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TEATRO Manhas, mutretas e o escambau Rogério Viana Curitiba – Paraná - Maio/Agosto de 2009 (Todos os direitos reservados) 1

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TEATRO

Manhas, mutretase o escambau

Rogério Viana

Curitiba – Paraná - Maio/Agosto de 2009 (Todos os direitos reservados)

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Manhas, mutretas e o escambau

Personagens

Francisco – 70 anos, ex-treinador de futebol, está com AlzheimerMaria das Dores – 60 anos, empregada na casa de Francisco

Gardênia – 35 anos, filha de FranciscoTales – 25 anos, jogador de futebol

Vicente – 45 anos, pai de jogador de futebolMenino – 12 a 15 anos, amigo de Francisco

(mesmos atores em outros personagens)

Gabriela – 60 anos, mãe de Francisco, Elvira – 60 anos, mulher de FranciscoComentarista, Décio, 45 anos, Dr. Henrique, 45 anos, Kruger, 45 anos

Tales (menino) – 12 a 15 anos, Renatinho – 12 a 15 anosFrancisco (menino), 12 a 15 anos

César – 25 anos, jogador de futebol, Toninho – 25 anos, jogador de futebolGlorinha, 35 anos

Repórter 1, Repórter 2, Repórter 3, Torcedor 1, Torcedor 2, Torcedor 3, Torcedora 1, Torcedora 2

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Manhas, mutretas e o escambau

ATO 1

Sala de um apartamento de classe média, sem luxo. À esquerda uma estante com troféus, livros e fotos de futebol. Ao lado esquerdo da estante um batente com uma porta. No fundo da sala, lado esquerdo, um batente com uma porta janela. Ao lado da porta janela uma pequena estante com livros e acima dela um pequeno quadro com uma antiga carteirinha de jogador de futebol no centro. Um pequeno sofá, duas poltronas. Uma poltrona, mais ao fundo é reclinável. Uma mesa pequena ao lado do sofá, um abajur e porta-retratos pequenos. No lado direito do palco, um batente com uma porta e uma rede de futebol funciona como uma cortina, também como alambrado de estádio de futebol e, atrás dela, apenas um fundo escuro.

CENA 1 Maria das Dores - Francisco – Menino - Gardênia

(Dial de um antigo rádio – que tem um chiado de interferência - começa a se mover e ouve-se flashes de música, notícias, discursos. Sons antigos de transmissões de rádio, cantoras como Dalva de Oliveira na rádio Tupi e outros cantores antigos. Pára e lances de jogos de futebol são narrados. De vários locutores diferentes, jogos de equipes e épocas diferentes. Em pequenos flashes. As narrações acabam sempre em gol, uma após outra. Locutores eufóricos fazem as narrações. Aos poucos o som do rádio vai diminuindo e ouve-se a batida de uma porta. O som do rádio para)(Francisco entra em cena andando bem devagar, passos pequenos, tremendo e

amparado por Maria das Dores. Ela está de uniforme de empregada doméstica. Ele usa um pijama xadrez de flanela e chinelos felpudos. Ela conduz Francisco a uma confortável poltrona que tem inclinação e apoio para os pés. A poltrona está em frente a uma porta janela de onde vem uma luz solar que se projeta no chão da sala)

(Francisco senta-se com dificuldade e pende ligeiramente a cabeça em direção de onde vem a forte luz. Está prostrado. Tem uma aparência de alienação e ausência. Permanece imóvel. Maria das Dores age com suavidade e demonstra carinho)

Maria das Dores - O sol vai lhe fazer bem, seu Francisco! Volto logo com seu chá.

(Maria das Dores sai)

(Toque do telefone. Toca algumas vezes e pára)

(Maria das Dores retorna segurando uma bandeja com xícara de chá e biscoitos)

Maria das Dores – A Gardênia ligou. Logo vai chegar.

(Maria das Dores ajuda Francisco a tomar seu chá. Ele treme e quase não consegue segurar um biscoito que se desfaz em sua mão trêmula)

( O som de jogos de futebol, volta agora mais baixo e continua sendo ouvido. Aos poucos o som vai ficando mais baixo até, novamente, desaparecer)

Maria das Dores – O senhor quer ouvir alguma de suas músicas? Posso ligar?(Francisco apenas toca discretamente o braço de Maria das Dores, mexendo lentamente a cabeça negativamente)

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(pausa)

Maria das Dores – Está bem... está bem! Quando a Gardênia chegar ela coloca a música que o senhor gosta!

(Maria das Dores sai)

(Menino entra em cena e fica atrás da cortina/rede de futebol, está descalço, com um calção sujo e muito usado, camisa de botões, suja de terra. Traz uma bola de futebol bem gasta, bate-a no chão algumas vezes)

Menino – Francisco... Francisco... ! Venha, vamos brincar de bola? Acorda, seu zé preguiça... Venha!

(Francisco move lentamente a cabeça em direção ao Menino)

Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Sem você vamos perder para o time do Pedrinho! Acorda, venha logo...!

(toque da campainha)(Ao toque da campainha o menino sai. Maria das Dores entra em cena e vai em direção à porta, enxugando as mãos num avental que veste. Abre a porta e ajuda Gardênia que está com duas sacolas e um saquinho plástico com medicamentos)

Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

(Gardênia beija a face de Maria das Dores, que corresponde)

Gardênia – Obrigada, das Dores... Eu estava pertinho. Voltava da faculdade. Como ele está hoje?

Maria das Dores – Está bem... está bem... Já tomou seu chá. Comeu dois biscoitos. Está bem, sim.

Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei o que seria de mim, sem você, minha querida!

Maria das Dores– Ele não quis que eu ligasse o som, com as músicas. Ele sabia que você estava para chegar. Ele percebe, mesmo quando não digo nada!

Gardênia – Sim, ele sabe...

Maria das Dores – Tenho notado que ele tem melhorado com os novos remédios.

Gardênia – O médico disse que ele ficaria mais quieto e que, depois, estaria mais atento.

Maria das Dores – Há tempos eu não sentia nenhuma melhora nele, mas agora...

Gardênia – Ele sabe que o Coríntias foi campeão? Será que ele percebeu?

Maria das Dores – Acho que sim, acho que sim... Ele ouviu o foguetório, ontem a noite.

Gardênia – Como eu gostaria que ele pudesse estar lá no Pacaembu, vendo o seu Timão...

Maria das Dores – Mas ele não sabe que o Botafogo perdeu para o Flamengo.

(O som da narração da vitória corintiana no

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campeonato volta a ser ouvida. Narração eufórica e real. O locutor evoca as grandes conquistas do Corinthians. Vozes de antigos locutores. Maria das Dores sai levando as sacolas com compras. Gardênia fica com o saquinho de medicamentos nas mãos. Vai até a poltrona, beija a testa de Francisco. Deixa o saquinho na mesinha. Volta a beijar Francisco e afaga com carinho o seu rosto, enquanto segura sua mão. O som do rádio vai sumindo)

Gardênia – Olha papai, o Timão não deixou por menos. Mesmo empatando, foi campeão, novamente. Aquele menino que o senhor tanto gosta, o Ronaldo, não jogou muito bem, mas o time do Santos ficou preocupado com ele o tempo todo...

(Maria das Dores, retorna)

Maria das Dores – Você volta amanhã?

Gardênia – Sim, passarei, novamente. Sempre correndo... Você sabe... Mas passo, sim.

Maria das Dores – No mesmo horário?

Gardênia – Não. Virei mais cedo, antes de ir para a Faculdade.

(Gardênia volta-se para Francisco)

Gardênia – Pai, o Timão ganhou, mas seu Botafogo... coitado! Deu Flamengo, de novo!

Maria das Dores – Ah... ele deixou de ser botafoguense, faz tempo... Agora é só o timão que ele torce. Não é seu Francisco? Não é?

