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Matinê

Numa tarde em 1920, um jovem pianista sentou-se em uma sala fechada compersianas na capital da derrotada Alemanha e executou uma bagatela* deBeethoven. Na volta do tema principal, um de seus dedos torceu-se ligeira-mente, pressionando duas teclas em vez de uma. “Donnerwetter!” (“Droga!”),gritou Wilhelm Kempff. Ele olhou ao redor e viu rostos desanimados. “Belaexecução”, disse o operador, “mas a gravação agora está arruinada.”1

Este deslize, relembrado por Kempff anos mais tarde, representa um mo-mento decisivo nos anais da execução musical — o momento em que ummúsico se deu conta de que o ato de gravar requer uma disciplina e um tempe-ramento diferentes daqueles associados ao ritual dos concertos públicos. Ti-vesse Kempff esbarrado seu dedo enquanto se apresentava num palco, teriapor certo continuado sem problemas, sabendo que poucos na platéia teriampercebido a falha ou sequer se lembrado dela depois. Numa gravação, contu-do, qualquer imprecisão seria registrada para sempre, tornando-se mais grave edesagradável a cada nova audição. Não havia onde se esconder num disco,nenhum disfarce possível para deficiências técnicas ou fraqueza de interpreta-ção. O artista ficava então sujeito a um julgamento sem tréguas, não podendose permitir ilusórios desvios de atenção.

É comumente aceito que a gravação do som teve seu início em 1877, quan-do o inventor Thomas Alva Edison, com voz esganiçada, entoou a canção in-fantil “Mary had a little lamb” [“Maria tinha um carneirinho”] num fonógrafo; eque alcançou o mercado de massas pela primeira vez em 1902, com o tenor

*Peça musical leve e ligeira, normalmente para piano solo. (N. do R. T.)

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napolitano Enrico Caruso cantando árias numa corneta de latão. Mas o nasci-mento da gravação como ato musical, separado e distinto da execução ao vivo,veio apenas em 1920 com o indelével palavrão de um artista alemão, poucodepois da Primeira Guerra Mundial. Kempff teve como mentor JosephJoachim (amigo de Brahms) e, apesar de ser bem enraizado no romantismo doséculo XIX, foi suficientemente astuto em perceber na gravação um potencialque se estendia além da atração óbvia de ganhar dinheiro. O que ela prometia,uma vez que o artista tivesse superado o medo de errar, era a chance de seconseguir uma execução perfeita. Pela primeira vez na história da cultura, pre-cisão e velocidade transcendiam a inspiração como objeto da execução, e nãofaltaram jovens ambiciosos, como Kempff, ávidos em usar o novo meio.

Os veteranos protestaram. O pianista profissional Artur Schnabel, um ho-mem de visão ampla e humor cáustico, argumentou que o ato de gravar ia“contra a própria natureza da execução musical”, por conta da eliminação docontato visual entre executante e ouvinte, com isso desumanizando a arte.2 Amúsica era, segundo ele, um evento único no tempo: uma obra, uma vez exe-cutada, jamais soaria outra vez exatamente da mesma maneira. Schnabel deu ascostas solenemente às impertinências mecânicas. Kempff, enquanto isso, en-frentava dilemas inéditos, tanto morais como estéticos. A gravação era, comoele logo descobriu, naturalmente competitiva. Se antes da Primeira GuerraMundial ninguém poderia afirmar, com base em argumentos razoáveis, queFerrucio Busoni era um pianista melhor que Ignacy Jan Paderewski, agora erapossível comparar Kempff com Wilhelm Backhaus e, partitura no colo e cro-nômetro na mão, conferir cada nota na Sonata Ao Luar, avaliando cada movi-mento segundo as próprias indicações metronômicas de Beethoven, a fim deprovar que Kempff era materialmente superior. Uma querela enorme viria emseguida. Artistas tornaram-se inimigos amargos e o público ficou confuso.Logo não seria mais suficiente possuir uma gravação da Sonata Ao Luar naestante da sala; duas ou três versões demonstrariam fôlego intelectual e tole-rância civilizada. Tal como os imperadores em Viena, que promoviam compe-tições ao teclado entre Mozart e Clementi, pacatos cidadãos em Peckham ouem Pittsburgh agora colocavam Rachmaninov e Vladimir Horowitz em con-fronto direto. Algo do mundo da competição esportiva passou a fazer parte dojogo musical.

