mann e o tempo

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1 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA ALEMÃ Menaldo Augusto da Silva Rodrigues A REPRESENTAÇÃO DO TEMPO NO ROMANCE DER ZAUBERBERG DE THOMAS MANN São Paulo 2008

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E LITERATURA ALEM

    Menaldo Augusto da Silva Rodrigues

    A REPRESENTAO DO TEMPO NO ROMANCE DER ZAUBERBERG DE THOMAS MANN

    So Paulo

    2008

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM LNGUA E LITERATURA ALEM

    A REPRESENTAO DO TEMPO NO ROMANCE DER ZAUBERBERG DE THOMAS MANN

    Menaldo Augusto da Silva Rodrigues

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Lngua e Literatura Alem do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Mestre.

    Orientador: Prof. Dr. Helmut Galle

    So Paulo 2008

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    Aos meus pais Menaldo Pimentel da Silva Rodrigues e Ordlia Leite da Silva Rodrigues, pelo empenho que dedicam minha formao e minha vida.

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    AGRADECIMENTOS

    Prof. Dr. Helmut Galle, pela orientao segura e paciente. Suas observaes, sugestes e correes contriburam muito para o desenvolvimento do trabalho.

    CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico), pelo apoio financeiro.

    Prof. Dr. Marcus Mazzari e Profa. Dra. Claudia Dornbusch, pelos valiosos comentrios e sugestes no Exame de Qualificao.

    Prof. Ms. Jiro Takahashi do Centro Universitrio Ibero-Americano, pela boa vontade e importante incentivo, tanto em questes acadmicas quanto literrias.

    Prof. Ms. Joo Ribeiro Neto do Centro Universitrio Ibero-Americano, pelos comentrios estimulantes do meu Trabalho de Concluso de Curso, que me incentivaram a querer dar continuidade aos estudos.

    Prof. Dr. John Milton, pela amizade, boa vontade e cooperao constantes.

    Joachim Tiemann, ex-chefe no Instituto Martius-Staden, de quem partiu um apoio que transcende em muito a esfera profissional. A orientao e os livros que me disponibilizou ao longo desta dcada de cooperao e amizade foram inestimveis no apenas para a minha formao geral na literatura alem, mas tambm como ser humano.

    Dr. Franz Obermeier da biblioteca da Christian-Albrechts-Universitt de Kiel, Alemanha, pelo estmulo, a amizade e o envio de artigos e livros fundamentais para a elaborao desta monografia.

    Dr. Rainer Domschke do Instituto Martius-Staden, pelas trocas literrias e tradutrias sempre enriquecedoras.

    Roberto Gutierrez, pela amizade de tantos anos.

    Brbara Galeno, pelo amor encorajador, inspirador e extraordinariamente paciente.

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    Die Zeit, die ich hier weil, ich kann sie nicht ermessen Tage, Monde gibts fr mich nicht mehr.

    [No posso medir o tempo que passo aqui dias e luas no existem mais para mim].

    Richard Wagner (Tannhuser)

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    RESUMO

    Esta dissertao tem como objetivo investigar o tratamento do tempo como temtica central no romance Der Zauberberg (A montanha mgica) de Thomas Mann, em que a experincia temporal do heri transformada em experincia esttica para o leitor mediante a prpria estrutura narrativa da obra. Para isso, e depois de um estudo da gnese dos conceitos de temporalidade presentes no romance com base sobretudo nos dirios do autor, realiza-se uma anlise de subcaptulos selecionados, em que o tempo no apenas tematizado, seja por intruses digressivas do narrador, seja por reprodues de dilogos ou pensamentos do protagonista, mas tambm onde sua percepo por vezes representada narrativamente na construo dos pargrafos desses subcaptulos. Como uma das estratgias narrativas fundamentais aplicadas pelo romancista a fim de representar sua almejada suspenso do tempo mensurvel na conscincia do heri e transmitir essa mesma vivncia ao leitor figura a relao marcadamente desigual no livro entre os dois planos temporais: o tempo narrado (erzhlte Zeit) e o tempo do narrar (Erzhlzeit), assim como teorizados originalmente por Gnther Mller e retomados por Paul Ricoeur em seu Tempo e Narrativa. A anlise que ainda se realiza nesta monografia da problemtica imbricao entre o tempo psicolgico (subjetivo/qualitativo) e o tempo cronolgico (objetivo/quantitativo) no universo da montanha complementada por um comentrio dos contornos mticos atribudos ao tempo no romance.

    Palavras-chave: Thomas Mann; A montanha mgica; temporalidade; estrutura narrativa; tempo narrado; tempo do narrar; tempo psicolgico; tempo cronolgico; tempo mtico.

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    ZUSAMMENFASSUNG

    Gegenstand der Arbeit ist die Behandlung der Zeit als der zentralen Thematik im Roman Der Zauberberg von Thomas Mann, wo durch die Erzhlstruktur des Werkes selbst die Zeiterfahrung des Helden in eine sthetische Erfahrung fr den Leser umgesetzt wird. Die Untersuchung beginnt bei der Genese der in dem Roman prsenten Zeitbegriffe vor allem unter Bezug auf die Tagebcher des Autors , um daran anschlieend die Analyse einiger ausgewhlter Unterkapitel vorzunehmen, in denen die Zeit nicht nur thematisiert wird sei es durch digressive Einschbe des Erzhlers, sei es durch Wiedergabe von Dialogen oder Gedanken der Hauptfigur , sondern wo ihre Wahrnehmung zuweilen in der erzhlerischen Gestaltung der Abschnitte dieser Unterkapitel zur Darstellung kommt. Als eine der grundlegenden Erzhlstrategien des Romanautors zu der von ihm beabsichtigten Aufhebung der messbaren Zeit im Bewusstsein des Helden und der bertragung dieser Erfahrung auf den Leser fungiert das in dem Buch betont ungleiche Verhltnis zwischen den beiden Zeitebenen der erzhlten Zeit und der Erzhlzeit, wie sie ursprnglich von Gnther Mller theoretisch gefasst und von Paul Ricoeur in Zeit und Erzhlung erneut behandelt wurden. Die zudem in dieser Abhandlung vorgenommene Analyse der problematischen Verschrnkung von psychologischer (subjektiver/qualitativer) und chronologischer (objektiver/quantitativer) Zeit in der Welt des Berges wird ergnzt durch einen Kommentar zu den mythischen Konturen, die der Zeit in diesem Roman zukommen.

    Schlsselwrter: Thomas Mann; Der Zauberberg; Zeitlichkeit; narrative Struktur; erzhlte Zeit; Erzhlzeit; psychologische Zeit; chronologische Zeit; mythische Zeit.

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    SUMRIO

    INTRODUO............................................................................................................ 9

    PRESSUPOSTOS TERICO-METODOLGICOS............................................... 15

    1 A GNESE DA MONTANHA MGICA.............................................................. 19 1.1. A primeira fase (1912-1915): Nietzsche e Wagner................................................. 20 1.2. A segunda fase (1918-1924): Spengler e Einstein................................................... 24

    2 O TEMPO COMO TEMTICA E MEIO: UM OLHAR SOBRE SUBCAPTULOS ESCOLHIDOS DO ROMANCE................................................................................ 32 2.1. Vorsatz (Propsito)................................................................................................. 32 2.2. Ankunft (A chegada)................................................................................................ 41 2.3. Exkurs ber den Zeitsinn (Digresso sobre o sentido do tempo)............................. 51 2.4. Ewigkeitssuppe und pltzliche Klarheit (Sopa eterna e clareza repentina)............. 63 2.5. Vernderungen (Transformaes)............................................................................ 72 2.6. Schnee (Neve)........................................................................................................... 79 2.7. Strandspaziergang (Passeio pela praia).................................................................. 91 2.8. Der Donnerschlag (O trovo).................................................................................. 101

    3 CONSIDERAES FINAIS.................................................................................... 107

    4 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS...................................................................... 110

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    INTRODUO

    O contato com a obra de Thomas Mann

    No ano de 1999, enquanto cursava o nvel avanado (Oberstufe) do curso de lngua alem no Instituto Goethe de Munique, Alemanha, tomei o primeiro contato efetivo com a literatura de Thomas Mann (1875-1955). Em virtude do seu estilo amplamente difundido como complexo e erudito, sua leitura constava como um particular desafio entre os estudantes de alemo como segunda lngua. Foi neste momento que, ali mesmo em Munique, decidi adquirir alguns livros seus (correspondncias e escritos autobiogrficos) na livraria da rede Hugendubel da Karlsplatz, e averiguar o que conseguia depreender deles. O interesse foi imediato: no apenas a elegncia estilstica e a riqueza vocabular, mas tambm o teor altamente literrio desses seus escritos de natureza no ficcional me chamaram a ateno.

    Quando retornei ao Brasil, comecei a adquirir os seus romances um a um nas livrarias alems de So Paulo. O primeiro que li foi o seu primeiro: Buddenbrooks, no ano de 2000. No decorrer do ano seguinte, foi a vez de diversos de seus contos e suas duas clebres novelas, Tonio Krger e Der Tod in Venedig (A morte em Veneza). Pouco antes de me demitir do cargo de auxiliar de biblioteca que havia ocupado desde 1998 no Instituto Martius-Staden a fim de me concentrar no curso de tradutores e intrpretes no Centro Universitrio Ibero-Americano, escolhi tomar Der Zauberberg (A montanha mgica) (1924), visto j haver concludo os Buddenbrooks e numerosos contos, estando, assim, j razoavelmente familiarizado com o universo manniano.

    Em abril de 2002, dei incio leitura, que foi concluda trs meses e diversas anotaes depois. A histria de Hans Castorp, um jovem singelo que ainda no havia criado razes firmes na vida, no mbito de um romance de iniciao (Initiationsroman), como foi chamado posteriormente, ou pardia do romance de formao (Bildungsroman) alemo, constituiu para o autor desta dissertao uma intensa experincia de leitura, que no podia ser comparada com a dos livros anteriores e que no voltaria a se repetir da mesma forma com nenhuma das outras obras do romancista alemo, com as quais tomei contato mais tarde.

    No ano de 2004, quando estava procura de um tema para o meu Trabalho de Concluso de Curso no UNIBERO, escolhi tomar como objeto precisamente esse romance de Thomas Mann e investigar uma das suas temticas que mais me intrigara: o tempo. Apesar de se tratar de um curso voltado lngua e literatura inglesas, foi aceita sem restries a minha proposta de uma monografia a respeito de um romance alemo. Esse trabalho

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    constituiu uma primeira tentativa (ainda por demais imatura) de aproximao crtica representao do tempo no livro.

    A escolha do tema

    O tema desta monografia consiste, ento, numa anlise centrada no tratamento do tempo nesse romance de Thomas Mann de 1924, em que a discusso da temporalidade ou atemporalidade caracteriza a sua temtica central, em torno da qual os seus outros grandes temas (doena, morte, decadncia da cultura) so desdobrados (Ricoeur, 1995, p. 206-207).

    Como se pode verificar a partir das observaes do autor em cartas, dirios e palestras, o romance foi concebido, desde o incio, como uma narrativa sobre o tempo (Mann, 1939, 1995, 2003). O tempo, porm, no apenas se torna um tema central nas reflexes do narrador e do protagonista, mas tambm, como propem vrios crticos (Ricoeur, 1995; Rosenfeld, 2006; Koopmann, 1983 et al.) e acima de tudo o prprio Thomas Mann1, um elemento narrativo mediante o qual se pde transformar as questes abstratas em experincias estticas para o leitor. Tomando isso como ponto de partida, prope-se aqui uma anlise do tempo incorporado na estrutura do romance, de modo a explicitar de que maneira o autor lana mo da tcnica narrativa para representar diferentes modalidades da percepo do tempo e a idia de sua progressiva suspenso (Aufhebung), assim como vivenciada pelo protagonista.

