machado filho, oswaldo. ilegalismos e jogos de poder - um crime célebre em cuiabá (1872) e suas v

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OSWALDO MACHADO FILHO ILEGALISMOS E JOGOS DE PODER: um crime célebre em Cuiabá (1872) e suas verdades jurídicas (1840-1880) Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor, Curso de Pós- Graduação em História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Orientador: Prof. Dr. Paulo Celso Miceli CAMPINAS 2003

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  • OSWALDO MACHADO FILHO

    ILEGALISMOS E JOGOS DE PODER:

    um crime clebre em Cuiab (1872) e suas verdades jurdicas

    (1840-1880)

    Tese apresentada como requisito parcial obteno do grau de Doutor, Curso de Ps-Graduao em Histria, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Estadual de Campinas UNICAMP. Orientador: Prof. Dr. Paulo Celso Miceli

    CAMPINAS

    2003

  • OSWALDO MACHADO FILHO

    ILEGALISMOS E JOGOS DE PODER:

    um crime clebre em Cuiab (1872) e suas verdades jurdicas

    (1840-1880)

    CAMPINAS

    2003

  • TERMO DE APROVAO

    ILEGALISMOS E JOGOS DE PODER:

    um crime clebre em Cuiab (1872) e suas verdades jurdicas

    (1840-1880)

    Tese aprovada como requisito parcial para obteno do grau de Doutor, no curso de Ps-Graduao em Histria, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, da Universidade Estadual de Campinas UNICAMP -, pela Banca de Exame formada pelos professores doutores: Orientador: Prof. Dr. Paulo Celso Miceli Depto. de Histria UNICAMP

    Prof. Dr.

    Prof. Dr.

    Prof. Dr.

    Prof. Dr.

    Campinas, agosto de 2003.

  • ... a solido da gente s deve ser repartida com solitrios que se parecem conosco, ou que sejam to diferentes que enriquecem a convivncia, fazendo da vida uma coisa emotiva, gostosa, rica e sempre renovada. bem melhor do que ter um carro novo ou um sapato limpo.... (Paulo Miceli, SP, 26/10/1983)

  • A meu pai, Diquinho, um pioneiro da indstria algodoeira, que me ensinou o gosto pela histria (in memorian).

  • SUMRIO

    Introduo .........................................................................................................3 Dilemas de um percurso................................................................................................... 3 O cenrio de uma trama. ................................................................................................. 9 Uma modernizao incipiente. ...................................................................................... 35 Jogos de escala, jogos de poder. .................................................................................... 41 Organizao dos captulos. ............................................................................................ 52 Agradecimentos. ............................................................................................................. 56

    Captulo I Semeando o pavor.......................................................................62 A teatralizao de um crime reputado como hediondo............................................... 62 As personagens entram em cena. .................................................................................. 85 Um Beco chamado Sujo. .......................................................................................... 107

    Captulo II A justia como a alma da sociedade.......................................118 Os primeiros bacharis mato-grossenses.................................................................... 118 Os crimes clebres e a dcada fatdica.................................................................... 132 Os crimes de ocasio e de anomalia volitiva. ............................................................. 148

    Captulo III Uma aventura pelo Taquari. .................................................160 A atribulada comisso do Dr. Melcades ao Coxim................................................... 160 Um inqurito policial em pleno serto........................................................................ 179 Um cadver ambulante retorna ao porto seguro....................................................... 192

    Captulo IV Uma polcia reduzida a casco................................................205 A comisso do Dr. Leite Falco ao Livramento......................................................... 205 Reformas e utopias de tatuar uma nao inteira....................................................... 218 As precariedades de uma encenao utilitarista na terra de pobres. ...................... 237

    Captulo V O gume do olhar ......................................................................345 Movendo coraes e conscincias................................................................................ 345 A verdade no s aquilo que os olhos vem............................................................. 358 A verdade uma agonia que no acaba. .................................................................... 377

    Consideraes finais......................................................................................394 Lista de quadros e tabelas anexos.................................................................406 Anexos............................................................................................................408

  • 2

    Fontes.............................................................................................................434 Referncias bibliogrficas.............................................................................435

  • 3

    Introduo A pequenez dos corpos celestes do mundo interior seria

    uma objeo pouco incisiva, j que a medida do que era grande ou pequeno se perdia o mais tardar no momento em que se evidenciava o carter csmico das partes mais minsculas da matria, e os conceitos de exterior e interior igualmente viam abalada a sua solidez. O mundo do tomo era um exterior, ao passo que, provavelmente, o astro terrestre que habitamos era, organicamente considerado, um profundo interior.1

    Intil dizer-me que no mais existem cidades de provncia, que elas talvez nunca tenham existido, que todos os lugares se comunicam uns com os outros instantaneamente, que a idia de isolamento s pode ser experimentada durante o trajeto de um lugar a outro, isto , quando no se est em lugar nenhum.2

    Dilemas de um percurso.

    O trabalho que ora apresentamos Ilegalismos e jogos de poder tem por objetivo

    investigar, a partir de um acontecimento o crime hediondo perpetrado contra o Ten. Cel.

    da Guarda Nacional, Lauriano Xavier da Silva, na noite do dia 19 de maro de 1872, em

    Cuiab, capital da provncia de Mato Grosso de quais estratgias o poder, em uma

    sociedade escravista, podia lanar mo para controlar os ilegalismos, j que deles vivia e se

    alimentava. Evidentemente, no se trata aqui de defendermos uma tese, mas hipteses, que

    precisam ser constantemente postas em xeque, como sugere Michel Foucault.

    Partindo da idia mais geral de que o poder s se exerce como batalha perptua

    contra todas as formas de ilegalismos, de resistncias, de atritos, em todas as suas

    multiplicidades, o que pretendemos examinar exatamente o fato de que essa luta no se

    reduz a dois plos contraditrios e solidrios (capital e trabalho). E que, portanto, por no

    aceitar o princpio de excluso, que essa batalha acaba por engendrar as formas jurdicas e

    sua verdade e, paradoxalmente, ao mesmo tempo, desnudar, exatamente porque no

    reconhece no Estado o privilgio da totalidade, o custo social do sacrossanto princpio da

    solidariedade.

    Quem institui a verdade? De onde vem a idia de que a solidariedade um princpio

    nato que move a sociedade? Estaria ela imune s relaes de poder? Ou, ao contrrio, a 1 MANN, Thomas, A montanha mgica, p. 318. 2 CALVINO, talo, Se um viajante numa noite de inverno, p. 24.

  • 4

    solidariedade, por sua natureza eminentemente poltica, exige uma militncia constante, o

    que s possvel mediante relaes de poder disciplinadoras? Quem enuncia a liberdade e

    quais objetivos so visados com a sua enunciao? ela instituda ou conquistada, atravs

    dos ilegalismos contra o poder?

    Essas questes, por demais complexas, formam, por assim dizer, os eixos centrais

    que, de uma forma ou de outra, esto presentes nos captulos que compem este trabalho.

    Antes, porm, de enveredarmos por esse intrincado e polmico caminho, faamos algumas

    observaes preliminares que ajudem a compreender os dilemas de um percurso

    privilegiado.

    H alguns anos atrs, quando iniciamos a pesquisa que resultou neste trabalho,

    estvamos interessados em escrever, com uma soberba duvidosa, evidentemente, a histria,

    sem brechas, da criminalidade em Cuiab, no perodo compreendido entre 1840 e 1890.