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Kempff, que morreu aos 95 anos, foi um mestre do estúdio. Sua articula-ção era explícita, com as notas separadas umas das outras como pérolas numcolar, e suas interpretações nunca pecavam por excesso de individualidade.Gravou a maioria das peças-chave do repertório clássico pelo menos duas ve-zes, comprou um castelo perto de Bayreuth, na Alemanha, e permaneceucomo artista exclusivo da Deutsche Grammophon de 1935 até sua morte, em1991. Apesar disso, e mesmo com seus discos espalhados por milhares de lares,Kempff jamais foi um nome familiar. Carente de carisma no palco, até 1951ainda não havia se apresentado em Londres ou em Nova York, e muitos dosque esperaram em filas por horas para ouvi-lo ao vivo sustentam que, em com-paração, suas apreciadas interpretações de estúdio pareciam fraudes. Onde es-tariam o arrebatamento e as sutis variações de colorido quando aquelehomenzinho sem graça se sentava num palco? Houve quem visse Kempffcomo uma criação artificial — um solista que não poderia ter ficado célebreantes do anonimato da gravação. Sua fama vinha do trabalho que ele realizarano escuro, longe do contato com a realidade social ou política. Suas memóriasmostram-no como um indivíduo intocado pelos traumas de seu tempo, porHitler ou pela histeria coletiva, chegando mesmo a ignorar, quando tocou emCracóvia durante a ocupação da Polônia pelos alemães, que se encontrava amenos de uma hora de automóvel do campo de concentração de Auschwitz.3

Schnabel, ao contrário, estava em estreita harmonia com a vontade do pú-blico, e acabou concordando em gravar, com a condição de que seu trabalhofosse vendido somente na Europa e no Império Britânico, excluindo a Améri-ca, porque lá o público não teria a possibilidade de comparar sua presença aovivo com o seu substituto, o disco. A idéia do contato visual continuou domi-nando sua mente. Sociável e poliglota, além de ter uma imponente presença aoteclado, Schnabel reeditou as 32 sonatas de Beethoven e executou-as na ínte-gra, da primeira à última, em sete recitais realizados em Berlim em 1927, porocasião do centenário da morte do compositor. O ciclo foi repetido por duasvezes em Londres e, ao mesmo tempo, gravado para o selo His Master’s Voice.A última caixa da série de 100 discos, vendidos antecipadamente medianteassinatura, veio a público em 1939. Schnabel introduziu, com esse ciclo, umduplo padrão de integridade no processo de gravação: o das obras completas,executadas pelo mais destacado intérprete. Mas a idéia de gravar ciclos com-pletos tinha outra vantagem, que era a de vender às pessoas obras que elas

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nunca quiseram ou de cuja existência sequer sabiam. Assinantes que aguarda-vam pela Sonata Ao Luar, pela Hammerklavier ou pela imponente Sonata opus111 recebiam, juntamente com essas obras-primas, discos com sonatas menosinteressantes. O Beethoven de Schnabel mostrou que os grandes composito-res podiam ser vendidos para o público da classe média emergente como umitem obrigatório na sala de estar, como a Enciclopédia Britânica, as peças deShakespeare ou um vaso de aspidistra.*

Gravar também não foi uma tarefa fácil para Schnabel, e o produtor tinhaaté mesmo que levar sua bela sobrinha para virar-lhe as páginas da partitura,criando assim a ilusão de uma platéia. “Era uma agonia, que chegava ao deses-pero”, ele relatou. “Tudo era artificial — a luz, o ar, o som —, e levou muitotempo até que eu conseguisse que os técnicos ajustassem alguns de seus equi-pamentos à música.”4 Suas gravações, entretanto, são a antítese do artificial.Elas palpitam de espontaneidade e são salpicadas com notas erradas, cintilandoem seu desprezo pela precisão e em sua busca por significados profundos. Porocasião de sua morte, em 1951, Schnabel foi saudado pelo pianista chilenoClaudio Arrau como sendo o primeiro a “ilustrar o conceito do intérpretecomo servo, e não como explorador da música”.5

A indústria fonográfica, contudo, não teve escrúpulo com relação à explo-ração. Ela tomou o conceito de integridade de Schnabel e o vendeu de portaem porta em lares que incluíam em sua mobília grandes toca-discos. Se, porum lado, o praguejar de Kempff definiu a música ex machina, a bênção deSchnabel, por outro, colocou as obras completas de Beethoven ao alcancedoméstico.

Sons registrados antes disso são, essencialmente, de interesse apenas arqueoló-gico. Ouvir em meio a uma aura de ruídos a voz de Francesco Tamagno (1850-1905) cantando o Otelo original de Verdi, ou a de Alessandro Moreschi(1858-1922), o último castrato,** é uma experiência fascinante, mas que costu-ma ser muito breve. A afinação flutua, o ruído mascara a informação e qual-quer tentativa de apreensão da musicalidade do cantor requer um salto de

*Planta ornamental muito resistente, popular nos lares ingleses. (N. do T.)**Soprano ou meio-soprano do sexo masculino cuja voz era preservada pela castração antes da puberdade.Muito em demanda na ópera italiana dos séculos XVI e XVII, essa prática perdurou até o século XX emalgumas igrejas. (N. do T.)