(Gardênia beija a testa de Francisco, abraça Maria das Dores. Ambas vão até a porta e se dão beijos no rosto. Gardênia sai e Maria das Dores sai pelo outro lado)

(Volta a narração de gols do Corinthians. Mistura de alarido de meninos. Nomes são citados. Aos poucos vai desaparecendo. O Menino volta e fica com a bola junto a rede, não entra no espaço da sala)

Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Sem você vamos perder para o time do Pedrinho!

Acorda, venha logo...!

(Francisco levanta-se bem devagar da poltrona e caminha em passos lentos em direção da cortina – rede de futebol. A voz de Francisco é suave, ainda balbuciante, mas é clara)

Francisco – Ele não quis que a das Dores ligasse o som. Ele sabia que Gardênia, sua filha, estava para chegar. Ele percebe tudo à sua volta. Percebe tudo, mas não diz nada. (pausa)Zião, você de novo?

Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Sem você vamos perder para o time do Pedrinho! Acorda, venha logo...!

Francisco – De novo, Zião?

(Francisco retorna bem devagar para sua poltrona. A voz do locutor de rádio volta a ser ouvida. Depois vai sumindo. Ao fundo, uma valsa começa a tocar)

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CENA 2Francisco – Comentarista de futebol – Tales – Gabriela, mãe de Francisco

(Francisco ouve a valsa e não se mexe na poltrona. A voz de um comentarista de rádio é ouvida, tendo a valsa como fundo musical. A empostação da voz é de antigo comentarista de futebol, com pausas)(O comentarista entra e fica ao lado da rede, fora da sala traz um microfone antigo)

Comentarista – O cheiro da grama molhada pelo orvalho sempre foi seu perfume predileto. Tem para ele o mesmo valor sentimental do perfume da mulher que tanto e sempre amou e com quem viveu por mais de cinquenta anos. O campo verdinho, fulgura imenso e majestoso aos primeiros raios da manhã. É um caríssimo tapete persa, mágico e misterioso, salpicado de pequenos diamantes e de delicados fios dourados. (pausa)

(Sentado na poltrona, Francisco complementa a fala do Comentarista)

Francisco - Ele recorda-se de um texto em que falava do gramado do campo de futebol. Um tapete persa pisado por brilhantes jogadores...O tapete é tecido de lã, tem fios de seda, da mais pura seda. Com os fios, os sonhos, as histórias. Histórias de grandes craques do nosso futebol campeão... Doces e alegres lembranças. Para Francisco, o tapete tem uma trama urdida de afetos...

Comentarista – O tempo o quer de volta, Francisco. O tempo quer ouví-lo... O futebol o quer, de novo, em campo. Ali na

beira do gramado. Deixe-se ouvir, Francisco. Volte a comandar, Francisco. Faça-se ouvir, de novo...

(Francisco levanta-se, devagar e vai para onde estão os troféus e as fotos. Observa apenas)(Entra Tales, passando pela rede de futebol. Ele veste uma antiga e surrada roupa de treino de jogador de futebol fica ao lado de Francisco vendo as fotos e troféus)

Tales – O senhor se lembra dessas fotos, seu Francisco?

(Os movimentos de Francisco deixam de ser lentos, agora são quase naturais, sua voz sai suave, quase não falha)

Tales – Sou eu, o Tales. Sou seu jogador, no Corinthians, professor!

(Francisco, pega uma das fotos, num porta-retratos e aponta)

Francisco – O amigo perdido no campinho de uma areia muito mais branca sob um sol ardente na Guanabara distante...

Zião, sim... o Zião era meu vizinho, lá em Niterói!

Tales – Sou eu, o Tales, professor.

Francisco – Zião... como o tempo passa rápido!

(silêncio)Que ataque nós temos, hein Tales? Que ataque!

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Tales – Sim, um belo ataque! Mas nossos gols não são suficientes para derrotarmos o Santos, nem o Palmeiras, querido professor! Até o Juventus, vive aprontando sobre nós!

Francisco – Zião... Tales... Que time consegue bater o invencível Santos?Quem consegue derrotar um time que tem Pelé, Coutinho, Gilmar no gol? Quem derrota o time comandado pelo divino Ademir da Guia?

Tales – Sabe da admiração que tenho pelo senhor, professor...Vim lhe agradecer. Obrigado, mesmo, professor Francisco.

(O som do futebol movimenta o dial do rádio. Num flash rápido e pára. Tales sai pela rede. Entra Gabriela - com vestido preto antigo e comprido, usa um lenço na cabeça, passando pela rede. Gabriela senta-se na poltrona reclinável. Francisco fica em pé ao lado dela)

Gabriela – Você não vai jogar bola com o Zião? Ele está lá fora, te esperando, filho!

(Francisco caminha até a rede e retorna próximo de Gabriela, na poltrona, abaixando-se)

Francisco – Zião, sim...

Gabriela – Não vá sujar sua roupa e nem venha novamente com a canela toda esfolada,viu meu menino?

Francisco – Não vou me machucar, mãezinha!

Gabriela – Mas o Pedrinho pode chutar sua canela e ela vai ficar roxa!

Francisco – O Tales não vai deixar que o Pedrinho me machuque, mãezinha!

Gabriela – Mas se você se machucar, estarei aqui para cuidar de você. Já tomou seu remédio, meu querido?

Francisco – Não, ninguém vai me machucar...Vou tomar o remédio, mãezinha. Vou me cuidar, sim...

Gabriela -Vou rezar para que você nunca brigue em campo. Minhas orações vão pedir para que seja correto, jogue limpo. Para que defenda seu time sem ofender ninguém, querido filho!

Francisco – Não, ninguém vai me machucar. Eu já aprendi a rezar. A me defender, mãezinha.

(Gabriela levanta-se, Francisco ganha um beijo de Gabriela no rosto. Francisco senta-se na poltrona. Gabriela o beija com carinho, novamente, antes de sair)

CENA 3Francisco – Maria das Dores - Gardênia

(Francisco permanece na poltrona, imóvel, ausente. O dial do rádio busca jogos de futebol. Em flashes, rápidos... gols são narrados e aos poucos o som vai diminuindo. Francisco levanta-se, sai de cena)(Toca o telefone. Repete duas vezes. Pára)(Entra Gardênia, que abre a porta. Maria das Dores vem ao seu encontro. Se abraçam e trocam beijos no rosto)

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Maria das Dores – Ele passou bem a noite toda. Foi dormir tranqüilo.

Gardênia – Você já tem dado os novos remédios para ele? Na hora certa?

Maria das Dores – Sim, a rotina é a mesma. Só os medicamentos que são diferentes. Ele se adaptou bem a eles. Ficou tranqüilo. Dormiu bem...

Gardênia – O médico disse que, no começo, ele poderia ficar um pouco agitado, mas ficaria bem, depois. Então, o remédio não trouxe nenhum efeito colateral mais importante. Ainda bem, querida das Dores...(Gardênia fala com a poltrona vazia e com Maria das Dores como se Francisco estivesse ali)

Maria das Dores – Ontem, antes dele dormir, sorriu. Parecia que ia dizer alguma coisa. Lembra-se das histórias que vivia contando? Então, o sorriso era o mesmo de quando ele contava alguma coisa engraçada...

Gardênia – É mesmo? Mas o remédio é para deixá-lo tranqüilo. Não acredito que possa trazê-lo de volta, como antes... Infelizmente ele não será como antes... No mais, pelos últimos exames que acabei de pegar no laboratório, tudo nele está muito bem. A parte cardiológica, colesterol, nada de diabetes, pressão,tudo muito bem.

Maria das Dores – Parece que ele está feliz. Não está mais com aquela agitação que não o deixava dormir.

Gardênia – Sim, de agora em diante será assim. Ele vai estar cada vez mais

sossegado, distante, não ficará mais agitado, nem terá pesadelos. Vai viver como um passarinho...

