mapa de trocas e caminhos da cidade de sÃo paulo em 1798

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ESPAÇOS NARRADOS a construção dos múltiplos territórios da língua portuguesa Seminário Internacional da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo 29 de outubro a 01 de novembro de 2012 Mapa de trocas e caminhos da cidade de São Paulo em 1798 Amália Cristovão dos Santos Mestranda do Programa de Pós-Graduação da FAU-USP [email protected] Introdução A posição “privilegiada” da cidade de São Paulo, em relação às rotas e circuitos de trocas de mercadoria na colônia, foi devidamente identificada pelo geógrafo Caio Prado Jr., no artigo “O fator geográfico na formação e no desenvolvimento da cidade de São Paulo” (PRADO, 1975), já bastante transcrito. Podemos afirmar que essa característica está presente em diversas interpretações acerca da relevância das atividades exploradoras e comerciais empreendidas pelos paulistas 1 no período colonial mesmo que tenham conclusões divergentes ou opostas. No capítulo “A construção das imagens” (BLAJ, 2002: 39-85), de A trama das tensões, Ilana Blaj, tece um balanço crítico que apresenta os principais predicados usados na caracterização do passado colonial paulista. Grosso modo, os conceitos de pobreza e isolamento foram criados na Primeira República e cristalizados até a década de 1970. Inicialmente, a ideia da “raça de gigantes”, 2 isolada e autônoma buscava justificar a liderança que o Estado de São Paulo pretendia para si, na nova conjuntura que formada. A década de 1950, por sua vez, foi um momento de análises desenvolvimentistas, que centravam as atenções no nordeste açucareiro. A figura da capitania de São Paulo entra em cena apenas no tocante às atividades de abastecimento das regiões produtoras (BLAJ, op. cit.: 66). Citaremos, a título de exemplo, as obras de Alcântara Machado (1980), Ernani Silva Bruno (1991) e Richard Morse (1970) que, por motivações distintas, operam dessa maneira. Portanto, ao tratarem da pobreza da capitania paulista, essas 1 Usaremos os termos “paulistas” e “paulistanos” para nos referirmos respectivamente aos habitantes da capitania e da cidade de São Paulo, no período colonial. 2 Expressão originalmente encontrada nos relatos de viagem de Auguste de Saint-Hilaire e apropriada por Alfredo Ellis Jr., como significante da superioridade física dos paulistas. (SAINT-HILAIRE, 1972).

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Artigo apresentado no simpósio Espaços Narrados, em outubro e novembro de 2012, em São Paulo (SP). Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

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ESPAÇOS NARRADOS

a construção dos múltiplos territórios da língua portuguesa

Seminário Internacional da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São

Paulo – 29 de outubro a 01 de novembro de 2012

Mapa de trocas e caminhos da cidade de São Paulo em 1798 Amália Cristovão dos Santos

Mestranda do Programa de Pós-Graduação da FAU-USP

[email protected]

Introdução

A posição “privilegiada” da cidade de São Paulo, em relação às rotas e

circuitos de trocas de mercadoria na colônia, foi devidamente identificada pelo

geógrafo Caio Prado Jr., no artigo “O fator geográfico na formação e no

desenvolvimento da cidade de São Paulo” (PRADO, 1975), já bastante transcrito.

Podemos afirmar que essa característica está presente em diversas interpretações

acerca da relevância das atividades exploradoras e comerciais empreendidas pelos

paulistas1 no período colonial – mesmo que tenham conclusões divergentes ou

opostas.

No capítulo “A construção das imagens” (BLAJ, 2002: 39-85), de A trama das

tensões, Ilana Blaj, tece um balanço crítico que apresenta os principais predicados

usados na caracterização do passado colonial paulista. Grosso modo, os conceitos de

pobreza e isolamento foram criados na Primeira República e cristalizados até a

década de 1970. Inicialmente, a ideia da “raça de gigantes”,2 isolada e autônoma

buscava justificar a liderança que o Estado de São Paulo pretendia para si, na nova

conjuntura que formada. A década de 1950, por sua vez, foi um momento de análises

desenvolvimentistas, que centravam as atenções no nordeste açucareiro. A figura da

capitania de São Paulo entra em cena apenas no tocante às atividades de

abastecimento das regiões produtoras (BLAJ, op. cit.: 66).

Citaremos, a título de exemplo, as obras de Alcântara Machado (1980),

Ernani Silva Bruno (1991) e Richard Morse (1970) que, por motivações distintas,

operam dessa maneira. Portanto, ao tratarem da pobreza da capitania paulista, essas

1 Usaremos os termos “paulistas” e “paulistanos” para nos referirmos respectivamente aos habitantes da capitania e da

cidade de São Paulo, no período colonial. 2 Expressão originalmente encontrada nos relatos de viagem de Auguste de Saint-Hilaire e apropriada por Alfredo Ellis

Jr., como significante da superioridade física dos paulistas. (SAINT-HILAIRE, 1972).

interpretações deixam as atividades intracoloniais em segundo plano, já que pouco ou

nada têm a ver com a economia internacional e com o desenvolvimento de São Paulo.

É apenas na década de 1980 que os trabalhos acadêmicos voltam a buscar a

capitania paulista como objeto de estudo específico, surgindo assim monografias

detalhadas sobre sua economia e população, que deixam de lado os conceitos gerais

e psicológicos e fazem uso de vasta documentação original.