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imaginação por parte do ouvinte. A impressionante Nellie Melba surge débil;Eva Tetrazzini, empobrecida; Amelita Galli-Curci, desagradável. Exemplaresem perfeito estado desses objetos alcançam milhares de dólares em leilões (umávido colecionador moderno foi o bilionário do petróleo John Paul Getty),mas a tecnologia precária impossibilita qualquer tipo de satisfação artística.

As primeiras gravações a vencerem o problema dos ruídos mecânicos esuperficiais foram obtidas pelo jovem americano Fred Gaisberg para as dezárias cantadas por um expansivo napolitano, Enrico Caruso, num hotel emMilão, um andar acima da suíte onde, um ano antes, Verdi havia morrido.Quando era garoto, em Washington, Gaisberg costumava passar o tempo, de-pois das aulas, com mascates em barracas de rua. Como pianista razoável, ga-nhador de uma bolsa municipal, ele acompanhava cantores e assobiadores quetentavam deixar seu som gravado, a despeito das limitações do cilindro deEdison. Em 1893 ele conheceu Emil Berliner, um imigrante judeu-alemãoque havia inventado um disco plano e era, além disso, “o único, dentre asmuitas pessoas ligadas ao gramofone que conheci, genuinamente musical eculto”.6 Gaisberg, então com dezenove anos, se ligou a Berliner como “faz-tudo”, tocando piano quando necessário, conseguindo dinheiro, demonstran-do o disco aos Laboratórios Bell e descobrindo artistas. Foi o primeiroprodutor profissional de discos e, um século depois, muitos ainda o conside-ram o maior.7 Edison gravou o som, Berliner inventou o gramofone eGaisberg criou a indústria do disco: eles formam o triunvirato dos pais da gra-vação fonográfica.

Berliner se juntou a Eldridge Johnson, um mecânico de motores deCamden, em Nova Jersey, na manufatura de gramofones chamada Compa-nhia Victor Talking Machine. Gaisberg instalou seu primeiro estúdio de grava-ção na Rua 12, em Filadélfia. Convenientemente, Camden ficava do outrolado do rio. Em 1898, Berliner o enviou em caráter permanente a Londres paradirigir a filial da sua Companhia Gramophone and Typewriter, cujo nomelogo seria mudado para His Master’s Voice (HMV) após a aquisição de umaemblemática pintura retratando um cão e um gramofone, feita pelo artistaitinerante Francis Barraud. Um sobrinho de Berliner que viajou com Gaisbergfoi para Hanover, onde fundou a Deutsche Grammophon Gesellschaft.Gaisberg, aos 25 anos de idade e transbordando de espírito de aventura, selançou pelo Cáucaso, na Rússia, e depois viajou até a Índia, em companhia de

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seu irmão caçula Will, registrando sons remotos, tais como cantores guturais egrupos folclóricos tocando música de casamento, para um público de final deimpério. Gaisberg, o grande produtor, jamais se casou: o gramofone foi o amorde sua vida.

Em uma visita ao teatro Scala de Milão, em março de 1902, Gaisberg ficouimpressionado com o tenor principal na nova e efêmera ópera de AlbertoFranchetti, Germania. Por intermédio do pianista, Salvatore Cottone, ele abor-dou Enrico Caruso na manhã seguinte e lhe perguntou se gostaria de fazeralgumas gravações. O napolitano, atento às suas estréias iminentes no CoventGarden de Londres e no Metropolitan Opera de Nova York, cobrou 100 librasesterlinas por dez árias. Gaisberg pediu a autorização da matriz em Londres eobteve uma resposta imediata: “Cachê exorbitante, proíbo-o terminantementede gravar.” Apesar disso, ele foi adiante. Baixo, gordo e feio, Caruso não tinhaos atributos de um astro, mas o público daquele tempo estava muito maisinfluenciado pelo que ouvia do que pelo que via no palco ou em fotos naimprensa. Caruso cantou com sua invejável facilidade, e a gravação ficou ba-lanceada pela suave qualidade baritonal daquela voz, resultando num sucessoinstantâneo, o primeiro hit da era do gramofone. Ao final do ano, ele se tornaramundialmente famoso e fabulosamente rico. Em duas décadas — morreu depleurisia em agosto de 1921, aos 48 anos, enquanto estudava o papel de Eleazarna ópera La Juive, de Halévy — ele contabilizou uma fortuna de dois milhõesde dólares. Trinta anos mais tarde, um filme sobre sua vida estrelado por MarioLanza rendeu 19 milhões de dólares de bilheteria. Foi uma voz que nuncadeixou de vender. (CD 1, p. 179.)

