues, Ramos atribuirá

tal sincretismo a uma analogia entre os “inconscientes coletivos”

do branco e do negro, analogia que teria feito corresponderem

santos católicos e orixás africanos precisamente naqueles pontos

em que ambos corresponderiam aos mesmos “complexos” fundamentais.

Deste modo, a equivalência entre a mãe d’água européia, a Iara

i ndígena e a Iemanjá africana repousaria sobre similitudes

inconscientes relacionadas a um certo arquétipo materno; os Orixás

masculinos seriam “fálicos”, a adoração dos gêmeos corresponderia

a uma manifestação do narcisismo primário através da duplicação do

“eu”, e assim por diante (cf. Ramos, 1940: 2 a Parte). Vê-se assim

como a psiquiatria de Janet tão utilizada por Nina Rodrigues cede

terreno à psicanálise dos arquétipos de Jung.

A segunda modificação da teoria de Nina Rodrigues por parte

de Arthur Ramos — a passagem de Tylor e do evolucionismo para a

teoria de Lévy-Bruhl — pode bem ser ilustrada pela interpretação

por ele construída para dar conta dos fenômenos de transe e

possessão nos cultos afro-brasileiros. À primeira vista, sua

abordagem dessa questão poderia mesmo chegar a fornecer uma falsa

impressão de afastamento em relação ao modelo médico-psiquiátrico

de seu predecessor. A objeção levantada contra a assimilação do

transe às perturbações histéricas poderia de fato conduzir a um

entendimento desse tipo:

Page 83: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

77

“Como argumenta Oesterreich, se o

parentesco das crises histéricas com os

casos de possessão é evidente, estes

estados não são idênticos. Encarados

exteriormente, a semelhança é perfeita

entre estas conto r sões, esta excitação

motora que tanta ate nção despertam. A

diferença é, antes de tudo, no domínio

psíquico” (Ramos, 1940: 274).

Ou melhor ainda:

“Vê-se desta maneira que os fenômenos

de possessão não podem ser identificados

somente à histeria como pregou a escola de

Charcot. São muito mais complexos (Ramos,

1940: 282).

Mas, se Arthur Ramos nega a existência de uma conexão direta

entre possessão e histeria, isso não é feito de forma alguma para

retirar o êxtase religioso do quadro etiológico das perturbações

mentais. O que ele censura nessa assimilação não é, como se

poderia imaginar, seu reducionismo extremado mas, bem ao

contrário, sua estreita timidez. Para ele o parentesco entre

histeria e po ssessão é apenas uma das possibilidades de

enraizamento do transe no domínio do patológico, na medida em que

ele se assemelharia também a todo um complexo quadro, bastante

variado, de distúrbios psicológicos:

“Sintetizando: a possessão espírito-

fetichista é um fenômeno muito complexo,

ligado a vários estados mórbidos. Pode ser

aguda ou crônica. No primeiro caso, nas

formas paroxísticas, transitórias, temos

aqueles processos, afins da histeria, onde

Page 84: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

78

se verificam os mecanismos motores de

re ação ancestral: ‘tempestade de movimento’

e ‘reflexo de imobilização’, e formas

hip onóicas de pensamento mágico-catártico,

comuns da histeria, dos estados

sonambúl i cos, hipnóticos, oníricos,

esquizofrênicos, com modificações da

consciência e da pers onalidade. Nos casos

sub-agudos e crônicos, as perturbações

demonopáticas e mediumnop áticas dos

possessos, acham-se ligadas ao automatismo

mental, e vão desde os fenôm enos

xenopáticos simples, até aos delírios mais

complexos, à base da influência” (R amos,

1940: 284).

Todo este arrazoado que parece extraído diretamente de um

manual de nosologia psiquiátrica significa simplesmente que Arthur

Ramos busca dissolver a possessão num vasto campo etiológico de

perturbações mentais. O que haveria de comum entre essas

manife stações patológicas todas seria seu caráter “regressivo”, na

medida em que fariam atuar

“esses estratos afetivos profundos,

arcaicos, resto hereditário de um primitivo

estágio da vida, daquela esfera mágico

catártica das reações afetivas” (Ramos,

1940: 283).

Em outro termos, não apenas a possessão é uma “doença

mental”, como várias doenças mentais conduziriam, na ordem

ontogenética, até ela, por gerarem regressões a estágios

evolut i vos ultrapassados, representados filogeneticamente pelos

próprios cultos de possessão.

Page 85: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

79

Até aqui, nada de antropologia social. No entanto, assim

como para Nina Rodrigues a assimilação do transe à histeria não

bastava para dar conta de sua manifestação nos cultos afro-

brasileiros — pois era preciso manifestamente explicar o tipo de

religião que concedia um lugar a tais processos — também Arthur

Ramos se vê obrigado a acrescentar uma dimensão “etnológica” para

sua explicação. Esta dimensão será encontrada justamente na

estr utura “pré-lógica” da “mentalidade primitiva” negra. Para

Lévy-Bruhl, de quem tais conceitos são diretamente extraídos, o

espec í fico dessa “lógica primitiva” seriam as “participações” que

ela supõe existir entre todos os elementos e compartimentos do

unive r so, uma “conf usão mística” onde

“o eu se confunde com o não-eu, onde

o microcosmo não se separa do macrocosmo e

onde o real não conhece limitação com o

i r real” (R amos, 1940: 296).

A partir daí, não fica difícil explicar as razões pelas

quais a possessão tenderia a ocupar um lugar privilegiado nas

r eligiões “primitivas”:

“Torna-se evidente que, nas proto-

religiões selvagens, o essencial do culto é

o contato com as divindades, que o

primit i vo provoca em várias práticas da sua

liturgia simbólica. É a busca desta

‘con sciência da presença dos espíritos’

(...). Daí, a universalidade, entre os

primitivos, dos fenômenos de possessão,

verdadeiramente a mais perfeita forma desta

fusão mística com a divindade” (Ramos,

1940: 260).

Em síntese, para Arthur Ramos, os cultos afro-brasileiros em

geral representariam a persistência de um certo tipo de

Page 86: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

80

mentalid ade característica de uma dada fase de desenvolvimento

sócio-cultural, mentalidade que, transplantada para outros

ambientes, passa a conviver com formas mentais mais avançadas,

tendendo neste processo a evoluir ao assimilar alguns elementos

destas formas. Neste contexto, a possessão é encarada como um dos

procedimentos mais adequados para atualizar as estruturas desse

tipo de mental i dade primitiva, ou seja, como uma técnica que

asseguraria (de modo ilusório, é claro) a “participação mística”

entre homens e deuses. Finalmente, a natureza última desta técnica

deveria ser buscada em seu estreito parentesco com todo um quadro

de perturbações mentais que possuiriam em comum o fato de

consistirem em regressões a e stados arcaicos do psiquismo

individual que coincidem com primitivos modos de vida da espécie.

Se uma relativa atenção foi aqui dedicada às contribuições

de Nina Rodrigues e Arthur Ramos para o estudo dos cultos afro-

brasileiros em geral e do lugar da possessão em seu interior em

particular, isso não se deve, evidentemente, a possíveis grandes

méritos teóricos de suas análises. Efetuadas há mais de meio

séc ulo, encontram-se de tal modo comprometidas pela evolução do

pensamento antropológico que sua desconstrução crítica pode passar

mesmo por um certo anacronismo. Acontece contudo que estes dois

autores balizaram um certo espaço, delimitaram um determinado

campo teórico que, com raríssimas exceções, continuou sendo

durante muito tempo o locus clássico de análise dessas religiões.

Isto é mesmo verdadeiro não somente para aqueles que seguiram

explicit amente seus postulados básicos, mas também para os autores

cujas pesquisas se desenvolveram contra suas hipóteses. Ou seja,

parece-me que Nina Rodrigues e Arthur Ramos definiram uma certa

problem ática teórica com a qual se tem, desde há muito, ora

concordado ora discordado violentamente, mas da qual ainda não se

conseguiu esc apar completamente. Esta problemática fundamental

Page 87: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

81

consiste basicamente numa indagação acerca da estranha permanência

dos cu l tos afro-brasileiros numa sociedade que se moderniza

velozmente, e dentro desta questão global é que se tem colocado

usualmente o problema teórico do transe e da possessão. Mais

adiante, no co ntexto de uma crítica global a esta problemática,

retornarei a essas observações. Por ora, convém continuar

esboçando o quadro de desenvolvimento das pesquisas sobre as

religiões africanas no Br asil e sobre o lugar do êxtase em seu

interior.

Acabamos de ver que o que caracteriza a primeira forma de

abordagem desses temas é uma tentativa de reduzir o transe a uma

psico-fisiológica em relação à qual o “meio social”, como dizia

Nina Rodrigues, atua apenas fornecendo uma vestimenta cultural ou

a encaminhando numa dada direção. É esta também, basicamente, a

posição de uma série de outros autores. Manuel Querino, por

exemplo, muito embora critique a visão racista e preconceituosa de

seu contemporâneo Nina Rodrigues, e não adote a tese de ser a

posse ssão um distúrbio mental, acaba reduzindo-a a um efeito de

dissociação da personalidade produzido pela ingestão de drogas

f abricadas a partir de ervas tradicionais e catalizado pela ação

das danças e das músicas acompanhadas pelo toque dos atabaques,

pr ocessos que engendrariam a “auto-sugestão” responsável pelo

transe (cf. Querino, 1938). Mais recentemente, Donald Pierson, em

1942, e Edison Carneiro, em 1948, retomarão sem modificações essas

idéias (cf. Pierson, 1971; cf. Carneiro, 1961; 1981). É também

esta a perspectiva de Gonçalves Fernandes, com a diferença de que

onde Manuel Querino enxergava uma saudável manifestação

folclórica, Fernandes pretende ver rituais primitivos e

envergonhantes, acre scentando ainda que o alcoolismo “disseminado”

nestes “redutos de marginais” estaria também entre as causas da

possessão (cf. Go nçalves, 1937). Antes deles, o padre Etienne

Brazil reproduzirá diretamente as teses de Nina Rodrigues,

Page 88: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

82

considerando o transe uma manifestação patológica específica de

uma determinada “raça” sub-desenvolvida (cf. Brazil, 1912). Existe

contudo uma outra forma de tratar a po ssessão nos cultos afro-

brasileiros.

3. Os Modelos Sócio-Culturais

Os estudos sobre os cultos afro-brasileiros sofrerão uma

primeira torção teórica durante o período da II Guerra Mundial com

a vinda ao Brasil de Melville Herskovits. Interessado nos estudos

de “aculturação” este autor virá a dedicar grande atenção às

rel i giões de origem africana tentando comparar sua estrutura e seu

funcionamento àqueles, observados por ele mesmo no Daomé, dos

cul tos africanos originários. Sua primeira objeção contra o tipo

de pesquisa efetuada até então acerca do Candomblé é que ele não

deveria ser encarada apenas como sistema religioso, mas sim como

verdadeiro “modo de vida”, ou seja, como unidade cultural

integr ada, dotada portanto de organização social, econômica,

política, etc., e onde a religião seria apenas mais uma instância

a ser o bservada, não importando se os membros do grupo em questão

a considerem conscientemente como o único nível pertinente. A

partir deste pressuposto, a técnica de pesquisa só poderia mesmo

consi stir em “estudos de comunidade”, isto é, deveria proceder

através da observação participante duradoura e intensiva em

terreiros de Candomblé completamente constituídos. Já a

metodologia a ser ut i lizada deveria ser um tipo de análise

funcional que permitiria compreender e explicar a coexistência dos

vários níveis culturais dentro da comunidade pesquisada, bem como

a relação desta unidade com outras da mesma natureza e também com

toda a sociedade abra ngente. Esta transformação teórica e

metodológica é fundamental e estabelecerá um plano de trabalho que

Page 89: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

83

passará a ser seguido por todos os estudiosos do assunto a partir

deste momento (cf. Hersk ovits, 1943; cf. Bastide, 1971: 37-38).

No que diz respeito aos fenômenos extáticos, este tipo de

perspectiva terá a inegável virtude de extrair a possessão do

domínio psicopatológico, já que, ao situá-la no contexto ritual e

sociológico onde ela se processa, seu caráter de comportamento

normal, estatística e normativamente falando, se manifestará

imediatamente. Herskovits procurará então interpretar o transe

como fato cultural normal, a partir de uma concepção behaviorista

do processo estímulo-resposta. Para ele, a iniciação — que passa a

constituir o foco central de preocupação do pesquisador, na medida

em que nela é possível perceber a integração do indivíduo à

comunidade — e a convivência grupal acabariam por criar um

“reflexo condicionado” ligado a um certo comportamento (a

possessão) que seria detonado a partir de sinais tradicionais,

tais como a mús i ca, as danças, a prece, etc. A possessão passa a

ser vista como integrando um complexo cultural que, dentro da

tradição cultur alista norte-americana, será encarado como fator de

estabilização da personalidade individual e de sua adaptação tanto

ao meio soc i al quanto ao meio-ambiente natural (cf. Herskovits,

1943; Ribeiro, 1955: 163-164). Este modelo será integralmente

adotado por dois discípulos brasileiros de Herskovits, Octavio da

Costa Eduardo, que estudará desta perspectiva os Voduns do

Maranhão em 1948 (cf. Eduardo, 1948), e Renê Ribeiro, que a

utilizará na pesquisa dos Xangôs do Nordeste em 1952, e cujas

teses sobre a possessão forn ecem sem dúvida o melhor exemplo de

como opera este novo quadro teórico (cf. Ribeiro, 1955; 1978).

O ponto central das teses de Ribeiro é exatamente o mesmo de

Herskovits, a saber, considerar os terreiros de Xangô (nome

rec ebido pelas religiões de procedência africana em Pernambuco,

Sergipe e Alagoas) como unidades culturais totais onde o indivíduo

é ressocializado e onde encontra um verdadeiro “grupo de

Page 90: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

84

referê ncia”. Neste sentido, eles poderiam ser analisados como

verdadeiras “estruturas sociais”, no sentido funcionalista

clássico, ou seja, como sistemas compostos por posições (status) a

que correspondem papéis sociais a serem desempenhados pelos

indivíduos compelidos a isso pela pressão exercida por normas e

sanções culturais espec í ficas. A característica essencial desses

sistemas, no quadro da estrutura social abrangente, seria a

alternativa por eles oferec i da a indivíduos socialmente

desprivilegiados — ocupando portanto status inferiores e

desempenhando papéis indesejáveis na sociedade inclusiva — e a

conseqüente possibilidade de satisfação de seus objetivos e

necessidades, não preenchidos por seu lugar no meio social

externos aos cultos. Uma longa citação pode deixar bastante clara

esta posição:

“Normas e sanções culturais

represe ntam modelos tradicionais de

ajustamento do indivíduo, indicando-lhe uma

conduta ad equada às solicitações e

imposições do seu ambiente natural e do

sistema de relações que ele tem de

estabelecer por sua partic i pação no grupo

social. No caso dos grupos de cultos afro-

brasileiros, constituem-se estes não

somente em unidades de convivê ncia

particulares, dentro de nossa sociedade

geral, como em vetores de um sistema de

valores e de patterns freqüentemente

diversos daqueles adotados nos outros

grupos dessa sociedade. Eles fornecem ainda

aos indiv í duos que deles participam, sem

que lhes seja necessário repudiar os demais

valores e estilos da cultura luso-

brasileira, um sistema de crenças e um tipo

novo de rel ações interpessoais amplamente

Page 91: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

85

favorável à redução de tensões. Pessoas

cujas posições e papéis na sociedade global

não lhes of erecem chance para colimarem

seus objetivos ou pelo menos, para um

compromisso entre as realidades da vida

cotidiana e os seus o bjetivos idealmente

fixados ou seus impulsos culturalmente

condicionados, encontram aí um sistema de

crenças, de relações inte r pessoais, de

hierarquia, bem como um tipo de relação com

o sobrenatural e de aparente controle do

acidente que lhe permitem a s atisfação das

necessidades psicológicas indispensáveis a

seu ajustamento ao mundo em que vivem.

Participação nesses grupos, organizados

diferentemente daqueles outros que se

contam em nossa sociedade urbana, bem como

a obtenção aí de posições e de prestígio

(implicando em novo status, fr eqüentemente

superior), constituem experiências mais

satisfatórias do que quaisquer outras que

lhes possam ser pr oporcionadas em nossa

sociedade” (Ribeiro, 1978: 144-145).

É esta de fato a conclusão central do principal trabalho de

Renê Ribeiro: os cultos afro-brasileiros deveriam ser explicados a

partir da tradicional questão das relações entre cultura e

pers onalidade, na medida em que eles constituiriam alternativas

culturais para indivíduos cuja personalidade não encontra canais

de realização pelos meios sociais ordinários. Assim, este tipo de

religião forneceria os elementos para uma compensação por uma

posição social inferior: grupo de sociabilidade, possibilidade de

ascensão social, controle do acaso, etc. É fundamental aqui

perc eber o esb oço de uma nova concepção sobre as religiões afro-

brasileiras, que de sobrevivências primitivas ou pré-lógicas

Page 92: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

86

passam a ser encaradas como realidades vivas desempenhando uma

função atual no contexto da sociedade em que se inserem. Isto

porque será esta a perspectiva adotada deste momento em diante,

até hoje, por quase todos os pe squisadores do tema.

Ora, é dentro desse amplo quadro de funções sociais

desempenhadas pelos cultos que o fenômeno da possessão deverá ser

analisado. Em outros termos, a questão a ser indagada a respeito

do transe se relaciona também à função por ele preenchida nesse

processo global de ajustamento do indivíduo ao grupo e à sociedade

abrangente. A partir de um tal pressuposto, é manifestamente

i mpossível considerar a possessão como uma forma de distúrbio

mental. Ou seja, a partir do momento em que se considera este

problema de uma perspectiva funcionalista é-se obrigado a indagar

e descobrir em que o êxtase contribuiria na manutenção do

equil í brio grupal e individual, na medida em que o funcionalismo

de Renê Ribeiro está intrinsecamente ligado a uma postura

culturalista. De perturbação médica, a possessão passará então a

ser vista como uma técnica de ajustamento psicológico, seja por

promover um importa nte alívio de tensões:

“A possessão tem papel dramático e

saliente nas principais cerimônias, os

i ndivíduos que experimentam tal estado

derivando dele particular satisfação

emoci onal, decorrente da sua intimidade com

o sobrenatural e da libertação de tensões

psicológicas simultaneamente à aprovação do

grupo, que constituem os elementos

esse nciais nesse tipo de experiência

religiosa” (Ribeiro, 1978: 143).

seja por fornecer ao indivíduo um conjunto de status e

papéis bastante desejáveis (o de divindades) que compensariam os

status e papéis inferiores ocupados e desempenhados por ele na

Page 93: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

87

vi da cotidiana (cf. Ribeiro, 1955: 169). A partir desses

postulados, Renê Ribeiro aplicará testes projetivos de

personalidade sobre um grande número de fiéis dos Xangôs de

Recife, e ao se confrontar com alguns resultados indicativos de

anormalidades psicológicas cujos portadores, contudo, mantinham um

comportamento cotidiano perfeitamente anormal, ele terminará por

concluir que são just amente o pertencimento ao grupo de culto, bem

como a descarga emocional de tensões resultante da possessão, os

responsáveis pelo equilíbrio desses indivíduos que, caso

contrário, dariam sinais de distúrbio em sua vida ordinária. Para

funcionar dessa maneira, o transe é visto como momento de

manifestação de uma série de aspe ctos psicológicos recalcados e

reprimidos durante a vida cotidiana e que, se não viessem à tona

durante a possessão, poderiam funci onar como agentes patogênicos

(cf. Ribeiro, 1955: 180-182).

Mais ou menos na mesma época em que Herskovits empreende sua

crítica dos modelos analíticos vigentes nos estudos sobre os

cul tos afro-brasileiros, esboçando simultaneamente uma nova

interpretação dessas manifestações religiosas a partir de

refere nciais teóricos culturalistas e funcionalistas, Roger

Bastide inicia sua gigantesca exploração neste domínio, movido

tanto por um interesse análogo ao do etnólogo norte-americano —

compreender os fenômenos por denominados de “interpenetração de

civilizações” — quanto pelo objetivo de construir uma “sociologia

do transe” (cf. Bastide, 1972: 55). Seus trabalhos me parecem ser,

sem sombra de dúvida possível, a mais completa e melhor abordagem

já efetuada a respeito do “mundo dos Candomblés”, e mesmo os

estudos posteri ores estão muito longe do alcance, da qualidade e

das virtudes da obra de Bastide. Sua inspiração teórica é,

confessadamente, a E scola Sociológica Francesa, de Durkheim e

Mauss a Lévy-Bruhl e Griaule, e é a partir deste ponto de

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88

referência que ele critica severamente seus predecessores no

estudo das “religiões africanas no Brasil”.

Suas objeções coincidem também com as de Herskovits, ao

re ssaltar o fato de que autores como Nina Rodrigues e Arthur

Ramos, entre outros, pecavam por não enxergar no Candomblé mais do

que sobrevivências de um passado a ser abolido pelo progresso da

cul tura, arvorando-se então em colecionadores de antigüidades — ao

coletarem material relativo ao culto — ou em reformadores sociais,

ao tentarem entender as razões dessa resistência à mudança,

pr opondo ao mesmo tempo meios de ultrapassá-la. Bastide, ao

contrário, deseja estudar essas religiões como realidade viva,

i nserida na sociedade brasileira abrangente. Mas, apesar disto,

Herskovits e seus discípulos também são visados pela crítica

bastidiana: o postulado culturalista desses autores é posto em

questão na medida em que não saberia dar conta da inserção das

comunidades minuciosamente estudadas no seio da sociedade

inclusiva (cf. Bastide, 1971: 38); a hipótese funcionalista é

descartada porque acabaria por reduzir-se a um truísmo desprovido

de valor informativo ao afirmar que a função do Candomblé é

idêntica a de qualquer instituição social, satisfazendo

determinadas necessid ades sociais e/ou individuais (cf. Bastide,

1971: 39).

Bastide propõe então que a análise dos cultos afro-

brasileiros seja efetuada nos quadros de uma “sociologia causal e

histórica” que leve em consideração as origens africanas destes

cultos e as transformações a que foram submetidos quando em

cont ato com a nova realidade brasileira. Em outros termos, tratar-

se-ia de superar simultaneamente tanto a visão dos primeiros

pesquisad ores, que situam o Candomblé sempre no passado e de lá

buscam extrair seu sentido, quanto a dos funcionalistas, que,

omitindo a história dessas religiões, tenta explicá-la apenas a

partir de suas supostas funções atuais (cf. Bastide, 1971: 39).

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89

A solução proposta por ele para integrar os “aspectos”

afr i cano e brasileiro dessas religiões encontra seu ponto focal no

importante conceito de “internalização”. Na África, a “super-

estrutura” religiosa 9 estaria inextrincavelmente soldada a sua

“infra-estrutura” sociológica. Assim, a religião bantu (que teria

originado o Candomblé Angola no Brasil) consistiria basicamente

num culto aos antepassados familiares, espíritos de mortos que

possuiriam determinados membros da unidade familiar durante os

r i tuais religiosos (cf. Bastide, 1971: 85-86); já no caso Gêge e

Yoruba (origens respectivas das “nações” gêge e nagô do

Candomblé), as divindades representariam forças da natureza,

existindo confr arias de iniciados e sacerdotes especiais que

serviriam a cada deus em benefício do grupo como um todo; mas, ao

mesmo tempo, cada d i vindade parece dirigir uma família humana da

qual é visto como ancestral e que lhe rende culto, culto este

transmitido em linha masculina (cf. Bastide, 1971: 87). Ora, a

escravidão destrói in evitavelmente toda a estrutura familiar,

clânica e tribal sobre a qual repousavam os cultos religiosos.

Isto no entanto não signif i ca que os valores culturais

constitutivos destes cultos tenham se abolido no mesmo golpe. Tudo

se passa então como se um abismo se abrisse entre infra e super-

estrutura, entre morfologia social e o universo dos valores

culturais;

“a ruptura que a escravidão

ocasion aria entre o mundo dos valores e o

mundo das estruturas sociais africanas

expôs, fazendo flutuar por um instante,

9 Os conceitos de infra e super-estrutura não são utilizados por

Roger Bastide num sentido marxista ortodoxo. Apresentam antes uma

marca durkheimiana, designando respectivamente a “morfologia

soc i al” e as “representações coletivas”.

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90

essas represent ações no v azio...” (Bastide,

1971: 221).

Este é o primeiro momento, o do destacamento do mundo dos

valores de sua base morfológica. Mas, este mundo não poderia

sobreviver, acredita Bastide, neste “vácuo sociológico”, sendo-lhe

estritamente necessário segregar uma nova infra-estrutura, base

social influenciada simultaneamente pelos valores africanos e por

algumas instituições européias impostas durante o processo de

escravização forçada:

“Em primeiro lugar, a escravidão

operou uma separação entre as super e as

infra-estruturas, sem darmos a esses termos

um sentido marxista. As estruturas sociais

africanas foram destruídas, os valores

conservados; mas estes valores não poderiam

subsistir se não formassem novos quadros

sociais, se não se criassem instituições

originais que os encarnassem e lhes

permi tissem sobreviver, perpetuar-se e

passar de uma geração a outra. Isto

significa que as super-estruturas tiveram

que produzir uma sociedade. O movimento não

é mais um mov i mento de baixo para cima, que

sobe progressivamente da base morfológica

para o mundo dos símbolos e das

representações c oletivas para as

instituições e os grupos. Os modelos

africanos puderam influenciar esta

reestruturação, mas também exerceram

influência os modelos europeus impostos,

como as confrarias ou as associações de

danças dos negros ‘nações’” (Bastide, 1971:

83).

Page 97: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

91

Ora, é justamente nesta segunda etapa do processo, a da

fo r mação de estruturas sociais a partir dos valores, que o

Candomblé vai surgir como “ nicho ” (o termo é de Bastide) africano

enquistado na sociedade brasileira. Neste “nicho” todas as

relações sociais seriam “internalizadas” na forma de relações

místicas: a antiga hierarquia tribal se converteria em hierarquia

sacerdotal, as leis de exogamia, clânica ou familiar, se

transformariam na proibição do casamento entre indivíduos

portadores do mesmo Orixá, e assim por diante (cf. Bastide, 1971:

226-227). E, mais do que isto, o grupo de culto passa a ser vivido

como integralmente separado da sociedade inclusiva, operando entre

ambos o que Bastide chama de “princípio de corte”, princípio que

faria com que o fiel do Ca ndomblé pudesse viver simultaneamente no

mundo sagrado do terreiro e na esfera profana do cotidiano sem

estabelecer interelações e ntre estes domínios (cf. Bastide, 1971:

238; ver também Bastide, 1955, onde o conceito é forjado). É

dentro desta visão abrangente dos cultos como resultante da

“interpenetração de civilizações” que a “sociologia do transe” de

Bastide será construída.

Na África, primeiramente, a possessão tenderia a constituir

uma função específica exercida por um sacerdote ou sacerdotisa

especializados, compondo o quadro mais amplo da iniciação tribal

(cf. Bastide, 1945: 48-49). Com o desmantelamento da organização

social e a transformação do culto em estrutura puramente mística,

o transe passaria a fazer parte do contexto ritual mais abrangente

que caracterizaria essa estrutura religiosa. Não se trata

porta nto, de forma alguma, de algum tipo de perturbação

psicopatológica na medida em que se encontra totalmente regulado

pela tradição e pelo sistema ritual (cf. Bastide, 1945: 88;

Bastide, 1973: 306-307). Mais do que isso, não se poderia querer

ver aí sequer uma técnica terapêutica, pois muito embora a

possessão possa funcionar neste sentido tratar-se-ia aí apenas de

Page 98: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

92

um efeito e não de sua n atureza última (cf. Bastide, 1972: 71-73).