(Saem Gardênia e Maria das Dores. Francisco volta vestindo outro pijama, agora verde com detalhes brancos, usa um novo chinelo. Senta-se na poltrona)

CENA 4Francisco – Vicente – Tales menino – Maria das Dores

(Francisco permanece na poltrona, imóvel, ausente)

(Toca o telefone. Repete duas vezes. Pára)

(Vicente entra pela rede e traz o Tales menino com ele)

Vicente – Você vai conhecer meu amigo, Francisco. Ele vai indicar um time para você treinar, Tales.

Tales menino – Mas será que eu vou entrar mesmo no Coríntias, pai?

(Quando Vicente e o Tales menino, entram, Francisco levanta-se da poltrona e vai até o sofá. Vicente abraça Francisco e apresenta o Tales menino. Senta-se com Francisco no sofá e o Tales menino senta, todo tímido, numa poltrona)

Vicente – Francisco, este é o Tales, meu filho. Ele é o craque da meia esquerda. Chuta forte, tem um bom sentido de colocação, não é fominha e dá passes maravilhosos! Não é por ser meu filho,não, mas ele leva muito jeito para o futebol, Francisco!

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Tales menino – (com certo receio) - O senhor é treinador do Coríntias, mesmo?

(Maria das Dores passa e observa a poltrona vazia onde estava Francisco. Vai e volta. Ao voltar vira-se para a poltrona vazia e faz uma observação para a poltrona vazia. Sai de cena)

Maria das Dores – Lembrando de alguma coisa boa, seu Francisco?

Francisco (falando para Tales) – Sim.

Tales menino – O senhor é mesmo treinador do Coríntias?

Francisco – Sim. Eu nunca abandonei meu querido time do Parque São Jorge!

Tales menino – (mais ênfase na pergunta) - O time profissional ou o juvenil?

Francisco – Dos profissionais, sim, Tales. Sou o treinador dos profissionais.

Você quer jogar com os profissionais?

Vicente – O grande sonho dele é ser profissional no Corinthians... Daí estar tão assustado com sua presença. Um misto de medo, susto com euforia.

Francisco – Você quer ser o que, depois de ser jogador de futebol?

Tales menino – (confiante) – Antes eu quero jogar futebol no Coríntias. Depois quero ser advogado. Eu gosto de bola e de estudar. Sou estudioso.

Francisco – Isso é muito bom. No meu time só joga quem for bom aluno.

Tales menino – (mais confiante) - Para jogar no Coríntias sou capaz de só tirar nota dez na escola!

Vicente – Tales... Tales... Cuidado com suas promessas. O Francisco vai cobrar isso de você! E ele cobra mesmo, pode acreditar!

Tales menino – Pai, se eu jogar no Coríntias, eu faço qualquer coisa. Até tirar dez em português e matemática. Quero ser o melhor em campo e o melhor na classe!

Vicente – Tales... Tales... Veja bem com o que você está se comprometendo!

Tales menino – Pai, eu vou ser jogador titular no time do seu Francisco!

Francisco – Deixe o menino. É o entusiasmo, o sonho... Mas se ele quiser mesmo ser jogador, não vão bastar palavras. Desejar é uma coisa, realizar, é outra. Bem diferente!

Tales menino – Mas eu vou jogar no seu time sim, seu Francisco! Vou estudar e jogar com a mesma vontade!

Vicente – Francisco, meu amigo! Este é o Tales. Ele é mesmo bom aluno e bate um bolão! Não é por ser meu filho, mas ele promete como jogador. O amigo vai ver...

Tales menino – Eu quero treinar no Coríntias... Vou treinar muito!

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Francisco – Estudar muito, também. Sem boas notas, nada de futebol.

Tales menino – O senhor vai ver!

(Vicente e o Tales menino saem. Francisco volta para a poltrona. Maria das Dores retorna com copo com água e os remédios para Francisco tomar)

Maria das Dores – Vamos tomar o remédio, seu Francisco? O cochilo foi bom?

CENA 5Francisco – Maria das Dores – Repórter e Narrador de futebol – Menino - Tales (Francisco permanece na poltrona, imóvel, ausente. Maria das Dores acorda Francisco e dá a ele quatro comprimidos. Bem lentamente. Permanece ao seu lado. Enquanto espera Francisco tomar os comprimidos, ouve-se o som de rádio antigo que entra baixinho e vai aumentando. Narrador de futebol diz palavras finais da narração de uma jogada de gol e passa para o Repórter de campo comentar o lance. Depois o Narrador de futebol continua sua narração de um jogo. O som do rádio vai sumindo)

Narrador – (em off ) – Olha o contra ataque do Timão...Tales pela esquerda... passa por seu marcador. Que bonito... Tales cruza... Geraldão meio desajeitado, sobe sem marcação e cabeceia certeiro. É gol, é gol, goooooolllllllllllllllllll...do Corinthians, torcida brasileira...

(som da torcida comemorando o gol)

Como foi o gol, Xilmar Ulisses? Conte como foi...

Repórter – (em off)- Mas que cochilo, deu a defesa da Ferroviária! Um cochilo monumental, meu caro Osmar... Um cochilo tremendo. Tales não cruzou! Ele deu um passe perfeito, na medida, para a cabeçada de Geraldão. Esse gol até eu faria, meu caro Osmar...!

Narrador – (em off) – Um verdadeiro cochilo... Torcida brasileira

(A voz do comentarista, no som do antigo rádio, vai sumindo. Maria das Dores observa Francisco, toca suavemente seu braço. Ajeita o copo e os vidros dos medicamentos na bandeja e sai. Menino entra segurando a bola e a levanta. Corre em torno da poltrona onde está Francisco que observa o menino com a bola, correndo)

Menino – Você viu só que golaço eu fiz, Francisco? Que golaço de cabeça! Vamos, o próximo gol será seu. Vamos!

(Francisco senta-se na poltrona. Toma a bola das mãos do Menino. O Menino continua a correr festejando o gol por toda a sala)

Francisco – Zião, Zião... deixe de gabolice... Eu sou um beque e ninguém da zaga marca gol... O homem não deixa. Quer que eu fique paradinho lá atrás, Zião... Não dá para sair e tomar um contra ataque, uma bola lançada pelas costas... Não dá, Zião, não dá... Como beque eu não vou cochilar na jogada, nunca vou cochilar, Zião...

Menino – Vamos marcar mais gols, Francisco? Venha... agora será seu gol...!

(O Menino toma a bola das mãos de Francisco e sai de cena. Francisco continua sentado na sua poltrona)

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Francisco – Como joga bola esse Tales! Que jogador! Suas avançadas são precisas. E seus cruzamentos são maravilhosos. Jogando assim, vai fazer do Geraldão um grande artilheiro!

(entra Tales, agora vestindo uma roupa social. Está de paletó e tem um troféu nas mãos. Vai até a estante e deixa o troféu lá. Segue em direção da poltrona, pega Francisco pela mão e vai com ele até o sofá)

Tales – Professor...Esse troféu que deixei há anos em sua estante foi o primeiro que ganhei como campeão juvenil. Mas há outros que o senhor guarda para mim... (aponta para a outra estante) Aquela foto foi de minha formatura como advogado...

Francisco – Eu sempre digo, antes de comprarem seus primeiros carros, devem é investir num terreno, numa pequena casa, depois num apartamento. Nada de comprar primeiro um carro. Deveria ter nos contratos dos jogadores uma cláusula que vai determinar que parte dos salários, dos bichos e das luvas devem ir direto para a compra de uma casa. É a garantia do futuro deles. Futebol dura tão pouco tempo...Não é meu querido Tales?

Tales – Eu só comprei meu primeiro carro quando já estava com meu apartamento mobiliado e quando ia me casar. Segui seus conselhos, direitinho.

