maquiavel: estado, política e sociedade civil · 2008-07-30 · ao jogar católicos contra...
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Maquiavel: Estado,
Política e Sociedade civil
DANILO ARNALDO BRISKIEVICZ1
1.NICOLAU MAQUIAVEL E O PRÍNCIPE
Maquiavel dedicou O Príncipe ao governante florentino Lourenço II
(1492-1519), potentado da família dos Médicis e Duque de Urbino, mas o soberano
acolheu friamente a dádiva e não teve tempo de aprender-lhe as lições, pois
faleceu logo depois. Outros, no entanto, parece que souberam aproveitá-las muito
bem.
Foi o que demonstrou, por exemplo, o monarca inglês Henrique VIII
(1491-1547), ao forjar o célebre caso da anulação do matrimônio com Catarina de
Aragão (1485-1536); esse ardil foi que lhe permitiu separar a Igreja britânica da Santa
Sé, espoliar sistematicamente os mosteiros e consolidar seu poder absoluto.
Diz-se que, também, Catarina de Médicis (1519-1589), rainha-mãe da
França, teria seguido os ensinamentos de Maquiavel
ao jogar católicos contra protestantes e ordenar o
famoso massacre de 1572. Com isso manteve a
soberania para os filhos, indolentes e incapazes de
agir maquiavelicamente como a mãe.
Ela era filha de Lourenço, ao qual tinha
sido dedicada a obra que, adolescente ainda,
certamente leu. Essa e outras histórias de ardis,
assassinatos e espoliações de governantes têm sido
atribuídas à inspiração de O Príncipe, e chegam a ter
algum valor para compreender-lhe o significado.
1 Artigo de 2005. Mestre em Filosofia Política pela UFMG.
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Mas, freqüentemente, servem apenas para deformar-lhe o conteúdo
mais profundo e a relevância dentro da história da Filosofia Política. Conteúdo e
relevância que só podem ser apreendidos quando se conhecem as circunstâncias
em que a obra veio à luz, dentro do quadro da vida pessoal do autor e das
coordenadas econômicas, sociais e políticas da Europa dos séculos XV e XVI. A essas
condições vincula-se a situação especial da Itália, pátria de Nicolau Maquiavel.
Maquiavel ganhou renome com O Príncipe. Mas esse renome se
explica pela leitura muitas vezes parcial da obra maquiaveliana.
Segundo Renato Janine Ribeiro, “o renome de Maquiavel2 é maior que
ele próprio.Mas é um mau renome, uma má fama, infâmia. O Príncipe foi lido, bem
cedo, como um livro de conselhos aos governantes, para quem os fins justificariam
os meios (essa frase, aliás, não é de Maquiavel). Ele defenderia o despotismo e a
amoralidade dos príncipes. Há aqui, porém, um problema. Maquiavel escreveu O
Príncipe de um jato só, enquanto se dedicou vários anos a outro projeto – os
Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, um longo comentário ao historiador
de Roma antiga3”.
Maquiavel procurou ser prático nas suas exposições sobre a
conservação de um principado. Assim, “começa distinguindo repúblicas e
monarquias: falará delas. Dos reinos, uns são antigos
e outros novos: só tratará dos novos. E, destes, uns
foram conquistados por armas próprias e outros,
com armas alheias e graças à fortuna (no sentido de
sorte) – interessam-lhe estes. Como um novo
governante, que não se beneficia da opinião
favorável que a idade dá a um regime, pode
conseguir ser aceito por seu povo? eis a questão. Isto
é: como passar da força bruta ou da violência ao
poder, que depende do consentimento dos
dominados4”.
A originalidade de Maquiavel está em
2 As imagens usadas neste trabalho foram retiradas do site de buscas www.google.com.br; são figuras de Maquiavel, capas de O Príncipe, manuscrito dos Discorsi, pinturas e fotos de Florença. 3 RIBEIRO, Renato Janine. Maquiavel. Disponível em http://www.renatojanine.pro.br/FiloPol/pensador.html, acessado em 29 de setembro de 2005. 4 Loc. Cit.
