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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL Marcelo Souza Oliveira UMA SENHORA DE ENGENHO NO MUNDO DAS LETRAS: O DECLÍNIO SENHORIAL EM ANNA RIBEIRO SALVADOR-BA 2008

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL

Marcelo Souza Oliveira

UMA SENHORA DE ENGENHO NO MUNDO DAS LETRAS: O DECLÍNIO SENHORIAL EM ANNA RIBEIRO

SALVADOR-BA 2008

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS – PPGEL

Marcelo Souza Oliveira

UMA SENHORA DE ENGENHO NO MUNDO DAS LETRAS: O DECLÍNIO SENHORIAL EM ANNA RIBEIRO

Dissertação apresentada à banca examinadora da Universidade do Estado da Bahia, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Estudo de Linguagens, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Santos Silva.

SALVADOR-BA 2008

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FICHA CATALOGRÁFICA – Biblioteca Central da UNEB Bibliotecária : Jacira Almeida Mendes – CRB : 5/592

Oliveira, Marcelo Souza Uma senhora de engenho no mundo das letras : o declínio senhorial em Anna Ribeiro / Marcelo Souza Oliveira . – Salvador, 2008. 131f. Orientador : Paulo Souza Silva. Dissertação ( Mestrado ) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2008. Contém referências. 1. Literatura brasileira - Bahia - Historia e critica. I. Ribeiro, Anna – 1843-1930. II. Silva, Paulo Souza. II.Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: B869.09

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BANCA EXAMINADORA:

_________________________________________ Prof. Dr. Paulo Santos Silva (Orientador)

_________________________________________ Profª. Drª. Márcia Azevedo de Abreu (UNICAMP)

_________________________________________ Profª. Drª. Maria do Socorro Silva Carvalho (UNEB)

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Agradecimentos

A Deus que, de alguma forma, dá sentido a tudo isso.

A minha família, em especial minha mãe, que sempre me apoiou e a quem Deus

escolheu para ser minha coluna não só nos momentos difíceis, como no dia-a-dia. Também

aos meus irmãos mais novos: irmãos Fabio, France e Nando.

Ao Professor Paulo Santos Silva, meu orientador, pelas leituras minuciosas que me

fizeram escrever e reescrever esta dissertação em busca da sua maturidade: espero que tenha

valido à pena!

Aos meus amigos que desde a minha infância têm que me aturar e que me apóiam nos

tempos difíceis, são muitos, mas tenho que registrar os nomes de, pelo menos, três deles:

Presley, Saulo, Valquer, vocês não são amigos, são mais que irmãos!

Aos meus colegas de mestrado em especial a Marcos, Manoel, e a minha querida

amiga Aline e seu noivo Janírio. Nossas discussões estão registradas nesse trabalho.

A Alex, meu amigo dos Pampas, que conheci ainda quando estava cursando as

disciplinas como aluno especial na UFBA, mas que se demonstrou um grande irmão: “cara

você é meu brother e o resto é conversa!”.

Às professoras Kelly e Lindinalva pelas leituras e correções precisas.

Aos meus professores que contribuíram para o êxito deste trabalho, os quais eu

detenho ilimitada consideração e respeito: Clóvis, Raimundo Nonato, José Gledson, Edleuza,

Jorge Damasceno, Márcia Rios, Verbena, Maria do Socorro, todos estes professores da

UNEB. Um agradecimento especial à professora Lina Brandão de Aras, da UFBA, pelo apoio

na construção do projeto de pesquisa que resultou nesta dissertação de Mestrado.

Não posso esquecer-me dos funcionários da Biblioteca Pública e do Arquivo Público

do Estado da Bahia, em especial aos funcionários do CEDIC, na Fundação Clemente Mariani,

por ter sido lá em que estive a maior parte das vezes na coleta das fontes de pesquisa.

A toda a equipe do PPGEL, em especial à Camila e Danilo, sempre pacientes e atentos

as nossas dúvidas e pedidos.

A todos que direta ou indiretamente contribuíram para a construção exitosa deste

trabalho.

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RESUMO

Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930) foi uma ex-senhora de engenho que adentrou no mundo das letras, com o intuito de “orientar” suas jovens patrícias com um discurso moralizador. Para isto, ela escreveu narrativas contextualizadas e ambientadas na sua realidade, com o intuito de criar uma identidade com as suas leitoras. Sobre esse projeto literário, nove obras foram publicadas na Bahia entre 1882 e 1921. Desta produção emergem os três contos e um romance que retratam a decadência senhorial, analisados nesta dissertação. Respectivamente em Dulce & Alina (1901), Violeta & Angélica (1906), Marieta (1908) e o romance Letícia (1908) a memória social da elite baiana acerca do processo de seu declínio é contada paulatinamente destacando respectivamente o auge, a crise e a derrocada do mundo senhorial, sendo que em Letícia a autora fez uma síntese desse processo. A ótica paternalista dessas obras é peculiar às representações de uma ex-senhora de engenho que oferece nos seus escritos uma versão impar da História da Bahia, através dos tipos sociais, dos ambientes e dos discursos presentes na memória da elite. Ancorada teoricamente na História Cultural, essa pesquisa analisa os três contos e o romance investigados, considerando a literatura como uma fonte histórica privilegiada, uma vez que sendo um produto da história, as obras e os autores representam a realidade que os cerca, oferecendo aos leitores possibilidades de leituras, neste caso, sobre a sociedade do Recôncavo entre meados do século XIX e início do século XX. Palavras-Chave: História; Literatura; paternalismo; decadência; Anna Ribeiro.

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SUMARIO Agradecimentos, 04

Resumo, 05

Abstract, 06

Introdução, 08

Capitulo I

Uma prosa paternalista, 18

Os Araújo Góes e a Bahia do século XIX: o mundo de Anna Ribeiro e de seus personagens, 19

Três contos e um romance, 27

Tipos sociais e a construção de modelos (im)possíveis, 33

A ideologia senhorial e suas contra(di)ções, 38

Por dentro do paternalismo: a jovem Letícia, 51

Capitulo II

Representações do declínio senhorial, 58

Mundos opostos: Senhor Travassos versus Eurico, 59

O “golpe e a revolução”: traumas de uma elite em declínio, 66

Sampaio x Eurico: um embate em torno da escravidão, 78

A “ingratidão” de Maria e o “exemplo” de Josefa, 85

Capítulo III

Dramas da decadência: cenas do Recôncavo, 93

Anna Ribeiro e a Bahia na década de 1910, 94

O ambiente como representação, 97

A morte de Travassos e a restauração de Eurico, 104

O pós(pós)-abolição: Marieta, 111

Conclusão, 117

Fontes e referências bibliográficas, 123

Fontes, 123

Produção de Anna Ribeiro, 124

Bibliografia sobre a autora, 124

Referências Bibliográficas, 127

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INTRODUÇÃO

No rodapé do Jornal de Notícias, do dia 19 de novembro de 1906, encontram-se as

primeiras páginas de mais um conto:

Corria o ano de 1888. Era um domingo. Na varanda de sua vivenda campestre, passeava o Sr. Alfredo Bastos, com ar triste e preocupado, em contradição com sua fisionomia, habitualmente calma e prazenteira. Era um homem de quarenta e tantos anos, cheio de corpo, abdômen um pouco desenvolvido, fronte serena, porque ele se aproximava da velhice, a percorrer uma estrada, larga e plana, apenas interrompida, de longe em longe, por uma moita de espinhos, porque essas nunca deixam de existir no percurso da vida. [...] É que se dera o golpe de estado, abolindo a escravidão ao Brasil, e ele temia pelos resultados já apreciados, ver a sua propriedade cair em decadência, pela falta de braços, e sua família querida experimentar as privações a que não estava habituada1.

O trecho publicado pelo jornal soteropolitano é parte de Violeta & Angélica, de autoria

da escritora Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843-1930)2. O Conto narra a história

das famílias senhoriais nos fins do século XIX. Nele as intenções da narradora eram

aparentemente bem definidas: instruir e orientar as suas patrícias, expondo modelos de

comportamento.

A história se passa no Recôncavo baiano no ano de 1888 e retrata a “difícil” situação

dos Bastos, uma numerosa e destacada família de senhores de engenho que sofre um “golpe”

dado na sociedade açucareira. O “golpe”, pelo que se entende na narrativa, consistia na

decisão do governo da Princesa Isabel e de “seus ministros” na “classe dos agricultores do

Recôncavo”, quando libertou os escravos em plena colheita. No decorrer do conto, como será

visto no capítulo 2 desse estudo, a autora discute o 13 de maio e o 15 de novembro,

construindo o segundo evento como conseqüência do primeiro. Enquanto o governo teria sido

responsável pelo golpe nos senhores de engenho, estes teriam respondido à ação

“imprevidente” da Princesa com uma “revolução”, a Proclamação da República.

Para reforçar esta idéia, são construídos tipos sociais de senhores de engenho que ou

se comportaram “resignadamente” ou de forma “imprudente”. Assim, são descritos os irmãos

1 BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Araújo Góes. Violeta & Angélica. Jornal de Notícias. Salvador, 1906. 2 A autora assinava suas obras apenas como Anna Ribeiro. D. Anna assinava o sobrenome da mãe em seus textos o que não era normal em sua época. O fato de não escrever nem o nome do marido, nem o do pai pode ter muitas explicações, uma delas pode estar ligada ao orgulho e respeito que tinha pelo Bisavô - Major Pedro Ribeiro – ao qual dedicou o primeiro volume do seu livro de memórias. Outra poderia ser em decorrência da enorme consideração e respeito que tinha pela mãe – Anna da Anunciação Ribeiro – que dizia ser uma “santa”. Assim, daqui para frente será usado o nome que ela assinava em suas obras.

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Alfredo e Alberto Bastos: enquanto o primeiro reagiu à abolição apoiado nos valores da

família e do trabalho; o segundo tem uma vida desregrada, vende o seu engenho e muda-se

para São Paulo onde perde toda a sua fortuna num investimento na cultura do café. Nesta

linha inscreve-se a literatura de Anna Ribeiro: ela constrói modelos de comportamento para os

leitores e leitoras egressos da sociedade escravista da Bahia nas primeiras décadas da

República, tomando como referencial a sua realidade e a sua vivência como senhora de

Engenho.

Um olhar sobre a obra de Anna Ribeiro, no momento da escrita e/ou de suas

publicações, revela que ela teve três fases de publicação distintas que podem fornecer indícios

das características de suas obras. Na primeira fase, ela publicou dois romances, e ainda antes

da abolição da escravatura: A filha de Jephté (1882) e O Anjo do Perdão (1885). Após

dezesseis anos, a autora publicou Helena (1901), dando início a segunda fase de sua escritura.

A partir daí a autora publica mais quatro obras: os contos Dulce e Alina (1901), Violeta &

Angélica (1906), Marieta (1908) e, finalmente, o romance Letícia (1908). A autora volta a

publicar treze anos depois, com Abigail (1921), deixando uma obra inédita que teria o título

de Suzana.

A divisão da literatura de Anna Ribeiro em fases considera também a questão da

temática que envolve as obras. Excetuando-se A Filha de Jephté e Abigail, que são baseadas

em histórias bíblicas, todas as outras narrativas referem-se a temas ligados à realidade baiana

no momento de suas escrituras. Num primeiro momento, a autora discute as questões

referentes à escravidão e ao processo abolicionista ocorrido na década de 1880 e isso acontece

em O Anjo do Perdão. Das seis obras publicadas no decorrer da década de 1910, cinco se

passam entre 1887 e 1889, e tratam da decadência senhorial no Recôncavo baiano. Já no fim

da sua carreira no mundo das letras, a autora tratou da independência da Bahia, quando

escreveu Suzana, fato que está ligado ao centenário desse evento. Nesse mesmo período ela

escreveu também o primeiro livro de memórias onde conta a história da participação de seu

avô Pedro Ribeiro na campanha da guerra da independência. No entanto, aqui serão discutidas

apenas as obras ligadas ao declínio senhorial.

A segunda fase da produção de Anna Ribeiro (1901-1908) propõe uma linha de

interpretação acerca da experiência histórica dos membros da sua família ocorrida na Bahia

no último quartel do século XIX. Esse olhar foi lançado durante a primeira década da

República, momento em que a província passou a ocupar um lugar secundário na

configuração nacional e que a aristocracia baiana do Recôncavo deixou de ser a expressão

social e principalmente econômica de outrora. Por tratar-se de um momento traumático para o

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grupo social do qual Anna Ribeiro fazia parte, a literatura cumpria os requisitos pertinentes

para dizer o que foi difícil expressar por outras vias, como por exemplo, no livro de memórias

da autora.

Quase esquecida, mesmo em Catu, que ela considerava sua cidade natal, a autora

somente foi relembrada após a publicação, em 1992, quando seu livro de memórias intitulado

Os longos serões do campo, organizado e patrocinado pelos seus descendentes, chegou a

figurar, na ocasião, como um dos livros mais vendidos3. A partir dessa publicação, muitos

pesquisadores contemporâneos puderam conhecer e utilizar as memórias de Anna Ribeiro em

suas pesquisas. Entre os biógrafos de Anna Ribeiro figuram alguns de seus parentes, à

exemplo de Anna Mariani Cabral e Clemente Mariani (ambos seus netos), e Ana Amélia

Vieira Nascimento (bisneta); alguns membros da Academia de Letras da Bahia, como

Augusto Alexandre Machado e Thales de Azevedo; além de Carlos Eduardo da Rocha, que

escreveu um artigo em homenagem ao cinqüentenário de sua morte4.

No percurso desta investigação foram localizados apenas dois trabalhos que versam

sobre a literatura de Anna Ribeiro. O mais significativo deles é o de Nancy Rita Vieira

Fontes, intitulado A bela esquecida das letras baianas5. A autora analisa a obra de Anna

Ribeiro na perspectiva dos estudos de gênero. Desenvolve a análise tecendo considerações

sobre o tom moralizante das narrativas. A versão de Anna Ribeiro em relação ao processo de

decadência da elite açucareira baiana é ignorada em A bela esquecida das letras baianas, uma

vez que o seu trabalho tinha por foco questões de gênero.

Um levantamento da bibliografia produzida sobre a autora, no decorrer do século XX,

demonstra a carência no que tange à sua produção literária: houve alguns biógrafos de Anna

Ribeiro, mas nenhum analisou ou discutiu profundamente a sua obra. Contudo, na sua quase

inexplorada produção literária é que está a parte mais substancial do seu testemunho histórico,

uma vez que na ficção ela sentiu-se mais livre para falar de temas que não foram abordados

em suas memórias, como no caso do ressentimento da elite em relação a sua situação no pós-

abolição. A literatura vai dar voz à autora para registrar suas percepções acerca da decadência

da elite senhorial do Recôncavo. Ela vai “contar” na ficção aquilo que não contou em suas

memórias.

3 O jornal A Tarde indicou Os longos serões do campo como um dos dez livros mais vendidos da Bahia, na categoria não ficção. (A Tarde, 28 set. 1992. Caderno 4, p.11). 4 Ver referências bibliográficas sobre Anna Ribeiro nas incluídas no final desse trabalho. 5 FONTES, Nancy Rita Vieira. A bela esquecida das letras baianas: a obra de Anna Ribeiro. (Mestrado em Letras/UFBA), Salvador-Ba, 1995.

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A chave aqui é a possível utilização dos textos literários como fonte para a

reconstrução das representações passadas. Sendo intenção do pesquisador buscar as

significações e formas de enxergar o mundo num dado período, a literatura é uma das fontes

privilegiadas. Os valores, crenças e anseios, as formas de ver o mundo e de interagir com ele

são expressas no decorrer dos textos literários partindo de um pressuposto de que o escritor e

o leitor estão inseridos dentro da sua própria realidade de acordo com suas próprias

perspectivas6. Para a História Cultural, a literatura é encarada como uma possibilidade de

captação do real privilegiada, por conter de maneira rica o imaginário da sociedade da qual

emerge. O texto ficcional engendra uma rede de discursos e representações articuladas ao

contexto histórico em que foi produzido. Esse texto é produto memória social dos indivíduos

constituídos por construções simbólicas cuja inteligibilidade torna-se possível mediante, entre

outros métodos, uma leitura historicizada e da observação dos critérios de validação e de

aceitação da escritura literária. Fazem-se necessário a percepção da lógica social do texto e as

especificidades de cada obra7. Há de se observar, por exemplo, que na literatura Anna Ribeiro

seguiu determinadas características que tiveram como principais influências suas leituras dos

romances europeus dos séculos XVII e XVIII. 8

As influências dos romances ingleses foram constantes no Brasil ao longo de todo o

século XIX, permanecendo nos catálogos das bibliotecas e gabinetes e, certamente, em suas

estantes durante todo o período. A leitura da literatura estrangeira trazia certo grau de status à

elite brasileira, nutrindo-as da “civilidade” européia9.

Nas primeiras manifestações da ficção na Bahia, David Salles vê a coexistência de

dois modelos: o primeiro, decalcado de modelos europeus já ultrapassados, com ênfase nos

bons princípios morais vigentes no setor mais conservador da sociedade; e o segundo,

caracterizado pelo uso do diálogo, pela descrição realista da cena, pelo relativismo do

comportamento dos personagens e por certo realismo social, mais próximo de A moreninha10.

É fato que, com a consolidação do gênero, a partir da década de 1840, iriam predominar a

verossimilhança na ação e um ajuste mais adequado entre a pintura do cenário e as situações

6 PESAVENTO, Sandra Jathay. História e história cultural. Belo Horizonte, MG. Autêntica, 2004. 7 CHALHOUB. Sidney e PEREIRA, Leonardo (org.), História Contada. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998. pp. 7-8. 8 Sobre estas questões ver SALLES, David (orgs.) Primeiras Manifestações da Ficção na Bahia. São Paulo, Cultrix-INL-MEC, 1979. Sobre as influências européias na literatura de Anna Ribeiro ver LACERDA. Lílian de. Álbum de leitura, histórias de leitoras. São Paulo, Editora da Unesp, 2003. 9VASCONCELOS. Sandra de. A Formação do Romance Brasileiro. Disponível em: http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/estudos/ensaios/romancese.pdf, acessado em 12 de outubro de 2007, às 15:31h. 10 SALLES, Op. cit. .

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encenadas. Os estatutos literários observados por David Salles estão presentes também na

literatura de Anna Ribeiro. Mesmo nos seus contos, prevalece o tom moralizante e a

verossimilhança. Numa crítica ao romance Exaltação, de Albertina Bertha, publicada em

1916, Anna Ribeiro deixou clara essa noção do romance e da formatação do gênero literário:

Creio, porém, que o brilhantismo do estilo, o colorido das descrições não serão jamais o essencial em uma obra literária. O essencial será o conjunto dos bons princípios, das idéias sãs, o caráter dos personagens que, embora imaginários, devem ser verdadeira imagem dos caracteres que apresenta a humanidade em suas múltiplas variedades. Apresentar tipos inverossímeis ou então um infeliz desequilibrado, ornado das jóias estilísticas como uma cousa comum e usual, é inconveniente e até perigoso. Diz Deprês: “O romance não é mais uma fantasia de imaginação das damas, porém sim uma obra séria, cujos detalhes são documentados, e na qual os investigadores do século próximo irão encontrar escrita, dia a dia, a história do nosso século.”11

Anna Ribeiro considerava que um bom romance deveria enquadrar-se nessa díade:

verossimilhança e tom moralizante. Isso era o que, segundo ela, faltava no romance ao qual se

dirige a sua crítica. É a partir dessas duas características gerais que se pode compreender a

literatura de Anna Ribeiro. Ao criticar o romance de Albertina Bertha, ela estava também

colocando a sua forma de entender a literatura dentro de um contexto mais amplo. Nesse

ponto, a verossimilhança e o tom moralizante assumem não mais um aspecto de afirmação do

romance em sua trajetória de afirmação no Brasil do século XIX, mas também um caráter

missionário que objetiva instituir aos seus contemporâneos e a sua posteridade uma visão de

tipos sociais aceitáveis. A articulação dessas duas premissas é fundamental para a

compreensão da literatura de Anna Ribeiro, como representação cultural do seu tempo.

A obra de arte literária (ficcional) é o lugar em que nos defrontamos com os seres

humanos (fictícios) de contornos definidos e definitivos, em ampla medida transparentes,

vivendo situações exemplares de um modo exemplar. Como seres humanos encontram-se

integrados num denso tecido de valores de ordem cognoscitiva, religiosa, moral, político-

social e tomam determinadas atitudes em face desses valores12. De igual forma, os “tipos

sociais” construídos por Anna Ribeiro remetem à uniformização de um ser humano fictício,

que está longe de ser igual às pessoas em que ela afirmava “inspirar-se”, mas que deve reunir

certos “atributos” inerentes às pessoas que serviram de exemplo em sua época.

Todas as personagens principais de Anna Ribeiro são jovens senhoras de engenho que

se encontram às voltas com as dificuldades econômicas e sociais provocadas pela decadência

11 BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Exaltação. In: A Voz da Liga Católica das Senhoras Baianas. Bahia: Tipografia Beneditina. ano IV, n. 6. set. 1916. p. 91-93. 12 CÂNDIDO, Antonio. ROSENFELD, Anatol. PRADO, Décio de Almeida. GOMES, Paulo Emilio Salles. Personagem de ficção. Coleção Debates, 7ª ed. São Paulo: 1968. p. 45.

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da economia açucareira do Recôncavo. Entretanto, mesmo sendo identificáveis os elementos

de consonância entre a Anna Ribeiro como sujeito histórico e as suas personagens, o

interessante é perceber como ela imprime visões de mundo, sentimentos e ressentimentos nas

histórias que podem ser mais bem compreendidas dentro do contexto da sua realidade e do

seu contexto histórico. Um exemplo análogo a este se encontra em Menino de Engenho de

José Lins do Rego que, embora não seja uma a narrativa da vida e das experiências do autor

literalmente escritas, expressam um personagem “projetado” em que o escritor vivencia os

seus sentimentos13.

Nancy Rita Vieira Fontes afirma que Anna Ribeiro produziu ao longo da sua carreira

no mundo das letras um projeto literário que tinha três objetivos básicos: construir um

romance para mulheres; o intuito de escrever romances que tivessem um caráter formativo; e

criar uma obra que enfatizasse aspectos da realidade baiana. 14 Nas histórias ficcionais da

romancista focam-se situações onde as famílias senhoriais têm de se adaptar às mudanças

verificadas na sociedade baiana no período de decadência da cultura canavieira e do processo

abolicionista.

É paradoxalmente esta intensa “aparência” de realidade que revela a intenção ficcional

ou mimética em Anna Ribeiro15. Assim, permanece a reinterpretação dada por ela nas suas

escrituras, procurando dar “tons reais” a uma obra imaginada a partir de sua realidade de vida.

A própria Anna Ribeiro menciona esta questão quando afirma na dedicatória feita à sua prima

Mariotti de Araújo Góes, em Letícia: “Acharás, porém, princípios de sã moral, bons exemplos

tirados de fatos, nem todos imaginários e sim colhidos na experiência e observação”. 16

Antonio Cândido considera que na ficção em geral, também na de cunho trivial, o raio

de intenção dirige-se à camada imaginária, sem passar diretamente as realidades empíricas

possivelmente representadas. 17 As questões que concernem ao imaginário de Anna Ribeiro

como suporte para composição de suas narrativas têm relevância nodal dentro da perspectiva

de um estudo que propõe a análise dos textos literários e das visões de uma ex-senhora de

engenho. O vínculo entre o autor e a sua personagem estabelece um limite à possibilidade de

criar, à imaginação de cada romancista, que não é absoluta, nem absolutamente livre, mas

13 Idem, Ibid, p. 71 14 FONTES, Op. cit., p. 78. 15 CÂNDIDO, Op. cit., p. 20. 16 BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Araújo Góes. Letícia. Litho-Typ. E Encadernação Reis & Cia. Salvador, 1908. p. III. 17 CÂNDIDO, Op. cit., p. 42.

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depende dos limites do criador18. Ou seja, o imaginário dos indivíduos é engendrado por uma

série de experiências e discursos inerentes à realidade do autor.

Sandra Pesavento lembra que o imaginário19 deve ser percebido como um dinamismo

organizador, dinamismo este que se converte em fator de homogeneização da representação. 20 Longe de ser mera reprodução ou espelho da realidade, ela é em si elemento de

transformação do real e de atribuição de sentido ao mundo. Faz parte ainda de um campo de

representação21 e, como expressão do pensamento, manifesta-se por imagens e discursos que

pretendem dar uma definição da realidade.

Como será visto na primeira sessão do capítulo III, o olhar lançado por Anna Ribeiro,

da década de 1910, sobre a segunda metade do século XIX, reserva algumas peculiaridades

que valem ser destacadas: 1 – O fato de que ela viveu o mesmo tempo narrado nas obras

literárias; 2 – O contexto de estagnação econômica vivida na Bahia naquele momento e; 3 – A

tentativa da instituição de uma memória social da elite baiana sobre um “passado de glórias”

vivido no Brasil Império e os tempos de “infortúnio” vividos na Primeira República.

Considerando que as construções simbólicas dessa elite faziam parte da memória social, as

lembranças pessoais e coletivas convergem para a confirmação de um discurso de classe sobre

o seu passado e presente. Como sujeito histórico de seu tempo, Anna Ribeiro relembra e

(re)significa os discursos e os representa em seus escritos.

Há de se considerar, portanto, que a literatura que a autora produziu neste período

inscreve algum tipo de memória social da elite baiana sobre o seu próprio declínio. É notório

que a “trilogia de contos” composta por Anna Ribeiro tem como temática central a decadência

da família açucareira do Recôncavo, sendo esta coroada pelo romance Letícia no mesmo ano

de publicação do último conto, Marieta.

O tema da decadência freqüenta, há muito tempo, as páginas da história e da literatura.

Trata-se de um sintoma de desagregação, de destruição ou de declínio de uma época,

representada por valores ideológicos já inadequados, embora ainda defendidos por uma

determinada classe social agonizante. Antonio Cândido, referindo-se ao caso brasileiro,

destaca este aspecto na nossa tradição literária:

Sempre me intrigou o fato de um país novo como o Brasil, e num século como o nosso, a ficção, a poesia, o teatro produzirem a maioria das obras de valor no tema da decadência

18 Idem, p. 68. 19 O Imaginário é aqui tomado como um conjunto de imagens e relações de imagens que constituem o capital pensante do homo sapiens. (PESAVENTO, Sandra Jatahy. Em busca de uma outra história: imaginando o imaginado. Revista Brasileira de História, Vol. 15, nº. 29, ANPUH; Contexto, São Paulo: 1995, p. 17). 20 PESAVENTO, Op. cit., p. 21. 21 Aqui a noção de representação deve ser tomada a partir da concepção de Jacques Lê Goff: “é tradução mental de uma realidade exterior percebida e liga-se ao processo de abstração”. (Apud PESAVENTO, Op. cit, p. 15)

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– social, familiar, pessoal. Assim vemos em Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Ciro dos Anjos, Lúcio Cardoso, Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade. Cheguei a pensar que este “estigma” [...] seria quase requisito para produzir obras valiosas, e que, portanto os rebentos das famílias mais velhas estariam no caso em situação favorável22.

O final do século XIX e início do século XX são caracterizados por profundas

mudanças no âmbito político, social e econômico, em escala global. Nesse acelerado

momento de metamorfose da sociedade, fortalece-se uma classe absolutamente hegemônica, a

burguesia, solapando os últimos privilégios de uma aristocracia ainda arraigada a um mundo

em que predomina a idolatria do passado por oposição a um presente desairoso. Referindo-se

às personagens de José Lins do Rego, numa abordagem coextensiva às obras em foco,

Antonio Candido afirma:

Os seus são sempre indivíduos colocados numa linha perigosa, em equilíbrio instável entre o que foram e o que não serão mais, angustiados por essa condição de desequilíbrio que cria tensões dramáticas, ambientes densamente carregados de tragédia, atmosferas opressivas, em que o irremediável anda solto. 23

Em José Lins do Rego, o tema da decadência é determinante. Anna Ribeiro era de uma

geração anterior a de Lins do Rego, mesmo assim, a temática que ambos os literatos abordam

é a decadência do “ciclo do açúcar nordestino”. Entretanto, percebe-se que o olhar de Lins do

Rego volta-se mais para fora da casa-grande do que o olhar da autora. Enquanto ele descreve

a dinâmica da casa de purgar, ela se volta para a dinâmica da organização doméstica e

familiar provida pela senhora de engenho. O que destaca a diferença dos lugares e dos papéis

sociais atribuídas a ambos no bojo da sociedade patriarcal.

Contudo, os dois evocam o senhor de engenho como o centro da vida patriarcal e que

com a sua morte esse mundo também morreria com ele. A morte do Senhor Travassos pai da

protagonista do romance Letícia, trouxe o fim a toda vida senhorial existente nos engenhos da

“abastada família dos Travassos”, família que possuía as mesmas características daquela

liderada pelo velho José Paulino, personagem da trilogia de Lins do Rêgo, Menino de

Engenho, Doidinho e Bangüê. Tanto em Lins do Rego, quanto em Anna Ribeiro, a morte do

senhor de engenho representará também a morte do antigo engenho escravocrata e patriarcal.

O saudosismo em relação à época “dourada dos engenhos” é um sentimento presente em

ambos os escritores.

22 CÂNDIDO, Antonio. Prefácio. In: MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). São Paulo: Difel, 1979. p. vii. 23 CÂNDIDO, Antonio. Um romancista da decadência. In: Brigada ligeira e outros escritos. São Paulo: Unesp, 1992. p. 61

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No que tange à “trilogia da decadência” de Anna Ribeiro, a primeira questão que

chama a atenção é a seqüência cronológica que a autora passa a adotar: uma visão cada vez

desanimadora da saudosa vida dos engenhos e a construção dos sentidos em relação aos

eventos que, segundo ela, motivaram o fim da “saudosa época”. Em Dulce & Alina (1901),

quase não existem referências à abolição e ao pós-abolição. Em Violeta & Angélica (1906), a

abolição provocou um desarranjo que só atingiu uma das duas famílias senhoriais retratadas e

justamente aquela que foi menos prudente e não soube unir-se e adaptar-se aos “tempos

difíceis”, segundo a narradora da trama. Em Marieta (1908b), já não há mais esperanças para

a família senhorial. Só lhe resta agora migrar e procurar meios de vida na cidade. Em Letícia

(1908a), a morte do senhor de engenho por causa das “pirraças” dos escravos provoca a

dispersão dos dependentes e a dissolução do mundo patriarcal.

Essas questões nos fornecem elementos para acreditar que a temática da abolição em

Anna Ribeiro não foi apenas um elemento realístico para a composição das suas obras, mas

uma, ou melhor, várias tentativas de interpretação daquele período, que vão de uma análise

mais otimista em Dulce e Alina (1901), passando pelo crescente ressentimento em Violeta &

Angélica (1906), à uma análise bem pessimista em Marieta e em Letícia (1908a).

Em torno desses três contos e do romance emerge uma das hipóteses exploradas nesse

estudo, que foi se fortalecendo no decorrer da pesquisa: nos três contos publicados

seqüencialmente em 1901, 1906 e 1908, Anna Ribeiro escreve uma história da decadência das

famílias patriarcais tomando como pano de fundo o processo abolicionista e a crise da

economia açucareira; no romance ela estabelece uma síntese interpretativa contida nos textos

anteriores. Os dois últimos trabalhos são publicados nesse último ano [1908], duas décadas

após a abolição da escravatura e compõem as últimas menções da autora sobre a decadência

do mundo senhorial.

Como representação do mundo senhorial em declínio no Recôncavo no século XIX,

decidiu-se dividir os resultados da pesquisa em três partes: o primeiro analisa o discurso

paternalista presente em Anna Ribeiro, o segundo trabalha com o processo de declínio da elite

agrária nos fins do século XIX e o terceiro aborda, em perspectiva de síntese, a decadência da

família senhorial.

O capítulo I analisa a ideologia senhorial e suas representações de riqueza e poder em

“tempos de glórias”. É traçado um paralelo entre o conto Dulce & Alina e o romance Letícia,

para demonstrar a ideologia senhorial de um lugar social bem peculiar: o da senhora de

engenho. Assim, o paternalismo é descrito “por dentro” e “de lado”, por alguém que, não

sendo o centro do mundo patriarcal, o observou e o sentiu de perto.

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No capítulo II serão analisadas as representações de Anna Ribeiro sobre a decadente

situação da família senhorial do Recôncavo baiano. Para isso, é feita uma leitura do conto

Violeta & Angélica em paralelo ao romance Letícia, numa perspectiva histórica. São expostos

também os eventos que marcaram a memória da elite advinda do mundo escravista do século

XIX.

O capítulo III destaca a decadência da elite senhorial do Recôncavo analisando alguns

personagens subalternos nos contos de Anna Ribeiro. É analisada também a questão da

construção das imagens nostálgicas dos ambientes pré e pós-abolição em Anna Ribeiro como

representação do fim do mundo senhorial. A última sessão é voltada para o conto Marieta,

narrativa que aborda um momento posterior decadência senhorial: o do êxodo para a capital.

Do auge do mundo senhorial ao seu fim, tanto a trilogia dos contos de Anna Ribeiro

quanto a síntese expressa em seu romance demonstram um processo de declínio que culmina

na morte desse mundo e no saudosismo pelos “tempos de glórias”.

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CAPÍTULO I

UMA PROSA PATERNALISTA

Nos primeiros anos do Século XX, Anna Ribeiro publicou três contos em jornais da

cidade de Salvador, cujo tema central era a decadência das famílias senhoriais nas últimas

décadas do século XIX. Intituladas “Cenas do Recôncavo” as histórias se passavam em

engenhos, cujo recorte temporal remetia à Bahia entre 1880 e 1890. O mundo senhorial em

seu auge, declínio e morte foram recriados em cada um destes contos.

Essas narrativas trazem alguma coisa de peculiar: uma visão distinta do mundo

patriarcal que ganhou traços característicos em virtude do lugar social de quem as escreveu:

uma (ex)senhora de engenho. É dentro desse conjunto de representações que desponta um

mundo paternalista idealizado por uma senhora de engenho, saudosa “pelos bons tempos que

se foram”, e que recai inevitavelmente nas lamentações de “tempos de infortúnios”. Nesse

momento, ela procura vincular o fim de um mundo onde se vivia uma vida “quase patriarcal”,

como ela mesma dizia, à abolição da escravatura.

Em Anna Ribeiro residem algumas peculiaridades interessantes: uma mulher da classe

dominante expõe – provavelmente sem essa intenção – as contradições existentes no bojo da

ideologia paternalista, ao mesmo tempo em que externaliza os traumas de uma elite que viu a

falência de tal lógica se concretizar. O paternalismo era um jogo que podia ser jogado não só

pelos detentores do poder, mas também por jogadores presumivelmente inofensivos – os

dependentes. Talvez Anna Ribeiro não estivesse, por exemplo, cônscia de que ao registrar “as

lisonjas” e “bajulações” dos subalternos denotava algumas formas de manipulação utilizadas

por estes em seu próprio favor. Isto será aqui abordado através da análise de personagens que

representam subalternos como a Dona Plácida e o Sr. Pinto em Dulce & Alina. Eles

conseguem manipular seu senhor e sua senhora, conseguindo concessões sem que para isto

precisem afrontá-los de maneira ostensiva.

A implosão da ideologia paternalista remete ao fato de que a forma como os senhores

pensavam as relações com estes subalternos não condizia com a forma como, os subalternos,

pensavam suas relações com seus senhores. Dessas contradições é que se compõe a escrita de

Anna Ribeiro. O que se procura demonstrar é que existiu uma ordem interpretativa e uma

construção saudosista do declínio desse mundo, sendo que o 13 de maio assume um caráter

simbólico decisivo no processo de escrita dos enredos. Dessa forma, a visão de um mundo

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afortunado e cheio de provisões, mostrado inicialmente em Dulce & Alina, sofre modificações

nos dois contos posteriores – Violeta & Angélica (1906) e Marieta (1908) –, e finalmente uma

síntese interpretativa no romance Letícia (1908). A construção literária do declínio do mundo

senhorial, em Anna Ribeiro, está ligada aos acontecimentos que se deram na sociedade baiana

e em sua vida no decorrer da década de 1910. O que se observa, portanto, é que existe uma

tentativa de reescrever uma história do processo que envolveu o esgotamento do mundo

patriarcal, fundado na cana-de-açúcar para a exportação, em função de acontecimentos que

teriam vitimizado a “classe muito abastada dos senhores de engenho”. O que na verdade

significaria um discurso sobre os infortúnios dessa elite frente à nova conjuntura sócio-

econômica baiana durante a primeira República.

Nesse capítulo, além da análise de como se dá a construção de discursos nos três

contos e no romance, referentes ao declínio do mundo senhorial, será visto o discurso

paternalista como dispositivo ideológico que fundamenta a visão de Anna Ribeiro e será

analisado o contexto histórico que referenciou as suas obras. Aqui também serão analisados

alguns desses artifícios destacando a construção de tipos sociais da escritora. Tenta-se

demostrar ainda as insistentes e graduais tentativas de construir sucessivas versões sobre a

história do Recôncavo baiano nas últimas décadas do século XIX, enfatizando o declínio do

mundo senhorial. Essas tentativas se deram nos três contos publicados ao longo da década de

1910 – Dulce & Alina (1901) Violeta & Angélica (1906) e Marieta (1908) –, e foram

sintetizadas no romance Letícia (1908).

Os Araújo Góes e a Bahia do século XIX: o mundo de Anna Ribeiro e de seus personagens

Anna Ribeiro pertencia a uma das famílias mais tradicionais da Bahia. Esse grupo

familiar estava ligado a outros como os Berenguer, os Calmon, os Mariani etc. Foi no século

XIX que os Araújo Góes se instalaram nos arredores de Santana do Catu, formando o que

Kátia Mattoso chama de clã. Eram inúmeros “primos e primas”, “tios e tias”, cujo poder

social e econômico foi se instituindo na medida em que, ainda na primeira metade daquele

século, a economia açucareira ia crescendo. Assim, pode-se considerar a familiar de Anna

Ribeiro como uma representante da aristocracia rural baiana, que enriqueceu com a

exportação de cana-de-açúcar e com a exploração da mão-de-obra escrava.

A sociedade baiana do século XIX se apresentava de forma fortemente hierarquizada.

No topo da sociedade do Recôncavo se encontrava uma aristocracia rural que aspirava à

condições de nobreza nos moldes do que se verificava em Portugal. Kátia Mattoso reitera que

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no Brasil uma pessoa nobre poderia ser reconhecida pela sua linhagem ou pela colocação de

seus bens e educação a serviço da pátria. Mesmo que um indivíduo não fosse fidalgo de

linhagem (filho d’algo), poderia ser “agraciado” pelo imperador de acordo com a sua

disposição em “servir” ao império24. Nos Longos serões do campo: infância e juventude,

Anna Ribeiro faz uma elucidativa referencia a esse respeito:

[...] os Araújo Góes, do Catu, que ali ocupavam vasta área de território, gozaram sempre da reputação de homens probos, cumpridores de seus contratos, nunca desmentindo da espécie de aristocracia formada pela classe muito considerada dos senhores de engenho, que era a segunda nobreza do país, como era na França a magistratura. Tendo gozado de grandes privilégios nos tempos coloniais, conservavam ainda bastantes garantias no Império, como ainda vi na minha mocidade25 (Itálico meu).