Os Red Labels [Selos Vermelhos] de Caruso convenceram todos os de-mais cantores de que a gravação era mais do que uma curiosidade. As dezprimeiras faixas constituem uma aula de respiração e de estilo verista. LucianoPavarotti, que gravou uma homenagem pop em memória de Caruso, disse queele “é o tenor com o qual todos nós somos comparados (…). Com seu fraseadoincrível e seu instinto musical, ele chegou mais perto do que qualquer um denós da verdade da música que cantou”.8 Depois de Caruso, os cantores pas-saram a gravar rotineiramente. O último cantor da Era de Ouro a entregar ospontos foi o tonitruante baixo russo Feodor Chaliapin. Sua resistência caiu aoconstatar o triplo benefício desfrutado pelos seus colegas: prosperidade, pu-blicidade e um bilhete para a posteridade. Até mesmo Adelina Patti, aposen-

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tada em seu castelo no País de Gales, convocou Gaisberg para que sua vozformidável fosse perpetuada. Após ouvir o resultado, ela não se conteve:“Maintenant je sais pourquois je suis Patti” (“Agora eu sei por que sou a Patti”).

Outros instrumentos musicais eram bem menos convincentes. As or-questras, encolhidas e deturpadas, soavam como se estivessem trancadas numbanheiro com o chuveiro aberto. Os violinistas arranhavam e os pianistas mar-telavam. Para um par de ouvidos musicais e uma mente idealista, os resultadoseram detestáveis, e a conclusão, inescapável. Gaisberg, escrevendo de Milãoem abril de 1909, aconselhou seu irmão a juntar algum dinheiro e mudar deramo:

Sabe, Will, tenho pensado muito ultimamente e cheguei à conclusão de que onegócio do gramofone está esgotado. A novidade já se foi e os dias de grandeslucros ficaram para trás. [As ações da] Gramophone nunca mais voltarão a darquarenta por cento, devendo render apenas de oito a dez por cento em dividen-dos. (...) Será melhor para eles liquidar de uma vez do que afundar indefinida-mente. (…) Eu me sinto, de modo geral, desanimado em relação àsperspectivas do negócio e tenho que alertá-lo de que esta é a sua última chancede salvar o seu dinheiro.9

Poucos no ramo acreditavam que o negócio de gravação iria durar mais do quemodismos paralelos como o estereoscópio ou o balão de ar quente. Já haviaoutros meios mecânicos de se receber música em casa. Marcel Proust, doentee queixoso, deitado na cama, em Paris, ouvia Pelléas et Mélisande diretamente doOpéra, noite após noite, pelo telefone. A Primeira Guerra Mundial, com seusgramofones portáteis e sua febril demanda por música leve feita para dançar,retardou o inevitável, mas logo chegou o rádio, com as primeiras transmissõespúblicas feitas a partir de Filadélfia, em 1920. Dois anos mais tarde a BBC(British Broadcasting Company) transmitia música ao vivo de Londres. AColumbia, fundada em 1889 como principal concorrente da Victor, foi li-quidada. Os outros selos se livraram de suas patentes e estoques e firmaramcontrato em 1925 com os Laboratórios Bell, que haviam desenvolvido umprocesso elétrico de gravação, baseado em avanços nas áreas dos telefones e dosmicrofones. O futuro, como Lenin anunciava na União Soviética, estava naeletrificação.

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A gravação elétrica permitia ao artista se posicionar a alguma distância domicrofone e da orquestra, quase como se estivesse num palco. “Um sussurro auns quinze metros de distância, a reverberação e até mesmo a atmosfera deuma sala de concerto podiam ser gravados — coisas até então impossíveis”,10

maravilhou-se Gaisberg. Os toca-discos elétricos eram caixas com alto-falan-tes frontais — substitutos modestos para a magnífica corneta —, mas sua aceita-ção pelo público foi entusiástica. Em apenas uma semana em 1926, a Victorvendeu 20 milhões de dólares em Victrolas; ao longo do ano anterior, ela havialucrado exatos US$ 122.998,00. Foi como se Caruso tivesse nascido novamen-te. Na sonolenta cidade austríaca de Salzburgo, um inventor adolescente,Wolfgang von Karajan, levou um aparelho construído por ele até a ponte prin-cipal do lugar e aumentou o volume. Em questão de minutos, uma multidãobloqueava o centro da cidade, e a polícia ordenou ao rapaz que o aparelho fossedesligado. “Aquelas pessoas ficaram pasmas”, recordou seu irmão, o futuromaestro Herbert von Karajan. “O som da música saindo de verdade daquelacaixa causou muita sensação.”11