Esta, deveria ser buscada em o utra parte.

Na África, crê Bastide, o êxtase poderia ser reduzido em

úl tima instância a uma modalidade de intermediação entre o sagrado

e o profano; no Brasil, devido às condições de vida particulares a

que foram submetidos os escravos africanos e seus descendentes,

uma outra dimensão se acrescentaria, ou mesmo substituiria, esta

estrutura básica. Esta dimensão — e aqui estamos de volta,

parad oxalmente, a Renê Ribeiro — seria uma forma de compensação

fornecido pelo transe ao negro devido à baixa posição social por

ele ocupada na nova sociedade em que vive (cf. Bastide, 1972: 71-

73). Mas, como se dá, concretamente, esta compensação? A possessão

seria um rito que reproduziria continuamente na Terra uma série de

dramas místicos fundamentais. Nestas representações, quase

“te atrais”, os filhos-de-santo atuariam como personagens que,

abandonando seu eu cotidiano, se transformariam magicamente nas

divindades do culto. Assim, o ritual extático seria um “ritual-

experiência-vivida” e a possessão não uma simples substituição,

mas uma verdadeira “metamorfose da personalidade” (cf. sobre todo

este ponto, Bastide, 1978: 200-202).

É esta a idéia central. É a partir dela que Bastide

sustent ará que a influência do mundo dos deuses sobre aquele dos

homens ultrapassaria de muito o momento específico da possessão,

atuando sobre toda a sua vida:

“Não é apenas a dança extática das

filhas-de-santo que vai refletir o mundo

dos mitos, nas noites musicais da Bahia. Na

sua vida, nas suas estruturas psíquicas, o

homem todo inteiro simboliza o divino”

(Bastide, 1978: 235).

Em outros termos, e sintetizando, o Candomblé seria uma

ver dadeira “máquina” de fabricação e distribuição de

Page 99: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

93

“personagens”, personagens que os filhos-de-santo abraçariam por

serem muito mais satisfatórios e de status incomparavelmente mais

elevado do que aqueles papéis representados por eles

cotidianamente. É isto que acarretaria inevitavelmente uma

sensação de “compensação” por esta posição social tão

desprivilegiada:

“Ora, entre os diversos personagens

que representamos, alguns nos convêm

melhor, seja porque exigem de nós menos

trabalho, seja porque agradam nosso gosto

de grandeza, nosso desejo de aplausos

f áceis. Preferimos o papel de Rei ao de

traidor. No seu significado mais

metafís i co, as religiões afro-brasileiras

oferecem aos negros do Brasil um vestiário

completo de personalidades, as mais ricas e

as mais variadas, nas quais pode o negro

encontrar uma compensação para os

personagens menos agradáveis que a

sociedade estratificada, organizada e

dirigida pelos brancos lhe i mpõe para

desempenho. Na dança extática o negro

abandona seu eu de proletário, seu eu

social, para se transformar, sob o apelo

angustioso dos tambores, no deus dos

relâ mpagos ou na rainha dos oceanos”

(Bastide, 1973: 316).

É verdade que existe um outro aspecto da teoria de Bastide

ao qual retornarei no quarto capítulo deste trabalho. Por ora

cumpre tentar sintetizar a mudança provocada no rumo dos estudos

afro-brasileiros durante as décadas de 1940 e 1950.

Page 100: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

94

Pôde-se observar então que durante esses vinte anos os

est udos afro-brasileiros sofreram uma modificação aparentemente

radical de perspectiva. No caso específico da possessão, esta

passa a ser encarada, acima de tudo, como fato social , na acepção

durkheimiana do termo, podendo e devendo portanto ser explicada

apenas em relação ao contexto sociológico, e não através do

recu r so a categorias extraídas diretamente da psicopatologia

individual. Ou então, no máximo, devendo ser tratada como fruto de

uma ação do social sobre o individual, e jamais vice-versa. Em

outros termos, longe de ser patológico e individual, o transe

seria um fenômeno normal e social. Tanto Roger Bastide quanto

Herskovits e seus discípulos insistirão assim no caráter

socialmente adapt ativo do êxtase: indivíduos socialmente

marginalizados e discriminados (por motivos raciais, de classe

social, sexuais, etc.) encontrariam nos cultos afro-brasileiros em

geral e na po ssessão em particular um meio de extravasar as

tensões advindas desta situação, ao “inverterem” sua baixa posição

social. Tomados pelas divindades africanas, transforma-se-iam em

deuses e reis, compensando assim seu status social inferior. O

transe contribu i ria deste modo para a adaptação desses indivíduos

à sociedade mais ampla, altamente estratificada e dificilmente

permeável por canais normais de ascensão, características que

tenderiam a colocar os “inferiores estruturais” como que fora do

jogo social (ao menos como agentes plenos), se os cultos e a

possessão não lhes ofer ecessem uma compensatória ilusão da

part i cipação.

Uma diferença subsiste entretanto entre Bastide de um lado,

Herskovits, Eduardo e Ribeiro de outro, diferença já ressaltada

acima mas que é preciso frisar em função dos rumos tomados a

par tir de 1970 pelas pesquisas sobre as religiões afro-

brasileiras. Para Bastide, era imprescindível demonstrar como os

sistemas de valores trazidos, juntamente com os escravos, eram

Page 101: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

95

estruturalmente adequados para a utilização local que deles passou

a ser feita. Isto não parece no entanto preocupar muito os

culturalistas que se contentam em apontar para as funções atuais

desempenhadas por e ssas religiões sem dedicar muita atenção à

estrutura mesma do culto, a não se na medida em que ela justifica

as funções previ amente apontadas como fundamentais.

Assim, se de 1900 a 1940 (datas respectivas das publicações

de “O Animismo Fetichista” de Nina Rodrigues e da segunda edição

revista e aumentada de o “O Negro Brasileiro” de Arthur Ramos)

t i vemos a nítida predominância das teorias evolucionistas e

psiquiátricas, as duas décadas compreendidas entre 1940 e 1960

(balizadas pelo trabalho de Herskovits de 1943, e pelas duas teses

de Bastide de 1960 — cf. Bastide, 1971; 1978) são marcadas pelo

abandono daquela vertente e pela entrada em cena dos modelos

fu ncionalistas e culturalistas de inspiração nitidamente

sociológica. Durante a década de 60, os estudos afro-brasileiros

parecem não ter sido muito privilegiados pela ciência social

brasileira. A e xceção é o famoso trabalho de Cândido Procópio

Ferreira de Camargo, que caracteriza simultaneamente uma

continuidade em relação aos vinte anos anteriores — levando ainda

mais longe a perspectiva s ociologizante ao utilizar técnicas

típicas da Sociologia na inve stigação dos cultos (amostragens,

questionários fechados, modelos estatísticos, etc.) — e um

deslocamento de objeto empírico, dos cultos tradicionalmente

considerados como “mais puros” (o Cando mblé baiano, os Xangôs do

Recife, os Voduns do Maranhão, o Batuque de Porto Alegre) para

aqueles tidos por mais “sincréticos”, infl uenciados por modelos

europeus, a Umbanda e o Kardecismo. O tema da possessão não chega

contudo a receber neste trabalho uma atenção mais cuidadosa (cf.

Camargo, 1961).

A partir de 1970, o interesse pelas religiões de procedência

africana parece renascer, e renasce voltado especialmente para a

Page 102: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

96

observação e a análise de centros de culto menos tradicionais,

análise conduzida por um modelo ainda nitidamente sociologizante,

queiram ou não os autores. Em 1972, são publicados o trabalho dos

Leacock sobre o Batuque de Belém, e o ensaio de Marco Aurélio Luz

e Georges Lapassade sobre a Macumba carioca.

A hipótese central dos Leacock a respeito da possessão é que

ela consistiria num “papel social” assumido pelos indivíduos

durante o ritual. O que caracterizaria este papel diante dos

demais, representados na vida cotidiana é que ele se manifestaria

durante um “estado psicológico alterado”, o transe (cf. Leacock,

1972: 174-175). Assim, não se poderia atribuir o êxtase (ou o

transe p ara manter sua terminologia) a um estado psicopatológico

de tipo psicótico, já que trata-se aqui de um sistema de crenças

racional e passível de ser comunicado, aparentando-se antes à

hipótese e tendo como conteúdo o papel preconizado pelo grupo que

se manife sta na forma de “possessão”. Pode-se concluir então que a

essência da possessão no Batuque é o desenvolvimento de um papel

social d urante uma “condição psicológica alterada” em tudo

semelhante ao estado hipnótico (cf. Leacock, 1972: 212-217). O

sentido último destas práticas estaria então justamente na

assunção de papéis s ociais de status muito elevado (divindades ou

encantados) por parte de pessoas que, no desempenho de seus papéis

cotidianos, não são objeto de qualquer atenção ou prestígio,

processo de “inversão” que acarretaria um sentimento de

“compensação” (cf. Leacock, 1972: 51; 228).

Além disso — e este ponto é importante por sua influência

freqüentemente omitida nos estudos subseqüentes — o transe e a

possessão teriam lugar nos quadros de um tipo de culto que

prec onizaria um “contrato diádico” entre o fiel e a divindade,

contrato em tudo semelhante às estruturas de patronagem vigentes

na região amazônica (cf. Leacock, 1972: 51; 58-59). Esta idéia

aliás é uma das inovações teóricas introduzidas pelos Leacock; a

Page 103: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

97

outra é a “dissolução sociológica” a que eles submetem o êxtase,

reduzindo-o a um papel social cuja única especificidade é a de ser

assumido durante um “estado alterado”, de transe, estado explicado

por sua vez em termos psicológicos como “próximo” ao hipnótico. A

hipótese de uma inversão de posições sociais e da compensação

disto resu l tante não acrescenta absolutamente nada em relação aos

estudos de Roger Bastide e de Renê Ribeiro apresentados acima.

O outro estudo mencionado (Luz e Lapassade, 1972) é bastante

curioso pela concepção nada ortodoxa, em termos de Antropologia

Social, que os autores adotam em relação à Umbanda em geral e à

possessão em particular. A primeira parte do trabalho, assinada

por Georges Lapassade, consiste numa tentativa de explicar a

“Macumba” carioca através de idéias importadas diretamente de uma

psicanálise reichiana. Neste contexto, o transe será visto como

irrupção de uma força cotidianamente reprimida, força

estreitame nte ligada a mecanismos de protesto e revolta (uma

espécie de libido “política”), que será contudo canalizada e

socializada d urante a iniciação que “domestica o transe selvagem”

(cf. Luz e Lapassade, 1972: 40). Na África, a possessão

consistiria numa ru ptura psíquica radical que, na escravidão, foi

acrescida de uma ruptura cultural que faz com que o transe seja

uma forma de reto r no “mágico” à terra africana natal (cf. Luz e

Lapassade, 1972: 12; 41). Haveria pois, no cerne da Umbanda, uma

contradição entre a revolta contra a ordem existente (representada

pelo “transe selv agem”) e sua aceitação e manutenção tácitas (no

transe socializado). Além disso, e mais marginalmente, embora não

menos importante, a possessão é vista como uma forma de “terapia

popular” tão ou mais eficaz do que a própria psicanálise (cf. Luz

e Lapassade, 1972: XIX).

Essas idéias, nada tradicionais, se precisam na segunda

par te do livro, de autoria de Marco Aurélio Luz. Aí, a Umbanda é

analisada em oposição à Quimbanda, dicotomia que reproduz o

Page 104: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

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par adoxo entre aceitação da ordem e revolta contra ela, paradoxo

manifestado também, como vimos, no transe extático. A Umbanda,

enquanto cristalização das forças conservadoras, é definida então

como um “Aparelho Ideológico de Estado Religioso”, que

contribu i ria para a reprodução das relações de produção através da

reafirmação constante das normas impostas pela burguesia dominante

e de sua aplicação sobre o conjunto do “proletariado negro”,

compelido então a se acomodar a elas (cf. Luz e Lapassade, 1972:

94). Em suma:

“Como instituição social, a Umbanda

procura, por um lado, reproduzir numa

r epresentação simbólica a hierarquia social

e por outro lado, em seu ritual, reproduzir

o exercício de obediência à autoridade,

ambos aspectos necessários ao funcionamento

da formação social (...). A Umbanda como

rel i gião, é um retrato da formação social

brasileira num plano imaginário, com suas

leis próprias de ocultação e inversão das

classes sociais” (Luz e Lapassade, 1972:

57).

Com “O Segredo da Macumba” passa-se então de uma perspectiva

quase puramente sociológica (ao menos de um ponto de vista formal,

pois é claro que todas as explicações sociologizantes, de

Hersk ovits aos Leacock, apresentam concepções implícitas sobre as

relações políticas, conforme veremos adiante) a uma outra que

poderia ser melhor denominada de “sócio-política”, na medida em

que um dos focos de atenção — o principal aliás — é direcionado

para os efeitos dos cultos afro-brasileiros na área das relações

de p oder, tanto internas quanto externas a eles, funcionando seja

como mecanismo de dominação e de reforço desta, seja como

possíveis c anais para a m anifestação de protesto e revolta.

Page 105: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

99

De fato, é esta perspectiva “sócio-política” que passará a

predominar nos trabalhos subseqüentes da década de 70. Assim,

Di ana Brown negará o caráter de “religião popular” da Umbanda,

analisando-a antes como uma forma religiosa desenvolvida a partir

do Kardecismo por representantes das camadas médias, e onde as

classes populares desempenhariam apenas um papel subordinado. A

Umbanda é encarada pois como repousando sobre um mecanismo de

patronagem que operaria em todos os níveis, desde a relação do

culto com a sociedade abrangente (permitindo a eleição de

deputados u mbandistas, por exemplo), passando pela filiação dos

terreiros às Federações, pelas relações hierárquicas internas a

cada terreiro, e chegando até a própria relação ritual mantida

pelo médium com as divindades. Em última instância, tratar-se-ia

então de uma estr atégia de controle exercida pelas classes médias

sobre as camadas populares da população, sendo que as inversões de

status observ áveis no ritual — onde espíritos “populares”, como os

caboclos e pretos-velhos, ocupam uma posição central — não seriam

mais do que máscaras atrás das quais ocultar-se-iam mecanismos de

dominação política (cf. Brown, 1974; 1977). Este tipo de

perspectiva será adotada por uma série de o utros autores.

Assim, Renato Ortiz insistirá nas tentativas de

“ legitim ação ” da Umbanda frente à sociedade abrangente, tentativas

efetuadas a partir da assimilação dos valores dominantes,

“bra ncos” e de classe média (cf. Ortiz, 1977; 1978). Leni

Silverstein e Patrícia Birman seguem também este caminho, ao

apontarem simult aneamente para as inversões hierárquicas presentes

no Candomblé e na Umbanda respectivamente e, ao mesmo tempo, para

o fato de que essas inversões seriam apenas “táticas”, ou seja,

comporiam uma estratégia global de manipulação e reforço da

dominação. Em outros termos, o fato da hierarquia, preservada na

estrutura dos terre i ros e no ritual, seria mais importante do que

seu conteúdo que pode tanto inverter quanto reforçar diretamente a

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100

ordem política abrangente (cf. Silverstein, 1979; Birman, 1982).

Uma variante desta posição é adotada tanto por Yvonne Velho quanto

por Lísias Nogueira Negrão, que reconhecem a presença simultânea

de forças “populares” e “não-populares” na Umbanda (cf. Negrão,

1979), ou a coexistência não muito pacífica de um “código de

santo”, específ i co ao culto e que inverte as regras sociais

normais, e um “código burocrático” trazido da sociedade abrangente

(cf. Velho, 1975). A partir daí ambos tentam analisar o fenômeno

em questão com resu l tante dos choques e conflitos entre estes dois

componentes antitéticos.

Mas, a mais representativa forma de análise dos cultos afro-

brasileiros a partir desta perspectiva “sócio-política” parece ter

sido elaborada por Peter Fry. De fato, em seus artigos ficam

bastante explícitas todas as posições desta perspectiva. Assim,

num texto de 1975 escrito em colaboração com Gary Nigel Howe, ele

conclui, numa espécie de síntese desta posição adotada a partir do

trabalho dos Leacock, que

“Nossa preocupação não é estudar os

sistemas de mitos e crenças como sistemas

estruturais divorciados do contexto social

nos quais eles florescem, mas, mais ainda,

entendê-los em termos daquela realidade, e

a maneira pela qual é percebida por aqueles

que dela part i cipam” (Fry e Howe, 1975: 90-

91).

Ora, a partir desta postura nitidamente sociologizante, as

religiões afro-brasileiras serão definidas como “cultos de

afl i ção”, no sentido de Victor Turner, ou seja, sistemas voltados

para a resolução de crises de vida individuais. No caso específico

da sociedade brasileira, os tipos de “aflição” diriam respeito

especialmente à saúde, problemas profissionais e de relação com as

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autoridades constituídas, e “dificuldades de associação

interpe ssoal” — problemas no amor, em relações de vizinhança,

amizade, família, etc. (cf. Fry e Howe, 1975: 75; Fry, 1978: 32).

No enta nto, o autor admite que esta definição é, por si só,

insatisfatória, na medida em que tais problemas poderiam ser

sol ucionados através do recurso a outras instâncias, colocando-se

então a questão das razões pelas quais justamente a Umbanda é

encarada como eficaz (cf. Fry, 1978: 42). Em outros termos,

admite-se que os símbolos religiosos da Umbanda devem

necessariamente aparecer como eficazes para produzir a conversão

de um indivíduo (cf. Fry e Howe, 1975: 89).

A resposta para esta questão, que passa a ser o problema

fundamental da análise, será encontrada no fato de a Umbanda

fu ncionar como representação metafórica de um determinado aspecto

da sociedade brasileira, aquele nível não marcado pelos códigos

of i ciais e pelas leis impessoais, mas sim por conhecimentos

pessoais, pelos favores e pelo “jeitinho”:

“Nossa interpretação da

plausibilid ade da Umbanda, portanto, é que

ela expressa e ritualiza a ‘outra face’ do

capitalismo industrial no Brasil (...). A

Umbanda é plausível na medida em que as

relações pa r ticularistas que se estabelecem

com os espíritos na esperança de se obter

favores são homólogas às relações reais

estabelec i das para o benefício de pessoas

no sistema social vigente. Questiono, por

exemplo, se há uma grande diferença entre o

eleitor s uplicante que promete seu voto em

troca de uma casa do BNH e um cliente da

Umbanda que faz um acordo com o espírito de

Exu para ganhar um emprego” (Fry, 1978:

45).

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102

Mas não seria possível, acredita o autor, explicar a

conve r são religiosa para a Umbanda — que implica, como foi visto,

uma crença na plausibilidade de manipulações pessoais

transformarem o mundo — através da utilização de variáveis

sociológicas clássicas, como classe social, cor da pele, etc. Ao

contrário, supõe-se que o essencial estaria nas relações sociais

concretas, na biografia, e na forma e conteúdo das redes sociais

(cf. Fry e Howe, 1975: 83). Deste modo, a questão geral que deve

ser respondida para que se entendam os cultos afro-brasileiros

pode ser resumida, sintetic amente, da seguinte maneira:

“Que elementos de experiência social

levarão uma pessoa a interpretar o mundo em

termos da manipulação frenética de uma

hoste de entidades espirituais...? Que

elementos de experiência social levarão um

indivíduo a perceber o mundo a sua volta

como essencialmente manipulável, um mundo

que não obedece regras fixas mas que pode

ser ‘ajeitado’ na base de manipulações

mágicas a curto prazo...? Em outros termos,

que espécie de experiência social leva à

visão ‘carismática’...?” (Fry e Howe, 1975:

90).

Em suma, a Umbanda seria coerente com uma determinada visão

de mundo e para se entender a conversão de alguém para esta

rel i gião seria inútil buscar razões nas variáveis sociológicas

tradicionais, como havia feito Camargo; tais razões deveriam então

ser encontradas na experiência social individual (que inclui as

variáveis citadas acima) que, forjando um certo padrão de leitura

da realidade provocaria, no caso de ser congruente com aquele

existente no universo simbólico da Umbanda, sua conversão para

este culto como modo de “resolver” suas “aflições”. Finalmente, há

a idéia de que enquanto “culto periférico”, no sentido de Lewis, a

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Umbanda forneceria “nichos” onde as pessoas consideradas pela

sociedade abrangente como marginais ou desviantes poderiam se

reunir e ter uma experiência agradável (cf. Fry, 1977: 116; 121).

É possível observar então como, a partir do trabalho dos

Leacock, a ênfase nos estudos afro-brasileiros desviou-se das

preocupações evolucionistas e médicas do início do século e

concentrou-se cada vez mais, radicalizando a postura dos autores

das décadas de 40 e 50, nos aspectos sociológicos e, mais

especific amente, sócio-políticos dessas religiões. Mas, além

disto, é preciso notar a existência de outros dois deslocamentos

também fundamentais. O primeiro conduziu da atenção preferencial

nos a spectos internos aos cultos (ritual, mitologia, teologia,

possessão, etc.) a um interesse crescente nas formas de interação

e convivência desses sistemas com a sociedade abrangente, de tal

forma que, como se pode perceber na exposição das idéias desses

autores, é difícil encontrar entre eles posições claras a respeito

da possessão, que fica geralmente limitada a ser vista como um

“papel social” entre outros (além dos Leacock que propuseram esta

postura, esta também é a posição explícita de Peter Fry — cf. Fry,

1977 — e implícita de todos os demais autores, com exceção de

Mar co Aurélio Luz e Georges Lapassade). Já o segundo deslocamento,

como foi visto acima, correspondeu a uma mudança bastante nítida

de objeto empírico: enquanto os autores “clássicos” voltavam-se

especialmente para as manifestações religiosas afro-brasileiras

consideradas mais “puras” (o Candomblé baiano fornecendo o

“par adigma empírico” para este tipo de análise, para retomar uma

expressão de Duglas Monteiro), as pesquisas mais rece ntes dirigem-

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se antes para as formas mais “sincréticas”, a Umbanda, o Batuque,

etc. 10

Estes deslocamentos, contudo, não devem ser superestimados.

A questão básica que permeia todo o estudo das religiões afro-

brasileiras diz respeito, de Nina Rodrigues a Peter Fry, ao que se

costuma considerar a “estranha” permanência e resistência destas

formas de culto numa sociedade que se moderniza e se industrializa

velozmente. Se os primeiros autores que trataram do tema dedicavam

uma maior atenção aos aspectos “estruturais” desses sistemas é

porque acreditavam que a resposta para esta questão da permanência

não constituía problema. Localizando-a no conceito evolucionista

de “sobrevivência” (racial para Nina Rodrigues, psicológica para

Arthur Ramos), concentravam-se então em descrever tais

sobrevivê ncias antes que a “lenta obra da cultura”, como dizia

Arthur Ramos, as extinguisse para o bem geral. Para estes autores

portanto, não há qualquer vinculação entre essas religiões e as

bases sociais ou culturais brasileiras sobre as quais elas

simplesmente se justap oriam.

Deste ponto de vista, poder-se-ia dizer que os autores

contemporâneos simplesmente invertem esta perspectiva, fazendo,

por assim dizer, da necessidade virtude. Pois se o mistério se

resumia em compreender a convivência dos cultos com o processo de

modern i zação, e se não é mais possível aplicar o conceito de

10 Isto não significa evidentemente o fim dos estudos sobre o

Candomblé, embora sua intensidade tenha diminuído bastante. No

entanto, os trabalhos de Gisèle Cossard (1970), Juana Elbein dos

Santos (1977), Trindade-Serra (1978) e Claude Lepine (1978) são

integralmente dedicados ao Candomblé baiano. Estes trabalhos foram

aqui utilizados de modo mais implícito e etnográfico, com a

exc eção do último que será objeto de uma análise crítica e

posterior.

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“sobrevivência”, nada melhor do que fazer da própria modernização

a causa da permanência dos cultos, explicando estes últimos como

reflexo direto ou invertido das estruturas sociais atuais que os

sustentam. Neste sentido, fica bastante clara a posição

intermed i ária da obra de Bastide, reconhecendo e, ao mesmo tempo,

relativizando a ligação entre religião e “infra-estrutura”

soci ológica — ao admitir a possibilidade de um destacamento, mas

provisório, da primeira em relação à segunda. Entende-se também,

desta maneira, o segundo deslocamento mencionado acima, na medida

em que, aparentemente, os cultos mais “sincréticos” são os que

mais se expandem com a industrialização, facilitando assim o tipo

de explicação constr uída para dar conta de sua permanência.

Em suma, creio ser possível sustentar que, historicamente,

foram apresentados dois modelos para a análise da possessão nos

cultos afro-brasileiros e, evidentemente, para os próprios cultos

como um todo. Por um lado, o modelo mais antigo, que predomina de

1900 a 1940 mais ou menos, propõe explicar o transe através de sua

redução a fatores biológicos, patológicos e individuais, sejam

eles derivados de perturbações histéricas ou neuróticas, ou a

si mples conseqüência do uso de bebidas alcoólicas ou de drogas e

alucinógenos. A outra explicação, que entra em cena em torno de

1940 e se solidifica a partir de 1970, sustentada a partir da

constatação do caráter normal do transe e de ser ele um fato

soc i almente determinado, a despeito de suas possíveis implicações

a nível bio-psicológico, defenderá a idéia de que explicar a

posse ssão é basicamente estabelecer sua conexão com a ordem social

abrangente, vendo-a ora como mecanismo adaptativo (especialmente

nos trabalhos escritos entre 1940 e 1960), ora como instrumento

político ambíguo, podendo funcionar tanto como mecanismo de

pr otesto quanto como meio de reforço da ordem social existente (na

obra dos autores contemp orâneos).

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É bastante claro também que estas duas vertentes

explicat i vas reproduzem de modo bem direto, como seria aliás de se

esperar, as tendências teóricas mais gerais para a explicação do

êxtase r eligioso, apresentadas no primeiro capítulo deste

trabalho. Também aí foi possível verificar a presença dos dois

modelos isolados. É evidente que estes dois modelos apresentam

diferenças gigantescas entre si, sendo que o segundo se construiu

mesmo como crítica mais ou menos explícita do primeiro. No

entanto, há um ponto em comum entre ambos, ponto para o qual é

estritamente necessário estar atento. As duas perspectivas

isoladas tendem a explicar a posse ssão reduzindo-a a alguma coisa

que lhe é, de uma forma ou de outra, exterior , seja no plano

biológico, seja no sociológico. I sto significa que tanto as

teorias mais gerais sobre o transe quanto aquelas restritas aos

cultos afro-brasileiros apresentam um problema metodológico e

epistemológico comum, o reducionismo . Ora, o que caracteriza

justamente a explicação antropológica, parece-me, é seu caráter

radicalmente anti-reducionista. Neste sentido, se se pretende ao

menos esboçar os princípios de uma teoria antr opológica da

possessão a primeira tarefa que se impõe é a de uma crítica dos

modelos teóricos em vigor. Não, é evidente, que se pretenda negar

que o transe possua aspectos bio-psicológicos e, muito menos, que

tanto ele quanto o culto de que faz parte, ins eridos que estão — e

numa posição sobordinada — numa sociedade mais ampla, não queiram

dizer algo a respeito dela, ou refletir algo de sua estrutura. Não

é este o problema. A questão deve ser colocada em outro nível e

diz respeito basicamente ao processo de conhec i mento de um

fenômeno como a possessão e de suas relações com o que lhe é

exterior embora conectado. Diz respeito também, é evidente, ao

tipo de perspectiva que se pretende adotar, e que aqui tenciona

ser a da antropologia soc i al.