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analisar o início de um Estado e sua relação com os homens e mulheres que
habitam o território desse Estado. Ao articular as forças antagônicas à manutenção
do poder, ou à sua fundação, torna-se “um dos raros pensadores da política a
pensar, não só o exercício, mas a tomada, do poder – não a continuidade, mas a
novidade. Todo governante procura "conservar o [seu] estado". Quer dizer seu estado
de governante, a condição de quem manda. Mas daí brota outro sentido, que surge
com Maquiavel: o Estado que o príncipe governa. E como o conservará? Não há
receituário. Aqui está o erro de quem lê, n’O Príncipe, regras a aplicar. Pois o que ele
destaca na política (ou aquilo a que seus leitores recentes se mostram mais atentos)
é justamente o que exige argúcia e invenção!5”
Nosso objetivo com esta abordagem sobre o pensamento de Nicolau
Maquiavel (1469-1527) é investigar alguns de seus conceitos políticos presentes na
sua obra O Príncipe. O problema da liberdade está relacionado com os conceitos
em constante tensão - virtú e fortuna, Estado e sociedade civil, que serão abordados
nesse nosso trabalho.
Alguns fatos da vida de Maquiavel – “a obra de Maquiavel é toda
fundamentada em sua própria experiência, seja ela com os livros dos grandes
escritores que o antecederam, ou sejam os anos como segundo chanceler, ou até
mesmo a sua capacidade de olhar de fora e analisar o complicado governo do
qual terminou fazendo parte6”, podem ser assim resumidos:
1469 – Nicolau Maquiavel nasce em Florença, em 03 de maio.
1498 – Maquiavel torna-se Segundo Chanceler da República Florentina.
1500 – Viaja para a França para tratar do problema de Pisa junto a Luiz XII.
1502 – Casa-se com Marietta Orsini; encontra-se com César Bórgia em Romagna.
1503 – Preocupa-se com o problema de substituir os soldados mercenários por
milícias nacionais.
1506 – Maquiavel é escolhido para o cargo de secretário dos Nove das Milícias.
1511 – Realiza embaixadas em Milão e em França.
1513 – Maquiavel é exilado em San Casiano. Começa a escrever O Príncipe e os
Discursos Sobre a Primeira Década de Tito Lívio.
1518 – Escreve a comédia A Mandrágora.
1520 – Escreve A Vida de Castruccio Castrani.
5 Loc. Cit. 6 Disponível em http://www.culturabrasil.pro.br/maquiavel.htm, acessado em 01 de outubro de 2005.
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1521 – Publica A Arte da Guerra.
1527 – Maquiavel é excluído da participação no governo instituído após nova queda
dos Médici. Falece a 21 de junho.
2.A SOCIEDADE PARA MAQUIAVEL
Nicolau Maquiavel estuda a sociedade pela "análise efetiva dos fatos
humanos7". Não se prende em especulações teológicas ou metafísicas. Seu
conceito de sociedade pressupõe uma definição da psicologia humana e outra da
história.
A sociedade é constituída por homens de natureza ambígua,
contraditória. Querem não ser dominados enquanto o Estado os pretende dominar.
Para Maquiavel, os homens não são, como se pensava até então, devotados
essencialmente ao bem: "Maquiavel conclui, por meio do estudo dos antigos e da
intimidade com os potentados da época, que os homens são todos egoístas e
ambiciosos, só recuando da prática do mal quando coagidos pela força da lei. Os
desejos e as paixões seriam os mesmos em todas a s cidades e em todos os povos8".
Maquiavel define a história como constituída por ciclos incessantes. Os
fatos históricos repetem-se aparentemente diferentes, mas essencialmente iguais.
Como os fatos são eternamente recorrentes, conhecer a dinâmica deles e sua
recorrência é importante para o estudo do
presente. Importante, claro, para conhecer e atuar
na sociedade de maneira eficaz.