A tentativa de atribuir status de nobreza ao ramo paterno de sua genealogia se

estabelece de maneira aparentemente desinteressada, mas se revela tendenciosa logo nas

primeiras linhas do discurso, afinal os Araújo Góes eram homens “probos” (retos, dignos e

incorruptíveis), “cumpridores de contratos”, pertencentes à classe muito “considerada”. O

reconhecimento do espírito distinto que, segundo Anna Ribeiro todos atestavam, era o

primeiro de seus argumentos em busca de um auto-reconhecimento de nobreza. A família

Araújo Góes é uma das mais antigas e tradicionais da Bahia. Seu fundador português, Gaspar

de Araújo, originário da vila de Arcos de Val-de-Vez, no Minho, e sua Mulher Dona Catarina

de Góes, procedente da vila de Alemquer perto de Lisboa se instalaram em 1561 na Capitania

de Ilhéus. A Partir de 1800-1810 uma de suas descendências (Simeão de Araújo Góes) se

destaca na política e economia de Salvador e do Recôncavo. Três de seus membros foram

“agraciados” com títulos de baronato no decorrer do século XIX, período de ascensão

econômica e social dessa família26. Eles eram também políticos reconhecidos não só no

cenário baiano, como no Império.

O mais velho deles, Inocêncio Marques de Araújo Góes (1811-1897), o Barão de

Araújo Góes foi um dos grandes incentivadores da carreira literária de Anna Ribeiro. Ele

chegou a pedir ao Visconde de Taunay que fizesse o que Márcia Barreiros Leite27 chamou de

“batismo literário”, o que aconteceu através de um comentário para o prefácio da sua primeira

obra, A Filha de Jephté (1882).

24 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. A opulência na província da Bahia. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de. História Privada do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Vol. 02, p. 154. 25 BITTENCOURT. Op. cit., p.01. 26 MATTOSO, Op. cit. 27 LEITE, Márcia Maria Berreiros. Entre a tinta e o papel: memórias de leituras e escritas femininas na Bahia (1870-1920). Salvador: Quarteto, 2005.

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Ilustração 1 – Barão de Araújo Góes (1811-1897)

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Anna Ribeiro era muito amiga da família do Barão, freqüentando inclusive o salão de

sua esposa, referido por Wanderley Pinho como um dos mais badalados e tradicionais da

Bahia durante o Segundo Império28. Interessante notar que o Barão foi Deputado e Ministro

do Superior Tribunal de Justiça do Império quando se deu a Lei do 13 de Maio. Ele fez uma

pequena emenda ao texto assinado pela Princesa Isabel, que, segundo pensava, poderia causar

problemas jurídicos caso não fosse implementada. 29 Essa informação indica a posição

política do Barão acerca da abolição. Outro parente próximo que tinha provavelmente opinião

contrária era o Barão de São Miguel, Paulino César de Araújo Góes (1840-1936). Primo de

Anna Ribeiro, ele havia sido seu professor de História e Geografia, quando ela era jovem e

proprietário de um engenho vizinho ao da família da autora. Político e grande senhor de

escravos, envolveu-se em 1887, quando era Presidente da Câmara de Vereadores da então

Santana do Catu, com um abolicionista Alfredo Lage. Segundo Jailton Brito, o Barão de São

Miguel e o chefe de polícia local teriam ameaçado o abolicionista por acoitar e facilitar a fuga

de escravos30.

Outro familiar de Anna Ribeiro que também foi agraciado com o título de Barão foi

Antônio Calmon de Araújo Góes, cuja relação com a autora não pôde ser identificada, por não

haver referências ao seu nome em nenhum dos documentos pesquisados31. Além de

proprietário de engenho na cidade de Santana do Catu, o barão era considerado como um

homem de negócios e político, chegando a ser Presidente da Província da Bahia em 1896. O

destaque dos Araújo Góes no cenário baiano, era pelo visto, bastante destacado e essa posição

é de fato relembrada por Anna Ribeiro em suas memórias onde ela faz uma genealogia dos

seus antepassados.

Ao afirmar textualmente que os Araújo Góes não desmentiam a aristocracia formada

pelos considerados senhores de engenho, que seriam a “segunda nobreza do país”, a escritora

corrobora as informações anteriores. Mas é na parte final da sua narrativa que ela faz a

28 PINHO, Wanderley. Salões e damas no Segundo Reinado. 3ª ed. Livraria Martins: São Paulo, 1952. 29A nota do jornal é pequena mais reveladora: “à experiência de ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) do deputado baiano Barão de Araújo Góes, o projeto de lei que acaba com a escravidão pôde entrar em vigor imediatamente após ser sancionada pela Princesa Isabel. Araújo Góes conseguiu apoio do Plenário para inserir pequena e crucial emenda de redação ao Artigo 1º do texto original. Informação retirada do Jornal do Senado, edição comemorativa dos 120 anos da Lei áurea, disponível em: www.senado.gov.br/jornal/arquivos_jornal/arquivosPdf/encarte_abolicao.pdf, acesso em 06 de julho de 2008, às 21:34. 30 BRITO, Jailton Lima. A abolição na Bahia: 1870-1888. Salvador, CEB, 2003. pp. 158-160. 31 O silêncio de Anna Ribeiro acerca de um parente tão ilustre me gerou questionamentos que me levaram a identificar uma publicação de 1886, onde um promotor por nome Jayme Villas Boas acusa o Barão de ter assassinado seu próprio tio. Seria esse o motivo da autora ter suprimido o Barão de Camaçarí de sua biografia familiar? Sobre o crime que o barão cometeu ver VILLAS-BOAS. Jayme L., O crime do Catu: O desaparecimento do processo do Catu e os responsáveis por esse fato. Bahia Imprensa Popular. Salvador, 1886.

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afirmativa mais interessante: os Araújo Góes gozaram tanto de privilégios nos tempos

coloniais, quanto no império. Nos tempos coloniais seriam os próprios portugueses que

confirmavam a posição da família e no Império, o novo Estado brasileiro a sancionaria. Em

outro tempo, Anna Ribeiro refere-se a uma conversa que teriam ouvido do seu avô quando

esse estava para casar sua filha com Mathias Araújo Góes: “– (...) É da família Araújo Góes,

do Catu; e sei que é boa, (...) São de muito boa família e tem até fidalguia; não fazem por isso

cabedal porque são lavradores e homens dados ao trabalho” 32.

O caráter “modesto” das afirmações do patriarca dos Ribeiro vai de encontro ao

discurso que afirmava que os nobres de verdade não deveriam se gabar de sua posição,

embora atribua aos Araújo Góes uma possível fidalguia33. Kátia Mattoso ressalva que,

apesar da aspiração ao status de nobreza, os senhores de engenho constituíam-se essencialmente em uma aristocracia de riqueza e poder, que desempenhou e assumiu muitos papéis da nobreza portuguesa, mas nunca se tornou um Estado com bases autoritárias. É essa aristocracia que dá a Bahia certas tonalidades da sua opulência. 34

Entretanto, nas últimas décadas do século XIX a economia açucareira deu sinais de

desgaste. Desde o início da década de 1870, a lavoura mergulhou numa crise financeira que se

estendeu até o final do século XIX. A queda dos preços do açúcar nos mercados externos e a

concorrência do açúcar de beterraba diminuíram o volume de exportação do produto. Para

agravar a situação, a lavoura açucareira, extremamente dependente do trabalho escravo, vinha

sofrendo as conseqüências da extinção do tráfico africano, em 1850, e das sucessivas leis

emancipacionistas das décadas de 1870 e 188035. Esse processo é perceptível na própria

trajetória de Anna Ribeiro:

Circunstâncias supervenientes e imperiosas exigiram sua volta a condição de senhora de engenho. No exercício dessa missão construtora das finanças da família, revelou-se, como sempre, superiora, inflexível quanto ao cumprimento do dever, mas profundamente humana e generosa para todos aqueles que dela dependiam, até para os escravos36.

32 BITTENCOURT. Op. Cit. p. 07. 33 Vilhena registra que várias famílias baianas “passavam” por nobres, segundo ele, um “plebeu torna-se abjeto quando quer se faz passar por nobres, é não falar em seus escritos troças a propósito dos baianos que vivem a inventar para as próprias famílias genealogias tão longas quanto “a dos hebreus, e disputar nobreza com os grandes de todo o mundo (...)”. (SANTOS, Vilhena, A Bahia no século XVIII. Vol. I, p. 52). 34 MATTOSO. Kátia M. de Queirós. Bahia século XIX: Uma Província no império. 2ª Ed.Nova Fronteira. Rio de Janeiro. p. 156. 35 FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. p. 34 36MACHADO, Augusto Alexandre. A vida de Anna Ribeiro de Góes Bittencourt. Revista da Academia de Letras da Bahia, 1952. p.16.

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Ilustração 2 – Anna Ribeiro aos 30 anos de Idade [Foto de 1873]

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Mesmo se considerando “abolicionista”, Anna Ribeiro sabia da importância que os

escravos tinham no funcionamento do engenho. A “generosidade” de Anna Ribeiro ao que

parece não conseguiu evitar que em 1879 ela hipotecasse cerca de dez cativos, juntamente

com algumas propriedades rurais pertencentes à família37. Provavelmente essa transação deve

ter sido feita para tentar amenizar as tais “circunstâncias supervenientes” a que se referiu o

seu biografo na citação acima. A posição dela num momento economicamente adverso se

aproxima muito da que o Sr. Shelby tomou quando foi “obrigado” a vender o Pai Tomás para

saldar dívidas em A Cabana do Pai Tomás38. Esse romance, como será discutido, era um tipo

de manual da família de Anna Ribeiro para com o tratamento dos escravos. Talvez por isso,

uma situação aparentemente contraditória de uma “senhora de engenho abolicionista” que

hipoteca seus próprios escravos possa ser melhor compreendida. Tanto na ficção de Harriet

Stowe, quanto na vida de Anna Ribeiro as dificuldades financeiras eram uma “situação

adversa” que explicaria a utilização do poder de proprietários sobre os negros.

Fora essa situação “excepcional” da hipoteca dos dez escravos, a família de Anna

Ribeiro se dizia bastante “humana” com os negros. Mas ao se mostrar “profundamente

humana e generosa, até para os escravos”, o que se intencionava era criar relações de troca

entre senhores e cativos, como pode ser visto também na sua literatura. Ao se declarar

humanitária com os negros procurava-se exigir um espírito de agradecimento por parte deles.

São prerrogativas do mundo senhorial aplicadas no dia-a-dia desses engenhos e representada

em sua literatura.

A extinção do trabalho servil foi um processo que terminou com o decreto de 13 de

maio de 1888. Mesmo que a abolição tenha consistido num processo que se estendeu por

praticamente durante toda a segunda metade do século XIX, o 13 de maio de 1888

estabeleceu-se como um marco na memória social daqueles que à viveram, sobretudo dos

libertos e dos senhores. Para os senhores, Hebe Maria Matos avaliou que a abolição teve um

caráter traumático, pelo seu sentido irreversível e desarticulador de antigas relações de

subordinação e controle social39. Na Bahia, há registros de situações extremas de senhores que

se suicidaram após o 13 de maio40. A mensagem enviada pelos telégrafos para o interior

baiano causou apreensão nas elites locais, uma vez que, a abolição não aconteceu da maneira

que elas desejavam. As reivindicações feitas por parte dos proprietários baianos referente à

37 Arquivo Público do Estado da Bahia, Seção Judiciária, Livro 586, p. 20. 38 STOWE, Harriet B., A Cabana do Pai Tomás. 2ª ed. Reform. São Paulo. Ediouro, 2001. 39 Apud ALBUQUERQUE. Wlamyra R. de. A exaltação das diferenças: racialização, cultura e cidadania negra (Bahia, 1880-1900). Tese de Doutorado em História. Unicamp. Campinas, 2004. p. 89. 40 FRAGA FILHO. Op. cit., p. 132.

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indenização a ser paga pelo governo também não foram ouvidas. Para completar, muitos

agricultores reclamaram que a medida emancipadora foi tomada pela Coroa Brasileira sem

considerar as especificidades das províncias do norte, uma vez que era tempo de colheita

quando se deu o decreto da Princesa Isabel.

Nos engenhos da família Araújo Góes, após os festejos do dia 13 de maio de 1888, vários

negros abandonaram as senzalas e dirigiram-se a cidade de Salvador para tentar uma nova vida na

capital. Em plena época de colheita, os senhores se viram sem mão-de-obra para procederem a

moagem. Na sua já declinante situação econômica, a extinção da escravidão forçou vários

membros da família a tentar a vida na capital, como funcionários públicos.

A situação da família Araújo Góes se repetiu em vários engenhos de açúcar baianos.

Segundo Silvio Humberto dos Passos Cunha, a continuidade da crise da economia açucareira

baiana nesse período envolveu diversas ordens de fatores, entre eles a incapacidade crônica das

oligarquias açucareiras de criar as condições para o soerguimento da lavoura de cana e a disputa

entre as frações do capital baiano em torno da sucessão política e econômica dessas oligarquias41.

Walter Fraga Filho ressalta que na Bahia poucos senhores não guardaram daqueles momentos

amargas recordações da maneira como os antigos cativos passaram a se comportar, nos dias

seguintes à abolição42.

O contexto histórico e a tradição da família Araújo Góes forneceram a Anna Ribeiro,

elementos essenciais para a construção de suas narrativas. Compreender a sua obra sem esses

elementos contextuais limita a sua contribuição como representação daquela realidade. Não é por

coincidência que todos os romances da autora têm como protagonistas famílias senhoriais

tradicionais do Recôncavo e o que essas famílias sofrem com a desconsideração do governo no

ato da abolição. Na memória social da elite baiana ecoava o discurso de que a libertação dos

escravos não foi sentida nos grandes centros e sim no campo, onde eles seriam indispensáveis.

Mesmo os “senhores abolicionistas” defendiam uma “transição” sob o seu controle e com as

devidas “compensações". Nessa perspectiva é que foram construídos os personagens do Velho

Travassos e de Eurico, ambos integrantes da trama de Leticia: enquanto o primeiro é um típico

representante da elite senhorial do Recôncavo, cujo engenho herdara de seus antepassados, o

segundo é nascido na Corte e vive das rendas de aluguéis. Ambos são “abolicionistas”, mas

enxergam a escravidão e a abolição sob óticas bastantes diferentes, a partir de sua própria

realidade e sob valores distintos.

41 CUNHA, Op. cit., p. 125. 42 FRAGA FILHO. Op. cit., p. 129.

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Três contos e um romance

Ian Watt, em A ascensão do romance, delineia três componentes principais do modelo

de romance formatado na Europa no século XVII. Estudando as obras de Defoe, Richardson e

Fielding, ele salienta que o enredo, a personagem e a temática moral são elementos

fundamentais na estruturação desse modelo de escrita literária. O autor sugere que a

fidelidade desse gênero à experiência humana cotidiana depende diretamente de seu emprego

em uma escala temporal e na descrição de paisagens. Segundo ele, essas duas características

ajudam a compor o grau de verossimilhança que constituem o que ele chama de realismo

formal. O objetivo seria retratar a experiência humana de maneira mais “fiel à realidade”, ou

seja, expondo algumas verdades através do verossímil. Essas “verdades” são as temáticas

moralizantes que se instituem por dentro das narrativas. Para Watt:

a premissa básica ou convenção básica, de que o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações – detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias43.

O estilo de construção dos romances na Bahia do século XIX seguia o modelo

europeu. Neles predominava a verossimilhança como fator dominante nos enredos das

narrativas. Em Anna Ribeiro, essas características vão assumir alguns significados e objetivos

dos quais se podem destacar a utilização da ambientalização no Recôncavo como forma de

identificação com o leitor e a literatura de formação para moças, através das construções

moralizantes. Em suma, o molde do romance europeu analisado por Watt integra a literatura

de Anna Ribeiro, ou seja, a inserção do realismo formal acabou por integrar a estratégia da

autora para cumprir o seu projeto literário.

Anna Ribeiro publicou vários romances num longo período de tempo que se estendeu

de 1882 até o ano de 1921. A primeira publicação, A Filha de Jephté (1882) e última, Abigail

(1921), foram inspiradas na Bíblia, o que demonstram o forte caráter católico da escritora.

Reforçando a influência católica, a autora ainda publicou vários benditos, hinos, artigos e

poemas. Sob outra esfera, a escritora publicou cinco romances e três contos, dos quais dois;

Violeta & Angélica (1906) e Marieta (1908), foram recuperados no decorrer dessa pesquisa.

Vale destacar aqui que os três contos publicados por Anna Ribeiro foram todos eles

veiculados ao público nos folhetins de jornais. Talvez por isso a formatação deles aproxime-

43 WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 31.

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se do romance tanto na questão da temática e abordagem, quanto no número de páginas. A

similaridade entre os formatos dos contos e romances de Anna Ribeiro podem ser atribuídos

possivelmente a duas questões básicas: o estilo adotado dentro do projeto literário da autora

e/ou prováveis exigências dos editores dos jornais, uma vez que os folhetins deveriam ser um

pouco mais longos para prender o leitor pelo máximo de edições possíveis.

Da obra de Anna Ribeiro destacam-se três contos e um romance44, pela temática

voltada para a decadência senhorial baiana e pela publicação no mesmo momento histórico

[1910]. Essas quatro obras se passam no final do século XIX e início do século XX, época

que coincide com o declínio econômico da aristocracia do Recôncavo baiano.

Apenas na literatura a autora trata do declínio econômico e social da elite baiana. A

primeira questão que chama a atenção é a seqüência cronológica que a autora passa a adotar:

uma visão cada vez desanimadora da saudosa vida dos engenhos e a construção dos sentidos

em relação aos eventos que, segundo ela, motivaram o fim da “saudosa época”.

Dulce & Alina, conto publicado em forma de folhetim no jornal A Bahia, no ano de

1901, enfoca a história da família Figueredo, senhores do Recôncavo baiano. O conto destaca

o imaginário senhorial no seu auge e plenitude, através da expressão da vontade do Sr.

Figueiredo em relação à sua família e seus subalternos. Álvaro de Figueiredo era filho de um

senhor de engenho pouco abastado (em vista de numerosa prole de que era sobrecarregado),

que teve um casamento “vantajoso” com a filha de um grande senhor de engenho. Homem

prepotente e dominador, gostava de ostentar sua riqueza e poder perante aos seus numerosos

agregados e vizinhos.

Dona Emilia, a esposa do Sr. Figueredo era uma mulher inteligente, bela, rica e bem

educada, que perdeu seus pais ainda criança e foi criada por um tutor, no seio de uma família

em que não fora feliz. Ansiosa por sair de casa, ela se apaixona e casa com Álvaro e os dois

herdam o dote do seu falecido pai após o casamento. O casal tem duas filhas e um filho, sendo

que só as meninas são apresentadas na trama: a primeira chamava-se Dulce, parecida com a

mãe, uma menina inteligente e dedicada aos estudos, e aparentava cerca de trezes anos,

embora fosse madura para a sua tenra idade. A outra filha do casal era parecida com o pai e

chamava-se Alina. A menina é apresentada como “vadia”, desinteressada, rude e sem gosto

para os estudos. A família parecia viver feliz até que chega ao engenho o Sr. Pinto, um

44 Embora o formato dos três contos seja bem parecido com o de romances, no que diz respeito ao seu formato, adota-se aqui a discriminação adotada pelos jornais que publicaram as obras. Nos três contos, os jornais distinguem claramente esse formato, embora na obra seja difícil na prática diferenciá-los dos romances, tamanha a semelhança de abordagem e método utilizado pela autora.

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agregado explorador e asqueroso, que se aproveita do poder que alcança junto a Álvaro para

conseguir algumas vantagens econômicas.

Na primeira cena do conto a autora descreve um almoço em que Dulce chega dos seus

estudos na cidade de Salvador. Na reunião festiva começam os desentendimentos entre o casal

senhorial, por causa da impertinência do Sr. Pinto. Ele é, na verdade, o grande provocador dos

desentendimentos entre os cônjugues, visto que sob a sua “influência” Figueredo caiu no

mundo dos vícios e do adultério. Dona Emilia não aceitava as traições do marido e creditava

ao Sr. Pinto a influência “perniciosa” que o levara ao ponto de batizar uma filha com outra

mulher na igreja do arraial, tendo como padrinho da criança justamente o maléfico Sr. Pinto.

No decorrer da trama, outra subalterna ganha importância, quando se descobre que ela

teria contado sobre o adultério do senhor Álvaro à sua “comadre”. Isso faz com que o senhor

persiga todas as agregadas que faziam a “Corte” de sua mulher e que viviam às suas “custas”

por não saber quem de fato era a culpada. Para o Sr. Álvaro era inadmissível que as mulheres

que viviam sob os seus domínios o traíssem. Ele chega ao ponto de “afugentar” Dona Plácida,

antiga ama de Dulce, o que causa revolta em sua esposa e filhas, visto que a velha era

estimada por todos. Em contraposição a isso o Senhor propõe um “presente”, caso a criada

entregasse a verdadeira culpada. O silêncio da sua esposa e também da velha leva à suposição

de que talvez ela seja a verdadeira “mexeriqueira”, mas isso não é confirmado no decorrer da

trama. Entre os desentendimentos conjugais e os conflitos com os subalternos, Dulce e Alina,

rezam a Santana, para que ela possa uni-los novamente e trazer a “paz” de volta ao engenho.

Os pais presenciam a cena e resolvem esforçar-se para manter o casamento em nome da

felicidade das filhas e da conservação da família. Essa trama de Anna Ribeiro demonstra o

poder senhorial dentro da sociedade patriarcal do Recôncavo baiano do século XIX, sem,

contudo, deixar de expor as contradições desse mundo.

O segundo conto, publicado pelo Jornal de Noticias, em 1906, narra a história de duas

famílias pertencentes a mesma linhagem: os Bastos. Violeta & Angélica também ntem como

cenário o Recôncavo baiano. Porém, neste conto o tempo é mais bem delimitado que na

narrativa anterior: a história se deu no ano de 1888. Sofrendo com os revezes do 13 de maio,

os irmãos Alfredo e Alberto Bastos lutam para sobreviver após a crise econômica provocada

pela “falta de braços” na lavoura canavieira. A trama é divida em dois núcleos: enquanto a

família de Alfredo Bastos é resignada, trabalhadora e unida; a família de Alberto esbanja os

recursos, é orgulhosa e acaba perdendo toda a sua herdade.

Alfredo Bastos é casado com dona Flora, e tem duas filhas: Violeta e Angélica. As

duas meninas receberam esses nomes do avô. O velho Bastos dizia que a “deusa da natureza”

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deveria ter filhas com nomes de flores. Após a Lei da Princesa Isabel, o casal teve de passar

por várias situações adversas que se estenderam do abandono dos negros em plena fase de

colheita da lavoura, até as idas obrigatórias das ex-senhoras para a cozinha para realizar o

trabalho que antes era feito pelas escravas. O rancor e ódio que a “nobre família” viveu por

causa da “ingratidão” dos negros são exemplificados através dos casos de duas de suas ex-

escravas: Maria e Josefa. Enquanto a primeira abandonou os ex-senhores sem nem ao menos

dar satisfações, a segunda resolveu ficar e trabalhar de graça para tentar “retribuir” a bondade

daqueles que a trataram tão bem no tempo da escravidão.

Outra questão relevante nessa obra se sucede no segundo núcleo da narrativa. Alberto

Bastos era médico e senhor de engenho. Gostava de esbanjar poder e dinheiro nos tempos “de

glórias dos agricultores do Recôncavo”, mas em meio aos tempos difíceis, continuava a gastar

e se endividar até que se viu obrigado a vender sua propriedade para pagar seus credores e

com o resto mudou-se para São Paulo, onde tinha ouvido que o café estava enriquecendo a

vários fazendeiros. Sua mulher e filha tinham o mesmo nome: Rosa. Tanto uma como a outra

eram fúteis e cediam às bajulações das escravas e agregadas, o que as tornou “exaltadas”.

Além disso, elas não ajudavam Alberto como suas parentas, que chegaram a trabalhar para

auxiliar seu irmão.

Enquanto a família de Alfredo era o modelo de união, sendo bastatnte religiosa e

resignada, a família de Alberto tipificava a família imprudente. Eram duas maneiras possíveis

de atravessar os momentos difíceis que se deram com o 13 de maio. A trama termina com o

restabelecimento do engenho de Alfredo, e o casamento de uma das suas filhas, Violeta.

No outro núcleo, Alberto perde tudo o que tinha em terras paulistas ao ser passado

para traz por um sócio aproveitador, e fica viúvo. De volta à Bahia, Alberto foi ajudado pela

sua sobrinha Angélica, que, renunciando a um possível casamento, o ajudou a administrar a

sua casa e seus exíguos recursos. “Angélica era semelhante à Bertha do “Til”, cuja alma, diz

Alencar, fora criada para perfumar os abismos da miséria, que se cavam nas almas subvertidas

pela desgraça!”. Era a flor da caridade, alma sóror.”45 Com essas palavras a autora termina o

conto.

Marieta, publicado nos folhetins do Jornal de Notícias no ano de 1908, narra a história

de uma família de lavradores do campo que migra para a cidade de Salvador, em virtude das

dificuldades que se processavam na zona rural e da busca por uma melhor oportunidade de

45 BITTENCOURT. Violeta e Angélica. Op. cit.

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estudos para os filhos. Entre os filhos do casal, Adriano e Maura Silva, estava uma jovem

“resignada” chamada Marieta.

A família Silva é descendente de uma linhagem tradicional dos ex-senhores do

Recôncavo, mas é incapaz de manter sua propriedade rural. Adriano Silva se torna um

funcionário público cujo ordenado mal dá para sustentar sua própria família. Endividado, o

chefe da família é ajudado pelos filhos, Osvaldo, Arnaldo e Marieta. A moça estuda e se torna

professora, ajudando os seus pais a sustentar a casa. Logo depois se apaixona por um jovem

chamado Jorge. O jovem é membro de uma “abastada” família da capital, mas tem que

convencer seus pais de que a rapariga é “merecedora de seu amor” o que só acontece depois

que o rapaz descobre as origens “nobres” de sua amada. Resolvidas as dúvidas familiares, os

jovens realizam o consórcio matrimonial e vivem o seu grande amor.

Letícia, romance publicado em 1908, é a obra mais completa de Anna Ribeiro, pois

sintetiza o auge, a crise e a decadência do mundo senhorial. A história começa no ano de

1887, quando a jovem Letícia tenta convencer o seu pai, o velho Travassos, do seu casamento

com o jovem advogado da Corte, Eurico. Como todas as obras da autora, o palco da trama é

mais uma vez o Recôncavo baiano do final do século XIX.

Letícia é uma moça bela, filha de um “abastado” senhor de engenho, mas que era

“exaltada” por causa de leituras impróprias para a uma moça de sua idade. O “espírito

romanesco" da jovem a faz se apaixonar por um jovem carioca. Eurico era um abolicionista

radical, advogado, dado aos vícios, jogatina e filho de um pai de mesma índole. Ele conhece

Letícia em uma badalada festa no Rio de Janeiro. Mesmo com a oposição do Velho

Travassos, Letícia se casa com Eurico e vai morar no Corte. A moça acaba sofrendo com as

traições do marido e com o fato de não se julgar à sua altura, visto que fora “uma jovem

criada no campo”, enquanto o rapaz é um típico homem da cidade.

Uma doença contraída pelo Velho Travassos faz com que sua filha retorne para o

interior da Bahia. A tal doença é atribuída à “rebeldia e à ingratidão” dos ex-escravos.

Sozinho, o já idoso proprietário havia convidado seu genro a assumir os negócios da família,

mas ele rejeitou, afirmando que não tinha jeito para a vida no campo. Enquanto Letícia

cuidava do pai, Eurico mantinha um caso amoroso com Edelvira, uma atriz, com quem tem

um filho. A situação precária do casamento dos jovens e a morte do Sr. Travassos provocam o

“amadurecimento” de Letícia, que vende a propriedade do pai e vai morar na ilha de Itaparica.

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Ilustração 3 – Capa do conto Violeta & Angélica, [Jornal de Notícias, 1906]

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Abandonado por Edelvira, Eurico retorna para a Bahia onde fica doente e recebe os

cuidados de sua esposa, mas ela não faz as pazes com ele até ver o seu arrependimento, o que

por fim acontece. Casamento restaurado, os dois reatam os laços de amor. Em meio à história

de Eurico e Letícia é discutido o processo da abolição da escravatura e mostra alguns embates

de idéias entre escravocratas e abolicionistas e a sorte de alguns personagens que viveram

esse processo.

Esses três contos e um romance reunidos fornecem uma releitura das representações

oferecidas por uma mulher da elite baiana sobre o seu processo de decadência do Recôncavo.

Essas quatro obras se entrelaçam e reconstroem a trajetória dessa elite, sob o viés paternalista

de Anna Ribeiro.

Tipos sociais e a construção de modelos (im)possíveis

A segunda fase de escrita literária de Anna Ribeiro seguiu uma linha de anseio

interpretativo acerca da experiência histórica da Bahia ocorrida no último quartel do século

XIX. Esse olhar foi lançado durante a primeira década da república, momento em que a Bahia

passou a ocupar o segundo plano na ordem política nacional e que a aristocracia baiana do

Recôncavo deixou de ter a expressão social e principalmente econômica de outrora. Nos dois

volumes do livro de memórias de autoria de Anna Ribeiro não existe sequer uma referência ao

processo de abolição da escravatura e ao período pós-abolição. A autora se restringe apenas à

sua infância, juventude, casamento e convicções religiosas.

Os contos Violeta & Angélica e Marieta, publicados pelo Jornal de Notícias

respectivamente em 1906 e 1908, que seguem o mesmo estilo do conto Dulce & Alina,

publicado pelo jornal A Bahia, em 1901. A temática histórica central nos três contos é a

mesma: o período subseqüente à abolição da escravatura. Nesse período a autora ainda

publicou o romance Letícia que tinha também como temática central as experiências do pós-

abolição.

A primeira questão que chama a atenção nas narrativas analisadas é que, em seqüência

cronológica, a autora passa a ter uma visão cada vez menos positiva acerca do período

interpretado. Em Dulce & Alina (1901), quase não existem referências à abolição e ao pós-

abolição. Em Violeta & Angélica (1906), a abolição provocou um desarranjo que só atingiu

uma das duas famílias senhoriais retratadas e justamente aquela que foi menos prudente e não

soube se unir e se adaptar aos “tempos difíceis”, segundo a autora. Em Marieta (1908), já não

há mais esperanças para a família senhorial. Só lhe resta agora migrar e procurar meios de

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vida na cidade. Em Letícia (1908), a morte do senhor de engenho por causa das “pirraças” dos

escravos provoca a dispersão dos dependentes e a dissolução do mundo patriarcal.

Os títulos dos contos vêm acompanhados pelo subtítulo “cenas do Recôncavo”, e este

– não por acaso –, desaparece em Marieta. Mesmo que a narrativa se inicie ainda no campo –

no Recôncavo – a autora não dá continuidade à série “cenas do recôncavo”, pois esse mundo

já fora desintegrado para ela. Em Letícia, no mesmo ano da publicação de Marieta, a autora

ainda permanece nessa temática. Seu romance, que ficou inédito trata da vida urbana, ou seja,

com as publicações de 1908, a autora encerrou o seu anseio interpretativo sobre o processo da

abolição e pós-abolição. Nunca mais se leria novas histórias sobre as “cenas do Recôncavo”.

Uma das questões mais contundentes da obra de Anna Ribeiro é a sua identificação

com as personagens, infundindo um tom autobiográfico em suas obras. Um bom exemplo

dessa questão está na caracterização das famílias senhoriais que protagonizam as narrativas.

Os sobrenomes de todas elas têm ascendência portuguesa da mesma região de onde vieram os

antepassados da autora. São também sobrenomes – da família real e das fictícias –, de cristãos

novos, nomes originários da relação colonial Portugal/Brasil. São caracterizadas como nobres

e abastadas famílias do Recôncavo, cujos personagens são seus descendentes. A vontade de

nobreza, centrada nas glórias do passado, apresentam-se como uma constante. Esses

elementos são importantes, pois evidenciam uma relação entre a identidade cultural da autora

e as suas heroínas e fortalecem a idéia de seriação interpretativa entre os três contos e o

romance.

Uma última questão refere-se à possibilidade de que, em Letícia, Anna Ribeiro

sintetizou as interpretações contidas nos três contos publicados ao longo da década de 1910.

Todos os elementos históricos contidos neles estão presentes nesse romance. Desde o poder

senhorial e sua ideologia paternalista – visto em Dulce e Alina –, a ingratidão dos escravos –

observada em Violeta e Angélica –, até a migração para a cidade – retratada em Marieta. Os

tipos sociais também são sintetizados: existe o nobre e forte senhor, os senhores escravocratas

“atrasados”, o escravo ingrato, o agregado manipulador, a mulher forte capaz de tomar conta

dos negócios da família ou de trabalhar para fora se possível for. Em todos eles está também

presente a tentativa da autora de construir uma versão para a história da Bahia dos fins do

século XIX.

Anna Ribeiro tinha uma visão de que os tipos registrados por ela deveriam ser aqueles

que melhor “representassem” a sociedade. Entretanto, ao delinear tipos sociais “não

aconselháveis”, a autora deixou anotados outros tipos que divergiam da sua forma de pensar o

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mundo, e que certamente estavam presentes na visão dos leitores de sua época, mesmo que

negativamente.

Alguns indícios suscitaram a idéia de explorar a possibilidade de que ela tinha

consciência de que movia as suas personagens em direção à instituição de certos tipos sociais,

cujos formatos iniciais de expressão seriam a sua nomeação a pretexto de uma

individualização tipológica. No artigo Exaltação, onde Anna Ribeiro analisa o romance de

Albertina Bertha, ficam claras as suas idéias acerca da utilização dos tipos nas narrativas

literárias:

O essencial será o conjunto dos bons princípios, das idéias sãs, o caráter dos personagens que, embora imaginários, devem ser verdadeira imagem dos caracteres que apresenta a humanidade em suas múltiplas variedades. (...) Apresentar tipos inverossímeis ou então um infeliz desequilibrado, ornado das jóias estilísticas como uma cousa comum e usual, é inconveniente e até perigoso. (...) Que triste idéia farão os vindouros da mulher de nosso século, se julgarem verossímeis os tipos representados por alguns romances, entre os quais podemos citar a Exaltação!46 [grifos meus]

Nesse artigo, Anna Ribeiro faz críticas ao romance Exaltação, por achar que os tipos

expressos nele não correspondiam à realidade, pois eram muito “desfrutáveis”, o que podia

dar a idéia aos leitores “do próximo século” de que as mulheres daquele tempo eram tão

frívolas quanto as personagens daquela trama. Ou seja, Anna Ribeiro acusa a romancista

Albertina Bertha de tentar passar à posteridade, tipos “inverossímeis” que não correspondiam

à maioria das mulheres – leitoras – contemporâneas. Um dos pontos que chamam a atenção na

citação acima é que para a autora as personagens das narrativas literárias deveriam expor um

“conjunto dos bons princípios”, “das idéias” e do “caráter” que se aproximassem da

humanidade. Considera ainda que as personagens poderiam expressar as “múltiplas

variedades” de qualidades dessa mesma humanidade, ou seja, ela defende que dentro das

narrativas devem existir personagens que expressem as diferentes personalidades que a

realidade ofereceria ao olhar (re)criador do escritor literário. A terceira consideração ainda em

relação às referências trazidas na citação diz respeito a verossimilhança que os “tipos”

deveriam compor. Propositalmente o termo “tipo” aparece repetidamente acompanhada do

termo (in)verossímil, o que, ao que tudo indica, não era uma coincidência: a disposição das

palavras era uma forma de deixar claro ao leitor que os tipos sociais apresentados nas

narrativas literárias não deveriam deixar de se aproximar da realidade, de (re)criá-la.

Esses preceitos foram seguidos à risca pela escritora em seus próprios romances,

demonstrando como ela inscrevia tipos sociais e como ela os individualizava, guardando

46 BITTENCOURT, Exaltação. Op. cit., p. 91-93.

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personalidades distintas retiradas das “inspirações pessoais”, sociais e de suas leituras. Ao

tornar inteligível o jogo de nomes empregados por Anna Ribeiro em suas tramas estabelece-se

maior compreensão da lógica de suas histórias. Nas obras publicadas na década de 1910,

Anna Ribeiro levou a cabo a intenção de construir seus “tipos” de acordo com a vigência da

trama e, ao mesmo tempo, buscando a individualização das personagens, para que, assim,

demonstrassem os modelos desejados. Constata-se que quase todos os personagens de Anna

Ribeiro que compõem as narrativas da segunda fase de sua produção têm significados fortes

que demarcam as suas personalidades, somando-se a um emaranhado de caracterizações

sociais, emocionais, psicológica etc. Tanto os personagens centrais quanto os secundários

mereceram esse cuidado da escritora. Os textos ganham sentidos bem mais profundos e

inteligíveis se forem estudados nessa perspectiva.

Ian Watt assinala que uma das maneiras pela qual o romancista indica sua intenção de

apresentar um personagem como um indivíduo particular é nomeando-a da mesma forma que

os indivíduos particulares são nomeados na vida real. Uma das estratégias de individualização

dos personagens é o status epistemológico dos nomes, embora eles por si só não dêem conta

da complexidade dos personagens47. Mesmo assim, como reitera Watt, “os nomes próprios

(...) são a expressão verbal da identidade particular”48. A análise dos três contos e do romance

aqui analisados sustentou a idéia de que Anna Ribeiro se utilizou da etimologia dos nomes

dos seus personagens para ajudar a compor os seus perfis. Dos trinta três personagens

identificados, trinta apresentaram significados vinculados aos seus respectivos perfis, sendo

que em alguns casos a etimologia dos nomes e os perfis dos respectivos personagens são

expostos nas próprias narrativas, como será visto mais adiante.

Em Anna Ribeiro, esse critério de individualização de personagem, embora não seja o

único, assume um caráter bastante peculiar, pois ao mesmo tempo em que designa um

indivíduo particular, aponta também para tipos sociais delimitados e contextualizados nas

tramas por outras estratégias de individualização a exemplo da precisão temporal, da

descrição do ambiente e da posição social dos personagens.

A relação entre nomes e personagens poderia escapar ao leitor, mas também poderia –

e pôde no caso dessa pesquisa – enriquecer a leitura de quem atentasse para esse detalhe.

Assim, Anna Ribeiro convidava a ler nas entrelinhas, alegorias e metáforas que fortaleceriam

a idéias que defendia em cada uma de suas histórias.

47 WATT. Op. cit., p. 19. 48 WATT. Op. cit., p. 19-21.

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Machado de Assis também se utilizou desse artifício para enriquecer o teor simbólico

de suas histórias conforme mostra Sidney Chalhoub. Em Helena, ele destaca um episódio que

aconteceu entre a jovem Helena e Estácio, quando a moça pede a ele que a ensine a cavalgar.

Um pouco mais adiante o rapaz acaba descobrindo que Helena sabia montar muito bem. A

personagem machadiana acaba enganando Estácio apenas para satisfazer a sua vontade,

fazendo-o pensar que ele estava, como professor, a ensiná-la equitação. O fundamental neste

contexto é que Helena sabe induzir em Estácio o comportamento que interessa a ela; em

outras palavras, a garota conhece perfeitamente as cadeias de causa e efeito que constituem a

estrutura mental do mancebo.

Chalhoub destaca que existia uma alegoria implícita no evento descrito: em Moema,

nome da égua de Helena, estava tipificado o verdadeiro caráter da moça, pois Moema

significa “mentira, no tupi guarani”. Outro significado em português para esse nome seria

“suave e meiga”. “Suave e meiga, mas dissimulada e mentirosa, eis a Helena que Estácio não

conseguia decifrar”. Por outro lado, Chalhoub observa que “Estácio” era na gíria carioca o

“sujeito tolo” e “fácil de roubar”. Estácio pouco ou nada entende dos movimentos de Helena.