Para esses autores – que traremos à luz ao longo deste artigo –, as

atividades de abastecimento, de exploração dos sertões e de defesa militar, antes de

serem marginais ou alheias aos planos da Coroa, eram formadoras de redes que

ligavam os sertões brasileiros, atingindo, vez ou outra, as áreas de agroexportação.

Em nosso entender, as atividades que constituem essa rede de vilas nos sertões

coloniais não podem ser apreendidas em termos dos valores absolutos de suas

transações e produções, ou seja, não podem ser avaliadas dentro da chave da

economia internacional do período. A caracterização da capitania de São Paulo como

pobre e isolada, tendo exclusivamente como parâmetro o norte agroexportador de

açúcar, faz perder a importância de seus atributos próprios, indispensáveis para seu

entendimento.

Como forma de contribuição para essa linha de argumentação,

interpretaremos os dados contidos no “Mapa geral dos habitantes que existem no

destrito daprimeira Comp. de Ordenanças desta Cid. de S. Paulo oanno de 1798 =

Suas oCupacoens, empregos, egeneros q. cultivam ou em que negoceam”,3 ou seja, o

recenseamento da população de 1798.4 Enquanto, via de regra, os demais censos

arrolam ocupações tais como caixeiro, mascate, vendeiro, taberneiro e mercador, esse

aprofunda as descrições, como se vê abaixo.5

Vive do q. grangeou em tropas de bestas q. mandou vir em outro tempo do Rio

Grande do Sul = tem huá chacra no termo da cid. q. Rende anualmente

Sincoenta alqueires de farinha p. adejutores do gasto de Sua Caza = tem gado

de q. teve de Crias 4 Eguas de q. teve 3 Crias.

Vive de negocio de fazenda q. tras do Rio de Jan. Importação 17000$000.

Consumo 16000$000. Existe 1000$000.

3 “Mapa geral dos habitantes que existem no destrito daprimeira Comp. de Ordenanças desta Cid. de S. Paulo oanno

de 1798 = Suas oCupacoens, empregos, egeneros q. cultivam ou em que negoceam”. Arquivo Histórico Municipal Washington Luís, Fundo da Câmara Municipal de São Paulo, “Maços de População de São Paulo”. Disponível em http://www.arquivoestado.sp.gov.br/viver/recenseando.php, acessado em 24 de junho de 2012. 4 A primeira ordenança inclui apenas a porção “central” da cidade, correspondente ao assentamento existente no

perímetro entre os conventos de São Francisco, de São Bento e do Carmo. Atualmente, tal área corresponde ao dito Centro Velho. 5 Essas descrições correspondem aos fogos de Joze Francisco de Sales e Manuel Lopes Guimaraens,

respectivamente, constantes na página 1 do “Mapa geral (…)”.

Com essas informações, objetivamos construir uma sequência de imagens

que apresentem o processo de interpretação dos dados acerca das fontes de renda e

principalmente do trânsito de mercadorias e recursos, no final do século XVIII. Esses

diagramas e mapas sintetizarão a leitura da documentação, ampliando a reflexão

sobre as relações sociais, espaciais e econômicas constituídas entre a cidade de São

Paulo e outras vilas, cidades, capitanias e continentes. A produção das imagens

possibilita três momentos de reflexão distintos (ainda que interdependentes): a

transcrição, organização e preparação dos dados estatísticos; a interpretação destes

em tabelas, diagramas e, por fim, no espaço; e a leitura posterior do material. O

processo de produção pressupõe não apenas a transposição dos dados para bases

cartográficas e representativas, mas requer outra forma de raciocínio, que abarque as

questões espaciais referentes às atividades econômicas e à organização social.

As fontes de renda da população da cidade

Em 1765, após a restauração da Capitania de São Paulo, que havia passado

dezessete anos sob jugo do Capitão General do Rio de Janeiro, tem início seu

processo de retomada das atividades econômicas e militares. D. Luís Antonio de

Souza Botelho Mourão, o Morgado de Mateus, é convocado para assumir o posto de

capitão-general do território restabelecido, seguindo as ordenações do Marquês de

Pombal, que visavam à proteção militar dos limites ao sul e a oeste e ao

aproveitamento econômico das regiões ainda inexploradas (BELLOTTO, 1979: 69-83).

A defesa dos territórios fronteiriços requeria a organização dos quadros

militares; os recenseamentos da população faziam-se impreteríveis para o

recrutamento do maior número de homens aptos ao serviço militar. Por outro lado, era

preciso assegurar que haveria recursos para a remuneração das tropas.

Embora o alistamento compulsório de homens continuasse ocorrendo,

mesmo após a assinatura do Tratado de Santo Ildefonso (1777), podemos dizer que

se instaurou um período de relativa trégua. Desde o governo de D. Luís, o cultivo e a

exportação de cana-de-açúcar já vinham sendo incentivados; a combinação da menor

movimentação bélica com o sucesso dessa empreitada resulta no redirecionamento de

uma parte dos recursos da capitania. Segundo Affonso de Escragnole Taunay, os

capitães-generais conseguintes dedicaram-se com mais intensidade às obras

municipais na sede da capitania, além das comunicações (TAUNAY, 1953: 125-134).

