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XV Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (XV SNHCT) GT História da Saúde e das Doenças Marcas de um corpo: Síndrome Pluricarencial da Infância através da fotografia Marks of a body: food lacking Childhood Syndrome through photography Modalidade da apresentação: Comunicação Oral Ana Cláudia de Araújo Santos 1 Resumo: A fotografia, desde o seu surgimento no século XIX, foi utilizada por diversas áreas do conhecimento, e com diversos vieses para sua abordagem. Originalmente os discursos sociais eram construídos a partir de uma trama fotográfica, como sendo portadora de uma verdade absoluta e incontestável, contudo, nos dias atuais, sabe-se que as fotografias são objetos de pesquisa socialmente determinados, como qualquer outro suporte informacional. Neste contexto, destaca-se a fotografia científico-técnica - registros de fenômenos através dos sais de prata elaborados para observação, construção e divulgação do conhecimento científico - entre elas, a fotografia médica. A utilização da fotografia na área médica remonta a época de criação da própria imagem fotográfica, de tal forma, que não demorou muito para que os profissionais que tratavam do corpo a utilizassem como um instrumento de registro para fundamentar seus estudos, pesquisas e atendimentos. Este uso se fez presente, inicialmente, nas áreas da Psiquiatria e Dermatologia, como meio de compreender os fenômenos da mente e as transformações da pele, um interesse que reflete a relação que os indivíduos desenvolveram com o corpo ao longo dos anos e que passou por várias transformações, as quais podem ser evidenciadas a partir da dualidade doença e saúde. Um direito que foi reconhecido pelo Estado, no século XIX, e que de fato foi compreendido no século XX, como o direito à assistência médica. É sob este viés que a presente proposta se fundamenta, cujo escopo é apresentar a doença Síndrome Pluricarencial, também denominada Kwashiorkor - enfermidade que afeta as crianças entre 1 a 4 anos de vida, e se não tratada pode levar o indivíduo ao óbito, devido à deficiência de vitaminas - a partir de duas fotografias que integram a coleção do médico, professor e pesquisador pernambucano Ruy Marques. A abordagem aqui apresentada contribui para a construção de um conhecimento histórico acerca da saúde e da doença potencializando e intensificando os estudos que vem sendo realizados nesta área, ademais, tal ênfase colabora para o tratamento da fotografia científico-técnica como fonte de pesquisa e como canal para a comunicação científica. 1 Mestre em Ciência da Informação, Museóloga do Departamento de Antropologia e Museologia da Universidade Federal de Pernambuco. Contato: [email protected].

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Page 1: Marcas de um corpo: Síndrome Pluricarencial da Infância através … · 2016-11-18 · tirar fotografias dos doentes de Charcot, com o objectivo de confirmar e fixar em imagens

XV Seminário Nacional de História da Ciência e da Tecnologia (XV SNHCT)

GT História da Saúde e das Doenças

Marcas de um corpo: Síndrome Pluricarencial da Infância através da fotografia

Marks of a body: food lacking Childhood Syndrome through photography

Modalidade da apresentação: Comunicação Oral

Ana Cláudia de Araújo Santos1

Resumo: A fotografia, desde o seu surgimento no século XIX, foi utilizada por diversas áreas do

conhecimento, e com diversos vieses para sua abordagem. Originalmente os discursos sociais eram

construídos a partir de uma trama fotográfica, como sendo portadora de uma verdade absoluta e

incontestável, contudo, nos dias atuais, sabe-se que as fotografias são objetos de pesquisa socialmente

determinados, como qualquer outro suporte informacional. Neste contexto, destaca-se a fotografia

científico-técnica - registros de fenômenos através dos sais de prata elaborados para observação,

construção e divulgação do conhecimento científico - entre elas, a fotografia médica. A utilização da

fotografia na área médica remonta a época de criação da própria imagem fotográfica, de tal forma, que

não demorou muito para que os profissionais que tratavam do corpo a utilizassem como um

instrumento de registro para fundamentar seus estudos, pesquisas e atendimentos. Este uso se fez

presente, inicialmente, nas áreas da Psiquiatria e Dermatologia, como meio de compreender os

fenômenos da mente e as transformações da pele, um interesse que reflete a relação que os indivíduos

desenvolveram com o corpo ao longo dos anos e que passou por várias transformações, as quais

podem ser evidenciadas a partir da dualidade doença e saúde. Um direito que foi reconhecido pelo