    Apesar do fato de que diversos estudiosos europeus e norte-americanos j tenham se ocupado com a questo do tempo em Der Zauberberg (Koopmann, Neumann, Vogel, Cohn et al.), o tema no foi muito investigado na esfera acadmica brasileira. Como pude verificar mediante uma pesquisa bibliogrfica realizada na biblioteca de Letras da Universidade de So Paulo, h trabalhos sobre Der Zauberberg, mas que abordam o romance desde outros pontos de vista. Na biblioteca da USP, h uma dissertao de mestrado da Profa. Dra. Claudia Dornbusch (1992) sobre aspectos interculturais da recepo de Thomas Mann no Brasil,

    1 Ver Mann, 1939, p. XIII-XIV: Er [Der Zauberberg] ist ein Zeitroman in doppeltem Sinn: einmal historisch,

    indem er das innere Bild einer Epoche, der europischen Vorkriegszeit, zu entwerfen versucht, dann aber, weil die reine Zeit selbst sein Gegenstand ist, den er nicht nur als die Erfahrung seines Helden, sondern auch in und durch sich selbst behandelt. Das Buch ist selbst das, wovon es erzhlt; denn indem es die hermetische Verzauberung seines jungen Helden ins Zeitlose schildert, strebt es selbst durch seine knstlerischen Mittel die Aufhebung der Zeit an durch den Versuch, der musikalisch-ideellen Gesamtwelt, die es umfat, in jedem Augenblick volle Prsenz zu verleihen und ein magisches nunc stans herzustellen [[A montanha mgica] um romance do tempo em duplo sentido: um deles o histrico, uma vez que procura esboar a imagem interna de uma poca, a do pr-guerra na Europa, e tambm porque o tempo em si constitui o seu assunto, que no trata somente como as experincias de seu heri, mas tambm em e atravs de si mesmo. O livro justamente aquilo que ele narra; pois, enquanto descreve o enfeitiamento hermtico de seu jovem heri, ele busca, atravs de seus meios artsticos, atingir a supresso do tempo, justamente por meio da tentativa de conferir ao universo msico-idealizado que ele envolve uma completa presena em todos os instantes e de produzir um mgico nunc stans].

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    investigados a partir de artigos publicados em jornais brasileiros de 1937 a 1990, dedicando cinco pginas documentao da acolhida de Der Zauberberg por aqui como se verificou nesse corpus. Outro trabalho, uma tese de doutoramento de Hlio Salles Gentil (2001) da rea de filosofia, investiga os elementos para uma potica da modernidade a partir de uma aproximao arte do romance assim como extrada de Tempo e narrativa do filsofo francs Paul Ricoeur, e dedica cinco pginas reproduo da anlise que esse pensador realiza do romance de Mann desde o ponto de vista da temporalidade na narrativa. Sobre Der Zauberberg foi escrita ainda uma tese de doutoramento, do Prof. Dr. Paulo Soethe (1999) da Universidade Federal do Paran, a respeito da conformao do espao nessa obra manniana e em Grande Serto: Veredas de Guimares Rosa. Em 1965, foi defendida por Ottmar Hertkorn uma tese de doutoramento intitulada Zur Darstellung und Bedeutung der katholischen Glaubenswelt im Zauberberg von Thomas Mann [Anlise da representao e do significado do universo de f catlica na Montanha Mgica de Thomas Mann], que foi publicada quatro anos depois no Boletim n 6 da Cadeira de Lngua e Literatura Alems da Universidade de So Paulo. Essa tese, como o ttulo sugere, investiga exclusivamente aspectos da representao da f catlica no romance, centrados na personagem Leo Naphta. Do catlogo da biblioteca da Universidade de Campinas consta apenas um trabalho sobre Der Zauberberg, de Marco Antnio Rassolin Fontanella (2000), que examina o livro como romance de formao (Bildungsroman) e o situa nessa tradio caracterstica do romance germnico.

    Por esse motivo, acredito que esta dissertao acerca do tempo em Der Zauberberg possa caracterizar uma contribuio para os estudos sobre Thomas Mann no Brasil e servir de estmulo para possveis investigaes futuras.

    O fato de que James Joyce (1882-1941) e Marcel Proust (1871-1922), em seus romances emblemticos, tambm tenham demonstrado preocupar-se com a representao esttica do tempo, cada um sua maneira, no constitui um acaso, e sim justamente uma evidncia do Zeitgeist de que fala Anatol Rosenfeld (2006, p. 75) em suas Reflexes sobre o romance moderno: A hiptese bsica em que nos apoiamos a suposio de que em cada fase histrica exista certo Zeitgeist, um esprito unificador que se comunica a todas as manifestaes de culturas em contato, naturalmente com variaes nacionais.

    Com efeito, a problemtica temporal tornou-se algo presente no apenas para diversos autores, mas tambm para filsofos do incio do sculo XX. Alm de Mann, Proust, Joyce e Virginia Woolf (1882-1941), pensadores como Martin Heidegger (1889-1976), Albert Einstein (1879-1955), Oswald Spengler (1880-1936), Henri Bergson (1859-1941), Edmund Husserl (1859-1938) e outros escreveram sobre o tema. Como nos mostra Michael Neumann

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    (editor da nova edio comentada de Der Zauberberg2) em seu comentrio baseado numa afirmao do prprio Thomas Mann (que veremos adiante), mesmo no tendo tomado contato direto com a maior parte desses outros autores e suas obras, o romancista teve a intuio necessria para perceber o que estava no ar em sua poca (Neumann, 2002, p. 62) e o que estava no ar era justamente a discusso temporal.

    Em 1919, por ocasio da leitura de Der Untergang des Abendlandes (O declnio do Ocidente) de Spengler, Mann assinala em seu dirio: A experincia volta a me confirmar uma sensibilidade incomum que costumo atribuir a mim e que coloca minha solido numa relao emptica com todos os mais altos pensamentos e empreendimentos da poca. O fato de que o problema do tempo tenha se tornado pertinente para filsofos e sonhadores por volta de 1912 e que tenha sido includo em sua produo pode estar vinculado ao abalo histrico dos nossos dias, que naquela poca ainda permanecia latente (Mann, 2003, p. 276).

    Em 1913 foi publicado o primeiro e em 1918 o segundo volume de la recherche du temps perdu [Em busca do tempo perdido] de Proust, em que empreende uma recriao do tempo vivido pela memria involuntria e no qual essas lembranas casuais e incontrolveis so capazes de evocar a plenitude sensorial do passado perdido. Mann, porm, afirma ter ouvido falar do nome de Proust pela primeira vez s em julho de 1920 (Id., ibid., p. 456).

    Em 1916, Einstein publicou seu tratado ber die spezielle und die allgemeine Relativittstheorie (Fundamento geral da teoria da relatividade), em que relativiza o tempo fsico, levando em conta acontecimentos aparentemente simultneos. Com isso, formulou a idia da interdependncia do espao e do tempo ou da quadridimensionalidade do Universo. Mann, porm, tomou um conhecimento apenas esparso da obra de Einstein (como veremos na dissertao). E enquanto o autor planejava concluir Der Zauberberg na passagem do ano de 1923 para 1924, Heidegger, um dos fundadores do existencialismo alemo, sem que Mann o soubesse, estava a ponto de iniciar seu Sein und Zeit (Ser e Tempo), em que desenvolve a doutrina de que o ser existncia, ou seja, que consiste em estar no mundo (Dasein), em temporalidade (Neumann, 2002, p. 61-62). Heidegger, por sua vez, leu o romance de Mann com grande interesse em 1925, exprimindo sua fascinao na correspondncia com Hanna Arendt (Id., ibid., p. 114).

    O Essai sur les donnes immediates de la conscience (Ensaio sobre os dados imediatos da conscincia) (1889) de Bergson, que foi, alis, muitas vezes mencionado como

    2 Groe kommentierte Frankfurter Ausgabe. Frankfurt: Fischer, 2002. No que se segue, esse estudo de Neumann

    ser utilizado como guia sobre o contexto histrico da gnese e das fontes de Der Zauberberg.

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    fonte das especulaes temporais de Der Zauberberg, dado os ecos de seu conceito da dure3 no enredo do romance manniano, outra obra relativamente contempornea a problematizar o tempo, no sentido de relacionar o seu conceito cientfico com a percepo psicolgica de seu escoamento na mente humana. Thomas Mann, contudo, declarou nunca ter lido algo de Bergson antes ou durante a gnese de Der Zauberberg (Id., ibid., p. 62, nota 39), o que corrobora sua idia quanto sua prpria sensibilidade ou intuio para captar o Zeitgeist. Mais acertado seria, de fato, afirmar que as elucubraes temporais no romance tenham encontrado sua origem antes no filsofo alemo Arthur Schopenhauer (1788-1860), em sua obra principal Die Welt als Wille und Vorstellung (O mundo como vontade e representao), que Thomas Mann descobrira com vinte e quatro anos com grande entusiasmo. O prprio romancista declarou que die Zeit-Spintisierereien im Zauberberg [as maquinaes mgicas do tempo em A montanha mgica] se deviam acima de tudo a Schopenhauer (Id., ibid., tambm nota 42). Na anlise concreta do romance no segundo captulo desta dissertao, a influncia das idias do filsofo no tocante a tempo e espao bem como vida e morte se mostrar evidente em diversas passagens.

    Pergunta-se ento: qual o motivo de toda a perplexidade em torno da percepo do tempo no incio do sculo XX, que se transforma em matria de especulao para tantos intelectuais? Isso pode ter tido sua origem nas revolues burguesas na Europa. A Revoluo Industrial, que se iniciou na Inglaterra na segunda metade do sculo XVIII e depois se estendeu Frana, Alemanha, Itlia e, paulatinamente, maior parte do mundo, trouxe mudanas scio-econmicas e progressos tecnolgicos que alterariam o modo pelo qual se percebia o escoamento do tempo at ali. A rpida transformao, acima de tudo do setor de transportes, com a abertura de canais, a construo de ferrovias e de rodovias bem como a dinamizao da navegao a vapor levou a uma acelerao considervel do deslocamento no espao e, com isso, relativizou a noo que se tinha anteriormente do continuum temporal. A urbanizao rpida subseqente e o desenvolvimento tecnolgico em geral, como mquinas que fiavam com muito mais rapidez, mquinas movidas a energia hidrulica e bombas a vapor contriburam para a acelerao de todos os processos e conseqentemente para a mudana das noes de tempo.

    Do perodo posterior, j no sculo seguinte, datam os primeiros automveis e os primeiros prottipos de mquinas areas que se tornariam mais tarde os avies. Estes, que

    3 Sobre a nova funo do tempo no romance, baseada no conceito bergsoniano da dure, e sua aplicabilidade

    na fico desse gnero no sculo XX, ver Lukcs, 2003, p. 11. A isso ainda retornaremos mais longamente, no item 2.3. deste trabalho.