Os Maços de População (recenseamentos coloniais), cuja periodicidade

resulta inicialmente do reforço militar encetado por Morgado de Mateus, são

constantes para as décadas em questão, com algumas alterações de formato e

conteúdo. Trata-se de um corpo documental privilegiado para a apreensão de dados

censitários gerais. A lista nominativa de 1798, realizada sob o governo de Antonio

Manuel de Melo Castro e Mendonça (1797-1802), traz informações detalhadas sobre a

ocupação dos habitantes e explicita a extensão territorial da rede de atividades

econômicas da qual a cidade de São Paulo faz parte.

Tabela 1: dados totais INDICADOR ABSOLUTO (%) HOMENS (%) MULHERES (%) RAZÃO

HABITANTES - TOTAL 2.846 100,00 1.261 44,31 1.585 55,69 125,69 HABITANTES COM FONTE DE RENDA - TOTAL 446 15,67 282 63,23 164 36,77 58,16 HABITANTES SEM FONTE DE RENDA - TOTAL 2.400 84,33 979 40,79 1.421 59,21 145,15

FOGOS - TOTAL 413 100,00 - - - - - CHEFES - TOTAL 413 100,00 248 60,05 165 39,95 66,53

CHEFES COM FONTE DE RENDA 403 97,58 245 60,79 158 39,21 64,49 CHEFES SEM FONTE DE RENDA 10 2,42 3 30,00 7 70,00 233,33

Sobre o total da população, vale atentar para as variações na razão de

gênero, ou seja, na quantidade de mulheres para cada grupo de 100 homens, indicada

na tabela na coluna intitulada “Razão”. Como se vê na Tabela 1, no total de

habitantes, tal variável aponta certo equilíbrio – para cada 4 homens, havia 5 mulheres

–, enquanto entre os habitantes que possuíam alguma fonte de renda declarada e os

que eram chefes de seus domicílios temos um predomínio acentuado de homens – 3

mulheres para 5 homens e 2 para 3.

A média de habitantes com fonte de renda por fogo6 é de 1,08 – ou seja, para

cada domicílio havia aproximadamente um indivíduo responsável pela renda do grupo

de moradores sob o mesmo teto. Esse dado é bastante importante, pois sugere que a

ocupação ou forma de subsistência geradora de renda era o elemento agregador da

população, em detrimento da estrutura familiar.

Tabela 2: tipos de fonte de renda INDICADOR ABSOLUTO (%) HOMENS (%) MULHERES (%) RAZÃO

HABITANTES COM FONTE DE RENDA TOTAL 446 100,00 282 63,23 164 36,77 58,16 HAB. COM OCUPAÇÃO 347 100,00 207 59,65 140 40,35 67,63

HAB. COM DUAS OU TRÊS OCUPAÇÕES 33 100,00 9 27,27 24 72,73 266,67 HAB. COM TRÂNSITO* 96 100,00 81 84,38 15 15,63 18,52

HAB. COM SUBSISTÊNCIA (CHÁCARA-SÍTIO OU ASSIST.) 61 100,00 31 50,82 30 49,18 96,77

APENAS CHÁCARA-SÍTIO 34 100,00 28 82,35 6 17,65 21,43 APENAS ASSISTÊNCIA 26 100,00 3 11,54 23 88,46 766,67

AMBOS 1 100,00 0 0,00 1 100,00 - *3 hab. fazem duas rotas, totalizando 99 rotas

As fontes de renda existentes podem ser divididas em três categorias, como

se vê na Tabela 2: (i) ocupação, que inclui ofícios mecânicos (marceneiro, carpinteiro,

ferreiro etc.), profissionais letrados (advogados e professores), negociantes financeiros

ou comerciantes em geral (empréstimos, cobranças etc. ou vendas) e aqueles que

empregavam seus escravos em trabalhos variados ou alugavam-nos; (ii) trânsito, que

envolve trocas de mercadorias ou recursos indo além dos arredores da cidade; e (iii)

subsistência, que podia ser derivada de plantio e criação de gados em chácaras e

sítios ou da assistência recebida por outros moradores da cidade (como esmolas ou

contribuições).

Assim, inferimos que a maioria da população conseguia sua renda por meio

do que podemos chamar de atividades profissionais, realizadas na cidade. Uma

pequena parcela, composta majoritariamente por mulheres, acumulava duas ou três

ocupações. A lista completa dessas atividades encontra-se na Tabela 3, que indica o

total de habitantes que desempenham cada ocupação, bem como os valores

fracionados para chefes de fogo e demais moradores.

