manuel forjaz · 2014-11-21 · deixo-vos este poema de martha de medeiros ... é uma regra. gosto...

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Manuel Forjaz Nunca te distraias da vida Poderei morrer da doença, mas a doença não me matará

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Manuel Forjaz

Nunca te distraias da vida

Poderei morrer da doença, mas a doença não me matará

CAPÍTULO I

O diagnóstico

17 de Maio de 2010

«Caros amigos, (agradeço absoluto sigilo e reserva sobre o que aqui vos escrevo! absoluto é absoluto, nem pais nem mães, nem namorados, niente....),

Não estive em Xangai, nem em férias! Depois de alguns dias a pensar se vos contava ou não, mas porque a minha produtividade está ainda algo limitada - mais algumas semanas para estar fully operational - e porque o prognóstico parece muito positivo, cá vai:

No fim de um processo de meses, há algu-mas semanas foi-me diagnosticado um nódulo pulmonar. Feito um PET descobriu-se que po-dia não ser bom. No dia 5 de Maio, fui opera-do na CUF e retiraram-me o nódulo (o qual se provou ser maligno – adenocarcinoma) e o lobo pulmonar inferior esquerdo. Feita a análise aos gânglios linfáticos mais próximos nada mais foi detectado. Esperam-se resultados finais da histo-logia do lobo seccionado.

O pulmão recuperará, cresce, voltando qua-se integralmente ao volume inicial (maravilhas da natureza humana...) e em 12 semanas terei a

capacidade respiratória totalmente recuperada. Passarei por quimioterapia de prevenção (nada de tormentoso...) e o prognóstico é muito posi-tivo.

Estou em casa desde ontem e sinto-me meio triste, confuso, vulnerável, mas optimista e com vontade de viver muitos e melhores anos; no fun-do também com muita sorte por ter sido tudo apanhado cedo, fruto de uma hipocondríaquice abominável que me atormenta há anos e foi final-mente útil, o que resulta óbvio é que a partir de agora sou mais um ser humano como os outros e não o super-homem que sempre me julguei só vulnerável à kriptonite (estupidez, inveja, malda-de, apatia...).

O que aprendi, pensei, reflecti, intuí, decidi nesses dias:

1.Que temos de dizer mais aos nossos amigos que os amamos, que eles são especiais para nós, que pensamos neles e que nos fazem falta;

2. Que se calhar por vezes pode ser bom fazer menos e melhor;

3. Que temos de conhecer mais gente nova, aprendendo mais nesta maravilhosa circunstância de estarmos rodeados de biliões de pessoas todas diferentes e tantas com tanto para nos dar;

4. Que devemos, todos os dias, estar gratos pelo fundamental: apanhar sol; um dia de chuva passado em casa; um texto bem escrito num li-vro ou num jornal; uma gargalhada intensa; um beijo de um filho; um elogio de um colega; uma

sopa ou um croquete; um trecho de música; a mobilidade e possibilidade de viajar; conhecer e experimentar o diferente.

Beijos e abraços a todos e muito obrigado por serem meus amigos, companheiros e colegas des-te fabuloso projecto que vai ser o TEDxOPorto 2011.

Deixo-vos este poema de Martha de Medeiros (atribuído indevidamente, em alguns sites, a Pa-blo Neruda).

Morre lentamente quem se transforma escravo do

hábito,

repetindo todos os dias o mesmo trajecto,

quem não muda as marcas no supermercado,

não arrisca vestir uma cor nova,

não conversa com quem não conhece.

Morre lentamente quem evita uma paixão,

quem prefere o “preto no branco”

e os “pontos nos is” a um turbilhão de emoções indo-

máveis,

justamente as que resgatam brilho nos olhos,

sorrisos e soluços, coração aos tropeços, sentimentos.

Morre lentamente quem não vira a mesa quando está

infeliz no trabalho,

quem não arrisca o certo pelo incerto atrás de um

sonho,

quem não se permite,

uma vez na vida, fugir dos conselhos sensatos.