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    comearam a ser desenvolvidos j no incio do sculo XX (1903/1906), acrescentariam mais um captulo fundamental aos processos de acelerao do deslocamento espacial. Alm de todos esses fatores, o desenvolvimento de novos meios de comunicao (telegrafia, telefonia) e de novas tecnologias de reproduo visual e auditiva contriburam substancialmente para relativizar a percepo do tempo no incio do sculo XX. Um primeiro auge dessas tendncias foi o surgimento do cinema. Na ltima dcada do sculo XIX os irmos Lumire realizaram as primeiras apresentaes pblicas de cinema atravs do cinematgrafo. Os recursos de projeo de imagens animadas sobre uma tela, que caracterizavam o cinema, foram rapidamente desenvolvidos no incio do sculo XX, contribuindo tambm, sua maneira, para a alterao da percepo temporal. Era muito mais rpido assistir a uma histria em uma tela que l-la num livro. A partir de ento se podia acelerar uma cena gravada ou reduzir seu tempo de durao. Isto : o cinema passou a permitir alteraes de processos que antes s podiam ser vivenciados em sua velocidade natural. Dessa forma, os meios tcnicos de reproduo criaram novas modalidades de percepo da realidade.

    Esses so alguns elementos que servem para situar a discusso temporal como algo pertinente no incio do sculo XX, pois sugerem que (e de que maneira) a anterior normalidade do tempo tornou-se problemtica e, por isso, passou a merecer em si a reflexo e a representao esttica que, entre outros, Thomas Mann empenhou-se em realizar em seu

    romance de Davos.

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    PRESSUPOSTOS TERICO-METODOLGICOS

    Fundamentao terica

    Com o intuito de investigar o tratamento do tempo em Der Zauberberg pretende-se realizar, como foi dito no item anterior, uma anlise da questo focalizada na sua estrutura narrativa, prxima ao texto, procurando demonstrar no apenas de que modo Thomas Mann tematiza o tempo no romance, mas justamente que artifcios narrativos ele aplica para procurar transmitir ao leitor a idia da experincia temporal, tal como vivenciada pelo seu protagonista, que vai perdendo progressivamente a noo da medida do tempo durante o perodo que passa no sanatrio.

    No tocante teoria narrativa, ser tomada como base na anlise a obra do estruturalista francs Grard Genette (1930-) Discurso da narrativa, em que estabelece sua terminologia da estrutura narrativa (focalizao, posio do narrador, etc.) bem como seus instrumentos analticos no que diz respeito temporalidade, durao, ordem e freqncia da narrativa.

    Com relao ao aspecto do contraste entre o tempo narrado e o tempo do narrar, que se pretende pontuar especialmente, bem como o de determinadas experincias temporais fundamentais do protagonista de Mann, tomar-se- como base o livro Tempo e Narrativa do filsofo francs Paul Ricoeur (1913-2005), que oferece uma anlise da representao do tempo em Der Zauberberg intimamente relacionada a esse contraste existente no romance entre os dois planos do tempo na narrativa. O primeiro seria o tempo transcorrido no decorrer da narrativa, ou ainda o tempo que a histria fictcia encerra, e o segundo seria o tempo que o narrador leva para narrar os acontecimentos, que ento medido em nmero de pginas (Ricoeur, 1995, p. 134). Com base nisso, Ricoeur observa de que modo o narrador de Mann realiza um jogo complexo de perspectiva com esses dois conceitos e com a relao de um para com o outro, no sentido de, no incio do romance, levar um grande nmero de pginas (Erzhlzeit longo) para dar conta de pouco tempo narrado (erzhlte Zeit curto), mas em captulos curtos e, mais tarde, inverter essa relao, uma vez que ento passa a dar conta de grandes intervalos temporais em um nmero de pginas menor e, ainda assim, em captulos cada vez mais longos (Ricoeur, 1995, p. 201).

    A fim de reforar a argumentao em torno da temporalidade no romance sero citados trechos elucidativos de O tempo na narrativa de Benedito Nunes, livro em que o filsofo utiliza Der Zauberberg de Thomas Mann como fio condutor para a sua anlise da

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    representao do tempo na arte romanesca do sculo XX. Sua distino entre os conceitos de tempo cronolgico, tempo psicolgico e tempo histrico tambm ser tomada como base terica no comentrio da discrepncia existente em Der Zauberberg entre o tempo do relgio (cronolgico) e o tempo da mente do protagonista (psicolgico), bem como da sua relao com o tempo histrico (no caso o da Primeira Guerra Mundial, a que Mann alude j no Propsito e retoma de forma conclusiva no desenlace do livro).

    Nesse contexto, o ensaio de Anatol Rosenfeld acerca do romance moderno, em que discorre a respeito da representao do tempo no s de forma temtica, mas tambm dentro da prpria estrutura das obras, ser de especial relevncia, pois tambm investiga o aspecto de que o espao e o tempo, formas relativas da nossa conscincia, mas sempre manipuladas como se fossem absolutas, so por assim dizer denunciadas como relativas e subjetivas (Rosenfeld, 2006, p. 81). Como no romance de Mann h uma discrepncia intencional entre o tempo dos relgios e a percepo subjetiva desse escoamento de tempo, focalizada no protagonista, a noo de um tempo subjetivo e relativo torna-se central para a sua interpretao. Tendo em vista esse aspecto presente na modernidade, Rosenfeld menciona ainda que j no sculo passado [l-se retrasado], Goethe reconheceu a extrema subjetividade e relatividade do tempo (e Santo Agostinho muitos sculos antes). Verificou no romance Afinidades eletivas que a vivncia subjetiva do tempo nada tem que ver com o tempo dos relgios (Id., ibid., p. 82). Isso particularmente aplicvel a Der Zauberberg, pois este pode ser inserido nessa tradio romanesca que tematiza o tempo subjetivo da qual Goethe serve de exemplo. No que diz respeito a Santo Agostinho, mencionado por Rosenfeld no trecho citado, pretende-se, sobretudo na anlise do Vorsatz (Propsito), tomar como base as suas reflexes sobre as trs partes do tempo: passado, presente e futuro, assim como formuladas nas suas Confisses (s/d, p. 225-228), uma vez que, nessa espcie de prefcio do romance, Thomas Mann poderia t-las tido em mente quando no s alude como tambm remete o leitor ao passado e ao futuro, enquanto dirige-se a ele no presente.

    Os textos de crticos e acadmicos europeus com relao representao do tempo em Der Zauberberg, sobretudo os de alemes como Helmut Koopmann, Michael Neumann, Gisela Bensch e Harald Vogel (nenhum deles traduzido para o portugus), serviro de orientao igualmente central, pois esse aspecto foi bastante explorado nos estudos mannianos (Thomas-Mann-Forschung) na Alemanha. No obstante isso, como j foi dito, o tema merece uma explorao acadmica mais alongada no Brasil, que representar uma contribuio ou at mesmo um incentivo para os que futuramente quiserem aventurar-se pelo estudo desse aspecto do romance entre ns.

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    Metodologia

    A dissertao compe-se de dois captulos. No primeiro, ser realizado um comentrio da histria da composio do romance, j centrado nos aspectos relativos aos conceitos de tempo e sua representao na obra em formao. Para tanto, apoiar-se- principalmente no estudo j mencionado de Michael Neumann acerca de Der Zauberberg, no apenas abrangente e pormenorizado, mas tambm bastante atual, publicado na grande edio comentada de Frankfurt (Groe kommentierte Frankfurter Ausgabe) em 2002.

    Como apoio para essa reconstruo da histria da gnese do livro, sero utilizadas as cartas e acima de tudo os dirios do prprio Thomas Mann, que documentam seno todo o processo pelo menos uma parte dele, uma vez que os dirios que restaram do perodo em questo abrangem somente os anos entre 1918 e 1921, isto , parte da segunda fase da histria da gnese do romance. Apesar de estar ciente do carter subjetivo e, por conseguinte, passvel de desconfiana, desses registros pessoais de Mann, a fonte que tomei como base principal para a elaborao da histria da gnese do romance, exatamente por acreditar que constituam uma documentao importante quanto a isso, e que deva ser exposta ao pblico brasileiro, pois tambm no est traduzida para o portugus. No segundo captulo, ser apresentada uma investigao de sete subcaptulos selecionados do romance (mais o Propsito). Embora o tema do tempo seja algo que permeie o romance do incio ao fim, sendo relevante em todos os seus desdobramentos, seja como temtica ou como efeito representado mediante a tcnica narrativa, o que se prope aqui investigar as sees em que haja referncias aparentemente mais consistentes acerca da representao do tempo no romance, marcadas ou por intervenes digressivas do narrador ou pela representao de pensamentos do protagonista, ou ainda de dilogos entre este e outras personagens. Os aspectos centrais destacados no decorrer da anlise pormenorizada e sempre prxima ao texto desses subcaptulos selecionados, alm dos referidos no item anterior como o da relao notadamente desproporcional entre o tempo narrado e o tempo do narrar, sero os meios narrativos aplicados pelo autor para apoiar o processo da crescente destemporalizao do espao do sanatrio, culminando finalmente num no-tempo (Un-Zeit), isto , na completa suspenso do tempo, bem como os elementos que simbolizam a mensurabilidade deste: o relgio, o calendrio, o termmetro, entre outros.

    Os subcaptulos selecionados para anlise so: Propsito; A chegada; Digresso sobre o sentido do tempo; Sopa eterna e clareza repentina; Transformaes; Neve; Passeio pela praia e O trovo, que encerra o romance. Quando, porm, se mostrar necessria ou adequada

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    para a argumentao desses itens a referncia de algum episdio especfico de outros subcaptulos do romance, esses episdios sero comentados dentro da anlise dos subcaptulos escolhidos para a investigao. Por fim, todas as tradues entre colchetes das citaes em alemo so da minha prpria responsabilidade, exceto aquelas do texto do romance, para as quais utilizei a traduo consagrada de Herbert Caro de 1952, com determinadas ressalvas em notas de rodap.

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    1. A GNESE DA MONTANHA MGICA

    Como observa Michael Neumann (2002, p. 9)4, aps o xito espetacular de Buddenbrooks (Os Buddenbrooks), que publicara j no seu vigsimo sexto ano de vida (1901) e que lhe trouxera fama de modo quase instantneo, Thomas Mann se via diante da necessidade de produzir uma outra obra altura. Tendo em vista sua ambio artstica e autocrtica sbria, provavelmente sentia a presso no sentido de criar no apenas algo com a mesma qualidade e impacto que o primeiro romance, mas tambm algo que estivesse, ou pela temtica ou pela forma, mais de acordo com a modernidade e por isso fosse adequado poca em que devia atuar. Os Buddenbrooks eram uma reproduo da frmula do romance pico burgus da Frana e da Rssia do sculo XIX e, por isso, algo sedimentado no sculo j ido. Essa natureza anacrnica do romance no passava despercebida ao autor, pois estava ciente da importncia da nova obra que devia conduzi-lo modernidade, de modo a estabelecer um prestgio slido e duradouro a partir desse sucesso inicial atingido de maneira to imediata (Id., ibid.). A novela Tonio Krger (1903) foi uma tentativa de estabelecer essa relao em uma forma literria breve (talvez por insegurana de Mann ou excessivo receio diante de seu desafio5), mas que ofereceu eher autobiographisch durchtrnkte Knstlerpsychologie denn Kunstexperiment (Id., ibid.) [antes uma psicologia de artista impregnada de elementos autobiogrficos que experimento artstico propriamente dito]. Logo em seguida veio o drama medieval Fiorenza (1905), mas que se mostrou imprprio para a encenao. Era uma pea de romancista. Com isso tornou-se claro para o autor que no seria por meio do gnero dramtico que encontraria a forma que procurava. O romance principesco Knigliche Hoheit (Sua Alteza Real) (1909), assim como Tonio Krger, demonstrava acima de tudo uma acentuada auto-anlise psicolgica. Os rascunhos para a novela Bekenntnisse des Hochstaplers Felix Krull (Confisses do impostor Felix Krull), que comeou a formular em seu Caderno de notas (Notizbuch) em 1905, permaneceram rascunhos ou como captulos avulsos publicados em peridicos nos anos subseqentes, e que s seriam ordenados e lanados em forma de romance dcadas depois, em

    4 Seus comentrios, conforme indicado na Metodologia, serviro de base para a elaborao deste captulo.

    5 Como se depreende de suas cartas e de biografias a seu respeito, Thomas Mann no cogitava em escrever

    romances no incio de sua carreira, mas somente contos, nos quais tambm no depositava muita confiana. S escreveu Buddenbrooks por sugesto de seu editor Samuel Fischer na clebre carta de 1897 (ver, por exemplo, Prater, 1995, p. 45). Mesmo com o encorajamento do editor e, mais tarde, com o sucesso de Buddenbrooks, tendia a oscilar sempre entre a segurana e a dvida diante de seus projetos, e conceber quase todos os textos que mais tarde tornar-se-iam romances volumosos inicialmente como contos curtos (ver Mann, 1997 e Harpprecht, 1996).