    Influenciados pelas novas propostas metodolgicas da histria cultural, como se

    possvel uma outra que no fosse cultural, em sua essncia, embrenhamo-nos cata de

    documentos, por mais tnue que pudessem ser suas relaes com a temtica privilegiada, a

    fim de compor um mosaico, o mais completo possvel, a respeito da organizao policial na

    provncia e seus instrumentos de preveno e de represso ao crime, assim como as formas

    de transgresso presentes no dia-a-dia de escravos, libertos e livres pobres.

    Embora esse projeto inicial no tenha sido de todo abandonado, j que a inteno

    sempre foi a de perscrutar, mediante um jogo de tenses, as vozes silenciadas pela trama

    implacvel de um poder que no se cansa de vencer, aos poucos fomos nos dando conta que

    nosso objeto de estudo estava, tal como K., no conto de Kafka, se metamorfoseando.

    Apoiados nos paradigmas dessas novas abordagens histricas, a questo ainda se

    colocava mais ou menos nos seguintes termos: de quais documentos, de quais registros os

    historiadores podem dispor para escutar, ainda que atravs de uma linguagem, de um

    discurso filtrado, as vozes que teriam sido silenciadas pelas elites, pelos donos do poder?

    Havia e ainda h uma certa unanimidade entre os historiadores que, para aqueles

    perodos da histria marcados por sociedades de homens predominantemente iletrados,

    analfabetos, como era o caso da sociedade escravista no Brasil, no sculo XIX, a

    predominncia de uma histria oficial, no s obscureceu, por ser um discurso que se

  • 5

    define pela eficcia que dele se exige, como pela legitimidade que institui, como tambm,

    por conseqncia, acabou aplainando o que contraditrio.

    Exigia-se, assim, a fim de romper com os pressupostos to bem cunhados por Marc

    Ferro como sendo a radiografia de uma histria institucional, estratgias metodolgicas

    capazes de revelarem os esboos, os rascunhos, as tenses, que os quadros, aps serem

    pintados, nunca explicitam. Em outros termos, a partir dessa metfora da obra de arte, como

    recuperar esses preciosos esboos que ainda pulsam sob as pinceladas decididas do artista?

    Ou ainda, como reaver aquilo que os historiadores, utilizando-se agora a alegoria do

    iceberg, cunharam como sendo a polifonia dos tempos culturais, da multiplicidade dos

    tempos e de subjetividades que pulsam sob a linha dgua?

    Essas novas abordagens que passavam a incorporar como campo de investigao

    simplesmente tudo que dizia respeito ao homem, sem ignorar ou negligenciar qualquer

    evidncia de que ali esteve presente a ao humana, no s ampliaram o campo de

    investigao, como impuseram, por fora desse leque de possibilidades abertas, a interao

    com outras disciplinas. Vrias designaes, cada uma com seus significados prprios,

    foram sendo cunhadas ao longo das ltimas dcadas do poro ao sto; oficina da

    histria; tudo histria; histria no plural; micro-histrias; canteiros da histria,

    dentre uma mirade de outros termos com pretenses de apreender o sentido da histria e

    seus objetos.

    Foi em consonncia com essas salutares metamorfoses, embora muitos historiadores

    vissem nisso sinais evidentes de que a histria havia perdido sua identidade ou entrara em

    crise, que, atravs da introduo de novos objetos, numa ruptura, pretensamente sem volta,

    com o positivismo mais tacanho, a escritura da histria ampliou o seu universo de

    possibilidades no mais uma histria baseada somente no documento escrito, na prova, no

    testemunho, mas com tudo o que, pertencendo ao homem, depende do homem, serve o

    homem, exprime o homem, demonstra a presena, a atividade, os gostos e as maneiras de

    ser do homem.3

    Contudo, essa chamada revoluo documental, caso se restringisse apenas

    ampliao do leque de possibilidades de investigao do passado, apenas acabaria por dar

    uma dimenso nova e sem precedentes justamente ao positivismo que tanto se esforaram

    3 FEBVRE, Lucien apud LE GOFF, Jacques, Documento/Monumento, in: Histria e Memria, p. 540.

  • 6

    os annalistas por criticar. Le Goff, embora afirme que os fundadores dos Annales j

    tivessem dado incio a uma crtica em profundidade noo de documento, reconhece que

    foi preciso ir mais longe. Inspirado em Foucault, procurando romper com a iluso

    positivista, esse historiador compreendeu, afinal, que indispensvel questionar o

    documento, que no deve haver distino entre o monumento, como os monumentos

    lingsticos, e os simples documentos que a revoluo documental acabava de instituir

    como seus novos objetos. Em outros termos, inscrita no binmio documento/monumento,

    revelava-se, finalmente, a ruptura radical com as concepes positivistas, evitando, de

    acordo com suas palavras, que essa revoluo necessria se transformasse num derivativo e

    desviasse a ateno do historiador do seu principal dever a crtica do documento,

    qualquer que ele seja, enquanto monumento. A inspirao foucaultiana, aqui se revela: o

    documento no qualquer coisa que fica por conta do passado, um produto da sociedade

    que o fabricou segundo as relaes de foras que a detinham o poder.4

    Foi com esse esprito que iniciamos nossa pesquisa junto volumosa e preciosa

    documentao existente no Arquivo Pblico do Estado de Matos Grosso, igualmente

    inspirados pela obra de Ginzburg, em especial O queijo e os vermes e Sinais: razes de um

    paradigma indicirio, pela forma como trata o problema da circularidade cultural,

    principalmente quanto apropriao de saberes e as questes relativas s vantagens de uma

    proposta metodolgica assentada na micro-histria. Paralelamente, por se tratar de obra

    obrigatria, lamos o ensaio de Jos de Mesquita, Crimes clebres, onde, dentre os crimes

    que relata, um chamou de imediato nossa ateno sua descrio a respeito daquele

    hediondo crime praticado na noite de 19 de maro de 1872.

    De certo modo, embora Mesquita repute ao inqurito montado para apurar a morte

    do Ten. Cel. Lauriano Xavier da Silva como sendo uma das maiores devassas criminais

    que a polcia e o judicirio mato-grossenses teriam empreendido no sculo XIX, sua leitura

    do documento, por acharmos insatisfatria e apressada, s fez aguar nosso interesse sobre

    o caso.

    Entrementes, enquanto fazamos essa leitura de Jos de Mesquita e amos anotando

    suas observaes de carter historiogrfico com marcantes traos moralizantes e

    disciplinadores, continuvamos dando seqncia nossa pesquisa, na busca de relatrios,

    4 LE GOFF, Jacques, Documento/Monumento, op. cit., p. 545.

  • 7

    boletins de ocorrncias policiais e correspondncias trocadas entre chefes de polcia e

    presidentes da provncia, na tentativa de estabelecer uma cartografia da criminalidade em

    Cuiab e na provncia de Mato Grosso, no sculo XIX. E foi em uma dessas incurses,

    numa leitura desenfreada de uma vasta e variada documentao acondicionada, de modo

    totalmente inapropriado, em latas, para desespero do prprio diretor do Arquivo, que nos

    deparamos com um parecer extremamente denso e detalhado, elaborado pelo chefe de

    polcia, Dr. Jos Marcelino de Arajo Ledo Vega, relativo quele crime.