Morre lentamente quem passa os dias queixando-se

da má sorte ou da

chuva incessante,

desistindo de um projecto antes de iniciá-lo,

não perguntando sobre um assunto que desconhece

e não respondendo quando lhe indagam o que sabe.

Evitemos a morte em doses suaves,

recordando sempre que estar vivo exige um esforço

muito maior do que o

simples acto de respirar.

Estejamos vivos, então!

Martha de Medeiros

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Lição número 1: saber esperar

Nunca abro os envelopes com os resultados dos exa-mes. Não é uma mania, é uma regra. Gosto de me centrar nas coisas que controlo, que consigo dominar. Mas só aprendi isso mais tarde, à custa da angústia e da deso-rientação que experienciei perante informações incom-preensíveis, muitas vezes assustadoras. Naquele dia de Março de 2010, quando ao balcão do Hospital CUF-In-fante Santo me entregaram o sobrescrito azul e branco com as imagens do meu tórax e o relatório da Tomo-grafia Axial Computadorizada (TAC), nem sequer pensei nisso. Abri o envelope, retirei a página impressa com o relatório da imagiologia e li todas as palavras do médico, de pé, ali mesmo.

«Verificamos uma imagem aparentemente nodular, de contornos bem definidos e sem cálcio no seu interior visível no lobo inferior do pulmão esquerdo (…) É uma

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imagem de densidade sólida, com cerca de 1,6 cm de diâmetro máximo.» Gelei. Nem sequer pensei na pos-sibilidade do nódulo ser benigno. Cancro: a doença que matou o meu pai e consumia também o pulmão do meu irmão era agora também minha. Não chorei. Lembrei- -me dos meus filhos, mas não perdi o controlo. Tinha 47 anos, era um não-fumador, saudável e em forma, que an-dava a pé, com uma vida cheia, uma empresa a viver um ano estupendo, feliz. Mas a expressão «contornos bem definidos» dava bom aspecto à coisa — havia imensos cancros na família e a regra era «descobrir o tumor, tirá--lo e seguir em frente». A incredulidade, o medo e as dú-vidas foram por isso, naquele momento, menosprezados. Na minha cabeça, enquanto saía dali e tentava racionali-zar o que me estava a acontecer, havia dois pensamentos que pela sua urgência se sobrepunham a todos os outros: resolver e esconder o problema.

Não queria ser um fardo para a minha família, para os meus amigos, para os outros. Não queria que os meus filhos chorassem à noite por minha causa, não queria ser um motivo de preocupação, uma fonte de infelicida-de. Sempre tinha sido o contrário e orgulhava-me dis-so, do meu optimismo quase tonto, contagiante, de ser uma pessoa inspiradora, do facto de conseguir transmitir energias positivas. Provavelmente teria de ser internado, operado, era preciso retirar aquele cancro de dentro de mim — todos os doentes sentem essa urgência — mas naquele momento acreditava que sairia do hospital no

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mesmo dia e, mais importante do que isso, iria con-seguir passar por todo o processo em total e absoluto segredo, sem dizer a ninguém.

Não me lembro da viagem que fiz de moto até casa. Sentei-me ao computador, abri uma página do Google, escrevi «cancro do pulmão» e comecei a ler tudo o que me aparecia. As probabilidades de sobrevivência logo no primeiro ano eram de 50% e a cinco anos ainda mais baixas, cerca de 15%. O cancro do pulmão é um fi-lho da puta com uma sintomatologia não dolorosa e normalmente quando se chega ao hospital a coisa está descontrolada — pior só mesmo cancro no fígado e no pâncreas. Continuava incrédulo. A tosse surgira em Ju-lho e piorara com os primeiros banhos de mar de Ou-tubro (há muitos anos que vou à praia durante todo o ano). Fui ao médico, quis saber o que se passava, mas nunca, em momento algum, pensei em cancro. Porra, o meu pai, o meu irmão e agora eu?!? Era mau demais para ser verdade. Mas continuei a ler, a consumir toda aquela informação, página após página, e a pensar na cirurgia e na urgência de resolver a questão com o me-nor estardalhaço possível.