Francisco – Quando será seu casamento, afilhado?

Tales – Daqui a dois meses. Antes, quero comprar outro imóvel, vai ser umas salas comerciais para alugar. Tenho que

diversificar os investimentos que ganho no futebol! O senhor já preparou o terno para ser meu padrinho de casamento?

(Francisco levanta-se do sofá, abraça Tales e segue para sua poltrona. Tales sai)

CENA 6Francisco – Elvira – Renatinho – Décio

(Som de campainha. Insiste. Francisco levanta-se da poltrona e vai em direção da outra porta. Entra Elvira, mulher de Francisco, com roupa fina, escura, roupa dos anos 60)

Francisco – Você não levou suas chaves, querida? Como foi a consulta com o médico?

Elvira – Voltei meio perdida. Não encontrava minha chave na bolsa. Desculpe-me, querido.

Francisco – O que disse o médico?

Elvira – Infelizmente, nada de bom, querido...

Francisco – O bebê?

Elvira – Não poderei ter mais bebês, meu querido!

Francisco – Não há como?

Elvira – Não, querido. Tenho um pequeno cisto no ovário e terei que ser operada.

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Francisco – O prognóstico é...

Elvira – Vou ter que retirar o ovário. Talvez, até, o útero...

Francisco – Que pena, meu doce! Que pena! Mas o importante é sua saúde. Não temos um menino, não pudemos ter um filho, mas uma filha maravilhosa, nossa Gardênia!

Elvira – Sim, temos a Deninha... E você, felizmente, tem alguns filhos, seus meninos do futebol, não é meu querido Francisco?

Francisco – Sim, são meus filhos. Quero cuidar deles como se fossem mesmo meus filhos!

(Francisco abraça Elvira e saem pela porta da direita)(Entram Décio e Renatinho, pela porta da direita. Renatinho traz uma bola de futebol nova. Décio vem com uma pasta de couro. Décio senta-se no sofá e Renatinho fica em pé, segurando a bola em frente a Décio)

Décio – Renatinho, gostou do presente?

Renatinho – Gostei, sim, seu Décio. Gostei. Mas...

Décio – Vou levar você para treinar no Palmeiras. Já está tudo acertado lá.Renatinho – Que bom!

Décio – Você disse que quer jogar no Palmeiras. Deixei tudo acertado lá no Parque Antárctica! Você vai jogar com o Dudu, o Ademir da Guia...

Renatinho – E a bola? Como...

Décio – É um presente meu...

Renatinho – Mas...

Décio – Você quer ser jogador de futebol. As coisas no mundo da bola, não são tão fáceis. Você tem que aprender: para ganhar umas coisas, precisa... precisa...

Renatinho – Já disse para o senhor que faço qualquer coisa para ser jogador profissional. Jogar no Palmeiras é meu sonho...

Décio – Então... Você precisa... precisa...

Renatinho – O que eu preciso fazer?

Décio – Venha até aqui...

Renatinho – Sim... O que o senhor quer?

Décio – (com um papel velho e rasgado) Você vai levar este papel para seu pai ler. É um contrato de gaveta. Leve este contrato para seu pai assinar.

Renatinho – Não sou gaveta, sou jogador...

Décio – Ah, sim, claro que não!

Renatinho – Que coisa de gaveta é essa?

Décio – É uma gíria que usamos, meu querido! Contrato de gaveta... é para ficar na gaveta...

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Renatinho – Ah! Sim... sim... e a bola? Como vou explicar para o pai?

Décio – Você leva o contrato para ele assinar. Diz que é um presente do seu empresário. É para ir treinando com seus amiguinhos.

Renatinho - O pai não vai gostar de me ver com uma bola novinha... Vai querer saber como...

Décio - Não tem importância...

Renatinho - O pai vai achar que eu roubei a bola novinha...

Décio - Ele sabe que você... Ele sabe?

Renatinho - Ele sabe o quê?

Décio - Aquilo...

Renatinho - Outra vez?

Décio - Ele não deve saber...

Renatinho - Não...

Décio - Peça para ele assinar o contrato...

Renatinho - E a bola?

Décio - Ele não deve saber...

Renatinho - De novo? Assim? Aqui?

Décio - Sim, de novo... Agora...

Você não quer ser um jogador famoso?

Renatinho - Sim, é o que mais quero... Essa bola...

Décio - Ele não pode saber... Não diga nada.

Renatinho - De novo? Será?

Décio -Venha até aqui... Não tenha medo...

Renatinho – O que o senhor quer?

Décio - Aquilo...

Renatinho - De novo?

Décio - Sim, agora...

Renatinho - Mas vai...

Décio - Só um pouquinho...

Renatinho - E a bola?

Décio - Venha... rapidinho...

Renatinho - E a bola?

Décio – Sente-se no meu colo... É só uma brincadeirinha entre nós. Não vai doer... Eu prometo... Não vai doer. Não vai doer nada...(corte de luz) (Fim do primeiro ato)

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ATO 2

Mesmo cenário. Sai de cena a poltrona reclinável. Entra uma velha cadeira de rodas.

CENA 1 Maria das Dores - Francisco - César – Glorinha – Dr. Henrique

(Maria das Dores entra em cena empurrando uma cadeira de rodas onde está Francisco. Ele agora veste um pijama preto com detalhes brancos. Calça um outro chinelo felpudo e também preto e branco. Maria das Dores veste um vestido diferente, de cor clara)

(O som de um rádio antigo. Ouve-se o final da Marcha Nupcial, depois entra o som do dial procurando um programa de música. Quando começa a se ouvir um antigo bolero... o som vai diminuindo)

Maria das Dores – O senhor se lembra do casamento do César com a Glorinha?

(Vai até a estante e pega um porta-retrato que tem um casal de noivos)

Foi um lindo casamento! Eu me lembro da festa. O senhor dançando com dona Elvira. A Deninha como dama de honra com aquele menininho lá de Atibaia... Estava tudo lindo. Uma alegria só!

(Maria das Dores aproveita para arrumar os porta-retratos. Volta, ajeita melhor a cadeira de rodas onde tem a luz do sol da porta janela que se projeta no chão da sala. Ela sai. Francisco está na cadeira de roda, ausente.)

(Entram pela rede, César e Glorinha – um

novo casal)César – Acertei o contrato, Glorinha. Vai dar para a gente comprar um novo apartamento.

Glorinha – Que ótimo, querido! Que ótimo! Quando vocês viajam? Vou ficar sozinha de novo meu querido!

César – Não queria ficar longe de você, mas terei que viajar. Faz parte do meu trabalho viajar...é minha profissão, querida. Correr atrás da bola... onde ela estiver...Você tem sua família, nossos amigos... Quero que se ocupe com algo de seu interesse. Para não se chatear...

Glorinha– Antes, vai ver algum apartamento?

César – Você pode consultar o doutor Henrique. Ele vai estar à nossa disposição para essas questões. Ele quer nos ajudar... Pode ligar para ele e combinar.

Glorinha – Sim... sim... Vou deixar tudo acertado para quando você retornar.

César – Pegarei uns documentos. Vou treinar. O homem não gosta de me dar moleza. Ele diz que eu devo treinar mais que os outros...

(César sai pela rede. Em seguida entra Dr. Henrique, dirigente de futebol. Veste terno e gravata)(Glorinha vai em direção ao Dr. Henrique, o abraça e o beija, apaixonadamente)

Dr. Henrique – Nossa! Que recepção mais calorosa. Que fogo sinto vir dos seus lábios! Estava com saudade, minha menina? Você nem imagina como queria

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estar com você todos os dias... Para sempre...

Glorinha – Com a viagem do César, vinte e um dias fora, tão longe... Nós podemos ficar tantos dias juntos... você dentro de mim... do jeito que mais gosta...

Dr. Henrique – É o que eu tanto quero, menina... É o que mais quero...