    Para nossa maior surpresa, esse relatrio sobre o inqurito policial oferecia nossa

    observao e anlise uma outra verso, uma outra verdade, por assim dizer, a respeito de

    um mesmo acontecimento. Tnhamos, agora, a certeza de que Jos de Mesquita jamais

    chegou a tomar conscincia desse parecer, e que suas consideraes a respeito estavam

    fundadas exclusivamente na leitura que fizera do prprio inqurito. Embora longe de

    querermos estabelecer um paralelo inspirado, a leitura do antolgico texto Las Meninas,

    de Michel Foucault, sugeria e aguava nossa imaginao para o fato de que o historiador,

    diante da possibilidade de examinar o aludido inqurito, poderia estabelecer uma outra

    alternativa de leitura. Tal como no jogo de espelhos sugeridos por Foucault sobre o quadro

    de Velsquez, imaginvamos esse tringulo virtual, onde os signos se remeteriam uns aos

    outros sem jamais estabelecerem campos de visibilidades compatveis.

    Deixando-nos guiar ao sabor das surpresas que a investigao dia aps dia ia nos

    oferecendo, comeamos a perceber que essas revelaes, que a princpio deveriam apenas

    fazer parte de uma investigao mais ampla e generalizante, comeavam a ganhar corpo e a

    instigar a imaginao do historiador. Porm, faltava o ltimo elo desse tringulo. E a sorte

    conspirou a nosso favor, pois foi no transcurso de nossas investigaes que o enorme

    processo descrito por Jos Mesquita veio parar em nossas mos e, apesar da ao corrosiva

    do tempo, ainda guardava intactas pginas preciosas de um inqurito policial

    verdadeiramente fascinante. No o tnhamos por inteiro, pois muitas passagens tinham

    desaparecido ou haviam servido de alimento para os cupins. Pouco importa, sem perder de

    vista as antigas perspectivas, percebamos que a borboleta j dava sinais de que em breve

    haveria de abandonar o casulo.

    Porm, ao contrrio dessa magnfica obra da natureza, cujo sentido de uma durao

    efmera prende-se exclusivamente necessidade da reproduo e perpetuao da espcie,

  • 8

    tnhamos medo que a oportunidade nica de deitarmos nosso olhar para um exame mais

    acurado de volumoso processo no viesse a frutificar. De certo modo, no dispnhamos da

    mesma certeza de Ginzburg, que ao se deparar com o processo inquisitorial sofrido por

    Menocchio, o moleiro friulano, quando estudava as atitudes religiosas e a mentalidade da

    sociedade camponesa friulana, entre o final do sculo XVI e meados do XVII,

    simplesmente anotou o nmero de registro do processo, para, anos depois, ler e escrever a

    sua mais famosa obra e, ao mesmo tempo, a que tambm gerou mais polmica entre os

    historiadores.

    Entre um trabalho de carter mais generalizante e a oportunidade rara de um estudo

    de caso, o dilema aflorou de imediato. Mesmo rompendo com teorias que transformam em

    leis universais o que deveria ser abordado, numa perspectiva mais precavida, como

    tendncias, a vertente da micro-histria, que parte do particular para o geral, como parece

    ser o caso de Ginzburg, apenas desloca o problema para o mtodo de investigao, mas no

    resolve a questo.5

    Talvez, o mais razovel seja estabelecermos entre essas duas possibilidades uma

    linha de tenso o indivduo age inspirado, ou pressionado, pelas contingncias da vida,

    que sobre ele atua muitas vezes de forma inesperada, mas que suas opes no so infinitas,

    justamente porque, pensando aqui nas relaes de poder, na sociedade disciplinar, nas

    normas, esse indivduo no est solto no mundo e nem um ser extraterrestre. Para os

    propsitos que temos em mente neste trabalho, o questionamento que Lynn Hunt faz a

    respeito dos rumos que o debate vem tomando bastante sugestivo:

    Uma histria da cultura poder funcionar se estiver despojada de todo e qualquer pressuposto terico sobre a relao da cultura com o universo social se, de fato, o seu programa for concebido como o solapamento de todos os pressupostos acerca da relao entre a cultura e o universo social?6

    As personagens que iro desfilar nesta nossa narrativa, neste sentido, no so

    fictcias e nem agiram de acordo com uma vontade prpria e absoluta. Entretanto, preciso

    que se esclarea, desde j, que esse espao relativo de possibilidades nada tem a ver com as

    categorias metodolgicas geertzianas, pois no se trata de afirmar que os indivduos esto

    5 Cf, p. ex., a crtica implacvel que Durval de Albuquerque Jnior faz a Ginzburg, em Mennocchio e Rivire:

    criminosos da palavra, poetas do silncio, in: Resgate Revista de Cultura, p. 48-55. 6 HUNT, Lynn, Apresentao histria, cultura e texto, in: HUNT, Lynn (org.). A nova histria cultural, p.

    13-4.

  • 9

    presos a teias que os imobilizam, competindo ao historiador apenas proceder a uma

    descrio densa do que v, ou seja, interpretar os contextos simblicos, j que essa

    antropologia tende a ignorar a transformao, a dinmica histrica.7

    Enfim, retomando ao nosso ponto de partida, em que termos devem ser discutidos

    os enunciados liberdade e solidariedade? At que ponto as anlises de Ginzburg, ou at

    mesmo as competentes reflexes de E. P. Thompson e de Natalie Davis, a respeito dos ritos

    de violncia, so satisfatrios para a elucidao desses enunciados?8 Mais ainda, ser que

    as consideraes de Foucault sobre a sociedade disciplinar na Europa, podem ser

    transpostas, sem que seja estabelecida uma condicionalidade, para uma provncia pobre e

    deficitria como era Mato Grosso no sculo XIX?

    Mas deixemos, por ora, essas questes para um momento mais apropriado e

    tentemos agora, sem a pretenso de oferecer uma contextualizao exaustiva, no s porque

    a julgamos desnecessria, mas tambm porque no esse o propsito de nossa narrativa,

    construir um cenrio provisrio, um cenrio em constante transformao, aonde ir se

    desenrolar o crime.

    O cenrio de uma trama.

    Cuiab, palco de nossa trama, no passava, por volta da dcada de 1870, de uma

    pequena e modesta capital da provncia de Mato Grosso, que crescera de forma

    desordenada, obedecendo topografia irregular de morros e crregos que a cruzavam.

    Enquanto as habitaes da classe operria paulista, desde o incio de sua

    industrializao, passaram a ser construdas ao longo dos caminhos tortuosos das estradas

    de ferro, na regio de vrzea, a populao pobre de Cuiab ia edificando suas casas em um

    pequeno vale margem direita do crrego da Prainha, certamente a principal referncia da

    cidade, rumo ao rio Cuiab, onde se localizava o 2 distrito a freguesia de So Gonalo de

    Pedro II. esquerda desse crrego, a contar do alto da colina do Rosrio, em homenagem

    igreja de igual nome que ali se edificara, as habitaes eram mais espaadas entre si,

    7 Cf, para uma contraposio a essa antropologia interpretativa, SAHLINS, Marshall, Ilhas de Histria,

    1990. 8 Cf, p. ex., as consideraes que Suzanne Desan tece s obras de Thompson e Natalie Davis, em Massas,

    comunidade e ritual na obra de E. P. Thompson e Natalie Davis, in: HUNT, Lynn (org.). A Nova Histria Cultural, op. cit., p. 63-96.