Estado, no século XIX, e que de fato foi compreendido no século XX, como o direito à assistência

médica. É sob este viés que a presente proposta se fundamenta, cujo escopo é apresentar a doença

Síndrome Pluricarencial, também denominada Kwashiorkor - enfermidade que afeta as crianças entre

1 a 4 anos de vida, e se não tratada pode levar o indivíduo ao óbito, devido à deficiência de vitaminas -

a partir de duas fotografias que integram a coleção do médico, professor e pesquisador pernambucano

Ruy Marques. A abordagem aqui apresentada contribui para a construção de um conhecimento

histórico acerca da saúde e da doença potencializando e intensificando os estudos que vem sendo

realizados nesta área, ademais, tal ênfase colabora para o tratamento da fotografia científico-técnica

como fonte de pesquisa e como canal para a comunicação científica.

1 Mestre em Ciência da Informação, Museóloga do Departamento de Antropologia e Museologia da

Universidade Federal de Pernambuco. Contato: [email protected].

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Palavras-Chave: Fotografia médica, Doença, Síndrome Pluricarencial, Ruy Marques.

1- Introdução

A fotografia, desde o seu surgimento no século XIX, foi utilizada por diversas áreas

do conhecimento, e com diversos vieses para sua abordagem. Originalmente os discursos

sociais eram construídos a partir de uma trama fotográfica, como sendo portadora de uma

verdade absoluta e incontestável, contudo, nos dias atuais, sabe-se que as fotografias são

objetos de pesquisa socialmente determinados, como qualquer outro suporte informacional.

Neste contexto, destaca-se a fotografia científico-técnica2 – registros de fenômenos através

dos sais de prata elaborados para observação, construção e divulgação do conhecimento

científico - entre elas, a fotografia médica.

A utilização da fotografia na área médica remonta a época de criação da própria

imagem fotográfica, de tal forma, que não demorou muito para que os profissionais que

tratavam do corpo a utilizassem como um instrumento de registro para fundamentar seus

estudos, pesquisas e atendimentos. Este uso se fez presente, inicialmente, nas áreas da

Psiquiatria e Dermatologia, como meio de compreender os fenômenos da mente e as

transformações da pele, um interesse que reflete a relação que os indivíduos desenvolveram

com o corpo ao longo dos anos e que passou por várias transformações, as quais podem ser

evidenciadas a partir da dualidade doença e saúde. Um direito que foi reconhecido pelo

Estado, no século XIX, e que de fato foi compreendido no século XX, como o direito à

assistência médica.

É sob este viés que a presente proposta se fundamenta, cujo escopo é apresentar a

doença Síndrome Pluricarencial, também denominada Kwashiorkor - enfermidade que afeta

as crianças entre 1 a 4 anos de vida, e se não tratada pode levar o indivíduo ao óbito, devido à

deficiência de vitaminas - a partir de duas fotografias que integram a coleção do médico,

professor e pesquisador pernambucano Ruy Marques. A abordagem aqui apresentada

contribui para a construção de um conhecimento histórico acerca da saúde e da doença

potencializando e intensificando os estudos que vem sendo realizados nesta área, ademais, tal

2 Imagens que são produzidas a partir de aparelhos definição que se põe /às imagens tradicionais como aquelas

que são produzidas pelas pinturas e desenhos pictóricos (FLUSSER, 2008, comentado por ORBEM, 2013).

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ênfase colabora para o tratamento da fotografia científico-técnica como fonte de pesquisa e

como canal para comunicação científica.

2- A fotografia e a representação do corpo na medicina

A representação do corpo sempre se fez presente na história da humanidade. Fato que

ocorreu nas diversas áreas do conhecimento – História, Medicina, Artes, Antropologia, entre

outras – utilizando várias técnicas e suportes, entre eles, pintura, escultura, gravura,

fotografia, por exemplo.

Ao longo dos anos o corpo foi registrado em diversas situações, que o colocam como

um ‘documento’, suporte portador de um conjunto de informação, que se constituem em

registros, através das ‘marcas de um corpo’, estas podem ser por exemplos, as doenças. E para

a sua compreensão, o objeto corpo, foi escrutinado pelos médicos tanto externamente quanto

internamente e isso também foi feito através da utilização de imagens.