Portanto, para Maquiavel, a sociedade
é constituída por homens concretos e históricos, que
precisam de um governo centralizado e forte para
moldar a natural maldade humana, impedindo que
seja desagregadora social. Isso significa que o
príncipe, conhecedor da psicologia humana e da
história que se desenvolve em ciclos recorrentes, é
a personagem que deve ordenar a sociedade:
7 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999, p.16. 8 Ibid., 17.
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"não existiria, contudo, uma ordem ideal, com validade absoluta, independente da
organização social concreta dos povos. O povo é, para Maquiavel, uma matéria
que aguarda sua forma e a engenharia da ordem parte da análise da situação
social, não resultando do arbítrio do fundador de Estados, mas de sua capacidade
para captar, num momento de gênio, aquela forma desejável e de sua disposição
para impô-la sem vacilação9".
Quem poderá impor a ordem à sociedade? O Estado. E quem controla
o Estado e sujeita a sociedade às suas leis e ordens? O príncipe. Assim, concluímos
que a sociedade de que fala Maquiavel é constituída por homens que podem se
apresentar como maus, traidores, malignos. Mas esses mesmos homens devotados
ao mal encontram-se numa necessidade de organização social que seja para eles
um respeito à sua liberdade e não apenas o controle fútil da cidadania.
Essa mesma sociedade se forma historicamente em ciclos que se
repetem, são recorrentes. Essa sociedade – mundana, concreta, disforme, maligna
deve ser domada pelo príncipe. Ou o príncipe materializa a forma e a engenharia
da ordem social ou não poderá manter seu poder e ampliá-lo: "para Maquiavel, o
essencial numa nação é que os conflitos originados em seu interior sejam
controlados e regulados pelo estado10".
3.O ESTADO
O Estado, sua formação, sua fundação e
sua manutenção são temas recorrentes no texto de O
Príncipe. Maquiavel afirma “que deseja escrever coisa
que preste, útil; por isso não tratará do Estado como
deve ser mas como é; nada melhor, para que o
governante planeje bem suas ações. A ação
deliberada, planejada, eficaz se dá no plano do que
ele chama de virtù e que nada tem a ver com a
virtude, no sentido cristão ou moral. Mas ninguém
9 Ibid., 21. 10 Ibid., 20.
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realiza todos os seus planos. Metade dos resultados de nossas ações, diz, se deve à
virtù, metade à fortuna11.”
Partindo da observação da Itália do Renascimento, época de
Maquiavel, podemos fazer algumas anotações sobre seu modo de caracterizar o
Estado. Na Itália de sua época, reinava uma enorme confusão: "a tirania impera em
pequenos principados, governados despoticamente por casas reinantes sem
tradição dinástica ou de direitos contestáveis. A ilegitimidade do poder gera
situações de crise e instabilidade permanente. Somente o cálculo político, a astúcia,
a ação rápida e fulminante contra os adversários são capazes de manter o príncipe.
Esmagar ou reduzir à impotência a oposição interna, atemorizar os súditos para evitar
a subversão e realizar alianças com outros principados constituem o eixo da
administração. Como o poder se funda exclusivamente em atos de força, é previsível
e natural que pela força seja deslocado, deste para aquele senhor. Nem a religião,
nem a tradição, nem a vontade popular legitimam o soberano e ele tem de contar
exclusivamente com sua energia criadora. A ausência de um Estado central e a
extrema multipolarização do poder criam um vazio, que as mais fortes individuali-
dades capacitam-se a ocupar12."
O Estado, para impedir a multipolarização do poder, devido à ação dos
condottieri – especialistas na técnica militar, mercenários da segurança nacional,
necessitava ser centralizado, comandando pela mão-de-ferro de um soberano – o
príncipe.
O príncipe por suas vez, deveria estar
aparelhado de uma guarda nacional fiel, dócil e
obediente, para manter a ordem interna do Estado e
lutar por novos domínios e pela manutenção do seu
território (soberania).