  • 10

    provavelmente porque o terreno se apresentasse mais acidentado, mas que aos poucos foi se

    adensando em funo da igreja, possibilitando, mais tarde, o surgimento de novas ruas e

    caminhos que se destinavam ao Coxip da Ponte e freguesia de Santo Antnio do Rio

    Abaixo.

    Por ser a sede do governo provincial, a cidade abrigava na parte central, nas ruas

    que iam sendo formadas, a partir da igreja do Senhor dos Passos,9 e que seguiam

    paralelamente margem direita do Prainha, rumo ao largo da Matriz, os principais sobrados

    de ricos senhores e os prdios onde se alojavam a Cmara Municipal, a Matriz, a

    Tesouraria Provincial, o Correio, o Comando das Armas, a Repartio da Polcia e o

    Palcio Presidencial esse era o 1 distrito ou freguesia da S. Mais distantes, colina do

    Rosrio acima, achava-se instalada a Santa Casa de Misericrdia, destinada a atender quase

    que exclusivamente a populao pobre, presos miserveis, sentenciados ou correcionais,

    escravos e alienados mentais. Mais afastado, a uma lgua e meia, aproximadamente, do

    centro da cidade, ficava o Hospital de So Joo dos Lzaros, onde cerca de duas dezenas de

    morfticos, entre homens e mulheres, ficavam confinados e vivendo em condies

    precrias e desumanas, merc do que podiam produzir por conta prpria, da caridade

    pblica e da Santa Casa, qual estava ligado.

    Praticamente todas as ruas da cidade, apesar da Cmara Municipal estabelecer

    nomes oficiais ligados quase sempre a heris ou datas comemorativas, o povo resistia e

    continuava chamando-as por topnimos que lembravam as suas caractersticas fsicas e

    geogrficas, que a imaginao popular vinha cunhando desde os tempos coloniais rua de

    Baixo, rua do Meio, rua de Cima, beco Sujo, beco Quente, beco do Candeeiro, beco Torto,

    beco da Botica, dentre outros. A rua Bela do Juiz, que abrigava em sua parte central as

    residncias mais elegantes, comeava no largo da Matriz e rumava em direo ao distrito de

    So Gonalo de Pedro II. De igual modo, o antigo Caminho do Porto, como o prprio nome

    indica, ligava o 1 distrito ao Porto Geral, que, por se achar afastado do centro, era

    considerado um bairro suburbano. Algumas dessas ruas centrais chegaram a receber

    calamento de pedras de cristal, mas somente no final do sculo XIX teria incio a

    pavimentao da rua 13 de Junho pelo sistema macadame.10

    9 Referncia importante, como se ver mais frente, nesta narrativa. 10 Macadame Sistema de calamento que consiste numa camada de pedra britada com cerca de 0,30 cm de

    espessura, aglutinada e comprimida.

  • 11

    Ao redor do distrito da S, a lenta expanso populacional foi incorporando

    paisagem alguns bairros suburbanos, como a Mandioca, o Ba, o Lavaps e o Mundu,

    espaos onde, juntamente com a regio do porto, as ocorrncias policiais eram mais

    freqentes. Alm desses dois distritos em que a capital se dividia, Cuiab ainda contava, na

    dcada de 1870, com outros distritos mais afastados e que faziam parte de sua jurisdio

    judiciria e policial, como o Barbado, o Coxip e So Gonalo Velho. Do ponto de vista

    judicirio, povoaes mais distantes, as vilas ou freguesias rurais, tambm faziam parte do

    Termo de Cuiab Nossa Senhora do Rosrio, Nossa Senhora das Brotas, Nossa Senhora

    da Guia, Santo Antnio do Rio Abaixo, Santana da Chapada dos Guimares e Nossa

    Senhora do Livramento.

    Embora no existam estatsticas confiveis para o perodo, a maioria dos

    historiadores que procuraram abordar o problema, apesar da provncia ter passado por uma

    verdadeira provao durante o perodo da Guerra do Paraguai, afirma que a populao de

    Cuiab teria aumentado consideravelmente, a partir da dcada de 1870. A explicao para

    esse fenmeno quase sempre est associada ao movimento das migraes internas oriundas

    de outras provncias brasileiras e da entrada de imigrantes provenientes de pases platinos,

    especialmente do Paraguai, que, diante da devastao provocada pela guerra, atravessavam

    a fronteira em busca de trabalho, j que o crescimento interno, da provncia e da sua capital,

    era meramente vegetativo.

    Ano Cuiab Mato Grosso

    1849 21.947 47.813

    1855 32.128 53.000

    1862 37.538 64.000

    1869 30.117 52.000

    1872 35.987 60.417

    1879 37.020 65.321

    Fonte: Peraro, Maria Adenir, Bastardos do Imprio, p. 39 e 66, respectivamente.

    De qualquer modo, esse aumento populacional no veio na esteira de um suposto

    progresso. O mais provvel que, aps o final da guerra, a provncia, tendo superado todas

    as adversidades, e favorecida pela reabertura da navegao fluvial, a inveno da

  • 12

    prosperidade da capital, qual a fora de um im, tenha concorrido para o agravamento das

    precariedades do espao urbano. Nessas condies, bastante provvel que o crescimento

    da violncia e da criminalidade urbana e rural tenha sido provocado pelo aumento da

    miserabilidade. A falta de emprego, o processo de desagregao do sistema escravista, com

    muitos escravos da nao sendo postos em liberdade, o retorno macio de batalhes inteiros

    de soldados,11 que passaram a viver em condies quase que subumanas nos quartis e

    acampamentos improvisados e a entrada de paraguaios miserveis, que se sujeitavam a um

    tipo de trabalho no muito distante daquele ao qual estava submetido o escravo, todos esses

    fatores favoreciam a escalada da violncia, principalmente dos homicdios, roubos e furtos,

    que assolou a capital da provncia no incio dos anos setenta. Nesse caso, a miserabilidade

    podia aproximar livres pobres, soldados e negros desafortunados, mas deve ser totalmente

    descartada, antes que se proceda a investigaes mais capilares, e que levem em conta as

    relaes de poder a presentes, a hiptese generalizante de que tais elos estivessem

    fundados numa suposta inviolabilidade do princpio da solidariedade.12

    A chamada elite local, diminuta em nmero, mas poderosa em relao populao

    de livres pobres, libertos e escravos, compunha-se de comerciantes bem arranjados, de

    importadores e exportadores bem sucedidos e de grandes proprietrios de terras e de

    escravos. Alis, depois de 1850, com a proibio do trfico intercontinental de negros

    cativos, possuir vinte ou mais escravos representava um sinal evidente de riqueza. No rol

    desse segmento social, ainda podiam se incluir os altos funcionrios pblicos civis e as

    altas patentes militares, que os laos de famlia e casamentos arranjados contribuam para o

    estabelecimento de uma via de mo dupla tanto os membros desses altos escales podiam

    se tornar senhores de grandes pores de terra e escravos, como os grandes latifundirios,

    invariavelmente, adquiriam patentes militares, principalmente atravs da Guarda Nacional.