O registro do corpo através da fotografia ocorre desde o surgimento desta, no século

XIX, através dos mais variados retratos, em diversas situações sociais, até para documentar

corpos doentes e póstumos. A primeira experiência médica, com a utilização da fotografia

ocorreu no ano de 1840, em Paris, por Donné, com o registro de um corpo morto e que depois

se constituiu no primeiro atlas médico, com registro do corpo através de fotografias (CLODE,

2009).

A partir do ano 1845 que se começa a ver fotografias de doença e de pacientes, como a

utilização, mais sistemática, na Dermatologia e Psiquiatria (CLODE, 2009) áreas que havia

marcas nos corpos, capazes de serem registradas pela fotografia. Esta prática passou a ser

intensificada e utilizada pela comunidade médica, como forma de registrar as enfermidades

que tratavam, além de se constituir em uma ferramenta para auxiliar na determinação dos

diagnósticos. Como destaca Clode (2009):

a partir de 1870 Charcot conduz uma investigação para estudar a histeria.

Dois dos seus alunos Reginald e Bouneville, a partir de 1875, começaram a

tirar fotografias dos doentes de Charcot, com o objectivo de confirmar e

fixar em imagens a sintomatologia descrita por este nas suas famosas lições.

O estudo daí resultante “Iconographie Photographique de La Salpêtrieré” é

considerado uma das mais belas realizações da Fotografia Médica.

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A fotografia médica acompanhou o desenvolvimento das técnicas empregadas na

confecção dos registros fotográficos, e todos os processos que foram utilizados e substituídos

com o intuito de facilitar o registro através da luz. Este avanço também ocorreu em relação

ao registro do corpo internamente, e seu marco divisor foi a invenção do Raio-X, como afirma

Breton (2011, p. 250): uma fonte de energia suscetível de transpor o limiar da pele para

esclarecer o conteúdo cego do corpo. Surgiu a possibilidade de conhecer o interior do corpo

sem que o indivíduo estivesse morto pela primeira vez, a entrada no labirinto dos tecidos

humanos não exige mais a condição necessária da morte do homem (BRETON, 2011, p.

251). Assim, há uma mutação no olhar, evidenciando a relação presente no “olhar na

medicina”, cujo intuito é o de identificar as “mazelas” do corpo doente como afirma Breton

(2011, p. 246) a visibilidade coloca em evidência o vestígio sensível do mal, e as

malformações do mal, a concretude carnal da doença, o autor continua: a história da

medicina será, por um lado, a história das mutações desse olhar (BRETON, 2011, p. 315).

Retomando a representação do corpo fotograficamente, na medicina, sobreleva-se que

desde as suas origens ou quase, isto é, no decurso da segunda metade do século XIX, que a

fotografia esteve sempre associada às grandes explorações e até viagens marítimas

(BAURET, 2011, p. 24), mecanismo utilizado como forma de conhecer o até então

desconhecido, sobretudo, em relação à exploração de outros países. De igual modo, se

constituía em uma possibilidade de se construir um conhecimento utilizando-se de uma

linguagem visual - neste caso, da imagem fotográfica- fundamentando-se na riqueza de

detalhes, que este suporte documental pode oferecer ao pesquisador, de tal forma, que

aglutina uma série de informações, que caso, fossem descritas necessitariam de muitas

palavras. Como afirma Barent, (2011, p. 25) acompanhando as notas dos escritores, a

fotografia permitiu frequentemente mostrar numa imagem, exacta e minuciosa, uma

infinidade de pormenores que, por vezes precisariam de várias páginas de descrição. A ideia

aqui apresentada não comunga de uma hierarquização entre uma linguagem escrita e uma

visual, no sentido de uma em detrimento de outra, mas sim, da possibilidade presente nas

imagens da ciência para a construção de um dado conhecimento.

Sendo assim, as fotos [...] constituem uma gramática e, mais importante ainda, uma

ética do ver. Por fim, o resultado mais extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a

sensação de que podemos reter o mundo inteiro em nossa cabeça [...] (SONTAG, 2004, p.