Tinha consulta marcada com o pneumologista para daí a dez dias. Entretanto, a crise económica parecia não afectar estruturalmente o desenvolvimento da Ideiateca, a empresa que criei em 1997. Estava a viver o melhor ano de sempre e o meu telefone não parava de tocar.

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Nunca, nesta fase, me passou pela cabeça que tinha uma doença. Eu não tinha uma doença, tinha um cancro, que era preciso tratar — e, independentemente do que tivesse de fazer, a minha capacidade de trabalhar, de dar aulas e de dar conferências não seria afectada. Era nisso que eu acreditava (o que obviamente mostrava a minha total ig-norância sobre os efeitos da quimioterapia...), tinha essa ideia de super-homem — o meu corpo nunca me tinha falhado, aos 16 anos carregava caixotes de uvas com 70 quilos, já fiz viagens duríssimas — o meu organismo iria reagir, regenerar-se.

Com imensos projectos em mãos, novas encomendas de estudos de mercado e serviços de cliente mistério, o meu envolvimento em acções de empreendedorismo so-cial, como o projecto IES em Moçambique, ou o KCida-de, havia diferentes pessoas a requerer a minha atenção e eu respondia a todas as solicitações; mantive tudo como estava. Não falei do cancro a ninguém e mesmo a Bichi-ca, só soube mais tarde, uns dias antes da consulta com o médico, por telefone.«Há quanto tempo sabes disto?», perguntou-me. Ficou naturalmente preocupada, apreen-siva, sentiu o que podia acontecer, mas aguentou-se. Nes-sa noite, conversámos muito e foi ela quem contou aos nossos filhos.

Habitualmente não demoro mais do que 60 segundos a fechar os olhos, mas na véspera do regresso ao hospital tive alguma dificuldade em adormecer. Nunca tive medo

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de morrer, suportado numa fé de que nunca duvidei — acredito em Deus e na vida eterna — nem vivi nessa al-tura o drama do «porquê, eu?». Mas a ideia da falta de controlo sobre o meu próprio corpo irritava-me, e esse era um sentimento que teimava em perdurar e que não foi apaziguado, nem mesmo no dia seguinte, com o mé-dico à minha frente, pronto a esclarecer todas as dúvidas. Depois de analisar as imagens e o relatório, o pneumolo-gista ainda levantou uma pequena hipótese de os nódulos serem benignos, mas em qualquer caso, avisou que desa-conselhava a realização de uma biópsia e defendia a sua remoção. Voltámos a casa com uma consulta marcada com um cirurgião do mesmo hospital para a semana se-guinte. Era preciso aguardar pela consulta sem desesperar. É mesmo assim.

Lição número um: saber esperar, conseguir viver com isso sem colocar todo o dia-a-dia em suspenso, sem deixar de fazer projectos, de avançar. De repente, o que nos parece ser crítico para salvar a nossa vida transfor-ma-se num processo, um regular processo administrati-vo, muitas vezes um formulário quadriculado que cospe um protocolo de tratamento depois de preenchido — e é preciso aprender a viver com a situação. É impor-tante ter um plano para lidar com a provável evolução, estudar as alternativas, sem entregar o corpo e a vida nas mãos de um médico, mas criando ao mesmo tempo um campo de comunicação com o clínico que permita avaliar toda a informação disponível, para traçar esse

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plano. Tudo, com o máximo de investigação e a maior tranquilidade possível.