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4. Uma Tentativa de Crítica

Pode-se ver então que o primeiro dos dois grandes paradigmas

que têm norteado os estudos sobre o transe e a possessão poderia

ser denominado de “materialismo médico”, retomando uma expressão

que Mary Douglas toma de empréstimo a William James, e que

sign i fica, grosso modo, a redução do simbólico ao biológico. Este

paradigma possui duas variantes: uma que considera diretamente o

êxtase como perturbação (geralmente mental) não reconhecida

enquanto tal devido aos parcos conhecimentos médicos das

populações que experimentam o processo; e outra que vê o transe

como forma de tratamento “pré-médico” (eficaz ou não, isto varia)

para estas mesmas doenças mentais. Essas duas variantes não se

excluem, ap arecendo de forma combinada numa série de autores.

Ora, esta abordagem é passível, parece-me, de pelo menos

três objeções situadas em distintos planos: uma de ordem

etnogr áfica, outra de ordem histórica, e uma última, de ordem

teórica. A primeira diz respeito ao fato de que é extremamente

difícil, como realçam por vezes os próprios autores que praticam

essa assimil ação, conectar empiricamente os fenômenos extáticos

com as perturbações definidas pela medicina moderna como doenças

mentais. Os xamãs e possessos dificilmente considerados por

aqueles que com eles mantêm contato direto e intenso como loucos

ou histéricos, e tal aproximação só pôde mesmo ser efetuada a

partir de uma assim i lação apressada entre as formas exteriores do

transe místico e algumas estruturas de comportamento que nossa

própria cultura co nsidera como fruto de distúrbios mentais. Além

disso, Roger Bastide o demonstrou exaustivamente (cf. Bastide,

1973: 306-310), o transe se processa sempre em momentos

socialmente programados, havendo mesmo aqueles (tais como os

rituais funerários no Candomblé) que o excluem irremediavelmente,

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ainda que as mesmas canções e ritmos observáveis aí produzam, em

outros contextos, possessões quase instantâneas. Há tabus que

proíbem a possessão (menstruação, rel ações sexuais recentes...);

há indivíduos, ocupantes de certos postos hierárquicos ou no

desempenho de determinadas funções rel i giosas, que não podem ser

possuídas, etc. Em suma:

“um misticismo que começa em

determ i nado momento e termina também num

momento dado, seguindo sempre certas

regras, longe de explicar o social, só pode

se explicar pela antecedência do social

sobre o míst i co” (Ba stide, 1945: 88).

É preciso sempre indagar portanto, como afirma Lévi-Strauss,

se são os “primitivos” que se subordinam à autoridade de “loucos”,

ou se somos nós mesmos que tratamos fenômenos sociológicos como se

eles derivassem puramente dos domínios de uma pretensa patologia

indiv i dual (cf. Lévi-Strauss, 1950: XXII).

Esta última observação conduz diretamente à segunda objeção,

de ordem histórica, a ser feita contra o “materialismo médico” nas

explicações sobre o transe. Tudo indica que o mecanismo

intelect ual que estabelece essas equivalências entre possessão e

loucura parece repousar em última instância sobre uma aparente

certeza histórica: a constatação de que, no Ocidente, o

desenvolvimento da medicina incorporou progressivamente áreas

anteriormente abandon adas ao arbítrio do pensamento religioso.

Ora, esta interpretação, nitidamente evolucionista, é totalmente

equivocada. Como demon strou, decisivamente, Michel Foucault, ela

repousa:

“num erro de fato: que os loucos eram

considerados possuídos; num preconceito

i nexato: que as pessoas definidas como

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poss uídas eram doentes mentais; finalmente

num erro de raciocínio: deduz-se que se os

possuídos eram na verdade loucos, os loucos

eram tratados realmente como possuídos”

(Foucault, 1975: 75).

É a partir destas observações críticas que ele se acha então

em condições de concluir que:

“de fato, o complexo problema da

possessão não releva diretamente de uma

história da loucura, mas de uma história

das idéias religiosas” (Foucault, 1975:

75).

Na verdade, antes do século XIX a medicina só havia

interf erido por duas vezes em questões ligadas à possessão, duas

intervenções praticadas justamente a pedido da própria Igreja

Católica: tratava-se, nos dois casos, de combater formas heréticas

de culto em que o transe aparecia largamente disseminado. Neste

contexto, os médicos forneceram um importante aval para a tese

católica de que os fenômenos extáticos observados nessas seitas

marginais derivavam exclusivamente de causas materiais (“de

movi mentos violentos dos humores e dos espíritos”), e não de

alguma forma não conhecida — ou reconhecida — de manifestação do

sagrado, ainda que demoníaco (cf. Foucault, 1975: 75-76; ver

também Fo ucault, 1968: 24). De fato, a anexação deste domínio de

fenômenos ao campo propriamente médico é bastante tardia, datando

do século XIX e tendo significado sobret udo:

“apenas um episódio lateral em

rel ação ao grande trabalho que definiu a

doença mental; e, sobretudo, ela não é

resultante de um esforço essencial para o

desenvolv i mento da medicina; é a própria

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experiência religiosa que, para se apoiar,

apelou, e de modo secundário, para a

confirmação e a crítica médicas” (Foucault,

1975: 76).

É, consequentemente, apenas a partir de século XIX que esse

tipo de experiência mística será definitivamente medicalizado, e

com ele todo o campo da religião, que tende, cada vez mais, a ser

visto como uma grande “ilusão”, processo coroado talvez pelos

tr abalhos “culturais” de Freud onde, significativamente, uma certa

medicina mental e uma certa antropologia têm seu ponto de

enco ntro. Em suma, poder-se-ia dizer que é um engano crer que o

êxtase tenha colaborado, no seio da própria experiência ocidental,

para a construção mesma da noção de doença mental, sua anexação

tendo se processado apenas depois de a definição desta última, “em

estilo positivista”, já haver sido formulada. Ou, em outros

termos, pod eria ser sustentado legitimamente que no contexto

histórico e cultural da sociedade ocidental a relação entre

possessão e doença mental foi, num primeiro momento constitutivo,

de exterioridade, tendo sua assimilação se processado muito

depois, sob o jogo de inúmeras forças de ordem sócio-política.

Tendo caído contudo nas malhas do discurso médico e medicalizante,

o transe não mais deles se livrou, e poderíamos perguntar então,

com certa justiça, se as teorias antropológicas, reduzindo a

possessão à enfermidade, me ntal ou não, não estariam participando

desse jogo positivista de “desencantamento do mundo” — posição

mais do que evidente em tr abalhos como os de Tylor, por exemplo,

que se engajava conscientemente e de boa vontade nesta empresa,

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mas não menos pr esente, embora mais oculta e “envergonhada” em

abordagens muito posteriores sobre este assu nto 11.

Finalmente, há uma objeção de ordem teórica, talvez a mais

fundamental de todas. Reduzir o transe ao nível biológico e/ou

psicológico é pôr de lado uma das mais básicas — se não a mais

básica, na medida em que é ela que funda a possibilidade de uma

ciência do social — “regras do método sociológico”, que assegura

que os fatos sociais processam-se num plano que lhe é específico,

devendo consequentemente se estudados neste nível de autonomia.

Esta posição não pode contudo — e este ponto é essencial —

cond uzir a uma espécie de formalismo e de ecletismo

“interdisciplinar” que se contentaria em admitir a presença de

múltiplos planos nos fenômenos sociais e pretenderia assim abordar

cada um deles de forma independente para depois, numa espécie de

somatório, apr esentar uma explicação geral. Teríamos assim um

nível fisiológico ou neurológico, um outro psicológico, outro

sociológico, outro cultural, cada um devendo ser estudado por uma

abordagem partic ular para depois termos os resultados combinados

(esta é, por exemplo, a posição explícita de Sheila Walker e de

Edward Foulks, entre outros — cf. Walker, 1972; Foulks, 1972).

Ora, os antropólogos sabem desde Mauss que os fatos sociais

são totais , ou seja, ao menos num certo sentido articulam e dão

nexo a realidades de outros níveis (fisiológico, psicológico,

11 Assim, é ao mesmo tempo espantosa e natural a profissão de fé

positivista de Luc de Heusch ao recusar o “corte epistemológico”

entre a “história da loucura” e a “história das idéias religiosas”

proposto, segundo ele, por Michel Foucault (cf. Heusch, 1971:

292). Heusch confunde aí explicação científica com reducionismo

naturalista e acaba por deslizar de um pretendido estruturalismo

para um esquema bem adequado ao evolucionismo vitoriano, com o

qual ele se contenta.

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etc.) que, caso contrário, não teriam, para o ser humano,

existê ncia alguma (cf. Lévi-Strauss, 1950). Assim, ao antropólogo

cumpre tentar compreender e demonstrar como um fato socialmente

determ i nado e socialmente vivido pode induzir fenômenos de outro

nível. Não, evidentemente, que outras ciências não possam fornecer

el ementos para a explicação do transe — isto é praticamente

essencial. O problema consiste em esperar de tais ciências,

quai squer que elas sejam, o fornecimento da chave explicativa de

um fato que, por ser total, cabe, por direito e dever, à

antropologia explicar. Em outros termos, a questão reside em

escolher entre uma série de explicações mecânicas que ao final

poderão talvez ser adicionadas entre si sem modificar sua natureza

última, isto é, sem dar acesso a uma verdadeira síntese, e a

tentativa de enco ntrar justamente uma explicação sintética,

qualitativamente distinta dos modelos parcelares mas que poderá,

num outro momento talvez, chegar a esclarecê-los.

Isto não significa, é claro, que o antropólogo suponha uma

existência imaterial dos fenômenos por ele analisados. Mas ele

sabe sobretudo que suas análises

“préfigurent seulement, sur les

parois de la caverne, des opérations qu’il

appartiendra à d’autres sciences de valider

plus tard, quand elles auront enfin saisi

les véritables objets dont nous scrutons

les reflets” (Lévi-Strauss, 1971: 575).

A antropologia corresponde pois somente a uma etapa de um

trabalho, a que visa tornar possível a redução dos fatos humanos a

sua materialidade última. Não há nenhuma contradição aqui: esta

redução não tem nada a ver com aquela acima criticada, pois esta

última tem seu ponto fraco não em pretender reduzir, mas em não

saber como fazê-lo, ao não respeitar nenhuma das exigências que

garantem a cientificidade de um tal trabalho. Tais exigências (cf.

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Lévi-Strauss, 1976: 282-283) sustentam tanto que o nível a ser

r eduzido não pode ser empobrecido, quanto que aquele que deverá

recebê-lo tem que ser enormemente complexificado justamente para

poder dar conta do que se lhe exige. Ora, o “materialismo médico”

só consegue a dissolução do transe no biológico sob o preço de

simplificar excessivamente o primeiro e de adotar uma concepção do

segundo rigorosamente idêntica àquela existente antes do processo

de redução. Neste sentido, e para evitar erros assim, o trabalho

antropológico só pode consistir em complexificar o máximo

poss í vel, em termos estruturais, o nível cuja redução é

pretendida, para que, um dia, outras ciências (pois nesse momento

a antropol ogia se dissolve juntamente com seu objeto) possam

efetuar uma redução verdadeiramente científica e explicat i va.

Para cumprir uma tal tarefa, a única via aberta para a

análise antropológica é tentar desvendar as estruturas lógicas em

operação no fenômeno estudado, estruturas que, supondo-se

redut í veis a mecanismos básicos do pensamento, podem colocar a

explicação no caminho de uma materialidade biológica e, por trás

dela, físico-química. É num tal contexto que o estudo

antropológ i co das religiões encontra sua validade, e não,

certamente, nem no reducionismo simplista apresentado acima, nem

em uma fenomenologia do pensamento religioso que se contentaria em

reproduzir, com o utra linguagem, o que os próprios crentes já

dizem (tal é o caso, no que diz respeito aos estudos afro-

brasileiros, do trabalho de Juana Elbein dos Santos — 1977 — obra

de resto profundamente adm i rável):

“Se quisermos fazer da religião uma

ordem autônoma, ligada a uma pesquisa

par ticular será necessário subtraí-la a

essa sorte comum aos objetos da ciência.

Definir a religião por contraste será

inevitave l mente para a ciência fazê-la

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distinguir-se apenas como o reino das

idéias confusas. Por conseguinte, todo

empreendimento que vise a pesquisa objetiva

da religião será forçado a escolher um

outro terreno que não o das idéias, já

desnaturado e apropriado pelas pretensões

da antropologia religiosa. Ficarão abertas

somente as vias de acesso afetiva — ou

mesmo orgânica — e sociológ i ca, que apenas

rodeiam os fenômenos. Inversamente, se

atribuirmos às idéias r eligiosas o mesmo

valor que a qualquer outro sistema

conceptual, que é o de dar acesso aos

mecanismos do pensamento, a antropol ogia

religiosa será validada nos seus empenhos,

mas perderá sua autonomia e esp ecificidade”

(L évi-Strauss, 1975: 107).

De fato, nos estudos afro-brasileiros, além das abordagens

fenomenológica e “afetiva-orgânica” já mencionadas e analisadas,

pudemos observar a presença de um modelo sociológico. Este modelo

constitui mesmo o outro paradigma utilizado para a explicação dos

fenômenos extáticos, apresentando uma perspectiva sociologizante

onde a possessão é encarada como reflexo, direto ou invertido, da

“estrutura social” que envolve a ela e ao culto em que se

proce ssa. Neste modelo, o transe aparece ora como mecanismo de

reforço da ordem social abrangente (seja como instrumento

sociológico adaptativo, seja como estratégia política de

dominação), ora como canal de manifestação de segmentos sociais

oprimidos, ora como a mbas as coisas. Em todos os casos, tratar-se-

ia de um terreno aberto para manipulações individuais e grupais

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que procurariam a l terar o equilíbrio do poder em seu benefício

próprio 12.

Apesar de obviamente muito mais satisfatório do que o modelo

anterior, por respeitar o princípio de autonomia do plano sócio-

cultural, o paradigma sociológico incorre contudo num erro

paral elo ao da perspectiva que ele tanto critica. Isto porque sua

força — tentar extrair o sentido do transe do meio social e não de

re alidades exteriores — é também sua fraqueza: a idéia de fato

social é tomada num sentido excessivamente durkheimiano, de tal

modo que a “sociedade” acaba por surgir como uma entidade

reificada, exi stindo para além dos planos que a compõem. Ora, para

falar rigorosamente, a sociedade não existe; ela é apenas um nome

que designa a coexistência e a interligação de uma multiplicidade

de níveis, cada um dotado de uma densidade própria, de uma certa

dose de especificidade. Aqui também é preciso acrescentar à noção

de fato social o adjetivo de total :

“Durkheim já afirmara que os

fenômenos jurídicos, econômicos, artísticos

ou religiosos eram ‘projeções da

sociedade’: o todo explicava as partes.

Mauss recolheu esta idéia, mas advertiu que

cada fenômeno possui características

próprias e que o ‘fato social total’ de

Durkheim era compo sto por uma série de

12 Como bem demonstrou Louis Dumont, o campo do político (e do

mi cro-político especialmente) é especialmente propício para

distorções etnocêntricas: “Choisissez la dimension politique (...)

et quelles que soient les difficultés que vous rencontrerez par

ailleurs, vous aurez devant vou n’importe où des individus opérant

des choix, ‘maximisant’ leurs avantages, ‘manipulant’ les

situ ations de la manière permise par les institutions

traditionnelles” (Dumont, 1968: XII).

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planos superpostos: cada fenômeno, sem

perder sua especificid ade, alude aos outros

fenômenos. Por tal razão, o que conta não é

a explicação gl obal mas a relação entre os

fenômenos: a sociedade é uma totalidade

porque é um si stema de relações. A

totalidade social não é uma substância nem

um conceito mas ‘consi ste finalmente’ nos

circuitos de relações entre todos os

planos” (Paz, 1977: 10-11; cf. também Lévi-

Strauss, 1950) 13.

Isto quer dizer, entre outras coisas, que apontar para as

possíveis funções do transe, quaisquer que sejam elas, adaptativas

ou de protesto, não resolve evidentemente a questão da existência

mesma da possessão, e nem aquela do culto em que ela está

inser i da. Pois pode se perfeitamente verdadeiro, como quer Peter

Fry, que a motivação individual para a conversão à Umbanda esteja

13 Parece que o primeiro a perceber, brilhantemente, os paradoxos

de uma abordagem sociologizante foi Maurice Merleau-Ponty.

Crit i cando Durkheim em 1948, ele escrevia de modo lapidar: “Quando

se vai do religioso para o social não se passa do obscuro para o

cl aro, não se explica nem um nem outro: reencontra-se, sob um

outro nome, a mesma obscuridade ou o mesmo problema (...). O apelo

ao vínculo social não pode passar por uma explicação da religião

ou do social, a não ser quando tomados como uma substância

imutável, uma causa boa para tudo, uma força vaga definida apenas

por sua potência de coerção, isto é, a não ser que nos tornemos

cegos para a operação original de cada sociedade em vias de

estabelecer o sistema de significações coletivas por cujo

intermédio seus me mbros se comunicam. Nada se ganha fundando o

religioso ou o sagrado sobre o social, visto que os mesmos

paradoxos aí são reencontr ados, a mesma ambivalência, a mesma

mescla de união e repulsa, desejo e temor que já existiam no

sagrado e constituíam seu pr oblema” (Merleau-Ponty, 1948: 184).

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rel acionada com a experiência social específica deste indivíduo; e

também, como pretende Diana Brown, que esta experiência diga

re speito a uma certa estrutura de patronagem e clientelismo

vigente em vários setores da sociedade brasileira, estrutura que o

culto tenderia a reproduzir; ou mesmo, como sugeriram

anteriormente Renê Ribeiro e Roger Bastide, que no transe e no

culto o indivíduo e ncontre uma experiência psicologicamente mais

satisfatória do que aquelas que lhe são oferecidas em sua vida

cotidiana 14. E, apesar disto tudo, nada aí explica o próprio culto

e o êxtase que nele tem lugar. A não ser que se suponha, coisa que

ninguém até hoje parece ter chegado a afirmar explicitamente, que

esta homologia estrutural ou esta correspondência funcional do

sistema religioso em relação à sociedade abrangente reflitam uma

anterioridade “g enética” da segunda sobre o primeiro.

Pois tudo poderia se passar de modo bastante diferente, de

forma inversa mesmo, havendo uma influência do culto sobre a

soc i edade. Ou, em termos mais precisos, é preciso perguntar por

que o processo de moldagem e determinação correria numa só

direção: por que não se poderia supor que os cultos afro-

brasileiros, enquanto componentes da sociedade abrangente — e não

simples reflexos — não funcionariam também construindo-a e

conferindo-lhe uma determinada forma? Isto pode significar que a

conexão da possessão com as e struturas sociais mais inclusivas não

14 O tema da inversão de relações ou posições sócio-políticas com

a conseqüente sensação de compensação por ela fornecida é bastante

problemática. Mesmo na ocorrência deste tipo de inversão cumpre

colocar uma interrogação sobre seu efeito necessariamente

compensatório. A primeira operação é de ordem lógica, ou mesmo

sociológica, mas a segunda requer uma série de hipóteses “psico-

sociológicas” que seria mais conveniente colocar entre parênteses

na falta de um estudo mais aprofundado.

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deva ser estabelecida de modo tão direto e imediato, sendo talvez

preciso levar em consideração as possíveis mediações que a

estrutura do transe e a estrutura do culto em que ele se processa

representam. Pois, se não há dúvida de que as relações internas ao

culto são influenciadas pelas rel ações sociais mais amplas, é

igualmente verdadeiro que as primeiras funcionam como “lentes” que

fornecem aos membros do grupo uma via de acesso específica para a

realidade social “exterior”, influindo portanto de modo decisivo

na percepção social e na experiência v i vida por essas pessoas.

Em outras palavras, e no que se refere ao objeto específico

deste trabalho, embora não possam restar dúvidas de que tanto a

possessão quanto os cultos afro-brasileiros “falam” da sociedade

brasileira, é essencial ressaltar que eles o fazem através de uma

linguagem que é estruturada de modo específico. Em suma, a conexão

da possessão com a “estrutura social” só pode ser um ponto de

chegada, jamais de partida. E isto porque as coisas poderiam ser

ainda mais complexas. Roger Bastide, como já foi dito, acreditou

localizar entre o universo simbólico do Candomblé e aquele vivido

pelo fiel cotidianamente um “princípio de corte”, princípio que

manteria cuidadosamente separados esses dois mundos. Assim, apenas

à guisa de sugestão, talvez fosse possível supor que cada religião

particular poderia manter formas de articulação distintas com os

demais fatos sociais, hipótese que colocaria de maneira nova as

questões de totalidade social e de solidariedade entre planos

sociológicos, que poderiam então talvez ser respondidas sem que

tivéssemos que apelar para a problemática noção de um “eu”

unit ário que atravessaria incólume todos os planos e níveis de sua

experiência, noção necessariamente presente quando se pensa as

r elações entre “religião” e “sociedade” em termos de inversão,

reforço, etc. Mas a investigação mais detalhada dessa idéia nos

levaria longe demais dos objetivos dessa dissertação.

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A hipótese básica em jogo neste trabalho é então a de que

para entender a articulação do transe e dos cultos com a sociedade

abrangente é estritamente necessário analisar em primeiro lugar as

estruturas de um e dos outros. Ou seja, é preciso primeiramente

considerar a possessão em si mesma para que depois, através de

aproximações sucessivas, se possa pretender atingir (na forma como

no conteúdo) as conexões com a estrutura social inclusiva. Este

trabalho deverá deter-se na primeira dessas tarefas, dado a

complexidade da segunda que exigiria um estudo particular.

Contentar-me-ei em, ao final do último capítulo, esboçar algumas

consider ações que poderiam talvez conduzir esta aproximação de meu

objeto com a sociedade que o envolve.

Resumindo então, poder-se-ia dizer que o que a análise das

teorias a respeito do transe e da possessão — sejam as mais

gerais, sejam aquelas relativas aos cultos afro-brasileiros —

revela é a ausência de uma teoria verdadeiramente antropológica

deste o bjeto. Em todos os casos enfocados, deparamo-nos com um

reducionismo global que cada autor assume de uma forma particular,

e que defende, explícita ou implicitamente, os postulados daquilo

que Marshall Sahlins denominou de “razão prática” em antropologia:

supõe que o complexo universo simbólico do êxtase pode ser

deduz i do de ou reduzido a realidades pretensamente mais materiais,

seja a um nível bio-psicológico — e encontramo-nos aqui em pleno

“mat erialismo vulgar” — seja a um plano “sócio-político”, onde

temos uma manifestação da “teoria da utilidade”, que insiste em

encarar a cultura e os diversos processos culturais como derivando

de um jogo manipulatório entre indivíduos e grupos que

concorreriam para extrair daí um benefício máximo (cf. Sahlins,

1976: VII-VIII; pa ssim).

Ora, como já foi dito, o que se pretende aqui é esboçar esta

teoria antropológica da possessão. Para isso tomei, mais como

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“pretexto” do que como objeto, a forma de manifestação do transe

nos cultos afro-brasileiros, em particular no Candomblé Angola,

embora eu suponha que as eventuais conclusões a que se possa

chegar a partir daí, possuam uma validade bem mais ampla, desde

que aplicadas no nível certo que não é o das manifestações

superf i ciais de fenômenos análogos, mas sim sua estrutura mais

profunda. Neste sentido, o próximo capítulo fornecerá um “esquema

etnográf i co” (e não uma verdadeira etnografia) dos fatos aqui em

jogo, e squema que tem quase que exclusivamente a função de tornar

possível o acompanhamento e o julgamento das conclusões de caráter

teórico propostas no Cap í tulo IV.

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CAPÍTULO III

A POSSESSÃO NO CANDOMBLÉ

1. O que é a Possessão?

Ao assistir a uma possessão por Orixá pela primeira vez, o

observador que não domina ao menos parcialmente o código do grupo

oscila entre duas opiniões: pode considerá-la uma espécie de

r epresentação teatral, uma forma pura desprovida de substância, ou

pode, ao contrário, imaginar que se trata de uma perturbação

i ncontrolável, um dado substantivo não formalizável. Com o tempo,

e com o domínio desse código específico que faz os corpos falarem,

aprende-se que a possessão, ao menos idealmente, não é nem uma

coisa nem outra. Trata-se de um fenômeno estruturado, no qual

fo r ma e conteúdo dependem um do outro, sendo por conseguinte

inseparáveis. Isso se torna evidente ao compararmos o

comportame nto dos filhos-de-santo possuídos por diferentes Orixás.

O padrão de cada transe é conferido, como o assinalou Roger

Bastide (Bast i de, 1978: 201), miticamente. Enquanto Xangô e Iansã

dançam freneticamente imitando com os braços os raios e ventos de

que são senhores, míticos, Oxalufã, velho e alquebrado, curva-se

até quase tocar o chão e não caminha, se não muito lentamente;

Oxum banha-se em águas imaginárias, mas Ogum move os braços,

esticados como la nças guerreiras. A própria expressão facial muda

de Orixá para Orixá: o rosto de um Oxóssi é sereno e grave,

enquanto que o de um Omolu se contrai de dor e agonia.

Por outro lado, as diferenças entre os Orixás não são

sufic i entes para explicar todas as diferenças de comportamento e

expressão observadas durante os transes. Dois Xangôs podem

compor tar-se de forma diferenciada, muito embora semelhantes, se

comparadas com as de outros Orixás. Isso é explicado pela própria

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essência dessas divindades que são, diz-se freqüentemente, “como

uma corrente elétrica que pode acender várias lâmpadas ao mesmo

tempo”. Ou seja, sua presença na terra é marcada sempre por uma

certa dose de materialidade própria à individualidade de seus

cavalos. Por isso, fala-se no Xangô de alguém, ou no “Oxóssi

dele”, etc. O nome puro do Orixá é mencionado apenas quando se

trata de sua essência não incorporada.