Ou seja, Helena analisa a ideologia senhorial e persegue objetivos próprios por dentro de tal

ideologia, permanecendo por isso indecifrável para Estácio49.

Em Dulce e Alina, os nomes dos pais das protagonistas identificam e individualizam

as personagens no intuito de reforçar a sua tipologia. Dona Emília é uma mulher altiva e

soberba, que afronta constantemente o próprio esposo, principalmente depois que descobre

que ele teve um filho fora do casamento e que freqüentava o prostíbulo juntamente com o seu

agregado. O nome de dona Emília quer dizer justamente “enciumada” e “rival”, e é não só

uma alusão ao comportamento da “nobre” esposa, como também um indicativo da disputa que

ela trava pelo poder dentro da sua própria casa, que tradicionalmente deveria pertencer ao seu

esposo. O senhor Álvaro, como chefe da família, deveria proteger a sua prole e esposa,

administrando o seu dote, com o qual ficou rico, mas perde os direitos a partir do momento

em que deixa a sua posição de senhor. O nome “Álvaro” significa “aquele que defende a

todos” e anunciava a dominação do senhor ante à sua prole e tudo que está sob seus domínios.

Ao não cumprir a sua posição de chefe respeitável, e deixar que o nome da família

fosse desrespeitado publicamente, ao batizar na igreja a sua filha bastarda na frente de todo o

arraial, o senhor perde, na opinião da sua esposa, os seus direitos de “rei do lar”. Com base

49 CHALHOUB, A História Contada. Op. cit., pp. 99-104.

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nisto, ela nunca se cala e sempre questiona o marido, retrucando todas as vezes que ele

tentava justificar os seus atos de “maneira vil”.

Dona Emília tinha sido a grande herdeira da riqueza administrada pelo marido, que

havia casado com ela por causa das vantagens de tal consórcio. Essa questão é constantemente

utilizada por ela para tentar humilhar o marido. E ele argumenta que aumentou em três vezes

aquela fortuna, o que lhe garantiria todos os direitos sobre a herdade. Tal discurso dá margem

a pensar que as mulheres que viveram o mundo patriarcal não eram tão submissas à vontade

do marido, no entanto, a projeção de sua submissão na ideologia masculina remete a uma

idéia de uma débil condição, que só se processava dentro do mundo ideológico criado como

expressão de sua vontade. Estudos recentes demonstram que várias mulheres chegaram até

mesmo a dirigir engenhos com seus escravos e demais dependentes50.

A história ganha mais relevância quando se percebe que o comportamento das suas

filhas é na verdade uma alusão à natureza e personalidade de seus pais. A autora conta de uma

maneira um tanto quanto “desinteressada” o perfil das duas meninas, afirmando ser uma mais

parecida com a mãe e a outra com o pai. O que parece ser a descrição de duas irmãs que se

antagonizam, na verdade, reforça a exposição da identidade que a autora traça sobre o casal

senhorial e, de certa forma, isso faz com que eles acabem ocupando o episódio principal da

trama. O texto expressa melhor do que qualquer explicação:

Ora, Dulce, a primogênita de Figueiredo era um argumento vivo em favor de tal asserção. Muito parecida com sua mãe, prometia excedê-la em formosura e em dotes morais quando sua inteligência começou a manifestar-se. (...) Alina parecia-se com o pai, porém com probabilidade de ser mais bela51.

Essa explicação se torna compreensível quando entendemos porque Alina é

mencionada pelo narrador como “vadia” e de “inteligência inferior”, ao passo que Dulce é

chamada de “inteligente” e “Angélica”, ou seja, “um anjo”. O jogo de palavras se explícita

quando encontramos o significado dos nomes das raparigas: enquanto Dulce vem do latim

“meiga”, “doce” ou “tenra”, o que dona Emília era antes de descobrir as traições do marido.

Alina quer dizer “agulha” ou ainda “aquela que fere”, que foi o que o senhor de engenho fez

ao trair a esposa que o salvou de uma vida de pobreza, após casar-se com ela e herdar toda a

fortuna do seu pai.

Em suma, uma mulher doce e amável se torna rival do poderio e da chefia do senhor,

no entanto ele fere a “santidade e a perfeição da família patriarcal”, o que provoca o

50 A esse respeito ver REIS, Adriana Dantas. Cora: Lições de comportamento feminino na Bahia do século XIX. Salvador; Centro de Estudos B aianos da UFBA, 2000. 51BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Dulce e Alina. A Bahia. Salvador. 5-15 de junho/1901.

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desarranjo de papéis na casa-grande e o questionamento da senhora acerca do poder do

marido.

A ideologia senhorial e suas contra(di)ções

A leitura do conto Dulce & Alina toma outro rumo quando focalizamos os

personagens que representam os dependentes da casa dos Figueiredo. Na verdade, todo o

desarranjo conjugal é provocado por dois subalternos, que se aproveitam da influência que

têm sobre os seus senhores para conseguir tudo o que querem. A autora não poupa palavras

para culpar os dois subalternos por terem provocado tal situação no seio senhorial. O

problema começa com um senhor apresentado como “José Pinto”, que poderia ser muito bem

traduzido por “dependente”. Sobre a chegada do dito subalterno ao engenho dos Figueiredo,

refere-se a narradora:

Nesta época veio morar em uma fazenda perto da de Figueiredo, um indivíduo que em pouco tempo adquiriu sobre ele extraordinária influência. José Pinto, pequeno proprietário, de exíguos recursos, era dotado de inteligência pouco vulgar, embora sem cultivo. Manhoso, interesseiro e desmoralizado, encobriu estes defeitos com maneiras insinuantes, e por meio de lisonjas e serviços prestados, apossou-se em pouco tempo do ânimo do fazendeiro, o qual, entretanto se vangloriava de tê-lo sempre a mão como um subalterno ou factótum. Julgava-se o senhor quando era o escravo52.

José Pinto era uma pessoa inteligente. Ele sabia exatamente como manipular o seu

patrão em busca de vantagens, o que acabou por torná-lo tão influente sobre o senhor que este

fazia tudo o que ele queria. Para o senhor Figueiredo, ele estava no comando da relação com o

seu agregado, mas a narradora é enfática ao definir o que na verdade acontecera: “julgava-se o

senhor, quando era o escravo”. A política de dominação paternalista não pressupõe que os

dominados a conheçam e a manipulem em seu favor. Sobre isso, Sidney Chalhoub ressalva

que tal lógica de dominação tem como característica a inviolabilidade da vontade senhorial,

sendo que o mundo é representado na visão do dominador, uma vez que o poder econômico,

político e social parecem convergir sempre para o mesmo ponto, situado no topo de uma

pirâmide imaginaria53. No entanto, os dependentes ao conhecer intimamente a lógica dessa

ideologia transitavam no seio dela, sem, aparentemente, contradizê-la e formulando

estratégias de dissimulação com as quais conseguiam as vantagens que desejavam. Segundo a

52BITTENCOURT. Dulce e Alina. Op. cit. 53 CHALHOUB. Sidney. Machado de Assis Historiador. São Paulo: Companhia das letras, 2003.

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narradora, o Sr. Pinto, “ria-se interiormente dele, deixando-lhe essa ilusão e contentando-se

com os grandes proveitos para sua magra bolsa que em pouco tempo tornou-se obesa” 54.

A narradora denuncia aquilo que o Senhor era incapaz de perceber. Dentro da sua

ideologia, talvez ele nem conseguisse acreditar que o agregado tivesse a perspicácia e a

inteligência que ele de fato apresentava. Esse detalhe era um ponto a favor do tal Sr. Pinto,

pois enquanto Figueredo de nada desconfiasse “sua magra bolsa, ficaria obesa”. O mais

irônico disso tudo é o fato de que o agregado “ria-se interiormente”, pois estava plenamente

consciente de que Álvaro achava que “a sua vontade era cumprida acima de todas as coisas”.

Ilusões de um mundo imaginário, que só existia dentro de sua própria cabeça.

Situação semelhante Chalhoub observa em Dom casmurro, em relação ao agregado

José Dias. Para mostrar a Bentinho que esse subalterno seria aliado hábil na campanha para

evitar o seminário, Capitu lembra a sua ação na ocasião da ida a um teatro. Homem

dependente, vivendo de favor na propriedade de Santiago, José Dias constrói um argumento

para convencer a senhora Glória a enviar o menino [Bentinho] ao teatro. Na verdade, era o

agregado quem tinha realmente o desejo de fazê-lo – e arrumou um jeito de ir de graça, pois,

como não escapou a Capitu, a viúva pagara “a entrada aos dous”.

Chalhoub nota nessa passagem que, primeiro, em nenhum momento as prerrogativas

da vontade senhorial são questionadas – ao contrário, elas são reforçadas e ritualmente

reverenciadas a cada passo; segundo, aos dependentes resta perseguir objetivos tentando

provocar nos senhores os movimentos que interessavam a eles, dependentes. Em outras

palavras, impossibilitados de lutar abertamente por seus objetivos, José Dias e seus

semelhantes tentam obter seus desígnios fazendo com que seus senhores imaginem que é

vontade deles, senhores, fazer exatamente aquilo que eles, dependentes, querem que seja

feito55.

O paternalismo, como qualquer outra política de domínio, possuía uma tecnologia

própria, pertinente ao poder exercido em seu nome: rituais de afirmação, práticas de

dissimulação, estratégias para estigmatizar adversários sociais e políticos. Dessa forma, o Sr.

Pinto é tido como “manhoso”, “interesseiro” e “desmoralizado”. A agregada, que conta a sua

patroa sobre as traições do marido, é tida como “mexeriqueira” de “índole maléfica”, que se

aproveita da situação para tirar vantagens da pobre, mas “exaltada” Senhora.

A dona Emília não suportava José Pinto por perceber a sua “má influência” sobre o

esposo, mas não era capaz de perceber que de outro lado a “vil” agregada só lhe contou toda a

54BITTENCOURT. Dulce e Alina. Op. cit. 55 CHALHOUB, História Contada. Op. cit., pp. 98-99.

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verdade sobre a traição do marido por que queria conseguir alguma vantagem, o que de fato

também aconteceu. Convém ressalvar que paira no ar a dúvida, não resolvida na trama, de que

talvez a tal agregada seja Dona Plácida, mulher aparentemente resoluta a servir os senhores da

casa. Aqui a narradora aponta uma questão interessante: os senhores são capazes de

diagnosticar os “abusos” que os subalternos causam aos outros, mas não conseguem perceber

que elas próprias são vítimas da astúcia daqueles que dependem deles. Dona Emília

repetidamente menciona a sua teoria sobre o Sr. Pinto, mas não percebe que sua agregada só

lhe contou sobre a traição do marido para conseguir a confiança da sua senhora. Quem sabe a

tal agregada conseguiria as mesmas vantagens que o Sr. Pinto conseguiu de seu esposo?

Incluía-se na “moral da história” desses episódios uma crítica aos senhores e senhoras para

que atentassem para os “excessos” cometidos pelos seus subordinados.

Outra “Dona Plácida”, essa da ficção machadiana, também tinha mais ou menos as

mesmas características da agregada de Anna Ribeiro de igual nome. A Dona Plácida, a das

narrativas de Machado de Assis, também se utilizava do seu conhecimento acerca das

questões dos senhores para obter lucro. Em Memórias póstumas de Brás Cubas, Chalhoub vê

em Dona Plácida um exemplo do dependente que se aproveita das situações para conseguir a

satisfação de seus interesses. “Um massacre, um triunfo total a volubilidade senhorial, tal a

impressão que fica da leitura dessas passagens sobre Dona Plácida”, afirma Sidney

Chalhoub56. Do ponto de vista do realismo brasileiro, Dona Plácida compõe um tipo capital, e

já ficaram indicadas as correspondências com a estrutura social do país, conforme afirma

Roberto Schwarz57.

A Dona Plácida machadiana, assim como a “agregada” de Anna Ribeiro, era forçada a

ter que intervir nas questões do relacionamento do casal senhorial. A moradora da casinha da

Gamboa fora costureira e agregada da casa de Virgília, e era a intermediária dos amores de

Brás e Virgília. Mulher esforçada, trabalhadora, aceita para si o ofício de alcoviteira devido à

necessidade, porém com certo vexame. Dona Plácida é provavelmente a dependente mais

humilhada e tripudiada na história contada por Brás; ainda assim, cabe filtrar as ações

políticas possíveis à alcoviteira através das filigranas narrativas do “defunto autor”.

Brás, do alto da sua posição senhorial, conclui após a morte de Dona Plácida, que a

pobre mulher viera à existência porque era necessidade dele. Mas aquilo que Brás diz de

Dona Plácida não pode ser tudo sobre ela. Uma leitura dessa personagem revela que ela se

56 Idem, pp. 98-99. 57 SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. 3ª Ed. São Paulo: Ed. 34, 1997. p. 101.

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aproveitava da situação dos dois enamorados – Brás e Virgínia – para conseguir satisfazer

alguns de seus interesses. Chalhoub destaca que a impressão que fica é que a alcoviteira

manipulava as situações de crise dos amantes, tornando-as mais agudas, para em seguida

atribuir a si um papel decisivo na reconciliação, a fim de conseguir arrancar mais algum

dinheiro do rapaz. Chalhoub reitera que,

até a alcoviteira, pobre Dona Plácida, tripudiada, humilhada, massacrada, subordinada ao nariz de Brás, tinha o poder “universal” de contemplar o próprio nariz – ou seja, de encetar diálogos políticos com seus algozes e perseguir objetivos próprios no cerne do exercício da vontade senhorial58.

Porém, ao aderir ao perigoso jogo dos diálogos políticos entre os personagens –

senhor, senhora e dependentes –, esses poderiam levar a pior. Foi o que aconteceu quando

Figueiredo ficou sabendo das denúncias que alguns subalternos faziam contra ele. Sem saber

quem era a responsável, perseguiu e afugentou todas as “mexeriqueiras”, até expulsar dona

Plácida, a mesma “bondosa senhora” que havia sido ama de sua filha Dulce.

Intercedendo pela pobre senhora, Emília pediu ao esposo que reconsiderasse, e esse

retrucou dizendo que se ela entregasse a verdadeira “fofoqueira”, ele presentearia a

injustiçada senhora. Quanto à culpada... Álvaro de Figueredo vale-se de todo o seu poder para

neutralizar as forças daquela que o tinha traído. A insustentável situação explodiu no mesmo

dia que chegara ao engenho Dulce, sua filha, menina que amava muito D. Plácida:

Toda a habitação tinha um ar festivo; a mesa prometia ser lauta, mas não se sentia a animação, a ruidosa alegria da outra vez. Dir-se-ia que uma atmosfera de constrangimento pesava sobre todos. O serviço feito somente pelos fâmulos sob às ordens da dona da casa, era mais regular; mas ela preferia ver-se, como dantes, auxiliada por suas agregadas, que por assim dizer formavam sua corte, e aquela mudança era uma das coisas que mais lhe amarguravam o coração. Qual a causa de tal mudança? É que o viver dos dois cônjuges se tornava cada vez mais impossível! Figueiredo conhecendo que alguém o espionava para intrigá-lo com sua mulher, fez convergir suas suspeitas sobre as agregadas que gozavam da maior estima dela; e entendendo que dali se originavam todas as suas discórdias domésticas foi enxotando-as uma a uma. Louco, não via, como o egoísmo próprio do homem, que a causa única de tais dissensões era o seu deplorável procedimento. D. Emília protestava: as pobres mulheres inocentes de tal culpa, mas ele era inexorável. Desabafava nelas o seu furor, visto não poder fazê-lo com a esposa manietado pelo respeito que, mal grado seu, ainda lhe guardava. Entretanto a perigosa intrigante, conservava-se incólume! Avalia-se o que não sofreu D. Emília. Pode ser que em suas liberalidades para com essas mulheres, houvesse um pouco de vaidade, mas o principal móvel delas era a caridade - virtude inata em sua alma. Acrescente-se a isto a injustiça que por sua causa, embora independente de sua vontade, ela via praticar.

58 CHALHOUB, A História Contada. Op. cit., 112-115.

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A própria ama de Dulce não foi poupada. Neste dia Figueiredo foi encontrar a menina com os olhos inchados de chorar e tentava consolá-la quando a esposa que não se continha mais em presença da filha, veio dizer-lhe: Deus te tomará conta da injustiça que cometeste. Tomá-la-á primeiro a senhora, replicou. Basta que decline o nome daquela que lhe encheu os ouvidos dos aleivos que me levanta e eu mandarei chamar Plácida. Não só lhe pedirei perdão, como lhe darei um valioso presente. D. Emília fugiu à questão dando respostas evasivas e terminou, para desafogar sua cólera impotente, enchendo o marido de impropérios. As outras agregadas, embora não enxotadas, receando que chegasse a sua vez fugiram daquela casa, outrora olhada como o asilo da pobreza e a mansão da felicidade. O próprio José Pinto, apesar de ter cara dura, não pudera resistir os insultantes remoques, aos olhares de desprezo, com que justamente o feriu a ofendida senhora. Vingava-se, porém, arrastando cada vez mais longe, na senda do vício o cego esposo. [...]59

Sendo, em princípio, soberana e inviolável a vontade dos senhores, as ações dos outros

sujeitos históricos apareciam como decorrentes dessa vontade, como sua simples extensão. O

que escapava a esse enquadramento era insubordinação ou revolta, algo a ser “esmagado com

a incivilidade de que são sempre capazes os poderosos”. Ao que tudo indica, as “intrigas” da

agregada anônima provocaram a ira de Álvaro Figueredo. Sua astúcia havia sido descoberta

pelo senhor, o que o levou a tentar uma represália. Como não sabia de fato quem era a

responsável pelo “mexerico”, resolveu punir a toda a “corte de agregadas da esposa”. A tal

mexeriqueira apenas contou a traição do marido a D. Emília com o intuito de se promover

frente a ela, mas ela entrou num terreno perigoso, o do domínio senhorial.

Havia, porém, os territórios sociais mais ambíguos, indeterminados, nos quais práticas

políticas outras que não a aparente submissão ou o antagonismo aberto estavam instituídos e

eram constantemente acionadas. Eram os territórios do diálogo, das trocas cotidianas diretas

entre senhores e escravos, senhores e dependentes, conforme Sidney Chalhoub60. Arte de

sobrevivência em meio à tirania e à violência, exercida no centro do perigo, o discurso

político dos dominados envolvia a capacidade de atingir objetivos importantes utilizando

criativamente – reforçando, ao menos aparentemente – os rituais associados à própria

subordinação. Tais diálogos são sempre passíveis de deslizes, da palavra dita em má hora,

provocando em contrapartida os atos de agressão e humilhação dos detentores das

prerrogativas senhoriais. Foi o que aconteceu no episódio do mexerico analisado

anteriormente.

59 BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Dulce e Alina. Op. cit. 60 CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. Op. cit., pp. 58-93.

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O trecho citado acima sintetiza, em parte, o que foi dito até agora sobre as relações

senhor/agregado e senhora/agregada, na casa-grande dos Figueredo. D. Emília era caridosa,

mas não deixava de ter “certa vaidade” por ter uma corte de agregadas. Essas viviam

auxiliando sua senhora e recebiam em troca a sua “caridade”. Por outro lado, havia uma

agregada “perigosa” que continuava incólume. Álvaro expulsou até mesmo D. Plácida, que

era tida como a mais bondosa e fora ama de Dulce, o que coloca a questão do “quase

parentesco” que havia entre a moça e a “pobre” senhora. A interseção da menina em defesa de

sua agregada predileta levara Figueredo a tomar a “benevolente” decisão de punir apenas a

culpada, caso alguém a delatasse, e sugere que daria um presente a D. Plácida caso a

verdadeira culpada aparecesse. Será que ele estava querendo induzir a Senhora a trair a

verdadeira “mexeriqueira”? Ou será que era ela de fato a responsável pelo “delito” de causar

“intrigas” na casa dos Figueredo? Essas perguntas ficam sem respostas, pois, no contexto da

narrativa, não há a menor menção sobre o ocorrido, principalmente após a reconciliação entre

os esposos, provocada pela fé da oração das suas duas filhas.

Não se pode esquecer, no entanto, de mencionar o trecho final do episódio relatado

sucintamente nas últimas linhas, mas que traz à cena, mais uma vez, o asqueroso Sr. Pinto.

Diz a narradora: “O próprio José Pinto, apesar de ter cara dura, não pudera resistir os

insultantes remoques, aos olhares de desprezo, com que justamente o feriu a ofendida

senhora. Vingava-se, porém, arrastando cada vez mais longe, na senda do vício o cego

esposo”. Se, por um lado, é Álvaro Figueredo que não tolera mais os mexericos das

agregadas, por outro, D. Emília faz de tudo para se livrar do Sr. Pinto, a quem ela atribui a

degeneração do seu esposo. As investidas da senhora são bastante veementes, porém, parece

que seu adversário tinha uma força considerável, pois contava com o apoio e confiança do

senhor da casa. Ele se vingava das humilhações que sofria da Senhora “arrastando” ainda

mais o Sr. Álvaro no vício, o que demonstra o poder de manipulação que o agregado tinha

sobre o senhor da casa dos Figueredo.

Em Dulce & Alina se pode notar que embora o tema central esteja em torno da

restauração da vida conjugal de Álvaro e Emília, através da candura de suas duas filhas que

aparecem menos que os outros personagens, inclusive o Sr. Pinto, a narradora chama a

atenção para os males que se podem contrair quando se cede às “lisonjas” e “bajulações” dos

agregados. Tais expressões de “afeição” pelos senhores eram, na verdade, formas de obter

concessões de favores e às vezes até mesmo o controle das relações entre dominados e

dominadores, como era o caso de Álvaro de Figueredo.

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Em suma, toda a desarmonia no bojo da família senhorial fora provocada pelos “vis”

subalternos, o que só foi remediado com a intervenção “angelical e divina” das duas meninas.

No final da trama, depois de muitas brigas, de um lar quase destruído, os esposos reatam os

laços conjugais após presenciarem a duas meninas pedindo a Santana para que fizesse um

milagre e restituísse a paz em sua casa. Comovidos, os pais arrependem-se. O Senhor Álvaro

promete, em nome das filhas, reassumir o seu papel de “protetor” e a senhora Emília volta a

ser a “doce esposa” e não mais “rival”.

Em Violeta e Angélica, mesmo com os conselhos do seu irmão Alfredo – nome que

não por acaso significa “conselheiro” –, Alberto, que antes era o mais abastado senhor do seu

clã, desiste da vida nos campos baianos e vai morar na promissora região do Centro-Sul do

país, mas se dá mal ao ser traído pelo sócio e empobrecer, sendo amparado pela querida

sobrinha, que renuncia à sua vida de solteira para cuidar de seu Tio e de sua filha Rosa.

Os irmãos Alfredo e Alberto tiveram uma vida diferente. O primeiro fora antes

destinado ao sacerdócio, mas acabou como lavrador de seu pai e se casando com D. Flora,

uma humilde filha de um lavrador menos afortunado que ele. O segundo cursou medicina e

obteve um casamento “vantajoso” com D. Rosa, moça filha de abastado senhor de engenho do

Recôncavo. No decorrer da trama a narradora deixa claro que o primeiro casal alcança melhor

êxito nos tempos difíceis do que o segundo. Alfredo acaba em sua fazenda com algumas

riquezas, após suportar resignadamente os momentos de crise, enquanto Alberto comete a

“imprudência” de vender o engenho herdado por sua mulher e tentar a vida em São Paulo

como médico e plantador de café.

A trama oscila entre a harmonia da família senhorial chefiada pelo Senhor Alfredo,

que tem uma família estruturada por esposa e filhas, e a imprudência do seu irmão, o senhor

Alberto, antes mais rico e poderoso, além de médico e intelectual, mas que não sabe

administrar a sua riqueza e a “ostenta”, gastando mais do que devia e ficando por isso

endividado. As mulheres de sua casa não sabem como ajudá-lo, pelo contrário gasta tudo o

que podem, ostentam o luxo em momentos difíceis. Se atentarmos para o fato de que o nome

“Alfredo” vem do latim que significa conselheiro, enquanto Alberto significa “aquele que é

ilustre, famoso e notório”, entenderemos porque o tipo social do segundo representa o homem

que tem tudo: riqueza, fama, “cultura” e poder. E porque ele perde tudo por causa da

imprudência de não ouvir um conselho, do seu irmão, o “humilde” e “bom lavrador” Alfredo.

O trecho a seguir, que narra uma conversa entre os irmãos acerca da venda do engenho

pertencente a Alberto esclarece essa significação:

Alfredo ficou desapontado.

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Guardou por algum tempo silêncio, como a procurar na mente um argumento bastante convincente, para destruir o que ele classificava de rematada loucura do irmão. Depois perguntou: - Não me disseste, há tempos, que devias? - É verdade. A peste da cana, como sabes, diminuiu muito minhas safras. As despesas continuaram enormes, principalmente com as temporadas com a família na capital. - Fui adquirindo alguns compromissos. Depois da moléstia de minha mulher, avalias quanto gastei? - E quanto deves? Interrogou Alfredo? - Uns cinqüenta contos. - Bem; vamos que vendas o engenho por cem; ficarás com cinqüenta. O que é isto para a compra de uma boa fazenda de café em São Paulo? (...) - Alberto [disse Alfredo], tenho observado que todo aquele que se deixar arrebatar pela soberba, encontra a cada passo humilhações. Nós atravessamos uma época de privações. Em tais emergências é que se conhece a tempera do homem. E, com prazer o digo, tu tens te portado mal! - Como? - Cometendo excessos só próprios de rústicos e maus. Tu um homem ilustrado, um médico...! - Olha Alberto, minha mulher já previa o que sucedeu, quando esteve outro dia em sua casa, viu D. Antonia como propositadamente, instigar a rapariga a dizer-lhe desaforos, para dar ensejo ao que se deu e levar-te a fazer o que nunca fizeste como senhor de escravos, pois sempre foste humano. Toma o meu conselho, envia aquela senhora para a casa donde a trouxeste. A sua companhia vai tornando-se nociva a tua filha, uma menina tão boa. Vem com ela para nossa casa, como já te propus... Daqui mesmo podes dirigir tua propriedade. Tem prudência, deixa passar a onda, as coisas hão de chegar aos seus eixos... Alberto pareceu abalado; passeou pela varanda a largos passos, refletindo na proposta do irmão. O coração impelia-o a aceitar; mas, o demônio da soberba dominava-o61.

A conversa entre os irmãos mostra que Alfredo tinha esperanças que “os tempos de

privações” fossem apenas momentâneos. Alberto pensava diferente e achava que não

suportaria mais as dificuldades provocadas pelas dívidas, e nem lidar com “os rebeldes” e

“impertinentes” escravos. É nesse momento que Alfredo afirma: em sua opinião, as dívidas do

seu irmão foram contraídas por causa dos “excessos” que ele cometeu e que a situação do

irmão era na verdade o reflexo de um lar desajustado. Essa idéia se evidencia ainda mais

quando ele afirma que a sua esposa já havia percebido que as coisas não iam bem por causa

do mau tratamento de uma parenta – D. Antonia – com os escravos, o que seria um mau

exemplo para Rosa, sua filha. Ele encerra os seus conselhos pedindo ao irmão que viesse

morar em sua casa e de lá dirigir a sua propriedade. Essa afirmação pode parecer absurda, mas

parte do pressuposto religioso de que nenhum pai ou mãe pode dirigir bem alguma coisa,

qualquer que seja, se não sabe ao menos dirigir o próprio lar. Como na casa de Alberto isso

61 BITTENCOURT. Violeta e Angélica. Op. cit.

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não acontecia, pois sua esposa falecera, e sua parenta, D. Antonia era, na verdade, mais um

mau do que um bom exemplo, Alfredo o convida para morar na sua própria casa.

O capítulo é encerrado com a posição do narradora, que afirma: “o coração impelia-o a

aceitar; mas, o demônio da soberba dominava-o.” Aceitar a sugestão do irmão seria

humilhação demais para Alberto. Ele que antes fora mais rico e “ilustre” que o irmão, agora

ter que depender de seus favores? Seria admitir que não conseguiria mais ser um bom senhor

em sua própria casa, ou seja, que ele teria falhado como chefe da sua família. Seria admitir

que não pudesse mais sustentar-se dentro de seus próprios domínios. Ficaria subjugado ao seu

irmão, que antes fora um de seus lavradores, logo, iria depender daquele que um dia foi seu

dependente. Sua altivez e presunção, típica da visão senhorial, custar-lhe-ia muito caro, pois

ao não aceitar os conselhos de seu irmão, Alberto vendera todos os seus bens e acabara

perdendo-os em São Paulo, ao se associar com um homem que lhe traiu a confiança. No final

da trama, Alfredo conseguiu manter sua fazenda, enquanto seu irmão perdera tudo. A lição

final não consegue sair dos limites da ideologia paternalista e circunscreve as esperanças de

que a permanência num lar unido e fiel à religião garantiria a superação das crises. Mantendo,

contudo, os elementos da velha ordem senhorial.

Os nomes das flores são uma constante nesse conto: Dona Flora tem como filhas duas

lindas flores: Violeta e Angélica. Essas duas são cultivadas com desvelo nada mais nada

menos do que pela deusa da primavera e se tornam duas agradáveis meninas, que se esforçam

para ajudar o pai no engenho após a “traição” dos escravos. A relação feita pela narradora

entre nomes, modelos e personagens fica patente em uma passagem da trama, quando o sogro

de Dona Flora, discursa sobre o nome de sua neta, então recém nascida:

No fim daquele prazo realizou-se o casamento, com imenso jubilo do velho Bastos, que nesse período de tempo tivera ensejo de apreciar a futura filha, a quem começou logo a adorar. Subiu de ponto essa adoração, quando a nora o fez avô de uma linda menina. Veio logo a importante questão da escolha do nome. - A filha de Flora – a deusa das flores, deve ter o nome de uma flor, disse o velho, que tinha sua queda para a mitologia. - Rosa? Interrogou o pai. - Se concordassem, disse a jovem mãe, daremos o nome de Violeta, é a flor que simboliza a modéstia, uma das qualidades mais apreciáveis em uma menina62.

A metáfora se torna ainda mais significativa se pensarmos que as “flores”, cultivadas

pelo Sr. Alfredo Bastos e Dona Flora, contrastam com as “moitas de espinhos” referidas pelo

narrador no inicio da trama. O discurso acerca da “resignação” das moças em ajudar os seus

pais em dificuldades, fazendo o serviço que era dos escravos, cosendo roupas para vender e

62 Idem.

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conseguir ajudar no orçamento familiar contrasta ao mesmo tempo com o abandono dos

escravos que se mudam “bruscamente e sem avisos” para a cidade da Bahia (Salvador) e com

o mau comportamento de suas primas e tia que nada fazem para ajudar o Sr. Alfredo nesses

tempos difíceis além de ostentar riqueza e maltratar os empregados.

No segundo núcleo da trama está D. Rosa, tia das protagonistas, que contraiu um

casamento por conveniência com o Sr. Alfredo, mesmo sendo “como uma flor” que simboliza

a “beleza altiva e brilhante”, tem em si o estigma de ser “exaltada” e de ceder às “bajulações

dos escravos”. Não sendo uma mãe prestimosa deixa sua filha ir pelo mesmo caminho.

Cuidadosamente escolhido para essa personagem, D. Rosa tipifica a mulher imprudente que

não solidifica o seu lar, e antes voltada para os seus próprios interesses, como ferindo com

espinhos o marido quando não atendida em suas vãs vontades. A filha de Dona Rosa tem o

mesmo nome da mãe, e se vê sozinha após a morte dela. Criada por uma parenta, a menina se

torna como a mãe, bonita, boa, bem intencionada, porém, “exaltada” e “altiva”, qualidades

não recomendáveis à mulher “virtuosa”.

As tais “bajulações” que já tinham aparecido na narrativa anterior denotam, na

verdade, o conselho da narradora para não ceder às amizades com as subalternas, pois elas

faziam tudo que podiam para conseguir vantagens de seus senhores. Para a narradora, só as

mulheres “altivas” e “exaltadas” cediam a esse jogo de interesses. Ainda, segundo ela, fazia

parte da natureza dos subalternos realizarem esse tipo de prática. Entretanto, para a mulher

virtuosa cabia o papel de entrar no jogo discursivo com os subalternos, pois ela deveria

manter o equilíbrio entre o senhor e seus dependentes, ou seja, não deveriam se deixar levar

pelas adulações e ao mesmo tempo deveria cultivar a relação de compadrio que estabilizaria

as relações entre um grupo e outro. Nesse assunto, segundo Anna Ribeiro, sua mãe era muito

habilidosa. Nos Longos Serões do Campo, a narradora rememora a relação entre sua mãe e os

agregados: “À noite vinham alguns agregados, compadres de meu pai, conversar, às vezes

acompanhado por suas mulheres e filhas, que minha mãe recebia com toda benevolência, e eu

a isto, segundo exemplo, cedo me habituei” 63. Tratando da resposta ao “convite adulador” de

uma das agregadas na presença de uma amiga do Rio de Janeiro, a mãe de D. Anna respondia:

- Que haveremos de fazer minha amiga? Ela, coitada, imagina prestar-me um serviço. Recusá-lo seria magoá-la e, demais, uma descortesia que ninguém praticaria com um grande, embora nos aborrecesse ou privasse de qualquer divertimento. Não devemos, portanto, praticá-la com os que estão colocados em plano inferior a nós64.

63 BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Longos Serões do Campo: Infância e juventude. Organização e notas Maria Clara Mariani, - Rio Janeiro: Nova Fronteira, 1992. p. 179. 64 Ibid.

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O que aparentemente parece ser um ato de bondade contra os pobres significa, na

verdade, a manutenção das relações entre senhores e subalternos, nas quais o papel das

mulheres era importante, tanto que a lição fora logo aprendida por Anna Ribeiro: “Assim, a

pedido dos agregados, eu algumas vezes tocava e cantava qualquer música que sabia de cor

(...)” 65. Em outro trecho das suas memórias a narradora ratifica:

[Nas festas da casa-grande] Eram também convidados alguns desses agregados só pela estima ou deferência que mereciam do proprietário; iam como meros espectadores66. Alguns desses agregados, que se distinguiam por seu caráter ou serviços prestados, eram tratados com atenção67.

A relação entre senhores e subalternos consistia numa política complexa, cujas regras

eram definidas pelos dominadores, mas utilizadas também pelos dominados. Os códigos

paternalistas eram utilizados tanto por uns quanto por outros, e isso garantia àquele que

tivesse maior habilidade dentro desse campo, o privilégio de obter as vantagens desejadas. Foi

o que aconteceu com José Pinto em Dulce e Alina, que se transformou em “senhor do seu

próprio senhor”, nas palavras da narradora da trama. Essa relação também consistia no

equilíbrio através da dissimulação entre senhores – senhoras – e agregados. As trocas de

favores, as relações de compadrios, as concessões dos senhores revelam, na verdade, a

necessidade de manter determinado número de agregados. Por outro lado, as adulações, os

convites, a atenção demasiada, revelam, por parte dos agregados, a capacidade de transitar no

seio da ideologia paternalista num jogo perigoso, mas que fazia parte do cotidiano das

relações patriarcais.

Em Marieta, o cerne da trama está centrado na protagonista. Tão dedicada à família,

Marieta deixa de viver sua vida para ajudar Adriano e D. Maura Silva, seus pais, lavradores

que perderam tudo e tiveram que migrar para a cidade, onde o “bom esposo” se tornou

empregado no governo, por indicação de um padrinho. O baixo salário que ele recebia mal

dava para sustentar a família inviabilizando a educação dos filhos. Tanto o nome do pai como

o da mãe significa “aquilo ou aqueles que são escuros”, o que pode perfeitamente ser

traduzido como desprovidos de luz.

Interessante notar que o pai de Marieta não é chamado de “senhor” como aconteceu

aos pais de família das outras narrativas analisadas. Adriano, que no inicio da trama é

apresentado como um mero lavrador era, na verdade, um antigo abastado senhor de engenho

descendente “de umas das mais antigas e nobres famílias da Bahia”, que perdeu tudo, até

65 Ibid. 66 Ibid., p. 52. 67 Ibid., p. 60.

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mesmo o seu poder de sustentar a própria família, e por isso deixou de ser seu “senhor” para

se tornar apenas “Adriano”. Note-se que a narradora só revela esse “detalhe” quase no final da

trama, através de um personagem. O que parece algo sem importância, revela que a derrocada

de Adriano era maior do que se pensava: ele perdera não só a sua fortuna, mas a sua condição

pertencente à certa “fidalguia” e “nobreza”. Perdera também o domínio da situação da sua

própria família. A alegoria presente nesse conto está centrada na personagem principal da

trama: a “resignada” filha os iluminaria e os ajudaria a vencer os tempos adversos. Ao

demonstrar que a antiga família senhorial precisava agora do apoio de seus rebentos para

conseguir sustentar-se a si própria, a narradora – talvez sem ter a consciência – evidenciava o

fim para a concepção paternalista e patriarcalista desta mesma família.

O antigo senhor, outrora mantenedor da extensa família senhorial, agora se vê na

situação de ter que depender das mulheres, ou pior das filhas para prover a subsistência do lar.

Se compararmos os pais das protagonistas dos três contos, veremos que as suas atitudes e

comportamentos são bem distantes. O primeiro, o senhor Álvaro Figueiredo, ostentava o seu

poder, afirmando que todos dependiam dele. O segundo, o senhor Alfredo Bastos, ainda

mantém certa mentalidade paternalista em relação aos dependentes, mas já reconhece a

importância da ajuda dos outros na manutenção econômica e social do lar – só lembrar que

suas filhas e mulher chegam a ir para a cozinha, e também costuram para fora. No terceiro

caso, Adriano Silva praticamente não se impõe na trama, e tem que abandonar o Recôncavo

para tentar o sustento da família através do favor de um compadre da Cidade da Bahia. O

último está longe de demonstrar a altivez e o espírito paternalista do primeiro. Por outro lado,

as senhoras que antes tinham a função de manter coesas as relações paternalistas dentro das

posses do senhor, têm de redimensionar sua posição dentro da família. O grupo familiar, por

conseguinte, perde seu caráter extenso, típico do lar patriarcal, antes composto por uma

infinidade de afilhados, agregados e parentes. No último conto, ela [a família] aparece apenas

ao núcleo básico: pai, mãe e filhos.

Dessa forma, caracterizam-se as mudanças da família senhorial em Anna Ribeiro,

demarcada em três atos: os períodos de enriquecimento, de crise e decadência total da família

senhorial. Mas o anseio interpretativo acerca desse tema vai mais além: a narradora ainda

publicou um romance, com o qual ela fechou a sua série de considerações sobre as mudanças

enfrentadas na Bahia entre o final dos oitocentos e o início dos novecentos: Letícia foi o

fechamento dessa trama.

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Por dentro do paternalismo: Letícia

Olha, Letícia, quem vem ali! Assim dizia o senhor Travassos a sua gentil filha. Debruçada no parapeito do terraço parecia ela contemplar as flores do jardim que se ostentava bem cultivado e florido, em frente à bela casa campestre de seu pai. Mas no olhar ensombrado da moça via-se que seu pensamento vagava bem longe68.

No longínquo ano de 1887, Anna Ribeiro situa a história da jovem Letícia, filha de um

“abastado” senhor de engenho do Recôncavo baiano, que se apaixona por um advogado

abolicionista do Rio de Janeiro, o jovem Eurico Mendes. Letícia é uma menina dócil e de fino

trato, muito bem educada, que sofreu a desventura de ficar órfã de mãe ainda na adolescência.