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13). Associado a isso, a imagem fotográfica evidencia o seu caráter de prova, fotos fornecem

um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece comprovado

quando nos mostram uma foto. (SONTAG, 2004, p. 16). E aqui retoma-se um das

características mais frequentes e atribuída as fotografias, a sua condição de prova, a imagem

enquanto espelho do real, fato difundido a partir de 1871, quando do seu uso pela polícia

como ferramenta de controle e vigilância (SONTANG, 2004).

Neste aspecto, uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa

aconteceu. A foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou

existiu, e era semelhante ao que está na imagem (SONTAG, 2004, p. 16). Esta condição de

prova da fotografia se dá a partir de sua segunda realidade, entendida por Kossoy (1999, p.

37) como:

Toda a fotografia que vemos, seja o artefato fotográfico original

internamente, obtido na época em que foi produzido, seja a imagem dele

reproduzida sobre outro suporte ou meio [...] será sempre uma segunda

realidade. O assunto representado configura o conteúdo explícito da imagem

fotográfica: a face aparente e externa de uma micro-historia do passado

cristalizada expressivamente.

Em contraponto, ao que se pode realmente depreender do que está fotograficamente

demonstrado, em uma imagem, encontra-se a primeira realidade. Para Kossoy (1999, p. 36)

toda e qualquer imagem fotográfica contém em si, oculta e internamente, uma história: é a

sua realidade interior, abrangente e complexa, invisível fotograficamente e inacessível

fisicamente, ou seja, é a face oculta da imagem fotográfica que pode ser desvelada a partir de

um levantamento em outras fontes, as fontes secundárias, possibilitando, assim, compreender

o tempo e contexto em que a imagem foi produzida. Neste aspecto, informações sobre o

produtor e período em que foram as fotografias foram produzidas são de suma importância

para a compreensão da informação extrínseca, contida no documento fotográfico.

3 O médico e pesquisador: considerações sobre Ruy Marques

Ruy João Marques nasceu em Pernambuco, na cidade do Recife em 1917 e faleceu em

1993, também na mesma cidade. Desenvolveu atividades de ensino, pesquisa e gestão

administrativa na Universidade do Recife, instituição onde estudou e se formou em Medicina.

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De acordo com Freyre (1993, p. 03) João Marques teve grande destaque nacional e

internacionalmente, em Pernambuco contribuiu com a realização de pesquisas e estudos

voltados para as doenças tropicais, como evidencia Carvalho (1996, p. 24):

Clínico de grande conhecimento da medicina como um todo, publicou

grande número de contribuições em áreas diferentes das que lhe eram

especialmente do agrado. No campo da medicina tropical, ao contrário de

outros tropicalistas que se limitaram a estudos repetitivos sobre uma mesma

doença, Ruy foi enciclopédico e profundo no estudo de todas as parasitoses

que afetam a nossa população, atingindo notoriedade nacional e

internacional em todas elas.

Ruy João Marques deixou um legado de livros, artigos e coleção fotográfica, sobre a

medicina pernambucana e suas patologias. Entre as suas publicações destacam-se as

contribuições relacionadas à Doença de Chagas – um trabalho sistemático produzido na

década de 1960, sobre a referida patologia, em diversos munícipios do estado de Pernambuco,

pesquisa que lhe possibilitou a aprovação para assunção da Cátedra de Doenças Tropicais, da

Faculdade de medicina do Recife, no curso de Medicina (RIBEIRO, SANTOS, 2016, p.). E

seus estudos sobre a esquistossomose, no ano de 1951, em tese defendida a cerca da presença

da doença também nos pulmões, a denominada esquistossomose pulmonar (PARAHYM,

1961, p. 112).

No concernente a coleção de fotografias que foi organizada por João Marques, ela se

encontra custodiada pelo Memorial Denins Bernardes, unidade de memória, da Universidade

Federal de Pernambuco. De acordo com Ribeiro e Santos3 (2016, p. 12) este acervo se

constitui em um rico material voltado para o desenvolvimento de pesquisas,

acompanhamento das patologias que acometiam seus pacientes, e foi, certamente, importante

fonte para ministrar aulas na Faculdade de Medicina, na Universidade do Recife. A

diversidade que apresenta, possibilita diversas abordagens e compreensão acerca de diversas

endemias que contaminaram e mataram vários indivíduos, entre elas, a Esquistossomose e a

doença de Chagas. As fotos que serão aqui apresentadas compõem o dossiê Síndrome

Pluricarencial formado por 07 fotografias, preto e branco, que estão inseridas em um acervo

3 RIBEIRO, Emanuela Sousa, SANTOS, Ana Cláudia de Araújo. Comunicação científica visual e semiformal:

registros em sais de prata da doença de Chagas em Pernambuco em meados do século XX”, artigo submetido, e

em processo de avaliação, ao XVII Encontro Nacional de Pesquisa em Pós Graduação em Ciência da Informação

– ENANCIB, ao GT 07 –Produção e Comunicação da Informação em Ciência, Tecnologia &Inovação.