Em suma, a possessão só pode ser fruto de um aprendizado, de

uma (re)educação, que começa quando se vai pela primeira vez a um

terreiro assistir a alguma cerimônia (ou participar dela pela

pr i meira vez) e que finda com a feitura do santo, com a iniciação

ao culto dos Orixás. Da mesma maneira, o campo dos fenômenos de

possessão no Candomblé não é indiferenciado. Pode-se mesmo

estabelecer uma tipologia dos casos de possessão a que está

suje i to um fiel, tipologia essa sustentada pelo próprio grupo a

partir de sua “noção de pessoa”. Esta sustenta que o espírito do

ser h umano é composto sempre por:

a) Sete Orixás, dos quais um é o dono da cabeça (Olori, dono do

Ori), ou seja, é o Orixá principal; e seis outros diferenciados

quanto a sua importância e chamados respectivamente de segundo,

terceiro, quarto santos, etc. Entre esses sete Orixás incluem-

se necessariamente Oxalá, Exu e Omolu, sendo que sua posição

relativa no sistema do Ori varia de pessoa para pessoa. Os

outros quatro Orixás são indeterminados, e a esse conjunto de

sete santos dá-se o nome de “carrego de santo”. Cada Orixá

re sponde pelo controle de uma parte da cabeça de cada ser

humano (a cabeça sendo considerada o centro do corpo): o

primeiro sa nto, ou Olori ou santo de frente, controla a parte

central da cabeça, o Ori propriamente dito, tendo para isso o

auxílio do segundo santo, ou Juntó, e do terceiro santo; o

quarto e o quinto santos são responsáveis pela visão, enquanto

o sexto e o sétimo respondem pela audição da pessoa. Deve ser

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ressaltado contudo que não se trata aqui dos sentidos

ordinários da vida cotidiana, mas sentidos “místicos”, ou seja,

trata-se de uma visão e de uma audição que devem sintonizar

fenômenos mediún i cos, e não aqueles capt ados cotidianamente.

b) Um Erê. O Erê é, segundo os informantes, uma qualidade infantil

do Orixá e um intérprete do santo. A segunda definição é

atr i buída tendo em vista o fato de que o “Orixá não fala”,

usando, quando deseja transmitir alguma mensagem, o Erê, que é

uma e ntidade “faladora e brincalhona”. Por outro lado, o termo

“qualidade do Orixá” remete a uma das características marcantes

dessas forças espirituais para o sistema do Candomblé. Com

efeito, embora os Orixás sejam concebidos como forças da

nat ureza, presentes portanto em toda parte, tais forças não são

vistas como homogêneas, formando antes um espectro de

“vibr ações”: existem tantas vibrações principais quantos

Orixás, mas dentro da mesma faixa podem ser distinguidas

subdivisões e a ssim indefinidamente até atingirmos o Orixá

pessoal de cada filho-de-santo. Este ainda apresenta uma

qualidade eternamente infantil já que só há Erê ligado a Orixás

individuais: a cada fiel, seu Erê. Deve-se acrescentar que o

Erê não é aqui assoc i ado via de regra, como ocorreria na

Umbanda, com espíritos ou almas de cr i anças mortas.

c) O Egum. Por esse termo o grupo define geralmente as almas dos

mortos que permanecem perambulando pela terra. São espíritos

desencarnados essencialmente diferentes e inferiores aos

Ori xás. Afirma-se por outro lado, embora a possibilidade da

reencarnação seja freqüentemente negada, que todo ser humano

traz, “na cabeça”, um Egum; trata-se contudo de uma outra

espécie de Egum, um Egum-de-Santo. Este é definido, algo

confusamente, como uma alma que nunca esteve encarnada e que

não pode ser assimilado à alma, propriamente dita, da pessoa

(conhecida por Emi, força vital que anima o corpo humano).

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Si milarmente, fala-se de Erê-de-Santo, que corresponde ao que

definimos no item anterior, e em Erê simplesmente, que vem a

ser a alma desencarnada de uma criança morta. Nesse trabalho, a

não ser que se especifique o contrário, ao falar-se de Erê

refer i mo-nos sempre ao primeiro caso.

d) O Exu. Em primeiro lugar, ao contrário do Erê e do Egum, Exu é

um Orixá como outro qualquer, não se identificando com o Diabo

cristão, mas sendo visto como um mensageiro dos deuses, um

i ntermediário entre homens e Orixás. Nessa função, Exu é visto

como um e como muitos: além de ser o Orixá mensageiro em geral,

multiplica-se pois cada Orixá possui um Exu que lhe serve de

“escravo”, de mensageiro particular. Assim, todos têm em sua

cabeça um Exu que é a qualidade particular escrava de seu

Ol ori.

A estrutura da personalidade humana pode ser representada no

Candomblé pelo seguinte esquema, que reproduz a “cabeça” vista de

cima 15:

Exu(ligado ao futuro) 5º Santo

(ligado à ”visão mística“)

6º Santo(ligado à ”audição mística“)

Juntó (2º Santo)Egum

(ligado ao passado)

3º Santo

4º Santo(ligado à ”visão mística“)

7º Santo(ligado à ”audição mística“)

OLORI(1º Santo)

Nesse esquema, o tripé Olori-Juntó-3º Santo responde pelo

equilíbrio e pelas funções mediúnicas mais profundas (como a

“i ntuição, por exemplo) do filho-de-santo; o quarto e o quinto

santos são responsáveis pela visão mediúnica; o sexto e o sétimo

dominam a audição mediúnica. O Egum representa a eterna ligação da

pessoa com o passado, enquanto o Exu projeta-se no futuro. Embora

o Erê não conste desse diagrama fornecido pelos informantes, sua

15 É interessante notar como esse esquema da “cabeça” humana se

assemelha ao desenho efetuado sobre a cabeça do Iaô quando da

“saída” de seu Orixá. Não possuo, contudo, dados que permitam

confirmar a possível reprodução gráfica do modelo místico.

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função, como já foi dito, é a de intérprete do santo, do Olori,

supondo-se então que esteja localizado também no Ori (porção

central da cab eça), ao lado do primeiro santo.

A partir dessa “noção de pessoa”, os tipos de possessão são

diferenciados de acordo com os agentes da mesma.

1.1. Possessão por Orixá :

É o caso ideal de possessão dentro do Candomblé. O cavalo,

como é chamado o filho-de-santo possuído, é tomado pelo Olori,

pelo dono de sua cabeça (embora, como veremos adiante, os demais

Orixás do carrego, especialmente o Juntó e o terceiro santo,

possam por vez incorporar-se) e tem sua personalidade inteiramente

substituída pela de seu Orixá. É uma possessão tranqüila cujo

padrão se repete, variando apenas de forma de Orixá para Orixá: o

cavalo sacode o corpo e imediatamente esta possuído; seu Orixá

assume sua postura específica (curvada para Oxalá e Omolu, garbosa

para Oxóssi, sensual para Oxum, etc.) e lança o Ilá, o grito

característico daquele Orixá, grito que varia de filho-de-santo

para filho-de-santo já que consiste numa parte do nome de um Orixá

específico, formado por sua vez através de um arranjo entre o nome

genérico do Orixá, uma qu alidade particular e a Digina do filho-

de-santo, ou seja, o novo nome por ele recebido quando de sua

in i ciação.

Se o filho-de-santo possuído já tiver algum “tempo de santo”,

permite-se que seu Orixá incorporado tome rum, ou seja, dance (rum

é o nome do maior dos três atabaques, aquele que comanda o ritmo

tocado). Se, ao contrário, o cavalo tiver pouco tempo de culto,

seu santo será “desvirado”, processo que pode se dar de duas

maneiras: levando o Orixá incorporado para o Peji (quarto que

abriga o jogo de búzios) ou para o Roncó (quarto onde são

guardados os assentamentos dos diversos Orixás da casa, e onde o

filho-de-santo fica recolhido durante o período de iniciação) de

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onde o filho-de-santo retorna consciente; ou então cobrindo sua

cabeça com um pano da costa (espécie de xale que as filhas-de-

santo mantém enrolado no corpo). No primeiro caso, ao chegar na

entrada do compartimento para onde é levado (Peji ou Roncó), o

Orixá sacode violentamente o corpo de seu cavalo e lança o Ilá

antes de entrar; no segundo, efetuado sempre por um filho-de-santo

não incorporado, há apenas um balanceio mais violento do corpo,

uma espécie de tremedeira, e imediatamente o transe se interrompe.

Apenas aos Orixás das pe ssoas hierarquicamente mais importantes,

ou daqueles considerados “pés-de-dança” (exímios dançarinos) é

permitido um tempo maior na terra, tempo todo consumido em danças,

diferentes para cada Orixá.

A possessão pelo Orixá não ocorre a qualquer instante, mas

tende a ser bastante disciplinada. O momento mais adequado, quase

que obrigatório, para que ela se dê, é durante os cânticos

espec í ficos de cada Orixá. Os Orixás são invocados numa ordem, não

muito fixa mas que se inicia sempre com Exu e Ogum e termina com

Oxalá, denominada Xirê. Desse modo, espera-se que durante os

cânticos d edicados a Xangô, por exemplo, os filhos desse Orixá

entrem em transe, pois as toadas ou zuelas, como são usualmente

chamados e sses cantos, são um chamamento do Orixá. Além disso, as

toadas de Oxalá, que encerram o Xirê, têm a propriedade de trazer

à terra todos os Orixás. Há mesmo uma cerimônia, uma dança, em que

todos os filhos-de-santo, a maioria incorporada com seus Oloris,

dançam o “alá” de Oxalá, em torno de um Oxalá virado, coberto com

um pano branco e contornando o salão onde se dão os rituais; essa

cerim ônia representa a submissão e dependência de todos os Orixás

a Oxalá, senhor da vida e “pai de todos”. Também as toadas

dirigidas à Navalha de um filho-de-santo podem fazer que seu santo

vire. Por Navalha, um fiel denomina o Olori de seu pai-de-santo.

Assim, um filho de Oxum cujo pai-de-santo é de Ossanha pode

receber seu Or i xá ao ouvir cantos para esse último. Uma outra

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possibilidade ocorre somente nos casos de Orixás que guardam

estreito relacion amento tanto mítico quanto classificatório.

Logunedé, por exemplo, é tido como filho de Oxóssi e Oxum, podendo

portanto virar durante os cânticos desses dois Orixás. Esse caso

abre o sistema para qu ase todas as eventualidades: praticamente

todos os Orixás do Xirê mantêm entre si algum tipo de relação (ao

nível do mito, dos atr i butos ou da classificação geral); desse

modo pode-se sustentar, a nível do modelo consciente, que o Orixá

pode incorporar a qualquer momento do Toque — “o Orixá é como um

vento” — embora isso de fato não ocorra.

O pai-de-santo pode também fazer incorporar o Orixá de seus

filhos, e isso de três maneiras diferentes: primeiro, sacudindo o

Adjá perto da cabeça de seu filho. O Adjá é um instrumento

metál i co, dotado de guizos, que tem a propriedade, por ter sido

preparado ritualmente para isso, de trazer os Orixás à terra. Em

segundo lugar, o pai-de-santo pode lançar mão de um recurso que

mantém seu filho sob sua dependência durante longo tempo (sete

anos a partir da iniciação, como veremos). Quando da feitura da

cabeça, cada Orixá pessoal se manifesta com um nome, irrepetível,

denominado Oruncó; esse nome não é conhecido nem do próprio filho-

de-santo, que o grita incorporado. Apenas o pai-de-santo o

conh ece, e sua simples menção ao ouvido do filho faz com que este

seja possuído por seu Orixá. O terceiro método de incorporação

forçada pelo pai-de-santo é através do uso do “Atim de Iaô”, que

vem a ser um preparado em forma de pó, “de grande fundamento”, que

pode f azer até não-iniciados caírem no santo.

Finalmente, o Orixá pode incorporar num momento de

“necess i dade” ou no caso de uma grande tensão. Ao final de uma das

sessões que acompanhei, uma filha-de-santo de Xangô foi acusada de

ter roubado os óculos de alguém. Indignada, protestou

violentamente, prometendo jamais voltar a pôr os pés naquele

terreiro, grave transgressão para um filho-de-santo, que está

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sempre ligado à casa em que foi iniciado. Seu pai-de-santo

procurou então acalmá-la, dizendo-lhe que estava tudo bem e que

“seu pai Xangô” não permit i ria nenhuma injustiça (Xangô é o Orixá

responsável pela justiça). Imediatamente seu Orixá virou; levada

para o Roncó e tendo rec obrado a consciência, permaneceu no

terreiro, e no Toque seguinte encontr ava-se entre os membros da

Roda.

1.2. Possessão por Erê :

O Erê, como foi dito acima, é identificado como sendo o

pr óprio Orixá vibrando numa freqüência infantil. Desse modo, a

possessão por Erê funciona como um complemento da possessão pelo

Orixá. Sendo o Erê o intérprete do santo, ele se encarna em duas

situações principais: quando o Orixá tem que falar — ou seja,

quando deseja transmitir alguma mensagem aos homens e, por não

f alar, não pode fazê-lo — e quando o filho-de-santo tem que ouvir,

sendo que essa segunda situação pode ocorrer de duas maneiras: em

primeiro lugar, durante a feitura do santo, o Iaô aprende as

r ezas, gestos, danças, etc. e passa por determinadas fases do

ritual incorporado com o Erê, que tem então a incumbência de fixar

na c abeça do filho-de-santo os ensinamentos por ele recebidos;

além disso, o Orixá pode, desejando comunicar algo a seu cavalo,

fazer-se ouvir, através do Erê, pelos outros fiéis que em seguida

comunicarão a mensagem ao interessado. Em ambos os casos, o Erê

funciona, auxiliado pelos fiéis, como intermediário entre o Orixá

e seu cavalo. No segundo caso de possessão por Erê (mensagem do

Orixá para seu cav alo), o esquema é claro:

ORIXÁ —> ERÊ —> HOMENS —> CAVALO

A situação de feitura (aprendizado através do Erê)

aprese ntaria por sua vez a seguinte configuração:

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ORIXÁ —> HOMENS —> ERÊ —> CAVALO

Pois aquilo que o pai-de-santo ensina a seu filho através do

Erê, foi comunicado à humanidade em épocas remotas pelos próprios

Orixás. Nos dois casos esquematizados, temos portanto o Orixá e

seu cavalo ocupando os extremos da linha de comunicação, havendo

de um caso para o outro uma inversão dos termos médios, já que

enquanto no primeiro o Erê escuta o que os homens, que repetem os

Orixás, dizem, no segundo são os homens que devem ouvir as

mensagens que o Erê, inspirado pelo Orixá, traz.

O Erê pode também virar num caso de necessidade, como se

diz:

“Certa vez, um filho-de-santo levou um tapa de uma mulher,

ao sair para pedir doces no dia de Cosme e Damião. No mesmo

in stante seu Erê virou e disse: “Essa mulher não vai bater mais

nem na cara dos filhos dela, porque eu vou matar ela”. Alguns

meses depois, num certo dia quando ninguém lembrava mais do

acontecido, o Erê tornou a virar e avisou que aquilo que ele tinha

prometido estava próximo de acontecer. Umas horas mais tarde

vieram contar que a mulher t i nha sido atropelada e tinha morrido”.

Ou seja, o Erê também pode vir sem ser chamado (já que

geralmente, nos casos descritos acima, há toadas especiais para

trazer os Erês) para prestar algum serviço para seu Menino, termo

usado para designar os filhos-de-santo quando relacionados aos

Erês. Pode-se supor contudo que também aqui o Erê desempenha seu

papel de intermediário, pois é intercedendo junto ao Orixá que ele

consegue obter o que deseja e prometeu.

O outro momento tradicional para a presença dos Erês na

te r ra é quando de sua festa, comemorada sempre em data próxima a

27 de setembro, dia dedicado aos santos católicos São Cosme e São

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Damião com quem são identificados os Erês. Os informantes contudo

negam essa “sincretização”, dizendo que isso só ocorre na Umbanda,

e que o Erê de Candomblé é diferente (um Erê-de-Santo, qualidade

infantil do Orixá, como já mencionamos anteriormente). Durante

essa festa, os Erês são chamados através de um ritmo especial de

toque dos atabaques e de toadas específicas, sendo que o filho-de-

santo só recebe o Erê depois de estar incorporado com seu Orixá.

Na terra, os Erês, ao contrário dos Orixás, falam muito, brincam e

comem: é o momento da chamada Quitanda de Erê (que ocorre também

ao final dos ritos de iniciação), quando frutas e doces são

di stribuídos pelos Erês aos assistentes em troca de contribuições

simbólicas em dinheiro. Na festa, como que para marcar sua

dif erença em relação às crianças comuns e às “crianças” da Umbanda

(que são espíritos de crianças comuns mortas), os Erês do

Candomblé não comem, em hipótese nenhuma, doces de qualquer

espécie, alimentando-se de frutas e, especialmente, do caruru, sua

comida preferencial.

Os Erês, como os Orixás, possuem nomes. Ao contrário destes

últimos contudo, esses nomes são sempre individualizados, sendo

conferidos ao Erê de cada filho-de-santo por ocasião de sua

inic i ação religiosa. Não há pois nomes genéricos para os Erês:

como eles participam da essência do Olori do fiel, seu nome guarda

sempre relação com alguma característica desse Orixá. Desse modo,

o Erê de um filho de Omolu pode chamar-se “Pipoquinha” ou

“Terr i nha”, pois ambos os elementos estão ligados a esse Orixá (os

sufixos inho e inha são sempre acrescentados para denotar a

infa ntilidade dessas entidades). Outros nomes observados foram:

— “Folhinha d’Água”: Erê de uma filha de Logunedé, Orixá

associ ado simultaneamente às águas (ligação com Oxum) e à matas

(ligação com Oxóssi).

— “Flechinha”: Erê de um filho de Oxóssi, Orixá caçador.

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— “Cipozinho”: Erê de um filho de Ossanha, Orixá que predomina

sobre a flora e as ervas em geral.

— “Ourinho”: Erê de uma filha de Oxum, Orixá cuja cor básica é o

amarelo, tendo o ouro como metal preferido.

— “Gamelinha”: Erê de um filho de Xangô (provavelmente porque a

folha de gameleira serve como folha desse Orixá).

— “Jigoguinha”: Erê de uma filha de Nanã, cuja planta fundamental

é a jigoga.

— “Pombinho Branco”: Erê de uma filha de Oxalá (o pombo branco é

um dos animais preferidos de Oxalá).

1.3. Possessão por Egum :

O termo Egum recobre dois significados distintos embora

aparentados. Primeiramente, um Egum propriamente dito é uma alma

já desencarnada; por outro lado, o Egum-de-Santo representa uma

espécie de alma ainda não encarnada. A possessão por cada uma

dessas entidades é conceitualmente diferenciada pelos informantes,

embora sua manifestação empírica seja absolutamente idêntica. O

primeiro caso (possessão por espíritos de mortos) é visto pelos

fiéis do Candomblé como um fenômeno “de Umbanda”. Segundo sua

opinião man i festa, essa última religião se voltaria para o culto

desse tipo de seres, sejam eles pretos-velhos, pombagiras, exus,

caboclos, etc., enquanto que o Candomblé se desenvolveria

cultuando os Orixás que são, ressalta-se sempre, forças da

natureza. A Umbanda e a posse ssão por Eguns são vistas como algo

de inferior, como um sistema inaceitável para quem tenha

atravessado os complexos e elaborados mecanismos de iniciação do

Candomblé:

“O candomblecista, ele já conhece os mistérios dentro da

Umbanda. Porque, primeiro: quase todas as pessoas de Candomblé

passaram primeiramente pela Umbanda. É raro o caso da pessoa feita

logo dentro do Candomblé. Já dentro do Candomblé, se trabalha em

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linha de Egum e a linha de Egum é cultuada através da Umbanda

ta mbém. Então, o sujeito dentro do Candomblé apanha mais

fundamento do que o próprio umbandista, que às vezes trabalha e

não sabe o que está fazendo. Como há casos de umbandistas que

trabalham com Egum e não conhecem nenhum fundamento sobre Egum”.

No entanto, no nível da realidade concreta as coisas não se

passam exatamente dessa maneira. Muitos filhos-de-santo de

Candomblé abrem terreiros de Umbanda — principalmente porque a

Umbanda é menos elaborada e dispendiosa que o Candomblé, que

necessita de várias pessoas com um certo grau de conhecimento

religioso e de uma disponibilidade financeira maior, pois os

rituais e instrume ntos de culto são por vezes extremamente

custosos. Muitas vezes, um pai-de-santo, tendo começado com um

terreiro de Umbanda, “pura” ou “traçada”, transforma-o com o

correr do tempo numa casa de Cando mblé. Na Umbanda, esses filhos-

de-santo são obrigados a lidar com as entidades principais desse

sistema religioso, que são Eguns d esencarnados.

Além disso, e trata-se de ponto significante para esses

tr abalho, existem certos Eguns que continuam se manifestando em

médiuns preparados no Candomblé. Assim, um pai-de-santo recebe

freqüentemente um Caboclo que afirma “não ter nada a ver com

Candomblé”, caracterizando-se portanto como espírito desencarnado,

como entidade de Umbanda. Essas entidades são geralmente

proven i entes da época em que seu “aparelho” (nome dado aos médiuns

em Umbanda) freqüentava centros umbandistas: tendo-se ligado de

forma especial a alguma entidade nessa época, o filho-de-santo do

Candomblé pode continuar a recebê-la.

Se a possessão por almas de mortos é, de certo modo,

margi nal ao Candomblé, a possessão pelo Egum-de-Santo faz parte

integrante do sistema aqui descrito. Essa forma de Egum, da mesma

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forma que o Erê, participa da essência do Orixá do filho-de-santo

em que ele incorpora. Há dois tipos de Egum-de-Santo: o Exu (que

não se confunde totalmente com o Orixá Exu) e o Caboclo (que não

se confunde com os caboclos da Umbanda). Tanto um quanto o outro

exercem funções análogas, sendo ambos “escravos do Orixá”; são

i ntermediários utilizados pelos Orixás para a execução de

determinadas tarefas. Assim, faz-se um pedido ao Orixá que envia

um de seus escravos para executar a tarefa desejada. Teríamos

então o e squema:

HOMENS —> ORIXÁ —> EGUM-DE-SANTO —> TAREFA

Note-se que cabe ao Orixá decidir se a tarefa será ou não

executada por seus escravos; caso a considere “má” ou “injusta”

pode não permitir seu cumprimento. Nesse caso, resta ao fiel uma

alternativa: utilizar-se de Eguns desencarnados que, devidamente,

atraídos, servidos e “preparados”, desempenham a função de

escr avos do próprio oficiante, permanecendo contudo exteriores a

seu Ori. O esquema precedente se transformaria, tomando a forma:

HOMENS —> EGUM —> TAREFA

onde a possibilidade de fracasso fica por conta exclusiva de

ineficácia do oficiante ou da eficácia de outro filho-de-santo que

execute um trabalho para evitar o cumprimento da tarefa. Vê-se

também, através dos esquemas, que os Eguns efetuam uma

intermedi ação distinta daquela feita pelos Erês: no segundo caso,

liga-se homens e Orixás através do Erê, enquanto que no primeiro a

inte r mediação, com ou sem a participação dos Orixás, é entre os

homens e o mundo que se deseja transformar.

A possessão pelo Egum-de-Santo não é muito comum, e tende a

acontecer fora das cerimônias públicas, exceção feita às ocasiões

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organizadas especialmente para esse fim. Essas ocasiões podem ser

festas oferecidas ao Egum, e podem também ser momentos dedicados a

ele dentro de rituais mais abrangentes, após o culto completo de

todos os Orixás. Assim, ao final dos ritos de saída da iniciação,

tendo-se terminado de cantar para todos os Orixás e tendo-se

ser vido a refeição, organiza-se o Samba de Caboclo. Este,

constitui um momento de descontração após o tenso ritual, momento

em que se misturam na terra “caboclos de Umbanda” (Eguns

desencarnados po r tanto) e “caboclos de Candomblé” (Eguns-de-

Santo), fazendo ressaltar o caráter ambíguo da distinção,

estritamente analítica e teórica, feita entre esses dois tipos de

entidades, e denotando também a ambigüidade intrínseca do Egum, ao

mesmo tempo alma e parte da essência do Orixá, ambigüidade que se

adequa bem a seu papel de intermediários entre o mundo espiritual

e o mundo mater i al.

1.4. A Bolação :

Se a possessão por Eguns desencarnados, própria à Umbanda,

não depende de uma preparação anterior do médium, não se pode

di zer o mesmo daquela efetuada pelos Orixás, que exige um período,

por vezes longo, de aprendizado e treinamento. Sendo assim, a

pr i meira manifestação de um Orixá no corpo de seu cavalo não

apresenta a coerência e o encadeamento lógicos das possessões

ocorridas após a iniciação. Essa possessão original, que pode

acontecer diversas vezes antes da feitura, é conhecida como

Bol ação. Bolar no santo significa que o corpo, desprovido de força

motora pois a “personalidade” (o Emi) do fiel, expulsa, ainda não

pode ser substituída pela de seu Orixá, desfalecerá, com o futuro

filho-de-santo perdendo totalmente os sentidos. Significa também

que o Orixá está pedindo a cabeça de seu filho, ou seja, está

demonstrando da forma mais explícita que deseja sua consagração. A

Bolação é pois o sinal característico de que é chegada a hora de

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135

fazer a cabeça daquele fiel, transformando-o num filho-de-santo,

num Vodunsi. Esse aviso, contudo, pode se manifestar

progressiv amente: o Orixá pode fazer seu filho bolar, e permitir

em seguida que, através de uma série de manipulações feitas pelo

pai-de-santo, ele recupere a consciência; as Bolações entretanto

contin uarão acontecendo até que um dia o Orixá só permitirá a seu

filho recobrar-se depois de iniciado.

Este fenômeno, conhecido na literatura etnográfica como

“santo bruto”, ocorre durante as invocações feitas para o Olori do

futuro filho-de-santo, ou durante aquelas feitas para Oxalá (que

têm, como foi dito, a propriedade de fazer com que se manifeste

qualquer Orixá). Pode acontecer também que o fiel bole em qualquer

outro local, a qualquer momento, tendo então que ser levado para o

terreiro, onde sofrerá tratamento adequado, tratamento que vai de

simples passes que podem com que ele se levante, até a iniciação

completa, caso em que ele deixará o terreiro apenas depois de um

mês. Devido a todos esses fatores, a Bolação é uma ameaça latente

para os filhos-de-santo já iniciados pois, teoricamente, ela não

pode acontecer a eles em nenhuma hipótese, a não ser que tenham

sido feitos para o santo errado; nesse caso, o verdadeiro Olori

“pede a cabeça” do filho, o que significa que ele terá que

atr avessar n ovamente todos os rituais de iniciação.

1.5. A Não-Possessão :

Finalmente, cumpre descrever aquilo que se apresenta como o

reverso dos casos apresentados acima, ou seja, aqueles aspectos do

Candomblé que estão em disjunção com os fenômenos de possessão. O

Candomblé, ao contrário do que se supõe freqüentemente, não está

marcado em todos os níveis pelo transe místico, havendo ocasiões e

ações que bloqueiam, e mesmo impedem proibitivamente, a possessão.

À primeira vista, existiriam “cargos” dentro do Candomblé

que não permitem que seus ocupantes entrem em transe: trata-se dos

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136

Ogans e das Ekédis. O cargo de Ogan não é meramente honorífico,

correspondendo também ao desempenho de certas funções específicas.

Há três categorias principais: a) o Ogan Alabê, encarregado de

t ocar os atabaques, e que deve conhecer os diversos tipos de

toques das diferentes nações; b) o Ogan Calofê, especializado em

puxar os pontos, ou seja, em cantar para os diversos Orixás,

devendo po r tanto conhecer um grande número de toadas; c) Ogan

Axogum, encarregado de praticar os sacrifícios animais para os

diferentes Orixás. Cada especialização dessas depende de um

treinamento esp ecífico, e se geralmente as duas primeiras se

mesclam na prática, a última é de exclusiva competência de quem

para ela foi preparada, pois o Axogum deve ter “Mão-de-Faca”, um

dom que é concretizado através da inic i ação.

O cargo de Ogan, em suas três especializações, só pode ser

preenchido por fiéis do sexo masculino: é vedado às mulheres tanto

o tocar os atabaques quanto praticar sacrifícios e, em menor grau,

puxar os pontos. O “cargo” de Ekédi, ao contrário, é

especific amente feminino, sendo que sua função é, primordialmente,

tocar o Adjá durante as cerimônias, e, secundariamente, auxiliar

os Orixás incorporados, conduzindo e ajudando seus cavalos através

do salão. Além disso, a Ekédi é responsável pela limpeza periódica

dos a ssentamentos dos Orixás dos membros do terreiro. Essa função

lhe concede um poder paradoxal: embora não sendo uma verdadeira

filha-de-santo (pois não incorpora), pode, se estiver mal-

intencionada, prejudicar todos os membros do terreiro, pois o fato

de mexer com os assentamentos de seus Orixás lhe permite, através

da manipul ação desses assentamentos (Ibás), infligir danos às

pessoas ligadas àqueles Ibás. Assim, a Ekédi é tratada com todo

respeito: pede-se-lhe a bênção, ajoelha-se à sua frente, tratando-

a com a mesma r everência dedicada ao próprio pai-de-santo.