    Num nvel ligeiramente abaixo se localizava um estrato mdio, composto de oficiais

    militares em incio de carreira, mdicos, alguns raros dentistas e dois ou trs engenheiros

    11 Em 1876, por exemplo, chegava a Cuiab o 8 Batalho de Infantaria que, por falta de acomodaes

    prprias, teve que acampar no 2 Distrito (Pedro II), em barracas de lona e ranchos de palha, vindo desse fato o nome de Acampamento dado ao referido lugar.

    12 Cf a crtica que Suzanne Desan, em Massas, comunidade e ritual, faz a E. P. Thompson e Natalie Davis, s suas anlises culturais dos comportamentos e das atitudes populares, por no levarem em conta, em seus estudos sobre a violncia ritualizada e baseada nos princpios de comunidade e legitimidade de suas aes, as relaes de poder que as atravessam, in: HUNT, Lynn (org.), op. cit., p. 63-96.

  • 13

    militares, mas, principalmente, de advogados, magistrados, chefes de polcia, promotores e

    membros do clero.

    Descendo um pouco mais na escala social, a se alojavam os pequenos donos de

    casas de comrcio a varejo, taverneiros, pequenos sitiantes, que vendiam seus produtos no

    mercado local, abatedores e vendedores de carne verde, que muitas vezes, apesar das

    proibies previstas nos cdigos de posturas municipais, expunham seus produtos em

    tendas armadas nas ruas mesmo.

    Mais abaixo estavam os livres pobres e escravos. De um total de 4.171 indivduos

    recenseados na Parquia Senhor Bom Jesus de Cuiab em 1872, de acordo com dados

    computados por Peraro,13 3.567 livres, entre homens e mulheres, se declararam lavradores,

    enquanto entre a populao escrava, 604 afirmaram que exerciam idntica atividade. No

    chamado setor secundrio, apenas 684 indivduos, entre livres e escravos, homens e

    mulheres, exerciam algum tipo de funo na atividade de transformao, como costureiras

    (420), marceneiros (154), ourives (29), pedreiros(52) e alfaiates (29), num total de 612

    livres e 72 escravos. Era, contudo, no setor tercirio, o de empregados em servios

    domsticos que havia uma maior concentrao de livres e escravos. Os homens e mulheres,

    entre livres e escravos, que a trabalhavam somavam 1.119. Desse total, 918 eram ocupados

    por livres e apenas 201 por escravos, com uma ntida predominncia de homens livres

    trabalhando como domsticos. A explicao dada por Peraro convincente. Para ela, as

    atividades obedeciam o desenrolar das necessidades e dos interesses mediados pelas

    contingncias cotidianas:

    ausncia de rigor no desenvolvimento das tarefas econmicas poderamos aventar para a possibilidade, se no da ausncia de definio de papis entre homens e mulheres, pelo menos, para uma certa maleabilidade desses papis no tocante s atividades produtivas. Maleabilidade esta no sentido de que a ocupao de determinados espaos, no mundo do trabalho, por homens ou mulheres pertencentes aos segmentos populares, no se dava pela preparao ou por cabedais herdados e sim por contingncias.14

    Mas um nmero muito grande no possua uma profisso declarada. Existem relatos

    que do conta de que quando as chances apareciam, livres pobres, desertores e escravos

    fugidos, agarravam-se ao trabalho temporrio e sazonal, como atividade extrativista da

    13 PERARO, Maria Adenir, Bastardos do Imprio, p. 101. 14 Ibidem, p. 105.

  • 14

    poaia; outros serviam como camaradas ou exerciam algum tipo de trabalho rural, como

    roceiros, parceiros ou meeiros.

    Quanto educao, apenas uma pequena parcela da populao era letrada e de se

    duvidar que, mesmo aps a dcada fatdica (1870) 15, essa situao tenha melhorado

    muito mais, levando-se em conta o carter excludente da sociedade escravista, onde a

    educao era um poderoso instrumento nas mos da elite. Nesses termos, apenas os grupos

    profissionais em ascenso podiam se considerar pertencendo a uma elite social altamente

    cultivada. Alm disso, a insuficincia dos ordenados que percebiam os mestres era

    apontada como a principal causa para a falta de pessoal habilitado para o magistrio,

    levando, ainda em 1859, o Inspetor Geral de Estudos, de maneira arrogante, a afirmar que

    ... o magistrio continuar a ser entre ns, salvas poucas excees, o apangio de

    indivduos que se reconhecem incapazes de ganhar a vida de outro modo.16

    Certamente, as viagens de recreio ou motivadas por doenas que na poca

    obrigavam, de acordo com as recomendaes mdicas, os ares da Corte, eram os

    momentos mais apropriados para um contato com hbitos considerados civilizados para

    aqueles que podiam empreend-las; longas e caras, pois exigiam que todo um estafe de

    acompanhantes e escravos previdentes com as canastras abarrotadas, fizessem parte dessas

    verdadeiras comitivas, quase sempre voltavam embevecidos com as novidades que o Rio de

    Janeiro oferecia; mas no nos entusiasmemos demasiadamente, pois muitos eram

    conservadores e nem a Corte era assim to liberal em suas idias de progresso e educao

    para as massas excludas. As camadas mais favorecidas, entretanto, procuravam nortear

    suas vidas copiando os valores culturais difundidos na Corte.

    Numa clara aluso de que hbitos de civilidade, originrios de regies de

    temperaturas mais amenas, no poderiam ser adquiridos de uma hora para outra, sem que se

    ficasse exposto ao ridculo, essas modas copiadas, por assim dizer, no eram condizentes

    com o clima quente da regio. Essa influncia podia ser sentida tambm no divertimento e

    lazer, com a organizao de saraus, nos quais a elite local danava valsas e lia poesias,

    especialmente as francesas. A adoo destes valores se fez presente no cotidiano da elite

    15 Termo cunhado por Jos de Mesquita em seu ensaio Crimes clebres; cf., a respeito, o Captulo II, neste

    trabalho. 16 APEMT - Relatrio apresentado pelo Exm Sr. Chefe da Diviso Joaquim Raimundo Delamare, Presidente

    da Provncia, na Abertura da Assemblia Legislativa Provincial em 3 de maio de 1859. [Doc654].

  • 15

    cuiabano, sobretudo aps a dcada de setenta, uma vez que o final da Guerra do Paraguai

    garantiu a volta da navegao pela bacia Platina, o que propiciou o aparecimento de

    estabelecimentos comerciais que vendiam artigos importados da Europa e Rio de Janeiro.

    Foi tambm nessa dcada que essa elite cuiabana passou a freqentar o teatro.17 A grande

    maioria dos chamados livres pobres, brancos e libertos, alm dos escravos, evidentemente,

    era composta de analfabetos, que, quando muito, s sabia assinar o seu prprio nome.