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    1954, no penltimo ano de vida do autor, ainda como romance inacabado (visto que somente a primeira parte fora concluda). Da viagem que Mann empreendera com sua esposa para o Lido em Veneza em 1911 originou-se Der Tod in Venedig (Morte em Veneza) (1912), que traz as reflexes de um escritor alemo sobre seus prprios meios e seus conflitos pessoais com a idia de beleza, representada na novela pelo jovem polons Tadzio, que por sua vez trazia caractersticas de Hermes. Esse aspecto particular da obra alude ao mito dionisaco da Grcia antiga (que veremos ainda mais adiante), que consistia na caracterizao do instintivo e emocional, da conduta entregue s impresses irracionais. Apesar da profundidade psicolgica e complexidade da novela terem sido aclamadas pela crtica da poca e o seu peso literrio ter sido reconhecido, no sentido de terem j estabelecido Thomas Mann dentro da literatura alem contempornea (tambm aps o sucesso crescente de seu primeiro romance que j completava uma dcada), era algo que talvez ainda no correspondesse substncia que o autor pretendia alcanar, pois no era uma obra pica do porte de Buddenbrooks6.

    Pouco antes de concluir a novela, porm, em maio de 1912, veio a viagem a Davos, no Canto de Graubnden na Sua.

    1.1. A primeira fase (1912-1915): Nietzsche e Wagner

    Em suas memrias, Katia Mann, esposa do romancista, escreve:

    1912 bekam ich eine kleine Lungenaffektion. Es war ein Lungenspitzenkatarrh, eine verschleppte, geschlossene Tuberkulose, aber ich mute verschiedene Male zum Kuraufenthalt ins Hochgebirge. Man schickte mich zuerst auf ein halbes Jahr, von Mrz bis September 1912, ins Waldsanatorium nach Davos, im nchsten Jahr auf eine Reihe von Monaten nach Meran und Arosa, und zuletzt, [] nochmals sechs Wochen nach Clavadel bei Davos. Aber ich war nicht schwer krank. Es bestand keine Lebensgefahr, und mglicherweise wre die Geschichte, wren wir nicht zu Sanatoriumsaufenthalten in der Lage gewesen, von selbst wieder gutgeworden, was wei man. Es war Sitte, wenn man die Mittel dazu hatte, wurde man nach Davos oder Arosa geschickt. Mein Mann hat mich im Sommer 1912 in Davos besucht und war von dem ganzen Milieu so impressioniert, auch von allem, was ich ihm so erzhlte, da er gleich daran dachte, ber Davos eine Novelle zu schreiben, quasi als groteskes Nachspiel und Gegenstck zum Tod in Venedig. Aus der geplanten Novelle wurde dann der Zauberberg (MANN, 1974, p. 78, itlicos nossos).

    [Em 1912 eu contra uma pequena infeco pulmonar. Era um catarro na ponta do pulmo, uma tuberculose descuidada, fechada, mas que me forou vrias vezes cura no alto das montanhas. Primeiramente fui, por um semestre, de maro a setembro de 1912, para o

    6 Ver Beddow, 2003, p. 137: We, of course, now know that Buddenbrooks was not to be Manns only work on

    the grand scale, but in July 1912, when Death in Venice appeared, he himself knew no such thing. What he did know was that the kind of fame he had tasted and longed to extend required more big novels, and highly acclaimed ones at that, for its sustenance.

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    Waldsanatorium em Davos; depois, no ano seguinte, por vrios meses para Meran e Arosa e, por ltimo, para Clavadel perto de Davos por mais seis semanas. Mas o meu problema no era grave. No havia perigo de vida, e possivelmente teria passado sozinho se no tivssemos tido condies para estadias nas montanhas. Vai saber. Era costume na poca, quando se possua meios, enviar os doentes ou para Davos ou para Arosa. Meu marido me visitou em Davos no vero de 1912 e ficou to impressionado com todo o ambiente e tambm com o que lhe contei, que logo pensou em escrever uma novela sobre Davos, quase como um eplogo grotesco ou contraste para a Morte em Veneza. Essa novela tornou-se ento a Montanha mgica].

    Essas suas reminiscncias dos meses que passou no Waldsanatorium nos Alpes de Davos7, publicadas na dcada de 1970, alm dos relatos do prprio romancista8, no deixam dvidas acerca de como se originou a idia para o romance, naqueles dias ainda planejado como uma breve novela que serviria de contraponto satrico para o que estava desenvolvendo em A morte em Veneza, talvez ainda por certa timidez ou receio em face do desafio de uma obra de flego longo.

    A primeira vez em que aparece uma possibilidade de ttulo para a histria naquele mesmo ano de 1912, quando Mann registra em seu Caderno de notas: Vier Novellen, die zu machen sind [quatro novelas a realizar]; Der verzauberte Berg [A montanha encantada]. O ttulo definitivo foi atingido a partir de uma variante desse, logo em seguida: Der Zauberberg [A montanha mgica] (Neumann, 2002, p. 58).

    Os crticos parecem concordar que o termo Zauberberg tenha sido retirado por Thomas Mann provavelmente de Die Geburt der Tragdie aus dem Geiste der Musik [traduzido como O nascimento da tragdia ou Helenismo e Pessimismo] de Friedrich Nietzsche (1844-1900)9, em que este apresenta e examina os contrastes entre dois arqutipos gregos, Apolo e Dionsio, como representantes da viso de mundo racionalista (humanista) e instintiva (selvagem), respectivamente. A viso apolnea representava a conduta baseada no bom senso e no equilbrio valorizando o pensamento. A viso dionisaca, por sua vez, representava uma conduta entregue s emoes, aos instintos carnais e primitivos. Nietzsche acreditava que somente a conduta nobre e digna de Apolo no era suficiente para o desenvolvimento do esprito do homem, mas que tambm era necessrio para a sua plenitude o conhecimento de seu lado oposto: o mundo obscuro e cruel de Dionsio. Essa polaridade mtica entre Apolo e Dionsio se constituiria num aspecto-chave para a interpretao do

    7 O Waldsanatorium Davos do Dr. Friedrich Jessen, ao contrrio de outros sanatrios da poca, no foi

    demolido: continua l e, em 1957, foi reformado e transformado no Waldhotel Bellevue, hotel alpino requisitado hoje em dia geralmente por entusiastas do esqui e outros esportes de inverno. Quanto representao da cidade de Davos em Der Zauberberg, ver Sprecher, 1996. 8 Ver, para isso, Mann, 1997, p. 126-127. Tambm: Mann, 1939, p. VII.

    9 Ou ainda do conto Das Marmorbild de Joseph von Eichendorff (1818). Para outras possveis fontes, ver

    sobretudo Neumann, 2002, p. 59.

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    romance manniano, uma vez que esses dois elementos viriam a ser representados no confronto pedaggico entre as figuras dos preceptores Settembrini e Naphta em relao do dionisaco Mynheer Peeperkorn com seu pan-erotismo (Stresau, 1963, p. 147) e, acima de tudo, no sonho do protagonista Hans Castorp narrado no item Schnee (Neve) do Captulo VI, decisivo para a compreenso do romance como um todo.

    Nesse que era seu primeiro livro, Nietzsche escreve no Captulo 3:

    Jetzt ffnet sich uns gleichsam der olympische Zauberberg und zeigt uns seine Wurzeln. Der Grieche kannte und empfand die Schrecken und Entsetzlichkeiten des Daseins: um berhaupt leben zu knnen, mute er vor sie hin die glnzende Traumgeburt der Olympischen stellen (Apud Neumann, p. 59, itlico nosso).

    [Agora se nos abre, por assim dizer, a montanha mgica do Olimpo e nos mostra as suas razes. O grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possvel de algum modo viver, teve de colocar ali, entre ele e a vida, a resplendente criao onrica dos deuses olmpicos (NIETZSCHE, 1992, p. 36, itlico nosso)].

    Thomas Mann percebeu nessa obra do filsofo alemo visivelmente uma fonte histrico-filosfica para a dualidade entre intelecto e natureza (Wessell, 2004, p. 131) que pretendia introduzir na sua histria como um dos motivos centrais. Como se depreende do seu Esboo biogrfico (ver nota 8) e de suas cartas entre os anos de 1912 e 1917 (Neumann, 2002, p. 19), Mann ainda no tinha, porm, de maneira alguma uma viso clara sobre que direo dar ao seu novo empreendimento, se seria um conto ou um romance, e muito menos tinha ainda expressado de forma direta a inteno de problematizar o tempo.

    Em 1925, o romancista afirma em retrospecto que, em meados de 1914, por ocasio do incio da Guerra, tinha escrito das erste Drittel des ersten Bandes [a primeira tera parte do primeiro volume] (Neumann, 2002, p. 20), ou seja, em torno de 200 pginas. No dia 3 de agosto de 1915, em carta a Paul Amann, revela para que direes estava encaminhando seu projeto, aparentemente j incorporando algumas das polaridades que mais tarde seriam combinadas com o dualismo nietzscheano do apolneo-dionisaco:

    [...] eine Geschichte mit pdagogisch-politischen Grundabsichten, worin ein junger Mensch sich mit der verfhrerischsten Macht, dem Tode, auseinanderzusetzen hat und auf komisch-schauerliche Art durch die geistigen Gegenstze von Humanitt und Romantik, Fortschritt und Reaktion, Gesundheit und Krankheit gefhrt wird, aber mehr orientierend und der Wissenschaft halber, als entscheidend. Der Geist des Ganzen ist humoristisch-nihilistisch, und eher schwankt die Tendenz nach der Seite der Sympathie mit dem Tode. Der Zauberberg heit es, etwas vom Zwerg Nase, dem sieben Jahre wie Tage vergehen, ist darin, und der Schlu, die Auflsung, ich sehe keine andere Mglichkeit, als den Kriegsausbruch. Man kann als Erzhler diese Wirklichkeit nicht ignorieren, und ich glaube ein Recht auf sie zu haben, da das Vorgefhl davon in allen meinen Conceptionen war [] (Apud Neumann, 2002, p. 21).

  • 23

    [[] uma histria de intenes pedaggico-polticas, em que um jovem deve confrontar-se com a mais tentadora das foras, a morte, e conduzido de forma grotesco-horripilante atravs dos contrastes espirituais de humanidade e romantismo, progresso e reao, sade e doena, mas de modo mais orientador, por razes cientficas, que decisivo. O esprito do conjunto humorstico-niilista, e a tendncia oscila antes em direo ao lado da simpatia com a morte. Chama-se A montanha mgica, e tem algo do Zwerg Nase, que sente a passagem de sete anos como se fossem dias. Para a concluso, o desenlace, no vejo outra possibilidade alm daquela da deflagrao da Guerra. Como narrador, no se pode ignorar esta realidade, e creio ter direito a ela, visto que a pressentia em todas as minhas concepes [...]].