6 O termo “fogo” é tomado da documentação produzida no período estudado e é sinônimo de “domicílio”.

Tabela 3: tipos de ocupaçãoOCUPAÇÃO CHEFES OUTROS TOTAL

advogado 1 0 1 agências 1 0 1 aluguéis 1 0 1

aluguéis / jornais 3 0 3 barbeiro-cabeleireiro-curativos 6 0 6

barbeiro-(…) / funcionário 1 0 1 barbeiro-(…) / jornais 1 0 1

caixeiro 1 6 7 carpinteiro-marceneiro 8 3 11

cobranças 9 0 9 cobranças / caixeiro 1 0 1

cômica 2 0 2 coronheiro 1 0 1

costuras 66 2 68 costuras / ensinar meninas 1 0 1

costuras / jornais 2 0 2 costuras / lavadeira 1 0 1

costuras / quitandas 10 1 11 costuras / quitandas / jornais 1 0 1

costuras / venda-produtos da terra 1 0 1 dízimos 1 0 1

empréstimos - - - ensinar meninas 1 0 1

escritas 1 0 1 ferreiro-ferrador 3 1 4

funcionário do poder público 16 0 16 ocupação relacionada à Igreja 20 2 22

jornais 15 0 15 lavadeira 4 0 4

OCUPAÇÃO CHEFES OUTROS TOTAL

operário 0 1 1 ourives 5 0 5 outros 3 0 3

pescador 1 0 1 professor 7 0 7 quitandas 12 1 13

quitandas / jornais 2 0 2 rematante 2 0 2

sapateiro-alfaiate 26 9 35 seleiro 2 2 4

soldo 30 10 40 soldo / barbeiro-(…) 1 0 1

soldo / jornais 2 0 2 soldo / outros 1 0 1

soldo / pescador 1 0 1 venda-botequim, botica 4 0 4

venda-engenho 1 0 1 venda-gado 1 0 1

venda-gado / dízimos 1 0 1 venda-gado, café 1 0 1

venda-louça da terra - - - venda-louça da terra / quitandas 1 0 1

venda-madeiras 2 0 2 venda-produtos da terra 10 1 11

venda-produtos da terra e de fora 4 0 4 venda-redes 1 0 1 venda-telhas 1 0 1

venda-telhas / aluguéis / empréstimos 1 0 1 vidros 1 0 1

É importante agrupar certas ocorrências de atividades, seja pelo fato delas

aparecerem dispersas nas sobreposições, seja pelas características comuns que

apresentam. Os principais agrupamentos encontram-se na Tabela 4, que inclui

também o total de habitantes cuja renda provém de trânsito de bens ou dinheiro.

Podemos observar a forma como essas ocupações articulam-se pela Figura 1:

enquanto a maioria das mulheres acumula funções (costuras e quitandas,

majoritariamente), os homens dedicam-se a apenas uma ocupação (exceto os que

vivem de soldo) – principalmente aqueles que exercem ofícios mecânicos ou

profissões letradas.

Tabela 4: registros totais TOTAL DA OCUPAÇÃO CHEFES OUTROS TOTAL

jornais 26 0 26 quitandas 26 2 28

costuras 82 3 85 barbeiro-cabeleireiro-curativos 9 0 9

soldo 35 10 45 venda 29 1 30

funcionário 17 0 17 trânsito* 92 4 96

*50 são ligados aos quadros militares, sendo 49 deles chefes de fogo

A dimensão do círculo corresponde à categorização do total de ocorrências

registradas para cada ocupação (somando os casos isolados e os sobrepostos),

enquanto o tracejado das linhas registra o número de ocorrências de determinada

sobreposição de ocupações, vinculadas pela linha. Note-se que havia apenas dois

casos de acúmulo de três ocupações por um mesmo habitante.

Figura 1: diagrama de sobreposições

Ainda que pareça estar além da proposta do presente trabalho, a análise dos

dados censitários como um todo, conduzida nesse item, é indispensável para

compreendermos melhor a organização dessa população, seu modo de vida e as

relações espaciais estabelecidas entre São Paulo e outras vilas e cidades, de que

trataremos especificamente a seguir.

Trocar, transitar, transformar

O período que vai do final do século XVIII ao início do XIX é marcado por um

crescimento contínuo da população e da riqueza na capitania paulista. Maria Luiza

Marcílio, ao analisar os dados censitários e de produção agrícola, observa que “o

crescimento demográfico foi, a partir de 1765, constantemente elevado” (MARCÍLIO,

1992: 191). A mesma autora afirma que

Essa intensificação [do uso do solo] permitiu o ingresso da agricultura da roça de

mantimentos e de subsistência numa economia de mercado-interno,

primeiramente como resposta ao estímulo criado pela região da mineração.

Lentamente uma economia um pouco mais monetária ia penetrando em certas

áreas do território paulista. (Idem, ibidem: 192).

A monetarização e os sistemas de crédito, apontados por Marcílio e Maria

Aparecida de Menezes Borrego, contribuem para o fortalecimento das atividades

comerciais que tinham São Paulo como origem, destino ou passagem – ou seja, as

atividades registradas sob a categoria trânsito. O nível de detalhamento presente na

lista permite uma análise mais detida dessa categoria, a partir da rota realizada e do

tipo de recurso transportado.

Destarte, apresentaremos na Tabela 6 os dados sobre as rotas descritas

pelos habitantes e os bens que eles transportam (que podem variar entre produtos

agrários, manufaturas ou valores financeiros). Os mesmos dados formam as tabelas

de rotas e de bens transportados – os valores apresentados correspondem às

ocorrências específicas de cada tipo e aos agrupamentos de tipos afins.