Por isso, "face à Itália da sua época –
dividida, corrompida, sujeita às invasões externas –
Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário a sua
unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam
imprescindível o surgimento de um homem virtuoso
11 RIBEIRO, Renato Janine. Op. Cit. 12 MAQUIAVEL, Nicolau. Op. Cit., p. 6-7.
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capaz de fundar um Estado. Era preciso, enfim, um príncipe13."
O Estado para Maquiavel é a organização da relação de forças entre o
comando e a obediência. O Estado precisa usar da coerção para se manter
poderoso em relação aos conflitos internos e externos. Uma Itália armada para coibir
a desordem interna e conquistar novos domínios era necessária.
Assim, Maquiavel funda uma nova visão política de Estado: "desde a
primeira frase do príncipe, o termo Estado, sem ser definido de modo rigoroso,
designa uma configuração política que implica a organização da relação de forças
entre o comando e a obediência: ele caracteriza, na sua "verdade efetiva", o "novo
principado" que Maquiavel sonda14".
O Estado para Maquiavel tem uma função reguladora. Uma nação
deve ser regulada pelo Estado: "para Maquiavel, o essencial numa nação é que os
conflitos originados em seu interior sejam controlados e regulados pelo Estado. Em
função do modo pelo qual os bens são compartilhados, as sociedades concretas
assumem diferentes formas. Assim, onde persista ou possa persistir uma relativa
igualdade entre os cidadãos, o fundador de Estados deve estabelecer uma
república. Ocorrendo o contrário, manda a prudência que seja constituído um
principado. Se não proceder assim, o governante formará um Estado desequilibrado
e sem harmonia, que não poderá subsistir por muito tempo15".
Qual o fundamento do Estado para Maquiavel? A ordem. Essa mesma
ordem, em vista de uma Itália em profunda confusão
política externa e interna, seria o objetivo maior de
Estado regulador e centralizador, apesar de não ser
previamente prevista: “o núcleo da organização do
Estado residiria na ordem, que pode manifestar-se sob
várias formas, mas que se apresentaria basicamente
como principados ou como repúblicas. As repúblicas
apresentariam três modalidades: a aristocrática, como
Esparta, em que uma maioria de governados
encontrava-se subordinada a uma minoria de
13 WEFFORT, Francisco C (Org.). Os clássicos da Política 1. São Paulo, Ática, 2000, p. 21. 14 GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 19. 15 MAQUIAVEL, N. Op, Cit., p.20.
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governantes; a democracia restrita, na qual se dá o contrário, como ocorreu em
Atenas; e a democracia ampla, quando a coletividade se autogoverna, fenômeno
encontrado em Roma após a instituição dos tribunos da plebe e a admissão do
povo à magistratura. Não existiria, contudo, uma ordem ideal, com validade
absoluta, independente da organização social concreta dos povos16".
Na busca da ordem, de um estado articulado na possibilidade do uso
da força, quem estaria autorizado a exercer a função de governante, a função de
chefe-de-Estado? Quem seria este fundador de Estados? O príncipe virtuoso e
afortunado: "o fundador de Estados não é, para Maquiavel, um homem qualquer,
mas uma personalidade fora do comum, dotada de uma ética superior, que lhe
faculta o uso de meios extraordinários para a organização de remos ou repúblicas17."
Por isso, conclui-se que o homem de Estado de Maquiavel, a partir da
leitura do Capítulo XVIII de O Príncipe é aquele que realiza "grandes coisas": o "que
conta na conduta do homem de Estado é o fim, a "grande coisa", e a realização do
fim torna lícitas ações, tais como não observar os pactos estabelecidos,
condenadas pelo código moral, ao qual devem obedecer os comuns mortais18".
4.A POLÍTICA
A política em Maquiavel é secularizada. Até então, a Política não
ultrapassava os limites da especulação filosófica. Em Platão (428-348 a.C.), Aristóteles
(384-322 a.C.), Tomás de Aquino (1225-1274) ou Dante (1265-1321), o estudo desses
assuntos vinculava-se à moral e constituía-se como teoria
de ideais de organização política e social. À mesma
regra não fogem seus contemporâneos, como Erasmo
de Rotterdam (1465-1536) no Manual do Príncipe
Cristão, ou Thomas More (1478-1535) na Utopia, que, na
base de um humanismo abstrato e descarnado de ma-
téria concreta, constroem modelos ideais do bom gover-
nante de uma sociedade justa.