Tinha início a era do entretenimento de massa e da troca de experiências. Anarração de uma luta de pesos pesados pelo título mundial entre Gene Tunneye Jack Dempsey, transmitida pelo rádio, foi lançada em cinco discos. O aviadorCharles Lindbergh teve seu depoimento gravado quando aterrissou após a pri-meira travessia aérea do Atlântico. Quinze associações corais cantaram o hinoreligioso Adeste Fideles no Metropolitan, num total de 4.850 vozes. Toques desinos de igrejas foram gravados em vilas inglesas, assim como o canto dos pás-saros em Auvergne, na França. Os compositores Igor Stravinsky e SergeiRachmaninov, refugiados da Revolução Russa, encontraram nos discos umnovo lar. Béla Bartók, que havia percorrido vilarejos nos Bálcãs com um grava-dor, trabalhou em cima do material folclórico que coletou na criação dos seusquartetos de cordas — as primeiras obras-primas que devem sua existência aoato de gravar. Na Alemanha, Paul Hindemith, Kurt Weill e Stefan Wolpe fo-ram pioneiros em colocar os toca-discos em recitais ao vivo. Weill chegou acompor uma ária para gramofone para uma ópera de 1927 Der Zar Lässt SichPhotographieren [O czar deixou-se fotografar].

Sinfonias e quartetos de cordas continuaram resistindo à gravação. Os dis-cos comportavam apenas quatro minutos de música, e os músicos tinham quecriar pausas para as mudanças de lado dos discos. Quando o compositor inglês

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Edward Elgar regeu suas próprias obras para Gaisberg, o álbum veio com umaadvertência: “Os andamentos nestas gravações não representam necessaria-mente as intenções do compositor.” Richard Strauss, contudo, não tinha taispreocupações, e outros regentes também passaram a freqüentar os estúdios,alguns com relutância, mas quase sem exceção. Uma foto famosa de 1929 cap-tura cinco maestros sisudos num jantar festivo em Berlim: Arturo Toscanini,Wilhelm Furtwängler, Bruno Walter, Otto Klemperer e Erich Kleiber. Todosmundialmente famosos graças aos seus discos.

Toscanini, diretor artístico do Scala de Milão, estreou uma obra deOttorino Respighi, Os Pinheiros de Roma, em que fazia uso do canto gravado deum rouxinol, no que seria a primeira gravação a ser incorporada a um concer-to. Nos Estados Unidos, Leopold Stokowski organizou sua orquestra criandoum “Som Filadélfia”, que acabou se tornando marca registrada para a maisluxuriante precisão. O repertório foi se tornando mais arrojado. Por ocasião docentenário da morte de Schubert, em 1928, a Columbia voltou à cena parapromover um concurso internacional para a composição de um final para aSinfonia inacabada; o vencedor teria seu trabalho gravado. Foram tempos ávidospor novidades e sem discriminação quanto a gêneros. Um selo podia lançarjazz num dia e uma sinfonia no outro. Foi a era do vale-tudo.

E então tudo veio abaixo. Depois da quebra de Wall Street, as vendasanuais de discos nos EUA caíram de 104 milhões em 1929 para apenas seismilhões no ano seguinte. Na Grã-Bretanha, os lucros dos selos HMV e Co-lumbia despencaram de 30 milhões para quatro milhões e meio. Os selosforam então forçados a se fundir, com a criação da Electrical and Music Indus-tries, Ltd. Foram necessários trinta anos para que a EMI recuperasse o volumede vendas de 1929. A recém-criada Decca passou a ser controlada por um jo-vem e habilidoso galês, Edward R. Lewis, que comprou parte da USBrunswick e conseguiu evitar que o novo selo naufragasse, contratando osartistas americanos Bing Crosby e Al Jolson.

Nos Estados Unidos, as gravações de música clássica foram suspensas edezenas de artistas foram demitidos. David Bicknell, assistente de Gaisberg,recorda: “Certa vez, ao retornar ao escritório após o almoço, encontrei umtelegrama onde se lia: ‘Dispensando De Luca e Horowitz. Algum interesse?’“E não somente telegramas — os artistas começaram a chegar em pessoa.[Jascha] Heifetz foi um dos primeiros. Fred convidou-o para almoçar.”12

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Gaisberg, à sua maneira circunspecta, superou o pânico. Já chegando aos ses-senta anos, ele não tinha nenhum cargo executivo na EMI e ganhava menos doque qualquer diretor, mas contava com a confiança dos artistas e entendia me-lhor do que ninguém a dinâmica da indústria da gravação. Ele repetiu seualerta de que a indústria fonográfica poderia acabar a qualquer momento. Suamelhor chance de sobrevivência estava em preservar o melhor da arte de seutempo. “Ele tinha instintos maravilhosos no tocante à direção para a qual aindústria do gramofone estava se movendo como um todo”, disse Bicknell. “Euma das decisões que tomou foi a de trocar a gravação de pequenas peças (oque havia sido a base vital da indústria do disco desde seu início, ou seja, áriasde óperas, peças avulsas para piano etc.) pela criação de uma discoteca.”13