Uma observação mais detalhada, contudo, mostra que esses

“cargos” (Ogan e Ekédi) são antes de tudo cristalizações de

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137

fu nções que podem ser desempenhadas por não-especialistas. O Ogan

e a Ekédi passam também pela iniciação religiosa mas, devido ao

car áter específico dos fiéis que cumprem essas funções, que é o de

jamais virarem no santo (se um pai-de-santo iniciar um Ogan ou uma

Ekédi que venham eventualmente a entrar em transe, verá seu

pre stígio contestado e será fatalmente acusado de trapaceiro, ou

“Marmote i ro”, como se diz), essa iniciação difere da dos filhos-

de-santo comuns. Diz-se de uma Ekédi ou de um Ogan que eles são

consagrados nessas funções, e não que são feitos nos santo, e

embora sejam consagrados para um terreiro particular, seu

pertencimento a esse terreiro não possui a rigidez dos laços que

ligam um filho-de-santo comum à sua casa. Isso, por dois motivos:

em primeiro lugar, nem o Ogan nem a Ekédi podem ser consagrados

pelo pai-de-santo do terreiro a que estão ligados. Explica-se essa

proibição invocando a situação contraditória que seu não

cumpr i mento acarretaria, pois, como vimos, os membros da casa-de-

santo a que pertence certo Ogan ou certa Ekédi ( inclusive o pai-

de-santo ) devem respeito e obediência a ele ou a ela; por outro

lado, os Ogans e Ekédis devem manter essas mesmas atitudes em

relação ao pai-de-santo que os tenha consagrado. Procura-se evitar

então uma situação paradoxal fazendo com que um pai ou mãe-de-

santo de outra casa, geralmente ligada por a l gum tipo de laço de

parentesco-de-santo ou de amizade ao terreiro a que pertencerão o

Ogan ou a Ek édi os consagre para a casa em que trabalharão. O

outro motivo que enfraquece a ligação entre o Ogan ou a Ekédi e

seu terreiro part i cular é que, ao contrário do que ocorre na

relação entre pai e filho-de-santo, nem mesmo aquele que os

consagrou mantém um dom í nio muito grande sobre eles. Isso decorre

do fato de que, por não virarem no santo, tanto o Ogan quanto a

Ekédi não têm muito a t emer de seu pai ou mãe-de-santo. Pois, como

vimos acima, estes mantêm seus filhos deles dependentes na medida

em que os últimos sabem que qualquer deslize (freqüentar terreiros

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138

de outros pais-de-santo inclui-se entre os mais graves) pode ser

punido, porque seu pai-de-santo pode fazer seus Orixás virarem,

trazendo-os então de volta a seu terreiro, e pode mesmo fazer Erês

incorporarem, castigando-os então fisicamente. O Ogan e a Ekédi,

devido aos co mponentes estruturais que definem e caracterizam

essas funções, escapam dessas ameaças, podendo por conseguinte

mudar constant emente de terreiro ou, até mesmo (coisa praticamente

inconcebível para um filho-de-santo comum), parar de freqüentá-

los. Isso fica bastante claro no caso dos Ogans Alabês que quase

sempre exigem remuneração para tocar até mesmo no terreiro para o

qual foram consagrados.

Nesse contexto, ocorre freqüentemente que numa dada sessão

não estejam presentes nem Ogans nem Ekédis. Embora isso seja um

inconveniente (especialmente no caso do Ogan Alabê), não impede

que a sessão se processe normalmente, pois todo filho-de-santo

pode desempenhar as funções reservadas aos Ogans e Ekédis, desde

que saiba fazê-lo e que não esteja incorporado . Isso parece

denotar uma propriedade do sistema, que é a de existirem certas

ações que, por sua natureza, excluem a possessão: tocar atabaque,

puxar po ntos, tocar Adjá e sacrificar são atos que devem ser

praticados conscientemente. Note-se que todas essas ações

apresentam o car áter de serem ligações imediatas com o sagrado,

caráter partilhado também pela possessão. Assim, a disjunção

sincrônica entre esses dois grupos de fatos parece funcionar

evitando uma excessiva r edundância na comunicação com as

divindades. Significativamente, um fiel que vire no santo

(denominado genericamente de Adoxo — sendo o Adoxo propriamente

dito um cone de material especial que recobre a porção da cabeça

cortada durante a iniciação, e representa a consagração daquele

filho-de-santo para um Orixá específico, pois o Adoxo varia,

quanto ao material e à forma, de Orixá para Orixá; metonimicamente

a palavra indica todo aquele filho-de-santo que é passível de

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139

possessão) tem que abandonar o atabaque ou o Adjá d urante as

toadas dedicadas a seu próprio Orixá, momento em que pode vir a

ser possuído. Da mesma forma, um Adoxo pode praticar sacr i fícios

para todos os Orixás, exceção feita a seu Olori (já o Axogum pode

“cortar” até mesmo para seu santo). Conta-se a estória de um pai-

de-santo muito conceituado e temido que praticou um s acrifício

para Omolu, seu Olori; a partir desse instante passou a ser motivo

de chacota — “xoxação” — por parte de todos os membros de

Candomblé que o conh eciam.

Existem outras situações que excluem ou dificultam a

posse ssão. Durante os trabalhos religiosos, ou Fuxicos como são às

vezes chamados, o oficiante deve estar consciente; o Jogo-de-

Búzios deve também ser praticado sem incorporação. Esses tipos de

procedimento são invocados como prova da superioridade do sistema

do Candomblé sobre a Umbanda, já que nessa última o fiel,

consciente, “não sabe nada”: é apenas incorporado com seus Guias

que ele é capaz de “trabalhar”, jogar búzios, etc. Além disso, há

dois casos em que a possessão, embora podendo ocorrer, torna-se

bastante rara: no caso do fiel ser velho no santo, ou seja, ter

sido iniciado já há mu i tos anos (caso que será considerado mais

detalhadamente no decorrer do trabalho), e no caso do Orixá da

pessoa ser tido como muito velho. Pois embora os Orixás sem

definidos como forças da natureza, impessoais portanto, afirma-se

que eles se apresentam aos homens tomando formas e características

semelhantes às suas: possuem então um sexo e uma idade. Além de

certas qualidades de santos que são tidas como velhas (pode haver

uma Oxum velha e o utra nova, etc.), os Orixás considerados como

velhos são: Oxalufã, Omolu e Nanã. Esses Orixás se incorporam

muito raramente, podendo mesmo passar anos sem vir à terra. Quanto

ao sexo, os Orixás div i dem-se em a) Orixás Orcós (masculinos):

Exu, Ogum, Oxóssi, Obaluayê, Tempo, Xangô; b) Iabás (Orixás

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femininos): Iansã, Oxum, Obá, Euá, Iemanjá, Nanã; c) Orixás metá

ou metá-metá (andróginos): Ossanha, Logunedé, Oxumarê, Oxalá.

2. A Construção da Possessão

A tipologia acima esboçada não depende exclusivamente dos

traços sincrônicos isolados, pois é na diacronia que o sistema se

realiza, fazendo com que seus membros atravessem progressivamente

diferentes etapas de um processo que poderia ser chamado de

“ca r reira do filho-de-santo”. Com esse termo pretendemos englobar

a “seqüência de movimentos de uma posição à outra” (Becker, 1977:

72) efetuada por um fiel ideal dentro da estrutura de posições tal

qual definida nos terreiros de Candomblé. Essa carreira implica as

seguintes etapas consecutivas: os sinais, a possessão por Eguns

(recurso à Umbanda), o Bori (recurso ao Candomblé), a Feitura da

Cabeça e as Obrigações (assentamentos do Carrego) 16.

2.1. Os Sinais :

Uma pessoa qualquer pode ingressar no espiritismo (termo

gl obalizante utilizado pelos informantes para denominar o

Candomblé, a Umbanda e o Kardecismo) através de duas vias

16 É importante frisar, novamente, que toda essa descrição é

ef etuada do ponto de vista do fiel “típico” do Candomblé. Assim,

os juízos de valor relativos à Umbanda, por exemplo, são

evidenteme nte proferidos pelos membros de centros de Candomblé,

implicando em posições que os fiéis da Umbanda certamente

apresentariam de outra forma (possivelmente através de uma

inversão radical). Do mesmo modo, todas as referências contidas

neste capítulo ao sistema u mbandista dizem respeito à visão

adotada no Candomblé acerca dele, não pretendendo de forma alguma

refleti-lo fielmente.

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141

principais. Pode primeiramente ir a um terreiro de Candomblé ou a

um centro de U mbanda ou Kardecismo, buscando solução para uma

determinada perturbação em sua vida, seja ela doença, desemprego,

problemas no amor, ou mesmo uma perturbação “mística”: visões,

vozes... Por o utro lado, pode ser levada a um desses lugares por

algum parente ou conhecido que já o freqüente, regular ou

irregularmente. Em ambos os casos, a pessoa pode ou não tornar-se

freqüentador e mesmo me mbro efetivo do grupo visitado. Essas duas

possibilidades contudo não se excluem, e o caso mais comum é o da

pessoa levada a um de sses locais devido a algum tipo de

perturbação, mística ou não. Pode-se acrescentar que o recurso ao

espiritismo, sob qualquer de suas formas, faz já parte integrante

da cultura brasileira: seja através de amigos e parentes, seja

através da divulgação maciça (na imprensa, na vida cotidiana,

etc.) dessas religiões, toma-se conhecimento de sua existência e

de suas práticas, e é difícil acreditar que exista alguém no

Brasil absolutamente estranho a e sse tipo de fenômenos religiosos.

Para os interesses desse trabalho, o caso mais significativo

é aquele em que se busca auxílio na Umbanda, “espontaneamente” ou

não. Isso porque pode ser constatado que grande parte das pessoas

que são membros de terreiros de Candomblé passou antes por casas

de Umbanda. Aí, seus problemas são interpretados em termos de

“possessão por Eguns”, e a iniciação e pertencimento à Umbanda

aparecem como sendo as soluções lógicas para os problemas

vivenc i ados pelo futuro crente.

2.2. A Possessão por Eguns :

No sistema umbandista, as perturbações sofridas pelos fiéis,

quaisquer que sejam elas, são vistas como influências negativas de

espíritos dos mortos. Essas influências maléficas podem ser fruto

de um “trabalho” efetuado por alguém, como podem também ser

espo ntâneas. Desse modo, transformar o cliente em membro de um

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142

centro de Umbanda é ensiná-lo a operar com os Eguns: cada fiel

interage com uma série de entidades que o possuem em momentos

diversos; de cada Linha da Umbanda (geralmente em número de sete)

ele recebe um membro, formando assim uma “Coroa”, conjunto das

entidades com as quais um médium de Umbanda trabalha, ou seja,

soma dos espíritos que ele recebe.

Para os membros do Candomblé contudo, o sistema da Umbanda é

absolutamente ineficaz, ou melhor, ao invés de solucionar os

pr oblemas do fiel, tende a agravá-los. Isso porque o Candomblé

considera que os Eguns são entidades com as quais é difícil

conv i ver e trabalhar pois, ao contrário dos Orixás, que estão

submetidos a diversas leis naturais por eles mesmo criadas, o Egum

só obedece a seus próprios desígnios, a não ser que lhe seja

ord enado o contrário, ordem dada por alguém que realmente conheça

os processos mágicos de fazê-lo, coisa de que os membros do

Candomblé consideram os umbandistas incapazes. Assim, quando os

umbandistas se defrontam com algum problema mais sério criado por

Egum, não têm outra sol ução senão recorrer a um pai-de-santo de

Candomblé.

Os problemas infligidos pelos Eguns são explicados ao se

sustentar, no Candomblé, que, possuindo cada indivíduo apenas um

Ori, o conjunto dos donos desse Ori só pode ser, ele também,

unitário. Na Umbanda, pelo contrário, a cabeça de um médium

pertence a ent i dades que a possuem alternativamente. Devido a esse

fato, chama-se fiel da Umbanda, pejorativamente, de Cabeça de

Oratório, ou seja, cabeça aberta a muitos espíritos. Essa

multiplicidade de Eguns no Ori, crê-se, acarreta necessariamente

uma série de perturbações da mesma espécie daquela que levou a

pessoa ao centro de Umbanda: perturbações físicas (doenças),

mentais (loucura) e místicas (po ssessões descontroladas, “surras”

do santo...). Apanhado em uma dessas situações não há nada a fazer

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143

a não ser recorrer a um te r reiro de Candomblé, passo seguinte na

carreira do filho-de-santo.

2.3. O Bori :

As repetidas possessões, com suas conseqüências nefastas,

levam ao “enfraquecimento” da cabeça do médium, enfraquecimento

que pode culminar na Bolação se não for convenientemente tratado.

No caso de um umbandista bolar, procurará, ou será levado a, um

pai-de-santo de Candomblé, que tratará de “oborizá-lo”. O Bori é

um ritual que consiste em “dar de comer à cabeça”, em servir o

Olori para que este mantenha o Ori forte e livre de perturbações.

Esta cerimônia tanto pode anteceder a Bolação, como forma de

evi tá-la temporariamente, como pode seguir-se a ela com a

finalidade de f azer o fiel recobrar a consciência. Em ambos os

casos, trata-se do primeiro recurso ao sistema do Candomblé’ por

parte de um umbandista, sistema do qual ele provavelmente jamais

sairá, ou, no caso de sair, tornará a voltar. Pois o Bori é um

paliativo, uma manipulação provisória para fortalecer o fiel. Sem

dúvida, após algum tempo seu Olori voltará a pedir sua cabeça, até

que nenhum Bori resolva sua situação, sendo ele então obrigado a

fazer a c abeça. O Bori, exce pcionalmente, pode ser aplicado a

filhos-de-santo já iniciados que cometeram algum erro em sua

relação com seu Orixá que pode se afastar como punição,

enfraquecendo então o Ori de seu filho. Diz-se então que se trata

de um Bori de Maleme (pe r dão), muito mais co mplexo e custoso que o

Bori usual.

Os membros do Candomblé sabem que é da Umbanda que eles

podem, primordialmente, recrutar seus membros. Isso torna o

contato entre umbandistas e fiéis do Candomblé extremamente

perigoso para os primeiros. Conta-se que se um membro do Candomblé

vai assistir a uma sessão de Umbanda todos os médiuns se apavoram,

pois ele p ode entoar cantigas de Candomblé e fazer que todos

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bolem. Por outro lado, os umbandistas evitam comparecer a Toques

de Candomblé. D urante um toque por exemplo, uma umbandista tremeu

e chorou a noite inteira temendo bolar e ter consequentemente que

ser iniciada no Candomblé. Percebendo isso, tanto o chefe do

terreiro quanto os Ogans insistiram em tocar para seu Orixá, Oxum,

tentando fazer com que ela bolasse. E embora isso não viesse a

acontecer, ficou bem marcado aos olhos dos fiéis, o predomínio do

Candomblé sobre os precários recursos da Umbanda.

2.4. A Feitura da Cabeça :

Vimos então que perturbações na vida de uma pessoa levam-na

a recorrer a centros de Umbanda que, ao invés de solucionar essas

crises, acarretam-lhes outras, que só podem ser resolvidas dentro

do sistema do Candomblé. Aí, o Bori funciona como terapia

provis ória, até que uma Bolação ou uma perturbação física ou

mental definitivas levem à iniciação completa, à Feitura da

Cabeça. Diz-se então que o Orixá está pedindo a cabeça de seu

filho, e a este nada resta fazer senão entregá-la. O Orixá pode

comunicar sua d ecisão de duas maneiras: através de uma Bolação que

nenhuma manipulação consegue interromper, ou através do Jogo-de-

Búzios, que é um processo divinatório sempre consultado em caso de

sentir-se algum tipo de perturbação.

A iniciação no Candomblé é um ritual complexo, composto de

rituais e etapas parciais. Em primeiro lugar, há o “Recolhimento

do Barco”, a reclusão do grupo de iniciandos ao “Roncó”, aposento

a que só têm acesso aqueles que já foram iniciados, e no qual os

noviços atravessarão o período de iniciação (que dura de três a

quatro semanas). Os noviços são denominados “Iaôs” (literalmente,

“esposas” dos Orixás); o grupo de “Iaôs” recolhidos ao mesmo tempo

é chamado “Barco de Iaôs”. As pessoas iniciadas no mesmo Barco

manterão entre si durante o resto da vida um relacionamento ainda

mais estreito que aquele mantido entre irmãos-de-santo de barcos

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145

diferentes. Espécie de gêmeos, os irmãos-de-barco mantêm contudo

relações hierárquicas que dependem do Olori de cada um. O Barco de

Iaôs comporta oito classes denominados respectivamente, de acordo

com a ordem de saída (do mais velho para o mais novo), de: Dofona,

Dofonitinho, Famo, Famotinho, Gamo, Gamotinho, Dotelo e

Dotelot i nho. Essas classes são ocupadas pelos filhos-de-santo de

acordo com uma ordenação específica dos próprios Orixás: Exu,

Ossanha, Ogum, Oxóssi, Oxumarê, Oxum, Iansã, Iemanjá, Xangô,

Obaluayê, Te mpo, Logunedé, Nanã, Obá, Euá e Oxalá. Desse modo, se

tivéssemos num mesmo Barco, filhos de (um de cada Orixá, pois

parece que dois filhos do mesmo santo não são nunca iniciados no

mesmo Barco): Ogum, Iansã, Tempo e Nanã, as classes do Barco

ficariam assim preenchidas:

Dofona filho de Ogum

Dofonitinho filho de Iansã

Famo filho de Tempo

Famotinho filho de Nanã

O Barco é composto por um mínimo de um filho-de-santo (que

será então Dofona do Barco) e um máximo de sete. Um oitavo Iaô só

é incluído no caso de haver “Quizila” entre Orixás já

represent ados no Barco. Quizila é o termo geral que recobre todos

os tipos de tabus (alimentares, de contato...), e existem casos de

Quizilas entre Orixás. Por exemplo, sustenta-se que Logunedé “não

se dá” com Oxalá; presenciei contudo a Saída de um Barco de duas

Iaôs, uma de Logunedé e outra de Oxalá: nesse caso, sustenta-se, é

possível efetuar uma série de “Fuxicos” e “tirar” o Barco

normalmente. Existe contudo um caso em que não há manipulação

possível: quando se encontram no mesmo Barco um filho de Exu (que

será sempre Dofona desse Barco) e um de Oxalá (que será sempre o

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último a sair). Esses dois Orixás são absolutamente antitéticos, e

enquanto Exu exige a presença do azeite-de-dendê na Feitura, Oxalá

o exclui irremediavelmente. Para que um tal Barco — denominado de

Barco Quente caracterizando o perigo que ele encerra, perigo esse

que se estende a todos os membros do barracão e até mesmo aos

vi zinhos — possa ser tirado, o único meio é apaziguar a quizila;

faz-se isso incluindo entre os Iaôs um filho de Oxum. Esta Orixá,

senhora das águas doces, teria a propriedade de “lavar” a quizila,

fazendo com que tudo corresse bem. Um barco completo, ou seja, com

as oito classes preenchidas, inclui sempre filhos de Exu, Oxalá e

Oxum. Um desses barcos composto de filhos dos Orixás: Oxóssi,

I emanjá, Exu, Obaluayê, Oxum, Xangô, Oxalá e Tempo, ficaria então

assim classificado:

Dofona Exu

Dofonitinho Oxóssi

Famo Oxum

Famotinho Iemanjá

Gamo Xangô

Gamotinho Obaluayê

Dotelo Tempo

Dotelinho Oxalá

As classes não guardam pois relações diretas com os Orixás,

mas com as relações entre os Orixás presentes naquele Barco

específico (apenas Exu, quando presente, ocupa classe fixa em

qualquer Barco). Os filhos-de-santo classificados nas classes mais

jovens do Barco devem respeito àqueles colocados nas mais velhas.

A Dof ona do primeiro Barco de um terreiro é denominada Rambona, e

deve ser respeitada por todos os outros filhos-de-santo daquela

casa.

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O Recolhimento do Barco e a distribuição dos Iaôs pelas

classes levam diretamente a um dos pontos centrais do Candomblé: a

identificação do Orixá de determinado filho-de-santo. Essa

ident i ficação precede, evidentemente, a Feitura, mas só vem a ser

definitivamente confirmada durante esta. Em primeiro lugar, há uma

identificação tida como “intuitiva”: olhando-se para a pessoa,

diz-se o Orixá dono de sua cabeça. Esse sistema, precário ainda,

está assentado em crenças que atribuem aos filhos de cada Orixá um

temperamento, e às vezes um destino, específicos (há uma

identif i cação menos freqüente de tipos físicos). As seguintes

identificações são efetuadas:

Orixá Caráter do Filho

Exu Bom. Prestativo.

Ogum Prestativo. Perseverante. Pacificador.

Oxóssi Desleixado. Desinteressado. Valente.

Obaluayê Ranzinza. Vingativo. Decidido.

Tempo Ranzinza. Vingativo. Decidido.

Logunedé Manhoso. Astuto.

Iansã Agressivo. Desinibido. Ambicioso.

Xangô Agressivo. Desinibido. Ambicioso.

Oxum Reservado. Sonso. Medroso. Vaidoso.

Oxumarê Traiçoeiro. Invejoso.

Iemanjá Calmo. Vaidoso. Ranzinza. Maternal.

Nanã Ranzinza. Infeliz no amor.

Ossanha Inteligente. Interessado.

Oxalá Ranzinza. Ruim.

Em todos os casos, exceto com os filhos de Exu e de Oxalá, a

personalidade do filho repete a do Olori, tal qual definida

mit i camente. Assim, Ogum é o vencedor das demandas e seus filhos,

pacificadores; Oxumarê é associado à cobra, e seus filhos são

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148

traiçoeiros; e assim por diante. Nos casos de Exu e Oxalá há

contudo uma inversão: sustenta-se que se uma pessoa é ruim demais,

nenhum Orixá a desejará como filho, cabendo então a Oxalá, “pai de

todo mundo”, tomar conta de sua cabeça.

Essa classificação de personalidades ou caracteres, no

entanto, não deve ser levada muito a sério. É utilizada em tom

jocoso para, por exemplo, recriminar alguém que está sendo

demasi adamente ranzinza (“parece uma filha de Nanã...”), ou para

pôr em evidência um defeito de alguém (“todo filho de Oxum é

medroso...”), etc. Dessa forma, embora acreditando que esse quadro

serve de guia para a primeira identificação do Orixá (efetuada

através do “jeito” da pessoa), cumpre ressaltar que tal

identif i cação é provisória e quase nunca é mantida ao longo do

desenrolar da carreira do filho-de-santo.

É o Jogo de Búzios que decidirá qual o verdadeiro Olori de

alguém (e, além do Olori, todo o Carrego de Santo que se traz na

cabeça). O Jogo de Búzios, ou Delogum, consiste nesse caso em

dezesseis búzios especialmente preparados que são jogados pelo

pai-de-santo sobre uma mesa, fornecendo dezesseis combinações,

cada posição sendo chamada de Odu. Cada Odu significa um Orixá

“fala ndo”, e esse processo serve tanto para a descoberta dos

Orixás de alguém, como para a previsão de seu futuro. O jogo pode

ser jogado para qualquer pessoa, e precede necessariamente o Bori,

pois este é, como dissemos, uma propiciação feita ao Olori da

pessoa, que deve portanto ser conhecido de antemão. O resultado do

jogo cont udo não é, a priori, inequívoco: diz-se que dois ou mais

Orixás podem estar “brigando” pela cabeça da pessoa, e que isso

pode il udir o pai-de-santo durante o jogo. É apenas durante o

período de recolhimento que precede a Raspagem da Cabeça, momento

culminante da iniciação, que o verdadeiro Orixá será

definitivamente confi r mado. Pode acontecer inclusive que a poucos

dias da Saída do Barco o Olori ainda não esteja determinado,

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149

atribuindo-se isso muitas vezes ao fato do médium ter freqüentado

a Umbanda, pois o excesso de Eguns em sua cabeça confundiria o

jogo. Num dos processos de iniciação acompanhados, a futura filha-

de-santo era tida como se ndo de Iansã, usando contas dessa Orixá e

tendo dado Bori para ela. Ao ser recolhida, Iansã “deixou de

falar” no jogo, entrando Bo mbonjira (qualidade feminina de Exu).

Poucos dias antes de sua saída, Bombonjira também se afastou,

surgindo Logunedé, Orixá para o qual ela foi raspada. E em vários

outros casos acompanhados o resultado final foi diferente daquele

que se supunha correto no início: uma pretensa filha de Oxum

revelou-se de Oxóssi; uma outra de Iansã acabou sendo feita para

Oxalá; e uma terceira que ser presumia de Oxalá foi raspada para

Obaluayê.

Essa mudança de Olori não é contudo obra do acaso: o pai-de-

santo tem que fazer uma série de Fuxicos que afastem os “falsos

Oloris” e permitam que apenas o verdadeiro se mostre. Caso

contr ário, corre-se o risco de raspar a cabeça para o “santo

errado”, engano que será fatalmente cobrado pelo Olori verdadeiro,

acarr etando uma série de transtornos para o filho-de-santo que,

para superá-los, terá que atravessar nova iniciação, com outro

pai-de-santo que “tirará a mão” do pai-de-santo anterior de sua

cabeça, raspando-a em seguida para seu Orixá verdadeiro. Um pai-

de-santo pode cometer esse engano por dois motivos: por

incompetência — prejudicado às vezes, como vimos, pelo próprio

filho que, antigo freqüentador de Umbanda, traz a cabeça cheia de

Eguns (nesse caso, a única solução é dar um Descarrego, ritual que

afasta os Eguns, no filho) — ou por Marmotagem. Diz-se que um pai-

de-santo comete uma Marmotagem quando pratica algo que ele sabe

errôneo com o ún i co i ntuito de se auto-promover. No caso de uma

iniciação, um pai-de-santo pode forjar um “santo difícil”,

tratamento dispensado a certos Orixás que têm pouco filhos entre

os homens. No caso desses Orixás — Exu, Logunedé, Oxumarê,

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150

Ossanha, Obá, Nanã, Oxalá e alg umas qualidades dos demais Orixás —

possuírem filhos entre os membros de determinada casa de

Candomblé, isso significa Axé (fo r ça) para o terreiro, e prestígio

para o pai-de-santo que o comanda.

Desse modo, o processo de iniciação, após a identificação do

Orixá, o recolhimento do Barco, a confirmação do Orixá, prossegue

com a cerimônia de Raspagem da Cabeça. Esse ritual só pode ser

presenciado por quem por ele já passou, ou seja, por filhos-de-

santo já iniciados. Segundo as descrições disponíveis, o pai-de-

santo corta os cabelos do Iaô, que atravessa tudo incorporado com

seu Orixá, e em seguida pratica a Catulagem, que consiste em abrir

um orifício no centro da cabeça — o Ori — por onde penetra e se

assenta o Orixá. Esse orifício recebe o sangue dos animais de duas

e de quatro patas pertencentes a seu Orixá, bem como o sumo de

suas folhas. Após isso, o orifício é coberto pelo Adoxo, que

ass egura que apenas o Olori, ou apenas as entidades que ele

permitir, se manifestarão naquele Ori. Diz-se então que o Orixá

está asse ntado naquela cabeça. Ao mesmo tempo, o Orixá é assentado

em seu Ibá ou assentamento, conjunto formado por um prato, os

“instrume ntos” do Orixá, umas pedras e outros objetos sagrados,

que é tido como um “duplo” do Ori do filho-de-santo.