Tabela 6: agrupamentos de origem-destino e bens transportados

TRÂNSITO POR ORIGEM-DESTINO TOTAL GRUPOS MILITAR (%)

TRÂNSITO POR PRODUTO/RECURSO TOTAL GRUPOS MILITAR (%)

desconhecida-São Paulo capitania-bestas 1

6 2 33,33

açúcar/café/anil-Itu/outros-Lisboa 1

9 3 33,33

desconhecida-São Paulo-molhados 4

açúcar/outros-Itu/outros-Lisboa 1

desconhecida-São Paulo-mantimentos 1

açúcar-Campinas-São Paulo 1

Curitiba/Sorocaba-Cuiabá/Goiás/Minas Gerais-bestas 1

8 6 75,00

açúcar-Itu/Campinas-São Paulo 4

Curitiba-São Paulo-assistência 1

açúcar-Itu-Lisboa 2

Curitiba-São Paulo-bestas 1

assistência-Curitiba-São Paulo 1

3 1 33,33 Rio Grande/Curitiba/Sorocaba-São Paulo capitania-

bestas 1

assistência-Itu-São Paulo 1

Rio Grande/Curitiba-São Paulo-bestas 1

assistência-Rio de Janeiro-São Paulo 1

Rio Grande-São Paulo capitania-bestas 1

bestas-Curitiba/Sorocaba-Cuiabá/Goiás/Minas Gerais 1

8 7 87,50

Rio Grande-São Paulo-bestas 1

bestas-Curitiba-São Paulo 1

Rio Grande-São Paulo-fazenda 1

bestas-desconhecida-São Paulo capitania 1

Campinas-São Paulo-açúcar 1 13 5 38,46

bestas-Itu-Santos 1

Itu/Campinas-São Paulo-açúcar 4

bestas-Rio Grande/Curitiba/Sorocaba-São Paulo capitania 1

TRÂNSITO POR ORIGEM-DESTINO TOTAL GRUPOS MILITAR (%)

TRÂNSITO POR PRODUTO/RECURSO TOTAL GRUPOS MILITAR (%)

Itu/outros-Lisboa-açúcar/café/anil 1

bestas-Rio Grande/Curitiba-São Paulo 1

Itu/outros-Lisboa-açúcar/outros 1

bestas-Rio Grande-São Paulo 1

Itu-Lisboa-açúcar 2

bestas-Rio Grande-São Paulo capitania 1

Itu-Santos-bestas 1

boticário-Rio de Janeiro-São Paulo 1 1 0 0,00

Itu-São Paulo-assistência 1

engenho-Itu-São Paulo 1 2 1 50,00

Itu-São Paulo-engenho 1

engenho-Porto Feliz-São Paulo 1

Porto Feliz-São Paulo-engenho 1

escravos-Rio de Janeiro-Itu 3

5 4 80,00 Jundiaí/São João/Juqueri-São Paulo-mantimentos 1 1 1 100,00

escravos-Rio de Janeiro-Itu/Campinas 1

Rio de Janeiro-Itu/Campinas-escravos 1

39 27 69,23

escravos-Santos/Rio de Janeiro-Itu 1

Rio de Janeiro-Itu-escravos 3

farinha-Rio de Janeiro-São Paulo 2 2 2 100,00

Rio de Janeiro-São Paulo-assistência 1

mantimentos-desconhecida-São Paulo 1 2 1 50,00

Rio de Janeiro-São Paulo-boticário 1

mantimentos-Jundiaí/São João/Juqueri-São Paulo 1

Rio de Janeiro-São Paulo-farinha 2

fazenda-Rio de Janeiro-São Paulo 29

33 23 69,70

Rio de Janeiro-São Paulo-fazenda 29

fazenda-Rio Grande-São Paulo 1

Rio de Janeiro-São Paulo-negócios 1

fazenda-São Paulo capitania-Rio de Janeiro 1

Rio de Janeiro-São Paulo-ouro 1

fazenda-São Paulo-Camanducaia 1

Santos/Rio de Janeiro-Itu-escravos 1 2 1 50,00

fazenda-São Paulo-Campinas 1

Santos/Rio de Janeiro-São Paulo-molhados 1

molhados/fazenda-Santos-São Paulo 1 1 1 100,00

Santos-São Paulo-molhados 23

25 5 20,00

molhados-desconhecida-São Paulo 4

28 5 17,86 Santos-São Paulo-molhados/fazenda 1

molhados-Santos/Rio de Janeiro-São Paulo 1

Santos-São Paulo-peixes 1

molhados-Santos-São Paulo 23

São Paulo capitania-Lisboa-produtos da terra 1

4 3 75,00

negócios-portos-São Paulo 1

2 1 50,00 São Paulo capitania-Rio de Janeiro-fazenda 1

negócios-Rio de Janeiro-São Paulo 1

São Paulo-Camanducaia-fazenda 1

ouro-Rio de Janeiro-São Paulo 1 1 0 0,00

São Paulo-Campinas-fazenda 1

peixes-Santos-São Paulo 1 1 0 0,00

portos-São Paulo-negócios 1 1 0 0,00

produtos da terra-São Paulo capitania-Lisboa 1 1 1 100,00

*mantimentos: milho, feijão, arroz, toucinho

Nos predomínios de rotas, destacam-se os caminhos que partem do Rio de

Janeiro (principalmente trazendo fazenda seca, mas também escravos), de Santos

(quase exclusivamente para molhados) e, com um pouco menos de intensidade e

maior variação de bens conduzidos, do oeste açucareiro. Do Rio de Janeiro e de

Santos, praticamente todos os produtos eram levados para a cidade de São Paulo – à

exceção dos escravos, dirigidos às fazendas de cana-de-açúcar.