Lição número 2: evitar precipitações

Quando sabemos que temos um cancro, queremos ter toda a importância do mundo e percebemos que o mun-do está cheio de pessoas que sofrem do mesmo mal ou pior. Mas queremos ter essa importância: é um direito. E mesmo já sabendo eu que o processo de diagnóstico e definição de tratamento não é uma coisa imediata, objec-tiva, um plano fechado, confesso que não estava prepa-rado para o impacto emocional que me provocou aquela segunda consulta. Eu esperava que, perante uma amea-ça à minha vida, se juntassem médicos, imagiologistas, peritos em diagnósticos, e me fosse dada uma proposta terapêutica a seguir. Nada disso aconteceu.

Na consulta, ainda sem a presença de um oncologis-ta, o cirurgião surgiu sozinho e tudo se passou muito rapidamente. Perguntou-me o nome e a idade e no mi-nuto a seguir falou-me do seguro de saúde e dos custos da operação. Aconselhava uma lobectomia (remoção de um lobo pulmonar), potencialmente seguida de quimio-terapia coadjuvante, sendo essa decisão tomada depois,

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conforme os factores de risco identificados durante o procedimento cirúrgico. Os contornos bem definidos do nódulo davam uma boa probabilidade de sucesso à inter-venção e boas hipóteses de sobrevivência. A meu favor tinha a excelente forma física: 85 quilos num corpo de 1,85 metros de altura, cheio de peitorais de não-fuma-dor. Contra mim estava a genética: pai e irmão com can-cro, e uma infância passada numa casa onde três pessoas fumavam, no seu conjunto, perto de dez maços de tabaco por dia (Eram os anos 1970, havia cinzeiros até na casa de banho. Ninguém questionava, fumava-se e pronto).

Achei toda aquela pressa estranhíssima, pareceu-me pouco disfarçada a vontade generalizada de operar dos cirurgiões, questionei-me se não deveriam ser feitos mais exames, se calhar outra TAC, mas a vontade de despa-char o assunto, «abrir para limpar», ver-me livre de tudo aquilo, era maior. E, com Bichica ao meu lado, ficámos felizes com a possibilidade de uma intervenção que per-mitisse remover aquela nódoa que sujava o meu corpo. A cirurgia ficou marcada para a semana seguinte e saí-mos dali, apesar de tudo, bastante mais calmos.

Na altura, achei que avançar para uma operação o mais rapidamente possível seria tomar a decisão mais acertada — mais tarde, percebi que não.

Lição número dois: evitar precipitações. Perante uma doença grave, devem ouvir-se diferentes opiniões, avaliar

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os recursos disponíveis e tentar o melhor médico da es-pecialidade. Optar pela cirurgia sem conhecer as alter-nativas é um erro: muitos cirurgiões querem é «cortar», «cortar tudo» o que puderem... Qualquer que seja o re-sultado da pesquisa, e independentemente da opção fi-nal ser de facto partir para uma operação, o importante é conhecer todas as alternativas, ponderar os prós e os contras de cada uma delas. Com o tempo percebi que a abordagem ao diagnóstico e à terapêutica mudam con-soante a unidade de saúde: a Medicina está longe de ser uma ciência exacta. O doente é o legítimo proprietário do seu próprio corpo e deve ser também dono da própria vontade.

Lição número 3: saber o que se vai passar e «como» se vai passar

Dois dias antes da operação, ligaram-me de um nú-mero desconhecido, que descobri pertencer a uma linha de assistência ao doente do Hospital da CUF. Do outro lado da linha, uma voz feminina deu-me todas as indica-ções e explicou-me, de forma simpática, o que devia le-var comigo para a operação. Fixei-me nos «pijaminhas» — necessários «em princípio para uma semana, cinco ou seis dias...» — e caiu-me o mundo ao chão. Acho que,

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nesse momento, percebi a ingenuidade com que pensei que conseguiria resolver e esconder tudo sem chatear ninguém. Desaparecer da empresa e da vida das outras pessoas durante uma semana, eventualmente mais tem-po, e passar despercebido era uma utopia.