Gaisberg considerava o ciclo de Beethoven por Schnabel (CD 7, p. 186) apedra angular de uma estratégia que poderia tirar a gravação de música clássicade uma trivialidade relativa para o plano da responsabilidade zelosa e da tran-qüilidade econômica. Peças frívolas de exibição vendiam bem em tempos defartura, mas Beethoven era mais necessário do que nunca quando os temposficavam difíceis. Até 1939, quando o mundo entrou em guerra novamente, ociclo de Schnabel havia amealhado lucros de mais de meio milhão de dólares,e Gaisberg foi reverenciado como um santo. Gaisberg levou o que havia dobom e do melhor para a mansão vitoriana na Abbey Road (no bairro resi-dencial de St. John’s Wood, onde a EMI instalou seus estúdios) a fim de fazero registro permanente de seu legado. Edward Elgar dirigiu o garoto YehudiMenuhin na gravação de seu Concerto para Violino; Jascha Heifetz fez a pri-meira gravação do Concerto de Sibelius (CD 9, p. 189); Pablo Casals gravouBach (CD 11, p. 192); Gigli, Supervia e Chaliapin deram o melhor de si; ePaderewski, o leão da Polônia, deixou seu testamento final. Gaisberg tratou atodos os artistas com humildade e respeito, e pode-se afirmar que, sem a suaparticipação, poucos dentre eles teriam entrado para a História. Embora fossebritânico por aculturação, ele incorporava, na opinião de seu assistenteBicknell, “muitas das melhores virtudes americanas: em primeiro lugar, seudestemido interesse em lidar com pessoas difíceis, famosas e extraordinárias,jamais hesitando em falar a verdade sempre que necessário, por menos opor-tuno que isso fosse. Segundo, sua acessibilidade. Finalmente, sua aparênciajovial, que conseguiu conservar até a velhice”.14 Gaisberg, ao morrer em se-tembro de 1951 aos 78 anos, havia acompanhado a evolução da indústria

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fonográfica desde os seus esforços pioneiros até a consolidação das grandesempresas, mudando seu centro de operações da América dos inventores para aInglaterra dos investidores. Foi preciso outra guerra mundial e um ditadorbrutal para que a tendência fosse revertida, colocando os discos de músicaclássica no coração do mercado de consumo de massa e na terra natal dosvalentes.*

A ascensão do fascismo na Itália colocou Benito Mussolini, o novo Duce, eArturo Toscanini, o músico mais importante do país, em conflito imediato.Figura ilustre desde que regera o Réquiem no funeral de Verdi, Toscanini eraum perfeccionista fanático numa terra descontraída, um intérprete funda-mentalista que pregava fidelidade à partitura ao mesmo tempo que fazia ajustestextuais quando julgasse necessário. Entusiasta irresistível, ele revestia suasperformances de ópera italiana e sinfonias alemãs de um fervor renovador.Magro, baixo e com olhos negros, ligou-se em 1919 ao regime fascista por zelopatriótico, mas logo se desiludiu com a violência dos fanáticos. Na noite daMarcha de Mussolini sobre Roma, em outubro de 1922, Toscanini declarouque o ditador era o único homem que ele mataria. Ele recusou-se a permitir queo hino fascista fosse cantado ou que o retrato do Duce fosse colocado no teatroScala. Um tirano para os músicos, chegando a atacar fisicamente aqueles quenão conseguiam atingir suas expectativas, Toscanini defendeu resolutamente asua casa de ópera contra a doutrinação política e também contra qualquer auto-ridade maior que a sua própria.

Em abril de 1923 Mussolini visitou o Scala e foi fotografado com o bri-lhante diretor musical do teatro. Seguiu-se então uma trégua relativa que du-rou até 1929, quando Toscanini deixou Milão para dirigir a Filarmônica deNova York. De volta à Itália no verão, ele foi agredido por simpatizantes doPartido Fascista e colocado em prisão domiciliar. Seu antifascismo atravessouas fronteiras quando Hitler subiu ao poder na Alemanha. Toscanini deixouBayreuth em protesto contra um boicote a artistas judeus e, mesmo correndograndes riscos, viajou até a Palestina para dirigir uma orquestra de refugiados.Desalentado com a situação mundial, ele disse à sua amante, em janeiro de

*A expressão “terra natal dos valentes” (“home of the brave”, no original em inglês) é uma citação do últimoverso do Hino Nacional norte-americano. (N. da E.)

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1935, que “gostaria de encerrar minha carreira no ano que vem, assim queterminar meu qüinquagésimo ano de regência”.15 Recomendou entãoWilhelm Furtwängler, que por sua vez estava passando por momentos difíceiscom os nazistas, para ser seu substituto na Finlândia. Furtwängler, contudo,decidiu permanecer na Alemanha. Toscanini jamais voltou a falar com ele.