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maior contabilizado em 1386 fotografias, classificadas em cerca de 30 patologias e que foram

organizadas em uma pasta sanfonada, identificada com a nomenclatura de cada patologia. A

escolha desse dossiê se deu pelo sentimento de “cuidado” que foi emanado, quando do

tratamento organizacional do acervo fotográfico e pela curiosidade em saber mais sobre a

enfermidade que acometeu aquelas pessoas.

3.1 Marcas de um corpo: Síndrome Pluricarencial

Um dos primeiros trabalhos mundiais que versavam sobre a Síndrome Pluricarencial

foi publicado no ano de 1908, pelo pesquisador José Correa, que descreveu uma enfermidade

chamada de culebrilla – devido ao aspecto da pele, com formações que remetiam a serpentes.

Contudo, a enfermidade carencial só foi associada à deficiência de vitaminas, no ano de 1934,

pelo pesquisador Carillo. No ano de 1935, em Cuba foi descrita a doença denominada de

síndrome pelagroide beribérico, cuja sintomatologia apresentava alterações cutâneas e lesões

neurológicas (AUTER; BEHAR, 1955, p. 11).

Com uma crescente quantidade de publicações sobre a referida enfermidade, no ano de

1944, destaca-se o trabalho de Neri Flores, como sendo o mais completo em relação aos

estudos clínicos, etiológicos e terapêuticos. Neste mesmo sentido, destacam-se, no Brasil, os

trabalhos de Magalhaes Carvalho (1945; 1946; 1947), Zubilaga e Barrera (1945) e Oropeza

(1946), que abordavam aspectos clínicos, etiopatogênicos da síndrome (AUTER; BEHAR,

1955, p. 12), ou seja, os estudos voltaram-se para a compreensão dos sintomas e

desenvolvimento da patologia.

A síndrome pluricarencial recebe outros nomes, como evidencia Parahym (1961, p.

24) o síndrome de deficiência proteica infantil recebe o também o nome de “Kwashiorkor”,

palavra de origem africana (língua ashanti), que, significando “menino vermelho”, é alusiva

à modificação da côr dos cabelos. Ainda de acordo com o mesmo autor essa alteração da

pigmentação da cor dos cabelos, que se tornam avermelhados, é comum entre as crianças de

África e da Índia, quando vítimas de kwashiorkor (PARAHYM, 1961, p. 24).

A síndrome pluricarencial é ocasionada por uma carência de vitaminas necessárias ao

desenvolvimento da criança. Neste aspecto Parahym (1961, p. 369) comenta da maior

importância social é a carência crônica de proteínas, de elevada incidência entre as crianças

das nossas classes pobres. O autor sinaliza que normalmente acomete as crianças quando da

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interrupção da amamentação, tal deficiência nutritiva de grave sintomatologia clínica, com

severas repercussões sobre o desenvolvimento infantil e prognóstico sombrio, acomete

maiormente o grupo etário de 1-2 anos, instalando-se, de regra, após o desmame

(PARAHYM, 1961, p. 369).

No tocante a esse aspecto, ressalva-se que, enquanto amamenta o primeiro filho, a mãe

lhe fornece às custas do seu próprio organismo às gramas de proteínas animal necessárias à

construção do seu organismo, contudo, quando a amamentação é interrompida, com a chegada

de um segundo filho, por exemplo, essas proteínas deixam de ser fornecidas e passam a ser

compradas. Mas o custo é muito alto, nesse sentido, a proteína animal é substituída pela

vegetal, mandioca e fubá, por exemplo, culminando em uma carência de proteína animal que

pode ocasionar a desnutrição (PARAHYM, 1968, p. 02).