Educada como uma dama, mesmo sem a presença da mãe, dominava inúmeras “prendas” que

destacariam qualquer moça de seu tempo: lia e falava francês, tocava piano, bordava e cosia

os belos vestidos... No entanto, segundo a narradora, a menina tinha o espírito muito

“exaltado”, pela leitura de “certos” romances, e nesse ponto, afirma a narradora, o pai tinha

falhado em sua educação: não lhe regulava as leituras. Romances com certas heroínas

“atiradas” teriam levado Letícia a se apaixonar por Eurico. O jovem era muito bem apanhado,

mas era filho de um homem “desmoralizado”, que abandonou a mulher e os filhos à própria

sorte, para viver suas “paixões infames”. “Este moço é o vivo retrato do pai”, dizia o senhor

Travassos, que em razão disso desaprovava o consórcio entre os dois amantes.

Os jovens conheceram-se em meio a uma festa no Rio de Janeiro e logo trocaram

bilhetes e juras de amor. A possibilidade de casar-se com um rapaz da cidade deixou Letícia

muito feliz, pois a moça já estava “na hora”, segundo os costumes da época. A probabilidade

de se tornar uma solteirona apavorava a moça, e isso era um forte motivo para se entregar à

tão rápida paixão. A vivacidade do Senhor Travassos permitiu-lhe perceber que os jovens –

Letícia e Eurico –, estavam se entreolhando. Atento, Travassos assuntou aqui e ali sobre a

vida e a família de Eurico, e o resultado não foi nada positivo para o casal: “O que sei desse

homem, os tristes precedentes de seu pai, e, sobretudo uma voz íntima, me fazem crer que

serás muito desgraçada sendo sua esposa. Trata, pois de esquecê-lo” 69, afirmou o senhor

Travassos à adorada filha. A menina prontamente se desesperou, o que fez seu pai retrucar,

dizendo à filha que ela não poderia, com os princípios de moral e de virtudes com que fora

criada, sucumbir à “primeira luta”. Letícia resignadamente reafirmou ao seu pai: “As lições e

exemplos que recebi não foram improfícuos: não casarei sem a sua aprovação embora a isso

68 BITTENCOURT. Leticia . Op. cit., p. 01. 69 Idem, p. 26.

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me custe a vida. Pode ficar tranqüilo”. Arrumaram prontamente as malas e voltaram, sem

mais delongas, para a Bahia.

Pensando tudo já estar resolvido, o Sr. Travassos trata de levar a vida no engenho,

cuidando da lavoura, trabalhada por seus escravos. Ocultamente, porém, a menina Letícia

continua trocando cartas com Eurico por meio de suas amigas, que mesmo conhecendo “a

severidade” do Sr. Travassos, ajudam-na a comunicar-se com seu amado. A jovem de fato não

desistira de Eurico e, em dado momento, montou um plano para convencer o “bondoso” pai

de que não tinha alternativa a não ser permitir o consórcio. Contou, para isso, com a ajuda de

Marieta, amiga inseparável. O plano consistia em fazer o senhor Travassos pensar que a

menina estava a definhar de amor por Eurico e, por isso, não tinha mais vontade de viver, o

que, em parte, era verdade, mas de fato revelava o imenso conhecimento que a donzela tinha

sobre o pai. Ela sabia que ele não deixaria de realizar um capricho seu, se demonstrasse que

realmente estava sofrendo a ponto de ficar doente. No passo seguinte, Marieta conversaria

com o pai de Letícia e o convenceria a rever a sua posição em relação a Eurico, tentando

demonstrar que isso era a única coisa que poderia fazer sua rebenta voltar a ser a menina

alegre e espontânea de sempre. O trecho da conversa entre o pai de Letícia e a sua amiga

Marieta revela algumas posições implícitas no texto:

- Acho Letícia muito abatida, e talvez ameaçada de grave moléstia... O senhor não tem notado? - De certo, minha Senhora! Deixaria de ser pai se os sofrimentos de minha filha me passassem despercebidos. (...) - Tem ela o que queixar-se de mim? Acha a Senhora que fui demasiado severo? - De modo nenhum, Senhor Travassos; o seu procedimento foi o que podia ter um pai prudente e zeloso; mas o resultado não foi o que se devia esperar. A natureza exaltada e nervosa de Letícia, a profunda impressão que Eurico lhe fez, tem lhe alterado a saúde de modo de infundir-me sérios receios... O bom pai sobressaltou-se70.

Estava plantada a sementinha da dúvida no coração do Travassos. Marieta em nenhum

momento o contradisse, muito pelo contrário, concordou com ele. Entretanto, conseguiu o que

queria: provocar a atenção do velho homem sobre o estado [dissimulado] de saúde da filha. A

partir daí, Travassos muda de postura e passa a observar o estado de saúde de Letícia com

mais atino, tentando constatar se realmente ela estava padecendo de algum mal. Mas Marieta

ainda não tinha terminado de trabalhar a mente do abastado senhor em função dos desejos da

amiga:

- Não julguei que as coisas tivessem chegado a esse ponto!

70 Idem, Ibid., p. 34.

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- É que ela tratava de ocultá-lo [afirmou Marieta] (...). Vi o quanto ela sofre, e que está ameaçada desta moléstia que torna uma moça sempre inutilizada... O Senhor Travassos interrompeu-a. - Ó! Minha Senhora! Deus me livre de ser cruel para a minha filha! Bem sabe o quanto eu a adoro: ela é todo o meu amor, todo o meu futuro! Esse homem não merece a confiança de que me deve inspirar aquele a quem tenho de entregar o meu tesouro. Não tem precedentes que o abonem; receio as funestas conseqüências da herança, por que o pai foi péssimo esposo; e, sobretudo, sinto uma repugnância instintiva quando penso na possibilidade em tê-lo como genro. Não será intuição ou pressentimento de que tal homem fará a desdita de minha filha? - Creio que exagera, meu amigo, levado pelo excessivo amor paterno. - Vamos refletir calmamente. - O seu procedimento foi até aqui o de um bom pai. Agora lhe compete dar mais algum passo para evitar o mal que o ameaça. O meu parecer é que vá a capital e procure informar-se minuciosamente desse moço (...) - Sim, minha Senhora, farei o que me aconselha: amanhã seguirei a capital. - Não esperava outra coisa do Senhor...!, disse a Marieta. - Permita, minha Senhora, ainda uma observação: não deves dar a Letícia muitas esperanças. - Quanto a isso, tornou a moça sorrindo, esteja descansado. Nós as mulheres já nascemos diplomatas... - Bem; estamos de acordo, tornou sorrindo o senhor Travassos; e Deus nos guie para que não seja sacrificado o futuro de nossa cara Letícia71. [grifo meu]

Foi dado o golpe de misericórdia: após ganhar a confiança do velho Travassos,

fazendo-o pensar que concordava com o seu procedimento, a jovem senhora leva-o a reflexão

de que deveria repensar a sua decisão em relação a Eurico, em função da suposta doença de

Letícia. Conhecendo a natureza do Senhor Travassos, rapariga tinha consciência de que

apenas conseguiria convencê-lo fazendo-o pensar que ele estava correto em sua decisão como

pai. A partir daí Marieta estabelece uma relação entre a situação de saúde da menina e a

posição do pai; a idéia era fazê-lo se sentir culpado. Por último, ele deveria ser levado a

pensar que a única forma de resolver o “grave problema” de saúde da filha era reconsiderar a

sua posição em relação aos dois moços. Um breve ensaio de como manipular o ente

dominador a partir de sua própria lógica: as dependentes – no caso as mulheres –, sabiam o

quanto o senhor Travassos era “duro” com quem desobedecesse as suas ordens, mas sabiam

também como manipulá-lo em direção aos desejos da filha. Na verdade, a grande articuladora

de todo o plano foi a “dócil” menina Letícia, com uma ajudinha “providencial” de Marieta. A

artimanha de Marieta não fica clara no discurso da narradora, mas se observarmos nas

entrelinhas, veremos que de fato elas articularam e provocaram a situação que levou à

mudança de posição do Senhor Travassos.

71 Idem, Ibid., pp. 34-36.

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Letícia sabia o que estava fazendo quando pediu à amiga para arbitrar o caso entre ela

e seu pai. Sabia que não seria bem interpretada pelo velho, caso ela fosse pessoalmente pedir

para que autorizasse o consórcio com Eurico. Sabia também que jamais seria ouvida pelo pai,

por isso apelou para a habilidade “diplomática” da jovem. De qualquer forma, o intento das

moças foi bem sucedido, e o casamento se realizou, mesmo contra a reserva do Sr. Travassos,

em relação ao nubente. A astúcia das jovens, porém foi punida no decorrer da história: os

pressentimentos do pai se confirmariam. Eurico não viria a ser, na prática, o esposo dos

sonhos de Letícia; era um homem adúltero, que gostava de jogar e praticar todos os atos

“abomináveis”, além disso, ela nunca conseguiria adaptar-se completamente ao mundo de

Eurico. Sentir-se-ia deslocada e perceberia que ele não se satisfaria com a sua “figura” frente

aos seus amigos. Letícia seria punida pelo “destino” por não ter obedecido e nem atentado

para a vontade de seu pai e por ter escapado mediante os seus joguetes de manipuladores

sobre “pobre” homem.

O velho Travassos não consegue enxergar que fora induzido pelas duas moças, a filha

e sua amiga Marieta, a tomar uma decisão atenderia a seus desejos, pois, ao que tudo indica,

ao querer casar com Eurico, a moça expressava mesmo era o medo de nunca se casar. Quem

sabe Letícia, caso não se casasse, tornar-se-ia uma solteirona como a sua tia Henriqueta? Uma

infeliz mulher, irmã da mãe de Letícia que se contentava com elogios às suas prendas, mas

que nunca poderia ser mãe, nem senhora de sua própria casa, condenada a viver em função

dos outros.

Segundo a narradora, Tia Henriqueta era bondosa, mas desajeitada, sempre

dependente do dono da casa, sem futuro e sem vida própria, ela representa a posição da

mulher celibatária dentro da sociedade patriarcal oitocentista. O medo de se tornar uma

solteirona, como sua tia, levou Letícia a cometer o “mau passo” de casar com um homem de

“reputação duvidosa”, mesmo contra a vontade do pai, sofrendo duramente por seu “pecado”.

Kátia Mattoso atribui o celibato feminino no decorrer do século XIX à circunscrição da

mulher a esfera privada e à endogamia como forma de preservação da riqueza da elite72. Um

estudo da família à qual pertencia Anna Ribeiro mostrou que, no século XIX, 42% das

mulheres da família Araújo Góes não se casaram. O fim de mulheres como Tia Henriqueta era

fazer os votos como freira ou ficar sob a guarda de um dos homens da família, que herdava os

seus bens.

72 MATTOSO. Bahia século XIX, Op. cit., p.188-192.

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A tia Henriqueta era tudo o que Letícia não queria se tornar: uma mulher infértil, sem

família, sem lar próprio, sem vida própria. Havia um lugar para ela dentro da casa senhorial,

mas esse lugar a relegava sempre a segundo plano; era “quase” uma mãe para Letícia “quase”

uma dona de casa, “quase” uma senhora de engenho. Ela era “quase”, mas isso no mundo a

colocava sempre às sobras dos outros, à margem de tudo. A jovem Letícia e também outra

jovem Anna Ribeiro, sabia disso. A hora de casar já havia passado. A idade já era avançada.

Os dotes da maioria dos membros da família não cobriam as exigências dos pais das moças.

No caso de Letícia, a solução foi casar, mesmo contra vontade do pai. No caso de Anna

Ribeiro, “em cima da hora de se tornar freira”, apareceu um jovem primo disposto a realizar o

consórcio, o que não acontece com muitas das parentas da narradora, inclusive com a sua filha

Joana. Ser mulher, sem ser mãe, sem ser esposa, nem dona de casa, era ser mulher pela

metade... Nem todas tiveram “um final feliz”...

Voltando à ficção, em certo almoço organizado por Tia Henriqueta, a narradora

aproveita para levar ao leitor algumas informações a seu respeito:

À cabeceira da mesa achava-se D. Henriqueta, irmã do senhor Travassos, que assumira a direção do lar depois da morte da esposa do proprietário. Morena, baixa e cheia de corpo, sem ser bela, nem gentil, mesmo na mocidade, tinha um semblante muito agradável, porque resumbrava-lhe a bondade no olhar sereno e no sorriso ingênuo como o de uma criança. Nos dias felizes da família sempre se mostrava radiante. O governo da casa tinha para ela a mesma importância que para qualquer chefe a direção de um Estado. Um elogio a um acepipe ou a um doce por ela confeccionado, levava ao auge a sua satisfação73.

Dona Henriqueta estava sempre atenta aos elogios às suas prendas domésticas porque

isso a fazia sentir-se “dona” da casa de seu irmão, mesmo sabendo que jamais poderia ser

realmente “senhora da casa-grande”. O estigma de “trapalhona” e “desajeitada” que a

narradora atribuiu a ela, na verdade, era uma forma de dizer que jamais ela poderia ser uma

mulher completa. “Bondosa” e “útil”, mas não passando de mais uma dependente dentro da

casa de seu irmão, o máximo que ela poderia fazer era mendigar um ou outro elogio que

pudesse fazer crescer a sua auto-estima. O seu lugar dentro do mundo senhorial era limitado, e

estava relacionado estritamente à tragédia que se dera na família com a morte da cunhada.

Não fora isso, talvez acontecesse com ela o mesmo que a várias parentas de Anna Ribeiro: a

internação à força em convento.

Anna Ribeiro teve uma tia que foi prometida em casamento a um dos filhos do

Monsenhor Silveira, um amigo da família. Passado o tempo, o rapaz contraiu matrimônio com

73 BITTENCOURT. Leticia. Op. cit., p. 91.

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outra moça por quem se apaixonara. Avançada em idade para a época, Maria – esse era o

nome da Tia de Anna Ribeiro –, foi internada contra a sua vontade no convento das Mercês,

em Salvador e pouco tempo depois ela adoeceu e morreu. Embora esse fato tenha acontecido

quando Anna Ribeiro ainda tinha sete anos, parece ter marcado a vida da autora, como um

caso símbolo numa prática comum na família a qual ela pertencia: o celibato feminino. Ela

inscreveu o drama das “tias solteironas” não só no modelo expresso na Tia Henriqueta,

personagem da trama de Letícia, quanto em personagens de outras narrativas literárias de sua

autoria.

Por isso, todas aquelas mulheres que não conseguiam se casar tinham seu destino

vinculado a duas possibilidades: viver como “tia” na casa do irmão ou da irmã mais velha ou

ser internada em um convento e virar freira74. A pobre Tia Henriqueta, descrita pela

narradora, como “feia” e “sem sal”, em tempos de infortúnios, quando os dotes dos parentes

estavam escassos, poderia ser a última a ser escolhida para um casamento –, e de fato nem a

última ela foi! Letícia não queria o mesmo destino da tia, e o seu “mau passo” fora

impulsionado, em grande parte, por medo de terminar como sua pobre tia.

Outra causa que justificaria o comportamento “casamenteiro” que levou a jovem

Letícia ao seu comportamento dissimulador em sua fixação pelo casamento e pela busca de

“um grande amor” – também provável, pelo que afirma a narradora –, era a influencia das

más leituras na formação da moça. Diferente da maioria das histórias de amor oitocentistas,

Anna Ribeiro focaliza em Letícia as dificuldades que poderiam se encontrar num casamento

fruto da “exaltação” de uma moça que falseia a vontade senhorial em nome de um amor

romanesco, influenciado pelos “maus romances” lidos pela jovem. Esse foi o assunto de uma

conversa entre Marieta e seu esposo, Conrado, quando discutiam o eventual fracasso conjugal

de Letícia:

- O pobre pai tinha razão, tornou Marieta, de opor-se a semelhante casamento; e eu tinha remorsos dos passos que dei para ser ele efetuado. (...) - A desventura de Letícia [diz Conrado] depende muito de sua imaginação viva, exaltada pela leitura de romances. Foi o que a levou a apaixonar-se tão prontamente por Eurico, esperando encontrar nele um herói romanesco em cuja existência acreditou. Olha Marieta, temos filhas: isto nos deve servir de exemplo. Ainda bem que não tivesse tempo de dedicar-se a tais leituras. (...) Não vês como ela repete a frase corriqueira dos romances: “Eu passaria toda a minha vida em um deserto, sem me aborrecer” 75.

74 BITTENCOURT. Longos Serões do campo; Op. cit., Capitulo 2. 75 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., pp. 64-65.

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As más leituras levaram Letícia a fantasiar um amor que não existia e um herói construído

apenas em sua “imaginação exaltada”. Nesse trecho a narradora aproveita para expor à futura

leitora sua concepção da importância da leitura de romances e do seu controle para evitar “tais

situações” como a de Letícia. Na conversa, Marieta afirma que não vê na leitura dos livros em

si, algo que poderia corromper as moças leitoras, e sim na leitura dos que ela chama de maus

romances. O pai de Letícia não tinha atentado para a “importância” de selecionar as leituras

da filha, e a sua “imprudência” fez com que ele criasse uma filha mimada e imaginativa. Anna

Ribeiro era uma defensora inveterada do mundo senhorial. Atacava veementemente toda e

qualquer “ameaça” ao mundo patriarcalista. Para ela, “os maus romances” com certas “cenas

desnudas” e “sensuais”, levavam as moças a praticarem atos “impensados” que iam de

encontro à moral e aos bons costumes. Mesmo assim, a narradora deixa escapar como os

dependentes – nesse caso as mulheres –, poderiam, a seu ver, convencer o senhor a fazer suas

vontades.

Na história fictícia de Anna Ribeiro a protagonista, contorna toda uma ideologia para

conseguir aquilo que queria: um casamento como aqueles que ela lia nos romances. Mas a

sentença dada pela narradora por ela ter corrompido a vontade senhorial foi terrível: teria que

suportar um marido fraco, adúltero e até mesmo se deparar ante uma separação conjugal. Para

isso, a autora constrói uma Letícia que aprende com os problemas da vida e que amadurece

após “tanto sofrimento”. Trabalhadora, ela ocupa lugar que deveria ser apenas destinado aos

homens, mas em condições adversas – o declínio sócio-econômico da aristocracia –, a autora

demonstra em suas narrativas que a ideologia senhorial sofre sensíveis transformações. Mas

esse é um tema para ser discutido no próximo capítulo que versará sobre as representações

literárias do pós-abolição em Anna Ribeiro.

À semelhança de Machado de Assis, Anna Ribeiro também propõe uma leitura das

relações paternalistas entre senhores e dependentes. A ressalva é que, ao contrário de

Machado, ela oferece uma leitura de dentro do próprio discurso paternalista. A narradora

acaba revelando as contradições existentes no seio da ideologia senhorial, ao demonstrar que

os dependentes manipulavam situações e até mesmo os próprios senhores e senhoras de

engenho. O mundo pré-abolição idealizado pela autora não anulava o poder de resistência e

barganha dos subalternos, que mesmo em condições de dominação acabavam conseguindo a

satisfação de seus interesses, através do próprio discurso do dominador. Nesse aspecto, Dulce

& Alina e Letícia são alegorias reveladoras, sendo que em Letícia, Anna Ribeiro reescreve as

relações presentes não só em Dulce & Alina, como em Violeta & Angélica e em Marieta,

como será visto nos próximos capítulos.

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CAPÍTULO II

REPRESENTAÇÕES DO DECLÍNIO SENHORIAL

O capítulo anterior discutiu a forma como a ideologia senhorial permeia as narrativas

de Anna Ribeiro, demonstrando a aparente inviolabilidade da vontade do senhor. No entanto,

o discurso paternalista apresenta inúmeras contradições que se evidenciam na obra da

romancista, principalmente nos personagens caracterizadamente subalternos. Isso foi visto nas

histórias do Sr. Pinto, de Dona Plácida e até mesmo em Letícia, personagem principal do

romance de Anna Ribeiro publicado em 1908. Em Dulce & Alina, Álvaro Figueredo, chefe da

família senhorial, residente no Recôncavo, esforçar-se para demonstrar sua riqueza e poder,

mas acaba cedendo às pressões da esposa e à manipulação dos dependentes. O capítulo inicial

desse conto mostra a família senhorial na sala de jantar da casa-grande. Há um esforço da

narradora para descrever a riqueza do ambiente: sobre a “longa” mesa, onde brilhava uma

louça “fina”, estava preparado um banquete. Os Figueredo faziam questão que todos os

agregados, afilhados e comadres viessem para tudo “devorar”. Era preciso que vissem que o

Sr. Figueredo não era “um sovina para só apresentar coisas que não custam dinheiro”, como

relata a narradora. Sobre isso ela ainda reflete: “em tudo entra a vaidade humana”. Os

dependentes eram apenas co-adjuvantes da celebração do poder dos senhores.

O presente capítulo propõe uma análise do declínio senhorial em Anna Ribeiro. Na

primeira seção, contrapõem-se as figuras de Eurico e Travassos, ambos os personagens do

romance Letícia. Explorando-se a alegoria expressa na relação entre esses dois, nota-se a

contraposição existente entre o agonizante mundo senhorial e o emergente mundo burguês no

final do século XIX. O processo traumático para a elite, tanto na família de Anna Ribeiro

quanto em sua ficção, é o foco de estudo da segunda parte do capítulo. Assim, emergem as

vozes de vários personagens que opinam e expressam seus medos e ressentimentos sobre o 13

de maio e o 15 de novembro. No momento seguinte, evoca-se a presença de duas ex-escravas

pertencentes à trama de Violeta & Angélica, que compõe o imaginário da autora sobre os

comportamentos dos subalternos após a abolição. Elas imprimem os ressentimentos dos ex-

senhores com o comportamento daqueles que outrora os serviram e, antes de tudo,

representam o desenlace traumático das relações escravistas sob a égide dominante. Por

último, analisa-se uma discussão entre Eurico [novamente ele] e Sampaio, um senhor de

engenho escravocrata, também personagem de Letícia. Eurico, advogado da Corte,

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abolicionista radical, debate com Sampaio igualmente radical, só que escravocrata.

Enfrentam-se em argumentos pró e contra a escravidão, numa discussão que acontece num

momento em que já se passara o 13 de maio e a elite senhorial baiana reclamava da “falta de

braços” na lavoura e começa viver o que a narradora chama de “tempos difíceis”.

Mundos opostos: o Sr. Travassos versus Eurico

No romance Letícia, pode-se observar que animosidade do Sr. Travassos em relação a

Eurico foi instantânea. Representavam mundos diferentes. Daí o pressentimento do pai de

Letícia em relação ao fardo que a sua rebenta possivelmente carregaria nas mãos do seu futuro

consorte. O fato de rapaz ser filho de homem “mal afamado” que abandonou a família, não

era o único motivo do receio do velho em relação a ele. O jovem advogado era um homem

eminentemente urbano; mais que isso, era abolicionista, que defendia os direitos dos cativos e

criticava a postura dos senhores, mesmo daqueles que eram mais brandos com os seus

escravos. O Sr. Travassos, em contrapartida, era um senhor de engenho rígido, que dependia

inteiramente da mão-de-obra escrava para suster seus domínios e manter a estrutura

hierárquico-familiar, típica de uma família patriarcal vigentes no Brasil desde a colonização

portuguesa. Ele representava a descendência da mais tradicional elite ibero-brasileira. Todas

as suas riquezas advinham do trabalho escravo no engenho de cana-de-açúcar. E ele mantinha

uma lógica paternalista que servia à ideologia senhorial, através de estratégias de

“harmonização” das suas relações com os subalternos. Através das estratégias utilizadas por

Anna Ribeiro, pode-se conhecer o perfil dos dois personagens o que nos ajudará a entender

melhor como funcionavam esses mundos representados pela autora na trama de Letícia.

O Sr. Travassos é apresentado como um ancião bondoso e preocupado com todas as

pessoas que estão sob o seu poder. Bom pai nutria por Letícia “uma espécie de adoração”. A

narradora define textualmente o tipo desse senhor de engenho:

O pai de Letícia, proprietário de engenho, não era desses lavradores sem cultura intelectual, inteiramente voltados ao trabalho material embrutecedor. Tinha livros, recebia jornais e revistas, e entretinha boas relações na capital da província onde ia passar os meses do inverno com sua idolatrada filha. Não podia ser, portanto, um brutal tirano (...)76.

Era um homem “esclarecido” que lia e era bem informado sobre o que acontecia na

capital. A “difícil lida” no trabalho não o tinha deixado “bruto”, pois ele adquiriu um grau de

76BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 33

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ilustração que o distanciava da maior parte dos senhores daquela região. O convívio com a

“civilização”, e a leituras que fazia, nos afirma a narradora, permitiam que ele não fosse tão

intransigente quanto era de se esperar de um rústico lavrador, por exemplo. Entretanto um

outro perfil desse senhor de engenho nos é passado por Ismênia, numa de suas cartas para

Letícia que tinham Eurico como motivo central. O Sr. Travassos “cuja severidade era bem

conhecida”, dizia Ismênia, ao falar da possibilidade do velho homem pegar algumas das cartas

com informações sobre Eurico77.

Como senhor de Engenho, os qualificativos do Sr. Travassos eram ainda mais

interessantes. O tratamento dele junto aos seus escravos, segundo a narradora, seguia o

modelo passado por um compêndio literário bastante respeitado pelos “bons senhores de

escravos” do século XIX. Isso fica claro num trecho em que o “bom senhor” reclama da

postura dos seus ex-escravos:

- (...) Sempre ouvi dizer que a escravidão traz vileza, mas eu muitas vezes respondia a essa máxima que julgava sediça (sic) com a frase da autora da Cabana do Pai Tomás. Tratem-nos como cães e eles vos tratarão como cães e eles procederão como cães: tratem-nos como homens e eles procederão como homens78.

O senhor Travassos aplicava uma política de dominação bem demarcada em relação

aos seus escravos. Ela consistia na “humanização” dos cativos, através de um tratamento

“diferenciado” em relação a eles. O discurso que sempre ouvia não era o discurso que

praticava. A escravidão traz “vileza”, afirma o Sr. Travassos. Esse termo faz referência às

dificuldades de lidar com os “vícios” e a “preguiça” dos escravos. Segundo ele “ouvia falar”,

era uma desonra lidar com as “rebeldes” e “vis” criaturas, era como lidar com animais que

não soubessem quando e como fazer as coisas certas, daí a dificuldade e a conseqüente

violência exercida pelos senhores de engenho mais “rudes”.

A estratégia de “humanização” fazia com que os cativos vissem seus senhores como

“bondosos” elevando-o à categoria de “humanos” – menos que os senhores, mas mesmo

assim humanos. O próprio senhor Travassos dá uma pista que devemos considerar: ele

respondia “a máxima que julgava sediça com a frase da autora de A Cabana do Pai Tomás”.

Os discursos presentes no romance da Mrs. Beecher Stowe (1811-1896) 79 se constituem em

77 Ibid. p.31 78 Ibid., p. 68. 79 Nascida numa família fervorosamente religiosa originaria de Litchielfd, EUA, filha do mais famoso pregador evangelista da sua geração, Lyman Beecher, e casada com um professor de teologia, Calvin Stowe, Harriet viveu toda a vida num ambiente de extrema devoção e firmes convicções anti-escravagistas, alicerçadas numa veemente fé cristã na igualdade de todos os homens. Antes de A Cabana do Pai Tomás a sua reputação como escritora era inexistente e a sua carreira nesse domínio resumia-se a alguns textos morais e bucólicas descrições

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base de orientação para o Sr. Travassos no tratamento com os “coitados” e “miseráveis”

escravos. Mas essa obra não era apenas o manual do Sr. Travassos, era também o de Anna

Ribeiro.

Em seu livro de memórias, ao relatar a partilha dos escravos pertencentes ao avô e tia,

já falecidos, a narradora conta que essa situação provocou a separação dos cativos entre os

herdeiros. Mas a família respeitou os laços familiares dos escravos, o que consistia num dos

preceitos fundamentais de humanização dos subalternos, uma vez que se eles eram humanos e

tinham sentimentos não poderiam ser separados como animais. A memorialista descreve que

todos os escravos correram aos pés de sua mãe, “porque ela os tinha em alta estima e os

tratava quase como filhos”. Os cativos tinham medo de ir parar nas mãos de um dos tios de

Anna Ribeiro, muito conhecido pela violência com que agia contra os escravos:

Minha mãe insistiu com Antonio Florêncio, pai de Manuel Paulino, um ancião bom e respeitável, para que ele se valesse da autoridade de pai para interceder pelos escravos. Aos escravos ela aconselhou que, se algum problema houvesse, fossem procurar o sábio ancião. Insistiu, ainda, que não deixassem de rezar e deu, aos que não tinham, imagens e registros de Nossa Senhora e de santos, dizendo-lhes que os tomassem por seus patronos. Deu-lhes também úteis conselhos, que os guiaram pelo caminho do dever, repetindo, talvez sem muita convicção, o dito usual: Não há mal senhor para o escravo bom. Acenou-lhes – e isto convictamente – com eterna recompensa que aguarda, na outra existência, os que sofrem com paciência os trabalhos desta vida, prometida por Cristo nestas palavras: Bem aventurados os que choram, porque serão consolados80.(Grifo meu)

Prosseguindo as recordações sobre a partilha dos escravos de seus parentes, a

memorialista descreve como eram tratados os escravos, dentro do engenho onde ela foi

criada:

Recordo hoje com intima satisfação o procedimento de minha mãe com os escravos. Creio não ser atribuível somente ao bom coração e a ter sido criada em uma casa onde eram os escravos tratados com humanidade. (...). Em minha mãe, a virtude da caridade mais se manifestava tratando-se os pobres escravos, porque seu ânimo generoso sempre tomava parte do fraco contra o forte, o opressor. Naquele tempo em que os escravos eram considerados como seres muito inferiores ao senhor, acarretou-lhe isto algumas críticas de espíritos atrasados (...). Tendo ocasião não temia afrontar a opinião contrária, dizendo que o escravo era semelhante e como tal devíamos tratá-lo. Era lamentável, então, ver como até pessoas de boa índole eram duras para com esses infelizes, pelo conceito errôneo de que as fazia encarar como seres muito diferente de nós. Usavam das frases mais ferinas para rebaixá-los, e, à força de humilhações e maus-tratos, chegavam eles às vezes a tal aviltamento, que se diria, não pertencerem, na verdade, à espécie humana. Entretanto, nas casas onde eram tratados com humanidade, encontravam-se belos espécimes nessa raça desprezada. Repetia sempre minha mãe a frase de Mistress Stowe em A Cabana do Pai Tomás: "Tratem-nos como homens, e eles procederão como homens; tratem-nos cães e eles

campestres. Harriet também lecionou no mesmo colégio em que estudou, morando em Ohio, onde idealizou seus principais livros, entre os quais A Cabana do Pai Tomás. 80 BITTENCOURT. Longos Serões do Campo: Op. cit., p. 31

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procederão como cães. Isto citava ela procurando convencer os outros, porque antes de conhecer os livro de Mistress Stowe, já professava idéias idênticas às da benemérita

autora norte-americana81.

A Cabana do Pai Tomás (1852) foi um dos romances mais lidos e comentados durante

mais de um século, não só no seu país de origem (EUA), como em vários países do continente

americano, inclusive no Brasil. A narrativa retrata e denuncia a escravidão, sob o viés da elite,

mostrando Pai Tomás, um velho e bondoso escravo que é obrigado a deixar a cabana e a

família, cedido a um mercador de escravos como pagamento de dívidas do seu senhor, o Sr.

Shelby, e revendido duas vezes. Mrs. Stowe narra as desventuras, os maus-tratos bem como a

fé em Deus do Pai Tomás, ante a um mundo escravista. O diferencial do enredo se centra na

execração do abolicionismo pelos protagonistas da história, e estabelece um contraponto com

a subserviência do Pai Tomás ante a bondade de dois dos seus amos: Sr. Shelby e Saint

Claire82.

O livro de Stowe mostra uma visão senhorial de como deveria ser a abolição. Nesse

sentido as narrativas de Anna Ribeiro aproximam-se muito dos ideais por ela difundidos. O

próprio Sr. Travassos era um desses bons senhores que embora “enérgicos” e “rigorosos”

eram tidos como ótimos senhores. Alguns de seus escravos afirmavam ter nele “um pai”, não

sairiam dos “pés do nobre senhor, nem que fossem escorraçados”. “Infelizmente” veio a

abolição num momento “inoportuno” e a “história de fidelidade” entre o Sr. Travassos e os

seus cativos não suportou mais esse “percalço”.

Vale salientar que, tanto nos discursos da família Shelby quanto no Sr. Saint Claire,

existe um ideal de ensinar os escravos a ser “humanos”. Em Anna Ribeiro, essa história teve

uma amplitude e repercussão que permeia a sua visão sobre a “nefanda instituição” e sobre

um ideal de abolicionismo que não era algo tão novo assim: a liberdade entendida como

expressão da vontade dos dominadores. Como resposta à essa expressão de “bondade”, os

cativos deveriam prestar respeito e submissão àqueles que os ensinariam “como ser livres”.

Na literatura de Anna Ribeiro, essa concepção é (re)apropriada dentro do emaranhado de

outros discursos advindos da religião, das concepções de ciência e da realidade social que a

autora vivia: na fazenda do Sr. Travassos, a grande maioria dos escravos não agiram com

tanta resignação quanto Pai Tomás. A lógica paternalista expressa no romance de Mrs. Stowe

não se dera em Letícia. O ressentimento e o rancor com a ingratidão dos seus próprios

escravos, conforme nos mostra uma das descendentes da autora, são externados nas narrativas

81 Idem., pp. 31-32 82 STOWE, Op. cit.

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literárias de Anna Ribeiro: sua ideologia paternalista não contava com a possibilidade de que

os outros – os subalternos –, não estavam de acordo com a sua vontade e com os seus

preceitos.

O Tomás de Mrs. Stowe é um homem de extrema nobreza, com uma réstia de

servidão, coragem física e abnegação supremas, que reconhece a infâmia da escravatura e não

a aceita de forma alguma, mas recusa a violência como forma de resistência e é incapaz de

mentir mesmo ao mais vil dos homens - não por medo, mas por respeito a si próprio e aos

seus amos. O fato de Tomás, assim como todos os escravos da casa do Sr. Shelby, serem

tratados como “humanos”, fazia com que eles se comportassem como “humanos”, passivos e

agradecidos ante aos senhores. Os escravos do Sr. Travassos, porém, foram rebeldes, pois

mesmo sendo tratados “como se fossem filhos”, foram “ingratos” a ponto de abandonarem

seu senhor, em plena época de colheita.

A romantização das relações entre senhores e escravos e a condição, restrita aos

primeiros, de patronos da liberdade dos segundos é uma constante na obra de Anna Ribeiro. A

bondade dos senhores de engenho presente em suas histórias e a tentativa da escritora de

construir modelos de como tratar os escravos dá a idéia de que seria uma ingratidão se voltar

contra senhores que eram “como pais” por não deixar faltar todos os “regalos e conforto”

àqueles que os serviam.

A lógica presente no romance de Stowe consistia em colocar os “pobres” escravos na

condição de ajudados pelos bons senhores, o que garantiria aos segundos o beneficio do

agradecimento dos primeiros. Isso, na prática, serviria como uma forma de dominação

ideológica dos senhores em relação aos subalternos. A bondade religiosa dos senhores

garantiria, na ótica dos dominadores, o agradecimento dos cativos. Também em Letícia, as

discussões em torno dos escravos tendiam sempre a estereotipá-los como “coitados” que

necessitavam de assistência para “aprenderem a ser livres”. Esse discurso justificava uma

forma paternalista de pensar a escravidão: sem os senhores, os destinos dos negros era a

“vadiagem” e as “bebedeiras” que lhes eram “natural”. As mulheres certamente se dariam aos

“desfrutes” se inflamando com os homens, “corrompendo-se e deixando-se corromper”. Era

necessária uma proteção de “seres superiores” que os “ensinassem” a ser livres assim como o

jovem Shelby fez com os escravos em A Cabana do Pai Tomás. Anna da Anunciação fazia

com os seus escravos ensinando-os nas “sãs doutrinas” a serem resignados, a aceitarem as

privações dessa vida em favor das bênçãos futuras e vindouras, lembrando-os sempre que

“não existiam escravos maus para senhores bons”.

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“Não temos nele senhor, senão pai”, afirmavam os escravos do velho Travassos

constantemente. O tratamento dos escravos do “nobre senhor” seguia a mesma lógica de

criação dos pais de Anna Ribeiro. Essa lógica, porém, não era privilégio apenas dos

personagens de Anna Ribeiro ou dos Araújo Góes do Catu. Joaquim Nabuco, conhecido

abolicionista pernambucano, também menciona a importância das leituras do romance de

Stowe:

Estive envolvido na campanha da abolição e durante dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis; mil vezes li a Cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o fizesse comprar por minha madrinha, para me servir. Ele vinha das vizinhanças, procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que ela ocultava83.

Além de servir como uma política de dominação ideológica, o discurso egresso das

linhas de A Cabana do Pai Tomás também compunha um discurso “civilizador”, que consistia

no melhor tratamento dos escravos, que era fruto de uma nova forma de pensar o mundo onde

a escravidão enquanto instituição não teria mais lugar. Fazia parte de um processo. O jovem

Nabuco buscou nas linhas desse romance uma forma de entender as relações vigentes nos

engenhos pernambucanos, fortemente marcadas pelo escravismo. O jovem escravo, citado por

ele fugia de um violento senhor em busca de um outro mais “generoso”. Nos finais do século

XIX, o processo da escravidão produziu nos engenhos brasileiros a aparente cena

contraditória dos “senhores de escravos abolicionistas”. Mas a pergunta para a resposta a essa

aparente contradição seria, de fato, de que abolição eles estariam falando ou almejando? O

senhor Travassos não se revoltou contra os escravizados por causa da abolição, e sim pela

postura dos cativos, uma vez libertos, frente ao seu ex-senhor. Ele pensava na permanência de

tudo como estava, e que se mantivessem os “braços agradecidos” que sempre trabalharam

naquela lavoura, mas a história parece não ter sido bem assim, pois os negros acabaram por

abandonar sumariamente o engenho logo após saberem que estavam livres. De outra forma, a

definição da representação de Eurico evidencia-se em uma conversa com seu sogro logo após

casamento, realizado na casa-grande do engenho dos Travassos:

83 NABUCO, Joaquim. Minha formação. Coleção Obras imortais da literatura, Vol. 42. Editora Três. Rio de Janeiro: 1974. p. 160-161.