A notícia do estado de espírito de Toscanini chegou a David Sarnoff, fun-dador da RCA (Radio Corporation of America), que era dona da NBC(National Broadcasting Company) e do selo Victor Records. Sarnoff, um rus-so fumante de charutos e amante da alta cultura, farejou uma oportunidade.Encarregou Samuel Chotzinoff, cunhado do violinista Jascha Heifetz, de ofe-recer a Toscanini uma orquestra na NBC com os melhores músicos dos Esta-dos Unidos. Seu salário seria de 40 mil dólares, livres de impostos, para dozeconcertos — quatro vezes o seu cachê na Filarmônica. Além disso, os direitosautorais pelas gravações constituiriam polpudos rendimentos para os seus des-cendentes. Toscanini aceitou.

Seu retorno aos Estados Unidos foi anunciado com uma hipérbole dignade uma segunda chegada (na verdade foi sua terceira). Uma pesquisa de opi-nião da revista Fortune mostrou que dois em cada cinco americanos conheciamo seu nome. Sarnoff apresentou-o no ar como o “maior maestro do mundo”.Vinte milhões de pessoas ouviram pelo rádio seu concerto de estréia no Natalde 1937, com obras de Vivaldi (Concerto Grosso em Ré menor), a Sinfonia Nº40 em Sol Menor de Mozart e a Sinfonia Nº 1 de Brahms. Toscanini voltou aopalco sete vezes para agradecer pelos aplausos. Os críticos ficaram impressio-nados. O New York Times chamou-o de “proeminente em sua arte”. O Tribuneaclamou-o como “um marco de sucesso popular sem precedentes”.Chotzinoff informou aos leitores da revista Cosmopolitan que, para cada nação,Toscanini era o intérprete “supremo” de sua música: para os alemães, emBeethoven e Wagner; para os austríacos, em Haydn, Mozart e Schubert; paraos italianos, em tudo; para os franceses, em Debussy; para os ingleses, emElgar. Ele foi o único regente que todos queriam ouvir, e isso era exatamente oque Sarnoff queria que todos lessem.

Quando Pearl Harbor levou os Estados Unidos à guerra, o antifascismo deToscanini fez dele um herói nacional. “Sua batuta”, disse o presidenteRoosevelt, “tem falado com inigualável eloqüência em favor dos aflitos e opri-midos.” Todos o chamavam de “O Maestro”, como se não houvesse nenhum

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outro. “Ele acredita friamente que não é apenas o maior regente do mundo,mas o único bom”16, observou o diretor musical da RCA Victor, CharlesO’Connell, ele mesmo um regente nas horas vagas.

“Quando me sentava muito perto de Toscanini”, escreveu o líder do naipedas violas William Primrose, “eu acreditava, sem restrições, que tudo o que elefazia era incontestável. Depois que deixei a orquestra e passei a ouvi-lo comoparte da platéia, não tinha mais tanta certeza.”17 “Toscanini na verdade nãogostava de gravar discos”, escreveu outro violista, Milton Katims. “Ele nãodemonstrava interesse pelos problemas envolvidos, e raramente ia (se é que foialguma vez) à sala de controle para conferir os resultados de uma gravação.Apesar disso, ele estava ciente da diferença de qualidade de som entre suasgravações e as de outros regentes.”18

As gravações de Toscanini, a despeito de sua incontestável autoridade, fo-ram prejudicadas pela acústica deficiente do estúdio 8H da NBC, rompendotimbres filigranados e exacerbando o que Furtwängler chamaria cruelmente de“clareza impiedosa” do som orquestral americano. O compositor VirgilThomsom, um cético solitário entre a claque dos críticos, observou: “A excita-ção está na essência do conceito de execução musical de Toscanini.” Ele admi-tiu, porém, que “o ouvinte acaba hipnotizado”.19

Sarnoff determinou que “todas as gravações de Toscanini, a despeito dequalquer compromisso dele para com quaisquer outros artistas ou qualquerconsideração das necessidades impostas pela divulgação, propaganda, distri-buição etc., devem ser colocadas no mercado no prazo de trinta dias”. 20 Toda aempresa foi engajada em magnificar a intocável imagem de Toscanini. O’Connell,um sujeito tagarela que irritou o maestro com críticas, foi demitido por ordemdele e jamais pôde voltar a trabalhar. O próprio Sarnoff sentiu o peso da mãodo maestro quando Toscanini se recusou a reger na NBC ao saber que suaorquestra estava sendo usada para concertos populares. Sarnoff propôs-lhe arealização de gravações com a esplêndida Orquestra de Filadélfia, com genero-sos cachês. Toscanini concordou, mas depois vetou o lançamento dos discos.Quando Stokowski conseguiu, não sem forte contestação, os direitos para aestréia americana da Sinfonia Nº 7 (Leningrado) de Shostakovich, Toscaniniconseguiu que Sarnoff arrancasse a peça das mãos dele e a entregasse ao“Maestro Número Um” do sistema. O absolutismo não foi suficiente para ele.No Carnegie Hall, num concerto com seu genro Vladimir Horowitz, ele

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levantou 10 milhões de dólares em bônus de guerra e mais um milhão, no inter-valo, leiloando sua partitura do hino “The Star-Spangled Banner”. No Dia daVitória ele regeu a sinfonia comemorativa. Em 18 de março de 1948, dirigiu oprimeiro concerto televisionado de uma sinfonia nos Estados Unidos.