A vila de Itu, no entanto, era fonte de açúcar para o mercado externo,

simbolizado por Lisboa, porto receptor da colônia brasileira na metrópole. Não

podemos esquecer que essa rota incluía também São Paulo e o porto de Santos,

conjugando moradores de todas essas localidades, entre comerciantes, carregadores,

tropeiros e escravos.

Os principais bens transportados eram produtos de consumo na cidade de

São Paulo: fazenda seca e molhados, vindo principalmente do Rio de Janeiro e de

Santos, como registramos anteriormente. Isso denota, a um só tempo, a carestia de

certos tipos de produto e a relevância da rede comercial em que a sede da capitania

inseria-se. Além desses produtos, o açúcar e as bestas completavam o quadro

principal das trocas feitas ou financiadas por paulistas.

Os moradores que participavam dessas atividades eram pouco mais de 20%

do total de moradores com fonte de renda declara e apenas 3,37% do total da

população da lista. Observamos – além da predominância masculina anotada na

Tabela 2 –, uma quantidade significativa de envolvimento de militares. Tomando os

grupos da Tabela 6 cujo total de ocorrências é igual ou superior a 5, temos a

participação acentuada de militares nas rotas para sul e Rio de Janeiro e nos

transporte de bestas, escravos e fazenda seca – não por acaso, os principais bens

que transitavam por esses caminhos.

Podemos delinear duas hipóteses para essa relação. A primeira diz respeito

ao fato de que as atividades militares requeriam a mobilidade desses habitantes,

favorecendo o estabelecimento de contatos e arranjos comerciais nas rotas trilhadas.

Desde as primeiras décadas de colonização, a então capitania de São Vicente teve

papel fundamental na demarcação dos limites do Tratado de Tordesilhas, em seu

extremo sul. Disso, surgiu uma relação de combate e troca entre os colonos e as

povoações castelhanas (RUIZ; THEODORO, in PORTA, 2004). A sobrevivência da

vila de São Paulo, nos séculos XVI e XVII, enquanto tantas outras povoações

pereceram e extinguiram-se, teria sido possível, entre outras coisas, por conta dessa

relação.

Por outro lado, a segunda hipótese aventa que os militares de maiores

patentes eram habitantes com maior prestígio, trazendo benefícios e meios de

enriquecimento, capazes de justificar o envolvimento com atividades que

necessitavam de maior investimento ou crédito. A confirmação das hipóteses careceria

de um estudo detido dos militares envolvidos nesses trânsitos.

Para o estudo das rotas de trânsito é preciso estabelecer critérios de

separação e aglomeração das localidades listadas. Esse agrupamento pode ser feito

de maneiras variadas. Inicialmente podemos partir da posição física de cada uma,

considerando que o traçado atual das rodovias que as ligam é subordinado às rotas

coloniais. Segundo Sergio Buarque de Holanda, em Caminhos e Fronteiras (1994),

foram as “marchas em fileira simples” dos indígenas que abriram as veredas, que

posteriormente tiveram suas larguras ampliadas e seus traçados consolidados,

“particularmente, com as primeiras tropas de muares” (Idem, ibidem: 26).

O autor aponta ainda que a constituição original dos caminhos pode ser

atribuída aos animais silvestres, sendo tomada sucessivamente por índios, colonos e

pelos meios de transporte implantados no Império – “o traçado de muitas estradas de

ferro parece concordar, no essencial, com o dos velhos caminhos de índios e

bandeirantes, sinal de que sua localização não seria caprichosa” (Idem).

Na Figura 2 apresentamos as localidades agrupadas por posição física, tendo

como pressuposto que os caminhos e regiões atuais podem ser transpostos para o fim

do período colonial. Representamos cada agrupamento ou localidade isolada por

círculos, diferenciados pela escala de grandeza da Tabela 7.

Figura 2: participação de cada local/região e sua disposição espacial

As comunicações do período colonial, assim como em qualquer período,

eram ligadas diretamente aos produtos, aos modos de exploração e à consolidação da

ocupação e das fronteiras. Dessa forma, é preciso atentar para as regiões

fornecedoras de certos produtos e para os circuitos que elas criavam (integrando

locais de origem, destino e passagem, por meio de mercadorias e recursos). Sob esse

enfoque, veremos que a modificação do modo de vida e das atividades econômicas

altera também certas relações espaciais.

Ainda que existam inúmeros exemplos da evolução segura de caminhos

indígenas em rotas de bandeiras e assim por diante, não podemos ignorar que houve

trilhas que pereceram ou que amargaram o desuso por longos períodos. Alguns

caminhos consolidaram-se, por conta das atividades que permitiam ou favoreciam, e

têm seus desenvolvimentos bastante estudados.7 Isso não altera a ideia geral das

apropriações sucessivas, mas aumenta sua complexidade.