A etapa seguinte da iniciação é a Saída do Iaô, ritual

público que marca a apresentação do novo filho-de-santo. A Saída é

feita durante um Toque comum, embora festivo, e é dividida em

quatro saídas parciais: na primeira, o Iaô sai vestido e pintado

de branco, homenagem a Oxalá, Orixá supremo; na segunda, vestido e

pintado com as cores de seu Orixá, o Iaô é “apresentado à praça”;

na terceira, sai vestido com as roupas e portando os instrumentos

específicos de seu Orixá, e é a saída em que a divindade toma Rum,

ou seja, dança, pela primeira vez; finalmente, a quarta e última

saída é conhecida como a do Oruncó, pois é aí que o Iaô,

incorp orado como em todas as outras saídas, grita o nome de seu

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151

santo, nome que não é entendido por nenhum dos presentes, pois só

pode ser conhecido pelo pai-de-santo do noviço que, ele próprio,

não o conhece. O Iaô retorna então para o Roncó de onde voltará

mais tarde para a Tirada da Quizila e o Batizado do Erê.

A Tirada da Quizila é feita com o Iaô consciente, e consiste

na apresentação de alguns objetos de uso cotidiano para que se

r etome a familiaridade com eles. Se isso não for feito e o Iaô, ao

voltar para casa, tocar em algum objeto cuja Quizila não foi

tir ada, ele fatalmente virará com o santo. Certas Quizilas são

contudo mantidas, algumas apenas temporariamente (por exemplo,

comer ap enas em seu próprio prato, de ágate, não tocar em tesoura,

vestir-se só de branco — durante os três meses do Quelê; abster-se

de ir à praia — durante um ano), enquanto que outras possuem um

caráter permanente. Essas últimas são sobretudo tabus alimentares:

cada filho-de-santo é proibido de comer um ou mais dos alimentos

de seu Orixá, embora, como o número de alimentos de cada Orixá é

grande, essas proibições não coincidam para todos os filhos do

mesmo Or i xá. Alguns filhos de Omolu não podem comer laranja-lima,

outros abacaxi, e assim por diante (durante a iniciação o pai-de-

santo estabelecer as quizilas específicas de cada filho). A quebra

de uma Quizila traz sérios problemas físicos, podem acarretar até

mesmo a morte do infrator.

Se a Feitura cristaliza a possessão pelo Orixá (que já

oco r re menos regradamente após o Bori), é o Batizado do Erê que

consagra a possessão por essa entidade (embora, durante o período

de Recolhimento, o Erê se incorpore, pois, como dissemos, é

atr avés dele que o Iaô aprende rezas, cantos, etc.). Após a Tirada

da Quizila, o Iaô vira com o Erê que é então batizado com água e

sal, recebendo seu nome ou do pai-de-santo ou de um padrinho ou

madri nha por ele iniciado. Trata-se então de um segundo padrinho,

pois por ocasião do Oruncó há também um padrinho do Orixá que

dança junto a ele e faz a pergunta que desperta o Oruncó do santo.

Page 158: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

152

Após essa seqüência de cerimônias (Saída, Tirada da Quizila,

Batizado do Erê), efetuadas todas durante o mesmo Toque, o Iaô

volta para o Roncó de onde só sairá no dia seguinte para ir a uma

igreja católica onde bate palmas (“bate paó”) frente ao portão,

estando então livre para voltar para casa. No entanto, durante os

três meses que se seguem à saída, o filho-de-santo continua sendo

chamado de Iaô e se encontra em período de Quelê. O Quelê é um

colar de palha entremeado de búzios que, preso ao pescoço do Iaô,

denota a fase transitória em que este ainda se encontra. Esta fase

é bastante perigosa porque a cabeça do Iaô ainda não está firme,

podendo maus fluidos (Eguns) penetrarem através do corte feito em

seu Ori durante a Feitura. Por isso, ele deve andar com a cabeça

sempre coberta, vestido de branco, e evitar todo contato corporal

profano. Ao mesmo tempo, por ocupar a posição hierárquica mais

baixa no conjunto dos filhos-de-santo, deve pedir bênção e

respe i tar todas as pessoas iniciadas no Candomblé. Além disso, são

freqüentes as manifestações do Orixá e do Erê nesse período,

moti vo que leva o Iaô a estar sempre próximo a alguém que saiba

desvirar o santo. Essa fase se encerra com uma cerimônia simples,

a Caída do Quelê, que libera o Iaô das diversas restrições a que

estava sujeito, e o transforma num Vodunsi, ou seja, num filho-de-

santo propriamente dito.

2.5. As Obrigações :

O Vodunsi se encontra comprometido a prestar uma série de

Obrigações sucessivas, que marcam sua evolução como membro do

Candomblé. Essas Obrigações são datadas a partir da Feitura: a

primeira é prestada após um ano de iniciação, a segunda após três,

a terceira cinco, a quarta sete, a quinta quatorze e a sexta vinte

e um anos após a iniciação. As mais importantes contudo são as de

um, sete e vinte e um anos, e freqüentemente não se prestam as

restantes, devido especialmente a problemas financeiros, pois à

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153

medida que as Obrigações vão se sucedendo mais caras se tornam.

Isso se deve ao fato de que cada obrigação marca o Assentamento de

um dos Orixás do Carrego de Santo. Assim, temos:

Feitura Assentamento do Olori (1º Santo)

Obrigação de 1 ano Assentamento do Juntó (2º Santo)

Obrigação de 3 anos Assentamento do 3º Santo

Obrigação de 5 anos Assentamento do 4º Santo

Obrigação de 7 anos Assentamento do 5º Santo

Obrigação de 14 anos Assentamento do 6º Santo

Obrigação de 21 anos Assentamento do 7º Santo

Em cada Obrigação deve-se homenagear os Orixás anteriores, o

que significa que na Obrigação de vinte e um anos, além das

pre stações oferecidas ao sétimo santo que está sendo assentado, um

Vodunsi é obrigado a “dar de comer” e a homenagear seus outros

Orixás, o que torna extremamente dispendiosa essa cerimônia.

A cada Obrigação, o Orixá assentado passa a poder possuir o

filho-de-santo, desde que seu Olori o permita (na prática, um

Vodunsi vira no máximo com o Juntó e o terceiro santo, além do

Olori é claro). Isso, ao contrário do que se poderia supor, é um

sinal de fortalecimento progressivo do Vodunsi, que cada vez mais

controla suas possessões. Assim, enquanto um Iaô é possuído a

qualquer instante, e um filho-de-santo com pouco tempo de

inici ação vira constantemente no santo, um Vodunsi com quatorze

anos de feito dificilmente será possuído se não o desejar, e um

com vinte e um anos não o será em hipótese nenhuma, a não ser que

queira sê-lo.

Com a Obrigação de ano, o filho-de-santo passa a ter o

di reito de entrar em transe, vez por outra, com seu Caboclo e seu

Exu (seus Eguns-de-Santo). Esses tipos de possessão não são bem

vistos no Candomblé, sendo interpretados como sinal de fraqueza do

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154

médium: é apenas depois de algum tempo de feito o filho-de-santo

que tais possessões se tornam legítimas. Na Obrigação de sete anos

ocorre a Entrega do Decá, ritual que precede à passagem do Vodunsi

a pai-de-santo, ou seja, outorga-lhe o direito de iniciar seus

próprios filhos-de-santo sem depender de ninguém. A Entrega do

Decá significa que o Vodunsi não está mais preso nem mesmo a seu

pai-de-santo, pois o Decá é o conjunto de objetos (o assentamento

de seu santo, os cabelos cortados da iniciação, etc.) que permitem

que este último controle seus filhos à distância. Recebendo esses

objetos, o Vodunsi passa a estar submetido somente aos Orixás.

Essa submissão tem também seu fim: ao atravessar a Obrigação de

vinte e um anos, tendo todo seu Carrego de Santo assentado e

sendo, presumivelmente, grande conhecedor dos mistérios do

Candomblé, o Vodunsi torna-se Tata e, diz-se, não está mais

submetido nem mesmo aos Orixás.

O Candomblé aparece então, como um sistema altamente

compl exo que procura paulatinamente incrementar a força espiritual

de seus membros. Antes de iniciar-se, o futuro filho-de-santo está

submetido a tudo: aos Vodunsis, aos Eguns e aos Orixás. Iniciado,

controla dos Eguns, usa-os como seus escravos, mas depende ainda

de seu pai-de-santo e dos Orixás. Com sete anos de feito, e seu

Decá liberta-se do primeiro, e com vinte e um anos não depende

mais de nada, controlando tudo com sua própria vontade: torna-se

um tata.

Se colocássemos num esquema as relações entre tempo de

in i ciação, posição hierárquica e “poder”, teríamos finalmente:

Tempo de iniciação Posição

hierá r quica

Poder

Não-Iniciado - Submissão a vodunsis,

eguns e orixás

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155

Oborizado Abiã Submissão a vodunsis e

or i xás

Recém-

Iniciado

Iaô Submissão a vodunsis e

or i xás

Um ano Vodunsi Submissão ao pai-de-

santo e aos orixás. Domínio

sobre eguns.

Sete anos Pai-de-Santo Submissão aos orixás.

Domí nio sobre filhos-de-

santo e eguns.

Vinte e um

anos

Tata Domínio sobre eguns e

vodu nsis. Não-submissão aos

orixás.

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156

CAPÍTULO IV

POR UMA ANTROPOLOGIA DA POSSESSÃO

1. Introdução

Nos dois primeiros capítulos deste trabalho foi possível

is olar, através da leitura crítica das teorias sobre o transe

(tanto as mais gerais quanto aquelas voltadas para os cultos afro-

brasileiros), os dois modelos teóricos básicos utilizados de

dif erentes maneiras por, praticamente, todos os antropólogos que

se aventuraram na busca de uma explicação científica para o êxtase

religioso. Foi possível, também, constatar que, para além de suas

diferenças, óbvias e importantes, estes dois modelos possuem em

comum um caráter essencialmente reducionista: seja reduzindo o

transe a uma esfera “bio-psicológica”, encarando-o então ora como

doença mental propriamente dita, ora como forma de tratamento

“primitivo” para este tipo de perturbação (ou ainda, no máximo,

considerando-o como emergência direta de fenômenos psíquicos

“no r mais”), seja transpondo este reducionismo para um plano

interno à sociedade e vendo na possessão, e no culto que a

encerra, o puro reflexo de estruturas sócio-políticas abrangentes

tidas como mais substantivas e determinantes.

A partir destas constatações, propus-me esboçar uma teoria do

transe que se mantivesse num nível estritamente antropológico, ou

seja, que, recusando-se a reduzir a possessão a qualquer coisa que

lhe seja “exterior”, em qualquer plano, pretendesse dar conta de

sua estrutura lógica profunda, estrutura que suponho repousar em

última instância sobre mecanismos básicos do pensamento dos quais

a possessão forneceria apenas uma das traduções possíveis a nível

social e cultural. Para que tal esboço teórico pudesse ser

efetu ado, parti de uma realidade objetiva, a manifestação concreta

Page 163: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

157

do êxtase nos chamados cultos afro-brasileiros — mais

especificame nte, no Candomblé Angola — manifestação da qual o

terceiro capítulo forneceu um “esquema etnográfico”. É importante

ressaltar novame nte que as observações teóricas que se seguem não

possuem, apesar de tudo, apenas a reduzida base empírica que foi

apresentada, te ndo sido desenvolvidas a partir do confronto de

minhas próprias experiências de campo com aquelas fornecidas por

outros pesquis adores do assunto (cf. especialmente: Bastide, 1973,

1978; Trindade-Serra, 1978; Cossard, 1970; Woortman, 1977;

Barreto, 1977), informações que, embora não se encontrem aqui

explicitame nte discriminadas, compõem o material e os dados a

partir dos quais foi possível estabelecer as propostas teóricas

contidas ao longo deste último capítulo.

O pressuposto básico que serve aqui de condutor para a análise,

é, portanto, que só é possível encontrar o sentido dos fenômenos

extáticos através do desvendamento da estrutura lógica a eles

subjacente. Para isso é preciso, simultaneamente, respeitar o

plano próprio de existência destes fenômenos e buscar transcendê-

lo ao relacioná-lo com fatos estruturalmente correlatos,

encontrando um sistema que permita sua inter-tradução mútua. Isto

porque a que stão da especificidade de cada fenômeno ou sistema

religioso particular — e até mesmo da religião como um todo — deve

ser col ocada sobre bases diferentes do que é usualmente feito.

Pois se é indiscutível que esta especificidade deve ser admitida

sem restr i ções como ponto de partida, no intuito de evitar toda

projeção ou redução de caráter etnocêntrico, o fim último da

pesquisa antrop ológica só pode ser a superação desta noção e a

determinação de um plano comum dos fenômenos e sistemas religiosos

com os demais pr ocessos lógicos do pensamento.

Num tal sentido, o relativo fracasso das tentativas teóricas

de explicação anteriormente resumidas talvez possa, quando

cotej ado com os dados empíricos, ser ilustrativo e indicar uma

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158

pista por onde seguir. Pois se onde os primeiros autores não viam

nada além de fatos individuais os mais recentes enxergam apenas a

ação mac i ça da estrutura social sobre os indivíduos, isto talvez

não se deva a simples diferenças teóricas ou mesmo ideológicas,

mas a a l guma particularidade do fenômeno em questão,

particularidade para a qual é estritamente necessário estar atento

se desejamos superar os impa sses anteriores.

Na verdade, esta particularidade é bastante óbvia, e é

rea l mente notável que tenha passado despercebida da maior parte

dos estudiosos do tema — a exceção, como sempre, é Roger Bastide.

Em primeiro lugar, é evidente que a possessão é um ritual e que,

por tanto, sua explicação deve necessariamente passar por uma certa

concepção sobre o que é rito. Em segundo lugar, é também bastante

óbvio, mas talvez não tanto, que no modelo nativo o transe atua

através de uma “perturbação”, ou de uma transformação para ser

mais exato, do fiel que o experimenta. Ou seja, o transe opera

sobre o indivíduo humano. Esta aparente banalidade deixa

imediatamente de sê-lo se lembrarmos que a noção de indivíduo não

é nem unívoca nem universal, e que se tentarmos dar conta de

re alidades culturais “outras” a partir de nossa própria concepção

acerca da pessoa humana, o máximo a que chegaremos é a uma série

infindável de projeções etnocêntricas deformadoras. É isto aliás o

que acontecia com Nina Rodrigues, Arthur Ramos, e tantos outros,

até hoje, que insistem em falar da possessão como um processo de

“dissociação da personalidade” (ao menos no sentido em que é aqui

utilizada) não fosse problemática, e a crença num indivíduo uno e,

a princípio, indivisível — que o termo “dissociação”

necessari amente supõe — não fosse praticamente exclusiva de

algumas ideologias ocidentais. Neste sentido, seria mais

apropriado dizer, sem dúvida, que a possessão está intrinsecamente

ligada com a “n oção de pessoa” adotada pelo grupo que a pratica.

Ou, como diz Jean Rouch:

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159

“la notion de personne est effectivement l’une des clés des

faits religieux faisant appel à la transe” (CNRS, 1973: 529 — todo

o artigo traz evidências para esta afirmação).

Isto significa que, além de uma certa concepção de ritual, o

transe exige, para ser justamente compreendido, uma determinada

teoria s obre a “noção de pessoa”.

Desse modo, creio ser possível sustentar que a possessão é

um fenômeno complexo situado como que no cruzamento de um duplo

eixo, um de origem nitidamente sociológica, o outro ligado a

ní veis mais “individuais”. Talvez esteja aqui uma das raízes das

incompreensões teóricas de que foi vítima o êxtase religioso, na

medida em que as explicações que tentam dele dar conta costumam

dissociar estes dois eixos, tratando exclusivamente de um deles

ou, quando ambos são encarados, adotando uma perspectiva

mecani cista e atomizante. Para evitar estes problemas é preciso

sustentar, creio, que a possessão só revela sua estrutura profunda

ao ser tratada simultaneamente sob o duplo ponto de vista de uma

“teoria da construção da pessoa” e de uma “teoria do ritual”.

Pois, como diz Bastide, o êxtase parece constituir o ritual “por

excelência”, o “ritual-experiência-vivida”, que coloca

imediat amente em cena a questão da noção de pessoa (cf. Bastide,

1978: 200).

2. Possessão e Personagem

A interdependência da estrutura da possessão e da “noção de

pessoa” nos cultos afro-brasileiros foi pressentida pela primeira

vez por Roger Bastide. Com efeito, Bastide sustentou que a

expl i cação do transe deveria passar necessariamente pela análise

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160

do que ele chama de “o castelo interior do homem negro” (cf.

Bastide, 1972: 59-65), e que corresponde ao que se convencionou

denominar na antropologia moderna de “noção de pessoa”:

“O ‘castelo interior’ não dispõe de um aposento apenas, é

composto de múltiplos cômodos, cada um dos quais com sua liturgia

extática; através de uma psicologia do comportamento é possível,

pois, atingir a intimidade dos fenômenos vividos” (Bastide, 1978:

226).

No entanto, esta linha de investigação não foi levada

adia nte por Bastide, que se contentou em descrever os vários

“aposentos do castelo interior” sem demonstrar sua profunda

conexão, por ele mesmo percebida, com os fenômenos extáticos (cf.

Bastide, 1978: 226-234). Sua análise acabou derivando, conforme

foi visto no s egundo capítulo, para a idéia de que o filho-de-

santo é um personagem , isto é, alguém que prefigura durante o

ritual um drama mítico. Neste sentido, sua “psicologia do

comportamento” degenerou numa verdadeira psicologia social que

considera os Orixás como personagens alternativos oferecidos,

através de um processo de “identificação”, a indivíduos de baixa

posição social, processo que lhes proporcionaria um tipo de

satisfação psicológica por eles jamais encontrada na vida

cotidiana.

Embora o modelo de Bastide represente, creio, a melhor

te ntativa de explicação do transe no Candomblé — a única de fato

que leva em consideração os dois eixos articuladores do fenômeno,

o ritual e a noção de pessoa — ele apresenta duas idéias, centrais

infelizmente, que comprometem todo o esquema. Em primeiro lugar,

há ainda uma certa dose de etnocentrismo implícito no modo pelo

qual Bastide trata a noção de pessoa no Candomblé, modo que está

em contradição até com outros textos seus. Ele supõe, como vimos,

uma identificação do filho-de-santo com o Orixá, identificação que

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161

implica necessariamente, é óbvio, a pressuposição da existência de

dois seres ontologicamente unitários, individualizados e dotados

de características internas próprias, seres que apenas a

posteri ori podem se aproximar: o “eu psicológico” do fiel e o

“modelo de personalidade” do Orixá. Na verdade, não é bem isso que

parece ocorrer. O Orixá é visto antes como uma força natural

cósmica, composto de uma infinidade de planos, ou “qualidades”,

hierarqu i camente (no sentido de Dumont) ordenados, e não uma

individualidade de qualquer espécie; também o filho-de-santo,

conforme foi possível observar no capítulo anterior, é pensado

como multiplicidade, multiplicidade que o Orixá compõe e não à

qual ele simplesmente se acrescenta depois de acabada.

Além disso, e este segundo ponto diz respeito à concepção de

ritual adotada por Bastide, a idéia básica que está atrás de todo

o esquema é a problemática noção, extraída de Marcel Griaule, de

que nas sociedades africanas a estrutura mítica tem o poder de

modelar a organização social:

“... a estrutura do social está

determinada pelas concepções religiosas e

pela filosofia africana do universo. Se

quisermos compreender a organização

morf ológica dos grupos, precisamos passar

obrigatoriamente pela sociologia religiosa,

pois é ela que possui a chave da

explic ação. O social apenas inscreve no

solo e encarna nas relações

interindividuais as leis da mística ”

(Bastide, 1973: 370 — os grifos são de

Bastide).

Ora, para Bastide isso seria ainda mais verdadeiro para o

caso do Candomblé, devido ao mecanismo de autonomização da “super-

estrutura religiosa” em relação à “infra-estrutura sociológica”

ocorrido durante o processo de escravização e que teria gerado a

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162

“internacionalização mística” das relações sociais, conforme foi

exposto aqui, no Capítulo II (cf. Bastide, 1971 para maiores

det alhes; o assunto é aí exaustivamente tratado). Ora, este tipo

de visão, ao cometer o erro simétrico e inverso àquele, de

inspiração funcionalista, que insiste em ver no mito a expressão

direta da estrutura social, não pode fornecer uma explicação

adequada para as estruturas religiosas, na medida em que estas

seguem sendo e xplicadas (ou desta vez, servindo para explicar)

sistemas a elas extrínsecos. Como demonstrou Lévi-Strauss, o mito,

o rito e a e strutura social, devem ser encarados como níveis de

manifestação dos mecanismos de ajustamento do homem ao mundo e dos

homens entre si, níveis que se processam segundo códigos

diferentes embora i ntertradutíveis, nenhum dos quais ocupa uma

posição privilegiada ou determinante — ao menos a priori (cf.

Lévi-Strauss, 1962: 247; cf. também Merleau-Ponty, 1948: 184, onde

pela primeira vez, parece, o problema foi colocado nestes termos).

Neste sentido, a relativa autonomia da estrutura cosmológica e

ritual do Candomblé convid aria antes a tratá-las de forma

estrutural, e não a buscar nelas uma potência de determinação que

elas evidentemente não podem po ssuir.

Mais recentemente, Claude Lépine (1978) procurou prosseguir

na trilha traçada por Bastide, e seu trabalho apresenta tanto as

virtudes quanto os defeitos do modelo do mestre. Basicamente,

tr ata-se de encarar o Candomblé como um sistema de classificação

do universo, classificação que abarcaria também os seres humanos,

único aspecto a nos interessar aqui. Neste plano, estaríamos,

segundo a autora, às voltas com um sistema de tipo totêmico que

operaria através do estabelecimento de relações entre as

difere nças existentes entre os seres humanos, e aquelas

observáveis na natureza, natureza esta representada por sua vez

pelo Orixás. O Candomblé seria nesse sentido um sistema totêmico

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163

clássico, tal como aqueles analisados por Lévi-Strauss (1975),

onde uma homol ogia é postulada entre um sistema de diferenças

culturais e um o utro situado na natureza. Sua especificidade,

contudo, é que aqui o sistema seria distendido até atingir as

próprias diferenças int erindividuais, na medida em que, sabe-se,

para além do “Orixá geral” comum a um grupo de indivíduos, cada

pessoa é pensada como “filha” de uma divindade única, divindade

esta que é sempre uma “qualidade” específica do Orixá geral. O

esquema é engenhoso e, até certo ponto, verdadeiro; pode, contudo,

ser alvo de algumas objeções bastante importantes que o

comprometem.

Primeira objeção: estaria de fato o Candomblé baseado numa

lógica de tipo totêmico, mesmo que não configurasse, dadas as

peculiaridades históricas de seu desenvolvimento, um sistema

totêmico propriamente dito? Que o Candomblé comporta um sistema de

classificação é evidente demais para ser discutido; que este

si stema opera simultaneamente nos planos da natureza e da cultura

também é bastante óbvio; e, no entanto, a hipótese de que sua

estrutura última consistiria num sistema de homologias entre

diferenças naturais e culturais deve ser considerada com mais

cu i dado. Ao nível do “Orixá geral” ela parece de fato válida, na

medida em que cada Orixá representa uma força da natureza e é, ao

mesmo tempo, o “senhor da cabeça” de um certo número de seres

humanos (que não configuram aliás um grupo). Assim, poder-se-ia

dizer que a diferença entre os filhos de Omolu e aqueles de Oxum é

homóloga à oposição terra/água, e assim por diante para cada par

de Orixás. No entanto, quando consideramos o “Orixá específico”,

as coisas não ficam tão claras. Pois embora o “Olori” de cada

i ndivíduo lhe seja particular e único, diferenciando-o portanto de

todos os outros homens, poderíamos perguntar a que diferença

nat ural corresponderia essa diferenciação pessoal e “social”.

Page 170: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

164

Mas há mais. Ao criticar as teorias antropológicas clássicas

que erigiram arbitrariamente o totemismo em instituição

substant i va, Lévi-Strauss demonstrou que a lógica totêmica é

essencialmente metafórica , excluindo radicalmente o contato

metonímico , contato que vem a caracterizar outro tipo de sistema,

um sistema justame nte não-totêmico. Assim, os Ojibwa (de quem a

palavra “totem” foi tomada de empréstimo pela antropologia)

apresentam, ao lado de um sistema propriamente totêmico que

associa espécies animais e gr upos sociais através de suas

diferenças internas, e que exclui irremediavelmente o contato

entre seus elementos, um sistema “m anido” de espíritos guardiães

com os quais o indígena tem que entrar em contato direto (cf.

Lévi-Strauss, 1975: 28-32). Em “O Pensamento Selvagem” este

segundo sistema é qualificado: seu par adigma mais óbvio seria o

sacrifício , unidade mínima de uma estrutura religiosa que operaria

buscando atingir uma associação metonímica entre a divindade e os

homens, entre o sagrado e o pr ofano (cf. Lévi-Strauss, 1976: 256-

262. Voltarei logo a este ponto, essencial aqui). Ora, o “Orixá

específico”, individual, situa-se integralmente sobre o eixo do

contato metonímico: é para ele que são efetuados os sacrifícios, é

ele que possui seu filho; é ele portanto o verdadeiro objeto de

culto de todo o sistema 17. Claude Lépine confunde então em sua

análise os elementos totêmicos do Candomblé com aqueles

propriamente religiosos e, tratando os s egundos como se fossem da

mesma ordem que os primeiros, não consegue atingir a verdadeira

estrutura lógica em operação no si stema.

17 Isto pode talvez explicar a ausência de toda forma de culto a

Olorum, a divindade suprema. Sendo, por definição, completamente

“geral”, não possuindo formas “específicas”, parece

estruturalme nte impossível relacionar-se metonimicamente com ele,

a partir da estrutura lógica do Candomblé.

Page 171: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

165

Mas Lépine não se detém na tese de que o Candomblé seria um

sistema de tipo totêmico. A esta dimensão estrutural ela

acresce nta uma outra de caráter funcional. Neste plano os Orixás

são encarados como “tipos psicológicos” de uma “psicologia

popular”, espécie de terapia que liberaria o homem do mundo

alienante e de spersonalizante que ele habitaria cotidianamente,

oferecendo-lhe um meio de reforçar sua identidade:

“o sistema de classificação dos tipos psicológicos do

Candomblé, graças à sua estrutura, permite responder aos anseios

de certas categorias de membros da sociedade urbana atual,

desorie ntados pela heterogeneidade da sociedade que não conseguem

apreender como um todo coerente e onde não sabem se situar,

per dendo o sent i mento da identidade pessoal” (Lépine, 1978: 27-

28).

Para que o culto possa cumprir sua função, Lépine supõe que

a iniciação construiria uma “segunda personalidade”, mais forte,

mais individualizada, menos alienada, do que a primeira,

reforça ndo assim a identidade pessoal do fiel (cf. Lépine, 1978:

383). É aqui aliás que a autora situa sua explicação para o

transe, dese nvolvida segundo ela a partir da teoria pavloviana dos

reflexos, a única compatível com seu modelo estruturalista (sic).

A possessão consistiria, de seu ponto de vista, na destruição da

personalidade simbólica, cotidiana do processo — através do uso de

drogas, do cansaço, da música, das danças, etc. — e em sua

substituição pela “outra personalidade” construída ao longo de

todo o processo de iniciação ao culto.