    Aqui j se desenha a idia inicial do carter grotesco, humorstico e parodstico, alm do aspecto pedaggico-educativo da histria, que mais tarde caracterizaria sua relao irnica10 com a tradio do romance de formao (Bildungsroman) alemo, iniciada, segundo Mazzari (1999, p. 67), por Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) com o romance Wilhelm Meisters Lehrjahre (Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister), de 1795-9611. O mais importante, no entanto, que, com a referncia ao conto de fadas de Wilhelm Hauff (1802-1827) Der Zwerg Nase, dem sieben Jahre wie Tage vergehen [que sente a passagem de sete anos como se fossem dias]12, Mann deixa entrever nesse momento, pela primeira vez na correspondncia, a inteno de representar no enredo a percepo humana (subjetiva) do fluxo (objetivo) do tempo. Com a meno da realidade da guerra que no pode ser ignorada pelo narrador, ele d igualmente indcios do delineamento histrico-temporal em que o romance seria situado.

    Alm da referncia ao conto maravilhoso, interessante observar que o autor, embora no tenha expressado isto diretamente a algum dos destinatrios de suas cartas, j jogava com a noo dos sete anos (que o heri passaria no sanatrio) quando definiu o ttulo do romance. A sua ntima relao com a obra do compositor alemo Richard Wagner (1813-1883) se faz notar tambm aqui, quando ao que tudo indica estava pensando, entre outras coisas, no Tannhuser (1845) e no seu Venusberg (que representa o Hrselberg da regio de Eisenach), e nas palavras do heri a Vnus, j cogitando a criao de uma problemtica em torno da mensurabilidade do tempo: Die Zeit, die ich hier weil, ich kann sie nicht ermessen: Tage, Monde gibts fr mich nicht mehr [...] [O tempo que passo aqui, no posso mais medi-lo. Dias e luas no existem mais para mim...] (Ato I, Cena II).

    10 Sobre o irnico e a ironia em Der Zauberberg e outras obras de Thomas Mann, ver Baumgart, 1966.

    11 Nesse contexto, Mazzari no menciona, porm, o romance Geschichte des Agathon (Histria de Agathon) do

    celebrado escritor e tradutor Christoph Martin Wieland (1733-1813). Tendo sido publicado em 1766-67, com grande sucesso, o livro narra a trajetria do jovem ateniense Agathon de seu idealismo ingnuo inicial at sua maturidade mais realista e, dessa maneira, consta como sendo de fato o primeiro romance de formao na histria da literatura alem, servindo inclusive de modelo e inspirao para o Wilhelm Meister de Goethe. 12

    Aqui se poderia pensar tambm no Gnesis, 29:20, mesmo apesar de as razes para a peculiar percepo do tempo neste caso serem diferenciadas: Assim Jac serviu por Raquel sete anos, que lhe pareceram dias [...].

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    O elemento dionisaco que Mann encontra em Nietzsche tambm exerce um papel no Tannhuser, justamente na forma da natureza sensual do relacionamento entre o protagonista e Vnus, que alude por sua vez quele que Ulisses (Odisseu) teve com Calipso na Odissia de Homero, durante aqueles sete anos. O tdio de que sofre Tannhuser durante a sua estadia no Venusberg no deixa de representar tambm a noo de tempo esttico ou abolido (aufgehoben) que o autor viria a desenvolver no seu prprio romance. Alm, claro, da implicao dos sete anos, tambm presente no poema de Heine sobre a lenda de Tannhuser (1836)13, que Thomas Mann certamente conhecia.

    Em 1915, todavia, outros assuntos mais urgentes fizeram com que ele interrompesse a composio do romance para dedicar-se a outro escrito de natureza distinta: um texto de carter ensastico a respeito da guerra que havia estourado na Europa no ano anterior. Esse se tornou as controversas Betrachtungen eines Unpolitischen (Consideraes de um apoltico), publicadas em 1918, concomitantemente com o fim do conflito. Logo em seguida, contudo, era tempo de retomar o romance de Davos.

    1.2. A segunda fase (1918-1924): Spengler e Einstein

    Logo aps a concluso das Consideraes, Mann, porm, estava ainda ocupado com a composio de mais duas produes de menor porte: a novela Herr und Hund (Dono e co) e o poema em hexmetros Gesang vom Kindchen (Canto da criancinha), que necessitavam ainda serem concludas antes que pudesse retomar o romance interrompido, o qual aparentemente no perdia de vista14. Quando concluiu os dois textos, que chamou de dois idlios, pde ento direcionar seus pensamentos de volta ao Zauberberg15 e, a partir da, como se depreende das suas anotaes de dirio do ms de abril de 191916, realizar uma leitura crtica de tudo o que havia escrito at ento, a partir da qual concluiu que necessitava fazer alteraes significativas no manuscrito antes que pudesse dar continuidade narrativa. No dia 20 de abril de 1919 (Id., ibid., p. 205), o romancista registra em seu dirio:

    13 Ver Heine, 1977, Der Tannhuser, versos 7 e 8: Da zog er in den Venusberg, / Blieb sieben Jahre drinnen

    [ento ele entrou na montanha de Vnus e l permaneceu por sete anos]. Para mais detalhes sobre os sete anos, ver Neumann, 2002, p. 60. 14

    Ver Tagebcher, 28/09, 14/10, 15/10 e 4/12/1918. 15

    Id., ibid., 25/03/1919: Begann das Buch ber die Weltmaurerei mit dem Bleistift zu studieren, in Hinsicht auf Settembrini. Denn ich fange schon an, meine Gedanken dem Zauberberg wieder zuzuwenden [...] [Comecei a estudar com o lpis na mo o livro sobre a maonaria, pensando no Settembrini, pois j comecei a direcionar meus pensamentos de volta ao Zauberberg [...]]. 16

    Id., ibid., 08/04, 09/04, 10/04, 11/04, 12/04, 15/04, 16/04, 17/04, 19/04.

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    Ich begann nach 4jhriger Unterbrechung wieder am Zauberberg zu schreiben, d.h. ich fing das 1. Kapitel mit neuer Einleitung und in der Absicht, es um die Figur des Grovaters Castorp zu erweitern, unter dem Titel Die Taufschale wieder an []. Die neue Einleitung schlgt das Zeit-Thema erstmalig an (sublinhados nossos).

    [Retomei A montanha mgica aps 4 anos de interrupo. Quer dizer, comecei o 1 captulo novamente com uma nova introduo, com a inteno de estend-lo no que diz respeito ao av Castorp, sob o ttulo de Pia batismal [...]. A nova introduo toca o tema do tempo pela primeira vez].

    Essa nova introduo que toca o tema do tempo pela primeira vez trata-se provavelmente do que veio a ser o Vorsatz (Propsito), que concluiu quatro dias mais tarde (24/04, Id., ibid., p. 211). Nessa nota de dirio figura mais uma indicao de que Mann tencionava tratar de questes de ordem temporal em seu romance, e que j quis introduzi-las logo no incio, nisto que viria a ser uma apresentao de fato do propsito do seu narrador.

    O apontamento de 14/05 (Id., ibid., p. 235) nos diz ainda: In der historischen Erscheinung des Grovaters vermischt sich das Thema der Zeit mit der Sympathie m. d. Tode [Na apario histrica do av o tema do tempo se mistura com o da simpatia com a morte]. Em seguida, com a reviso do segundo captulo, que descrevia a chegada do heri ao sanatrio, desde o incio j se revela a representao da nova idia do tempo, no seguinte trecho ao qual retornaremos oportunamente:

    Zwei Reisetage entfernen den Menschen und gar den jungen, im Leben noch wenig fest wurzelnden Menschen seiner Alltagswelt, all dem, was er seine Pflichten, Interessen, Sorgen, Aussichten nannte, viel mehr, als er sich auf der Droschkenfahrt zum Bahnhof wohl trumen lie. Der Raum, der sich drehend und fliehend zwischen ihn und seine Pflanzsttte wlzt, bewhrt Krfte, die man gewhnlich der Zeit vorbehalten glaubt; von Stunde zu Stunde stellt er innere Vernderungen her, die den von ihr bewirkten sehr hnlich sind, aber sie in gewisser Weise bertreffen. Gleich ihr erzeugt er Vergessen; er tut es aber, indem er die Person des Menschen aus ihren Beziehungen lst und ihn in einen freien und ursprnglichen Zustand versetzt, ja, selbst aus dem Pedanten und Pfahlbrger macht er im Handumdrehen etwas wie einen Vagabunden. Zeit, sagt man, ist Lethe; aber auch Fernluft ist so ein Trank, und sollte sie weniger grndlich wirken, so tut sie es dafr desto rascher (MANN, 2000, p. 12).

    [Dois dias de viagem apartam um homem e especialmente um jovem que ainda no criou razes firmes na vida do seu mundo cotidiano, de tudo quanto ele costuma chamar seus deveres, interesses, cuidados e projetos; apartam-no muito mais do que esse jovem imaginava enquanto um fiacre o levava estao. O espao que, girando e fugindo, se roja de permeio entre ele e seu lugar de origem, revela foras que geralmente se julgam privilgio do tempo; produz de hora em hora novas metamorfoses ntimas, muito parecidas com aquelas que o tempo origina, mas em certo sentido mais intensas ainda. Tal qual o tempo, o espao gera o olvido; porm o faz desligando o indivduo das suas relaes e pondo-o num estado livre, primitivo; chega at mesmo a transformar, num s golpe, um pedante ou um burguesote numa espcie de vagabundo. Dizem que o tempo como o rio Letes17; mas

    17 Referncia ao mitolgico rio, em cujas guas os mortos deixavam as lembranas da vida terrena (Mazzari

    em Goethe, 2007, p. 34), e que caracteriza dessa forma uma possvel aluso cena de abertura do Fausto II. Sobre o esquecimento que suas guas provocavam, ver tambm p. 39 (nota 4) da referida edio.

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    tambm o ar de paragens longnquas representa uma poo semelhante, e seu efeito, conquanto menos radical, no deixa de ser mais rpido (MANN, 1952, p. 8)].

    Com a anotao do dia 09/06 (Mann, 2003, p. 261), o autor parece aproximar-se de uma definio mais precisa do seu objetivo: Repetition des 2. Kapitels. Ich dachte, das erste bedrfe noch der Verbesserung, man msse H.C.s geistige Zeitbestimmtheit, seine geistig-sittliche Indifferenz, Glaubenslosigkeit und Aussichtslosigkeit zeigen [Repetio do 2 captulo. Penso que o primeiro ainda necessite ser aprimorado. A determinao temporal espiritual de H.[ans] C.[astorp], sua indiferena espiritual e moral, sua incredulidade e falta de perspectiva devem ser evidenciadas]. Tendo isso em mente, dez dias depois (19/06, Id., ibid., p. 268) ele anota de que maneira isso deveria ser lido nas entrelinhas:

    [...] Ich bedachte in diesem Zusammenhang, da der sittliche Unterschied zwischen Kapitalismus und Sozialismus darum geringfgig ist, weil beiden die Arbeit als hchstes Prinzip, als das Absolute gilt. Es geht nicht an, zu thun, als sei der Kapitalismus eine schmarotzerische und unproduktive Lebensform. Im Gegenteil, die brgerliche Welt kannte keinen hheren Begriff und Wert, als den der Arbeit, u. dies sittliche Prinzip wird im Sozialismus erst offiziell, es wird wirtschaftliches Prinzip, politisches und menschliches Criterium, vor dem man besteht oder nicht, und dies so sehr, da niemand fragt, warum und wieso eigentlich Arbeit diese unbedingte Wrde und Weihe besitzt. []

    [[...] Pensei nesse contexto que a diferena moral entre capitalismo e socialismo insignificante, pois para ambos o trabalho representa o mais alto e absoluto princpio. No apropriado fazer como se o capitalismo fosse uma forma de vida parasita e improdutiva. Pelo contrrio: o mundo burgus no conheceu conceito ou valor mais alto que o do trabalho, e esse princpio moral s oficializado no socialismo, torna-se princpio econmico, critrio poltico e humano, perante o qual existimos ou no, e de forma to marcante que ningum questiona por que ou como o trabalho possui essa dignidade e consagrao incondicionais [...]].