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Porque, meu amigo, não experimenta a vida na lavoura? Há talvez a injusta prevenção em seu espírito. Creia-me: a lavoura sempre dá algum resultado àquele que a sabe dirigir: faria também alguma coisa em clinica. Isto reunido, provavelmente seria mais do que lhe rende o emprego. - Não duvido, tornou-lhe Eurico, que fizesse até mais do que meu emprego: mas todas as vantagens se desmoronam diante da minha natureza. É-me impossível morar no campo. No Rio, por moléstia, tive de passar três meses na fazenda: aborreci-me mortalmente. (...) - Está chegando a época da abolição [afirmou o Sr. Travassos] e por isso desejava passar a gerência do engenho ao Senhor que não está habituado a tratar com os escravos, e poderia melhor organizar o trabalho livre. - Acho que se engana, Sr. Travassos; aqueles que lidaram com os escravos, conhecendo-lhes as aptidões e os vícios, podem, utilizando aqueles e corrigindo estes, melhor organizar o novo sistema de trabalho. É verdade que meu emprego é pouco rendoso; mas em breve conto obter outro melhor, e a vida em um centro civilizado é outra coisa. Aqui só a passeio, o máximo, quinze dias. 84

Tentando agradar o sogro, Eurico suportou o máximo possível a sua proposta sobre a

lavoura, mas quando a conversa se encaminhou para o convite que o sogro fizera de tornar

Eurico o novo senhor do engenho dos Travassos, ele não poupou palavras para deixar claro o

quanto tinha aversão por aquela vida. A nova tentativa do sogro em sugerir que com o

vindouro – e inevitável – advento da abolição, Eurico como homem “civilizado” poderia

organizar o trabalho livre foi frustrada, pois o rapaz contra-argumentou dizendo que o sogro

“conhece os vícios dos escravos, poderia melhor organizar o trabalho livre”. Uma questão

importante que poderia passar despercebida nesse dialogo refere-se ao fato de sogro e genro

terem como certa a abolição, e também o fato de concordarem que em caso da concretização

dessa nova lei o trabalho livre teria de ser organizado. O contexto da narrativa mostra que o

Sr.Travassos não cumpriu essa intenção. Talvez não esperasse naquele momento, embora

soubesse que a tal lei viria um dia.

Em A Cabana do Pai Tomás, o filho do Shelby é quem consegue de fato estabelecer a

transição da mão-de-obra escrava para a livre. Seu pai morreu sem conseguir realizá-la, muito

pelo contrário, foi até obrigado a vender alguns escravos em troca de suas dívidas, num

momento em que seus negócios iam mal. Seu filho representava uma nova geração que

conseguiria realizar esse intento. No último capítulo dessa trama, intitulado “O libertador”, o

“nobre senhor” convoca seus escravos para uma reunião e anuncia que eles estavam livres,

pois suas cartas de alforria estavam assinadas. A seguir, George Shelby informa que a sua

fazenda precisaria de trabalhadores livres e que aqueles que quisessem poderiam continuar ali.

G. Shelby completou seu discurso afirmando: “além de libertá-los, eu os ajudarei a se

84 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., pp. 46-47.

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tornarem homens realmente livres” 85. Em Letícia, o Travassos fez uma proposta semelhante

a Eurico, dizia ele que não poderia, sendo já velho, fazer a transição da mão-de-obra escrava

para livre, mas que Eurico sendo um jovem idealista “mais civilizado”, poderia realizar esse

difícil trabalho com mais êxito. Eurico era um George Shelby às avessas. Mas em se tratando

da apropriação de Anna Ribeiro da história de Stowe, ela enquadra Eurico a partir da

realidade brasileira. Enquanto na trama de Mrs. Stowe, George quer continuar no campo,

Eurico odeia a idéia de viver dele, é um homem urbano e enxerga na cidade as possibilidades

de levar uma vida de acordo com os seus anseios. George Shelby era modelo de virtude

paternal, Eurico o egoísmo individualista.

De volta ao quarto, em conversa com sua esposa, ele externa essa revolta: “Vês tu que

idéia de seu pai? E o egoísmo dos velhos?... Se ele soubesse o que me tem custado a passar

estes quinze dias! Estou pelos cabelos”86. Eurico não aceitava que seu sogro propusesse ser

seu sucessor, além do mais ele jamais se contentaria com a tranqüila vida no campo. Toda

aquela lógica paternalista afirmava que a moral e os bons costumes deveriam ser resguardados

no sagrado leito do matrimônio, cabendo ao homem o papel de ser o senhor e mantenedor dos

seus domínios. Estava firmado mesmo depois de tentativas corteses de entendimento entre

sogro e genro, um conflito que só terminaria com a morte do Sr. Travassos, ou em termos

metafóricos, a morte do mundo senhorial ante o mundo burguês. O antagonismo entre o Sr.

Travassos e Eurico era patente: enquanto o primeiro era o campo, segundo era a cidade.

Enquanto o primeiro era o moral, o segundo era o vício. O primeiro representava o antigo, a

tradição, o segundo o novo, a descoberta. O primeiro representava o mundo senhorial, o

segundo, o mundo burguês. Mundos opostos, antagônicos, que certamente não coexistiriam

por muito tempo.

O “Golpe” e a “Revolução”: Traumas de uma elite em declínio

Dera-se o golpe de Estado que acabara com o elemento servil. Esta medida necessária, pode-se até dizer imprescindível em um país que se preza de civilizado, foi extemporânea e imprevidente, que acarretou as mais desastradas conseqüências. Extemporânea, porque o golpe foi dado ao começar a colheita, e os lavradores além de ficarem sem os escravos, perderam sua safra que os reduziu à situação mais precária. Imprevidente, porque passo algum deu o governo para a garantia dos ex-senhores nem para a organização do trabalho dos libertos. Entregando-se estes à vadiagem, daí há pouco

85 STOWE, Op. cit., p. 173 86 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 50.

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tempo, de fome, e aqueles a conhecer as privações da pobreza, tão dura de sofrer quando se está habituado ao conforto da abastança. Só pode avaliar aquela situação quem então viveu fora das cidades onde a abolição não causou grandes prejuízos, e apenas embaraços relativamente pequenos no serviço doméstico.Ainda bem que os ex-escravos, eram brasileiros, desta nação essencialmente pacifica, e não se deram as cenas sanguinárias que eram de tremer em vista da incúria do governo. Todos sabem que a revolução de 15 de Novembro que derrubou o Império, foi um movimento puramente militar. Mas a adesão, quase unânime que encontrou em todo o país, foi tradução do descontentamento originado pelo golpe de Estado dado pela Princesa Imperial, a cujas mãos inábeis o Imperador confiou o poder. Todos acreditaram que o monarca era conivente naquela medida que tão profundamente feriu a classe dos agricultores, naquela data uma das mais importantes do país Não quero avaliar ou descrever aquela época, e se toco ligeiramente em tal assunto, é que ele se liga a alguns dos fatos que vou narrar. Transportemo-nos, pois, à Capital do Brasil, aonde imperava o velho monarca, embora se acumulassem horizonte, nuvens, prenúncio da próxima borrasca, que tinha de arrojar para longe da Pátria, onde deveria ter o seu sepulcro, o venerado ancião que durante 50 anos regeu o país com honra e humanidade, e cuja memória deve despertar profundo remorso, naqueles que concorreram para a sua queda87.

Anna Ribeiro retrata um momento de preocupação de Alfredo Bastos, pai das

protagonistas do conto Violeta &Angélica (1906) e senhor de engenho no Recôncavo baiano.

A causa da inquietação do senhor é a “moita de espinhos” que via aproximar-se na estrada do

caminhar da sua vida, uma referência aos efeitos da abolição que a narradora aborda no

decorrer da trama. Antes disso “quase” não havia inquietações, mas agora o chefe da família

Bastos perdia o sono com as preocupações vindouras, no pós-abolição.

Se em Dulce & Alina o poder e riquezas senhoriais quase não sofrem a interferência

do processo abolicionista, em Violeta & Angélica essa temática é fundamental para

compreensão da trama, quando a decadência socioeconômica “tira o sono” do chefe da

família. Assim como em Dulce & Alina, em Violeta & Angélica a história começa com o

senhor de engenho – sempre os pais das protagonistas –, na varanda de sua vivenda, olhando

o horizonte refletindo sobre situações diferentes: enquanto Álvaro Figueredo se alegra com a

sua riqueza e status social, Alfredo Bastos se preocupa com a crise econômica que parece ser

inevitável. Enquanto no primeiro conto, a decadência parece não ter atingido a família

senhorial, no segundo a atinge-a em cheio.

Anna Ribeiro acaba construindo uma alegoria que aponta o senhor de engenho como

“vítima” desse processo, que teria sido desencadeado com a lei do 13 de maio. Em todo

contexto do conto se quer passar uma idéia de que a “classe dos agricultores” fora injustiçada

87 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., pp. 40-41.

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pelo Estado e por aqueles que no cativeiro foram “bem” tratados pelos antigos senhores com

seus “favores” e “concessões”.

Nessa obra, pela primeira vez, o estigma de vitima é colocada sobre o senhor de

engenho, que deixa de ser o “todo-poderoso” e torna-se aquele que foi violentado pela

história. A construção do discurso de vitimização dos senhores do Recôncavo não deve

mascarar o fato de que a abolição não fora decisivo da crise econômica e financeira que

imperou na Bahia no fim do século XIX. É bom lembrar que vários estudos mostram que a

situação econômica da lavoura canavieira já vinha apresentando resultados desanimadores88.

Essa parte da história está também sintetizada no discurso de uma de suas netas, que conviveu

diariamente com a escritora no início do século XX, quando ela se mudou para a cidade de

Salvador:

Assim, continuou seguindo a sua vocação até 1888 quando veio a abolição. Na sua família a tradição de humanidade entre os senhores e escravos era constante. Meus avós possuíam cera de 100 escravos, eles arruinados, pode-se dizer, com o decreto de 13 de maio, mostravam-se inteiramente serenos e justificavam a Princesa – pelas injustiças que haviam presenciado. Minha avó contava que o 13 de maio fora um dia de festa no Engenho. Danças, flores, todos manifestando gratidão aos senhores que compartilhavam da alegria dos escravos. Depois, vieram as ingratidões, abandono do trabalho, a paralisação do Engenho, mas ela e meu avô não desanimaram89.

O 13 de maio não ficou marcado apenas na memória dos membros da família Araújo

Góes. Outras famílias senhoriais da Bahia e do Brasil, também relembraram essa data como

um evento em que se concretizou a extinção do escravidão e das relações que se processavam

a partir dessa instituição. Em Minas Gerais, Helena Morley escrevendo em seu diário que

mais tarde seria publicado com o título de Minha Vida de Menina, refere-se “aos tempos do

cativeiro” e relaciona seu fim a essa data: “Vovó sempre se queixa que a Lei de Treze de

Maio serviu pra dar liberdade a todo mundo menos a ela, que ficou com a casa cheia de

negros velhos, negras e negrinhos”90. Em outro trecho da narrativa a narradora escreve:

88 Desde o início da década de 1870, a lavoura mergulhou numa crise financeira que se estendeu até o final do século XIX. A queda dos preços do açúcar nos mercados externos e a concorrência do açúcar de beterraba diminuíram o volume de exportação do produto. Para agravar a situação, a lavoura açucareira, extremamente dependente do trabalho escravo, vinha sofrendo as conseqüências da extinção do tráfico africano, em 1850, e das sucessivas leis emancipacionistas das décadas de 1870 e 1880. (Sobre isso ver FRAGA FILHO, Op. cit. B. BARICKMAN, Até a véspera, o trabalho escravo e a produção de açúcar nos engenhos do Recôncavo Baiano (1850-1881), Afro-Ásia, nº. 21-22. Bahia, s. ed., 1998-1999, pp. 209-227. CUNHA, Silvio Humberto dos Passos. Um Retrato Fiel da Bahia: sociedade-racismo-economia na transição para o trabalho livre no Recôncavo açucareiro, 1871-1902. (Tese de Doutorado em Economia), UNICAMP, 2004). 89 CABRAL, Anna Mariani. Prefácio. In: BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Araújo Góes. Contos. Salvador, Datil, S/D.., p. 36. 90 MORLEY. Helena. Minha vida de menina: diário de Helena Morley. 9ªEd. Livraria José Olympio. Rio de Janeiro, 1968. p. 95.

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Eu gosto de ver como os negros da Chácara são felizes. Mamãe diz que quando vovô morreu cada filho (era doze) ficou com os escravos de sua estimação e vovó trouxe os outros, que eram uns dez ou doze, quando se mudou para Diamantina. Como não havia o que fazer para eles e vovó nunca vendeu nenhum, pôs os negros na horta e as escravas ficaram fazendo rendas e trocando as pernas pela casa. Eu ainda me lembro de quando chegou a notícia da Lei de Treze de Maio. Os negros todos largaram o serviço e se ajuntaram no terreiro dançando e cantando que estavam livres e não queriam mais trabalhar. Vovó com raiva da gritaria, chegou à porta ameaçando com a bengala e dizendo: “Pisem já de minha casa pra fora, seus tratantes! A liberdade veio não foi pra vocês não, foi para mim! Saiam já!” Os negros calaram o bico e foram para a senzala. Daí a pouco veio Joaquim Angola em nome dos outros pedir perdão e dizer que todos queriam ficar. Vovó deixou, e os que não morreram ou casaram está até hoje na Chácara. Também com a vida que levam... [Grifos meus]. 91

No seu diário, Helena Morley escreve sobre fatos que teriam acontecido em sua

infância. A história se passa na cidade de Diamantina em franca decadência. O passado de

glórias e o presente de penúrias são determinantes na imaginação da menina-moça. Nas

citações acima a narradora descreve a reação de sua avó em relação a abolição alguns anos

antes do momento em que ela teria escrito o seu diário (1893-1895). Embora a narradora

afirme que a raiva da avó se devia ao barulho feito pelos ex-cativos ao cantar e dançar em

festejos pela sua liberdade, o que se deprende do texto é que ela poderia estar zangada pela

decisão dos negros em não trabalhar mais. Se, por um lado, a narradora afirma que a velha

senhora se julgava cativa pelo “peso” de manter os libertos, por outro, compreende-se pelo

contexto que eles tinham outras funções a desempenhar na chácara: os homens na horta e as

mulheres na renda e nos serviços domésticos. Ou seja, é provável que vovó Morley tivesse

perdido a paciência ao pensar que perderia os serviços não remunerados dos negros. Se não

fosse assim, que motivos ele teria para aceitar que eles continuassem sob seus domínios?

O já mencionado 13 de maio que marcou a extinção provocou transformações nas

relações entre senhores e subalternos também têm destaque no discurso de Helena Morley.

Observe-se que nas duas vezes que ela se referiu à abolição ela utilizou o mesmo termo. Pelo

visto, a data do Decreto da Princesa Isabel; ela compõe a memória social de uma elite, que

como atesta os escritos da escritora mineira, não se restringiram apenas aos baianos. A

escravidão foi uma instituição que esteve desde os tempos da Colônia entranhada não só na

economia, mas no cotidiano dos brasileiros.

Como salienta Marina Maluf, os senhores, mesmo aqueles de tendência abolicionista,

reconheciam a importância do trabalho escravo mais barato que o livre. A base econômica do

status e do poder encontrava-se na escravaria e no acesso e controle social da terra92. Dentro

91 Ibid., p. 167. 92 MALUF, Marina. Ruídos da memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 52-58.

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desse prisma, se justifica o desapontamento do velho Travassos, personagem de Letícia e de

Alfredo e Alberto, ambos senhores de engenho em Violeta & Angélica, em relação às

ingratidões dos ex-cativos que lhes “abandonaram” de forma “ingrata” após a lei Áurea ser

decretada. Cabe ressaltar que o principal capital do senhor de engenho estava investido na

pessoa do escravo, imobilizado como renda capitalizada, já que ele acumulava dupla função,

ou seja, era ao mesmo tempo fonte de trabalho e garantia de empréstimos93.

As transformações socioeconômicas ocorridas no Brasil do século XIX não atingiram

apenas a província baiana. Em São Paulo, a transição do mundo escravista para a sociedade

fundada em relações de trabalho livre também provocaram mudanças no modo de vida da

elite. Marina Maluf em Ruídos da memória trata de algumas dessas questões ao trazer à cena

as famílias de Floriza e Brasília, duas moças da elite cafeeira paulista que viveram nos fins do

século XIX. Segundo a narradora, essas transformações atropelaram o pai de Floriza –

fazendeiro de café paulista –, deixando-o tomado de profunda angustia e da sensação de ter

ficado à deriva ante a situação do incerto, do novo94. Situação semelhante parece ter

acontecido com a família de Anna Ribeiro, informação que ela também ocultou na sua

autobiografia, mas expressou livremente em sua obra literária. Marina Maluf mostra através

da análise das memórias de Floriza e Brasília as dificuldades encontradas por suas famílias

para enfrentar a transição da mão-de-obra escrava para livre. No caso de Brasília, Maluf

registra que a transição para o trabalho livre veio com a preocupação da substituição dos

negros pelos estrangeiros. Contudo, nos dois casos, a propriedade de seres humanos sem

dúvida acarretou toda sorte de problemas e também testava a “paciência e a habilidade das

senhoras”. Nesse período, constituíram-se relações tensas e desgastantes entre as senhoras e

os cativos sob sua autoridade95.

“Desanimados” ou não, o casal senhorial do Api tivera que ir morar por algum tempo

com o filho Pedro Ribeiro que, na época, servia como promotor substituto nos arredores da

cidade de Juazeiro. Foram momentos difíceis que marcaram tanto a vida do clã dos Araújo

Góes, que os fizeram repetir o mesmo discurso sobre a abolição durante anos: o governo não

respeitou os senhores do Recôncavo, permitindo que a abolição acontecesse sem nem lhes dar

nenhuma garantia. Por outro lado, os escravos tão “bem tratados” durante o cativeiro, viraram

as costas quando mais seus senhores precisaram. Muitos membros da família argumentavam

ainda que “na cidade não se sentiu os mesmos efeitos da abolição que o homem do campo

93 MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra 2ª Edição, São Paulo, Ciência Humanas, 1981. p. 26. 94 MALUF, Op. cit., p. 66 95 Ibid., p. 66-68.

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sentiu”. Traço que se torna acentuado na segunda fase de escrita da obra de Anna Ribeiro,

durante toda a década de 1910, pois, ressentida de sua condição, a elite procurava

justificativas para os tempos de infortúnio, que se agravaram naquele período.

É bem verdade que as dificuldades econômicas da elite já vinham se alastrando há

vários anos, bem antes de 1888. Desde o início da década de 1870, vários problemas

anunciavam as dificuldades econômicas da família de Anna Ribeiro. Ainda assim o 13 de

maio terá uma dimensão simbólica na significação do fim da era de glórias que Anna Ribeiro

narrou em Longos Serões do Campo. Foram momentos traumatizantes, que podem ter

contribuído para que a escritora inibisse seus ímpetos literários durante mais de quinze anos;

fizeram também com que ela recriasse várias versões literárias para essa mesma história,

durante a década de 1910.

Em Violeta & Angélica a narrativa já se inicia com as mágoas e os medos do senhor,

sendo nitidamente expresso, com o Senhor Alfredo temendo ver a sua propriedade entrar em

decadência. Em decorrência da “falta de braços”96, temia as privações a que sua família não

estava habituada, sem ter condições de oferecer-se como provedor em seus próprios domínios,

ele teme a corrosão do mundo senhorial, idealizado através do discurso paternalista. Nesse

momento, afirma a narradora, ante aos novos tempos, era preciso entrar na “luta da vida”. Em

Letícia os infortúnios do velho Travassos também começam após o 13 de maio: “Os estadistas

que levaram a princesa a dar este golpe nem ao menos cogitaram da época em que seria

menos conveniente” 97. Na narrativa ficcional de Anna Ribeiro, a potência do “golpe” teria

levado o engenho dos Travassos à sua derrocada final.

Na trama de Violeta & Angélica, a família extensa dos Bastos é dividida em duas

células familiares lideradas por Alberto e Alfredo. A narrativa mostra a diferença de postura

entre ambos após o “golpe”. Alfredo e Alberto Bastos eram filhos de um tradicional senhor

de engenho. O primeiro era mais previdente que o segundo. Sempre disposto a viver dentro

dos limites de sua nova condição de vida, consegue mesmo sendo lavrador do irmão, manter

uma condição mínima de sustento no Recôncavo, seguindo a “resignação” e o esforço do qual

sua esposa e filhas compartilhavam. Seu irmão, ao contrário, mesmo sendo um homem

“culto”, ostenta uma riqueza que não mais possuía, até vender o seu engenho para pagar as

96 Segundo Silvio Humberto dos Passos Cunha, a ameaça da falta de braços, no pós-abolição, foi mais retórica do que real, o que não significa que a transição ocorreu de forma fácil. Na verdade, os senhores de engenhos baianos e outros nortistas empreenderam uma forte resistência com vistas a prolongar a escravidão o máximo possível, com o claro intuito de reivindicar junto ao governo imperial e depois ao governo republicano, uma indenização pela perda da propriedade escrava e, assim, provocar sua recapitalização para novos investimentos. (CUNHA, Op. cit.). 97 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 169.

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dívidas contraídas por ele e por sua esposa, nas longas viagens que faziam para a capital.

Numa coisa os dois irmãos se aproximam: ambos compartilham dos mesmos sentimentos ante

o 13 de maio.

Tanto nos contos, quanto no romance estudados, dois personagens coletivos são

responsabilizados pelo golpe da abolição: “o governo” e o “escravo ingrato”. Se o primeiro

dera o golpe, o segundo aprofundou suas feridas. A culpabilidade do governo e a ingratidão

dos negros antes escravizados podem ser entendidas através de uma leitura contextualizada da

obra de Anna Ribeiro, caso contrário há um sério risco de serem feitas leituras anacrônicas

desses tipos sociais ou dos fins sociais que eles representam.

Muitos ex-senhores de escravos surpreenderam-se ao saber que o comportamento, as

atitudes e a linguagem dos homens e mulheres que até então serviam como cativos haviam se

modificado sensivelmente após a escravidão. Para se afirmarem como livres, os ex-escravos

procuraram distanciar-se do passado de escravidão, rechaçando papéis inerentes à antiga

condição. Em diversos engenhos, os ex-escravos negaram-se a receber ração diária, a seguir

para o canavial e a trabalhar sem remuneração. Ao demonstrarem o status de livres, muitos

passaram a expressar-se numa linguagem que os ex-senhores consideraram “atrevida e

insolente”. Segundo Walter Fraga Filho, poucos senhores não guardaram daqueles momentos

amargas recordações da maneira como seus antigos cativos passaram a se comportar98.

Nas possessões do Engenho Api, não houve mais produção de cana após o 13 de maio,

como afirma Anna Maria Mariani Cabral99, o engenho fora desativado pouco tempo depois do

“abandono do trabalho” por parte dos negros. Mesmo com todos os seus esforços para afirmar

que seu avô e avó [Anna Ribeiro e Sócrates Bittencourt] não desanimaram ante a falta de

trabalhadores para a lavoura, o contexto das suas lembranças e o ressentimento inscrito em

cada palavra diz o contrário.

Walter Fraga Filho destaca que em várias memórias, romances e relatos feitos pelos

antigos senhores de escravos, a abolição aparece como ruptura decisiva dos padrões, etiquetas

e valores estabelecidos na ordem escravista. Havia um interesse político e ideológico dos

senhores em conceber a abolição nesses termos.

a idéia de ruptura servia como importante argumento para mostrar quando a classe senhorial havia sido abandonada e injustiçada pela decisão do governo imperial de abolir a escravidão. E, mais que isso, o fato de que a abolição não fora precedida nem pela indenização, nem por leis complementares que garantissem algum controle sobre os libertos100.

98 FRAGA FILHO, Op. cit., p. 129. 99 CABRAL, Op. cit. 100 FRAGA FILHO, Op. cit., p. 139.

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Em Violeta & Angélica a narradora se restringe a afirmar que a classe dos agricultores,

“exasperados maldiziam a princesa, os ministros e todos os homens de estado que não se

haviam oposto a tão clamorosa injustiça”. O governo imperial sob as ordens da Princesa

Isabel e “seus ministros” teria deflagrado o tal golpe que arruinaria os senhores do

Recôncavo, mas no conto não há maiores referências a esse evento. Anna Ribeiro

aprofundaria essa questão dois anos depois dessa publicação, em 1908, no romance Letícia.

Na década de 1910, os lamentos e ressentimentos dos antigos senhores foram

retomados pelos donos de engenhos como forma de explicar a decadência da lavoura

açucareira. Portanto, era conveniente mostrar que a abolição havia rompido um estilo de vida

fundado em valores hierárquicos sólidos, como se o mundo escravista dos engenhos não

estivesse sob permanente tensão. Nas histórias de Anna Ribeiro, a culpa do governo em

relação aos infortúnios dos senhores é punida com a “revolução” da Proclamação da

República. Em Letícia, o velho Travassos expressa, revoltado, o sentimento de vingança em

relação ao “imperioso” ato da Princesa:

Os estadistas que levaram a Princesa a dar este golpe, nem ao menos cogitaram da época em que seria menos inconveniente. Deixassem para o fim da safra, quando já se houvesse colhido o resultado do capital empregado, que poderia garantir-nos a subsistência até organizar-se o trabalho. Nem isso, nem a menor indenização! Depois de atirar-nos as urtigas, conservam-se impassíveis! Só uma revolução101.

Como bem afirma o romancista e abolicionista baiano Xavier Marques (1861-1942),

há algum tempo era possível sentir “o vento rouco e crescente que vai soprando, carregado de

germes de tempestade”, que iria arrastar as duas mais importantes instituições oitocentistas, a

escravidão e a monarquia102. Para a narradora, um fato estaria indissociavelmente ligado ao

outro. E mais, o segundo seria conseqüência do primeiro.

Sidney Chalhoub ao analisar uma das crônicas de Machado de Assis, publicadas em

maio de 1888, discute algumas questões cabíveis aqui. Chalhoub traz à tona a história de

Pancrácio, escravo que ganha a alforria de seu senhor antes da abolição. O senhor, dando

como certa a abolição, quis se aproveitar da situação, oferecendo a liberdade do negro para

que com isso alcançasse a sua “gratidão”. O narrador afirma que libertou o moleque antes da

abolição oficial e decidiu dar um banquete, afirmando que se “perdido por mil, perdido por

mil e quinhentos”.

101 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., pp. 69-70. 102 MARQUES, Xavier. As voltas da estrada. Salvador: Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia/ Academia de Letras da Bahia, 1998, p. 11.

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O senhor de Pancrácio mostra-se ainda ressentido pelo fato de o Estado estar tentando

interferir em suas relações com o negro, e resolve se antecipar à lei, dizendo ao escravo: “és

livre”. Outro aspecto abordado na crônica, observado pelo autor de Visões de Liberdade, é a

falência de “certa política de domínio”. Um dos pilares da política de controle social da

escravidão era a idéia de que o ato de alforriar se constituía numa prerrogativa exclusiva dos

senhores. Intentando convencer os escravos de que o caminho para a alforria passava

necessariamente pela obediência e fidelidade em relação aos senhores103.

A revolta do velho Travassos na narrativa romanesca de Anna Ribeiro remete à

mesma questão: a interferência do Estado nas relações com seus escravos e a negação das

suas prerrogativas como senhor. Diferentemente do senhor do escravo Pancrácio, Travassos

não tinha o “dom de prever” o dia em que se daria a abolição, e fora pego de surpresa pela lei.

Fora traído pelo governo que, pensava ele, ajudou e ajudava a existir. O resultado, de acordo

com a sua lógica de pensamento, só poderia ser a “revolução”.

O exaltado discurso do pai de Letícia deixa bem claro o ressentimento da “classe dos

agricultores” com o governo. Ele se queixa que o governo não levou em consideração a

situação dos “homens do campo”, nem ao menos indeniza os senhores pela perda. Esses

“absurdos” justificariam então uma “revolução”. Em Letícia, portanto, o 13 de maio preconiza

o 15 de novembro, o segundo era o resultante do primeiro, como nos indica a narradora da

trama:

Decorreram dezoito meses depois dos últimos acontecimentos por nós relatados. Grande revolução se operara em nosso país, caíra o Império e fundara-se a República. Outros mais hábeis se incubam de historiar tal acontecimento, não sei se feliz ou funesto104.

A narradora nota que “apenas dezoito meses” após a abolição da escravatura o Império

brasileiro tem o seu fim. Para ela, eram os “agricultores” que mantinham o trono brasileiro. E

mais, ela deixa implícita que nas bases da coroa, fundada na monocultura de exportação

estava a escravidão e esta seria o mal necessário e pressuposto da manutenção do mundo

patriarcal que dominara o Brasil desde a Colônia até o Império. Contudo, ela tem dúvidas se a

tal “revolução” era “feliz” ou “funesta” para a elite senhorial. Dessa forma, a abolição foi

injusta porque não considerou a classe dos agricultores do Recôncavo nem as suas

necessidades. Isso justifica o seu ressentimento e a “revolução” que operaram em função da

traição do governo.

103 CHALHOB. Sidney, Visões de liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo. Cia. das Letras, 1990. pp. 99-100. 104 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p.103.

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No início do conto Violeta & Angélica, exposto no início dessa seção, evidenciam-se

essas questões. No trecho citado anteriormente, Anna Ribeiro externa toda a lógica das

representações da elite sobre os traumas da abolição e os discursos utilizados para lidar com

aquela situação no decorrer dos anos. A idéia de que no cativeiro os ex-cativos estavam

habituado “ao conforto da abastança”, e que o governo os submeteu à “vadiagem” e as

“privações da pobreza”, sintetizam as imagens difundidas por senhores de engenho no pós-

abolição, a exemplo do Barão de Vila Viçosa.

O medo dos ex-senhores em Violeta & Angélica de sofrer represálias dos negros está

implícita na expressão “ainda bem que os escravos eram brasileiros”, que traz um certo alivio,

ao mesmo tempo naturaliza a idéia de que esses grupos subalternos eram passivos. A

narradora relaciona o 15 de novembro ao 13 de maio, justificando a atitude “extemporânea” e

“imprevidente” do governo. E isso tudo ela afirmou porque não queria “avaliar” ou

“descrever” aquela época. O “velho monarca” ainda recebe status de santificação antes de a

narradora entrar novamente na história, depois de tecer inúmeras considerações sobre o

contexto de sua trama. O fato é que nesse trecho, por um momento, a narradora esquece-se do

seu posto e se coloca como sujeito da história, que se lembra de fatos pessoais e coletivos

entremeados por representações.

Nessa passagem, também fica claro que na história fictícia de Anna Ribeiro, o 15 de

novembro teria sido uma resposta da “classe dos agricultores” ao golpe imprevidente da

Princesa. A historiografia baiana contemporânea afirma que o advento da República

prenunciava a prosperidade econômica e renovação política para o Centro-Sul do País, mas

para o Nordeste, e para a Bahia em particular, ela significava, aos olhos das elites,

agravamento do marasmo econômico, perda de prestígio político e a ameaça de conturbação

política.

Sendo assim, as elites baianas resistiram até onde puderam à implantação da

República105. A idéia que se quer passar nesse discurso é que a proclamação da República

seria uma resposta das elites contra o golpe da abolição, quando na verdade também esse

evento teria tido mais a ver com as elites do centro-sul do que das nordestinas. A ligação

estabelecida por Anna Ribeiro entre a abolição e o advento da República sugere que a

oligarquia teria escolhido outra forma de organização política a partir do momento em que a

Monarquia não mais atendia aos interesses das oligarquias regionais, no caso da Bahia,

“classe dos agricultores” do Recôncavo. Escrito cerca de vinte anos após os acontecimentos

105 SAMPAIO, Consuelo Novais. Os partidos políticos na Primeira República: uma política de acomodação. Salvador, Editora da Universidade Federal da Bahia, 1998. p. 32.

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que marcaram o fim da escravidão e do Império, o discurso presente no romance demonstra o

ressentimento da elite baiana com as decisões vindas da Corte, que em sua opinião não

consideraram as limitações da lavoura baiana naquele momento. “Nem ao menos cuidaram de

que abolição viria em meio a colheita”, afirma a narradora, expressando a indiferença do

governo imperial.

Machado de Assis, observando o processo por dentro do Centro-Sul, também

estabeleceu essas ligações tecidas por Anna Ribeiro, só que na produção da suas crônicas, em

meio aos próprios acontecimentos, inclusive antecipando que o advento da República seria

uma questão de tempo, depois que a abolição ocorresse. Na mesma época em que escreveu o

texto sobre Pancrácio, Machado escreve sucessivas crônicas onde afirmava ser a “revolução”

dos agricultores contra a Monarquia, ainda no dia 11 de maio,

- Mas então quem está aqui doido? - É o senhor; o senhor é que perdeu o pouco do juízo que tinha. Aposto que não vê que anda alguma coisa no ar. - Vejo; creio que é um papagaio. - Não senhor; é uma república. Querem ver que também não acredita que está mudança é indispensável? - Homem, eu, a respeito de governo, estou com Aristóteles, no capítulo dos chapéus. O melhor chapéu é o que vai bem à cabeça. Este, por ora, não vai mal. - Vai pessimamente. Está saindo dos eixos; é preciso que isto seja senão com a monarquia, ao menos com a república, aquilo que dizia o Rio-Post de 21 de junho do ano passado. Você Sabe alemão. - Não. - Não sabe alemão? E, dizendo-lhe eu outra vez que não sabia, ele, imitando o médico de Moliére, dispara-me na cara esta algaravia do diabo: - És durfte leicht zu erweisen sei dass Brasilien weniger eine konstitutionelle Monarchie als absolute Oligarchie ist. - Mas o que isto quer dizer? - Que é deste último que deve brotar a flor - Que flor?106

Em relação a este texto, John Gledson conclui que a mudança de regime se daria

inevitavelmente, mas que essa transição seria “simplesmente, uma mudança de rótulo: antes e

depois, a oligarquia governará”. Algo [a monarquia] está “saindo dos eixos” e “isto” terá de

assumir a forma de uma República. Prosseguindo a análise, Gledson ressalta que embora nada

seja explicitamente dito (o que é muito comum nesses textos, exigindo que o leitor estabeleça

conexões essenciais), podemos entender a argumentação da seguinte maneira: a cada uma das

106 Apud GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. 2ª ed. rev. São Paulo, Paz e Terra, 2003.

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formas de dominação oligárquica – escravidão e mercado de trabalho – corresponderá uma

forma diferente de regime (oligárquico), a Monarquia ou a República107.

Na análise de outra crônica, de 27 de maio de 1888, Gledson conclui que uma vez

decretada a abolição, o regime republicano seria inevitável. E ratifica a idéia de que “ele

[Machado] sabia que o Brasil era menos uma Monarquia Constitucional do que uma

oligarquia absoluta. Na crônica, Machado dá voz a um meteorito, que caiu no interior da

Bahia. Ao ser resgatado por um oficial da marinha, o meteorito expressa a sua visão

“experimentada e olímpica” da escravidão: “pois é natural que nas regiões donde veio [o

Nordeste] tivesse testemunhado muitos cativeiros e muitas abolições”. 108 Gledson destaca

que em algumas províncias nordestinas, houve senhores que tentaram insistir com a

escravidão mesmo depois do 13 de maio.

Em Anna Ribeiro, porém, essas “abolições” aparecem quando se destaca a abolição

que houve na cidade e no campo. Na primeira não se teria tido maiores prejuízos; na segunda

os efeitos foram incalculáveis – seu referencial, do campo é o Recôncavo, deve-se lembrar.

Prosseguindo a conversa o próprio meteorito o oficial,

[...] não lhe ocultou nada; contou-lhe que andam por aí as idéias republicanas, e que há pessoas para quem o advento da república é certíssimo. Chegou a ter-lhe um artigo da gazeta Nacional, em que dizia que, se ela já estivesse estabelecida, acabada estaria há muitos anos a escravidão109.

Para Machado, havia uma ligação entre o fim da escravidão e o início da República.

Ele também entendia que essa República seria uma expressão das oligarquias regionais. E

mais os antigos membros monarquistas e escravagistas agora seriam republicanos, pois “como

se sabia bem, inúmeros deles haviam saído dos partidos monárquicos porque identificavam

Império e Abolição, e achavam que República traria compensações" 110. Machado tinha uma

visão bastante ampla sobre os acontecimentos que se processavam em 1888-1889, ele pensava

de forma desconfiada e critica a formação da República Federativa, pois para ele tratava-se

apenas da expressão da vontade das oligarquias regionais.

Em Anna Ribeiro são discutidas essas mesmas questões, mas do ponto de vista de uma

das elites regionais que Machado se referira. A relação que ela faz entre o fim da abolição e o

início da República também são semelhantes. Há, porém, um diferencial: nas narrativas de

107 GLEDSON, John. Machado de Assis: Ficção e História. 2ª ed. rev. São Paulo, Paz e Terra, 2003. pp. 148-149. 108 GLEDSON. Op. cit, pp. 164-168. 109 Apud GLEDSON. Op. cit., p. 166. 110 GLEDSON. Op. cit., p. 171.

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Anna Ribeiro, o advento da República é um evento provocado por vingança das oligarquias.

Era uma “revolução” provocada pelo “golpe”.

Sampaio x Eurico: um embate em torno da escravidão

Na Bahia, segundo Robert Conrad, entre 1864 e 1887 a população escrava caiu de

300.000 para 76.838 pessoas. Neste caso, o tráfico interprovincial também contribuía para a

diminuição do número de escravos111. Apesar da relevância dessas informações, a importância

histórica da lei de 1888 não pode ser considerada apenas em números de escravos a serem

alforriados. O impacto que a extinção do cativeiro causou numa sociedade constituída a partir

do binômio senhor/escravo não cabe em cifras. Ao analisar as principais áreas cafeeiras do

Sudeste, Hebe Maria Mattos avaliou que a abolição teve um caráter traumático, pelo seu

sentido irreversível e desarticulador das antigas relações de subordinação e controle social.

Em meio à variedade de “saídas” que preenchiam o debate sobre a “questão servil” era

possível vislumbrar alguns pontos de convergência. O maior deles era o desejo de que a

extinção do escravismo não comprometesse a ordem social que, grosso modo, significava a

preservação da autoridade dos antigos proprietários frente aos seus subalternos, fossem eles

ex-escravos ou negros livres. Era preciso não perder de vista a “força moral” dos senhores112.

O “decreto da Princesa”, que acabou legalmente com o trabalho escravo no Brasil foi, para os

senhores do Recôncavo açucareiro, um evento traumático, pois abalou justamente a dita

“força moral”. Os mesmos senhores acabaram construindo um discurso de que a decadência

da cultura canavieira nesse período tinha muito a ver com a falta de braços que os cativos

empregavam na lavoura.

Se o golpe da abolição foi dado pelo governo, os ex-cativos deram o golpe de

misericórdia na ideologia senhorial que ainda tinha pretensões de manter a dependência do

“elemento servil” às suas lavouras. Os negros não atenderam à idéia dos senhores de que sua

política de concessões resultaria na permanência “agradecida” no pós-abolição. Nesse ponto a

ideologia senhorial teve de encarar o fato daqueles que estavam do outro lado da pirâmide

social poderiam entender a sua própria liberdade em outros termos.

111 CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil (1850-1888), Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, pp. 352-353. Destaca-se os autores que se detiveram na análise do mercado de escravos na Bahia. (BARICKMAN, Bert J. Um contraponto baiano: Açúcar, fumo, mandioca e escravidão no Recôncavo baiano (1780-1860. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003). 112 ALBUQUERQUE, Op. cit.

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Iacy Mata ressalva que o 13 de maio, na Bahia, não significou apenas o

reconhecimento de um fato consumado; alguns escravocratas baianos recusaram-se a crer que

a lei abolira imediata e incondicionalmente a escravidão. Diferentemente das leis de 1871 e

1885, referentes à propriedade escrava, o decreto de 13 de maio fora aprovado às pressas, não

tendo sido objeto de muitas discussões. O choque destes senhores não se restringiu à

aprovação da lei; referiu-se também às atitudes de autonomia e independência que os libertos

assumiriam logo após a abolição113.

Os senhores ficcionais que protagonizam as histórias de Anna Ribeiro são quase todos

eles “cultos” e por isso, abolicionistas, apenas aos lavradores incultos ainda é admitida a

característica tradicionalmente escravocrata. Mas o sentido da abolição deveria partir das

mãos dos senhores, como forma de uma “concessão” ou de uma “dádiva”, que implicaria na

manutenção das relações paternalistas com os negros. Na verdade, o que eles propunham era

simplesmente a passagem de um tipo de relacionamento social econômico injusto e opressivo

para outro114. Numa transição que passaria por suas mãos, segundo as prerrogativas que

caracterizavam o velho paternalismo senhorial, como as “dívidas de gratidão”.