Este segundo aspecto da teoria de Claude Lépine — a função

terapêutica do Candomblé — repousa sobre um conjunto de crenças

realmente existentes entre os fiéis do culto, mas que ela leva

demasiado a sério. Como vimos no Capítulo III, é verdadeiro que os

Page 172: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

166

filhos-de-santo se referem por vezes a seus comportamentos e ao

dos outros usando como paradigma traços de suas “personalidades

místicas”, que são aqueles caracteres que os mitos atribuem a seus

Oloris. Expressões relacionando Oxum com covardia, Oxumarê com

traição, Oxalá com rancor, etc., são de fato utilizadas. São

encaradas contudo com um espírito mais jocoso do que sério, e não

se crê que reflitam nada de muito essencial. Tudo se passa como

entre os Algonkin, onde os membros do clã do lobo ameaçam devorar

aqueles do clã do porco porque “os lobos comem porcos” (cf. Lévi-

Strauss, 1975: 31). Na verdade, a influência do Orixá sobre o

i ndivíduo deve ser buscada em outra parte que não o seu

comportamento pessoal.

Mas a interpretação funcional de Claude Lépine — assim como

seu esquema estrutural — não falha apenas devido a um mal-

entendido etnográfico. Ao tentar explicar o modelo “totêmico” do

Candomblé, ela insiste em utilizar como chave de compreensão um

outro modelo, de aparência psicológica, mas que na verdade possui,

sobre um outro plano, características igualmente totêmicas. Pois,

ao definir o “totemismo do Candomblé” como um sistema de

classif i cação e ajustamento de personalidades , a autora recorre,

implícita e inconscientemente, a nosso próprio totemismo — aquele

que define cada indivíduo, diferencia-o dos demais e o classifica,

associa ndo-o a sua “personalidade” (cf. Lévi-Strauss, 1976: 247).

Conferindo arbitrariamente ao segundo modelo — o nosso — um

est atuto científico, Lépine sofre a ilusão de ter explicado o

primeiro — o do Candomblé — quando na verdade ela apenas traduziu

em termos etnocêntricos e deformadores um modelo mítico-

cosmológico da “pe ssoa”, em um outro de caráter psicologizante.

Neste sentido ela se vê obrigada a supor, sem no entanto confessá-

lo, aquilo que duas psicólogas sustentam explicitamente: que as

próprias concepções míticas e cosmológicas dos Orixás não

Page 173: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

167

passariam de cristalizações de “tipos psicológicos” humanos

empiricamente existentes (cf. A ugras, 1983; cf. Correa, 1976).

Ao analisarem o Candomblé como um sistema de “personagens”

ou “personalidades”, tanto Roger Bastide quanto Claude Lépine

i ncidem num erro teórico fundamental, erro que explica em última

instância a inadequação de seus modelos. Nenhum dos dois, apesar

de repetidas profissões de fé neste sentido, leva realmente a

sério a investigação da “noção de pessoa” adotada por esta

religião. Ora, como lembra Michel Cartry, a não investigação desta

noção conduz geralmente a um etnocentrismo especialmente

pernicioso, na medida em que não se consegue dar conta do modo

pelo qual um grupo pensa sua relação (do “homem”) com as

instituições sociais e com a natureza (cf. CNRS, 1973: 16-17).

Termina-se pois, invariavelme nte, projetando uma certa concepção

da pessoa humana — aquele de “indivíduo”, no sentido de Dumont,

tão particular ao Ocidente — concepção que corrói inevitavelmente

todo o trabalho teórico. A ssim, o máximo que Bastide e Lépine

reconhecem no Candomblé é que este sistema classifica ou, na

melhor das hipóteses, modifica, certos padrões de “personalidade”

previamente existentes.

É certo que desde Durkheim os antropólogos sabem que as

sociedades humanas classificam não apenas o mundo em que vivem

como também os indivíduos e grupos que as compõem. Foi entretanto

com Marcel Mauss que esta perspectiva se alargou, ao se perceber

que uma visão estritamente classificatória implicava, de algum

modo, uma concepção demasiado positivista da sociedade humana.

Isso po r que ela pressupõe, em última análise, que o social não

consiste em nada além de um outro nível — mais complexo,

certamente, mas isto não basta — que se superpõe a realidades

prontas e acabadas, re alidades de ordem física, fisiológica e

psicológica. Desta maneira é impossível perceber o caráter

Page 174: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

168

modificador e criador que a cult ura exerce sobre estes outros

níveis. Em suma, a uma “visão estratigráfica” (como a denomina

apropriadamente Clifford Geertz) do homem e da sociedade, é

preciso substituir a concepção do “fato social total”: as culturas

humanas produzem sínteses específicas a partir dos elementos dados

de modo frouxo e instável, elementos que elas integram, articulam

e, até certo ponto determinam (cf. Lévi-Strauss, 1950). Ou, como

diz brilhantemente Roland Barthes:

“Hoje começamos a saber, graças à história (com Febvre),

graças à etnologia (com Mauss), que não só os costumes, mas também

os atos fundamentais da vida humana são objetos históricos; e que

é preciso definir cada vez de novo, segundo a sociedade que se

observa, fatos reputados naturais por causa de seu caráter físico”

(Barthes, 1961: 140).

Nesse sentido, estudos recentes têm insistido sobre o papel

constituinte exercido pela sociedade ao atualizar concretamente

suas concepções acerca da pessoa humana (cf. especialmente CNRS,

1973; Lévi-Strauss, 1977; Viveiros de Castro, Seeger e Da Matta,

1979). É aqui que creio ser possível encontrar um caminho que

conduza a uma melhor elucidação dos mecanismos do transe no

Candomblé e, talvez, de uma forma mais geral. Em outros termos, e

ao contr ário do que supõem Bastide e Lépine, acredito ser preciso

encarar a possessão e a noção de pessoa como um sistema mais

dinâmico que não só classifica como também visa produzir tipos

específicos de pessoas não, certamente, no sentido de gerar

“personalidades” ou “tipos psicológicos”, mas no de uma

atualização de uma certa co ncepção da pessoa humana.

3. Possessão e Pessoa

Page 175: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

169

Existe contudo um problema preliminar para se tratar da

“n oção de pessoa” em Antropologia. É que, por assim dizer, a

própria “noção” desta noção varia enormemente entre os

antropólogos. Par ecem existir, entretanto, duas vertentes básicas

preocupadas com esta questão (cf. Viveiros de Castro, Seeger e Da

Matta, 1979: 5-6). Uma que frutificou na antropologia britânica e

que tem sua origem na obra de Radcliffe-Brown. Este autor propõe

de fato uma distinção entre as categorias de “indivíduo” e de

“pessoa” na base de uma diferenciação entre os aspectos biológico

e social do ser humano. Do primeiro ponto de vista — biológico —

teríamos então indivíduos , objeto de estudo de fisiólogos e

psicólogos; já que no que se refere ao aspecto social, estaríamos

às voltas antes com a posição ocupada por estes “indivíduos” na

rede de relações sociais concretas — que constitui, como se sabe,

a estrutura social para o antropólogo britânico — e que os

transforma em pessoas , esses “complexos de relações sociais”,

objeto de estudo da Sociologia e da Antropologia. Em outros

termos, a pessoa é o indivíduo invest i do de sua posição social e

do papel a ela correspondente. Atrás do truísmo evidente da

posição de Radcliffe-Brown — já que afirmar que o homem, além se

ser biológico, é também um ser social só pode ser um truísmo mesmo

— esconde-se um perigo para a análise antr opológica. Pois ao fazer

coincidir sempre indivíduo biológico e pessoa (unidade do sistema

social) o esquema não permite qualquer flexibilidade na

compreensão do modo pelo qual o grupo estudado concebe tanto a

realidade individual quanto a posição do indivíduo na trama das

relações sociais. Ou seja, supõe-se sempre que a un i dade do

sistema corresponde a uma entidade individual (indivíduo ou grupo

encarado como entidade individual, cf. Sahlins, 1976: 109-110),

ainda que imersa na estrutura social. É este tipo de p osição,

assumido geralmente de forma implícita, que leva vários autores a

falar da concepção de pessoa nos cultos afro-brasileiros apenas

Page 176: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

170

como o disfarce cultural através do qual o grupo pensa a inserção

social do indivíduo, sem investigar a maneira mesmo pela qual esta

entidade é construída. O etnocentrismo subjacente a este tipo de

análise é bastante óbvio, na medida em que uma certa idéia,

culturalmente determinada, da pessoa humana é convertida ao

estatuto de categoria analítica universal: a ideologia ocidental

acaba passando por ciência e todo o trabalho teórico se encontra

inevitavelmente comprometido.

A outra tradição nos estudos sobre a pessoa é de origem

francesa, e tem início, parece, num famoso artigo, tão brilhante

quanto enigmático, de Marcel Mauss, escrito em 1938 (“Une

Catég orie de l’Esprit Humain: la Notion de Personne, Celle de Moi”

— in Mauss, 1950). Neste texto, Mauss pretende demonstrar como, a

par tir de um fundo histórico de indistinção entre o indivíduo e o

grupo, desenvolve-se progressivamente na sociedade ocidental, sob

o jogo de várias forças culturais, uma certa concepção do “eu”

(“moi”), pensado como unidade autônoma e soberana dotada de um

sentido próprio e constituindo a base de uma religião, de uma

moral, e de uma ciência. O herdeiro mais conhecido desta tradição

é, sem dúvida, Louis Dumont que, embora não mencionando o termo

“pe ssoa”, desenvolveu todo o seu trabalho investigando justamente

a construção desta “pessoa autônoma” de que falava Mauss. A

difere nça básica é que Dumont parece obcecado pela idéia de um

particularismo absoluto da sociedade ocidental moderna,

particul arismo que a distinguiria de todas as demais culturas

humanas, e que se manifestaria na tendência ideológica de

converter o indiv í duo “biológico” em indivíduo “valor”, ou seja,

em colocá-lo no centro da vida social. O trabalho de Dumont,

apesar de sua inco ntestável importância, não deixa espaço para a

análise de categorias culturais específicas referentes à noção de

pessoa, na medida em que, em bloco, tais categorias são postas em

Page 177: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

171

oposição à moderna concepção de indivíduo (cf. Dumont, 1979),

apesar de r ecentes ressalvas propostas pelo autor.

Pareceu-me assim que a opção mais produtiva, para os

objet i vos deste trabalho, consiste em seguir o caminho proposto no

colóquio de CNRS acerca da “noção de pessoa na África Negra” (cf.

CNRS, 1973) e investigar o modo particular através do qual cada

sociedade ou grupo social concebe, e constrói, sua noção de

pessoa. Neste sentido, a concepção de Dumont talvez pudesse ser

integrada numa visão mais ampla da questão, bastando para isso

considerar o “individualismo” moderno como uma certa maneira de

pensar a pessoa humana, maneira que se desenvolveu notavelmente na

sociedade ocidental a partir de um certo momento histórico, e que

não chega a ser universal nem mesmo entre nós, na medida em que a

idéia de um sujeito uno e autônomo não percorre de modo uniforme

todos os n í veis e esferas da sociedade moderna.

O que há de verdadeiramente estranho nesta concepção

indiv i dualista da pessoa, em voga no Ocidente — e é isso que

parece ter chamado a atenção de Mauss e, especialmente, de Dumont

— é que ela se mostra singularmente afastada de praticamente todas

as “noções de pessoa” adotadas pelas várias sociedades humanas

investigadas pelos antropólogos. Os motivos desta peculiaridade

histórica dev eriam certamente ser investigados em profundidade, o

que, evidentemente, escapa aos limites deste trabalho. Contentar-

me-ei em sustentar que a explicação proposta por Dumont para esta

questão parece bastante insatisfatória, na medida em que atribui

esse desenvolvimento da noção de indivíduo a um processo

exclusivamente ideológico, sem ao menos tentar conectá-lo com as

transformações históricas, de caráter sócio-político e econômico,

concretas oco r ridas na sociedade ocidental.

De fato, a imensa maioria das sociedades humanas parece

adotar uma concepção de pessoa bastante distinta daquela

observável no individualismo ocidental. Ao comentar os dados

Page 178: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

172

provenientes de diversas culturas, apresentados num seminário a

respeito da noção de “identidade” (tomada aí no mesmo sentido do

que estou denom i nando de “noção de pessoa”), Lévi-Strauss afirma

que

“une convergence curieuse allait se dégager de cette

comparaison. En dépit de leus éloignemente dans l’espace et le

leurs contenus culturels profondement hétérogènes, aucune des

sociétés constituant un échantillon fortuit ne semble tenir pour

acquise une identité substatielle: elles la morcellent en une

multitude d’éleménts dont pour chaque culture bien qu’en termes

différents, la synthèse pose un problème” (Lévi-Strauss, 1977: 11;

cf. também p. 330).

Ora, é esta constatação que lhe permite concluir, ao final

do mesmo simpósio, que

“l’identité est une sorte de foyer virtuel auquel il nous

est indispensable de nous référer pour expliquer un certain nombre

de choses, mais sans qu’il ait jamais d’existence réelle (...) son

existence est purement théorique: celle d’une limite à quoi ne

correspond en realité aucune expérience” (Lévi-Strauss, 1977:

332).

Esta maneira de conceber a noção de identidade, ou de

pessoa, é perfeitamente aplicável ao caso particular do universo

simbólico do Candomblé. Como foi visto no terceiro capítulo, a

concepção de pessoa humana aí adotada é de que esta se apresenta

de modo “folheado” (para retomar uma precisa expressão de

Franço i se Héritier a respeito da noção de pessoa entre os Samo,

uma população africana do noroeste do Alto-Volta — cf. Lévi-

Strauss, 1977: 65): o ser humano é aí pensado como uma síntese

Page 179: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

173

complexa, resultante da coexistência de uma série de componentes

materiais e imateriais — o corpo (ara), o Ori, os Orixás, o Erê, o

Egum, o Exu. O que há neste sistema de particular, e que faz com

que o Candomblé seja uma religião no sentido estrito do termo, e

não apenas um sistema de classificação, é que embora todo homem

seja pensado como nascendo necessariamente composto por estes

eleme ntos, sua existência permanece em estado, digamos, virtual,

até o momento em que são “fixados” pelos ritos de iniciação e de

confi r mação. O “assentamento” progressivo das várias entidades

espirituais corresponde justamente a este aspecto, fazendo com que

o fiel deixe de perte ncer a e de depender de, como os não-

iniciados, entidades abstratas e gerais, e passe a ser constituído

por seres individualizados e concretos — o “seu” Orixá, o “seu”

Exu, etc... Tudo se passa então como se à fabricação da divindade

específica (pois, no Candomblé, o santo é feito ) a partir de um

princípio geral correspondesse a gênese de um indivíduo “novo” (na

medida em que a “cabeça” também é feita ). Acontece apenas que este

indivíduo nasce aos poucos, e de modo bastante lento, já que é

apenas depois de vinte e um anos de iniciado que sua “pessoa” pode

estar completa, isto é, todos os seus componentes tendo sido

ind i vidualizados e, portanto, ele próprio também. Até atingir este

momento ideal, o equilíbrio do seu eu é de tipo instável,

altame nte instável, dependendo do cumprimento de toda uma série de

obrigações e proibições rituais cuja violação, ao destruir este

equilíbrio, pode chegar a destruí-lo enquanto pessoa, ou seja, a

aniquilá-lo.

Nesta concepção da pessoa humana e de sua construção,

sustentada no Candomblé, a possessão ocupa um lugar central.

Conforme foi possível constatar no capítulo precedente, a

continuidade do processo de construção da pessoa, com os

sucessivos “assentame ntos” de seus componentes, é acompanhada por

um acréscimo, “em extensão”, do transe, ou seja, adquire-se o

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174

direito (e mesmo o d ever) de incorporar cada nova entidade

assentada. Este acréscimo tem contudo sua contrapartida numa

diminuição no ritmo e na con stância do êxtase — quanto mais “velho

no santo” menos um fiel deve ser possuído, até que no final do

processo de construção de seu ser, com vinte e um anos de feito, o

transe cesse totalmente de atingi-lo. Em outros termos, poder-se-

ia talvez dizer que quanto mais “estável” o equilíbrio da pessoa —

pela incorporação sucess i va de seus componentes — menos a

divindade deve tomá-la.

Pode-se sustentar legitimamente então, creio, que sendo a

questão central da iniciação do Candomblé a manutenção de uma

cer ta unidade, bastante precária, de uma pessoa eternamente, pois

que múltipla, ameaçada de desequilíbrio e destruição, a possessão

apareceria como um dos instrumentos, também precário e provisório,

para a manutenção deste equilíbrio, instrumento que com sua

verd adeira chegada, quando completados os vinte e um anos

necessários para que a pessoa seja definitivamente construída,

tende a se e xtinguir por completo depois de vir declinando em

freqüência ao longo de todo o tempo utilizado nessa construção.

Se é verdade então, como afirma Lévi-Strauss, que a questão

da identidade e da pessoa se apresenta de modo “simétrico e

inve r so” entre os Samo do Alto-Volta, estudados por Françoise

Héritier, e os Bororo do Brasil Central pesquisados por

Christopher Crocker, na medida em que

“chez les Samo, le problème procède du morcellement de

l’individu en âmes ou en doubles, tandis que chez les Bororo, le

problème de l’identité consiste à composer ou à recomposer

l’individu au moyen d’emblèmes et de positions” (Lévi-Strauss,

1977: 180),

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poder-se-ia dizer que o Candomblé situa-se a meio caminho,

reunindo sinteticamente essas duas questões, já que trata-se aqui

de, ao mesmo tempo, conceber uma pessoa “folheada” e múltipla,

composta por “almas e duplos”, e tratar de recompô-la, não

cert amente “por meio de emblemas e de posições”, mas sim através

de um complexo sistema ritual, que responde pelo caráter religioso

do Candomblé. Daí também a estreita interdependência, sustentada

aci ma, entre a “noção de pessoa” e a estrutura ritual no

Candomblé, estrutura que cumpre então analisar agora.

4. Possessão e Ritual

A noção de ritual tem sido, desde Durkheim, objeto de

impo r tantes controvérsias teóricas dentro da Antropologia. As

concepções acerca de sua natureza, estrutura e função variam

enor memente de corrente teórica para corrente teórica, e até mesmo

de autor para autor. Alguns supõem tratar-se de um momento em que,

através da criação e da manifestação de sentimentos comuns, a

solidariedade social e, portanto, a própria sociedade, são criadas

e recriadas incessantemente. Outros, ao contrário, prefeririam ver

aí um instante em que a angústia e o sofrimento inevitavelmente

experimentados pelo homem em suas relações com os outros homens e

com o mundo em que vive, encontrariam um canal de expressão e

então, liberados, permitiriam a continuidade da vida social,

temporariamente livre destas ameaças de efeito disruptivo. Enfim,

há os que crêem que o rito não passaria da encarnação vivida de um

modelo místico, fornecido primeiramente pelos mitos e pela

cosmologia adotados pelo grupo.

Esses três modelos, percebe-se facilmente, são congruentes

com os tipos de análise utilizados nos estudos sobre os cultos

afro-brasileiros, tal qual resumidas no segundo capítulo deste

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176

trabalho. Não é difícil notar que o primeiro esquema, de origem

durkheimiana e estrutural-funcionalista, pretende derivar o ritual

da “estrutura social” encarada como o sistema concreto de inter-

relações pessoais, terminando por atribuir a ele uma função

psic ológica de reforço de sentimentos comuns. Já o segundo modelo,

de inspiração nitidamente malinowskiana e utilizado hoje em dia

por autores como Edmund Leach e, especialmente, Victor Turner,

inverte esta posição e ao invés de fazer derivar os sentimentos do

ritual pretende ver neste último uma expressão direta daqueles.

Finalme nte, no terceiro caso, imagina-se que o comportamento

ritual não passa da transposição empírica de certas idéias

místicas adotadas pelo grupo. No que diz respeito aos estudos

afro-brasileiros, não é difícil localizar Herskovits e Renê

Ribeiro no primeiro modelo; Peter Fry, entre outros, no segundo; e

Roger Bastide, especialme nte, no terceiro 18.

Ora, como sustenta Lévi-Strauss, ligar o rito a estados

af etivos ou a formas místicas de pensamento não pode esclarecer em

nada sua natureza última, e nem sequer o fato mesmo desta ligação,

supondo-se que ela realmente exista (cf. Lévi-Strauss, 1971: 597).

Ou seja, a própria ligação entre ritual, afetividade e misticismo

é uma questão a ser desvendada pela análise positiva do rito, não

18 É interessante notar que também no que diz respeito aos modos

de investigação da “noção de pessoa”, Michel Cartry localiza essas

três tendências básicas (CNRS, 1973: 23-25). De fato, parecem

tr atar-se de verdadeiras estruturas elementares do pensamento

antropológico. Cartry propõe como alternativa um modelo que busque

discernir, por trás dos modelos nativos, uma estrutura

inconscie nte mais profunda, sem colocar a falsa questão da origem

social ou psicológica do místico, ou da origem mística do social e

do psic ológico. É esta a postura teórica que pretendi assumir

aqui, tanto no que diz respeito à noção de pessoa quanto no

tratamento do r i tual.

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177

podendo portanto jamais dar conta dele. Fazendo pois do próprio

problema sua solução, as análises do ritual são levadas

inevit avelmente a se perderem num labirinto de idéias confusas e

obscuras, numa “floresta de símbolos” opaca, procedimento que não

pode caber numa perspectiva verdadeiramente científica:

“Car ce sont ces opérations {de l’intellect} seules que nous

pouvons prétendre expliquer, parce qu’elles participent de la même

nature intellectuelle que l’activité que s’exerce à les

compre ndre. Une affectivité qui n’en dériverait pas serait

rigoureusement inconnaissable au titre do phénomène mental. En la

postuland pour fonder des opérations intellectuelles vis-à-vis

desquelles elles jouiraient d’un privilège d’antériorité, nous ne

ferions rien d’autre que nous payer de mots vides de sens (...) et

substituer des formules magiques à l’ouvrage du raisonnement”

(Lévi-Strauss, 1971: 596-597).

Neste sentido, é estritamente necessário encontrar uma

explicação de caráter intelectualista para o rito, e trabalhar com

ela até o final, sem abrir concessões a um afetivismo fácil. No

mesmo texto citado acima, Lévi-Strauss se coloca a tarefa de

buscar este modelo não-emocionalista, e a maneira pela qual o

ritual é aí encarado, além de modelar de um ponto de vista teórico

abra ngente, é espantosamente esclarecedora dos mecanismos

específicos do ritual do transe , especialmente tal qual se

manifesta nos cu l tos afro-brasileiros. Para desenvolver esta

perspectiva seria contudo estritamente necessário, diz Lévi-

Strauss, desembaraçar o ritual de tudo aquilo que com ele se

mistura empiricamente, para poder chegar a tratá-lo “em si mesmo e

por si mesmo” (cf. Lévi-Strauss, 1971: 598). Ora, o que está

freqüentemente mesclado ao rito é justamente o mito, e se não

pudermos separar um do outro terminaremos por explicar o segundo

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178

acreditando ter definido e dado conta do primeiro. Para isso, é

preciso primeiramente rec onhecer a existência de toda uma

“mitologia implícita” ao rito, mitologia que se encontra num

estado de

“notes, d’esquisses ou de fragments; au lieu qu’un fil

conducteur les rassemble, chacune est liée à telle ou telle phase

du rituel; elle en fournit la glose, et c’est seulement à

l’occasion d’actes rituels que ces répresentations mythique se

trouveront évoquées” (Lévi-Strauss, 1971: 598).

Ora, se nos desembaraçarmos desta mitologia “implícita” —

distinta da “mitologia explícita” onde as narrativas existem por

conta própria e são evocadas independentemente do ritual —

const ataremos a existência, no rito, de um gigantesco esforço para

“evitar falar”, esforço que, mesmo quando o ritual “fala”, se

manifesta na evidência de que é muito menos importante aí o que

dizer as palavras proferidas do que o modo pelo qual elas são

di tas (cf. Lévi-Strauss, 1971: 600-601). É neste plano que se pode

de fato isolar os dois mecanismos estruturais básicos de

funcion amento da operação ritual. De um lado, teríamos um processo

de “ fragmentação ” (“morcellement”):

“à l’intérieur des classes d’objets et des types de gestes,

le rituel distingue à l’infini et attribue des valeurs

discrimin atives aux moindres nuances. Il ne s’intéresse à rien de

général, mais raffine au contraire sur les variétés et sous-

variétés de toutes les taxinomies...” (Lévi-Strauss, 1971: 601);

de outro a “ repetição ” (“répétition”):

“la même formule, ou des formules apparentées par la syntaxe

ou l’assonance, reviennent à intervales rapprochés, ne valent, si

Page 185: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

179

l’ont peut dire, qu’a la douzaine; la même formule doit être

rép etée un grand nombre de fois consécutives, ou bien encore, une

phrase où se concentre une maigre signification se trouve prise et

comme dissimulée entre deux empilages de formules toutes pareilles

mais vides de sens” (Lévi-Strauss, 1971: 602).

Embora estes dois mecanismos pareçam, à primeira vista,

opostos, é óbvio que eles são idênticos, na medida em que a

“fra gmentação”, ao reduzir as diferenças a intervalos

infinitesimais, termina por abolir os afastamentos diferenciais

numa “quase-identidade”, obtendo portanto o mesmo efeito buscado

pela “repet i ção”. Em ambos os casos, tentar-se-ia então apagar os

intervalos e diferenças constitutivos dos seres e do mundo. Em

outros termos, e é aqui que se pode encontrar a essência do rito,

o ritual consiste numa operação lógica inversa àquela praticada

pelo pensamento m í tico. Este, sabe-se, caracteriza-se como um

operador de “descontinuação”, de introdução de afastamentos

diferenciais numa realidade encarada primeiramente como

contínua 19. E são exatamente estes afastamentos diferenciais,

manifestos geralmente sob a forma de oposições binárias, que

19 Não me preocuparei aqui com a crítica de Luc de Heusch, que

sustenta a existência de rituais “descontinuadores” (cf. Heusch,

1974: 233-234). Ainda que isto seja verdadeiro a respeito de

outros grupos, como os Nuer por ele citados como exemplo, não é

válido no que toca o Candomblé, onde mesmo o “afastamento” de

espíritos obsessores — de mortos — é apenas a conseqüência de

rituais de “reforço” da pessoa, que possuem, como tentarei mostrar

adiante, caráter nitidamente “continuísta”. Aliás, talvez isso

seja verdadeiro para todo “rito de separação”, que dependeria

então de uma continuidade estabelecida em outro plano mais

fundamental.

Page 186: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

180

constituem a condição e a matéria-prima para a construção de todo

e qualquer conjunto significativo, pois o sentido, evidentemente,

exige a diferença.

No entanto, e está aqui o ponto crucial, parece claro que

esse mundo “pensado”, descontínuo e estável, está sempre defasado

em relação àquele “vivido”, marcado pela continuidade e pela

te nsão transformadora. O ritual seria então neste sentido uma

satisfação última prestada pelo pensamento à vida, pois ele

tent aria — de modo sempre vão e fracassado, já que seu sucesso só

poderia implicar no congelamento da própria marcha do pensamento —

através de “fragmentações” e “repetições” que tendem ao infinito,

restaurar a continuidade perdida do vivido, no próprio plano do

pensado, extenuando-se num esforço tão vão quanto essencial.