Os grupos da Tabela 6, da forma como a construímos, baseiam-se

justamente na forma específica de organização espacial do momento estudado. Trata-

se de outra forma de agrupamento das localidades, baseado nas características

próprias das trocas desse período. A então vila de Sorocaba, apesar de avizinhar-se a

Itu e Porto Feliz, foi associada ao grupo de rotas que incluíam o sul do país (Rio

Grande e Curitiba), por fazerem parte de um mesmo circuito de trocas, a saber, o

comércio de gado – contido na lista nominativa sob a declaração de “bestas”. À região

de Itu e Porto Feliz, integramos Campinas, considerada parte desse grupo ao ser

associada a Itu, no comércio de açúcar. Jundiaí, São João e Juqueri (atualmente,

Atibaia e Mairiporã) foram registradas apenas uma vez e de forma unificada,

relacionadas ao abastecimento de São Paulo.

7 É o caso, por exemplo, do caminho percorrido por Anhanguera, pai e filho, em 1683 e 1722, respectivamente. A

segunda expedição passou por regiões diversas, tais como as atuais cidades de Campinas, Ribeirão Preto, Uberlândia, Brasília, Goiânia e Corumbá, cuja ocupação foi posteriormente consolidada.

Figura 3: diagrama de relações espaciais e econômicas por “regiões coloniais”

Para a construção do mapa final, usaremos o agrupamento de localidades

mais compatível com a representação cartográfica desejada, ou seja, relativa às

relações espaciais vigentes especificamente no período colonial. A Figura 3 é capaz

de exprimir as relações estabelecidas pelos habitantes da São Paulo colonial,

diferenciando mais claramente vilas abastecedoras e vilas abastecidas, por exemplo.

Segundo as descrições do censo, parte dos habitantes que realizavam

trânsito deslocava-se junto à sua mercadoria, enquanto outros apenas financiavam as

atividades comerciais. No caso dos últimos, outras pessoas realizavam esse

movimento, sendo elas também responsáveis pela relação entre as localidades

original e final, assim como as paragens entre elas.

Vale ressaltar novamente que os deslocamentos paralelos (como aquele

entre Santos e o oeste açucareiro) passavam por São Paulo, visto que os caminhos

que os uniam cruzavam-se na cidade. Em outras palavras, todas as rotas contidas no

diagrama refletiam-se, de uma forma ou outra, na conformação espacial e na dinâmica

socioeconômica da cidade. Ou seja, não se pode tomar, tão pouco, apenas as

relações “abstratas” desses circuitos comerciais, tais como registradas na lista. No

mapa final, é essencial conjugar a posição física, os caminhos e as redes comerciais.

Figura 4: principais rotas de entrada e saída, desenhadas a partir da “Planta da Cidade de São Paulo de 1810”

Na Figura 4, vemos os limites principais da cidade e as rotas de acesso, que

permitem observar esse entroncamento de rotas, na escala da cidade. Partindo

dessas saídas, tomaremos as descrições das rotas para compor, com o maior nível de

detalhamento possível, um mapa que contenha os dados da categoria trânsito da lista

nominativa de 1798. Richard Morse traz uma definição sintética – transcrita abaixo –

dos cinco principais caminhos que se encontravam na cidade de São Paulo, sendo

responsáveis por sua conformação espacial (MORSE, 1970: 42).

(…) 1) A nordeste, para o Rio de Janeiro, ao longo do rio Paraíba. (…) Havia

nêle algumas saídas laterais – ao sul, para a costa, pela Serra do Mar, e ao

norte, para Minas Gerais, pela Serra da Mantiqueira. (…) 2) Ao norte, para Minas

Gerais, através de Atibaia e Bragança. (…) 3) A noroeste, via Jundiaí, para

Campinas (…) 4) A oeste-noroeste, para Itu e Pôrto Feliz, de onde as Monções

do século XVIII partiam pelo Tietê, em pirogas, em busca dos metais preciosos

de Mato Grosso. 5) A oeste, para Sorocaba, e daí a sudoeste, para as províncias

criadoras de gado.

Somando a elas o Caminho de Santos (que passa por Cubatão) e o trajeto

marítimo que segue daí para Lisboa, completamos o panorama das rotas listadas na

documentação. Vale notar que Morse faz uso da lógica de singularização dos trânsitos

a partir da conjugação de caminhos e formas de exploração econômicas – que

concorda, por exemplo, com a separação de Sorocaba e Itu –, deixando em segundo

plano outros desenvolvimentos, como a defesa militar e o povoamento das fronteiras.

Na obra Caminhos da Conquista (KEATING; MARANHÃO, 2008, 165-209),

encontramos informações complementares, especialmente sobre as paragens entre

cada origem e destino.

Com os subsídios sobre as rotas, a posição física das localidades e os

circuitos de que participavam é possível “desmembrar” os dados do censo e

reconstruí-los de forma que fiquem compatíveis com as reflexões geradas pelo

confronto e articulação dessas informações. A Tabela 7 traduz a reorganização dos

trajetos.

Tabela 8: reorganização e quantificação dos trajetos LOCAIS/REGIÕES TOTAL

Rio Grande - Curitiba - Sorocaba - São Paulo 9 São Paulo - Itu - Cuiabá 1

São Paulo - Jundiaí - Campinas - Goiás 2 São Paulo - Juqueri - São João - Minas Gerais 2

São Paulo - Rio de Janeiro 37 Itu - São Paulo - Santos - Lisboa 3

Itu/Porto Feliz - São Paulo 7 São Paulo - Santos 30

São Paulo - Jundiaí - Campinas 6 São Paulo - Jundiaí/São João/Juqueri 2

Itu - São Paulo - Santos 2 Itu - São Paulo - Rio de Janeiro 5

Campinas - São Paulo - Rio de Janeiro 1 São Paulo - Santos - Lisboa 1

portos - São Paulo 1

Note-se que essa forma de distinção faz uso do tipo de mercadoria

transportada para diferenciar os trajetos em que uma localidade é apenas passagem.