Em contraposição ao que idealizava essa elite senhorial, como nos indica Iacy Mata, a

liberdade, para os ex-cativos, esteve dotada de muitos significados: a possibilidade de

movimentar-se sem a necessidade de autorização do ex-senhor, o fim dos castigos corporais, a

escolha como e em que tempo trabalhar. A liberdade parecia estar longe de “vender a força de

trabalho em troca de um salário”. Para os ex-escravos do interior baiano, a liberdade parece

ter assumido várias formas e sentidos culturais. Vários comportamentos e ações dos libertos

eram marcados pelo desafio à autoridade (ex)senhorial; suas ações muitas vezes caminharam

no sentido de destruir qualquer autoridade real ou simbólica que o ex-senhor tentasse ainda

dispor 115.

Os ex-senhores que, no pós-abolição, tentaram “dominar” seus ex-escravos com o

mesmo despotismo que antes os caracterizava, ficavam surpresos quando os libertos

demonstravam que não aceitariam os termos do antigo poder senhorial. Os que esperavam que

os libertos permanecessem fiéis, obedientes e “respeitosos”, cativos da dependência pessoal,

tiveram suas esperanças frustradas116. As atitudes decepcionantes dos ex-escravos deixam

perplexos os personagens senhoriais, ficcionais, de Anna Ribeiro.

113 MATA, Iacy. Os treze de maio: polícia e libertos na Bahia pós-abolição (1888-1889). (Dissertação de mestrado em História). Salvador, UFBa, 2002. 114 GLEDSON, John. Op. cit. 115 MAIA, Iacy. Op. cit. 116 CHALHOUB. Visões da Liberdade. Op. cit., p.134.

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Num primeiro momento ele analisa a revolta do velho Travassos em relação à

desorganização do trabalho e a “rebeldia” dos escravos:

-É impossível viver assim! Nunca pensei que nossos escravos, sendo tão bem tratados, nos deixassem com tanto desapego. Sempre ouvi dizer que a escravidão traz vileza, mas eu muitas vezes respondia a essa máxima que julgava sediça (sic) com a frase da autora da Cabana do Pai Tomás: “Tratem-nos como cães e eles vos tratarão como cães e eles procederão como cães: tratem-nos como homens e eles procederão como homens”. Mas qual! [...] Quando lhes comuniquei que eram livres, disse-lhes: os que não quiserem ficar comigo podem retirar-se; não lhes guardo por isso rancor; só lhes exijo eu me previna para poder guardar o trabalho. Todos protestaram não me deixar; alguns acrescentaram: “Ainda que meu senhor nos tanja, eu não saio; aqui hei de morrer. Nós não tivemos senhor, e sim pai117

A surpresa do comportamento do senhor diante da mudança dos escravos e a patente

ineficácia das formas tradicionais de mando senhorial são patentes. Ele destaca também a

ótica paternalista do senhor frente ao comportamento dos ex-escravos. Entretanto, algumas

outras questões podem ser tiradas desse episódio. O senhor achou que foi o primeiro a lhes

comunicar sobre a liberdade. Segundo, o velho Travassos afirmou que não guardaria nenhum

“rancor” aos que quisessem partir. Terceiro, e talvez mais importante, foi a dissimulação dos

ex-cativos ante ao senhor “Ainda que meu senhor nos tanja eu não saio, não tivemos senhor e

sim pai”. Essas três questões nos ajudam a entender melhor qual seria a tal ingratidão, da qual

os senhores dos engenhos do Travassos reclamavam. Em outro trecho o senhor continua a

reclamar do comportamento dos ex-cativos:

Ora, marco um dia para moagem; aviso a todos; estão os picadeiros cheios de canas; chego ao engenho, faltam alguns; onde estão? Mudaram-se sem dar-me a menor satisfação. Há quem sofra isto com paciência? Manhas, falsidades, como que com propósito de fazer pirraça118.

Fica claro na afirmação seguinte que o velho Travassos considerava uma falsidade os

negros terem dito que nada os faria sair das posses do seu engenho, mas na verdade eles

estavam apenas se utilizando da lógica de seu senhor para enganá-lo. Travassos ainda disse

que não era tão “ingênuo” para acreditar na afirmação dos seus ex-escravos, mas que estava

cônscio de que, como sempre os tratou com “humanidade”, não esperava vê-los tão depressa

desmentir “tais protestos”. Os tais protestos eram justamente as juras de fidelidade que os

negros lhe fizeram.

Quando menos o velho Travassos esperava, os ex-cativos foram embora, sem deixar

rastros, nem dar a menor satisfação, revelando a triste verdade que o ex-senhor teria de

117 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 68. 118 Ibid., p. 69.

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encarar: como indivíduos livres, eles não deveriam a menor satisfação a quem quer que fosse,

e isso Travassos parecia ainda não entender. A prerrogativa de ser o portador da benção da

abolição sugere não ter convencido os negros a ficarem na sua lavoura em agradecimento por

serem tão “bem tratados”. Ainda assim, Travassos custa a entender aquilo que de fato

aconteceu: o que ele chamava de falsidade era a sagacidade dos negros em utilizar-se da

caduca ideologia senhorial para garantir que iriam embora do engenho sem maiores

problemas. E foi exatamente isso que aconteceu.

O “rancor” que o senhor de engenho prometeu não sentir, era uma estratégia

discursiva para fazer-lhes pensar que após o “tratamento humanitário” era praticamente uma

obrigação dos ex-cativos continuarem trabalhando no mesmo engenho. Tal recurso não

funcionou de fato. Assim, percebe-se no relato do Travassos esse mesmo ódio por causa da

“falsidade” dos negros.

Outra discussão que pode ser levantada ainda sobre o romance Letícia, refere-se a uma

conversa num almoço promovido por Tia Henriqueta. Na vasta sala de jantar da casa-grande,

ao redor da mesa antiga, achavam-se a família e hospedes de Travassos, entre os dois

senhores de engenho. O silêncio dos comensais foi quebrado quando a Tia de Letícia pede aos

hospedes “desculpas das faltas que encontrariam, devido à rebeldia dos criados”. Fraga Filho

observa que essas palavras serviram para desencadear um acirrado debate entre os presentes

acerca das maneiras corretas de lidar com os trabalhadores egressos da escravidão119.

Esse episódio suscita mais algumas hipóteses relevantes para essa discussão: primeiro,

a fala da Tia Henriqueta era o pretexto que Eurico precisava para iniciar uma série de

provocações contra Sampaio, o tipo do senhor “linha dura”. Segundo, a “pobre” e

“desajeitada” Tia Henriqueta ainda sofre com o sarcasmo de Eurico, por causa de suas

lamúrias de senhora de engenho que sofre com as ingratidões dos ex-cativos, criados como

“filhos”. Terceiro, o grande protagonista de toda a conversa é mesmo o jovem Eurico, que

provoca a todo o momento os senhores escravocratas e não poupa nem mesmo o seu próprio

sogro. Por último, a discussão não se restringe apenas à questão do tratamento para com os

ex-cativos, ela coloca em cheque o próprio caráter da escravidão.

Na construção da trama de Anna Ribeiro, Eurico era o arquétipo do homem de classe

média urbana, oriundo da corte, que não se importava com questões morais e religiosas e

gostava de viver nos vícios e no adultério. Contra tudo que Letícia acreditava, Eurico era um

estudante de direito abolicionista convicto, que vivia de rendas de imóveis herdados por seu

119 FRAGA FILHO, Op. cit., p. 136.

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pai, cujas características ele tinha herdado. Para Eurico a escravidão era uma instituição

horrenda que conferia a alguns homens o suposto direito de propriedade sobre outros homens.

Para entender melhor os motivos da discussão, deve-se enfatizar o seu fim, quando

Eurico revela os motivos das suas palavras e atitudes provocadoras em relação a Sampaio.

Segundo Eurico: “Não sabes que malvado é aquele [Sampaio]; sei de coisas horripilantes por

ele praticadas com os escravos, e hoje com homens livres que manda prender, como

autoridade policial, e trata-os a tronco e a palmatória. Só posso ganhar cortando relações com

tal fera”120. Com certeza Sampaio era o modelo do perverso senhor de engenho que sempre

torturou seus escravos e que, mesmo com a abolição, continuava com a violência contra os

ex-cativos, como se esses ainda fossem sua propriedade. A questão é que Eurico sabia disso

desde o início. E por isso, ele afrontou Sampaio desde o almoço até a hora do descanso,

quando todos os convidados e família foram no terraço.

A “coitada” da Tia Henriqueta ofereceu apenas o pretexto que Eurico estava esperando

para procurar afrontar Sampaio. Quando ela se queixou da criadagem, e afirmou que no

“tempo da escravidão” o serviço doméstico era mais bem feito, a Senhora acabou dando o

motivo que Eurico precisava para iniciar suas provocações. O sarcasmo e astúcia dos

comentários de Eurico são questões que não podem passar despercebidas.

Enquanto Henriqueta ainda reclama da ingratidão e rebeldia dos escravos, Sampaio

afirma de forma prepotente: “Eu nunca brinquei com os meus [escravos] e, entretanto estão

quase todos comigo. Ainda ontem dei uma boa esfrega em que deixei no tronco [...]. Os

negros que fiquem vadiando” 121, disse Sampaio com azedume. Ouvindo isso, Eurico soltou a

sua primeira irônica afirmação: “- É se vadiarem, não será nada de mais: outrora eles

trabalhavam e os senhores vadiavam: trocaram-se os papéis. Em tudo deve haver nesse

mundo compensação” 122.

A intervenção de Letícia na discussão tenta amenizar um pouco a questão: “ora

Eurico, tu e o Sr. Sampaio não se podem entender. Foram criados em meios muito diferentes.

Eurico nunca teve escravos, continuou ela dirigindo-se ao lavrador, nunca lidou com eles: é

muito natural que fale assim” 123. Eurico representava a classe média urbana que, segundo a

autora, não sofreu quase nenhum abalo com a abolição, ao contrário dos senhores do

Recôncavo. Para além disso, ele também representava a origem da decisão que não levou em

consideração os agricultores do Norte: ele era da Corte.

120 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 103 121 Idem, p. 93. 122 Idem, Ibid. 123 Idem, Ibid.

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Acabada a primeira parte do embate de Eurico contra Sampaio, novamente é a dona

Henriqueta que fornece o motivo para um novo confronto. Mas, agora, Eurico já provoca

claramente a senhora, para que ela se manifeste. Note-se novamente o tom sarcástico do

jovem carioca:

- Mas, minha tia, disse Eurico [ fazer as vezes de cozinheira], é uma glória: faz tudo e do melhor modo. Não deve mais queixar-se da abolição: os escravos não lhe fazem falta. É porque não está no meu lugar! Tornou D. Henriqueta. Não são somente as faltas; os desaforos, os insultos! A isto é que o governo devia dar providência. - Ora, pelo amor de Deus! Minha tia não fale assim! Tais idéias não se coadunam com os princípios religiosos que a tenho visto professar. Cristo foi o grande Apóstolo da liberdade, e pregou sem cessar a igualdade e a fraternidade. A boa senhora, um pouco confusa, respondeu quase chorando. - Mas, Eurico, quem não se recente da ingratidão? Muitos deles criei-os ao colo; tratava-os a todos mais como uma mãe de que como uma senhora. O Sr. Candido é testemunha. Está é a pura verdade, apressou-se a responder. Aqui a mesa era cercada das crias esperando os restos do jantar que a senhora repartia com todas. E como os tratava nas doenças! Eram como se fossem filhos! Eu também sou testemunha de tudo isso, disse Eurico, dirigindo-se a D. Henriqueta; vi durante os dias que aqui passei quando a senhora era boa e humana com todos os escravos. Mas como verdadeira cristã deve perdoar as ofensas; é o que ensina o Divino Mestre. E não toques mais nisto124.

A “boa senhora” mal consegue perceber que fora usada por Eurico para atingir

Sampaio. Em todo esse diálogo Eurico o obrigou a ouvir mais algumas provocações sem nada

poder dizer, pois a conversa não se dirigia diretamente a ele. Eurico chega a afirmar que a

pobre Tia era melhor cozinheira que as escravas. Continuando as críticas à escravidão, Eurico

não poupa nem mesmo a Igreja. Mesmo não sendo religioso, ele usa as palavras de Jesus

Cristo, para confundir a senhora. Ela se sente tão desnorteada que pede ajuda a Cândido. Esse

por sua vez acaba deixando a situação mais complicada do que antes. A “boa” senhora vivia

cercada de “crias”, que alimentava com os “restos” do jantar. Contraditoriamente ele afirma

que esse era o tratamento que a senhora deferia aos seus “quase filhos”. Para terminar trecho,

Eurico aconselha, a “boa” senhora a perdoar as ofensas.

O almoço acabou, mas o confronto entre Eurico e Sampaio ainda reservaria mais

algumas trocas de farpas. No terraço da casa, quando todos descansavam do almoço, Sampaio

pergunta a Eurico como ele se sentia ao ver a lavoura do seu sogro totalmente abandonada:

Então, Sr. Doutor, disse a Eurico; não o entristece a diferença que nota nesta propriedade em um outro tempo tão zelada por seu sogro? - Muito pouco, respondeu o mancebo, em comparação de outros espetáculos que não só me entristeciam, como me revoltavam. O que era horrível era ver pobres entes, iguais a

124 Ibid., p. 96.

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nós, porque fazem parte da humanidade, vergando sob o peso do trabalho embrutecedor, para alimentar o luxo, os caprichos e até os vícios de certo privilégios Era ouvir falar de castigos bárbaros a que estavam sujeitos esses infelizes julgados por um só juiz, às vezes tão ignorante como o próprio réu, que em uma atroz sentença recebia o único premio de uma vida de trabalho e opressão. - Mas nem todos eram tiranos, Sr. Doutor, apressou-se a dizer o Candido; por exemplo seu sogro: nunca houve melhor cativeiro. E, este seu criado não foi dos maus senhores. - Bem sei, replicou Eurico. Estes porém, eram exceções. Em geral os senhores de escravos não passam de verdadeiros verdugos! Ainda os bons incorriam em um grande crime. Cedendo a fúteis considerações, não denunciavam os malvados autores de revoltantes atrocidades. Neste crime incorreu meu sogro e de certo por isto está sendo castigado... O Sampaio, a quem cabia a carapuça, subiu à serra, e rouco de raiva estrugiu.

Decididamente os ânimos esquentaram. As palavras de Eurico, enfim, fizeram

Sampaio perder as estribeiras. A provocação interrogativa de Sampaio levou ao desfecho final

da discussão. Sem mais nada a fazer na casa-grande dos Travassos, tanto ele como Sr.

Candido se retiraram: “com essa vou me retirando!”, disse Sampaio. As afirmações de Eurico

ridicularizaram as posições de Tia Henriqueta, de Cândido e até mesmo de Sampaio. O que

houve foi um embate ferrenho entre os senhores do Recôncavo e um carioca de classe média.

Eurico parecia ter parte nos meios radicais abolicionistas brasileiros. Suas idéias, em muito se

aproximam das de Joaquim Nabuco e outros correligionários. Em suas obras, Joaquim

Nabuco critica ferozmente a escravidão, e se declara um abolicionista convicto que lutou

abertamente por esses ideais. Nabuco criticou a posição da Igreja e do governo ante a

“nefanda” instituição, mas sempre deixou exalar uma crítica preconceituosa também aos

“infelizes” escravizados, com suas praticas “fetichistas”, corrompidas pelo cativeiro. 125.

No inflamado discurso de Eurico não foi poupado nem mesmo o seu sogro, o velho

Travassos, que já estava doente em virtude das “desgastantes” relações com ex-cativos. Na

verdade, Travassos não suportava viver num mundo onde o poder secular dos senhores do

Recôncavo não mais atuasse como acontecia há muito tempo naquela região. É nesse sentido

que se defende a idéia de que com a sua iminente morte, Anna Ribeiro sinalizava a morte de

um mundo. Assim, acredita-se que ela “não apenas sugere” que a perda da sociedade escrava

provocou a morte do velho Travassos, mas é sua intenção mostrar, como o fim da escravidão

acabaram as instituições que mantinham o mundo dos senhores. O mundo ilusório e

contraditório, é bem verdade, foi uma ideologia que por muito tempo projetou a “classe dos

125A esse respeito ver NABUCO, Joaquim. A escravidão. Prefácio de Manuel Correia de Andrade. – Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. ________. Minha formação. Coleção Obras imortais da literatura, Vol. 42. Editora Três. Rio de Janeiro: 1974.

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agricultores” como absolutos em um mundo criado à sua vontade, mas a sua decadência e

morte também foram alvos da ficção de Anna Ribeiro.

A “ingratidão” de Maria e o “exemplo” de Josefa

A simples falta de serviçais para trabalhar na cozinha da casa-grande se transforma

numa “cena” dramática digna de inúmeros comentários por parte dos senhores e senhoras de

engenho. A (ex)senhora de engenho Anna Ribeiro lança mão de seus atributos de escritora

para construir modelos e contra-modelos de subalternos. Assim, existe o “bom” e o “mau” ex-

cativo e ele é caracterizado de acordo com a sua subordinação incondicional ou não ao seu ex-

senhor. Essa subordinação, na ótica paternalista, deve ser uma forma de agradecimento pelo

“bom cativeiro” que tiveram sob o poder das “piedosas famílias senhoriais”. Dessa forma,

enquanto uma é o modelo idealizado pelos senhores e se mostra tão “agradecida” a ponto de

trabalhar de graça e de atender aos seus desmandos; a segunda, pelo contrário, é demonstrada

pela narradora como “rebelde” e ingrata, por que “abandona” seus senhores logo após tomar

consciência da Lei Áurea. Anna Ribeiro discute as posturas adotadas pelos “bons” e pelos

“maus” ex-cativos e constrói estigmas e eufemismos que ajudam a compor esses tipos. As

“Marias” e “Josefas”, como as personagens do conto Violeta & Angélica, fizeram parte não só

da ficção de Anna Ribeiro, como também do imaginário dos ex-senhores e senhoras de

engenho no Brasil.

Silvio Humberto dos Passos Cunha menciona que o controle sobre os libertos e a

necessidade de mantê-los sob a disciplina do trabalho eram preocupações centrais das elites

dirigentes nas sociedades pós-escravistas. Entretanto, observam-se diferenças acerca dos

mecanismos adotados para controlá-los, o que, por sua vez, guarda uma relação fundamental

com o tamanho do passado escravista a ser administrado. A atmosfera dos primeiros dias de

liberdade e a reação de perplexidade e indefinição dos oligarcas e seus porta-vozes

sinalizavam, em todo momento, que a economia baiana, em particular o Recôncavo,

caminhava para a débâcle caso não fossem adotadas medidas urgentes com vistas à

reorganização do trabalho, fosse compelindo o liberto ao trabalho ou arregimentando novas

fontes de mão-de-obra126. Com a Lei do 13 de maio no entanto, muitos ex-cativos dirigiram-

se para a cidade de Salvador, ou para outros locais abandonando o local onde viveram o

antigo cativeiro, provocando uma desestrutura nas antigas lavouras e não só lá, mas como

126 CUNHA, Op. cit., 126.

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registra Anna Ribeiro em sua prosa, muitas ex-senhoras se ressentiram de ter que fazer os

serviços domésticos, antes atribuídos aos escravos. O Barão de Vila Viçosa registra a situação

das “pobres” senhoras nos tempos seguintes a abolição:

Quando mães de famílias qualificadas viram-se obrigadas a ir para a cozinha, quando crianças ficarão sem amamentação, viúvas octogenárias foram forçadas a esmolar o pão pelas portas, quando os próprios libertos incapazes de trabalho, abandonados pelos filhos morreriam de fome e se não contassem com a caridade de seus ex-senhores, estava eloqüentemente demonstrado que a lei 13 de maio era um ponto final à colheita da safra.127

O artigo do Barão reforça aquilo que Anna Ribeiro registrou sob o viés da ex-senhora

de engenho. Demonstra também a visão dos ex-senhores sobre a sorte dos negros, uma vez

fora dos domínios dos antigos senhores. Descontando a manipulação discursiva empregada

pelo Barão para convencer os leitores do Diário da Bahia de que a abolição da forma com que

foi precedida pelo Estado brasileiro foi prejudicial para ambos os lados o que fica claro

também é o ressentimento do ex-senhor em verificar que as elites femininas dos engenhos de

açúcar não teriam mais a “Corte de subalternas” ao seu redor para realizar os serviços

domésticos.

O Barão de Vila Viçosa sintetiza em parte o discurso adotado por Anna Ribeiro na

construção das personagens Maria e Josefa. Para, além disso, verifica-se também certo

afinamento entre os discursos dos ex-senhores. Em Violeta & Angélica as senhoras são

obrigadas a trabalhar nas funções que antes eram atribuídas as escravas, assim como o Barão

se ressentia em ser obrigado a "testemunhar” este cenário. Nesse caso, vale destacar a

permanência desse discurso na memória social da classe dos ex-senhores e de como eles se

preocuparam em dar uma versão sua da história, culpando o governo e os ex-cativos pela sua

derrocada econômica e social. Para isso, as estratégias de estigmatização adotadas pela ficção

de Anna Ribeiro são eficazes em transformar ex-cativos em “ingratos” ou “exemplos”. Como

se pode perceber nos tipos sociais das ex-escravas da Família Bastos em Violeta & Angélica.

Na narrativa, a “ingratidão” dos ex-escravos era na verdade a demonstração pelos

cativos de que suas vidas já não dependiam da vontade dos senhores. O trauma senhorial

consiste na impossibilidade da manutenção da condição básica de sua autoridade, que

consistia em mandar e ser acatado. O que na visão senhorial eram “pirraças”, “manhas” e

“ingratidões” dos negros, para estes era a simples consumação legal da sua liberdade. Mas a

ideologia paternalista tende a reverter o sentido histórico desse acontecimento a partir de sua

ótica.

127 BPEB. Barão de Vila Viçosa, Diário da Bahia, 24 de fevereiro de 1889.

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Ilustração 4 - Família Canabrava, descendentes de escravos da fazenda Api, 1972, Autora: Anna Mariani Bittencourt

Ilustração 5 - Dona Maria, ex-escrava do antigo Engenho Api, 1972. Foto: Anna Mariani Bittencourt

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Daí a “vitimização” dos senhores e a “demonização” dos escravos na literatura de

Anna Ribeiro. Tratava-se de uma estratégia para estigmatizar os fatos e os eventos em

desabono do discurso do dominador. O jogo de palavras, enunciado nas suas narrativas,

fortalece essa idéia: os “bons” senhores que sempre ajudaram os seus escravos salvando-os e

curando-os das doenças, criando-os quase como filhos, são traídos e abandonados pelos

“ingratos” homens e mulheres que vão embora sem nem ao menos dar-lhes o tempo para

serem substituídos. Nesse caso o destaque também é para as relações entre senhores e

escravos dentro do ambiente doméstico, pois ele indica uma leitura de alguém que era

especialista no ambiente privado dentro do sistema patriarcal: a senhora de engenho.

É manhã de domingo, em Violeta & Angélica e as mulheres componentes da família

Bastos suam no fogão e na arrumação da casa grande. Só não trabalham mais do que no

tempo dos escravos, pois “a fiscalização era uma tarefa fatigante para quem não costumava

castigar os cativos e queria tudo a tempo e a hora”. A vida parece perfeita não fora uma

conversa entre Alfredo e D. Flora, sua esposa, acerca da família de seu irmão:

- Rosinha mandou-me dizer que não os esperasse para o almoço; que viriam, porém, antes do meio-dia. - Deus permita, disse D. Flora, que passem mais distraídos. Que vida levam aquelas criaturas! Sempre a se queixarem, sempre de mau humor! Isto é falta de resignação com a vontade divina. - Na verdade, minha amiga, viver-se sempre envaidecido é insuportável! Mas, às vezes... não se é santo. Hoje, fiquei furioso quando vi aquela endiabrada vir despedir-se sem te haver avisado com antecedência, para procurares outra ama.128

D. Flora reclama do mau humor do seu irmão e das suas lamúrias ante a nova vida sem

o braço escravo. Segundo ela, eles deveriam se conformar com a “vontade divina”. Alfredo,

porém, afirma entender esse sentimento, e menciona o abandono da negra Maria, que

trabalhava para ele na casa-grande antes da Lei Áurea, mas que havia partido para a Cidade da

Bahia, logo quando soube da validação da lei. A liberta Maria encaixa-se no perfil daqueles

que, como Walter Fraga Filho menciona, entendiam que a migração significava distanciar-se

do passado da escravidão129. Alfredo Bastos conta que a negra fora embora sem nem ao

menos despedir-se, mas o verdadeiro motivo da revolta do chefe dos Bastos se revela nas

linhas seguintes:

Ela, a quem sempre trataste mais como mãe do que senhora! A quem salvaste a vida pelos desvelos que lhe prodigalizaste, há pouco tempo, naquela grave moléstia! - Ora Alfredo, nunca devemos esquecer que o dia do beneficio é a véspera da ingratidão; e quando fizermos qualquer bem, procuraremos ter sempre os olhos de Deus, nunca esperando o agradecimento das criaturas. Tendo isso em mira, jamais nos surpreenderá o

128 BITTENCOURT. Violeta & Angélica. Op. cit. 129 FRAGA FILHO. Op. cit., p. 314.

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que deu com ela, e tem se dado coma a maioria dos escravos. Demos graças a Deus de não sofrer com isso o que outros sofrem.130

Como foi dito, Maria representa os libertos que depois da Lei de 13 de maio

preferiram abandonar o antigo local do cativeiro em busca de um novo lugar para levar sua

vida sem a necessidade de manter relações de dependência com os antigos senhores. Além

disso, ela traduz a imagem do negro abandonando o engenho e, na visão dos senhores,

engrossando as fileiras dos desempregados e vadios das cidades. O temor das elites baianas

está sintetizada nessa personagem. A imagem do abandono das senzalas era uma projeção de

antigos medos senhoriais, algo que se intensificou nas últimas décadas do século XIX131.

Após abolição essa imagem continuou presente e como visto nos contos de Anna Ribeiro

ainda duas décadas depois ela permaneceria na memória social dos antigos senhores.

Um “favor” concedido por Dona Flora, e uma consecutiva não retribuição da negra

Maria, explica a sua ingratidão. Ou seja, na perspectiva senhorial, a dependência dos

subalternos fortalecia-se, através de uma rede de concessão de favores, que deveriam

culminar na sua “gratidão”. No desenrolar da narrativa, entra em cena outra negra chamada

Josefa que, ao contrário de Maria, reconheceria os favores dos antigos senhores, e pagaria

tanta “bondade” com trabalho condicional.

Enquanto saboreava alegremente, entrou uma mulher, de cor parda, que abraçou D. Flora pelos joelhos, á moda das escravas. Depois de cumprimentar do mesmo modo as meninas, pediu a benção ao Sr. Alfredo Bastos. Todos responderam-lhe amavelmente, e a esposa do lavrador perguntou-lhe: - Então, Josefa, você ainda por aqui? Disseram-me que tinha ido para a Bahia. - É verdade, Yayá, que desejo ir; vossemecê bem sabe que tenho lá minha filha. Mas, diga-me uma coisa: é certo Maria ter-se ido embora? -É verdade, Josefa. Oh! Meu Deus, exclamou a mulata, não podia acreditar? O lavrador tomou aquela exclamação como um fingido sinal de sentimento, para ocultar o gosto que a ex-escrava experimentava, vendo a colega pregar uma peça a ex-senhora; e disse com ar zombeteiro: - Ela fez o que vocês todas fazem. Felizmente, não sentimos a menor falta: nunca almocei tão bem! A mulata ficou triste e atarantada, dizendo depois: - Minha senhora, eu sabendo que Maria saíra, vinha oferecer-me para ficar servindo , até que vossemecê achasse outra melhor. Queria assim mostrar que não me esqueço do que fez por mim naquela ocasião: si não me tivesse apadrinhado, talvez hoje eu não existisse!...132

Josefa é tão “resignada” que parece ter saído dos sonhos de qualquer senhor de

engenho. Ela mal consegue acreditar que Maria fizera o “absurdo” de abandonar seus ex-

130 BITTENCOURT. Violeta & Angélica. Op. cit. 131 FRAGA FILHO. Op. cit., pp. 312-313. 132 BITTENCOURT. Violeta & Angélica. Op. cit.

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senhores. Josefa é uma escrava que pensa a partir da lógica senhorial. Extremamente “grata”,

ela se esmera em agradar os antigos senhores. É como se ela atendesse a todas as

prerrogativas da ideologia paternalista idealizada pelos senhores. Posição semelhante assume

o garoto Pancrácio, personagem de uma das crônicas de Machado de Assis. Com toda

irreverência e ironia peculiar aos escritos machadianos, Pancrácio seria mais ou menos a

projeção do escravo presente no imaginário do senhor, enquanto o senhor seria aquele

imaginado, sarcasticamente na [re]criação de Machado. A crônica, já referida anteriormente,

conta a história de um senhor que se antecipa a abolição e decreta a “liberdade” de um de seus

escravos. A partir daí, ele simula uma situação que lhe garante a posição de benfeitor da

liberdade do “pobre” Pancrácio, e esse lhe é tão grato que continua trabalhando para o ex-

senhor mesmo depois a sua “alforria”. Um trecho da crônica, em especial, é bastante

elucidativo sobre as intenções do senhor de Pancrácio:

- Tu és, livre, podes agora ir para onde queres. Aqui tens casa, amiga, já conhecida e tens um ordenado, um ordenado que... - Oh! meu senhor fico. - Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce nesse mundo; tu cresceste imensamente. Quando nasceste, eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha só estás mais alto quatro dedos. Artura qué dizer nada, não, senhô... - Pequeno ordenado, repito, uns seis mil réis, mas é de grão em grão que a galinha enche o papo. Tu vales mais que uma galinha. Eu vaio um galo, sim senhô. [...] és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra para satisfação do céu133.

É bem verdade que o senhor de Pancrácio machadiano foi bem mais esperto que o Sr.

Alfredo Bastos do conto de Anna Ribeiro, ao se antecipar à abolição, como o próprio

personagem afirmou “eu pertenço a uma família de profetas [...] toda essa história de lei de 13

de maio já estava prevista por mim”. Mesmo assim, a intenção era a mesma: se utilizar dos

artifícios da velha ideologia senhorial para conseguir manipular os ex-cativos e tentar

arrancar-lhes alguma expressão de “agradecimento”. No caso da Maria, ex-escrava de Alfredo

Bastos, esses recursos parecem não ter tido lá grande êxito, pois ela abandonou seus antigos

senhores, sem nem ao menos despedir-se e partiu para a Cidade da Bahia [Salvador]. Quanto

a Josefa, a escrava “agradecida” preferiu retribuir os favores “concedidos” por Alfredo e D.

Flora, sem nem ao menos intentar em combinar o salário. Nesse ponto, a ex-cativa do conto

de Anna Ribeiro aproxima-se muito do Pancrácio da crônica machadiana. Os dois estão

agradecidos pelos seus senhores, os dois prestam-lhe serviços como seres “livres”. Liberdade

133 ASSIS, Machado. Bons das. In: Obras completas. V. 31. Rio de Janeiro: W. M. Jakson. Inc., 1957. pp. 62-64.

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essa que não lhe garantia mais que “alguns petelecos”, como os aplicados pelo senhor de

Pancrácio, no jovem garoto, por “impulso natural”. Com certeza, tanto Josefa, quanto

Pancrácio valem “mais que uma galinha”, como nos diz o narrador machadiano, pois ambos

são necessários para a manutenção dos privilégio dos seus senhores. Os dois também são

projeções do imaginário senhorial vigente no Brasil final do século XIX. Certamente, a

descrição do senhor de pancrácio resumia bem o sentimento de ex-cativos e senhores, tanto da

crônica machadiana, quando do conto de Anna Ribeiro escrito dezoito anos depois do 13 de

maio: “Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados quase divinos”134.

O “bom” Sr. Bastos zomba da negra Josefa, por não acreditar nas intenções “sinceras”

e “agradecidas” da ex-cativa. Afirmando que não estavam sentindo a menor falta e que, aliás,

como tentam mostrar também sua esposa e filhas. Se sentiam falta ou não, o fato é que D.

Flora, aceita de pronto o pedido de Josefa:

- E pode entrar hoje? [pergunta D. Flora] Agora mesmo. - Então, fique; hoje temos visitas: você fará o jantar. - Vou buscar minha caixa, que não trouxe por não saber si vossemecê me queria: em um instante estou aqui. E sai apressada e alegremente135.

A negra afirma que só iria para a Cidade da Bahia quando os Bastos “não precisassem

mais dela”. Josefa era uma negra bondosa e agradecida, o tipo de subalterno almejado pela

ideologia senhorial. Era tipificada a partir desse ponto de vista, a opinião dos cativos após a

sua liberdade. Segundo essa forma de ver o mundo, os dependentes sempre seriam

contemplados pela bondade senhorial e em troca deveriam ser-lhes eternamente gratos. No

entanto, a própria D. Flora expõe que Josefa era apenas uma exceção – que não se deve

esquecer: fictícia. No intuito de dar uma lição às filhas ante ao “exemplo” da negra ela afirma:

“- Vejam, minhas filhas, nem todos são ingratos. É verdade que entre cem se encontra um

agradecido; mas, por isso mesmo, fica-se agradavelmente surpreendido; quando se faz

qualquer beneficio, sem a expectativa de agradecimento”136.

Essa “lição” denuncia que a ideologia paternalista fracassara, por não levar em conta

as posições dos outros sujeitos envolvidos na questão do “elemento servil”. Na verdade, o

comportamento de Josefa não é regra, e sim exceção. Assim como os mais de 100 escravos

pertencentes ao engenho dos familiares de Anna Ribeiro, a maioria dos ex-cativos dos

engenhos dos Bastos também tinha abandonado o antigo cativeiro e partido para a Salvador.

134 Idem. p. 64. 135 BITTENCOURT. Violeta & Angélica. Op. cit. 136 Idem.

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Aqui representações sociais e literárias se confundem, mas ambas expressam a mesma coisa:

os traumas de uma elite em decadência. Sem dúvida, do ponto de vista dos antigos senhores a

abolição da escravatura ocorreu de forma traumática137 e as narrativas literárias de Anna

Ribeiro não afirmam o contrário.

137 FRAGA FILHO, Op. cit., 2006. p. 131.

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Capítulo III

DRAMAS DA DECADÊNCIA: CENAS DO RECÔNCAVO

Nos capítulos anteriores, foi visto que as “cenas do Recôncavo” composto pelos os

três contos e um romance de Anna Ribeiro, tinham por objetivo narrar a história do processo

de decadência da elite senhorial baiana nos fins do século XIX. Curiosamente, e ao que tudo

indica, propositalmente, a escritora iniciou os dois primeiros contos com essa seriação e a

ocultou no último, embora este seja uma espécie de continuação daqueles. Como será visto na

última sessão desse capítulo, tratava-se apenas da lógica das narrativas de Anna Ribeiro, uma

vez que em Marieta o foco central não tem mais como palco o Recôncavo, mas sim a cidade

da Bahia [Salvador].

Mas retornando ainda aos primeiros contos – Dulce & Alina e Violeta & Angélica –

fica claro que a narradora demonstra, sob o viés paternalista e moralista, os dramas de uma

elite em declínio que pouco a pouco assiste à sua inevitável decadência. Dos traumas aos

dramas, ela tem que passar por momentos “controversos” que conduzem ao fim do mundo

senhorial. Os dramas da decadência se caracterizam desde o olhar nostálgico dos personagens

sob a agonizante paisagem até a descrição das atitudes “provocadoras” dos ex-cativos dos

quais se esperavam, no mínimo, que continuassem trabalhando no engenho no pós-abolição,

mas que acabaram “abandonando” os ex-senhores em direção à capital da Bahia.

A história narrada por Anna Ribeiro se inicia no auge do paternalismo, passa pelos

momentos de crise, entre 1888 e 1889, e se estende desde os primeiros momentos do pós-

abolição até mais ou menos o tempo em que a sua narradora escreve. Em Marieta o tempo da

narrativa parece coincidir com o em tempo da escritura. Assim, as características de tempo e

espaço do seu último conto aproximam-se muito da realidade vivida pela autora a década de

1910, realidade essa que foi compartilhada por várias outras famílias tradicionais da Bahia

que viu o seu poder se esvair à medida que a antiga produção canavieira fundada na mão-de-

obra escrava dava sinais de esgotamento. Várias situações vividas pelos membros da classe

dirigente baiana são representados nesse conto, que vai desde o êxodo dos antigos engenhos

parara a cidade até o trabalho público como apadrinhados políticos. Exposto todo esse

contexto, Anna Ribeiro dá a receita para que os jovens pudessem vencer as dificuldades de

maneira “resignada e digna”. A década de 1910 é um período chave para compreender as

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obras aqui analisadas, sobretudo, porque dela parte o olhar literário da narradora para o

passado.

Anna Ribeiro e a Bahia na década de 1910

As perspectivas com a mudança do regime político eram sombrias para a elite

açucareira, economicamente decadente. Nos últimos anos do Império, obtivera isenção do

imposto de exportação, mas, na medida em que esse imposto se tornou, praticamente, a única

fonte de receita do Estado, os barões do açúcar passaram a temer que a mudança do regime

colocasse fim ao privilégio que lhes fora concedido pelo imperador. Com a vinda do novo

regime, essa elite teve que se adequar a essa conjuntura e se constituiu como um grupo

político da Bahia, embora economicamente já não gozasse do mesmo poder de outrora.

Consuelo Novais Sampaio mostrou que na Primeira República, a Bahia passou a importar

açúcar de São Paulo e do Rio de Janeiro, não sendo nem de longe a potência açucareira que

foi em demarcados períodos da Colônia e do Império. Ela ressalta que “estava finda a era dos

barões do açúcar”. 138 Em seu lugar surgiu uma economia anêmica embora diversificada. 139

Sobre esse período, Rinaldo César Leite assevera que:

Na República manteve-se, portanto, uma estrutura praticamente em tudo semelhante àquela do século XIX. No intervalo situado entre as lutas de independência e o final do Império, a Bahia viu iniciado e aprofundado o seu processo de declínio econômico. Conquanto conhecesse breves lapsos de recuperação, os fatos provam que, no desenrolar dos anos oitocentistas, passou da condição de principal centro econômico a uma posição secundária. A diminuição do mercado do açúcar e a expansão do café acabaram por deslocar o eixo econômico para a região sul do país140.

O período compreendido entre 1897 e 1905 foi marcado pela escassez econômica na

Bahia, não só por causa das dificuldades de produção e comercialização do açúcar, mas

também por causa das secas que atingiram o litoral das restrições ao crédito e os preços

estagnados do fumo141. As condições que abalaram a elite agrária do Recôncavo baiano

também afetaram a família de Anna Ribeiro. Após a morte do marido, em 1907, Anna Ribeiro

é obrigada a mudar-se para Salvador, morar numa casa cujo terreno e construção foram

138 SAMPAIO. Consuelo Novais. Poder & representação: O Legislativo da Bahia na Segunda República, 1930-1937. Assembléia Legislativa, Salvador, 1992. p. 32. 139 SAMPAIO. Partidos Políticos na Primeira República. Op. Cit., pp. 32-39. 140 LEITE. Rinaldo César. Op. cit., pp. 248 141 MATTOSO. Kátia Queiroz. Bahia, a cidade de Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador; Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1878. p. 350-351. e LEITE. Rinaldo Cezar Nascimento. A Rainha destronada: discursos das elites sobre as grandezas e os infortúnios da Bahia nas primeiras décadas republicanas. (tese de doutorado – PUC-SP), 2005. pp. 248-250.