Glorinha – Vamos aproveitar muito. E você vai me ajudar na compra do apartamento novo, não vai, Henrique?

Dr. Henrique – Claro... farei de tudo para estar mais tempo ao seu lado, querida. Em cada apartamento que a gente for visitar, eu quero fazer amor com você lá...Daquele jeito proibido, você feito minha putinha... Louca, querendo sempre mais...

Glorinha – Não fale assim... está me deixando ainda com mais desejos, com mais vontade, molhadinha... Você me deixa tão louquinha, sabia?

Dr. Henrique – E você faz de mim o que quer! Desde seu casamento com ele... Desde aquela noite... Foi delicioso tê-la...

Glorinha - Ah... eu queria ter conhecido você antes... Como eu queria...

Dr. Henrique - Aproveite mais já que me conhece há tão pouco...

Glorinha - Você acha que não estou aproveitando muito?

Dr. Henrique - Está?

Glorinha - Estou? Dá para perceber?

Dr. Henrique - Sim...Tanto...

(Glorinha tira o paletó, a gravata e começa a desabotoar a camisa do Dr. Henrique. Eles se beijam e saem de cena de mãos dadas)(Francisco levanta-se da cadeira de rodas e se posta bem à frente da rede, esperando Toninho entrar)(Entra Toninho – um jogador irresponsável. Veste uma roupa espalhafatosa, colorida, desabotoada, mostrando embriaguez, cabelo em desalinho)

Francisco – Isso são horas, Toninho? Bem que eu estava desconfiado! Mas não sou bobo! Tinha certeza que o pegaria no pulo! Você se deu mal...

Toninho – Que que é isso, mestre?

(Francisco se aproxima do rosto de Toninho. Parece conferir o cheiro que exala)

Francisco – E você chega com a maior cara de pau, e cheirando a uísque barato!

Toninho – Mestre, eu saí rapidinho! Fui até ali..

Francisco – Rapidinho? Como você quer se fazer de espertinho, não é? Rapidinho...???

Toninho – Mas, professor...

Francisco – São quatro e meia da madrugada... O nosso jogo será as quatro da tarde! Temos um clássico pela frente...

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Toninho – Eu durmo agorinha mesmo. Depois, o senhor manda aplicar aquele Gluconergam ni mim, antes do jogo. Fico novinho, tinindo, prontinho para fazer uns golaços!

Francisco – Depois a imprensa cai de pau em mim... Em mim, entendeu, senhor ni mim?Não, não posso mais esconder de ninguém que você não fica na concentração... Não posso esconder isso, Toninho.

Toninho –Se eu fizer uns golaços, ninguém fala mal do professor!

Francisco – Mas eu não quero que falem bem ou falem mal. Eu quero que falem a verdade! Como posso esconder que meu principal e mais caro jogador fica na farra, fica na zona, na putaria, na véspera de um jogo importante?

Toninho – Alivia, mestre! Alivia... Não pegue pesado, professor!

Francisco – Aliviar o quê? Eu não posso aceitar isso no time que eu dirijo! Não aceito. Minha paciência se esgotou!Você pode ir para casa, está dispensado da concentração! Vá! Suma da minha frente! Vá ficar com suas putas, os bêbados e os maconheiros de seus amigos!

Toninho – Professor, professor... O senhor está me tratando como um maloqueiro! Sou gente boa, professor! Não mi complica a vida!Francisco – Suma! Não quero que você complique é a minha vida. A sua já está na

pior mesmo. Cada dia pior, não é, Toninho?

Toninho – Professor... e a galera? E meu amigo radialista? O que eles vão dizer?

O senhor tá entrando numa grande fria.

Francisco – Quer que eu o tire daqui com umas porradas? Suma! Desapareça daqui... Perdi a paciência com você! Suma!!!

(Francisco ameça ir para cima de Toninho que sorri desconcertado e sai. Francisco volta devagar para sua cadeira de rodas)(O dial da rádio começa a ser movimentado, procurando sintonizar uma estação. Som de vaias, gritos que começam baixinho. Gardênia, Maria das Dores, Tales, Vicente e o Menino vão até a rede e começam a gritar e a xingar Francisco que permanece imóvel na cadeira de rodas)

CENA 2 Torcedor 1, Torcedor 2, Torcedor 3, Torcedora 1 e Torcedora 2 - Francisco

(O som de gritos da torcida se junta com os gritos e xingamentos dos personagens ao lado da rede, juntos ou individualmente)

(Francisco está sentado imóvel na cadeira de rodas)

Todos – Aí seu burro! Quem mandou tirar o Toninho?

Todos – Deixar o Toninho fora do time é burrice... Quem vai marcar gols?Torcedor 1 – Aí, seu filho da puta!

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Quer acabar com nosso time? O time precisa do goleador, velho burro!

Todos – Fora, fora... Burro, burro, burro! Fora, burro... fora, burro!

Torcedor 2 – Treinador filho da puta! Seu velho burro! Chame sua mãe para fazer gols, agora!

Torcedora 1 – Sua mãe tá na zona... É por isso que ela não entra em campo!

Torcedora 2 – Seu pai é corno, filho da puta!

Torcedor 3 – Velho burro, burro, burro, burro!

Todos – Fora Francisco, fora Francisco, fora Francisco...

Todos – Burro, burro, burro...

Todos – Um dois, três, quatro, cinco mil... queremos que o Francisco vá pra puta que o pariu! Um dois, três, quatro, cinco mil... queremos que o Francisco vá pra puta que o pariu! Um dois, três, quatro, cinco mil... queremos que o Francisco vá pra puta que o pariu!

(Francisco se levanta da cadeira de rodas, caminha devagar enquanto os torcedores o xingam e vai sentar-se no sofá. Caminha olhando para quem o xinga. Começa a falar sentado, aos poucos vai se levantando, fica em pé e encara a platéia no centro do palco, num tipo de desabafo e provocação)

Francisco – A torcida só sabe jogar a

favor dela mesma. Não há torcida que jogue a favor da verdade. Tudo é paixão. Não existe razão. A paixão prevalece e não há razão. Não se explica a paixão, esse falso amor do torcedor por seu time. Um antigo ídolo, se transforma em vilão, da noite para o dia. Um ex adversário antes xingado, se vem para jogar no novo time, é recebido com aplausos. São tantas histórias que eu sei e que não posso revelar...A torcida só sabe jogar a favor dela mesma. A torcida não joga pela verdade. Todos querem viver na ilusão. A paixão ofusca a razão. E a verdade não existe, nem prevalece. (pausa)Eu também vivi a ilusão de não deixar-me vender, de querer que meus jogadores fizessem melhores investimentos. Mas eu, indiretamente, sendo omisso, acabava me vendendo.

(Entram pela rede, Repórter 1, Repórter 2 e Repórter 3 com gravadores, como jornalistas. Vão entrevistar Francisco que volta a sentar no sofá. Levam antigos gravadores, portáteis, mas grandes. Estão agitados, falam rápido. Francisco responde com ironia. Ao fundo, som de torcida protestando)

Repórter 1 –A torcida não gostou do senhor não ter colocado o Toninho nem no banco de reservas...

Francisco – Ele está com uma entorse no tornozelo. Preferí poupá-lo para o jogo contra o Santos.

Repórter 2 – Há comentários de que ele estaria com problemas familiares. O senhor confirma?

Francisco – Não confirmo o que não

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existe, pois o problema dele é de contusão. Só isso!

Repórter 3 – O próprio Toninho disse que a problema não era no pé e sim, na cabeça...

Francisco – Mas que pergunta mais sem pé, nem cabeça, meu filho...!

Repórter 3 – Ele está contundido ou não? Ou o problema é outro?

Repórter 2 – O problema dele é mesmo familiar?

Repórter 1 – O senhor pode dizer o que anda acontecendo?