As vilas e cidades registradas no censo como origem e destino de trânsitos são

aquelas grifadas; as demais, em tom mais claro, são locais de pouso ou paragem.

O “desmembramento” realizado tem por base a Tabela 6 e segue o seguinte

juízo: um registro como “Curitiba/Sorocaba-Cuiabá/Goiás/Minas Gerais-bestas”

significa que o gado sai do circuito originado na região sul (e que engloba Sorocaba),

chega a São Paulo e é distribuído para Cuiabá, Goiás e Minas Gerais, sendo que cada

uma dessas localidades é acessada por um caminho próprio. Dessa forma, tal registro

quantifica-se uma vez em cada uma das seguintes entradas: “Rio Grande - Curitiba -

Sorocaba - São Paulo”, “São Paulo - Itu - Cuiabá”, “São Paulo - Jundiaí - Campinas -

Goiás” e “São Paulo - Juqueri - São João - Minas Gerais”.

Juqueri, São João e Jundiaí fazem parte de caminhos que vão para Minas

Gerais e Goiás, mas receberam uma entrada própria na relação com São Paulo por

serem fornecedoras de mantimentos para a cidade, a saber, milho, toucinho, feijão e

arroz. As rotas de origem desconhecida foram quantificadas da mesma forma, ou seja,

pela atribuição relativa a cada bem transportado: mantimentos vinham das vilas

supracitadas; bestas, do sul; e molhados, de Santos. Foi possível fazer essa atribuição

por serem mercadorias hegemônicas nessas rotas. O registro “portos-São Paulo-

negócios”, que aparece apenas uma vez, foi desconsiderado por conta da

impossibilidade de transformá-lo em trajeto de forma segura.

Uma vez feitas essas ponderações, produzimos o mapa da Figura 5, que

contem as rotas e circuitos, de acordo com as fontes consultadas. No detalhe,

apresentamos a quantificação da ocorrência de cada trajeto. A decomposição de cada

rota nas várias combinações entre as vilas e cidades envolvidas em cada uma permite

visualizar os pontos de concentração e integração desses caminhos.

Figura 5: mapa final de rotas

O trânsito de animais era atividade consolidada e, como se pode ver, de

importância acima da média, mesmo sem conter várias combinações entre suas

localidades. No final do século XVIII, a cana-de-açúcar ainda era a espécie de maior

importância no mercado internacional, para a capitania de São Paulo. A exploração de

ouro e metais preciosos, assim como o aprisionamento de indígenas para serem

vendidos e usados como força de trabalho, já não eram mais atividades lucrativas.

Desse modo, não é difícil compreender o destaque que têm a vila de Itu e o porto de

Santos, escoador da cultura dessa área, em contraposição às regiões mineradoras. A

ocorrência de trocas apenas entre esse porto e a sede da capitania, no entanto, era de

vigor ainda maior. Entre São Paulo e o Rio de Janeiro, havia também intensa troca,

tanto pela passagem nas rotas que ligavam esse porto a Campinas e Itu, quanto pelo

fornecimento de manufaturas.

Apontamentos finais

A quantificação de dados e a interpretação desses - pela sua leitura numérica

e “espacial” – possibilita fortalecer o argumento a favor das análises que dão destaque

à rede de localidades formada pelas trocas e caminhos que têm em São Paulo um

ponto central, por ser a articulação de tantas direções.

No momento, conduzimos pesquisa de mestrado cujo objeto central é o grupo

de trabalhadores de obras públicas na cidade de São Paulo, entre fins do século XVIII

e a primeira década do século seguinte. Dentro desse panorama, a ponderação

acerca das condições do modo de vida paulista é indispensável para justificar a

importância dessas obras – relacionadas, em sua maioria, aos caminhos e às estradas

– e a própria possibilidade de ocorrência delas. A lista nominativa de 1798, com seu

nível de detalhamento na descrição das ocupações dos habitantes, traz elementos

indispensáveis para desmistificar a imagem de pobreza e isolamento, solidificada na

historiografia sobre São Paulo.

As imagens e mapas são costumeiramente utilizados como forma ilustrativa

das reflexões históricas, ao invés de serem considerados parte dos fatores dessas

reflexões. Nas últimas décadas, as pesquisas que fazem uso de métodos de

georreferenciamento ganharam força e meios – principalmente, no campo tecnológico.

No presente artigo, procuramos realizar um exercício que combina as análises

territoriais às questões históricas, sem que as (inúmeras) possibilidades de criação de

mapas e diagramas se sobrepusessem à argumentação, perdendo-a de vista. Ao

mostrar as tomadas de decisão do processo de criação das imagens, buscamos

justamente apontar a combinação entre as possibilidades visuais e as hipóteses

trabalhadas, a fim de compor o mapa final que nos interessa: um quadro das relações

entre a cidade de São Paulo e as vilas e cidades com as quais ela forma uma rede de

atividades econômicas.

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Base para os mapas: Google Maps ©2012 Google.