    As autoridades governamentais que administraram a provncia e os viajantes

    europeus que a visitavam, muitas vezes em misses cientificas, mostraram-se perplexos

    com Cuiab, ao constatarem que, pelo menos at o final do sculo XIX, a cidade ainda no

    dispunha de uma infra-estrutura digna das metrpoles mais civilizadas, como calamento

    de ruas e passeios, matadouro pblico, saneamento e limpeza de ruas e crregos,

    iluminao extensiva aos bairros pobres e distritos mais afastados, gua potvel encanada e

    uma moderna cadeia pblica.18

    Era realmente dramtica, por mais estranho que isto possa se afigurar, a falta de

    gua potvel para a populao cuiabana, principalmente nos perodos de seca, apesar de

    muitas casas possurem cisternas em seus quintais. A capital da provncia, embora banhada

    pelos rios Cuiab, Coxip e por pequenos ribeires, que praticamente cortavam toda a

    cidade, sofria, de fato, constantemente da falta de gua potvel, fazendo com que o governo

    provincial aplicasse parte de seus recursos oramentrios na construo de chafarizes e

    bicas. Dentre os chafarizes construdos na cidade, os mais freqentados eram o do Mundu,

    que ficava no ento largo da Conceio (atual praa D. Jos) e o da Prainha, que, durante as

    estiagens prolongadas, viam crescer consideravelmente o movimento da populao em

    busca desse precioso lquido. O problema vinha se tornando mais grave, dia aps dia,

    porque os mananciais que forneciam a gua para essas bicas, com o crescimento da cidade,

    comeavam a sofrer a agresso de um desmatamento descontrolado. Pensando em uma

    soluo para o problema, o presidente da provncia, Albino de Carvalho, chegou a propor,

    17 Em 1877 era inaugurada, em Cuiab, da Sociedade Dramtica Amor e Arte; essa sociedade era particular

    e contava com 62 scios de camarotes e 98 scios de platia; as peas apresentadas contavam com a participao de integrantes da prpria elite loca; esse entretenimento, contudo, ficou ameaado, em 1894, quando o teatro desabou.

    18 Deixo de discutir neste texto, por no ser esta a nossa inteno aqui, as pertinentes reflexes de Durval de Albuquerque Jnior em seu livro, A inveno do Nordeste e outras artes, embora reconhea que a historiografia deva comear a refletir com mais cuidado as perigosas implicaes inerentes a uma histria regional.

  • 16

    em 1865, a construo de outros audes como o do Ba, mas nada de concreto pde ser

    feito.19 Alis, nesse mesmo ano, Augusto Leverger, lamentava no ter podido aproveitar a

    estao da seca para aprofundar a bacia dessa lagoa e aumentar, assim, a capacidade do

    reservatrio e nem vedar a filtrao, que causava enorme desperdcio, apesar do aude

    continuar a fornecer gua em abundncia, mesmo no perodo de maior rigor da seca.20

    Era exatamente nessas ocasies que as autoridades policiais tinham que redobrar a

    vigilncia nas bicas e chafarizes, pois viam como perigosas, causadoras de motins, as

    concentraes de livres pobres, libertos e escravos nesses pontos. O acmulo de pessoas em

    busca de gua potvel, de acordo com os chefes de polcia, propiciava o surgimento de

    todos os tipos desordens, sedies e ofensas fsicas e morais. Antnio de Cerqueira Caldas,

    futuro Baro de Diamantino, que era Chefe de Policia em 1868, chegou, inclusive, a

    comunicar, atravs de oficio ao governo provincial, que havia mandado intensificar a

    vigilncia na caixa dgua militar da Brigada, localizada na Prainha, reforando-a com mais

    trs praas e com sentinelas, uma para o chafariz do Mundu, e outra para o da Prainha.

    Julgava necessria essa providncia, at que as chuvas voltassem a cair, por considerar que

    a falta de gua, situao que se agravara nos primeiros dias de outubro, estava levando

    concentrao da populao nesses pontos, ocasionando algumas desordens.21

    Em seus relatrios, os inspetores de sade eram enfticos em denunciar que at

    mesmos as guas dessas bicas comeavam a se tornar imprprias para o consumo

    domstico, diante do descaso da populao, que as estavam poluindo com toda sorte de

    detritos e materiais em decomposio. Em outras palavras, a qualidade da gua, na viso

    das autoridades mdico-sanitrias, caso providncias urgentes no fossem tomadas, poderia

    colocar em risco a sade da populao. Por isso, em 1877, o Doutor Jos Antonio Murtinho

    louvou a atitude do Presidente da Provncia, Hermes Ernesto da Fonseca, que proibiu a

    lavagem de roupas do hospital da Santa Casa de Misericrdia e da Enfermaria Militar no

    19 APEMT Relatrio do Presidente da Provncia de Mato Grosso, Brigadeiro Alexandre Manoel Albino de

    Carvalho, apresentado 15 Assemblia Legislativa Provincial na abertura da Sesso ordinria de 3 de maio de 1864. [Doc573].

    20 APEMT - Relatrio apresentado ao Ilm e Exm Sr. Chefe de Esquadra Augusto Leverger, Vice-presidente da Provncia de Mato Grosso pelo Brigadeiro Alexandre Manoel Albino de Carvalho ao entregar a Administrao da mesma Provncia em agosto de 1865.[Doc1093].

    21 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Antnio de Cerqueira Caldas, ao Presidente da Provncia, Albano de Souza Osrio, datado de 5 de outubro de 1868. [Doc908].

  • 17

    tanque do Ba, ordenando que as roupas destes hospitais passassem a ser lavadas,

    provisoriamente, no rio Cuiab, defronte ao Acampamento Couto de Magalhes.22

    A esse respeito, para termos uma idia das carncias vivenciadas pela populao

    cuiabana, basta observar que de 1882, aps longas discusses e apresentaes de projetos

    que visavam, ora canalizar as guas do Cuiab, ora as do rio Mutuca, o incio efetivo de seu

    abastecimento populao, alterando significativamente antigos hbitos, ao estabelecer

    dispositivos disciplinares para a utilizao desse relativo progresso, com a introduo de

    normas rgidas: nesse esboo de modernizao, foram empregados velhos canos de

    espingardas, entortados e sem torneiras, o que significa dizer que a gua fornecida ao

    pblico escoava ininterruptamente, por espao de cinco horas, cotidianamente das 6 s 8

    horas da manh e das 5 s 8 horas da noite.23 Apesar desse melhoramento, o Arsenal de

    Guerra, quando o seu poo no se encontrava completamente seco, continuaria a abastecer,

    com duas carroas carregadas de pipas e barris dgua, a Santa Casa de Misericrdia e a

    Enfermaria Militar do 21 Batalho de Infantaria.24

    Se a estiagem comprometia o abastecimento de gua potvel cidade e dificultava a

    navegao fluvial,25 os perodos de chuvas copiosas tambm causavam grandes transtornos

    populao pobre, revelando-se um dos grandes problemas da administrao pblica

    municipal e provincial.

    Em 1852, por exemplo, o chefe de polcia, Silvrio Fernandes de Arajo Jorge,

    atravs de ofcio datado de 4 de fevereiro de 1852, informava ao Presidente da Provncia,

    Augusto Leverger, que, devido a uma possvel enchente no rio Cuiab o rio amanhecera

    muito cheio e continuava a subir , determinara ao subdelegado do distrito de Pedro II que

    tomasse providncias cabveis para a retirada dos habitantes do Porto Geral e suas

    imediaes, e que sendo de reconhecida necessidade a disponibilidade de canoas e

    remadores, requisitara junto Repartio da Marinha, todo o pessoal disponvel e serventes

    22 APEMT Ofcio do Inspetor de Sade Pblica, Doutor Jos Antnio Murtinho, ao Presidente da Provncia,

    Gal. Hermes Ernesto da Fonseca, datado de 12 de abril de 1877. [Doc1254]. 23 MENDONA, Estevo de, Datas mato-grossenses, op. cit., p. 285-6. 24 APEMT Ofcio do Ten. Cel. Antnio Augusto de Arruda, Diretor interino do Arsenal de Guerra, ao

    Presidente da Provncia, Baro de Maracaju, datado de 11 de outubro de 1880. [Doc1280]. 25 MENDONA, Estevo de, op. cit., p. 273 Em 1871, por exemplo, o vapor Amlia no pde chegar ao

    porto de Cuiab, ficando esbarrado no porto do Cassangue, devido grande baixa do rio.