Francisco – Vocês vivem querendo achar chifre na cabeça de cavalo, não é? Cavalo não tem chifre. Cavalo não tem chifre. Disse e repito: cavalo não tem chifre...

Repórter 2 – Então...

Repórter 3 – Então...

Repórter 1 – Então...

Francisco – Vamos falar sobre o jogo contra o Santos? Vocês parecem adorar fofocas! Aqui é futebol, não é a Revista do Rádio!

Repórter 2 – Como seu time vai jogar?

Francisco – Vai jogar com 11 jogadores, com camisas, sungas, calções, meiões e

chuteiras...

Repórter 2 – Como vai ser seu ataque?

Francisco – Vai ser agressivo... Vai jogar lá na frente, na área do adversário...

Repórter 1 – E a defesa?

Francisco – Espero que esteja segura... Todos atrás, defendendo!

Repórter 3 – E o goleiro?

Francisco – Não quero que leve nenhum gol... Vai pegar todas as bolas...

Repórter 2 – O senhor pode dar o time?

Francisco – Não posso! Não posso, mesmo!

Repórter 2 – Como não?

Francisco – Se eu der a diretoria me manda embora...

Repórter 2 – Como assim?

Repórter 1 – O senhor vai ser mandado embora?

Francisco – Se eu der o time, ficamos sem time... sem jogadores...

Repórter 2 – Como que é?

Repórter 3 – O que o senhor está dizendo

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não faz nenhum sentido.

Francisco – Então... Digo e repito: o time não é meu, não posso dar o time para vocês... O time não me pertence. O time é do clube, da torcida. Não posso dá-lo para vocês... Não posso dar o time para vocês, não posso dar o time para vocês... Não posso...!

(Saem pela rede, Repórter 1, Repórter 2 e Repórter 3. Entram Gabriela e o Menino, que traz uma bola)

Gabriela – Você não vai brincar de bola, Francisco? O Zião já está aqui!

Francisco – Daqui a pouco eu vou, mãe...

Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Sem você vamos perder para o time do Pedrinho! Acorda, venha logo...!

Gabriela – Você não vai brincar de bola, Francisco? O Zião já está aqui!

Francisco – De novo, Zião?

Menino – Vem, Francisco... Vem logo...

Gabriela – Você não vai brincar, Francisco? O Zião já está aqui!

Francisco – Zião, você de novo?

Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Sem você vamos perder para o time do Pedrinho!

Francisco – De novo, Zião?

Gabriela – Você não vai brincar de bola, Francisco? O Zião já está aqui!

Menino – Vem, Francisco... Vem logo... Sem você vamos perder para o time do Pedrinho! Acorda, venha logo...!

(Gabriela e o Menino saem de mãos dadas. Francisco caminha bem devagar até a cadeira de rodas. Menino repete a frase ao sair, olhando para Francisco)

Menino – Vem, Francisco... Vem logo...

CENA 3Francisco – Maria das Dores - Gardênia

(Francisco permanece na cadeira de rodas, imóvel, ausente)

(Toca o telefone. Repete duas vezes. Pára)

(Entra Gardênia, que abre a porta. Maria das Dores vem ao seu encontro. Se abraçam e trocam beijos no rosto)

Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

(Gardênia beija a face de Maria das Dores, que corresponde)

Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu estava pertinho. Voltava da faculdade. Como ele está hoje?

Maria das Dores – Está bem... está bem... Já tomou seu chá. Comeu dois biscoitos. Está bem, sim.

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Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei o que seria de mim, sem você, minha querida!

(Toca o telefone. As atrizes ficam estáticas em cena. O telefone toca duas vezes. Pára)

Maria das Dores – Você volta amanhã?

Gardênia – Sim, passarei, novamente. Sempre correndo... Você sabe... Mas passo, sim.

Maria das Dores – No mesmo horário?

Gardênia – Não, virei mais cedo, antes de ir para a Faculdade.

(Gardênia e Maria das Dores levam Francisco na cadeira de rodas fora de cena)

( Dial de um antigo rádio – que tem um chiado de interferência - começa a se mover e ouve-se flashes de música, notícias, discursos. Pára e lances de jogos de futebol são narrados. De vários locutores diferentes, equipes diferentes. Em pequenos flashes. As narrações acabam sempre em gol, uma após outra. Locutores eufóricos fazem as narrações.)

(Toque do telefone. Toca algumas vezes e pára)

(Maria das Dores entra em cena empurrando bem devagar a cadeira de rodas de Francisco. Ele agora veste um pijama cor de vinho com detalhes em branco. O chinelo felpudo também é cor de vinho. Francisco está apoiado mais para o lado direito da cadeira. Coloca a cadeira de rodas em frente da porta janela onde tem uma forte luz. Pega uma pequena

toalha que está no colo de Francisco, limpa com delicadeza sua boca que está semi-aberta. Faz esforço para colocar Francisco numa posição mais confortável sentado. Gardênia entra em cena)

Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

(Gardênia beija a face de Maria das Dores, que corresponde)

Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu estava pertinho. Voltava da faculdade. Como ele está hoje?

Maria das Dores – Está bem... está bem... Já tomou seu chá. Comeu dois biscoitos. Está bem, sim.

Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei o que seria de mim, sem você, minha querida!

(Toca o telefone. As atrizes ficam estáticas em cena. O telefone toca três vezes. Pára)

Maria das Dores – Você volta amanhã?

Gardênia – Sim, passarei, novamente. Sempre correndo... Você sabe... Mas passo, sim.

Maria das Dores – No mesmo horário?

Gardênia – Não, virei mais cedo, antes de ir para a Faculdade.(Toca o telefone. As atrizes ficam estáticas em cena. O telefone toca quatro vezes. Pára)Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

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Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu estava pertinho. Voltava da faculdade. Como ele está hoje?

Maria das Dores – Está bem... está bem... Já tomou seu chá. Comeu dois biscoitos. Está bem, sim.

Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei o que seria de mim, sem você, minha querida!

(Toca o telefone. As atrizes ficam estáticas em cena. O telefone toca cinco vezes. Pára)

Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu estava pertinho. Voltava da faculdade. Como ele está hoje?

Maria das Dores – Está bem... está bem... Já tomou seu chá. Comeu dois biscoitos. Está bem, sim.

Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei o que seria de mim, sem você, minha querida!

(Gardênia beija a face de Maria das Dores, que corresponde)Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

Gardênia – Que bom! Que bom! Não sei o que seria de mim, sem você, minha querida!(Gardênia beija a face de Maria das Dores, que corresponde)

Maria das Dores – Está bem... está bem... Já tomou seu chá. Comeu dois biscoitos. Está bem, sim.

Gardênia – Obrigado, das Dores... Eu estava pertinho. Voltava da faculdade. Como ele está hoje?

Maria das Dores – Bom dia, Deninha. Você veio rápido. Estava aqui perto?

(Gardênia e Maria das Dores viram a cadeira de rodas e saem com Francisco)

CENA 4Francisco – Elvira – Gardênia - Menino

( Dial de um antigo rádio – que tem um chiado de interferência - começa a se mover e ouve-se flashes de música, notícias, discursos. Pára e lances de jogos de futebol são narrados. De vários locutores diferentes, equipes diferentes. Em pequenos flashes. As narrações acabam sempre em gol, uma após outra. Locutores eufóricos fazem as narrações.)

(Gardênia entra em cena empurrando bem devagar a cadeira de rodas de Francisco. Ele agora veste um pijama com a blusa de cor preta e a calça de cor de vinho com detalhes em branco. O chinelo felpudo também é verde. Francisco está apoiado mais para o lado direito da cadeira. Coloca a cadeira de rodas em frente da porta janela onde tem uma forte luz. Gardênia pega uma pequena toalha que está no colo de Francisco, limpa com delicadeza sua boca que está semi-aberta. Faz esforço para colocar Francisco numa posição mais confortável sentado)

(Toque do telefone. Toca algumas vezes e pára)

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(Toca a campainha)

(Entra em cena pela porta da esquerda, Elvira. O Menino entra pela rede e coloca a velha bola no colo de Francisco e fica observando a conversa das duas mulheres)

Elvira – Como ele está? Não parece muito bem, minha filha...

