mangabeira centro:periferia

2
17/11/2015 Folha de S.Paulo - Roberto Mangabeira Unger: Furtado e futuro - 23/11/2004 http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2311200407.htm#_=_ 1/2 Assine 0800 703 3000 SAC Batepapo Email Email Grátis PagSeguro BUSCAR 59,99 R$ 109,99 R$ 47,99 R$ 65,99 R$ 159,99 R$ São Paulo, terça-feira, 23 de novembro de 2004 Texto Anterior | Próximo Texto | Índice ROBERTO MANGABEIRA UNGER Furtado e futuro A melhor homenagem que se pode prestar a Celso Furtado é descrever a obra que nós, os sobreviventes, temos pela frente na reconstrução do pensamento brasileiro. Cada um dos elementos dessa missão reconstrutora -seus imperativos e seus paradoxos, suas luzes e suas sombras- está prefigurado nas idéias e na ação desse grande homem. A preliminar é identificação com o Brasil. Na maioria dos países modernos, a idéia da nação foi mais projeto dos quadros dirigentes do que iniciativa das massas. No Brasil - que, segundo advertiu-me Celso Furtado, surgiu menos como nação do que como acampamento- inverteu-se essa tendência. As elites brasileiras pouco se identificaram com a nação; preferiram imitar seletivamente e obedecer sem rebuços os poderes da época. Foi a gente comum do Brasil que começou a se identificar com a idéia da nação e com o uso do poder do Estado para construí-la. A classe média -o pivô do sistema- costumou balancear entre dizer sim e dizer não a uma visão do Brasil. Quem quis dizer sim sempre teve de procurar como pensar o país dentro do mundo e o mundo a partir do país. E sempre se debateu com a insuficiência das idéias disponíveis. A tentação dos que não se querem render aos rendidos tem sido apelar para um "caminho brasileiro", a ser demarcado por ideário nativista. A verdade, porém, é que não se resiste às idéias que irradiam das potências dominantes de uma época sem ter idéias pelos menos tão gerais e profundas quanto elas; só uma heresia universalizante se contrapõe com eficácia a uma ortodoxia universal. Haja ânimo em país como o nosso, sem os instrumentos de uma universidade consolidada, para estudar e repensar o mundo e para brigar com as concepções reinantes no pensamento político, econômico e social dos países que nos acostumamos a seguir. Não há, entretanto, alternativa. O trabalho é esse. Há três descaminhos a evitar em sua execução. O primeiro descaminho é sentimentalizar nossas especificidades culturais, usando-as para encobrir as realidades cruas de nossa sociedade. O segundo é mobilizar planilhas salvacionistas, quase sempre importadas, a serem impostas ao país por suposta vanguarda. O terceiro é refugiar-nos em determinismos que expliquem por que as coisas têm de ser como são: os velhos determinismos marxistas ou os novos determinismos das ciências sociais tal qual cultivadas nos

Upload: fabricio-neves

Post on 27-Jan-2016

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Furtado e o Brasil

TRANSCRIPT

Page 1: Mangabeira Centro:Periferia

17/11/2015 Folha de S.Paulo - Roberto Mangabeira Unger: Furtado e futuro - 23/11/2004

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2311200407.htm#_=_ 1/2

Assine 0800 703 3000 SAC Bate­papo E­mail E­mail Grátis PagSeguro

BUSCAR

59,99 R$ 109,99R$

47,99 R$ 65,99 R$ 159,99R$

São Paulo, terça-feira, 23 de novembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Furtado e futuroA melhor homenagem que se pode prestar a Celso Furtado édescrever a obra que nós, os sobreviventes, temos pela frentena reconstrução do pensamento brasileiro. Cada um doselementos dessa missão reconstrutora -seus imperativos eseus paradoxos, suas luzes e suas sombras- está prefiguradonas idéias e na ação desse grande homem.A preliminar é identificação com o Brasil. Na maioria dospaíses modernos, a idéia da nação foi mais projeto dosquadros dirigentes do que iniciativa das massas. No Brasil -que, segundo advertiu-me Celso Furtado, surgiu menoscomo nação do que como acampamento- inverteu-se essatendência. As elites brasileiras pouco se identificaram com anação; preferiram imitar seletivamente e obedecer semrebuços os poderes da época. Foi a gente comum do Brasilque começou a se identificar com a idéia da nação e com ouso do poder do Estado para construí-la. A classe média -opivô do sistema- costumou balancear entre dizer sim e dizernão a uma visão do Brasil. Quem quis dizer sim sempre tevede procurar como pensar o país dentro do mundo e o mundoa partir do país. E sempre se debateu com a insuficiência dasidéias disponíveis.A tentação dos que não se querem render aos rendidos temsido apelar para um "caminho brasileiro", a ser demarcadopor ideário nativista. A verdade, porém, é que não se resisteàs idéias que irradiam das potências dominantes de umaépoca sem ter idéias pelos menos tão gerais e profundasquanto elas; só uma heresia universalizante se contrapõe comeficácia a uma ortodoxia universal. Haja ânimo em paíscomo o nosso, sem os instrumentos de uma universidadeconsolidada, para estudar e repensar o mundo e para brigarcom as concepções reinantes no pensamento político,econômico e social dos países que nos acostumamos aseguir. Não há, entretanto, alternativa. O trabalho é esse.Há três descaminhos a evitar em sua execução. O primeirodescaminho é sentimentalizar nossas especificidadesculturais, usando-as para encobrir as realidades cruas denossa sociedade. O segundo é mobilizar planilhassalvacionistas, quase sempre importadas, a serem impostasao país por suposta vanguarda. O terceiro é refugiar-nos emdeterminismos que expliquem por que as coisas têm de sercomo são: os velhos determinismos marxistas ou os novosdeterminismos das ciências sociais tal qual cultivadas nos

Page 2: Mangabeira Centro:Periferia

17/11/2015 Folha de S.Paulo - Roberto Mangabeira Unger: Furtado e futuro - 23/11/2004

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz2311200407.htm#_=_ 2/2

Assine 0800 703 3000 SAC Bate­papo E­mail E­mail Grátis PagSeguro

BUSCAR

Estados Unidos. A história do pensamento brasileiro é ahistória desses três descaminhos e da tentativa frustrada desuperá-los. Não se escapa deles sem guerra de idéias,conduzida sem esmorecimento em todas as frentes ao mesmotempo. Não se escapa deles sem maneira de pensar queaprofunde o entendimento da realidade ampliando aimaginação do possível.Antecipo a perplexidade dos poucos leitores dessas linhas. Aeles parecerei eu como jogador de cartas que, ao perder cadarodada do jogo, supõe melhorar sua chance de ganhar arodada seguinte aumentando sua aposta com cacife feito sóde notas promissórias por ele mesmo assinadas. Minhadefesa é que as tarefas não se apresentam na medida denossas conveniências e capacidades. Somos nós que temosde nos exceder, de nos sacudir, de nos reinventar atéconseguirmos estar à altura delas.

Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.www.law.harvard.edu/unger

Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: TrêsabraçosPróximo Texto: FrasesÍndice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônicoou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.