Ele estabelece uma profunda ruptura, uma
16 Ibid., pp.20-21. 17 Loc. Cit. 18 BOBBIO, Norberto. Teoria geral da Política. Rio de Janeiro, Campus, 2000, p.194.
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cisão entre a Cidade dos homens e a Cidade de Deus: "considerando que a política
pertence a esta terra, não procura, a exemplo do idealismo platônico, os
fundamentos metapolíticos da política; tampouco lhe atribui, a exemplo de Santo
Tomás, uma fonte divina. Ao recusar qualquer fundação transcendente da
organização e da vida políticas, ele já envereda pela via que conduz ao "fim da
metafísica" e prepara o advento de uma "ciência política19"
Maquiavel realiza uma ruptura entre a política e a moral. Não há uma
ordem eterna e natural dos fatos. Nenhum ser supremo dirige os rumos da
sociedade, a Cidade dos homens. A moral – agir de acordo com a sua consciência,
com sua consciência de Bondade -, afasta-se da ação política. Para o príncipe,
importa manter o poder. Para o príncipe importa manter a ordem: "a ordem deve ser
construída pelos homens para se evitar o caos e a barbárie e, uma vez alcançada,
ela não será definitiva, pois há sempre, em germe, o seu trabalho em negativo, isto
é, a ameaça de que seja desfeita20".
Nesse sentido, para manter a ordem estabelecida, os fins podem
justificar os meios (esse não é o centro do pensamento de Maquiavel, nem há essa
citação em seu livro, mas pode-se remeter-se a essa “fórmula com o intuito
demonstrativo, didático). Mesmo que essa máxima apareça veladamente no texto
de O Príncipe, ela é uma conclusão geral da leitura. Maquiavel considera que é
necessário distinguir entre moral e política, porque no segundo plano, são
necessárias ações instrumentais21 que devem ser julgadas não por seu caráter
religioso, mas por sua função de realização e cumprimento de um objetivo. O
objetivo político é a manutenção da ordem. Para isso podem-se empregar ardis
próprios aos governantes. Esses ardis, dos quais
falam o texto, podem e devem ser amorais. Por
isso, a política via resultados. Visa fins.
Não importam os meios: se for
necessário matar, que se mate. Se for necessário
não dizer a verdade, que não se diga. Se for
necessário matar os aliados por questões de
ordem da sustentação do poder, que se elimine o perigo.
19 GOYARD-FABRE, S. Op. Cit., p.16. 20 WEFFORT, F. C. Op. Cit., p.18. 21 BOBBIO, N. Op. Cit., p.193.
10
Portanto, conclui-se que, para Maquiavel é preciso saber governar. É
preciso saber a arte política: "assim, o saber político triunfaria sobre a teoria da história
e a ação humana não estaria condenada a seguir um curso determinado pelo desti-
no, como nas tragédias gregas. Embora a realidade determine os limites da ação,
as personalidades decididas e empreendedoras interfeririam na história.
A política, enquanto prática, supera então a concepção de um
universo fechado e de uma história construída por periódicos e inexoráveis retornos. O
desdobramento cíclico permanece, para Maquiavel, o quadro teórico básico de
interpretação da história enquanto ciência. Ao desdobramento cíclico junta-se um
outro nível de determinações mais próximas e concretas, sobre as quais Maquiavel
não fornece indicações rigorosas; compreende-as sob a denominação geral e
clássica de fortuna. A fortuna proporciona chaves para o êxito da ação política e
constitui a metade da vida que não pode ser governada pelo indivíduo. Ela
proporciona a occasione aproveitada pela virtú do governante.