Gardênia – Mamãe... a senhora sabe que ele não anda bem. Como foi no médico?

Elvira – O médico...

Gardênia – Mamãe, o que o médico disse?

Elvira – Ele me deixou nervosa...

Gardênia – Mamãe, o que o médico disse? O que ele disse?

Elvira – Mais um problema e você aqui...

Gardênia – Insisto: o que o médico disse, mamãe?

Elvira – Além da doença do seu pai...

Gardênia – A senhora não vai dizer que...

Elvira – Sim... meu câncer voltou, Deninha! Voltou!!!(As duas se abraçam e choram. Em seguida saem de cena)

(O Menino pega Francisco pela mão e o conduz até a estante à direita da porta janela. Retira o quadro que tem uma carteirinha)

Menino – Esta carteirinha eu ganhei quando comecei a jogar no Botafogo...

Francisco – Eu me lembro no dia em que fiz esta foto...

Menino – Logo depois eu conheci a Elvira...

Francisco – Esta carteirinha é minha principal lembrança...

Menino – Eu nunca fui um bom jogador de futebol... Mas não era medíocre.

Francisco – Sempre fui um jogador esforçado. Mas não era medíocre.

Menino – Eu me lembro do dia em que ganhei esta carteirinha

Francisco – Os troféus que ganhei nunca foram importantes para mim...

Menino – A carteirinha é muito importante.

Francisco – Taças, troféus, faixas, medalhas...tudo são elementos simbólicos de coisas que já passaram. Que foram, não são mais...

Menino – Ah, sonhos não! Sonhos são eternos!Francisco – A carteirinha foi meu primeiro e grande sonho...

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Menino – Os sonhos nos embalam em momentos tristes...

Francisco – Os sonhos nos inspiram em momentos difíceis, nos dão coragem em momentos de desespero e nos levam a correr mesmo quando nossas pernas e nossos pensamentos teimam em não mais sair do lugar...

Menino – Acorda,Francisco! Levanta seu zé preguiça! Vamos jogar bola... Venha, vamos jogar... Acorda, Francisco...Francisco – Os sonhos são eternos... e devem ser tratados com enorme carinho e atenção. Trato meus sonhos com muito carinho e respeito... Respeito meus sonhos... brigo por eles... Sonhar é viver...

Menino – Vamos jogar?

Francisco – Tive um sonho... Triste. Eu acompanhava Elvira numa viagem. O lugar era lindo. Ela caminhava segurando minha mão. Havia uma pequena elevação no terreno. Era todo de uma grama muito bonita. Ah, como eu adoro a cor da grama ! E a Elvira subiu a elevação, foi subindo, corria, parava, corria e parava. De repente ela parou, olhou para trás, sorriu. Vi a beleza de seu rosto... E ela desapareceu.

Menino – Vamos jogar, Francisco? Acorde, Francisco, venha jogar seu zé preguiça!

Francisco – O sonho do futebol é o sonho da dança do diabo! A dança do diabo não é triste, nem é alegre. A dança do futebol é coisa do diabo pois nos mostra a dureza da vida. Essa coisa de ganhar e perder, ganhar e perder, ganhar

e perder... desgasta muito. É ilusório o mundo do futebol!(pausa)Zião, Zião... você também vai querer ser jogador de futebol?

Menino – Não, Francisco...Quem sonha com o futebol é você. Eu sonho somente é com a bola...

(Menino bate a bola algumas vezes no chão. Pega Francisco pela mão e o faz sentar na cadeira de rodas. Vai batendo a bola, e em passos lentos sai de cena)

CENA 5Francisco – Kruger – Tales - Menino

(Toque do telefone. Toca algumas vezes e para)

(Francisco levanta-se da cadeira de rodas e fica em pé. Entram pela rede, Kruger. Depois, Tales e, por último o Menino)

Francisco – Você por aqui, Kruger? Quanto tempo? Não esperava receber sua visita, meu querido amigo!

(Kruger e Francisco, se abraçam demoradamente. Depois se olham e sorriem)

Kruger – Eu vim convidá-lo para dirigir o Coxa!

Francisco – É mesmo? Você se lembrou de mim, querido amigo?

Kruger – Sim, a gente não esquece dos amigos e não se esquece mesmo dos

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amigos competentes, dos amigos competentes e éticos como você, Francisco!

Francisco – Você nem imagina o quanto eu fico feliz em ser convidado para dirigir o Coxa. Além do mais, eu adoro Curitiba. Adoro o Paraná, adoro os paranaenses. Adoro o povo que vive no Paraná, meu querido Kruger!

(pausa)Eu adoro Curitiba, meu querido doutor Léo Kruger.

(pausa)Eu adoro Curitiba... O frio de lá sempre me fez bem.

(pausa)

O frio de Curitiba, sempre intenso e forte, escanhoa nosso perfil! Em outros lugares, o frio machuca, chega até a cortar o rosto da gente.

(pausa)

A sombra dos pinheirais do Paraná abraça-me com o mesmo formato dos raios do sol.

(Francisco abraça Kruger)

Kruger – Vamos voltar ao Paraná, Francisco? Você vai gostar de ser treinador do Coxa!

Francisco – Que bom poder voltar a Curitiba, meu amigo Kruger. Que bom ser

treinador do Coxa, lá no Alto da Glória!(pausa)Aquela igreja de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro é um pedaço do céu aqui na terra! Vou me sentir amparado neste novo trabalho estando perto daquele lugar de fé e de esperança.

(Kruger sai quando Tales se aproxima)

Tales – Quando o senhor for técnico, lá no Paraná, eu irei visitá-lo, padrinho.

Francisco – Claro, meu querido Tales. Você será meu primeiro convidado.

Tales – Não consegui ser campeão com o Corinthians, padrinho!

Francisco – Ah, agora você pronuncia Corinthians.. Quando menino você dizia: quero jogar no Coríntias... Meu querido Tales, na vida temos que aprender que nem só de vitórias e títulos é a vida de quem participa do futebol, a dança do diabo!

Tales – Eu sei, foi difícil entender isso. Mas aprendi...

Francisco – Para quem tem trinta anos de bola, como eu, são trinta anos comendo despacho no almoço que antecede o jogo ou mesmo no jantar. Não é mole! E a comida é sempre a mesma coisa: salada de tomate, bife, purê de batatas e arroz. Que cardápio duro de engolir, não é Tales?Tales – Mas a gente engole isso pela escolha que fizemos. O futebol tem gosto

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de arroz com feijão. Mas o espetáculo pode proporcionar outros sabores, não é?

Francisco – Sim, mas só quem tem talento dá sabor diferente ao cardápio do futebol!

Tales – O senhor ainda tem prazer pelo futebol, padrinho? O senhor se sente atraído pelo futebol, trinta anos depois de ter iniciado sua carreira como treinador?

Francisco – Sabe... aquela natural descarga de adrenalina, pouquinho antes de cada jogo, é de arrepiar os pelos do sovaco! É meio caminho para a úlcera duodenal!

(pausa)

A noite da véspera de jogo é uma noite de angústias, noite sem sonhos, noite sem horas, noite sem minutos. Uma noite eterna!

(pausa)

Nosso pequeno trajeto da concentração para o palco da luta é tempo rezado, suplicado, angustiado e de total mutismo, incompreendido pelos cartolas das procissões sentadas.

(pausa)

Noite de derrota é noite de matar a fome com unhas marcadas de vermelho do nosso sangue!