    Com essas formulaes o romance social burgus (Gesellschaftsroman) bem como o romance sobre o tempo (Zeitroman) iam ganhando forma.

    Logo depois, com a leitura do filsofo alemo Oswald Spengler (1880-1936), os conceitos de tempo e tempo histrico comeam a tornar-se realidade mais palpvel para o autor, no sentido de que se tornava mais clara para ele a idia de que essa temtica temporal, dada a sua pertinncia para a poca, devia ocupar uma posio central em Der Zauberberg. O que terminaria em rivalidade, concorrncia e antipatia (do lado do prprio Mann), alm de uma total negao da obra do filsofo18, iniciou-se com um entusiasmo apaixonado.

    No dia 09/05/1919 (Id., ibid., p. 231) Thomas Mann havia registrado a encomenda de Der Untergang des Abendlandes (O declnio do Ocidente) de Spengler. O incio da leitura

    18 Para esse desenvolvimento da relao de Mann com Spengler, ver sobretudo Koopmann, 1999, p. 12-14.

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    est documentado no dia 22/06 (Id., ibid., p. 271): Nach Tische in Spenglers Untergang des Abendlandes geblttert u. gelesen, das offenbar etwas fr mich ist [Aps o jantar folheei e li um pouco do Declnio do Ocidente de Spengler, que sem dvida pertinente para mim]. No mesmo dia, noite, o autor ainda registra, de maneira apologtica, a continuao da leitura que iniciara durante a tarde. As notas do dirio que se seguem parecem pontuar de forma patente com que entusiasmo (como sempre tendo em vista, claro, a sua prpria obra em andamento) se deu esse primeiro contato do romancista com a obra de Spengler, e de que maneira ele observa neste a reflexo sobre o tempo que aparentemente j o ocupava antes mesmo de t-lo lido. No dia 26/06 (Id., ibid., p. 274) figuram as seguintes anotaes:

    Fuhr abends mit Spenglers groem Werk fort, beendete die Einleitung und habe das wachsende Gefhl, hier einen groen Fund gethan zu haben, der vielleicht in meinem Leben Epoche machen wird. Die Art, wie das historische Problem hier zum Zeitproblem wird, ist berckend im geistigsten Sinn. Es ist merkwrdig, da ich die neue Szene mit der Taufschale im Zbg. schrieb, bevor ich das Spenglersche Buch zur Hand genommen.

    [Prossegui noite na leitura da grande obra de Spengler. Terminei a introduo e tenho a crescente impresso de ter feito aqui uma grande descoberta, que talvez faa poca em minha vida. O modo com que o problema histrico torna-se aqui problema do tempo fascinante no mais intelectual dos sentidos. curioso como escrevi a nova cena com a pia batismal na MM antes de ter tomado em mos o livro spengleriano].

    Na introduo da sua obra, Spengler apresenta seu propsito de uma abordagem morfolgica da Histria, levando em considerao o princpio de causalidade e a idia de Destino. O que ele prope uma anlise gentico-biolgica das civilizaes, entendidas como organismos histricos vivos, e as suas respectivas culturas com o objetivo de mostrar a previsibilidade ou a possibilidade de previso de seu destino (o Schicksalsproblem como sendo de fato o problema da Histria, que por sua vez acaba transformando-se em problema do tempo19, uma vez que est condicionado a ele). Para Spengler, a cultura substancial, e a civilizao, um processo secundrio da decadncia das culturas. Essa morfologia sugere justamente que todas as grandes culturas se desenvolvem de acordo com um esquema comum (desordem original, tempo de formao, maturidade e declnio), em que o destino de cada uma dessas culturas submetido ao tempo, sendo que a decadncia e o declnio seguem invariavelmente no ciclo geral de mil anos.

    19 Spengler, 2007, p. 69 (Introduo). Sobre o aspecto gentico, ver p. 64.

  • 28

    A relao dessa concepo com a da cena da pia batismal20 de Der Zauberberg a que Thomas Mann se refere repousa, porm, no nesse aspecto do desenvolvimento das civilizaes, mas particularmente naquele do parentesco fisionmico-espiritual entre o jovem heri e seu av representado no trecho em apreo do romance, em que a sua infncia junto do av narrada mediante uma evocao pica da histria da famlia. O menino, batizado com o nome do av, Hans Lorenz Castorp, sentia um parentesco forte com ele, muito mais forte que com seus prprios pais, was mglicherweise auf Sympathie und physischer Sonderverwandtschaft beruhte, denn der Enkel sah dem Grovater hnlich [...] (Mann, 2000, p. 38) [[o que] talvez se devesse a alguma simpatia ou afinidade fsica particular, pois o neto se parecia com o av (Mann, 1952, p. 32)]. Thomas Mann identificou aqui uma semelhana curiosa (merkwrdig) entre o elemento da sucesso atvica de neto a av, simbolizado na cena da pia batismal, que escreveu antes de ter lido o Declnio, e um comentrio particular de Spengler numa nota de rodap21, que, segundo Belich (2002, p. 61, nota 164), o romancista destacou em seu exemplar:

    Das seelische Verhltnis zwischen Grovater und Enkel hngt damit zusammen. Daher stammt die berzeugung primitiver Vlker, da die Seele des Grovaters im Enkel zurckkehre, und die verbreitete Sitte, dem Enkel den Namen des Grovaters zu geben, der mit seiner mystischen Kraft dessen Seele wieder in die Krperwelt bannt (Apud Id., Ibid., p. 61).

    [O parentesco psquico entre av e neto est ligado a isso. Da se origina a convico dos povos primitivos de que a alma do av retorna no neto bem como o costume tradicional de dar ao neto o nome do av, que com sua fora mstica expulsa sua alma de volta ao mundo fsico].

    Essas anotaes do autor por ocasio da leitura de Spengler documentam as origens da concepo do romance como Zeitroman, mesmo que no definam em que sentido se deve compreender aqui o problema do tempo (Zeitproblem). O primeiro registro com relao idia de temporalidade, que devia encontrar expresso em Der Zauberberg na forma tanto da discrepncia entre o tempo fsico e o tempo psicolgico quanto da representao do tempo histrico real em que os sucessos fictcios teriam lugar, veio alguns dias depois, nas notas de 02/07 (Mann, 2003, p. 276) daquele ano de 1919, a partir das quais se conclui que a questo do tempo, no sentido de sua relao com os desenvolvimentos da Histria, j ocupava o romancista desde a concepo do livro, em 1912:

    20 Quanto a detalhes sobre a origem desse motivo, ver Neumann, 2002, p. 136.

    21 Para a citao em Spengler, ver 2007, p. 148, nota 2.

  • 29

    Es macht mir tiefen, geheimnisvollen Eindruck, zu sehen, welche Rolle in der Spenglerschen Geschichtsphilosophie das Zeitproblem spielt, das mich seit 1912 oder 13, als Spenglers Werk noch im Entstehen begriffen war, als ein Grundmotiv des Zbg. beschftigt. Einzelheiten wie die physisch-seelische Sonderverwandtschaft des Enkels mit dem Grovater habe ich nachgetragen, unmittelbar bevor ich den Untergang, durch den Ruf des Buches veranlat, aber auch durch Ahnung, hier etwas Zugehriges zu finden, zur Hand nahm. Die Erfahrung besttigt mir aufs neue eine ungewhnliche Sensitivitt, die ich mir zuschreibe, und die meine Einsamkeit mit allem hheren Denken und Planen der Zeit in sympathetische Beziehung setzt. Da das Problem der Zeit fr Philosophen und Trumer um 1912 aktuell wurde und in ihre Produktion trat, mag an der historischen Erschtterung unserer Tage liegen, die damals noch tief unterirdisch war (itlico nosso).

    [Tem me causado uma impresso profunda e misteriosa ver que papel o problema do tempo exerce na filosofia da histria de Spengler, problema este que vem me ocupando como um motivo central da MM desde 1912 ou 13, quando o livro de Spengler ainda estava em fase de concepo. Particularidades como o peculiar parentesco fsico-espiritual do neto com o av eu acrescentei pouco antes de tomar em mos o Declnio, em virtude no s do prestgio do livro, mas tambm pelo pressentimento de que encontraria ali algo pertinente. Essa experincia volta a me confirmar uma sensibilidade incomum que costumo atribuir a mim e que coloca minha solido numa relao emptica com todos os mais altos pensamentos e empreendimentos da poca. O fato de que o problema do tempo tenha se tornado pertinente para filsofos e sonhadores por volta de 1912 e tenha sido includo em sua produo pode estar vinculado ao abalo histrico dos nossos dias, que naquela poca ainda permanecia latente].

    O que chama a ateno, porm, que, em nenhuma dessas anotaes, Thomas Mann esclarece de que modo realmente compreende o problema do tempo (Zeitproblem) em Spengler e de que maneira isso se relaciona com a sua prpria concepo de problema do tempo em seu romance em fase de desenvolvimento. Se, para Mann, o Zeitproblem em Spengler estivesse sendo entendido como o elemento que condiciona a decadncia das civilizaes, isso, primeiro, no constituiria um problema, e sim um fato inegvel, e segundo, isso no justificaria seu entusiasmo com a descoberta de O declnio do Ocidente, visto que h muito tinha uma compreenso extensa do conceito de declnio, j aplicado em Buddenbrooks quase vinte anos antes, em que tematiza o processo de decadncia mediante a representao da histria de quatro geraes da famlia Buddenbrook. O tema da decadncia era, alm disso, algo corrente desde o fim do sculo XIX, e no, portanto, algo novo trazido discusso por Spengler em 1918. Isto permanece como um ponto de interrogao neste exame dos dirios do romancista. No presente trabalho, o Zeitproblem contido em Der Zauberberg ser, de qualquer forma, compreendido acima de tudo como aquele causado pela referida discrepncia entre o tempo dos relgios (quantitativo, objetivo) e o tempo psicolgico (qualitativo, subjetivo) do protagonista, relao por meio da qual o autor estabelece, com o auxlio da tcnica narrativa, uma suspenso progressiva das medidas do tempo no sanatrio.

  • 30

    O livro de Spengler22 serve para Thomas Mann, de qualquer modo, como uma confirmao de que sua percepo do momento histrico era correta, ou pelo menos adequada, e que o seu motivo central (Grundmotiv) para o romance, o do tempo, embora representado de maneira distinta da de Spengler, era de fato algo pertinente para a poca, por ocasio do abalo histrico daqueles dias de 1919, pensado aqui possivelmente como conseqncia da Primeira Guerra na Europa e das mudanas psicolgicas e scio-econmicas trazidas por ela.