Em outros termos, o homem de virtú é aquele que sabe o momento
exato criado pela fortuna, no qual a ação poderá funcionar com êxito. O estadista
sábio e prudente busca na história uma situação semelhante e exemplar, da qual
saberia extrair o conhecimento dos meios para a ação e a previsão dos efeitos. Para
ser eficaz, a iniciativa política deve ajustar-se às circunstâncias.
Na contabilidade de Maquiavel, os 50% reservados ao arbítrio e à
vontade humana teriam seu círculo de operações possíveis no espaço concreto de
uma situação determinada. A ação destinada ao êxito seria então aquela que se
exerce em compatibilidade com te qualità de tempi, e os homens seriam felizes na
medida em que soubessem combinar seu modo de agir com as particularidades do
momento.
O necessário é manter-se à frente dos
acontecimentos, procurando imprimir-lhes rumo e
alternativas, dado que a fortuna é um rio impetuoso e
os homens devem prevenir-se com a edificação de
diques e barragens. A vontade criadora não passa,
assim, de um método para a ação, pois o agir humano
está condicionado pela necessidade. O carisma da
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virtú é próprio daquele que se conforma à natureza de seu tempo, apreende-lhe o
sentido e se capacita a realizar praticamente a necessidade latente nas
circunstâncias.
No uso do instrumental dos mecanismos de poder, a neutralidade moral
decorreria da adequação do agir à realidade. O homem político deve estar sempre
atento aos sinais da fortuna, pois conhecerá a ruína se, minando o tempo e as
coisas, não alterar seu comportamento. (...)O homem de virtú é, assim, o inventor do
possível numa situação concreta dada, e Maquiavel, no último capítulo de O
Príncipe, exorta a casa reinante dos Médici a constituir, dentre seus membros, o
príncipe virtuoso da Itália, que dela fizesse uma nação unificada22."
5.A SOCIEDADE CIVIL
Usaremos o conceito geral de sociedade civil, ou seja, o largo campo
das relações sociais que se desenvolvem fora do poder institucional do Estado. Neste
sentido, podemos afirmar que sociedade civil em Maquiavel equivale à noção geral
de povo.
O que é o povo para Maquiavel? No Capítulo IX de O Príncipe,
podemos ver claramente que para Maquiavel, o povo ou sociedade civil está em
constante instabilidade por causa da presença inevitável de duas forças opostas,
"uma das quais provêm de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos
grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo23". A relação
dominado-dominador, mando-obediência é próprio das relações de poder.
Contudo, neste conflito constante e necessário entre povo e Estado, ou
seja, a busca da estabilidade dessas relações, é conquistada pelo homem virtuoso
capaz de fundar um Estado em que o povo se sinta representado nele, se sinta
atuante neste poder. Caso contrário, a dinâmica das relações sociais se degenera e
é preciso fundar outro Estado. Isto era, sem dúvida, tudo que Maquiavel não queria.
Sua intenção era orientar o príncipe para que fundasse um Estado unificado e
regenerado.
22 MAQUIAVEL, N. Op. Cit., pp.21-22. 23 Ibid., 74.
12
O povo nesse sentido estaria "participando" do governo, satisfeito com
ele. A virtude do governante é, então, usar de todos os ardis para evitar o conflito
popular, evitando a desordem: "o político de virtú na chefia dos Estados é um
momento breve e excepcional, e somente a ele os homens isentam de culpa pelo
uso de meios indiscriminados, em conjunturas de grave perigo para a comunidade.