  • 18

    para apressar as mudanas do povo ribeirinho para a cidade Ao mesmo tempo, notificava

    que havia deslocado para a regio algumas praas para evitar desordens.26

    Entretanto, considerando que no havia uma guerra para atrapalhar os planos do

    chefe de polcia, que podia at dispor de canoas da Marinha, uma catstrofe, ao que tudo

    indica, pde ser evitada, embora os prejuzos no tenham sido desprezveis. De qualquer

    modo, preciso lembrar que, levando-se em conta a cultura da populao ribeirinha, tais

    fenmenos da natureza faziam parte de seu cotidiano, assim como as desordens27 que se

    seguiam e que tanto preocupavam as autoridades. Assim, aps um pouco mais de uma

    semana, o nvel das guas do Cuiab voltava a descer, para alvio da populao e do prprio

    Dr. Arajo Jorge, ao participar ao presidente da provncia que baixara de todo a enchente

    do rio Cuiab, e que encarregara o subdelegado de mandar-lhe a conta das despesas que fez

    socorrendo aos que precisaram mudar-se s pressas e no tinham meios.28

    Em maro de 1864, antes do incio do conflito armado, uma forte tempestade

    colocaria novamente em sobressalto a populao cuiabana. A pesada chuva que cara na

    entrada do ms de maro desse ano causou grandes estragos, vitimando, principalmente, os

    moradores ribeirinhos ao crrego da Prainha. No seu relatrio ao presidente da provncia, o

    Chefe de Polcia, Dr. Firmo Jos de Matos, informava que o temporal que se abatera sobre

    a cidade havia destrudo diversas casas e muros e que, na rua da Prainha, a casinha da

    preta forra, de nome Catarina, no suportara a fora da correnteza das guas e rura,

    matando a sua moradora. Outros estragos tambm puderam ser contabilizados depois da

    tempestade, como a queda de um quarto que pertencia ao mercado da cidade e a ponte da

    rua dos Pescadores, que se abalou, por ter ficado comprometido um dos seus esteios de

    sustentao.29

    No ano seguinte, o mesmo Chefe de Policia comunicava novamente ao Presidente

    da Provncia que a copiosa e ininterrupta chuva que cara no incio do ms de fevereiro

    havia enchido extraordinariamente o rio Cuiab, inundando uma grande extenso do distrito 26 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Silvrio Fernandes de Arajo Jorge, ao Presidente da Provncia,

    Augusto Leverger, datado de 4 de fevereiro de 1852. [Doc1039]. 27 Tais como os saques a lojas, roubos, furtos, fome e epidemias. 28 APEMT Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Silvrio Fernandes de Arajo Jorge, ao Presidente da Provncia,

    Augusto Leverger, datado de 14 de fevereiro de 1852. [Doc1041]. 29 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Firmo Jos de Matos, ao Presidente da Provncia, Alexandre

    Manoel Albino de Carvalho, datado de 3 de maro de 1864. [Doc888]; Cf., tambm DE LAMNICA FREIRE, Jlio A gente pobre continuava a morar em casas de palha ou em pequenas casas de taipa, mais tarde de adobe, cobertas de telhas, nas pontas das ruas ou em reas perifricas, p. 52-3.

  • 19

    de Pedro II e arruinando grande parte de suas habitaes, inclusive as instalaes do

    Arsenal de Marinha.30 Os prejuzos tinham sido considerados incalculveis, principalmente

    para a populao ribeirinha, que viu suas lavouras irem, literalmente, por gua abaixo. Num

    perodo considerado de grande penria, com o surgimento de doenas e dos inevitveis

    surtos de febres intermitentes, medida que as guas do rio iam abaixando, a destruio das

    lavouras s piorou a situao. Em outras palavras, do mesmo modo que os perodos de

    estiagem, provocavam a carestia geral dos gneros de primeiras necessidade,31 as grandes

    chuvas e enchentes, ao destrurem as plantaes, agravavam um problema, que j era

    insuportvel devido guerra.

    Alis, a carestia, desde o perodo colonial, era apontada como uma das maiores

    dificuldades que a populao mato-grossense enfrentava, principalmente pela elevao

    brusca do preo do sal, levando as autoridades locais a interferirem, regulando estoques e,

    inclusive, estabelecendo preos. Contudo, no perodo da Guerra do Paraguai, com o

    bloqueio da bacia Platina pelas tropas de Solano Lopes, isolando Mato Grosso das demais

    provncias brasileiras, produtos como o sal, tornaram-se escassos no mercado. Esta situao

    contribuiu para que surgissem atravessadores, que passavam a negociar esse e outros

    produtos de primeira necessidade a altssimos preos, onerando ainda mais a j sofrida

    populao cuiabana.

    Evidentemente, diante desse quadro, o recrudescimento dos chamados

    atravessadores e aproveitadores, em momentos de sbito aumento de preo dos gneros

    alimentares bsicos, passou a fazer parte da paisagem dos chamados pequenos delitos

    cometidos em Cuiab e seus arredores. Embora, os indivduos que praticavam esse tipo de

    infrao no passassem, em geral, de livres pobres, dificultando a cobrana de multas

    30 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Firmo Jos de Matos, datado de 6 de fevereiro de 1865, informando

    ao Presidente da Provncia, Gal. Alexandre Manoel Albino de Carvalho, a respeito das ocorrncias policiais relativas semana anterior. [Doc894].

    31 APEMT - Ofcio do Inspetor da Tesouraria de Fazenda, Antnio Caetano da Silva Kelly, ao Vice-presidente da Provncia, Antnio de Cerqueira Caldas, datado de 8 de julho de 1870. [Doc273] - A carestia podia atingir at mesmo o Exrcito. Em 1870, em virtude da seca que assolava a provncia, o preo do milho e da forragem se elevaram consideravelmente, fazendo com que os militares reclamassem junto ao governo provincial da insuficincia de verbas destinadas compra desses produtos necessrios alimentao dos animais que aquela instituio possua. Mediante consulta feita ao Procurador Fiscal, que na poca era o Dr. Jos da Costa Leite Falco, Antnio Caetano da Silva Kelly, sugeria que uma suplementao de verbas poderia ser a melhor soluo para atender essa emergncia.