    Narcisismo parte, Mann demonstra nessas anotaes indiscutivelmente uma particular sensibilidade para detectar o que estava no ar em sua poca e incorporar essas idias em sua obra em composio. Se de fato lhe faltava imaginao ou gnio inato23, possua, em contrapartida, o poder de assimilao de material de leitura e de adaptao desse material descoberto a sua prpria produo, de modo que, aps ser mesclado com outras idias provenientes de outras fontes, se dilusse de maneira harmoniosa no conjunto homogneo, que pertencia a partir dali ento unicamente a ele. Sua intuio permitiu que percebesse a relevncia da discusso temporal no incio do sculo XX, que de fato compunha o material de especulao de outros romancistas contemporneos bem como de filsofos.

    Como foi mencionado na introduo deste trabalho, Thomas Mann parece no ter tomado contato direto com nenhum dos outros autores e filsofos (com exceo, claro, de Spengler) que escreviam tambm sobre o tempo enquanto se ocupava com a concepo de Der Zauberberg. Houve, no entanto, uma outra exceo.

    Em 1916, Albert Einstein publicou seu referido tratado Fundamento geral da teoria da relatividade, relativizando o tempo fsico a partir de acontecimentos que para um observador so simultneos, mas para outro, no. No dia 25/02/1920 (Mann, 2003, p. 386), o romancista anota em seu dirio que havia lido algo acerca da teoria da relatividade de Einstein, e, logo depois, no dia 03/03 (Id., ibid., p. 390-391), registra a leitura de uma erkenntnistheoretische Kritik der Einsteinschen Theorie [...], worin das Problem der Zeit wieder die Rolle spielt, deren heutigen Urgenz ich bei der Conception des Zbg. [...] anticipierte [crtica

    22 Para mais detalhes em torno do Zeitproblem em Spengler, ver: 2007, p. 158-168 e p. 64-70 (Introduo).

    Sobre a influncia que este exerceu na composio de Der Zauberberg, ver Koopmann, 1999, p. 19-20 e Belich, 2002. Quanto primeira recepo de Mann da obra de Spengler, ver tambm Tagebcher (2003), 05/07, 09/07, 13/07 e 24/07/1919, assim como Reents, 1998, p. 136, nota 409. 23

    Como muitos crticos e bigrafos so unnimes em afirmar, entre eles Koopmann (1983/1999), Prater (1995), Neumann (2002) e, sobretudo, Carpeaux (1999, p. 253), categoricamente: Thomas Mann muito pobre de imaginao. Ou ainda Hermann Hesse (1877-1962): Thomas Mann tem a segurana do bom gosto que provm de elevadssima formao intelectual, mas ele no tem a segurana sonamblica do gnio inato. Com isto est dito tudo: ele um escritor, um bem dotado e talvez grande escritor, mas igualmente e ainda mais um intelectual. Ele talentoso, mas no um gnio como Balzac ou Dickens (Apud Dornbusch, 1992, p. 55).

  • 31

    epistemolgica da teoria de Einstein, em que o problema do tempo exerce novamente o papel cuja atual urgncia eu antecipei durante a concepo da MM]. Segundo Neumann (2002, p. 62, nota 35), porm, no h razo para crermos que o romancista tenha atingido uma compreenso mais profunda das idias de Einstein com relao ao tempo, e sim antes que tenha retirado dela mais uma indicao de que o seu tema central para Der Zauberberg era pertinente ou relevante para aquele momento histrico.

    Quando as anotaes de 1921 terminam, no primeiro dia do ms de dezembro, encerrando assim o que restou daqueles primeiros dirios, Mann encontrava-se beira de concluir o item que abria o Captulo VI: Transformaes (Id., ibid., p. 555-556). A esta altura j estava precisamente delimitada a idia do romance do tempo, neste que um dos subcaptulos em que a temporalidade tematizada atravs de uma reflexo terica na forma de monlogo da voz narrativa. A partir daqui, a histria da concepo do romance pode ser reconstruda por meio de outras fontes, como sobretudo as cartas do perodo entre 1922 e setembro de 1924, quando o romance foi finalmente concludo24. No dia 23 de julho de 1924 (Mann, 1995, p. 213-214), em carta a Flix Bertaux, o autor descreve rapidamente o romance em fase de concluso, concentrando-se, entretanto, no motivo educativo (do Bildungsroman)25:

    Es ist ein groer Roman, den ich in den nchsten Wochen zu beenden hoffe, ein Monstrum von zwei dicken Bnden []. Es ist ein spezifisch-deutsches und grund-wunderliches Unternehmen, eine Art von Modernisierung des Bildungs- und Erziehungsromans und auch wieder etwas wie eine Parodie darauf.

    [ um romance grande, que espero concluir nas prximas semanas. Um monstro de dois espessos volumes [...] um empreendimento especificamente alemo e deveras curioso, uma espcie de modernizao do romance de formao e educao e tambm novamente algo como uma pardia do mesmo].

    No dia 27 de setembro de 1924 (Neumann, 2002, p. 46) Thomas Mann concluiu finalmente seu monstruoso empreendimento, depois de doze anos de trabalho (com interrupes) e quase um quarto de sculo aps seus Buddenbrooks, de 1901.

    24 Ver, para isso, Neumann, 2002, p. 40-46 e a correspondncia do autor em Mann, 2004.

    25 Sobre a relao de Thomas Mann com o Bildungsroman alemo, ver Neumann, 2002, p. 39 e nota 144, bem

    como Jacobs e Krause, 1989. Para uma interpretao do conceito de Bildungsroman, ver sobretudo Neto, 2005 e Mazzari, 1999, em que realizada uma anlise de Die Blechtrommmel (O tambor de lata) de Gnter Grass em perspectiva histrica, relacionando-o com o referido Wilhelm Meister de Goethe (mas que, curiosamente, no menciona Der Zauberberg dentro dessa tradio romanesca).

  • 32

    2. O TEMPO COMO TEMTICA E MEIO: UM OLHAR SOBRE SUBCAPTULOS ESCOLHIDOS DO ROMANCE

    Que Der Zauberberg tenha sido concebido, entre outras coisas, como um romance sobre o tempo (Zeitroman) fica transparente pela investigao da histria de sua gnese. A ambivalncia do conceito de Zeitroman, por um lado de romance sobre o decurso do tempo em suas vrias modalidades e por outro sobre a poca histrica na qual os acontecimentos fictcios transcorrem, tambm se torna mais ou menos evidente26. A relao parodstica intencional da sua estrutura com a do romance de formao alemo e a incorporao de elementos pedaggico-filosficos que caracterizariam uma outra ambivalncia, aquela entre realismo ctico e romantismo mstico, so igualmente sugeridas. Visto querermos tratar do romance aqui como Zeitroman, no sentido de romance sobre o escoamento do tempo e da representao desse aspecto na estrutura narrativa do livro, o que se pretende agora , mediante uma investigao de subcaptulos especficos, mostrar de que maneira Der Zauberberg pode ser caracterizado como tal.

    2.1. Vorsatz (Propsito)

    Nestas duas pginas que funcionam como uma espcie de apresentao do romance, em que o narrador j impe sua autonomia e autoridade sobre seu texto27 e que definem de que modo ele ser narrado, j se desenham algumas das ambigidades quanto representao do conceito de tempo que ho de ocupar posio central no desenrolar do livro.

    Durante a leitura do Propsito, o que se nota primeiramente uma preocupao do narrador em chamar a ateno do leitor para as conhecidas trs partes do tempo, passado, presente e futuro, assim como refletidas por Santo Agostinho em suas Confisses28.

    A primeira frase est no tempo presente:

    Die Geschichte Hans Castorps, die wir erzhlen wollen, nicht um seinetwillen (denn der Leser wird einen einfachen, wenn auch ansprechenden jungen Mann in ihm kennenlernen), sondern um der Geschichte willen, die uns in hohem Grade erzhlenswert scheint [...]. (MANN, 2000, p. 9, itlicos nossos).

    26 Ver nota 1.

    27 Ver Abadi, 1998, p. 75 e 81, tambm Ricoeur, 1995, p. 202.

    28 Ver s/d, p. 225-226: Quem ousaria afirmar que no existem trs partes do tempo, como aprendemos quando

    crianas e como ensinamos s crianas, o passado, o presente e o futuro, e que s o presente existe, porque os demais, o passado e o futuro, no existem?. Ou ainda (Id., ibid., p. 228): Se me for permitido falar assim, vejo e confesso que h trs tempos. Pode-se dizer tambm que so trs os tempos: presente, passado e futuro [...].

  • 33

    [Queremos narrar a vida de Hans Castorp no por ele, a quem o leitor em breve conhecer como um jovem singelo, ainda que simptico, mas por amor a esta narrativa, que nos parece em alto grau digna de ser relatada [...] (MANN, 1952, p. 5)].

    Isto , o narrador estabelece aqui um presente fictcio, no qual cada frase do texto produzida no momento em que o leitor a percebe. Isso faz parte da iluso do narrar, mas importante que para narrador e leitor se crie um espao do presente. A partir desse espao projeta-se o passado no qual a histria ocorreu. Concomitantemente, porm, ele projeta, a partir desse mesmo presente, o futuro no qual o leitor tomar conhecimento do texto. Esse tempo futuro retornar nos ltimos dois pargrafos do Propsito, que falam tambm da durao prevista da narrao/leitura para o leitor. Nessa mesma primeira frase que preenche o pargrafo inicial, se fala, ainda no presente, da natureza da histria, das suas qualidades: [...] diese Geschichte ist sehr lange her, sie ist sozusagen schon ganz mit historischem Edelrost berzogen und unbedingt in der Zeitform der tiefsten Vergangenheit vorzutragen (Id., ibid.) [Os fatos aqui referidos passaram-se h muitos anos j. Esto, por assim dizer, recobertos pela ptina do tempo, e em absoluto no podem ser narrados seno na forma de um remoto passado (Id., ibid.)].

    Dessa qualidade a de ser uma histria antiga o narrador deduz a obrigao de cont-la na forma do mais remoto passado (in der Zeitform der tiefsten Vergangenheit). Aquele ist vorzutragen (deve ser narrada) um particpio que expressa uma necessidade vigente tanto no presente quanto no futuro. Nesse sentido, o Propsito j introduz uma das aporias da narrativa: a de que ela torna presente no ato da leitura algo que deve ser entendido como passado. Tudo que est frente do leitor, nesse momento e de forma subjetiva, est para trs no sentido objetivo, tanto na sua qualidade de fico do protagonista Hans Castorp (que, no momento da leitura, j est mais velho ou morto) como no seu suposto contexto histrico. E o leitor poderia acrescentar ainda mas o narrador no fala disso o fato de que a histria j foi narrada, visto que tem o romance nas mos.

    No segundo e terceiro pargrafos, o narrador concretiza por que a forma do mais remoto passado adequada para essa histria:

    Das wre kein Nachteil fr eine Geschichte, sondern eher ein Vorteil; denn Geschichten mssen vergangen sein, und je vergangener, knnte man sagen, desto besser fr sie in ihrer Eigenschaft als Geschichten und fr den Erzhler, den raunenden Beschwrer des Imperfekts (Id., ibid.).

    [Isso talvez no seja um inconveniente para uma obra deste gnero, mas antes uma vantagem; necessrio que as histrias j se tenham passado. Poderamos at dizer que,

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    quanto mais se distanciam do presente, melhor correspondero sua qualidade essencial e mais adequadas sero ao narrador, este mago que evoca o pretrito (Id., ibid.)].