(pausa)Você sabe, meu querido Tales, como sofrem nossas mulheres, nossas

companheiras. Até as amantes de muitos, sabem como é o sofrimento de quem perde um jogo.

(pausa)

Noite de derrota é noite sem amor, mesmo com muitos dias de ausência, forçada pelas concentrações longas. Com derrota não existe crepúsculo da noite, nem do outro dia, porque nosso tempo está parado. Parado naquele momento exato da nossa condenação.

(Tales se afasta e o Menino se aproxima de Francisco com uma bola)

Menino – O que eu posso esperar do mundo do futebol?

Francisco – Se for um bom e esforçado jogador, tudo. Mas pode esperar nada, também.

Menino – E se eu for um esforçado jogador e tiver um talento especial?

Francisco –Bem, neste caso, você poderá ter o mundo aos seus pés. Dinheiro, reconhecimento, mulheres, badalação...

Menino – Mas tudo isso me dá medo!

Francisco – Você sempre terá medo. De ganhar, de perder. Se tiver muito dinheiro, cuidado. Sempre haverá alguém de olho no que você vai ganhar. Das marias-chuteiras a empresários desonestos. Olho vivo! Gente esperta e aproveitadeira é o que não falta neste mundo.

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Mas você tem o espírito puro! Fique atento e aprenda a rezar!

Menino – Pai, o senhor vai me ensinar a jogar futebol?

Francisco – Eu queria que você existisse, meu querido filho.

Menino – Pai, o senhor vai me levar aos estádios?

Francisco – Eu queria que você existisse, meu querido menino.

Menino – Pai, o senhor vai querer que eu seja jogador de futebol?

Francisco – Eu queria que você existisse, filho que não tive.

Menino – Pai, o senhor quer jogar futebol com todos nós?

Francisco – Sim... é tudo o que sempre quis.

(Menino e Tales se aproximam de Francisco. o conduzem até a cadeira de rodas. Saem pela rede)

CENA 6Francisco – Vicente – Tales – Menino – Maria das Dores - Gardênia

(Toque do telefone. Toca algumas vezes e pára)(Francisco está sozinho na cadeira de rodas. Inerte)

(Dial de um antigo rádio – que tem um chiado

de interferência - começa a se mover e ouve-se flashes de música, notícias, discursos. Pára e lances de jogos de futebol são narrados. De vários locutores diferentes, equipes diferentes. Em pequenos flashes. As narrações acabam sempre em gol, uma após outra. Locutores eufóricos fazem as narrações.)(Francisco começa a movimentar sua cadeira de rodas, lentamente. Ameaça andar, para. Mexe nas rodas e conduz lentamente a cadeira até o centro do palco)(o som do rádio aos poucos vai desaparecendo. Ouve-se um vozerio. Pessoas conversando, rindo, uns poucos gritos de alegria. Silêncio)

Francisco – O futebol é minha vida. Comecei quando criança a amar o futebol, esta minha paixão, meu vício! Senti, como jogador, o amargor das derrotas, mas o intenso prazer de participar de um jogo, a alegria de entrar em campo vestindo um uniforme. Não importava se a camisa era velha, surrada ou se era uma camisa nova, de um grande time.

(pausa)

O futebol é minha vida.

(pausa)

Depois de ter vivenciado tantas alegrias e milhões de tristezas, ali, dentro das quatro linhas, nos gramados impecáveis ou campos com pouca ou nenhuma grama, deixei de ver o futebol a partir do gramado, para sentar-me num banco e ver o jogo, os homens, os meninos, como um orientador, um amigo, um técnico...

(pausa)O futebol é minha vida. Futebol é a alegria de tanto jogador de talento. É a tragédia

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de tanto jogador de talento. Foi a alegria de meninos que apenas queriam, um dia, receber um aplauso quando pisavam pela primeira vez um campo de futebol vestindo a camisa daquele time, seu inesquecível time.

(pausa)

O futebol é minha vida. E o futebol é a vida de milhões de pessoas. Umas bem intencionadas, outras que querem do futebol o poder. Fazem de tudo pelo poder e se corrompem por ninharias ou grandes boladas. A corrupção no futebol eu sei como é. Mas há corrupção no mundo e onde existe dinheiro e poder, há corrupção e onde há poder e dinheiro, há futebol. E a doce alegria dos vencedores, dos títulos, dos gols, dos golaços, dos gols de placa, dos gols inesquecíveis.

(pausa)

Sou um treinador de futebol. Tive muitas alegrias e tristezas como treinador de futebol.(pausa)

Você sabe o que é ser treinador de futebol?É morrer antes da hora. É ser chaminé que trabalha aos domingos.É ser amigo dos gatos que não distinguem o seu posto.É ser o único freguês do bar ambulante.É ser aquele fantasma, um verdadeiro Gasparzinho dos vizinhos.É ser o elogio do microfone, das letras impressas em jornais e revistas.É ser o destaque numa matéria de televisão.

É ser criticado justa e injustamente.É ser uma pessoa incompreendida.É ser pai dos filhos ausentes.É ter uma família e não conviver com ela.É ser respeitado. É ser humilhado também, quando somos demitidos.É ser vaiado, chamado de burro.É ser visto como filho da puta.É ser um retirante de uma terra que nunca foi sua.É ser um mendigo querendo apenas uma nova oportunidade.É saber conviver com manhas, mutretas e o escambau!

(pausa)

(Francisco levanta-se da cadeira e a empurra para o lado)

(As vozes se misturam, gritos de torcidas, aplausos. A voz do locutor narrando gols)

O futebol é minha vida!É a minha vida!A vida que tive!

E como treinador de futebol tenho que aceitar que ser técnico é ser dono de quatro ou cinco pijamas.

É ser dono de quatro ou cinco pijamas. Sim, pijamas.Ser treinador de futebol é...

(Francisco caminha devagar e vai em direção à rede. Começam a entrar atrás da rede, Vicente, Maria das Dores, Menino, Tales,

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Gardênia. Cada um veste uma camisa de um time de futebol diferente. Eles seguram com as mãos a rede)

Francisco – Ser treinador de futebol é ser prisioneiro dos chinelos nas horas tristes...Ser prisioneiro dos chinelos nas horas tristes...

(Francisco começa a tirar os chinelos, tira a blusa do pijama. Jogam para ele uma camisa de futebol por cima da rede. Ele tira a calça do pijama. Está de calção. Jogam para ele um par de meias e um par de chuteiras. Ele veste as meias e calça as chuteiras. Coloca a camisa por dentro do calção. Ajeita sua camisa. Jogam uma bola de futebol, colorida, novinha para Francisco.

(Ele alisa a bola, olha atentamente para ela. Beija a bola com carinho e chuta a bola contra a rede, num chute discreto e certeiro onde estão Maria das Dores, Vicente, Tales, Gardênia e o Menino)(Ouve-se a narração de antigos jogos de futebol. E ouve-se a narração final do locutor)Locutor – (em off) – Que chute preciso. Indefensável! Certeiro! É gol.... é gol.... gooooooooolllllllll ! Que golaço.....!!!!Ele voltou... ele voltou... Francisco voltou... ele voltou!Ele vai para os braços da galera!(Maria das Dores, Vicente, Tales, Gardênia e o Menino, gritam gol enquanto o som fica mais forte com aplausos, gritos, foguetes. Francisco levanta os braços e corre em direção à rede. A rede se abre e ele recebe um abraço coletivo de todos)(Cai a luz e uma música ligada a futebol, só instrumental, toca bem forte)

FIM

Rogério Viana (C)(Todos os direitos reservados)

Curitiba – PR – 6 de maio de 2009.Segunda versão em 10 de julho de 2009. Revisão com Roberto Alvim em 25 de agosto de 2009.Última revisão com Roberto Alvim em 13 de outubro de 2009. Original entregue nesta data.

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