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financiados pelo filho, então funcionário público. Sobre a posição de egressos da elite no

aparelho do Estado, Kátia Mattoso afirma que:

Esta antiga elite estava presa a um orgulho, a uma soberba que podia tornar-se arrogância... Fonte de poder e de relativa segurança, o serviço público era considerado por estas famílias tradicionais como a única atividade compatível com sua condição e seu desejo de mundo. Os “concursos” selecionavam integrantes das famílias conhecidas. Feita a nomeação o jogo se perpetuava: o descendente de antigos proprietários (de terra, açúcar, gado) continuava favorecendo seus pares na promoção142.

A situação é retratada por Anna Ribeiro em Marieta, quando o Adriano Silva tem que

migrar para a cidade para trabalhar como funcionário público por indicação de um político

poderoso da capital. É interessante notar que Anna Ribeiro produziu toda a sua literatura na

casa-grande do antigo engenho Api até a publicação de Violeta & Angélica (1906). Após a

morte do marido em 1907, vitimado pelo diabetes, a escritora mudou-se para Salvador para

morar numa casa que teve o seu terreno e financiamento provido pelo filho. Junto a ela uma

de suas filhas – Joana – que não se casara. As dificuldades do campo e a morte do “chefe de

família”, como afirmou, sua neta Anna Maria Mariani Cabral, fizeram-na migrar para a

capital. Esse fato foi um divisor de águas na vida da romancista, pois desde aquele momento

ela não escrevera mais sobre temas ligados à abolição e sobre a sorte – digo azar – dos antigos

senhores do Recôncavo. Observa-se que essas mudanças na vida da autora tiveram

repercussão na escrita do conto Marieta e do romance Letícia, ambos publicados no ano de

1908, uma vez que os processos da morte do senhor de engenho e da migração da família

senhorial para a capital são ficcionalizados nessas obras.

A década de 1910 tem uma importância capital para uma leitura histórica da obra de

Anna Ribeiro, principalmente nos três contos e um romance aqui analisados. Uma ex-senhora

de engenho membro de uma das famílias mais poderosas da Bahia, que viveu num engenho

com mais de cem escravos e comandava uma casa-grande sempre cheia de escravas e

agregadas, migra para a capital, após a morte do marido e passa a viver à custa de um de seus

filhos. Com mais de sessenta anos de idade e com um olhar saudosista sobre o passado, ela

inscreve na literatura a memória do seu grupo social sobre os momentos traumáticos que,

segundo as representações da própria elite, provocaram o seu “infortúnio”.

142 MATTOSO. Kátia M. de Queirós. Bahia século XIX: Uma Província no império. 2ª Ed.Nova Fronteira. Rio de Janeiro. p.12.

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Ilustração 6 - Anna Ribeiro aos 75 anos. Foto tirada em 1918

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Rinaldo César Leite, em A Rainha destronada, analisa os embates simbólicos e

políticos travados pela elite baiana nas primeiras décadas republicanas, que coincidem

também com os períodos aqui estudados. Segundo o autor, a elite baiana nesse período

inventa um senso de identidade local pautada num “passado de glórias” da Bahia e lamenta os

infortúnios vivenciados por ela própria na época republicana, que relegou o estado a uma

posição coadjuvante no cenário nacional. As lembranças das grandezas da Bahia no passado,

que tão vividamente embebiam a memória das elites baianas, encontravam sólidas motivações

nas vicissitudes dos novos tempos. Amplas parcelas das elites baianas se ressentiam pelas

transformações ocorridas no país no intervalo de poucas décadas de instalação e consolidação

da República. Nos planos econômico e social não faltavam razões para lamentar a realidade

tal como então se apresentava143.

O “resgate” e a valorização de diversos elementos e fatos que assinalaram as glórias

do passado, por um lado, e dos que subsistiam enquanto tradição, por outro lado, eram o

fundamento da identidade em formulação. Nas Primeiras décadas da República, a elite baiana

buscava demarcar seu lugar na sociedade brasileira, se utilizando da memória social como

artifício para a construção de um passado de tradição e glórias. No entanto mais do que isso

fica patente também que essa elite nos tempos de crise econômica e social que ela própria

prenunciava nos espaços intelectuais conforme destaca Rinaldo César Leite144, buscava

também sentidos e explicações para a realidade que eles viviam, afinal de contas, como

poderiam membros da “Atenas Brasileira”, súditos da “Rainha do Norte”, muitos dos quais

descendentes de barões e condes do II Império do Brasil, viver momentos de “infortúnio”

como os que se apresentaram na década de 1910 e 1920? No campo das letras esses discursos

serão também representados e registrados. Desta forma, a literatura de Anna Ribeiro

rememora, do passado ao presente da escritora e focaliza determinados discursos e

representações que marcaram a oligarquia do Recôncavo.

O ambiente como representação

O romance de Anna Ribeiro incorpora as convenções que Ian Watt chamou de

realismo formal. Certamente as influências da literatura inglesa e francesa desse período

foram decisivas na composição do estilo de escrita de Anna Ribeiro. Dentro dos aspectos do

realismo formal que merecem destaque Watt coloca a questão da individualização das

143 LEITE. Rinaldo Cezar Nascimento. Op. cit. 144 Ibid.

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personagens e a detalhada apresentação de seu ambiente. O primeiro aspecto depende do

segundo, pois os personagens só podem ser individualizados se estiverem situados num

contexto com tempo e local particularizados.145

Em sua prosa Anna Ribeiro localiza os acontecimentos no tempo e no espaço. Tanto a

escala cronológica quanto a temporal tem importâncias capitais para a compreensão de sua

literatura, pois como já foi dito anteriormente todas as suas obras se passam no Recôncavo

baiano açucareiro nas duas últimas décadas do século XIX. Assim, a insistência da narradora

na caracterização do processo temporal e espacial tomam importância simbólica essencial

porque enuncia não só as intenções moralizantes que a escritora tinha para com as suas

leitoras, mas também a interpretação de um momento histórico que ela tinha vivido e com o

qual se identificava.

Ela realmente convence o leitor de que a história se passa num tempo e lugar

delimitados, não só na demarcação cronológica, como também na descrição do tempo em seu

cotidiano nos engenhos, quando a narradora diminui o ritmo da narrativa para prender o leitor

com as descrições minuciosas que fazem com que ele adentre à história como uma

testemunha, ou melhor como um membro de um júri, conforme a metáfora feita por Watt,

quando afirma que o romance imita a realidade assim como um júri. O leitor espera conhecer

todas as particularidades de determinado caso e também espera que as testemunhas contem a

história.146

Mas a descrição das paisagens no recorte temporal em Anna Ribeiro vai além da

importante missão de particularizar os personagens, ela comunica ao leitor os sentimentos da

autora em relação ao passado. Aqui personagens e autora compartilham das mesmas emoções

ao perceberem que o processo de decadência dos engenhos do Recôncavo dissipa também

uma vida idealizada pelas prerrogativas senhoriais em crise. Assim os ambientes assumem a

representação do processo de declínio da oligarquia que a família da autora e de seus

personagens compartilharam. No que tange à representação da decadência da elite do

Recôncavo açucareiro duas formas de construções simbólicas se destacam em Anna Ribeiro,

são elas a descrição da paisagem e a morte do senhor de engenho, personagem que só existe

dentro desse contexto especifico. Embora aqui esses dois aspectos sejam analisados

isoladamente para facilitar abordagem, na obra de Anna Ribeiro elas coexistem e estão

intrinsecamente ligados.

145 WATT. Op. cit. p. 22. 146 Ibid., p. 31.

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Anna Ribeiro escreveu e reescreveu a história do declínio da família do Recôncavo

nos fins do século XIX. Nas produções de 1901, 1906 e 1908, respectivamente Dulce &

Alina, Violeta & Angélica, Marieta e Letícia, o sentimento de decadência irremediável do

modo de vida da elite escravocrata oitocentista, vai ficando cada vez mais patente. Em Dulce

& Alina há um destaque maior para a permanência [imaginária] da ordem paternalista. Em

Violeta & Angélica, as moitas de espinhos presentes na estrada da vida, já enunciam o

advento dos “tempos difíceis”. Em Marieta, o poder senhorial já não se expressa tanto. Só se

descobre que a família protagonista da trama é de ex-senhores se for feita uma leitura bastante

atenta. Em Letícia, único romance dessa série da decadência de Anna Ribeiro, há uma

descrição que sintetiza e acrescenta a todas essas representações: as descrições das paisagens

enunciam em todas as etapas descritas nos contos publicados anteriormente e, além disso, a

morte do senhor põe um ponto final no processo de decadência no modo de vida senhorial,

vigente no Recôncavo por mais de três séculos.

A descrição das paisagens nas obras da segunda fase de Anna Ribeiro traduzem conto

a conto, e por fim no romance o sentimento nostálgico que acaba tomando conta da escritora e

que se acentua ao passar da década de 1910, período das suas publicações. Convém lembrar

que as paisagens descritas sempre dizem respeito ao mesmo lugar: os engenhos açucareiros do

Recôncavo. A ostentação senhorial ainda é facilmente perceptível em Dulce & Alina:

A vasta casa de morada da fazenda do Sr. Figueiredo apresentava neste dia um ar festivo. As paredes de deslumbrante alvura atestavam recente caiação; no soalho lavado de novo não se via uma nódoa, e nos móveis nem o mínimo vestígio de pó. [...] Na varanda, ainda calçado com longas botas de couro da Rússia, e empunhando um rebenque de prata, o dono da casa conversava com os vizinhos e amigos que obsequiosamente tinham ido encontrá-lo na estação de... onde desembarcara com a menina [sua filha], acompanhando-os até sua casa147.

A “vasta casa”, a “recente caiação”, e os móveis sem o “mínimo de pó” denotam a

ostentação vivida pela família senhorial nesse conto. O dono da casa expõe utensílios

caríssimos apenas para ir buscar sua filha na estação ferroviária mais próxima. A vanglória da

romancista baiana acerca da riqueza senhorial é patente nesse conto e demonstra ainda o

poder da elite, com suas Cortes de agregados e agregadas afoitos para satisfaze-lhes o menor

de seus desejos. Esse é o tema desse conto: o poder e a ostentação da família senhorial, que

não se “abala pelas dificuldades da vida”.

Em Violeta & Angélica o tom da descrição do ambiente onde viva a família senhorial

muda um pouco, e apresenta mais de detalhes:

147 BITTENCOURT. Dulce & Alina. Op. cit.

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Na varanda de sua vivenda campestre, passeava o Sr. Alfredo Bastos, com ar triste e preocupado, em contradição com sua fisionomia, habitualmente calma e prazenteira. Era um homem de quarenta e tantos anos, cheio de corpo, abdômen um pouco desenvolvido, fronte serena, porque ele se aproximava da velhice, a percorrer uma estrada, larga e plana, apenas interrompida, de longe em longe, por uma moita de espinhos, porque essas nunca deixam de existir no percurso da vida. De vez em quando parava sofrendo a vista em redor de sua propriedade rural, bem cuidada e florescente. Não era um engenho, mas uma fazenda onde cultiva de tudo, inclusive a cana, que era moída em um engenho vizinho. A casa de morada vasta e cômoda, sem ostentar construção, era confortável e alegre. Ao lado havia uma casa tosca onde se via o aparelho próprio para fabrico da farinha de mandioca, depósito de cereais, de fumo, etc. Do outro lado, um curral, tendo num dos ângulos uma pequena casa para prender os bezerros, fazia supor pela vastidão, a grande quantidade de vacas que ai eram conduzidas para fornecer leite, essa primorosa alimentação, que tanta abundancia proporciona às casa campestres. No fundo da vivenda, um vastíssimo pomar, repleto de laranjeiras e outras arvores frutíferas, promovia também a abundância e regalo da família148.

Na “vasta vivenda” senhorial já paira uma “moita de espinhos” e já se descreve em

detalhes uma fazenda que pode oferecer tudo o que se precisa para se viver, como a narradora

quisesse dizer que na falta dos produtos importados da Rússia e de outros lugares, bastaria a

própria produção da fazenda. Já há também uma grande variedade que produtos e víveres que

indicam uma possível auto-suficiência da fazenda, caso fosse necessário. Nesse momento da

narrativa de Violeta & Angélica paira no ar a inevitável decadência. Há um sentimento de

apreensão e preocupação transmitido não apenas pelas emoções do personagem Alfredo

Bastos, mas também pela descrição das imagens.

Em Letícia existem dois momentos implícitos na composição das paisagens, o

primeiro descreve uma vivenda próspera e alegre antes da abolição e num segundo momento

representa-se a decadência total e completa. Antes da abolição existem “flores” a ostentar o

jardim, pois a “moitas de espinhos” da vida ainda não se haviam chegado, conforme se pode

perceber nas primeiras linhas do romance Letícia: “Debruçada no parapeito do terraço parecia

ela contemplar as flores do jardim que se ostentava bem cultivado e florido, em frente à bela

casa campestre de seu pai”. 149

Anunciada a decadência senhorial, a cena muda de figura. O ambiente do engenho no

início da trama, descrito com tanto afinco como um lugar bem cuidado cheio de flores e

alegria depois é definido com nostalgia. Sobre os “extensos tabuleiros” de grama verde-

esmeraldina, viam-se manchas mais escuras de mato-pasto, viam-se outros vegetais daninhos,

que outrora apenas brotavam eram pronto arrancados. Nas “extensas” cercas já algumas

148 BITTENCOURT. Violeta e Angélica. Op. cit. 149 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 01

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estacas deixando o prumo, se inclinando para o lado. A casa grande de engenho em outro

tempo animada e alegre pelo movimento de trabalho, era silenciosa e triste como o condenado

que, sem estar enfermo, sente que seus dias estão contados150.

Muitos leitores iriam concordar que a narradora exprime um talento singular na

descrição da decadência da elite senhorial através da forma como ela detalha as paisagens. Há

uma mudança até mesmo na cor do pasto da fazenda, e as ervas daninhas se assemelham à

moita de espinhos descrita no conto Violeta & Angélica. Há uma convergência descritiva que

leva o leitor a consciência de que se operava paulatinamente o declínio dos engenhos e de sua

estrutura secular. A nostalgia e o saudosismo expressos descrevem o sentimento de que a

estrutura rural e senhorial estava se esvaindo, na visão da narradora. Existe notadamente uma

mudança acentuada na descrição das paisagens que eram sempre do mesmo lugar, dos

engenhos e casas campestres do Recôncavo.

Em suas memórias, Anna Ribeiro também se utiliza do recurso estilístico da descrição

das paisagens para expressar a nostalgia em relação aos tempos de sua juventude. Do alto dos

seus aproximados setenta anos, ela caracteriza o engenho onde fora criada:

A casa-grande era toda branca, sempre caiada de fresco, cercada de varandas e com muitas janelas, ao fundo a copa verde escura das grandes árvores que se elevavam acima do telhado. A vista abrangia um largo tapete de grama que se estendia desde a casa até a cerca de malhadas, feita de fortes estacas com uma cancela de largas pranchas lavradas. Um verdadeiro tapete de hortaliças e verduras ficava perto das casas-senzala, onde habitavam os escravos. Para além de engenho existia um riacho de águas límpidas, e perto delas um semicírculo de coqueiros que ia até a casa-grande e completava a paisagem151.

Pode-se perceber em os Longos Serões do Campo que a Senhorinha do Api se

lembrava de sua infância e juventude no engenho da sua família com saudosismo e

idealização. Os qualificativos lançados sobre cada detalhe evocam a saudade de um tempo de

glória que não mais existe quando ela escreveu sobre seu passado em seus pequenos

caderninhos. Até mesmo a senzala ganha o seu lugar dentro do “harmônico” quadro descrito

por ela, dando a idéia de que o “elemento servil” convivia em “perfeito” estado com o mundo

senhorial. A paisagem da biografia de Anna Ribeiro sempre remete a um tempo de glórias,

algo que em sua literatura só se pode ver no conto Dulce & Alina, e que vai se desfigurando à

medida que ela narra a decadência senhorial baiana.

Uma última nota interessante está no conto Marieta, que representa mais ou menos

uma proximidade entre o período da narrativa e da escrita da narradora. De todas as obras

150 Ibid., 100. 151 BITTENCOUT. Longos Serões do Campo. Op. cit., pp. 155-156.

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analisadas essa é a única que se distancia mais dos anos de 1888-1889. Nele a família

senhorial extensa com todos aqueles agregados e escravos descritos anteriormente não são

mais notados. Assim, a descrição da paisagem nesse conto é assim feita pela narradora:

Na varanda de uma confortável casa de campo, via-se sentada em uma esteira, uma senhora, ainda moça, de fisionomia agradável e jovial, tendo ao lado uma cesta com roupa lavada, que consertava e tecia com presteza, manejando a agulha em seus dedos ágeis. Esta honesta família de lavradores, cujo chefe era senhor Adriano Silva, possui bens, pouco consideráveis, porém bem administrados por seu possuidor, ativo e experimentado no mister da lavoura. Esta, todavia, estava passando pela cruel e longa crise que tem abatido os ânimos, ainda os mais fortes, vendo um trabalho duro e assíduo tão mal remunerado152.

Um pouco adiante a narradora precisa mais a descrição do campo quando comentando

a necessidade da migração da família Silva para capital, afirma:

Casos idênticos estão dando-se cada dia e assim nossos campos, que tanto precisam de cultura, vão ficando despovoados; mas ninguém poderá criminar os nossos conterrâneos, que assim procedem porque é licito a qualquer procurar suas melhoras, e a vida campestre cada dia se torna mais difícil153.

A “confortável casa de campo” apresenta uma moça em uma situação bastante

simples, sentada numa esteira, item tipicamente das classes menos abonadas, consertando as

roupas lavadas, que provavelmente ela mesma lavou. A “honesta” família de lavradores, que

possuem bens “pouco consideráveis”, é descendente de “abastados senhores do Recôncavo”,

de uma linhagem bastante tradicional, como será visto na última sessão desse capítulo. Essa

informação passa quase despercebida, mas é capital para a compreensão do texto como um

todo. Como afirma o último parágrafo da citação, “passando pela longa crise cruel” a família

se conformara com uma situação simples de vida e resiste até que o trabalho “mal

remunerado” da lavoura não compensa mais, o que os obriga a imigrar para a cidade. O

“despovoamento” dos campos dá uma idéia precisa de que a decadência do mundo senhorial

na descrição de Anna Ribeiro tinha chegado ao fim e só restava agora a migração para capital

para a “busca das melhoras’.

Passa-se desde o primeiro até o último conto da ostentação para a simplicidade. Da

descrição da riqueza, para descrição da sua perda. Da descrição de ambientes requintados para

a exposição de ambientes “humildes”. O processo de decadência é detalhadamente contado

em cada detalhe da paisagem que serve de palco para as narrativas, e nela narradora expressa

seus mais profundos sentimentos, enquanto representante da antiga classe senhorial.

152 BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Marieta. Jornal de Notícias. Salvador. Nov/1908. 153 Ibid.

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A morte de Travassos e a restauração de Eurico

No primeiro capítulo, foram narrados os conflitos entre o Velho Travassos e Eurico.

Os dois representavam mundos opostos: um escravocrata e o outro abolicionista; um rural e o

outro urbano; um aristocrata e o outro burguês. Letícia, agora, se encontra dividida entre o

pai, doente, e o esposo, com quem tem a “obrigação” de restaurar o casamento. A doença do

velho Travassos é creditada pela narradora à pirraça e a rebeldia dos escravos. Na verdade, o

velho não conseguia se adaptar ao trabalho livre – e nem tinha se preparado pra isso. Tentou

ainda convencer o genro a se responsabilizar por essa transição, sem sucesso, visto que o

rapaz alegara não ter a menor intenção, nem vocação para a vida no campo.

A disputa entre o pai doente e o marido corrompido, em um primeiro momento legou

aos Travassos uma vitória temporária: Letícia preferiu cuidar do pai no engenho e separar-se

de Eurico, com quem já não vinha se entendendo, por se achar “tabarôa” demais ante o seu

refinamento urbano. A própria jovem senhora achava que não iria se enquadrar à vida

burguesa “civilizada” e se achava inferior ao marido. Juntando uma coisa à outra, a jovem

esposa deixou que seu marido partisse para Corte sem ela e optou por dedicar-se

integralmente a seu pai.

Durante o desenvolvimento de sua doença, Travassos recusa-se peremptoriamente a se

tratar na capital, onde teria uma melhor assistência. Mas com uma “teimosia própria do seu

caráter”, como afirma Letícia, ele não aceitou de maneira nenhuma sair do engenho. O velho

afirmava que morreria onde sempre viveu. Segundo Letícia, sua situação de saúde piorava,

quando alguém insistia na idéia de lhe tirar de seus domínios, mesmo que fosse para cuidar de

sua saúde. Numa visita de dois amigos da família se criou uma situação, que vale a pena

registrar aqui:

Algumas horas depois, Letícia introduzia Marieta e Conrado no quarto onde permanecia o pobre ancião ferido de um mal cruel. Sentado em uma poltrona, imóvel, com o olhar fixo e profundamente triste inculcava refletir no infeliz estado em que se achava. Ao avistar seus amigos alegrou-se, estendendo-lhes a mão esquerda: a direita pendia inerte. A jovem Senhora, com os olhos cheios de lágrimas, abraçou-o: o mesmo fez Conrado. - Ah! Minha filha, disse o enfermo com a voz estremecida; vem despedir-se de mim! É um consolo antes de partir deste mundo! E rompeu em pranto aflitivo. - Não, meu bom amigo, não há de morrer, disse Marieta: havemos de levá-lo à Capital para submetê-lo a um tratamento convincente, e em breve teremos o prazer de vê-lo curado. O doente ergueu a cabeça de um modo resoluto.

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- D’aqui, minha Senhora, só para o cemitério; Conheço o meu estado; a mudança pode aproveitar a outros, não a mim... Podem abandonar-me; não preciso de mais nada deste mundo. [...] Nunca pesei sobre alguém; daqui só sairei arrastado; mas, em quanto poder gritar, hei de protestar contra a violência que me fazem154.

Afinal de contas qual seria mesmo “o infeliz estado” em que o velho Travassos se

encontrava? Ele estava “imóvel” porque já havia percebido que a sua posição dentro da vida

patriarcal e paternalista, jamais seria a mesma novamente? Por que ele se recusava a se tratar

fora dos domínios de seu engenho? Seu comportamento dramático, expressa que ele

realmente tinha consciência de que a mudança era inevitável. E que a sua decadência era

irremediável, pelo menos, no que tange à hierarquização escravocrata que ele viveu a maior

parte de sua vida. Para responder as perguntas feitas anteriormente, seria interessante tomar o

exemplo do pai de Anna Ribeiro, esse sujeito histórico de carne e osso que, ao que tudo

indica, inspirou, juntamente com o próprio marido de Anna Ribeiro, Sócrates Bittencourt, a

construção do personagem do Sr. Travassos.

Assim como o fictício senhor Travassos, o pai de Anna Ribeiro na vida real, Mathias

de Araújo Góes, é lembrado como um desbravador pelos familiares: “um homem de visão e

energia e, partindo da posse de uma engenhoca de boi em terras fracas de areia [Itapicuru], ao

fim de alguns anos, montara engenho a vapor e firmara-se entre os abastados proprietários do

Recôncavo”155. Contudo, no fim da vida, o “abastado senhor do Recôncavo” tivera que pedir

ajuda à filha e ao genro, pois uma doença o impossibilitara de comandar os negócios e a

propriedade agrícola. A saúde do pai foi declinando e ele ficou paralítico, o que obrigou Anna

Ribeiro a voltar da capital para o engenho, pois, além disso, a situação econômica da família

não era das melhores. Assim como foi feito com o fictício Travassos, “alugaram uma casa na

Vitória e aconselharam que fosse a Europa mais o velho muito teimoso desistiu” 156. Numa

nota biográfica manuscrita sobre o seu pai, Anna Ribeiro conta que “Mathias de Araújo Góes

esteve doente durante quatorze anos, e morreu, aos 62 anos, quando a morte já foi para ele um

bem, pois, a paralisia se estendera por todo o corpo e começara a invadir até a língua” 157. A

sua morte foi um “bem” por que além de sofrer muito com a doença, Mathias não mais

154 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., pp. 73-74. 155 MARIANI. Clemente. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Manuscrito. Salvador, 1940. 156 CABRAL, Op. cit., S/D. pp. 30-31. 157 BITTECOURT, Anna Ribeiro de Araújo Góes. Notas biografias sobre Mathias de Araújo Góes: por sua filha Anna Ribeiro de Góes. Bittencourt. Manuscrito, S/D.

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exerceu o seu posto de senhor do Engenho Api, passando esse “cajado” para o genro. De

senhor e chefe de família, passou a dependente em sua própria casa.

Com a morte do pai, Anna Ribeiro esforça-se para manter a subsistência da família,

assim como Letícia, em ocasião da morte do seu pai na trama, o Sr. Travassos. Não se pode

negar a “inspiração” que a morte do pai de Anna Ribeiro trouxe para a construção do

personagem Travassos, pois ela é semelhantemente à morte do Sr. Travassos, pai de Letícia.

Ao mesmo tempo, não se pode deixar de perceber também que Anna Ribeiro acaba se

inscrevendo em Letícia. Assim como a protagonista do romance, sai ao encontro do pai para

cuidar dele num momento difícil de sua vida econômica e social. Além dos problemas com a

saúde, Anna Ribeiro fez o mesmo com o senhor Matias na realidade. Evidencia-se aqui mais

uma vez o poder da recriação da vida real na ficção. Diferentemente da história fictícia onde o

genro [no caso Eurico], se nega a ajudar o sogro num momento de crise, ao que tudo indica, o

marido de Anna Ribeiro não se negou. Era como se Eurico fosse um antípoda de Sócrates

Bittencourt.

O Velho Travassos, assim como o pai de Anna Ribeiro, não suportava a idéia de viver

num mundo onde ele não estivesse no auge da hierarquia social. A idéia de ter consciência de

que a tradicional ideologia senhorial de fato teria entrado em colapso, levou-o a se entregar e

esperar a morte dentro de seus domínios. Afinal, ao sair de seus domínios, agora ele seria

apenas mais um homem, ou melhor, seria mesmo um ex-senhor, ora poderoso, ora ostentador,

mas agora, apenas um ex-senhor. Todo o seu drama no tratamento com os visitantes, consistia

na realidade a sua consciência de que não mais representava o centro de um mundo, criado

pela sua própria vontade. Os dois últimos parágrafos da citação evidenciam tudo isso: “daqui

só para um cemitério”, “conheço o meu estado” “a mudança pode aproveitar aos outros, não a

mim”. Travassos preferia a morte a ter que viver num mundo onde a ideologia senhorial não

mais imperava e onde ele não era mais o centro das riquezas, poder e ostentação. Isso

responde à reflexão que ele fazia quando os visitantes entraram no seu quarto.

O “infeliz estado em que se achava” era justamente a consciência de que toda sua vida

senhorial, não mais existia e os “tempos de glória” que ele teria vivido antes da abolição, não

mais voltariam. Não mais privilégios, não mais escravos; decadência economia, social e

ideológica. E ainda por cima dependendo dos outros, o que era inaceitável dentro de uma

visão de mundo que garantia ao senhor uma situação de provedor, cercado de dependentes.

Agora ele era o dependente. “Nunca pesei sobre alguém”, afirmou ainda o moribundo senhor

Travassos. E completa: “enquanto puder gritar, hei de protestar contra a violência que me

fazem”, que segundo ele o ferira de um “mal cruel”. De qual violência o velho senhor de

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engenho estaria falando? Para responder a mais essa pergunta, vale voltar ao texto, quando a

própria Letícia oferece uma reposta, ao escrever para Marieta, sua amiga na carta:

Querida Marieta, Escrevo-te possuída da maior aflição. Meu pobre pai, cuja moléstia parecia conservar-se estacionária durante esses dezoito meses, como tenho te informado, apresenta ultimamente manifesta piora. O médico que o assiste, declarou-me que se aproximava rapidamente o desenlace fatal. Ah! Minha amiga! Que fazer em tão terrível emergência! A tua presença me daria coragem para não sucumbir ao golpe. 158

Essa carta, aparentemente sem grandes pretensões, esconde alguns detalhes, que

ajudam a entender melhor a construção alegórica que Anna Ribeiro traça em todo o romance.

Dois detalhes não podem passar despercebidos, sob pena da incompreensão do apólogo como

um todo. O primeiro, mais evidente, diz respeito à morte do velho Travassos. A tal doença do

velho senhor – que a narradora teima em não revelar o nome –, afinal tem uma causa: “um

golpe”, que inclusive também afetara até mesmo a jovem Letícia, como mostra o contexto da

última citação. Que golpe foi esse? O golpe da abolição. Esse é o tal “mal cruel” que feriu o

ancião. Seria também a “violência” que ele bradava ter sofrido. Daí a idéia que foi sustentada

anteriormente. Contudo ela é mais abrangente, pois o golpe foi desferido pela Princesa Isabel

e agravada pelos ex-cativos, ou seja, não foi apenas a pirraça dos escravos que causou a morte

do Travassos.

A morte referida simbolizava a derrubada de um mundo, que, na ficção de Anna

Ribeiro – e isso é muito importante deixar claro – se dera apenas por causa abolição da

escravatura. A sua recriação literária sustenta a idéia de um processo de declínio da economia

açucareira. Tratava-se de uma construção discursiva para culpabilizar o governo e exigir um

melhor tratamento aos ex-senhores. Ao mesmo tempo, consistia também num discurso sobre

os infortúnios e a decadência da elite.

Uma segunda questão – essa mais difícil de detectar – presente na carta de Letícia

endereçada à Marieta, foi o aprofundamento da doença do seu pai exatamente dezoito meses

após a última piora. O contexto da narrativa revela que a “última piora” do estado de saúde

do velho foi justamente no mês de maio de 1888, mês da abolição e que a piora atual – no

tempo da narrativa –, se dá justamente no mês de novembro de 1889, ou seja, no mês do

advento da República. Assim, a doença do Travassos teve um agravo considerável com o fim

da monarquia. Isto evidencia que, para a narradora, um evento tem forte ligação com o outro, 158 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., pp. 105-106.

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e que mesmo ferido pelo governo, o Império era um dos sustentáculos da tradicional “classe

dos agricultores” do Recôncavo, escravocrata, aristocrata e fundada no modo de vida

senhorial. Neste período, a Bahia fora a principal província brasileira, pelo menos no

imaginário da elite baiana na Primeira República159. Até o terceiro quartel do século XIX, a

Bahia tinha realmente um papel importante na vida econômica e política do país160. Com o

regime republicano, a Bahia perde essa condição e passa a se situar numa espécie de segundo

escalão dos estados da federação. Mesmo assim, a estrutura imperial estava fortemente

atrelada às velhas instituições como a escravidão e o fim delas significaria também o fim da

própria Monarquia, como previra Machado de Assis nas suas já referidas crônicas.

Essa informação parece contraditória, se a “tese” de Anna Ribeiro em Letícia for

realmente que o advento da República era uma “revolução” das oligarquias regionais em

represália ao “golpe” da abolição. Mas se sustenta, se a linha interpretativa for conduzida em

direção ao discurso que os intelectuais baianos construíram sobre as “glórias” da Bahia no

século XIX. Num segundo ponto de vista, significaria também o fim do status de nobreza

herdado e/ou conseguido pelas famílias baianas de “bem”, no decorrer do Brasil Colônia e

Império.

A resposta para esse dilema pode estar na polifonia das narrativas de Anna Ribeiro.

Ela escreveu sobre as posições existentes no seio do seu grupo social, retratando assim a sua

posição e a posição de outros. Ao que tudo indica, Anna Ribeiro era monarquista e foi contra

a deposição da família Imperial, embora achasse que a Princesa Isabel não tinha mesmo

“competência” para reger o país161. O velho fictício Travassos sugere que deveria ser feita

uma “revolução” em desagravo ao “golpe”, mas também se considera um monarquista. Ele

creditava aos “estadistas” da Princesa a promulgação da Lei Áurea e não a ela mesma162. A

narradora prefere se calar sobre essa questão, afirmando que “outros mais hábeis se incubam

de historiar tal acontecimento, não sei se feliz ou funesto163.

Em Letícia existe um personagem que aprofunda ainda mais essa discussão, que

tipifica as senhoras de engenho preocupadas apenas com as suas perdas nos “novos tempos”.

Tratava-se de D. Lídia, prima de Letícia. Uma personagem coadjuvante, quase inexpressiva,

mas que com certeza carrega uma significativa simbologia. Prima de Letícia, essa viúva tinha

perdido o marido e tudo o que tinha com a “lei de 13 de maio”. Vivendo de favor na casa de

159 A esse respeito ver LEITE. Rinaldo. A Rainha destronada: Op. cit., 160 A esse respeito ver FRAGA FILHO, Encruzilhadas da liberdade: Op. cit. No primeiro capítulo o autor faz um pequeno ensaio sobre a Bahia dos fins do século XIX. 161 BITTENCOURT. Longos Serões do campo; Op. cit., pp. 136-137. 162 Ibid. pp. 69-70. 163 Ibid., p. 103.

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Letícia, em certa ocasião essa senhora fora impelida por Tia Henriqueta que sonhava com dias

melhores:

Havemos de viver todos felizes; e assim Lídia não tem mais razões para andar triste e odiar a princesa Isabel. Os olhos da viúva acenderam-se. - A ela hei de odiar enquanto tiver sopro de vida! - Pois eu não a odeio, replicou a boa senhora, principalmente depois que decaiu e foi desterrada. E tenho ainda mais pena do nosso velho Imperador e da Imperatriz, tão boa e caritativa. - Eu não tenho pena de ninguém, tornou D. Lídia. O pai se não fez a abolição, concordou com a filha; portanto que sofram todos como nós temos sofrido. E dirigindo-se a Eurico: Todas as vezes que tenho de fazer cousas a que não fui acostumada, peço a Deus o castigo daquela malvada princesa. Não acha que tenho certeza Doutor [Eurico]?164

Dona Lídia se ressentia de ter perdido a sua vida de senhora de engenho, após a

abolição e credita à família imperial a responsabilidade pela sua decadência. O ódio que ela

dedica à “Princesa” é tamanho que ela deseja que a sua família “sofra como nós temos

sofrido”. Ela esclarece que seu ódio estava no fato de ser obrigada a fazer coisas “que não

fora acostumada”, numa referência ao trabalho operário que teve que desempenhar numa

fábrica, para poder sustentar a si e aos seus filhos, em virtude de ter ficado pobre com a

derrocada de sua lavoura, sem os “braços da escravidão”. Por isso ela caracteriza a Princesa

Isabel como “malvada”. A tal “malvadeza” se explica pelo fato de ela ter sido obrigada a

trabalhar para sustentar sua família. Tudo isso em decorrência da libertação dos escravos. De

fato, D. Lídia tipifica a mulher da elite que não conseguia olhar para outra coisa, a não ser

para o seu próprio mundo. Ela se ressentia pela perda de privilégios e de posição social,

representava aqueles que achavam que os membros da elite desejavam o fim do Império,

apenas por ressentimento. Para Dona Lídia, pouco importava se a escravidão e monarquia

estavam interligadas ou não, em sua visão D. Pedro II deveria pagar pelo mau que fez a ela e a

sua família.

“Feliz” ou “funesto” o fato é que o 15 de novembro teve sim repercussão no

agravamento da morte do senhor Travassos, pois ali ele teve certeza de que o “golpe” tinha

realmente sido consumado e de que não haveria mais chances para o restabelecimento de sua

antiga posição como “abastado” senhor de engenho, com o poder de Álvaro de Figueredo, pai

da protagonista do conto Dulce & Alina, primeiro conto de Anna Ribeiro sobre o declínio da

mundo senhorial, já discutido no primeiro capítulo. Assim estava anunciada a inevitável

morte do velho Travassos, ao passo que a rápida decadência da sua propriedade se acelerava,

164 Ibid., p. 137.

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se agravava também o seu estado de saúde até o definhamento total. Ou seja, com ele,

morreria também a estrutura do velho mundo senhorial, o que resultaria na dispersão dos

dependentes.

Com a morte do senhor Travassos, Letícia lembra ressentidamente com Eurico, que

nada fez para salvar a vida do sogro e antes, preferiu voltar para Corte para viver com a sua

amante a atriz Edelvira, num claro sinal de que não ajudaria seu sogro nos negócios do

engenho, muito menos na transição para o trabalho livre. Aqui a representação acerca da

incompatibilidade entre o mundo senhorial e o mundo burguês está representada na

indiferença de Eurico à situação do seu sogro. Em Eurico, Anna Ribeiro parece inscrever as

impressões de que a elite da Corte teria desconsiderado as elites regionais, entre elas a do

Recôncavo165, assim como Eurico mal considera as limitações do seu sogro em enfrentar a

transição de maneira súbita, pelo menos súbita para ele. Como já foi dito, a narradora entende

essas contradições em outros termos, ela explica que na cidade não houve maiores

conseqüências no que tange a transição para o trabalho assalariado porque essa transição já

estaria sendo feita há tempos. No campo, porém, continua ela, a dependência do trabalho

escravo ainda era bastante sensível, principalmente no Recôncavo baiano166.

De qualquer forma, o fato é que com ou sem ajuda de Eurico, o velho Travassos

acabou sucumbindo. E após a sua morte Letícia, como sua herdeira, ainda tentou tomar conta

dos negócios do pai, mas sem sucesso. Como era impossível substituir o lugar ocupado pelo

chefe da família, pelo menos não no mesmo lugar onde antes ele reinou de forma “suprema”.

Segundo Anna Ribeiro era na mão do homem – do senhor de engenho – que estava o “cetro"

da sociedade167. Caberia à mulher apenas ajudá-lo em momentos difíceis e na falta desse

tentar suprir o lugar deixado da melhor maneira possível, sem, contudo, questionar a posição

“natural” dos patriarcas. Assim, Letícia vai morar na ilha de Itaparica onde cultiva uma roça,

que, inclusive, lhe dá muitos ganhos, e vive das rendas dos imóveis que ela herdou.

A morte do senhor Travassos encontra uma semelhança interessante com a morte do

marido de Anna Ribeiro, Sócrates Bittencourt. Sócrates morreu em 1907, um ano antes da

publicação de Letícia e nessa mesma época a escritora migra para a cidade onde vai viver

165 As diferenças entre “as abolições” do Brasil também são abordadas por Machado de Assis, em uma de suas crônicas, conforme análise de John Gledson. (GLEDSON,Op. cit., pp. 164-171). 166 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit. p. 41. 167 Em dois artigos publicados por Anna Ribeiro na década de 1920, ela questiona as doutrinas feministas e suas reivindicações da primazia da família e da sociedade para o controle das mulheres. Segundo Anna Ribeiro, nas mãos dos homens está o “cetro” da sociedade, uma referência a “reinado” dos homens sobre as mulheres. ( BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Araújo Góes. O feminismo. A paladina do lar, Tipografia Salesianas, ano II, n. 7, p. 3-7, jul. 1911 e _________. O feminismo na Finlândia. A VOZ da liga das senhoras católicas baianas. Tipografia Beneditina, ano I, n. 5 p. 34-35, dez. 1912).