Disso deriva que a estabilidade política depende de boas leis e instituições, pois o
poder puramente pessoal degenera facilmente em tirania e instabilidade. o homem
providencial jamais é um tirano. O herói fundador de Estados e o político de virtú, por
si sós, não instituem o melhor regime e a melhor sociedade. O nível de solidariedade
é maior quando o povo participa do governo. Homens em liberdade identificam-se
com os negócios de seu Estado e o defendem como coisa sua. Nada foi mais difícil
para os romanos do que a conquista de povos vizinhos, amantes da liberdade que
gozavam em seus países. A grandeza romana deve ser atribuída à liberdade de seus
cidadãos, e a vocação imperial não poderia ter sido realizada sem a ampla
participação do povo nos negócios públicos. Um povo dócil ou aterrorizado não seria
capaz de encontrar forças e motivação para conquistar o mundo. Numa nação não
corrompida, onde as instituições mantenham pela educação e pelo exemplo as vir-
tudes cívicas, os cidadãos sobrepõem os interesses gerais aos particulares. A
liberdade reforça a coesão interna e desanima as pretensões de conquista dos
Estados rivais. Maquiavel ensina, ainda, que a energia criadora de uma sociedade
livre não é dádiva dos heróis fundadores ou dos políticos de virtú. Ela advém do
sistema de oposição entre os grandes e o povo e, assim, os conflitos sociais são
necessários porque próprios à natureza mesma da liberdade. As condições desta
não são arbitrárias, mantendo relação necessária com o grau de igualdade existente
no interior do Estado. A corrupção e a inaptidão para o viver livre provêm da
desigualdade, para cuja eliminação é preciso pedir socorro a remédios
extraordinários, coisa que poucos homens sabem ou querem fazer. O povo faz parte
da galeria dos heróis de Maquiavel. Comparando as repúblicas democráticas com
os principados, observa que, ao se julgar um príncipe e um povo subordinados às
leis, verificar-se-á que o povo mostra qualidades superiores às do príncipe, porque é
mais conforme e constante. Se, ao contrário, ambos estão libertos de coerção legal,
13
resulta que os erros do povo são menos numerosos, menores e de mais fácil
reparação do que os do príncipe24."
6.NOTAS FINAIS
A partir da leitura deste clássico – O Príncipe, podemos fazer algumas
observações finais sobre os conceitos articulados.
Maquiavel é um clássico. Tornou-se um texto revolucionário e fundador
do pensamento político moderno por causa da análise política baseada em fatos
(empiria), também centrada numa abordagem da psicologia humana (o homem é
naturalmente mau) e da história (os fatos são cíclicos).
Sua ruptura com a metafísica e com a teologia pode ser descrita na
citação do Capítulo XVIII em que descreve como deve ser um governante sensato,
que vise a manutenção de seu poder na cidade dos homens, mediante a
realização de grandes coisas: "quão louvável é, a um príncipe, conservar a fé e viver
com integridade, não com astúcia, todos o sabem; mas se observa, pela
experiência, que em nossa época houve príncipes capazes de grandes coisas, mas
que em pequena conta mantiveram a palavra dada, e conseguiram, pela astúcia,
perturbar a cabeça dos homens, superando, enfim, os que permaneceram leais;
deve tirar as qualidades da raposa e do leão, porque este não tem defesa nenhuma
contra as armadilhas e a raposa, contra os lobos". A raposa representa a astúcia. O
leão, a força contra os inimigos. Não é este o princípio que rege as relações políticas
atuais? Na política importa, portanto, fazer "grandes coisas", sem se importar com a
lógica religiosa. A política visa a ação bem-sucedida: é o uso da razão instrumental,
ligando meios a fins, ou seja, os fins justificam os meios.
Maquiavel utilizou na política o método empírico-comparativo
fornecendo uma tipologia de situações-chave, no estilo de um manual de
sobrevivência para a manutenção do Estado. A teoria científica, estruturada na
repetibilidade da história e na invariação do comportamento humano, deve ser
completada pela investigação das peculiaridades da circunstância sobre a qual se
pretende agir25.