    Por um lado, convm s histrias que sejam passadas, isto , concludas, porque somente se pode narrar o que chegou a uma concluso. Por outro lado, a histria no somente passada, mas antiga. A, o narrador realiza mais uma distino: a idade da histria maior do que a idade medida por dias e anos:

    Es steht jedoch so mit ihr, wie es heute auch mit den Menschen und unter diesen nicht zum wenigsten mit den Geschichtenerzhlern steht: sie ist viel lter als ihre Jahre, ihre Betagtheit ist nicht nach Tagen, das Alter, das auf ihr liegt, nicht nach Sonnenumlufen zu berechnen [...] (Id., ibid.).

    [Acontece porm com a histria o que hoje em dia tambm acontece com os homens, e entre eles, no em ltimo lugar, com os narradores de histrias: ela muito mais velha que seus anos; sua vetustez no pode ser medida por dias, nem o tempo que sobre ela pesa por revolues em torno do sol (Id., ibid.)].

    Ela mais velha precisamente porque se passou ehedem, in den alten Tagen, der Welt vor dem groen Kriege, mit dessen Beginn so vieles begann, was zu beginnen wohl kaum schon aufgehrt hat (Id., ibid.) [numa poca transata, outrora, nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar marcou o comeo de tantas coisas que ainda mal deixaram de comear (Id., ibid., p. 6)]. Isto : os drsticos eventos histricos causaram um envelhecimento muito mais rpido tanto das histrias como dos homens e dos narradores. Com esse fato, a voz narrativa alude explicitamente Fragwrdigkeit und eigentmliche Zwienatur dieses geheimnisvollen Elementes (Id., ibid) [ao carter problemtico e peculiar duplicidade desse elemento misterioso (Id., ibid., p. 6)] que o tempo constitui29.

    29 Em seu comentrio, Neumann (2002, p. 128) menciona a anotao de Thomas Mann de 12/04/1919 (ver

    Mann, 2003, p. 195), na qual registra que seus dois projetos em andamento (Bekenntnisse des Hochstaplers Felix Krull e Der Zauberberg) haviam se tornado histricos, antes mesmo de serem concludos. Antes disso, no dia 14/01/1919 (Id., ibid., p. 135), Mann j havia anotado: Wir leben schnell. [...] Der Zauberberg wird am Ende, wenn er fertig ist, schon [...] nicht mehr zeitgem sein [Vivemos rapidamente. [...] A montanha mgica, no fim, quando estiver pronta, [...] j no ser mais atual]. Com esse aspecto sempre em mente, e aludindo tambm (j mencionada) nota de 02/07/1919, registra ainda em 03/03/1920 (Id., ibid., p. 391): Die Genugthuung ber meine seismographische Empfindlichkeit von damals in mehr als einer Beziehung wird beeintrchtigt und aufgehoben durch die immer und in jeder Hinsicht sich besttigende Einsicht davon u. den Kummer darber, da der Roman, wie auch der Hochst., anno 14 htte fertig sein mssen. Sein Verdienstliches ist grtenteils berholt worden durch unnatrlich rapiden Ablauf der Erlebnisse [A satisfao com a minha sensibilidade sismogrfica daquela poca em mais de um respeito vem sendo prejudicada e anulada pelo constante juzo que se confirma em todos os aspectos e pela preocupao de que o romance, assim como o impostor, deveria ter sido concludo no ano de 14. O seu mrito foi em grande parte ultrapassado pelo decurso artificialmente veloz das experincias]. Nesse sentido, o trecho do Propsito pode ser interpretado como uma estratgia preventiva do autor contra uma possvel repreenso crtica futura de que o material do romance j fosse ultrapassado para a poca de sua publicao.

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    Ainda no terceiro pargrafo, somos informados de que a histria desenrola-se, ou desenrolou-se, antes, se bem que no muito antes, da Primeira Guerra Mundial: Sie spielt, oder, um jedes Prsens geflissentlich zu vermeiden, sie spielte und hat gespielt vormals, ehedem, in den alten Tagen, der Welt vor dem groen Kriege [...] Vorher also spielt sie, wenn auch nicht lange vorher (Id., ibid.). Com isso, e com o artifcio de uma aluso direta ao tempo gramatical30 do presente, que devia ser evitado mas que o narrador, de fato, no evita , fica definido, por um lado, o tempo histrico31 que servir de referncia para a compreenso do romance, e, por outro, o tempo aproximado em que se passa a histria propriamente dita. Tendo em vista que a Guerra durou de 1914 a 1918, a histria se passa antes de 1914, isto , mais de dez anos antes da data de sua publicao, 1924, ou tantos anos mais antes de qualquer momento posterior que corresponda a um ato de leitura real.

    O estgio do presente no Propsito caracterizado pelo aspecto presente de todo ato de leitura: no momento em que o leitor toma o livro em mos e se encontra diante deste texto e l estas linhas, tudo o que descobre ali presente para ele. No s para ele, mas tambm para o narrador, que, apesar de o autor j ter formulado o seu enunciado tempos atrs, e, no que segue, na forma de remoto passado, enuncia-o sempre no presente para quem o l.

    No quarto pargrafo, percebemos a sugesto do terceiro estgio do tempo, justamente pela identificao do referido tempo gramatical, empregado agora pelo narrador (ou pelo prprio autor, como veremos mais tarde) num outro tempo verbal: Wir werden sie ausfhrlich erzhlen [...] (Mann, 2000, p. 10) [Narr-la-emos pormenorizadamente [...] (Mann, 1952, p. 6)]. Com o emprego do tempo futuro, temos essa terceira parte do tempo de que fala Agostinho: para o leitor, que no conhece a histria, ela ser conhecida mais adiante, nas pginas subseqentes, ou seja, no futuro. Para o narrador, o futuro se aplica igualmente, tendo em vista que ir apresentar sua histria ao leitor medida que este progride em sua leitura.

    Dito isso, h outras particularidades de ordem narrativa que se evidenciam nestas linhas do Propsito.

    A afirmao de que a histria ser narrada ausfhrlich, genau und grndlich, denn wann wre je die Kurz- oder Langweiligkeit einer Geschichte abhngig gewesen von dem

    30 Ver Nunes, 2003, p. 24: Os tempos dos verbos corresponderiam s fases do tempo os pretritos ao passado,

    os presentes ao presente o os futuros ao futuro [...]. Ver tambm p. 22-23. 31

    Id., ibid., p. 21: O tempo histrico representa a durao das formas histricas de vida, e podemos dividi-lo em intervalos curtos ou longos [...]. Os intervalos curtos do tempo histrico se ajustam a acontecimentos singulares: guerras, revolues, migraes, movimentos religiosos, sucessos polticos. Os intervalos longos correspondem a uma rede complexa de fatos ou a um processo (formao da cidade grega, desenvolvimento do feudalismo, advento do capitalismo, por exemplo).

  • 36

    Raum und der Zeit, die sie in Anspruch nahm? (Id., ibid.) [pormenorizadamente, com exatido e mincia, j que a sua natureza cativante ou enfadonha jamais depende do espao ou do tempo que ela exige (Id., ibid.)] nos remete dissociao entre o tempo que o narrador leva para realizar sua tarefa de narrar bem como do espao que sua narrativa ocupa e o perodo de tempo subjetivo e varivel que essa narrativa exige para ser lida isto , a durao (Dauer) da leitura. Dessa forma, isso caracteriza um confronto entre o tempo medido (objetivo) e o tempo sentido (subjetivo). A palavra alem kurzweilig cativante, divertido, ou, mais exatamente: de curta durao expressa de maneira paradoxal que um tempo objetivamente longo e repleto de eventos (pormenores) registrado subjetivamente como rpido e curto.

    O narrador irnico, atravs da aluso ao nmero sete mtico, sugere uma relao entre o tempo da escrita e o tempo narrado (erzhlte Zeit32) de sete anos que descobriramos somente no derradeiro subcaptulo do romance: no sero suficientes ao narrador die sieben Tage einer Woche [...] und auch sieben Monate nicht (Id., ibid.) [os sete dias de uma semana, nem tampouco sete meses (Id., ibid.)] para terminar seu relato. Chegando ento concluso de que ser melhor que ele desista de calcular wieviel Erdenzeit ihm verstreichen wird, whrend sie ihn umsponnen hlt. Es werden, in Gottes Namen, ja nicht geradezu sieben Jahre sein! (Id., ibid.) [o tempo que decorrer sobre a Terra, enquanto sua tarefa o mantiver enredado. Decerto no chegar Deus me livre a sete anos (Id., ibid.)]. Portanto: que ele no precise de sete anos para contar sua histria (que durar sete anos) nem o leitor de sete anos para l-la. O problema colocado aqui no , ento, somente o da dualidade temporal comum a todas as narrativas caracterizada pela oposio entre tempo do narrar (Erzhlzeit), que de modo algum representa o tempo da composio da obra33, e tempo narrado (erzhlte Zeit), mas tambm justamente o do tempo da escrita e o do tempo de leitura, que o narrador de Mann sugere de modo humorstico poderem ser equivalentes.

    Vale mencionar aqui que o tempo da narrativa pode ser medido em pginas, mas que o tempo real de cada leitura pode diferir extremamente. O ato da leitura pode ser interrompido tantas vezes quanto Thomas Mann interrompeu o ato da escrita quando estava compondo o romance, adiando todo ano a data prevista da concluso. Pode-se supor que o autor estivesse

    32 Ver Ricoeur, 1995, p. 202. Para Nunes (2003, p. 27), o tempo narrado corresponde ao tempo da histria ou

    tempo imaginrio. Para Genette (s/d, p. 31-32), igualmente tempo da histria ou tempo do significado, em oposio ao tempo do significante, que corresponderia ao tempo da narrativa. 33

    Ver Ricoeur, 1995, p. 134: O que se mede sob o nome de Erzhlzeit , por conveno, um tempo cronolgico cujo equivalente o nmero de pginas e de linhas da obra publicada, em virtude da equivalncia preliminar entre o tempo transcorrido e o espao percorrido no mostrador dos relgios. Portanto, no se trata, de forma alguma, do tempo levado para compor a obra. Genette (s/d, p. 33) classifica esse Erzhlzeit como um pseudo-tempo, pelo fato de consider-lo um falso tempo quase fictcio que vale por um verdadeiro.

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    consciente das incertezas e contingncias que reinam sobre nossos propsitos (!) e que estabelecem outro paradoxo do tempo: o que se prev como futuro nunca corresponde quilo que chega como presente. Mesmo podendo estender nossa imaginao ao futuro, este fica sempre varivel at o momento em que o presente o transforma em passado, que ento permanece completamente invarivel. A nica parte do tempo que est nossa disposio o presente34.

    O emprego do nmero sete mtico35 est ligado a outro aspecto ambguo do Propsito e vem carregado de simbolismo. O romance no apresentado aqui somente como o relato de acontecimentos que se deram j h muitos anos e que devem ser narrados na forma do passado mais remoto, mas tambm como algo que, apesar de estar sedimentado num passado distante, ainda se estende at o presente da enunciao.

    Somos informados de que a histria se desenrola vor einer gewissen, Leben und Bewutsein tief zerklftenden Wende und Grenze (Id., ibid.) [antes de determinada mudana e de certo limite que abriram um sulco profundo na nossa vida e na nossa conscincia (Id., ibid.)]; in den alten Tagen, der Welt vor dem groen Kriege, mit dessen Beginn so vieles begann, was zu beginnen wohl kaum schon aufgehrt hat (Id., ibid.) [nos velhos tempos, naquele mundo de antes da Grande Guerra, cujo deflagrar