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numa casa construída pelo filho, Pedro Ribeiro. Anna Mariani neta de Anna Ribeiro, conta

que a última grande movimentação da, agora, fazenda do Api foi mesmo em 1907, quando

avô dela [Sócrates], “muito doente, diabético e desanimado, quis tentar, como último recurso,

uma estada na estância termal” 168. É interessante que semelhante recurso também foi tentado

pelo velho Travassos na ficção, quando ele foi para a Ilha de Itaparica “tomar os banhos

salgados aconselhados pelos médicos”169. Ainda segundo Anna Cabral, “com o

desaparecimento do chefe da família, mudaram-se minha avó e minha tia para a capital e

houve uma interrupção em nossas idas à fazenda [...]. Depois a família se dispersou; uns

viajaram, outros casaram e, praticamente, o Api deixou de ser para nós o casarão da

infância”170.

Após a dissipação da família senhorial em Letícia, ocorrida após o 13 de maio dona

Lídia ressentidamente dizia: “o trabalho era algo para que ela não tinha sido acostumada”.

Mais uma vez, a mulher tem que ocupar o lugar masculino, na falta do homem. A lógica de

Anna Ribeiro era que as mulheres da elite deveriam estar preparadas para os tempos difíceis

que a vida pudesse apresentar, por isso ela precisaria ser bem educada e preparada para

assumir uma posição como o “homem da casa” faltasse por algum motivo.

A situação conjugal de Eurico e Letícia no momento da morte do Velho Travassos não

era das melhores. Na verdade, a saída da jovem para cuidar do pai doente veio num momento

de crise do seu casamento. Letícia pensava estar abaixo das expectativas do esposo, visto que

era um homem “civilizado” enquanto ela fora criada na “roça”. Embora tivesse várias prendas

femininas e soubesse tocar piano, a jovem não estava acostumada à vida urbana da “boa”

sociedade carioca. Assim, ela entrou em crise quando percebeu que o marido não mais

chegava cedo em casa, mudando de comportamento em relação a ela. Sem se adaptar à vida

social a que o esposo estava acostumado, a jovem esposa começou a se deprimir, pensando

até mesmo em se suicidar.

A situação começou a piorar quando Eurico arranjou um caso amoroso, conhecendo

uma típica mulher da cidade, uma atriz, “devassa” por nome Edelvira. Ele provavelmente a

havia conhecido na casa de jogos onde satisfazia seus “vícios”. Assim, verdadeiramente os

medos da esposa se concretizavam. Cabe ressalvar que, em nenhum momento da história, ela

deixa de ter Eurico como seu esposo. Jamais se apaixonaria ou se relacionaria com outro

168 CABRAL, Op. cit., p. 06. 169 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 123. 170 CABRAL, Op. cit., p. 07.

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homem a não ser seu marido, com quem contraiu matrimônio através da bênção indissolúvel

da Igreja.

Quando tudo parecia perdido, eis que Eurico volta da Corte para a Bahia e vai visitar

Letícia. Agora ele fora abandonado pela sua amante que fugira para o Uruguai com um diretor

de Teatro. Eurico adoece e encontra na esposa um amparo necessário para se reerguer. Ele

perde tudo com os desejos de Edelvira. Doente, pobre e sem ninguém é Letícia quem cuida do

marido e o recebe de volta.

Enquanto Letícia é o modelo da mulher virtuosa (heroína com a qual a leitora deve se

identificar), Edelvira é sua antagonista, modelo de mulher pecadora que leva o homem à

destruição – propositalmente, ou não, uma típica mulher urbana “desfrutável”. Eurico, o

esposo, é o pecador que gasta todos os seus bens e é degenerado por seus pecados até

encontrar sua redenção em Letícia. No final da trama, Eurico se arrepende e volta ao seio do

lar implorando o perdão da esposa, ao afirmar: “- Letícia, tens razão em não me acreditar,

conheço a profundeza do abismo onde cai e do qual tua mão redentora me tirou” 171.

Mesmo sem perdoar de início por pensar que o rapaz apenas queria retribuir os

cuidados dispensados por ela. Letícia por fim o perdoa. A própria narradora se encarrega de

anunciar o desfecho, onde o “Mancebo, louco de jubilo lançou-se aos pés da esposa beijando-

lhe as mãos, não com amor, mas com a adoração que o verdadeiro crente consagra a uma

divindade”. 172

Assim, a mulher em Anna Ribeiro aparece como redentora do lar aristocrático, no

antigo mundo senhorial, mas também realinha os seus valores para o seio do lar burguês. Essa

é a tese principal de Anna Ribeiro: a mulher como redentora do casamento, do lar e da

sociedade. Para isso, ela deve ser “resignada” e estar dispostas a passar por todo o tipo de

“privações”. Começava a luta pela família não mais no antigo mundo senhorial, pois as coisas

realmente tinham mudado e, pouco a pouco, a jovem heroína tinha que se adaptar aos “novos

tempos”.

Eurico, no final das contas, acaba ganhando a sua luta particular contra o sogro, o

mundo senhorial sucumbira e em seu lugar surge um novo modelo de vida, que reapropria

velhas práticas e velhos discursos. Assim, não mais no ambiente rural, não mais sobre a

dependência de um senhor e sobre a corte de numerosos agregados e escravos a família

senhorial transfigura-se e sua ideologia sucumbe frente a outras construções discursivas

caracterizadamente burguesas. Deve haver, para os remanescentes daquele mundo uma

171 BITTENCOURT. Letícia. Op. cit., p. 204. 172 Ibid., p.206.

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mudança de vida que, na maioria das vezes, implicava na imigração do campo para a cidade,

situação que Anna Ribeiro retrata no conto Marieta (1908) e também em Letícia.

O pós(pós)-abolição: Marieta

De todas as narrativas de Anna Ribeiro, analisadas aqui nesse trabalho, Marieta (1908)

é a que menos se refere ao processo de decadência dos senhores do Recôncavo oitocentista.

Isso porque no tempo em que se passa esse conto, já se operou a transição como um todo, sem

alternativas economicamente viáveis, a ex-família senhorial acaba migrando para a cidade,

onde busca com padrinhos políticos formas de sustento como burocratas do Estado. Há ainda

a ênfase da narradora sobre uma questão muito importante: a formação educacional dos

filhos. Contudo, Marieta é uma espécie de posfácio da história da decadência contada e

recontada por Anna Ribeiro. Nele, o senhor não aparece mais como centro da vida no

engenho, onde outrora se organizavam inúmeras pessoas entre escravos, agregados e

lavradores.

A história é protagonizada por Marieta, filha de Adriano e Maura Silva, um pequeno

lavrador que atravessa situações difíceis na lavoura. O lavrador desgostoso com a lavoura

resolve migrar para a Cidade da Bahia [Salvador], em busca de melhores condições de vida.

Como afirma a narradora:

Por meio de relações mantidas com pessoas da capital, influentes na situação política, esperava o agricultor obter um emprego, que permitisse residir na cidade e promover a educação dos filhos, justo desiteratum dos bons pais. Casos idênticos estão dando-se cada dia e assim os nossos campos, que tanto precisam de cultura, vão ficando despovoados; mas ninguém poderá criminar os nossos conterrâneos, que assim procedem porque é licito a qualquer procurar suas melhoras, e a vida campestre cada dia se torna mais difícil173.

A desculpa dada para o êxodo da família fora justamente a impossibilidade de se

promover a educação adequada para Marieta e seus irmãos, Arnaldo e Osvaldo, mas na

realidade o contexto inicial da trama evidencia mesmo que era preciso “procurar as

melhoras”, porque a vida campestre cada dia tornava-se “mais difícil”. Nota-se que a

esperança do “bom” lavrador era obter um emprego através das relações mantidas com

pessoas da capital, “influentes na situação política. É válido lembrar que, para os ex-senhores,

como exemplo Mathias de Araújo Góes, pai de Anna Ribeiro, entre os ofícios que um homem

poderia executar além da atividade agrícola, era o trabalho para o Estado, que podia garantir

173 BITTENCOURT. Marieta. Op. cit.

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algum tipo de status social174. Além disso, os trabalhos braçais ou atividades comerciais não

eram bem vistos. Assim, para manter o mínimo de dignidade, a família Silva esperava ter um

retorno dos “padrinhos políticos”, possivelmente antigos aliados da época da ascensão

econômica e social dos senhores do Recôncavo. Já com residência na Cidade da Bahia, o

Adriano Silva recebeu um emprego “pouco rendoso” do seu padrinho político:

Vamos procurar a família do senhor Adriano Silva na capital da Bahia, onde fora fixar sua residência, em virtude do emprego para ele obtido por seu amigo. Era este emprego pouco rendoso, mas o protetor do senhor Adriano dissera-lhe: “Uma primeira colocação, meu caro, quase nunca pode ser muito boa, mas o principal é entrar para a classe dos que vivem à custa do governo, felizmente depois, arranja-se coisa melhor”. Embalado nessa esperança, o agricultor reduziu os bens a dinheiro, que depositou no Banco Emissor, e mudou-se definitivamente com a família para capital. Decorridos cinco anos, ainda não obtivera Adriano melhor emprego, apesar de inúmeras promessas. O seu ordenado apenas chegava, com muita economia, para o estritamente necessários, sendo, por vezes, preciso recorrer ao dinheiro que depositara no Banco, como um recurso para a família, no caso do surpreendê-lo a morte, sem ter os seus negócios em melhor pé. Era sempre com imenso desgosto que o fazia, retirando a menor quantia possível para remediar-se175.

A sinceridade do padrinho de Adriano Silva seria constrangedora se não fosse

verdadeira: “o principal é entrar para a classe dos que vivem à custa do governo”. Para ele, o

que importava era tornar-se um burocrata, mesmo que com um salário baixo, mas a intenção

era alcançar salários mais “onerosos”, e isso tudo “às custas do governo”. Está implícita nesse

discurso a idéia de que a tal exploração do dinheiro público poderia ser uma espécie de

compensação por “traumas passados”. Porém, os anos passaram e sua promoção jamais saíra

e o chefe da família Silva acabou contraindo várias dívidas cujo pagamento não podia efetuar.

Ele resumiu a sua situação da seguinte forma:

Analisemos o que tem sido ultimamente a minha existência, continuou, dirigindo-se aos filhos. Deixei a vida da lavoura desgostoso, em conseqüência de consecutivos revezes que tornavam improfícuos os meus esforços para aumentar meus bens, cuja produção não dava para a educação dos meus filhos, todos em idade de recebê-la. Reduzi o que possuía a dinheiro – doze contos, depositei no Banco Emissor, supondo-o então, um estabelecimento sólido e sério. O emprego que um amigo me arranjou era pouco rendoso, animava-me, porém, a promessa de um outro melhor, e, em caso de necessidade urgente, poderia lançar mão de uma pequena parte da quantia que depositara, e que sempre destinei a ser uma garantia para a subsistência de minha mulher e filha. De vez em quando lembra a meu protetor a promessa feita. Não tenha razões, de queixa contra ele; uma vez, estava com um bom lugar quase arranjado para mim; caiu (?) o partido a que ele pertencia e deram por terra as minhas esperanças. De outra vez, estavam as coisas no melhor pé para a minha nomeação a um bom emprego: foi o meu amigo atraiçoado por seus correligionários, que deram o lugar a uma

174 BITTENCOURT. Longos Serões do campo. Op. cit., p. 49. 175 BITTENCOURT. Marieta. Op. cit.

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afilhado de mais poderoso padrinho. Algum tempo depois, quando julgava prestes a realizar-se minha pretensão, foi o meu protetor arrebatado pela morte176.

Adriano falou tudo isso lamentando pela situação de sua vida, se lastimando pelos

infortúnios vivera. Em meio a tantas queixas, o ex-senhor deixa passar uma frase bastante

interessante. Colocado contra parede por um de seus credores afirma: “o pobre não deve ter

aspirações!... Mas voltemos ao que importa. Visto a serie de decepções porque tenho passado;

já espero a última minha morte” 177. Fora o inconformismo do senhor em ter se tornado “um

pobre sem aspirações”, Adriano revela esperar uma segunda morte. Uma segunda morte? Mas

se haveria uma segunda, é porque antes houve uma primeira. Mas de que primeira morte ele

estaria falando. Talvez a resposta não esteja no conto que a sua filha protagoniza, mas nos

contos anteriores.

A primeira morte foi sofrida com quando ele sofrera o “golpe” que o fez sucumbir, ou

melhor, que fez o mundo senhorial a que ele pertencia sucumbir. Daí se chega a uma

conclusão interessante sobre esse conto: sua lógica está intimamente ligada aos primeiros

contos e ao romance Letícia, publicado por Anna Ribeiro no mesmo ano em que publicou

Marieta. A tal “primeira morte” de Adriano Silva é contada nas outras narrativas, pois a

intenção da narradora é contar a derrocada da elite senhorial: Figueredos, Bastos, Travassos e

Silvas, eram componentes de um mesmo modelo e representavam os mesmos tipos sociais:

os senhores do Recôncavo. Ao que tudo sugere, as situações vividas por todos eles nas quatro

narrativas estão intimamente interligadas e contam a mesma história: a da decadência dessa

classe. A segunda morte referida pela narradora seria, no seu caso em particular, a morte

física que ele desejara, uma vez que estava endividado e dependia dos seus filhos para

sobreviver, ou seja, “dependia dos seus dependentes”, algo inconcebível, para um antigo

senhor de engenho.

No quinto capítulo do conto talvez esteja a informação mais importante revelada numa

conversa entre membros da elite soteropolitana sobre a família Silva, a idéia era saber qual era

a origem de Marieta, pois um pretendente desejava desposá-la:

Soube que essa família não é baixa ou rasteira, como você parece julgar. O Sr. Adriano, a esposa e filhos têm uma linhagem correta e escolhida. Sua casa, embora modesta, é arranjada com extremo asseio e gosto. Veio-me logo a idéia, e viria a qualquer, de que se tratava de uma família distinta, tombada na pobreza que lançara corajosamente mão do trabalho, para prover a existência. Esta idéia foi depois, casualmente confirmada.

176 Ibid. 177 Ibid.

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Estando eu em casa do Sr. Pedreira, falou-se de um desses tipos de fidalgos degenerados que depois de perderem os bens pela indolência ou esbanjamento, levam a vida a proclamar os seus títulos de nobreza e as riquezas que possuíram, pretendendo ser sustentados pelos parentes ou pobres burgueses, aos quais outrora não se dignariam honrar com um olhar. Disse o Sr. Câmara: “Porque não fazem eles como o Adriano da Silva? Ele e a mulher descendem das principais famílias do recôncavo, ambos filhos de proprietários abastados. Perdendo os bens, pelos revezes da sorte, veio Adriano procurar modo de subsistência aqui, exercendo um emprego pouco lucrativo. A mulher fez-se costureira; um dos filhos, tendo já alguns preparatórios, foi empregar-se ao comércio, sem dúvida, para auxiliar a família; e até uma menina, bastante interessante, dá lições de música. É verdade que tem um filho estudando engenharia, mas creio que é um fim de granjear a vida pelo trabalho”178.

O jovem Jorge, membro de uma considerada família de Salvador, estava apaixonado

por Marieta e resolveu investigar a família e a vida da moça, constando algumas informações

preciosas que também ajudarão nas discussões aqui levantadas. Antes de qualquer coisa, vale

informar que o jovem conseguiu superar os “preconceitos” de sua família acerca de Marieta e

se casou com ela, seguindo a mesma estratégia das demais heroínas de Anna Ribeiro: modelos

inspirados na cultura mariana179, bem educadas e exemplos em toda a sua maneira de ser,

sempre “resignadas” e preparadas para ajudar os chefes da família nos momentos mais

difíceis.

Cabe agora fazer algumas observações sobre a análise de Jorge sobre a família Silva.

Primeiro ele revela algo que a narradora esconde durante toda a história: os Silva eram

“fidalgos”, nobres que empobreceram. No início a narradora afirma apenas que eles eram uma

família de “lavradores” e omite a sua fidalguia; segundo, eles foram tombados pela pobreza, o

que entra em consonância com a “primeira morte” de Adriano Silva referida algumas páginas

antes; Terceiro, eles perderam a sua riqueza, não por ostentar o “esbanjamento”, mas pelos

“reveses da vida”.

Jorge acaba contando toda a verdade sobre os Silva oculta em toda a narrativa de Anna

Ribeiro: eles descendiam de uma das famílias mais tradicionais do Recôncavo, mas tinham

perdido toda sua riqueza em virtude dos tais “reveses”, que nem mesmo ele esclarece do que

se tratava, mas que fica implícito na história, e revelado nas histórias de Anna Ribeiro

publicadas anteriormente. Uma vez empobrecidos, é interessante notar que outra lógica de

pensamento rege a vida dos Silva: a burguesa. Agora eles “granjeavam a vida pelo trabalho” e

178 Ibid. 179 Adriana Reis relata que na defesa da primazia sobre a educação feminina, a imagem da Virgem Maria, como ideal de mulher, foi muito enfatizada durante o século XIX. O cristianismo teria salvado e libertado a humanidade através de Maria sendo ela o referencial para toda a “crente fervorosa”. (REIS, Adriana Dantas. Cora: Lições de comportamento feminino na Bahia do século XIX. Salvado; Centro de Estudos baianos da UFBA, 2000. p. 85-86).

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não pelo trabalho dos outros como era nos tempos da escravidão. No mundo do trabalho não

se dispensa nem mesmo as mulheres da família que também dão a sua contribuição.

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CONCLUSÃO

Em Longos Serões do Campo, Anna Ribeiro construiu uma memória onde os

acontecimentos referem-se a acontecimentos “memoráveis” para ela, para sua família e para a

elite que a viveu. A escravidão é demonstrada dentro de uma harmonia notoriamente

paternalista, em que a visão “humanitária” dos senhores teria produzido um “melhor

cativeiro” para os negros. Apesar de serem “seres viciados” na casa dos Araújo Góes eles

teriam encontrado sempre o amparo da religião e da humanidade. A ostentação e a glória de

um “período áureo” para a elite do Recôncavo são lembradas por ela. Porém na sua prosa a

temática ganhou outros rumos.

Em suas memórias, Anna Ribeiro conta a trajetória da sua família, os Araújo Góes, no

decorrer dos séculos que nos remete ao Brasil Colônia e ao Império com o intuito de

“comprovar” uma dita origem nobre de sua família. Para além disto, ela rememora a sua vida

de menina e jovem no Engenho da família no Recôncavo baiano entre 1850 e 1865, quando se

casou com o médico e senhor de engenho Sócrates Bittencourt Bereguer (1843-1907). A

nostalgia e o romantismo empregados na escrita evidenciam a idealização da narradora em

relação ao mundo patriarcal escravista, cuja prática ela afirma ter sido “humanitária” em suas

propriedades.

Para tentar dar conta dos temas traumáticos para o seu grupo social, Anna Ribeiro

utilizou-se da literatura para contar a história das famílias patriarcais da Bahia oitocentista. O

mundo do ficcional, onde dizer o “indizível” era possível, onde se podia também instituir

versões para o acontecido e ao mesmo tempo falar do que e como poderia ter acontecido.

Nesse prisma, o estatuto literário caía “como uma luva” para as intenções da narradora. Dulce

& Alina, Violeta e Angélica, Letícia e tantos outros textos ficcionais de autoria da Senhora do

Api tentavam reescrever a História de tempos difíceis e instituir versões sobre aqueles

momentos históricos.

O que chamei de “trilogia da decadência” de Anna Ribeiro, iniciou-se no ano de 1901,

no conto Dulce & Alina quando a narradora expôs o auge do paternalismo, apresentando, as

contradições do poder senhorial. Nesse conto são mostrados o poder e a ostentação do senhor

de engenho dentro dos seus domínios.

Entretanto, como pôde ser visto através dos personagens tido como subalternos que

compunham este conto, havia um jogo político entre estes e os senhores que protagonizam a

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trama: os agregados “bajulam” seus senhores e em troca conseguem certas concessões. Isso

demonstra o quanto eles compreendem e atuam dentro das relações que os subordinam.

Mesmo que a senhora perceba que os subalternos ligados ao seu marido consigam “fazê-lo”

escravo, é incapaz de perceber que ela própria também é manipulada por suas próprias

agregadas. No entanto, no terreno em que se desenvolvem as relações onde são instituídas as

práticas de subordinação entre senhores e subalternos encontra-se o perigo da opressão

quando os primeiros se percebem como manipulados ao invés de manipuladores. Foi o que

aconteceu quando o Sr. Figueredo descobriu que uma de suas agregadas utilizou a informação

de que ele traía a sua esposa, para conseguir a confiança dela. Entretanto, pelo que se

depreende da trama, mais uma vez a agregada utiliza-se da sua influência junto à senhora –

que havia manipulado – para conseguir escapar da fúria do Sr. Figueredo.

Na segunda obra, Violeta & Angélica, são explorados os eventos que marcaram a elite

baiana no final do século XIX. Os traumas da classe senhorial baiana são expostos nessa obra,

sendo que narradora dá uma receita que faria com que as famílias atravessassem os

“momentos difíceis”: o poder da religião, da família e os valores e moral aristocráticos os

levariam a atravessar esses tempos. A Lei de 13 de maio é apresentada como um marco para a

sociedade baiana, uma vez que redireciona as relações entre os dominantes e os dominados.

Esse evento entra na memória social daqueles que ali a viveram como o símbolo das

transformações de uma sociedade secular. Em resposta a um processo que, segundo a elite,

deveria ter partido do centro de sua vontade, a ficção de Anna Ribeiro apresenta a

Proclamação da República como sendo a expressão da vontade da classe dirigente.

Contrapondo-se a essa versão, a historiografia demonstra que na Bahia a maioria dos políticos

e intelectuais apoiou a Monarquia de D. Pedro até o fim. Nesse ponto o discurso de Anna

Ribeiro entra em conflito com a sua história. A própria autora sempre foi monarquista e

ressentia-se também do “tratamento” que deram ao “grande monarca”.

Nas ex-escravas Maria e Josefa, ambas pertencentes à história de Violeta & Angélica

fica clara mais do que a interpretação da narradora sobre o comportamento das ex-subalternas

após abolição. Ela estabelece modelos de ex-cativas “gratas” ao “melhor cativeiro”. Contudo,

em Maria aparece uma outra personagem, freqüente não só nas obras de Anna Ribeiro, mas

também nos jornais baianos do pós-abolição. Aqueles ex-cativos que abandonaram

sumariamente seus antigos cativeiros logo após tomarem consciência do “ato bendito da

Princesa”.

Na personagem Maria, está representado também o trauma das senhoras de engenho

que se viram de uma hora para a outra sem as suas “criadas”. O ressentimento da “boa

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senhora” Flora, mãe das heroínas Violeta e Angélica, com Maria evidenciam o trauma das ex-

senhoras. A revolta com a ingratidão da negra não faz, porém, com que os Bastos admitam os

problemas causados pela falta dos subalternos. Mesmo arruinados, os senhores preferem não

admitir a sua situação e afirmam que estariam melhores sem os negros do que com eles, pois

estes seriam preguiçosos e não sabiam fazer nada direito, exigindo da dona-de-casa maior

esforço do que se ela mesma fizesse os serviços domésticos.

Em Marieta, a família senhorial não mais existe, no lugar dela surge outro grupo

familiar que depois de migrar para a capital deve tentar se adequar aos novos tempos. A crise

do paternalismo chega ao fim. Nesse conto, Anna Ribeiro mostra que a outrora família

senhorial teria que se adaptar ao inevitável fim do mundo senhorial.

No último conto da série “Cenas do Recôncavo” a narrativa apenas se inicia no

campo, e logo “por força do destino”, a família senhorial é obrigada a migrar para a cidade.

Lá, sem escravos, sem o poder do senhor, sem a ostentação econômica e social, ela se

reescreve, alça novas possibilidades. O pai trabalha como funcionário público, única atividade

valorizada pelos seus para um ex-lavrador, que não carregasse o estigma da “vergonha do

trabalho braçal”. Os filhos trabalham para completar os estudos e ajudar seu pai, Adriano

Silva. Até mesmo a filha moça aprende uma profissão e ajuda no orçamento da casa

trabalhando como professora, o que faz com que seu pai pense até mesmo em suicídio, em

virtude da vergonha de não poder sustentar seu próprio lar.

Fragmentada, essa família está longe de comparar à família senhorial que ostentava

riquezas, escravos e poder. Não é mais também formada por uma extensa e numerosa

companhia de parentes e subalternos. Em Anna Ribeiro, esta nova família aparece e é

discutida não só na literatura como em seus ensaios publicados em revistas femininas da

década de 1920, mas isso compõe um objeto para um estudo a ser desenvolvido em outra

oportunidade. Este conto demonstra também as representações da elite sobre o campo em que

outrora se desenvolveu a riqueza proporcionada pela cana-de-açúcar. O saudosismo expresso

na narrativa evidencia a falta de perspectivas que deparou a elite do Recôncavo e a inevitável

migração para a cidade.

Em Letícia, obra mais completa sobre essa temática, a narradora sintetiza as etapas

registradas nos contos e demonstra a vitória de uma mulher que se apóia no catolicismo e “vai

à luta” trabalhando dentro das funções para as mulheres. Em todas as obras, cabe à mulher

restaurar a família. Em tempos de crise da ideologia senhorial o “sexo frágil” não é

apresentado por Anna Ribeiro de maneira tão frágil assim: elas estudam, lutam, trabalham,

para ajudar os seus pais e maridos a vencerem as ocasiões adversas. As contradições do

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paternalismo não aparecem apenas na ficção. Uma mulher sair do ambiente privado para o

público para defender a moral aristocrática é certamente mais uma contradição de um modo

de vida em vias do seu declínio.

Na prosa, Anna Ribeiro se direciona ao que, segundo ela, seria registrado por

acontecimentos e eventos “nem todos imaginários, mas tirados de suas experiências”, ou seja,

na ficção a narradora mistura o real e o imaginado tendo, contudo, como referencial

demarcado a realidade do passado e do presente da escritura. Assim, a sua ficção segue os

critérios do realismo formal apresentado no decorrer deste trabalho, como uma forma de

delimitar no tempo e no espaço seus personagens individualizando cada um deles e

[re]construindo os tipos sociais dentro daquele contexto. Ao mesmo tempo, as descrições

detalhadas dos ambientes revelam sentimentos de nostalgia por um tempo que havia ficado

apenas na memória.

As concepções duma romancista baiana sobre o mundo foram fortemente marcadas

por suas experiências enquanto membro de uma elite que enfrentou a perda do poder político,

econômico e social. A perda da mão-de-obra escrava fez com que a já declinante situação dos

Araújo Góes, família da autora, provocasse o colapso de suas estruturas patriarcais e

senhoriais, principalmente se considerarmos o prestígios político perdido, junto a um Império

que também teve o seu fim marcado, em parte, pelo fim do elemento servil. Sendo assim,

percebe-se um sentimento dúbio da narradora acerca do Governo de D. Pedro II. No entanto,

nota-se nas vozes dos senhores de engenho fictícios das narrativas que foram aqui analisadas,

que ela se preocupou em destacar as várias reações que a decisão imperial de extinção do

elemento servil provocou na elite do Recôncavo. Em Letícia, enquanto Sampaio “amaldiçoa a

Princesa e seus ministros”, Travassos, mesmo “revoltado” com a situação em que se

encontrava em “decorrência deste fato”, entende a posição “humanitária” da Princesa.

Percebe-se, portanto, que existe uma polifonia nas personagens da narradora, cujo

objetivo é registrar uma memória social sobre a decadência do mundo “dos lavradores do

açúcar”. Tanto é que não se pode deixar de destacar as ligações entre os discursos presentes

nestas obras em relação aos 13 de maio e a reação dos escravos, com a posição expressa pelo

Barão de Vila Viçosa dias depois da abolição. Possivelmente o que esta relação significa é

que sendo Anna Ribeiro uma mulher bem informada mesmo nos tempos em que morou no

engenho, a homologia entre os seus discursos – vale destacar escrita quase vinte anos depois

da abolição – e as opiniões que alguns senhores registraram em jornais da época demonstra a

apropriação que ela fez destas possíveis leituras.

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De igual forma, a existência de seres fictícios como as ex-escravas Maria e Josefa,

levam a pensar na referência feita pelo Barão de Viçosa quando afirmou que as “mães de

famílias qualificadas viram-se obrigadas a ir para a cozinha, estava eloqüentemente

demonstrado que a lei 13 de maio era um ponto final à colheita da safra”. 180 O ressentimento

da senhora Flora, com a “ingratidão” da negra Maria por deixar o engenho em direção à

cidade da Bahia, justifica-se isto for pensado como a representação do imaginário das

senhoras de engenho – vivido certamente por Anna Ribeiro –, acerca dos momentos em que

se viram de uma hora para a outra sem suas numerosas mucamas e demais escravas de casa.

O “abandono repentino” dos negros, logo na época da colheita, é algo perceptível

tanto nas leituras de Vila Viçosa, quanto nas narrativas de Anna Ribeiro. Eles são escritos de

natureza e de momentos históricos diferentes desvelando os mesmos traumas. O Primeiro

demonstra as percepções quase imediatas de um senhor de engenho frente ao fim da

escravidão, o segundo emerge de uma memória social de alguém que, embora sendo do

mesmo grupo social do Barão, conferiu um sentido ao mesmo tempo semelhante e peculiar às

suas experiências se utilizando da literatura para expressar seus sentimentos e suas impressões

sobre os fatos.

Por fim, vale retomar as questões concernentes aos finais das tramas quando o assunto

é o destino da antiga família senhorial após a derrocada do seu modo de vida. Em Anna

Ribeiro, percebem-se em determinados momentos, um mescla quando o tema é o futuro da

ex-família patriarcal. A “receita” que ela dá para vencer os tempos de infortúnio é a

resignação e adesão à fé católica. No entanto, mesmo estas concepções variam de trama para

trama. Conforme decorrem os anos da década de 1910, as percepções da narradora sobre essa

questão vai ficando cada vez mais melancólica e ao fim, não há alternativa à família senhorial

a não ser migrar para a cidade e procurar “outros meios de vida”. Enquanto em Dulce &

Alina, os Figueredo continuam “poderosos” mesmo depois do “golpe da abolição”; em

Violeta & Angélica, os Bastos encontram muitas dificuldades para permanecer no campo,

mas, conseguem, a duras penas, manter seu modo de vida; Em Marieta, a família Silva se vê

obrigada a migrar para a cidade por causa da “falta de perspectiva do campo”; e, por fim, em

Letícia, a morte do senhor de engenho e a dispersão da família senhorial desvelam que não há

mais possibilidade do retorno dos “tempos áureos”.

Inicia-se agora uma nova etapa onde “as lutas da vida”, nas palavras evocadas pela

narradora em Violeta & Angélica, se dão em um novo palco e sob um novo contexto. Do auge

180 BPEB. Barão de Vila Viçosa, Diário da Bahia, 24 de fevereiro de 1889.

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à morte, a decadência do mundo senhorial é contada nas obras de Anna Ribeiro e nelas são

expressas as representações de uma [ex]senhora de engenho que ousou entrar no mundos da

das letras.

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Mariani Bittencourt). BITTENCOURT. Clemente Mariani. Notas Biográficas. Manuscrito, 1940. PERÍODICOS: Almanaque de Lembranças Luso Brasileiro, 1886. A Paladina do lar, 1910 à 1917. A VOZ da liga Católica das Senhoras Baianas, 1913 à 1915 IMPRESSOS (Artigos, folhetins e livros): Barão de Vila Viçosa, Diário da Bahia, 24 de fevereiro de 1889. BITTENCOURT, D. Ana Ribeiro de Góes. "O Romance. Às senhoras brasileiras e portuguesas." In: Novo almanaque de lembranças luso-brasileiro para o ano de 1886. Lisboa: Livraria de António Maria Pereira, 1885 BITTENCOURT. Anna Ribeiro de Araújo Góes. Marieta. Jornal de Notícias. Salvador. Nov/1908. __________________. In: A Voz da Liga Católica das Senhoras Baianas. Bahia: Tipografia Beneditina. ano IV, set. 1916. n. 6. p. 91-93. __________________. Dulce e Alina. A Bahia. Salvador. 5-15 de junho/1901. __________________. Violeta e Angélica. Jornal de Notícias, Nov/1906. __________________. Letícia. Litho-Typ. E Encadernação Reis & Cia. Salvador, 1908. __________________. A Filha de Jephté. Salvador; Tipografia à rua de Alfândega, 1882. __________________. [Coletânea]. Conteúdo: contos: [A primeira injustiça; Os sonhos de Josefina; Biografia de Anna Ribeiro de Góes Bittencourt; Notas biográficas de Mathias Araújo Góes; sonetos: Amor eterno oferecido ao Dr. Antonio Pacífico Pereira]. 50 fls. (material manuscrito, transcrito por Clemente Mariani Bittencourt). ___________________.Contos. Salvador, S/D (Material datilografado e inédito a versão foi doada pela família À Fundação Clemente Mariani e inclui quatro contos) ___________________. Longos Serões do Campo: O Major Pedro Ribeiro. Organização e notas Maria Clara Mariani, - Rio Janeiro: Nova Fronteira, 1992. 2 vol. CABRAL, Anna Mariani. Prefácio. In: BITTENCOURT, Anna Ribeiro de Araújo Góes. Contos. Salvador, Datil, S/D.

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Outros: _________________. [Caderno de poesias]. (No final de cada poesia consta nomes de escritores brasileiros). __________________. A Imitação - impressões de leitura. manuscrito. __________________. Fragmentos literários. Manuscrito (título dado por terceiros). __________________. Júlia Fetal. 5 fls. Material datilografado __________________.Juízo crítico do romance A Intrusa". S/D __________________.Juízo crítico do romance do SI. Castro Mello Alma em delírio". __________________. [Minuta da introdução do romance Abigail e dedicatória a neta Stella

Mariani Bittencourt]. _________________. [Notas biográficas sobre Anna Maria da Anunciação Ribeiro]. __________________. O mês de Maria. (transcrito pela neta Stella Mariani Bittencourt). S/D. __________________.O teatro antigo . manuscrito incompleto. IMPRESSOS: Romances: __________________. A Filha de Jephté. Salvador; Tipografia à Rua de Alfândega, 1882. __________________. O Anjo do Perdão. A Gazeta de Notícias, Salvador, 1885. __________________. Helena. A Bahia, Salvador, 1901. __________________.Lúcia.A Bahia, Salvador, 1903. __________________. Letícia. Litho-Typ. E Encadernação Reis & Cia. Salvador, 1908. __________________. Abigail: romance baseado na Escritura Sagrada. Diário da Bahia, Salvador, 1921-1922. __________________.Suzana. [Manuscrito Inédito], S/D. Contos: __________________. Dulce e Alina. A Bahia. Salvador. 5-15 de junho/1901. __________________. Violeta e Angélica. Jornal de Notícias, Nov/1906. __________________.Marieta. Jornal de Notícias. Salvador. Nov/1908. __________________. [Coletânea]. Conteúdo: contos: [A primeira injustiça; Os sonhos de Josefina]. Salvador, S/D. Memórias: ___________________. Longos Serões do Campo: O Major Pedro Ribeiro. Organização e notas Maria Clara Mariani, - Rio Janeiro: Nova Fronteira, 1992. ___________________. Longos Serões do Campo: Infância e juventude. Organização e notas Maria Clara Mariani, - Rio Janeiro: Nova Fronteira, 1992.

Artigos:

____________________. O Romance. Às senhoras brasileiras e portuguesas. In: Novo almanaque de lembranças luso-brasileiro para o ano de 1886. Lisboa: Livraria de António Maria Pereira, 1885. ____________________. O luxo. A Paladina, Salvador, Tipografia Salesianas, ano II, n. 1, pp. 23-24, 1911. ____________________. Saber ser pobre. A Paladina, Salvador, Tipografia Salesianas, ano lI, n. 9, p. 28-9, set. 1911.

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____________________.O ensino religioso. A Paladina, Salvador, Tipografia Salesianas, ano lI, n. 11, p. 24-6, novo 1911. ____________________.A propaganda do protestantismo. A Paladina, Salvador, Tipografia Salesianas, ano lI, n. 12, p. 15-7, dez. 1911. ____________________.O flirt. A Paladina, Salvador, Tipografia Salesianas, ano III, n. 9, p. 275-277, set. 1912. ____________________.O divórcio. A Paladina, Salvador, Tipografia Salesianas, ano III, n.11, p. 327-9, Nov. 1912. ____________________.Jogos e divertimentos.A Paladina do Lar, Salvador, Tipografia Salesianas, ano IV, n. 2, p. 51-2, fev. 1913. ____________________.Natal. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano I, n. 5,p.34-5,dez. 1912. ____________________.O feminismo na Finlândia. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano I, n. 3, p. 29-30, jan. 1913. ____________________.O catecismo. nas escolas. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano I, n. 3, p. 9-10, mar. 1913. ____________________.O athelier da Associação das Senhoras de Caridade. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano II, n. 13, p. 112-3, Out. 1914. p. (Incompleto). ____________________. O Aprendizado de um ofício. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano IV, n. 32, p. 89-90, novo 1915. ____________________. A caridade à infância. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano IV, n. 32, p. 89-90, novo 1915. ____________________.Exaltação. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano IV, n. 6, p. 91-3, set. 1916. ____________________.A questão feminina. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano VI, n. 4, p. 6, abr. 1917. ____________________.A paixão. A VOZ da Liga Católica das Senhoras Baianas, Salvador, Tipografia Beneditina, ano VI, n. 3, p. 180-1, mar. 1918 (texto incompleto).

Poemas:

____________________. "Avante! A Ex.ma Sra. D. Amália Vieira do Prascimo"; publicado no Almanaque de Lembranças de Lembranças Luso-brasileiro em 1881 (escrito em janeiro de 1881). ____________________."Amor materno"; publicado no Almanaque de Lembranças Luso-brasileiro em 1882 e em A Paladina em setembro de 1910. ____________________."A Caridade" ; publicado em A Paladina em março de 1911. ____________________."Ao meu filho Pedro, no seu aniversário natalício"; publicado na Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 13, Salvador, 1952. p. 20-22 (escrito em 1878). ____________________."À sua primeira neta ao completar 14 anos dedicou os seguintes versos"; publicado na Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 13, Salvador, 1952. p. 18-20 (sem data). ____________________."Soneto oferecido a Dr.Antônio Pacífico Pereira"; publicado na Revista da Academia de Letras da Bahia, n. 13, Salvador, 1952. p. 22 (escrito em 1911).

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ABSTRACT Anna Ribeiro de Araújo Góes Bittencourt (1843 -1930) was a mill former-lady that penetrated in the world of the letters, with the intention of "guiding" her patrician youths with a speech moralist. For this, she wrote narratives based and adapted in her reality, with the intention of creating an identity with her readers. Under that literary project, nine works were published in Bahia among 1882 and 1921. Of this production emerge the three stories and a novel that describe the stately decadence, analyzed in this dissertation. Respectively in Dulce & Alina (1901), Violeta & Angélica (1906), Marieta (1908) and the romance Letícia (1908) the social memory of the elite of the Bahia concerning the process of her decline is counted gradually detaching the peak, the crisis and the destruction of the elegant world respectively, and in Letícia the author made a synthesis of this process. The paternalist optics of these works is peculiar to the representations of a mill former lady that offers in her written a unique version of the history of the Bahia, through of the social types, the environments and speeches present in the memory of the elite. Anchored theoretically in cultural history, this research analyzes the three stories and the novel before referred, considering the literature as a historical source Privileged, once being a product of history, works and authors represent reality that surrounds then, offering possibilities of reading to the readers, in this case, on the society of Recôncavo between mid oh nineteenth century and early twentieth century. Keywords: History; Literature; paternalism; decadence; Anna Ribeiro.