Sentia-me emocionalmente frágil, sem grande pa-ciência para explicar aos outros o que se estava a passar. Enviei um email às pessoas com quem estava a preparar mais uma edição da TEDxOporto, conferência anual da qual fui fundador, a informá-los da operação — tinha-lhes dito que estava em Xangai, de férias. Depois, pedi ajuda à Bichica. «Não quero dizer às pessoas que estou triste. Protege-me disso», implorei-lhe. E ela assim fez. Foi uma mulher-loba. Falou com os amigos mais pró-ximos, falou com a família. Foi assim nesse dia e con-tinua a ser assim até hoje. No fim de cada consulta de diagnóstico, é ela quem liga aos nossos filhos, que vivem no estrangeiro, e é ela quem dá as notícias às minhas irmãs e à restante família — eu falo com ela e ela fala com o mundo. Tenho, de facto, uma mulher espantosa, fabulosa, que nunca teve dúvidas, nunca deu o flanco, nunca mostrou fraqueza. Talvez tenha chorado, já lhe vi os olhos brilhantes, mas tem feito um esforço gigantesco para me proteger do próprio sofrimento.

Com «os pijaminhas» dentro da mala apresentei- -me no hospital para ser operado, no dia marcado. Es-tava uma tarde de sol e cheguei às 14h00 à recepção,

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acompanhado da Bichica para dar entrada no hospital e tratar da papelada antes da intervenção, marcada para as 16h00. Estava ansioso e pouco falador. Havia ainda uma pequena hipótese de os tumores não serem malig-nos, apesar dos resultados pouco animadores da PET (Tomografia por Emissão de Positrões) que tinha feito entretanto. O exame consiste na injecção de um líquido radioactivo que se cola às matérias neoplásicas (lesões provocadas por uma proliferação anormal de células) e na observação dessa reacção numa máquina semelhan-te à da ressonância magnética, mas menos barulhenta. Os tumorzinhos brilham como uma árvore de Natal e quando se trata de uma PET CT (Tomografia Computa-dorizada) é possível ainda ter uma noção da dimensão e formato dos nódulos. No meu caso, a fixação do lí-quido era relativamente forte, o que indiciava tumores malignos, mas só as análises do laboratório de anato-mia patológica, feitas durante a cirurgia, permitiriam ter certezas.

O que se seguiu foi um conjunto sucessivo de asnei-ras que motivaram uma carta ao conselho de adminis-tração do hospital, onde elogiava a acção dos médicos e deitava abaixo tudo o resto. Fiquei quatro horas à es-pera na sala de espera do hospital. Foram quatro horas de stress e terror absoluto. Tinha perdido um cunhado pouco tempo antes, inesperadamente, numa opera-ção de rotina e estava apreensivo, sabia muito pouco do pós-operatório. E nem quando finalmente me deitei

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na maca, vestido com aquelas ridículas roupas de pa-pel próprias da cirurgia, já depois de deixar a Bichica e o meu filho no quarto, consegui serenar. «As análises, onde é que estão as análises? E o PET TC?», perguntava o cirurgião. A imagiologia não tinha enviado as ima-gens e acabei por ter de ir de cadeira de rodas repetir as análises.

Às 20h00 o enfermeiro começou a preparar-me. A sala do bloco operatório ainda não estava pronta e a espera repetiu-se, desta vez num corredor, deitado numa maca, a ver médicos e doentes a passar. Tinha quatro agulhas espetadas nos pulsos, outras quatro no pescoço, sentia frio e estava sozinho. Voltou a afligir-me a sensação de ser um fardo, um incómodo para toda a gente, uma fonte de preocupações e de chatices. Não queria ser essa pessoa. Comecei a chorar.

Entrei na sala com as lágrimas a correr pela cara. Nesse momento senti medo de morrer, medo do cancro e medo da operação. Lá dentro, na divisão de paredes verde-claro, ouvia-se o barulho metálico dos instrumen-tos cirúrgicos, sentia-se um cheiro horrível e, sobretudo, estava um frio tremendo, que veio acrescentar mais um grãozinho à depressão. Sou um homem de fé, rezei umas ave-marias e um pai-nosso, lembro-me de ter fixado o líquido branco no sistema de soro e de ter perguntado ao anestesista se iriam usar propofol, um hipnótico amnési-co. Ele confirmou e eu apaguei.