24 Ibid., 22-23 25 Loc. Cit.
14
Assim, podemos perceber no Capítulo XVII que os "conselhos" de
Maquiavel são todos eles referentes a fatos concretos: "reportando-me às outras
qualidades já referidas, digo que cada príncipe deve desejar ser tido como piedoso
e não como cruel: não obstante isso, deve ter o cuidado de não usar mal essa
piedade. César Bórgia era considerado cruel; entretanto, essa sua crueldade tinha
recuperado a Romanha, logrando uní-la e pô-la em paz e em lealdade. O que, se
bem considerado for, mostrará ter sido ele muito mais piedoso do que o povo
florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel, deixou que Pistóia fosse destruída. Um
príncipe não deve, pois, temer a má fama de cruel, desde que por ela mantenha
seus súditos unidos e leais, pois que, com mui poucos exemplos, ele será mais
piedoso do que aqueles que, por excessiva piedade, deixam acontecer as
desordens das quais resultam assassínios ou rapinagens: porque estes costumam
prejudicar a comunidade inteira, enquanto aquelas execuções que emanam do
príncipe atingem apenas um indivíduo. E, dentre todos os príncipes, é ao novo que
se torna impossível fugir à pecha de cruel, visto serem os Estados novos cheios de
perigos. Diz Virgílio, pela boca de Dido:
Res dura,et regni novitas me talia cogunt moliri, et late fines custode tueri. O príncipe,
contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar por si mesmo e proceder
por forma equilibrada, com prudência e humanidade, buscando evitar que a
excessiva confiança o torne incauto e a demasiada desconfiança o faça
intolerável26.”
Nicolau Maquiavel dessacralizou a política. Nesse sentido, demonstrou
que o maquiavelismo é anterior a ele. Sempre houve uso da religião para dominar os
povos. Sempre houve traição na Política. Sempre houve "meras aparências". O que
fez Maquiavel foi tornar isso científico, usual, empregável, por que científico. Por isso
sua obra funda uma visão realista da Política. Uma visão centrada no espírito
contraditório do próprio ser humano – ambíguo, dualista. A grandeza de Maquiavel
está em revelar, através da análise de fatos históricos e do ser humano, como
conseguir conquistar o poder (não seria esse o objetivo de todos nós, em diversos
setores da nossa vida?) e mantê-lo. Ah, se a vida fosse um mar de rosas... Maquiavel
já sabia que não era, há muito tempo...
26 MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe (versão digital). Disponível em LCC Publicações Eletrônicas, acessado em 20 de setembro de 2005.
15
A liberdade uma vez conhecida jamais se esquece. A lição de
Maquiavel a esse respeito é muito séria: o cidadão e o governante devem levar em
conta as conseqüências dos próprios atos. Agir com liberdade é um pressuposto
ético dos tempos atuais. Na política, essa liberdade – seja do cidadão, seja do
governante é uma visada de uma bem coletivo onde as liberdade individuais não se
apagam, antes se complementam, já que o bem comum é uma vida razoável para
a maioria da sociedade. Mas não basta ficar nas boas intenções do comportamento
livre: “na Idade Média, o quadro moral dava conta do lugar tanto do príncipe quanto
do súdito, que deviam ambos obedecer à religião. Em tese, bastava isso para fazer
um bom rei ou um fiel cristão. Maquiavel mostra que o príncipe não está mais
submetido – nem protegido – por esse quadro. É essa insegurança que lhe dá
liberdade. Ninguém é livre sem ansiedade. Mas hoje temos um mundo em que
também se desfizeram os quadros de referência que protegiam – e prendiam – os
cidadãos. Não só o príncipe, mas todos nós27.”
A lição de Maquiavel em relação à liberdade é muito interessante:
ninguém é livre fora da sociedade, longe do conflito com o poder. Mas saber lidar
com o poder, com o Estado, com o direito é uma tarefa extremamente arrojada e
necessária pois ninguém pode ignorar as lições de O Príncipe – nem governantes,
nem governados – “porque cada um de nós está, em certa medida, na condição
do príncipe de Maquiavel: com mais liberdade do que nunca antes, mas também
mais inseguro28.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São
Paulo, Martins Fontes, 1999, 526 p.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo, Ed. Nova Cultural, 1999, 287 p. (Col. Os
Pensadores).
WEFFORT, Francisco C (Org.). Os clássicos da Política 1. São Paulo, Ática, 2000, 256
p.
27 RIBEIRO, Renato Janine. Op. Cit. 28 Loc. Cit.
16
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Eletrônicas, acessado em 20 de setembro de 2005.
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