Fi nalmente, é exatamente este seu caráter continuísta e

“obsessivo” que permite a tão decantada associação do ritual com

estados de tensão e angústia que, longe de o explicarem, parecem

antes der i var de seus mecanismos que, simultaneamente, apontam

para um objetivo e negam-se a alcançá-lo , gerando nesse processo

os est ados psicológicos menci onados:

“Au total, l’opposition entre le rite et le mythe est celle

du vivre et du penser, et le rituel représente un abâtardissement

de la pensée consenti aux servitudes de la vie. Il ramène, ou

pl utôt tente vainement de ramener les exigences de la première à

une valeur limite qu’il ne peut jamais atteindre: sinon la pensée

elle-même s’abolirait. Cette tentative éperdue, toujours vouée à

l’échec, pour rétablir la continuité d’un vécu démantelé sous

l’effet du schématisme que lui a substitué la spéculation mythique

constitue l’essence du rituel, et rend compte des caractères

di stinctifs que les précédentes analyses lui ont reconnus” (Lévi-

Strauss, 1971: 603).

Page 187: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

181

Como aplicar então este modelo analítico do rito de forma a

esclarecer o caso particular do ritual extático no Candomblé?

Constatando, em primeiro lugar, que a distinção entre uma

“mitol ogia explícita” e autônoma de um lado, e uma outra

“implícita”, ligada necessariamente ao desenrolar dos rituais, é

essencial não apenas para entender a verdadeira natureza do

sistema do Cando mblé, como também para compreender alguns erros

teóricos cometidos a seu respeito. Pois, se este culto manifesta

em alto grau o s egundo tipo de mitologia — implícita — o primeiro

só aparece nele de forma extremamente débil e não determinante. Os

mitos do Ca ndomblé dificilmente poderiam ser considerados um

sistema autônomo e independente, do tipo daquele existente entre

as populações i ndígenas sul e norte-americanas. Eles parecem antes

formar uma espécie de recurso mnemotécnico (cf. Lévi-Strauss,

1976: 89-90) que serve como guia para o correto cumprimento de

todos os compl i cados detalhes dos rituais, sejam estes

sacrifícios, divinação, iniciação, ou possessão. Ou seja, e ao

contrário do que supõe R oger Bastide por exemplo, os mitos não

determinam, especialmente no Candomblé, os ritos, estando em vez

disto a eles subordinados e servindo basicamente para marcá-los e

conduzi-los de forma apr opriada. Em outros termos, creio ser

possível dizer que aqui a questão da “eficácia simbólica”, ligada

obviamente aos rituais, é muito mais relevante do que o puro

Page 188: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

182

exercício classificatório i mplicado no exercício do pensamento

mítico 20.

Não é evidente, que não haja classificações no Candomblé —

elas existem e são bastante sofisticadas (cf. Lépine, 1978 para

uma descrição e uma análise desses sistemas). No entanto, é

prec i so retomar a distinção levistraussiana, levantada mais acima,

entre sistema totêmico e sistema religioso . O primeiro, de ordem

metafórica e que opera através do estabelecimento de

correspondê ncias entre sistemas de diferenças , parece estar em

nítida conexão com estruturas de classificação e com o pensamento

mítico, onde a questão básica é, sem dúvida, a da instauração e do

jogo dos afa stamentos diferenciais essenciais para que o sentido

seja gerado. A religião, por outro lado e ao contrário, aparece

antes como situ ada no eixo metonímico do contato , visando

essencialmente abolir as diferenças postuladas no outro nível,

colocando-se então no reino do rito e de sua eficácia, que, como

acabamos de ver, é um mec anismo voltado para o estabelecimento de

continuidades. Nesse sentido, é fundamental frisar o caráter

essencialmente religioso do Candomblé, reconhecendo que as

20 Talvez este predomínio do ritual e da mitologia implícita sobre

o sistema mitológico explícito seja função do processo de

escrav i zação que, como mostrou Bastide, destruindo a infra-

estrutura sociológica à qual um possível sistema totêmico estaria

ligado, determinou a passagem de toda a estrutura para um nível

“místico”. No entanto, é interessante lembrar que vários

africanistas têm o bservado o que eles denominam “vazio mitológico

africano”, a inexistência de sistemas míticos comparáveis aos

americanos. Neste sentido, talvez a África pudesse ser o

continente da religião, a ssim como a América é a “terra da

mitologia”, a Austrália a “pátria do totemismo”, etc.

Page 189: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

183

diferenças só são aí postuladas para serem ultrapassadas, ou, ao

menos, para que se tente ultr apassá-las no processo ritual 21.

De fato, toda a “mitologia explícita” do Candomblé parece

reduzir-se, no final das contas, à estória da separação entre o

Aiê e o Orum; outrora estes dois mundos seriam um só, e a passagem

entre ambos era constantemente efetuada, até que uma falta humana

provocou sua eterna disjunção, permanecendo os homens no Aiê, as

entidades espirituais no Orum (cf. para uma apresentação extensa

deste ponto: Lépine, 1978: 132; Woortman, 1977: 17-33; Elbein dos

Santos, 1977: passim). Ora, é justamente esta disjunção entre o

mundo humano e o divino que todos os rituais do Candomblé buscam

negar: o sacrifício, que implica a passagem de substância de um

domínio para o outro (cf. Elbein dos Santos, 1977); a iniciação,

que consiste na fixação de um duplo do Orixá sobre o Aiê (cf.

Lépine, 1978); a tradição do poste central nagô (cf. Bastide,

1973) ou da cajazeira gêge (cf. Barreto, 1977), que simbolizam a

união dos dois mundos; e, finalmente, o transe e a possessão, que,

durante um breve instante, necessariamente passageiro, suspende

todas as distâncias entre o Aiê e o Orum, fazendo com que os

Ori xás encarnem nos homens e transmitam assim a estes alguma coisa

de sua essência divina.

21 Isto talvez explique o erro de Bastide, insistindo sobre a

existência de uma lógica da “participação” no Candomblé, e,

simu l taneamente, o de Claude Lépine ao criticá-lo, postulando um

sistema de classificação totalmente descontinuísta. Na verdade

ambos erram o alvo porque confundem o sistema de classificação

propriamente dito (onde Lépine está certa) com a prática ritual

(onde Bastide tem toda a razão). Isto não invalida o fato de a

posição de Claude Lépine ser mais sólida, na medida em que é

evidente que não existe qualquer “pré-logismo” no Candomblé, mas

sim um sistema perfeitamente lógico sendo trabalhado por práticas

rituais.

Page 190: Márcio Goldman -A-Possessao-e-a-Construcao-Ritual-da-Pessoa-no-Candomble

184

5. A Possessão e a Construção Ritual da Pessoa no Candomblé

É necessário então articular agora, finalmente, possessão,

ritual e noção de pessoa, tal qual observados no universo do

Candomblé. Para fazê-lo, é preciso lembrar, em primeiro lugar, que

a lenta construção da pessoa neste sistema religioso é efetuada em

função de um complexo conjunto de rituais que se sucedem ao longo

de um amplo período de tempo. Cada um desses rituais, conforme foi

observado, tem por objetivo “fixar” um Orixá — que também é um

componente de sua “pessoa” — na cabeça do filho-de-santo, e, além

disso, e este ponto é essencial, dar-lhe o direito e o dever de

ser por ele possuído. Após vinte e um anos de obrigações, e com o

sétimo santo assentado, atinge-se um estado onde acontece uma

possível liberação dos constrangimentos do transe; atinge-se

igualmente a valorizada e desejada situação de tudo controlar,

tornando-se “senhor de si” (e de outros, poderíamos acrescentar).

Pôde-se então dizer acima que é apenas aos vinte e um anos “de

santo”, com seus sete Orixás (ao lado do Exu, do Erê e do Egum)

assentados, que a pessoa está realmente construída, já que é

apenas neste momento que seus múltiplos componentes encontram uma

certa estabilidade mais duradoura. E não é por acaso que

justame nte nesse momento, a possessão possa cessar inteiramente de

se produzir, já que o transe apareceu como o instrumento, precário

e provisório, de um equilíbrio instável que é o da estrutura da

pessoa que o experimenta.

Neste sentido então, a realidade múltipla e “folheada” da

pessoa parece condenada a dar lugar a um ser uno e indiviso, o que

os leva a constatar a existência, neste nível, de um primeiro

movimento de “continuação”, operado por uma seqüência de rituais,

da iniciação (e, antes dela, a lavagem de contas e o Bori) à

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185

obrig ação de vinte e um anos, passando por todas as obrigações

intermediárias. A “pessoa” é postulada então como fragmentada, e

todo o esforço do sistema parece voltado para fundi-la numa grande

unidade. Este esforço está contudo, como todo esforço ritual,

votado ao fracasso. Os únicos seres verdadeiramente unitários são

os Orixás, no sentido de “Orixá geral” (e, ainda aqui, esta

formul ação é apenas aproximada) e, para o homem atingir a unidade

equivaleria então evidentemente a divinizar-se integralmente . A

possibilidade de que isto ocorra é reconhecida pelo sistema de

crenças, na medida em que, num certo sentido, os Orixás foram

homens e, portanto, estes poderiam tornar-se Orixás. Toda a

“mitologia” de Xangô — o Orixá que mais claramente elevou-se de

uma condição humana para uma outra, divina — serve para marcar bem

este horizonte possível. No entanto, na vida real, esta “ascensão”

se vê sempre comprometida pelos acidentes do percurso, pela não-

observância das prescrições e proibições rituais, que, forçando

uma certa desagregação da pessoa, impedem a apoteose última desta,

devendo então os homens contentarem-se com a situação máxima de

tata , que oferece uma espécie de equivalente minorado da

metamor fose divina. Há aqui então, na relação entre possessão e

construção da pessoa, uma primeira ilusão de continuidade: a

pessoa, múltipla, busca unificar-se, mas este esforço tende sempre

a ser mal-sucedido, e ela deve terminar por se contentar com uma

solução de compromisso.

Por outro lado, no que toca à relação entre possessão e

r i tual, uma outra ilusão de continuidade também parece operar. Ao

procurar trazer o Orixá à Terra, o mecanismo do transe repete,

como vimos, aquele do sacrifício. Este, sabe-se, opera provocando

uma continuidade entre a divindade e os homens, através de um

ani mal colocado como intermediário e que, ao ser abatido, deixa

aberto um canal para que a “graça divina” flua até o mundo humano

(cf. Lévi-Strauss, 1976: 256-262). Ora, a possessão não passa de

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186

uma forma específica de comunicação através deste canal; de um

ponto de vista, portanto, mantém uma relação de complementaridade

com o sacrifício, na medida em que a iniciação — que torna

poss í vel o transe “normal”, ou seja, comunicativo — consiste

justamente em sacrificar animais sobre o Ori do filho-de-santo

para que ele possa “receber” seu Orixá, “abrindo” portanto o canal

através do qual a comunicação homem/deus se efetuará 22. Além

disto, este c anal é precário, pois, sendo a descontinuidade

Aiê/Orum profunda e eterna, há sempre o risco de que ela se feche,

e é apenas a rep etição indefinida dos ritos e a estrita

observância das regras e tabus que permitem a manutenção das

relações de comunicação entre os dois universos.

Mas existe também um outro aspecto nas relações entre

possessão e sacrifício, tal qual colocadas no Candomblé. Além de

sua complementaridade, ambos são, num outro eixo, suplementares.

Pois, se o sacrifício parece corresponder a um contato simbólico

com os deuses (na medida em que não são eles que se manifestam,

mas ap enas sua “graça” que flui) provocado pela morte real de um

corpo ou outro (o animal sacrificado), a possessão parece antes

gerar um contato real com os deuses provocado pela morte simbólica

de um “ espírito” próprio . Isto porque são os próprios deuses que

se m anifestam, e para que isto se torne possível, é necessário

que, não o corpo, mas aquilo que o anima, se afaste, num movimento

22 Por isto é ilusório tentar estabelecer, como o fez Luc de

Heusch, uma oposição entre religiões baseadas na possessão (das

quais os cultos afro-brasileiros seriam um dos exemplos possíveis)

e aquelas construídas sobre o modelo do sacrifício (tipo que a

tradição judaico-cristã ilustraria). Ao contrário, ao menos no

caso do Candomblé, possessão e sacrifício constituem os dois

pil ares interligados sobre os quais se sustenta toda a estrutura

religiosa.

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187

semelhante ao que ocorre na morte, cedendo assim o espaço no qual

se encarnará o Orixá. Assim, a possessão é sacrifício, e o

vocabul ário da iniciação, quando do noviço “morre” para renascer

como “cavalo-de-santo” se esclarece inteiramente. Esclarece-se

também — e isto é essencial — o motivo pelo qual devem os Orixás

possuir seus filhos. Pois, se em determinados cultos afro-

brasileiros, e specialmente na Umbanda, as entidades espirituais

encarnam para “trabalhar” e dar conselhos, isto não é verdadeiro

para o Cando mblé, onde os “trabalhos” (os rituais) devem ser

praticados pelo próprio fiel, consciente, e onde os Orixás não

costumam falar, a não ser muito pouco e muito raramente. Se

encararmos contudo o transe como sacrifício, poderemos perceber

seu sentido, e entender o que querem dizer os fiéis quando apontam

para as terríveis co nseqüências, tanto para o “cavalo” quanto para

o mundo como um todo, no caso de a possessão não se processar

regularmente: o pr i meiro poderia “enlouquecer”, e o próprio mundo

ser aniquilado se a comunicação se interrompesse. Ora, Olivier

Herrenschmidt detectou, muito justamente, a existência de duas

concepções acerca do sacr i fício: uma que o encara apenas como a

revivescência “simbólica” de um momento glorioso do passado

(“sacrifício simbólico”, tal como se processa no catolicismo e, de

forma mais nítida, no protesta ntismo da Reforma), e uma outra que

o situa como força essencial para a manutenção de um certo

equilíbrio do mundo, através da r eciprocidade por ele estabelecida

entre o universo humano e o divino. É justamente esta concepção de

“sacrifício eficaz” que tem lugar no Candomblé, tanto no que se

refere ao sacrifício propri amente dito, quanto no que diz respeito

à possessão, que consiste numa manifestação desta eficácia ao

assegurar simultaneamente o equilíbrio provisório da pessoa

humana, no plano individual, e a comunicação e reciprocidade com

os Orixás, no plano cosmológico.

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188

Sacrifício e possessão são pois, deste ponto de vista,

rit uais que buscam incessantemente lançar uma ponte entre dois

universos irremediavelmente separados, já que sua separação é a

própria condição de existência da vida, tal qual a conhecemos.

Neste sentido, seus esforços são sempre vãos e devem contínua e

ininterruptamente ser retomados. É por isso que, falando

rigoros amente, a possessão não só jamais completa o que pretende,

como também nunca chega a completar-se a si própria. Porque, além

de não poder refundir, de modo perpétuo, o Aiê e o Orum, o modelo

nativo sustenta que não é jamais o Orixá como um todo que se

encarna (o “Orixá geral”), mas apenas uma “ínfima fração sua”;

caso co ntrário, nem o filho-de-santo que o recebe, nem o próprio

mundo poderiam suportar a infinita potência que sobre eles se

abateria, sendo imediatamente aniquilados. Isto, além de confirmar

a hipót ese levantada acima acerca da dupla natureza, ao mesmo

tempo totêmica (em seu aspecto “geral”) e religiosa (em seu

aspecto de “qualidade específica”) do Orixá (e do próprio

Candomblé), aponta para um outro “fracasso” lógico contido na

operação do transe: além de não reunir Aiê e Orum, cuja distinção

significa a forma acabada da exigência de descontinuidade sem a

qual o próprio pe nsamento não pode funcionar, a possessão não pode

chegar jamais a fundir, ao menos completamente, homem e deus, já

que nela é apenas um pequeno fra gmento deste último que se

manifesta.

Existem assim três “insucessos” estruturais no ritual da

possessão tal qual manifesto pelo sistema do Candomblé: um

sincr ônico, que impede a fusão total entre homem e divindade;

outro diacrônico, que não permite a unificação total da pessoa

humana e sua conversão última em Orixá; e, finalmente, um terceiro

de o r dem, poder-se-ia dizer, acrônica, já que antecede o próprio

sistema sendo sua condição de existência, e que mantém separados o

Aiê e o Orum, sustentando assim que o mundo terreno e o mundo

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189

di vino não podem jamais, a despeito de todos os esforços, chegar a

se confundir. O Candomblé parece então corresponder a uma

tentat i va eterna, pois que sempre fracassada, que se esforça em

ligar estes domínios, e sua perenidade e resistência talvez

reflitam, em última instância, esta incapacidade radical de

justapor o pensado e o vivido, incapacidade que deixa como única

alternativa poss í vel, soluções de compromisso e dedicação

integral. Estamos às voltas pois com uma religião , no sentido

estrito do termo, com um sistema que desenha um outro mundo, que

se esforça por tocá-lo, mas que só pode, na melhor das hipóteses,

tangenciá-lo: como numa miragem que, tocada, só pode desaparecer.

Não nos iludamos contudo. Os “fracassos” do Candomblé não

poderiam ser apontados como supostas provas da existência aí de

uma mentalidade “primitiva” ou “pré-lógica” que desconheceria as

leis fundamentais do pensamento lógico. Na verdade, tais fracassos

são lógicos , e estão relacionados tanto com a estrutura do

proce sso ritual, quanto com uma verdadeira ontologia presente no

sistema. Esta ontologia foi brilhantemente pressentida e esboçada

por Roger Bastide, que, nas três páginas mais importantes e

escl arecedoras jamais escritas sobre o Candomblé, demonstrou sua

estrutura básica (cf. Bastide, 1973: 371-373). Seria preciso

ta l vez reproduzir integralmente este texto, denominado, de forma

significativa, “A Concepção Africana da Personalidade”, para que

pudéssemos nos dar conta de sua profundidade, assim como de sua

beleza. Na impossibilidade de uma tal reprodução, deverei aqui me

contentar em resumir, de um modo que compromete inevitavelmente a

densidade do texto, suas idéias centrais.

Bastide demonstra aí que a concepção do Ser adotada pelo

Candomblé aproxima-se muito mais da ontologia medieval do que da

filosofia pós-crítica. Kant teria estabelecido de fato a

inexi stência, entre o Ser e o Não-Ser , de estágios intermediários:

o Ser existe ou não existe, eis tudo. Os medievais, ao contrário,

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190

admi tiam a presença de intermediários entre esses dois extremos,

admitiam “uma escala de existências de graus do Ser . Existe-se

mais ou menos”. É esta em verdade a concepção central do

Candomblé: entre o Não-Ser do homem (não-iniciado) e o Ser pleno

dos Orixás, uma continuidade poderia ser imaginada e construída,

continuidade que seria percorrida por aqueles que, ingressando no

culto, passam por todos os rituais e aceitam todas as obrigações e

todos os tabus. O caminho entre o Ser e o Não-Ser é então uma

estrada aberta, cheia de idas e vindas, de perigos, que se

acentuam ao longo da caminhada. Pois se o cumprimento das

prescrições pe r mite a passagem em um sentido, sua não observância,

as faltas e pecados históricos, ameaçam todo o sistema de

entropia, devolvendo ao Nada aquilo que Era . A possessão nada mais

é, consequentemente, do que o oferecimento, por um fugaz instante,

desta realização do Ser , e sem ela o próprio sistema deixaria de

operar.

Deste modo, se a oposição Ser / Não-Ser é a matriz básica a

partir da qual são geradas todas as oposições com que trabalham os

mitos — que não fazem mais do que traduzir, através de

afastame ntos cada vez menores, esta cisão fundamental (cf. Lévi-

Strauss, 1971: 621), os ritos talvez se caracterizem por seu

turno, ao m enos quando encarados do ponto de vista da possessão (e

também do sacrifício), como um esforço para ultrapassá-la também,

mas não mais através da redução progressiva da distância entre os

pólos em oposição, e sim tentando atravessá-la de um só golpe,

postulando um continuum que poderia conduzir de um extremo ao

outro, se o próprio esforço para superar este vazio não implicasse

já sua existência insuperável, tornando portanto impossível a

anulação do fato da oposição, e votando o rito a um trabalho

infinito, que só poderia cessar com o aniquilamento do pensamento

e da própria v i da.

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6. Conclusões

A título de conclusão, eu gostaria de retomar algumas

questões básicas que têm permeado os estudos afro-brasileiros, e

que, por serem freqüentemente mal colocadas, ou antes, por serem

col ocadas sem que se leve em consideração a natureza e a estrutura

do sistema investigado, têm recebido algumas respostas bastante

ins atisfatórias. O objetivo desta retomada não é, absolutamente,

esclarecer por completo essas questões — o que exigiria certamente

um outro trabalho inteiramente dedicado a isto — mas indicar de

que maneira a análise estrutural do sistema pode fornecer

suge stões p ara sua resolução.

Em primeiro lugar, vimos que os dois temas básicos que

art i culam praticamente todas as explicações correntes a respeito

do transe extático são ora a questão da doença , ora a questão da

sociedade . No primeiro caso, a possessão é encarada seja como

enfermidade mesmo, seja como forma de tratamento “pré-médico” para

ela; no segundo, ela é vista tanto como mecanismo de reforço da

ordem social abrangente quanto como instrumento de sua inversão,

seja esta “simbólica” ou não.

Digamos de início que, apesar de suas divergências óbvias,

todas estas explicações são em parte verdadeiras, errando apenas

na medida em que tentam fazer de uma ligação contingente a causa

essencial do fenômeno estudado. Assim, é verdade que certas

doenças podem conduzir ao culto, que este fornece um meio para

controlar (de modo bastante eficaz, por vezes) algumas delas, e

que ele funciona como arena de manipulações sócio-políticas. No

entanto, tudo isso só é possível devido a características da

pr ópria estrutura do sistema. Se admitirmos que a enfermidade pode

ser vivida como experiência de cisão da pessoa, poderemos talvez

compreender que a possessão, técnica simbólica de construção desta

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192

unidade e de manutenção de um certo equilíbrio, possa estar

estr uturalmente ligada a ela. Se admitirmos também que a

manipulação sócio-política (reversão de status, compensação,

ascensão simból i ca, etc.) implica, de certo modo, num

estabelecimento de continuidades entre segmentos usualmente

descontínuos, poderemos então entender melhor que uma religião

estruturalmente voltada p ara a produção do continuum possa se

ligar a este tipo de realidade, e isto de várias maneiras

diferentes e, até mesmo, co ntraditórias entre si. Em outros

termos, parece haver uma espécie de aptidão estrutural da

possessão e do Candomblé em ligar-se a certos estados

“patológicos” ou “micro-políticos”, estados que não podem portanto

constituir a causa explicativa de nenhum dos dois, limitando-se a

ser fenômenos locais com os quais o culto, devido a pressões

externas e de ordem hist órica, pode chegar a se agenciar.

Um outro tema clássico nos estudos afro-brasileiros fica

também melhor esclarecido ao adotarmos este ponto de vista. Pois,

ao invés de ver no “sincretismo religioso” uma pura incapacidade

de uma raça em absorver preceitos religiosos demasiadamente

abstratos (Nina Rodrigues), ou uma assimilação psicanalítica de

arquétipos inconscientes (Arthur Ramos, Roger Bastide), ou ainda,

a aceitação por parte do escravo da ideologia de uma classe

superior (Bastide novamente, bem como diversos autores

contemporâneos), conviria antes aceitar que um sistema assentado

na busca de uma continuidade possui um poder de flexibilidade e

uma capacidade de assimilação de novas realidades sensivelmente

superiores àqueles apresentados pelas estruturas mitológicas que

parecem “sofrer” muito mais ao se verem envolvidas com a história.

É isto que parece fazer, e eis outra questão tradicional,

que, com o passar do tempo, o Candomblé “africano” tenda a se

desenvolver no sentido de cultos mais “sincréticos”, dos quais a

Umbanda é o exemplo mais evidente. Pois neste tipo de culto há uma

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193

espécie de hipertrofia do aspecto ritual do sistema matriz,

faze ndo com que seu lado mais “mítico” ou “cosmológico” ceda

totalmente frente a um frenesi incontrolável de ritos e

manipulações simból i cas. Em outros termos, o desenvolvimento e o

predomínio progressivo da Umbanda podem ser entendidos como a

realização e mpírica de uma das virtualidades contidas no Candomblé

— virtualidade que corresponde justamente a seu aspecto

ritualístico já predominante, e mais resistente aos avanços da

história — re alização que tem sua particularidade explicada por

uma espécie de retorno à infra-estrutura sociológica abrangente,

na procura de um contexto que pudesse fornecer oposições e

descontinuidades a serem trabalhadas e superadas pelo sistema,

oposições e descontinuidades que, no caso do Candomblé mais

“tradicional”, ainda são extraídas de uma estrutura mítica e

cosmológica de procedência, ao menos em parte, africana. Num tal

processo, o caráter ritual só poderia mesmo se acentuar ainda

mais, na medida em que a “perda” do nível inteligível (os sistemas

de classificação interiores ao culto) é como que compensada por

“concessões” cada vez mais explícitas ao vivido.

Finalmente, conviria voltar-se para a questão que pareceu,

por trás de todas as diferenças teóricas, funcionar como mola

pr opulsora dos chamados cultos afro-brasileiros. Pois, de Nina

Rodrigues aos autores contemporâneos, o que tem preocupado os

estudiosos das religiões de procedência africana no Brasil, é

basicamente o enigma de sua estranha permanência, da escravidão ao

Brasil industrial moderno. Onde seria preciso então buscar o

sentido da “sobrevivência” dessas práticas e dessas crenças,

estruturadas em sistemas tão elaborados, e dos quais só foi

poss í vel aqui fornecer um esboço e analisar uma ínfima fração?

Cert amente não do lado de uma pura sobrevivência de uma muito

antiga filosofia africana como ainda querem alguns (e isto ora num

sent i do pejorativo, assinalando uma incapacidade “racial” para o

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progresso, ora num tom de aprovação pela manutenção de uma herança

tradicional). Invertendo radicalmente esta postura, outros parecem

tentados a buscar as razões desta permanência na relação, sempre

atual, que o sistema manteria com estruturas sociais abrangentes e

determinantes — aquelas da sociedade brasileira.

O primeiro raciocínio peca por excesso de idealismo, supondo

uma inércia das instituições culturais que obviamente não pode

existir. Se o sistema permanece — e ele de fato permanece — isto

se deve antes, em parte, ao fato de que, como vimos, ele exprime

certas propriedades lógicas universais do pensamento humano, mas

também porque sua forma específica de atualizar estas propriedades

é congruente com um determinado contexto histórico e sociológico

particular.

Por outro lado, situar esta permanência do lado de uma pura

função desempenhada em benefício da sociedade abrangente, ou mesmo

de indivíduos isolados, é cometer o erre inverso e simétrico

àquele praticado pela perspectiva anterior; é supor que um sistema

funciona a despeito de sua estrutura; é não querer ver que, para

desempenhar determinada função, uma estrutura específica é

exig i da.

Em outros termos, como demonstrou Pierre Smith a propósito

de um conjunto de crenças compartilhado por um grupo de populações

africanas, é absolutamente necessário distinguir um dispositivo

simbólico, que é primeira e fundamentalmente atualização do

pens amento, matriz de significações e de relações humanas, da

utilização ideológica que dele pode ser feito, para fins diversos

e freqüentemente opostos entre si, fins que devem contudo ser

compatíveis com a estrutura do próprio dispositivo (cf. CNRS,

1973: 488-490). Isto significa que, talvez, a permanência dos

cultos afro-brasileiros, seja sob sua forma mais tradicional, seja

sob suas modalidades mais “sincréticas”, especialmente demonstrada

pela estrutura do culto em relação a uma série de problemas

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históricos concretos colocados pela nova realidade em que ele foi

inserido, problemas que deverão, um dia, ser cuidadosamente

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