Sua proeminência reordenou as hierarquias da gravação. Uma indústriaque enriquecia cantores e solistas agora dava asas ao mito do líder messiânicoque agitava sua batuta no ar vazio e produzia uma enxurrada de sons. O maes-tro se tornaria a figura principal dos selos de música clássica. A RCA contratouSerge Koussevitsky em Boston e Eugene Ormandy em Filadélfia, além do pro-lífico Stokowski. A Columbia voltou a competir no mercado em 1938, quandofoi comprada num jogo de pôquer por William Paley, filho de um judeu-russofabricante de charutos e fundador da CBS (Columbia Broadcasting System).Paley roubou o “melhor vendedor de discos” da RCA, Edward Wallerstein,um esteta ardiloso que mudou o nome dos discos da Columbia para “Master-works” (“Obras dos Mestres”) e alavancou as vendas de clássicos de poucomais de um milhão de dólares em 1939 para 12 milhões em 1945.

A origem dessa prosperidade estava no compositor inglês GoddardLieberson, recrutado por Wallerstein como ímã para atrair maestros. Alto, comas unhas perfeitamente cuidadas e fluente em várias línguas, Lieberson fun-dou, aos 28 anos de idade, a Aliança Americana de Compositores, e tinha IgorStravinsky entre seus amigos. Ele escrevera um romance água-com-açúcar,Three for Bedroom C (Três para o apartamento C), no qual se baseou um filmeinexpressivo estrelado por Gloria Swanson, e tinha tentáculos em várias áreas.Lieberson caiu na estrada com um talão de cheques cheio. Em Cleveland elecontratou o militante cristão Artur Rodzinski e, em Minneapolis, o dinâmicogrego Dmitri Mitropoulos. Ambos seriam, com a ajuda do selo, promovidospara a Filarmônica de Nova York. Em guerra declarada, Lieberson arrancouOrmandy da RCA, que por sua vez recrutou Pierre Monteux em São Francis-co e Eugene Goossens em Cincinnati. Ambos os selos patrocinaram seus ma-estros em turnês pelo país, divulgando o evangelho sinfônico. Os concertosorquestrais passaram a fazer parte da vida urbana, apoiados por solícitos ex-combatentes, educados pelo GI Bill.* Os cenhos se franziram no coração dosEstados Unidos.

*Programa norte-americano de auxílio educacional para veteranos de guerra. (N. do T.)

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Toscanini, o homem que havia iniciado essa revolução cultural, estava de-bilitado demais para saborear a sua concretização. Em 4 de abril de 1954, apósum lapso de memória no ar enquanto regia a abertura de Tannhäuser, deWagner, ele descansou a batuta. Ao morrer em 1957, pouco antes de completar90 anos, deixara 160 gravações, um legado de andamentos precisos, estruturasrígidas e sonoridades febris. Seus rivais na célebre fotografia de Berlim herda-ram os prêmios. Bruno Walter desfrutou um veranico na CBS Masterworks,enquanto Kleiber e Klemperer trabalhavam para a Decca e para a Vox.Furtwängler voltou atrás e assinou com a EMI. “Quando ouvi minha primeiragravação, eu realmente me senti mal”, disse. Seu estilo de regência, a antíteseda “clareza impiedosa” de Toscanini,21 era condicionado pelo estado de espíritoda ocasião. O concerto para violino e orquestra de Beethoven, gravado em1944 em Berlim, é tão carregado nos timbres escuros que soa como o Crepús-culo dos Deuses de Wagner. A mesma obra, gravada com Menuhin em 1947,banha-se de nostalgia romântica. Furtwängler foi um regente para todas asestações. Na Viena dos anos 1950, dois estudantes de música, Claudio Abbadoe Zubin Mehta, entraram para o coro da Filarmônica só para observar seusfantásticos ensaios. Um garoto judeu de dez anos, Daniel Barenboim, veiobuscar sua bênção. Havia uma aura sacerdotal em torno desse intelectual flexí-vel e autocontraditório.

A morte de Furtwängler em 1954 encerrou um capítulo criativo na históriada regência, mas, tão logo ele saiu de cena, sua influência estética redobrou. Osregentes almejavam fundir o caráter ao mesmo tempo cerebral e instintivo deFurtwängler com a exatidão metronômica de Toscanini. O híbrido resultante,conhecido como “toscwänglerismo”, deliciou a indústria fonográfica, quepensou ter alcançado o melhor de ambos os mundos.

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