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Acordei seis horas depois na Unidade de Cuidados In-tensivos, uma sala escura, com cortinas à minha esquer-da e à direita, a boca seca, dores, zonzo, vivo. Não sabia nada do que iria acontecer a seguir e à minha volta ouvia pessoas a gemer, a chorar. Ninguém me tinha avisado de que iria ter uma costura de 72 pontos e dois drenos de 2,5 cm ligados ao pulmão a provocar-me dores horríveis. Não sabia que não podia beber água, nem que as dores iriam rapidamente passar de aceitáveis a horríveis.

Lição número três: nunca partir para uma cirurgia na ignorância. A informação, além de útil (é possível pedir um cobertor térmico para a entrada no bloco ope-ratório, por exemplo), atenua o medo e ajuda a gerir a ansiedade.

À passagem da Bichica e do meu filho para um beijo de fugida, fiquei a saber que me tinha sido retirado o lobo inferior do pulmão esquerdo e que os gânglios à volta estavam todos limpos. Passei a noite com sede e dores fortes, que classificaria de nível oito a nove numa escala de zero a dez, e às 6h00 do dia seguinte levaram-me para o quarto. As surpresas continuaram pela ma-nhã. Entrou uma enfermeira para me fazer um raio X, uma rotina que passaria a ser diária, e depois a fisiotera-peuta para uma massagem ao tórax. «Massagem?!?!», pensei. Não conseguia imaginar nada pior naquele mo-mento. «Massagem respiratória» — realizada três vezes por dia durante a recuperação. Um inferno: soprar para

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uma maquineta enquanto friccionam o pulmão, por cima dos drenos, provocando-me dores horríveis.

A Bichica e alguns amigos revezavam-se durante o dia para me acompanhar e ajudar. A presença deles era fundamental, não só pela distracção que a sua conversa me proporcionava, mas também porque, naquela altura, qualquer esforço que tivesse de fazer me custava uma brutalidade. Os meus amigos acusavam-me de ter feito de propósito para estragar a minha vida maravilhosa e ter com que me entreter, faziam-me rir (doía-me horro-res) e o Alberto conseguiu até a proeza de evitar que me colocassem uma algália permanente. Não consegui uri-nar durante vários dias. Água a correr, mãos molhadas, nada resultava, até que ele se lembrou que, em Bangue-coque, quando as autoridades tailandesas começaram a instalar urinóis públicos e os homens não conseguiam habituar-se à presença de outros homens, lhes colocavam toalhas molhadas no pescoço. Experimentámos e foi uma maravilha. Só que as dores continuavam. Os analgésicos, Nolotil e paracetamol, eram insuficientes e só a morfi-na ajudava. Mas, mais uma vez, ninguém me avisou de que a morfina era limitada a uma dosagem diária, se o tivessem feito, teria guardado a droga para as noites, que eram dolorosas e custavam ainda mais a passar.

Um dia, dois, três, cinco, sete... o prazo da alta ex-pirou, queria sair dali, e não havia meio de os baldes que se enchiam de sangue e linfa que escorriam dos

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drenos ficarem vazios. A única coisa que queria era tirar os drenos. Chegaram os resultados da análise feita pela anatomia patológica e a notícia de que o nódulo estava colado à pleura, o que era um factor de risco agrava-do. Não quis saber. Só queria que me tirassem os dre-nos. A minha vida iria recomeçar quando mos tirassem. Fiquei internado 11 dias, saí a 15 de Maio. Sentia-me bem, sem drenos, sem grandes dores, sem desconforto.

Algarve, 1980, Marina de Vilamoura

Alcobiendas 1986. Com o Leonardo e outros amigos

São João do Estoril, 1983.Com Alberto Ledo e João Martins