Em relação à desnutrição Parahym (1972, p. 65) destaca:

a desnutrição em quase todas as suas formas e graus permanece ostensiva na

Zona da Mata. Distrofia pluricarencial infantil (kwashiokor, marasmo)

hemeralopia, ceratomalacia e consequente cegueira por avitaminose A

arriboflavinose (boqueira carencial), despigmentação capilar, constituem os

estigmas mais evidenciados da fome crônica, dos desequilíbrios nutritivos,

das carências condicionadas.

Associado a esses sintomas também é evidente a perda de peso, xerodermia, dermatose

crônica, com rachaduras cutâneas (PARAHYM, 1972, p. 369).

Assim, buscando correlacionar os sintomas que foram anteriormente descritos,

apresentam-se as duas fotografias que demonstram crianças que foram acometidas pela

Síndrome Pluricarencial, objetivando explicitar um conteúdo e conhecimento visualmente

construídos.

Na primeira foto, veem-se duas crianças sobre um caixote com uma aparência

adoecida fisicamente. Apresenta inchaço no rosto sendo mais evidente na criança do lado

direito, com a presença de uma inflação cutânea no canto direito de sua boca. A imagem

emana ausência de saudabilidade das crianças que também é ratificado pelo inchaço, presente

nas, além de marcas de pequenas pétequias e ou ressecamento, assim como nas mãos da

criança do lado direito. O contexto construído remete a desnutrição e ou falta de alimentação

das crianças.

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Na foto seguinte, fica mais evidente, por causa da exposição mais detalhada, que a

criança do lado esquerdo também apresenta sinais de inflamação no queixo e bochechas,

contudo, isso é mais evidente na criança do lado direito. Ambas as crianças nos remetem a

certe envelhecimento, não com a presença de rugas, por exemplo, mas com a expressão de

cansaço. A imagem demonstra uma dor que está latente, marcada pelo olhar e expressão da

criança do lado direito, no momento da tirada da foto - ela parecia sentir dor. Em relação ao

ambiente onde a imagem foi construída, espaço remete muito ao Nordeste Brasileiro, pelos

tijolos da construção, ao fundo, uma terra seca, que parece ser o sertão. A imagem também

revela certa pobreza ou condição de humildade sinalizada pela cerca em madeira seca,

também ao fundo.

Os sentimentos presentes nessas imagens são os de dor, fragilidade, abandono e o mais

forte: necessidade de acolhimento e cuidado evidenciado por um olhar maternal e posição das

mãos da criança do lado esquerdo.

Foto SP 02 – Sertânia junho 62. Sidrome Pluricarencial – notar o edema, as

lesões cutâneas, e a estomatite angular. Facies típica de criança carenciada.

Anotações de Ruy João Marques.

Edema nos membros

inferiores.

Ressecamento

cutâneo

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Os sintomas descritos por Ruy Marques – contidos no verso de cada fotografia -

também se fazem presentes no trabalho desenvolvido por Parahym (1961, p. 369) ao afirmar

que: na sintomatologia da distrofia pluricarencial hidropigênica inclui-se o edema, que pode

ser geral (anasarca) ou apenas dos membros inferiores (edema de declive), ou dos membros

inferiores e superiores. Neste sentido, percebe-se que as mãos das crianças apresentam

edemas, ou seja, inchações, além disso, há também a estomatite angular, inflação e fissura na

região dos lábios, também denominada de boqueira bilateral (PARAHYM, 1961, p. 369).

Destaca-se que, ainda ocorrem outras manifestações da síndrome pluricarencial, não

muito recorrentes, entre as crianças que são acometidas pela distrofria pluricarencial

hidropigênica não foi constatada com frequência a hepatomegalia – aumento do fígado,

embora os autores Waterlow e Vergara (1955) não tenham identificado relação entre a

esteatose hepática – presença de gordura no fígado e a síndrome pluricarencial, (PARAHYM,

1961, p. 370; PARISE, 2012, p. 52) salienta-se que Ageu Magalhães (1934) descreveu fígado

gorduroso em 100% de 59 crianças falecidas de “gastro-enterite” ou “toxicose alimentar”,

no Recife (PARAHYM, 1961, p. 370).

Foto SP 05 – Sertânia junho 62. Sidrome Pluricarencial – notar o edema, as lesões cutâneas, e a

estomatite angular. Todas as crianças apresentavam sinais carenciais. Uma delas morreu há

poucos dias (diarreia, edema, pelagra, etc). Anotações de Ruy João Marques.

Estomatite angular.

Edema nos membros

superiores.

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A descrição dos sintomas apresentada, anteriormente, é identificada a partir de uma

sintomatologia que é completamente visível aos olhos e outras não, sendo ratificadas a partir

de uma visualização interna do corpo, com a utilização de equipamentos técnicos. Assim, é a

utilização das imagens na medicina: a compreensão do visível, a luz do invisível, aos olhos,

registrado pelas marcas de um corpo.

Assim, após a exposição dos sintomas e causas da síndrome pluricarencial, retoma-se

a ideia da escrutinação do corpo pela medicina, a partir dos aparelhos técnicos, tanto para a

exibição apurada do conteúdo que se constata internamente quanto o externamente. Neste

sentido, em relação às fotografias, o registro que se encontra visualmente expressivo é o que

direciona o espectador para a apreensão da ideia ali representada. É [...] a expressão precisa

do rosto da figura fotografada, capaz de amparar suas próprias idéias (SONTAG, 2004,

p.16). Esta concepção encontra-se presente nas imagens aqui apresentadas, a expressão

captada nas fotografias das “Meninas de Sertânia”, revela uma expressão de dor, tristeza e até

mesmo indiferença. As fotografias médicas, em sua grande maioria, revelam dores que são

visíveis aos olhos do observador, também associada a um grande constrangimento e

estranhamento por estar exposto diante de alguém desconhecido, para Sontag (2004, p. 17)

existe uma agressão implícita em qualquer emprego da câmera, ainda de acordo com a

mesma autora:

[...] tirar uma foto é ter um interesse pelas coisas como elas são, pela

permanência do status quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar

uma “boa” foto) é estar em cumplicidade com o que quer que torne um tema

interessante e digno de se fotografar – até mesmo, quando for esse o foco de

interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa (SONTAG, 2004, p. 23).

A ideia supracitada se encontra presente, claramente, no registro das duas crianças.

Houve um interesse do fotógrafo em registrar as “marcas” presentes naqueles corpos, e ainda

as pondo em evidência, com uma pose direcionada para o click. As duas imagens que

registram a “Síndrome Pluricarencial” são representações da dor de duas crianças, e que

depois se tornou em uma desgraça, com a morte de uma delas. Esta situação também se faz

presente nas diversas fotos das guerras ou nas incessantes ações de violências registradas nas

fotografias forenses.

4- Considerações finais

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A fotografia médica possibilitou um registro visual minucioso e de certa forma

permanente contribuindo com a formação de um acervo rico para a realização de

investigação, pesquisa, ensino, publicações, realizações de diagnósticos, assim, se

constituindo em meio para a comunicação e divulgação científicas.

Isso também foi intensificado, pela grande mudança acerca da compreensão do corpo, a

partir da possibilidade de visualização do seu interior. Isso foi permitido a partir da inserção

de equipamentos eletrônicos - do seu uso para a visualização do corpo/doença: tomografia;

radiografia, ultrassonografia – que se constituem em métodos imagéticos que possibilitam

interpretar o organismo humano.

Não obstante, não poderia deixar de destacar a importância da preservação desses

registros imagéticos, que possibilita a compreensão e observação de imagens da ciência, em

períodos em que a mesma era uma dos grandes recursos para a realização de diagnósticos.

Nesta perspectiva, destaca-se que a preservação de coleções fotográficas tem merecido cada

vez mais atenção e se configura como uma área de atuação relativamente nova dentro de

museus, arquivos e instituições públicas e particulares. (CARVALHO, LIMA, FILIPPI,

2002). Notadamente, ao longo dos anos, a fotografia vem sendo utilizada para o

desenvolvimento de pesquisas em várias áreas do conhecimento e para que isso seja possível

é necessário o desenvolvimento de ações que possibilitem o acesso ao seu conteúdo intrínseco

e extrínseco, fato que se dá a partir de uma organização sistêmica, com utilização de

instrumentos de recolha de informações, específicos para esta tipologia documental, onde há

uma relação imbricada entre a preservação física dos documentos [imagéticos] e

consequentemente a preservação da informação [imagética].

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