  • 20

    previstas nas posturas municipais, muitos atravessadores viviam desse negocio e podiam,

    caso no fossem presos em flagrante, auferir bons lucros.32

    Tal sorte no teve, entretanto, Jos Maria Leite de Medeiros, recolhido cadeia

    pblica em 27 de julho de 1859 por ter armazenado em sua casa gneros sujeitos a

    impostos, sem que antes os tivesse manifestado no mercado pblico. Preso em flagrante

    delito, s foi solto no dia 29, depois de haver pago a respectiva multa.33 O mesmo destino

    adverso teve Simeo da Mota. Em ofcio datado de 15 de agosto de 1859, o Chefe de

    Polcia, Dr. Costa Freire, participava que no dia 9 daquele ms havia prendido o referido

    cidado por ter em sua casa gneros que no haviam sido manifestados no mercado

    pblico. Preso correcionalmente, s foi solto no dia seguinte.34

    Como o controle de preos dos produtos era feito atravs de sua oferta direta no

    mercado municipal, ocasio em que os impostos sobre os gneros deveriam ser pagos, as

    autoridades acabavam sendo extremamente rigorosas, principalmente em tempos de guerra,

    com os que desrespeitavam essa regra reguladora, punindo at os pescadores ribeirinhos.

    Impondo, como tambm estava estipulado, que os produtos assim apreendidos se

    destinassem Santa Casa de Misericrdia, at como uma forma de minorar as dificuldades

    pelas quais passava aquela instituio de caridade. Ainda nesse mesmo ano de 1859, o Dr.

    Costa Freire notificava a presidncia da provncia que no dia 17 de agosto havia mandado

    prender Elias Gonalves Pereira, ... por ter atravessado no Porto Geral oito cambada de

    peixes, que lhe foram tomados (..) e remetidos Santa Casa de Misericrdia.35

    Entretanto, um dos casos mais rumorosos, sem dvida, data do perodo da guerra,

    poca em que, como vimos mais atrs, ocorreu uma elevao geral dos preos dos gneros

    de primeira necessidade que as regies ao redor abasteciam a capital da provncia,

    atingindo com todo o seu rigor principalmente a populao pobre e mais carente. Por isso

    mesmo, para evitar uma desordem ainda maior, j que os casos de roubos e furtos, dentre

    32 Cf, p. ex., o caso do sal, envolvendo nada menos que o Chefe de Policia, no perodo da guerra, o Dr. Firmo

    Jos de Matos, que havia estocado esse produto na prpria Cadeia Pblica; descoberto, parte do butim, como era costume, acabou sendo enviado para a Santa Casa de Misericrdia de Cuiab; cf, tambm, a respeito, Luiza Volpato, em Cativos do Serto, op.cit.;

    33 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Joaquim Augusto Hollanda Costa Freire, ao Presidente da Provncia, Almirante Joaquim Raimundo Delamare, datado de 1 de agosto de 1859.[Doc774].

    34 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Joaquim Augusto Hollanda Costa Freire, ao Presidente da Provncia, Almirante Joaquim Raimundo Delamare datado de 15 de agosto de 1859. [Doc773].

    35 APEMT - Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Joaquim Augusto Hollanda Costa Freire, ao Presidente da Provncia, Almirante Joaquim Raimundo Delamare, datado de 22 de agosto de 1859. [Doc766].

  • 21

    outros delitos, tinham aumentado significativamente, as autoridades procuravam punir com

    a severidade da lei, de modo exemplar, os infratores das posturas municipais, que eram os

    instrumentos de que dispunham e lanavam mo no trato de semelhantes assuntos.

    O auto circunstanciado da infrao das posturas municipais cometido justamente

    pelo ajudante do fiscal da Cmara, Luiz Salustiano Lousada, no dia 15 de fevereiro de

    1869, oferece-nos uma oportunidade rara para avaliarmos o modo como agiam as

    autoridades no caso, o Comendador Henrique Jos Vieira, que na poca era o presidente

    da Cmara Municipal.36 Preso em flagrante delito, s 4 horas da tarde desse dia, quando

    descarregava em sua casa, rua da Mandioca, duas carretas puxadas por bois e bestas

    carregadas de vveres que se destinavam ao depsito das foras da 1 Brigada, o presidente

    da Cmara fez reconduzir imediatamente ao mercado os gneros assim criminosamente

    atravessados por Salustiano, bem como os lavradores, Manoel Francisco de Almeida e

    Manoel Benedito de Camargo, donos das referidas carretas apreendidas.37 Quanto a

    Salustiano, sendo admoestado por seu procedimento criminoso, respondeu que nenhum tipo

    de satisfao tinha que dar a respeito, por considerar que era absolutamente livre para

    vender e comprar tudo quanto bem lhe aprouvesse, como sempre estivera acostumado a

    fazer. Sua resposta, no entanto, no impediu que sua residncia fosse inspecionada,

    verificando-se ali a existncia de muitos gneros comestveis anteriormente acumulados,

    graas s facilidades que seu emprego de fiscal lhe proporcionavam, razo pela qual foi

    preso em flagrante pelo presidente da Cmara Municipal ordem do Chefe de Polcia38

    Afianado, contudo, pelo Tenente Coronel Antnio Jos Guimares e Silva,

    proprietrio e morador na capital, e oferecendo duas testemunhas em abono, dois dias

    36 APEMT - Auto de infrao de Posturas Municipais que a Cmara Municipal de Cuiab aplicou ao fiscal

    Luiz Salustiano Lousada, acusado de atravessador de gneros alimentcios, datado de 16 de fevereiro de 1869. [Doc117].

    37 Ibidem - A compra direta de vveres que deveriam ser ofertados diretamente no Mercado, o qual funciona no mesmo edifcio da Cmara Municipal, conforme depoimento da testemunha Capito Jacinto Pompeu de Camargo, homem de 56 anos de idade, casado, morador na rua do Campo e coletor do Mercado, era proibida, de acordo com o que lhe informara o Comendador Henrique Jos Vieira, ... pelo art. 10, 2 das Posturas Municipais, e oriunda a pouco publicada de novo por Editais, contra os atravessadores de gneros daquela natureza. (nfase acrescentada). A questo : diante de uma populao maciamente analfabeta, portanto incapacitada de ler jornais e editais para tomar conhecimento de tais novidades, somente as cometendo para saber o seu real teor. Evidentemente, esse no parece ser o caso de Salustiano, que por sinal era o ajudante do fiscal da Cmara, embora esta no tenha sido a linha de defesa seguida por seu defensor.

    38 Exercia nessa poca as funes de Chefe de Polcia, em carter de interino, o ento Tenente Coronel Joo de Souza Neves.

  • 22

    depois, precisamente a 17 de fevereiro, Salustiano obtinha mandado de soltura, a fim de

    responder ao processo em liberdade. A defesa arquitetada pelo advogado do ru,39 visando

    livrar Salustiano das sanes impostas pela lei, ajuda a esclarecer pontos importantes a

    respeito desses documentos as Posturas Municipais , que tanto so citados por

    historiadores preocupados em discutir questes ligadas sociedade disciplinar.

    Sua defesa, nesse caso, apoiava-se em dois pontos que se interligavam: 1. de que

    havia uma ignorncia generalizada, e no somente entre analfabetos, a respeito da

    existncia e do contedo de tais posturas, cuja tese central era a de que quem ignora no

    desobedece.; para esse advogado, procurando defender esse ponto de vista, a fim de

    provar que seu cliente era inocente, enfatizava que ... estas posturas passavam por uma

    criao imaginria; por maiores esforos que se fizessem para consegui-las, no era

    possvel, todos ignoravam as suas literais disposies;40 que sequer a prpria Cmara

    dispunha, infelizmente, de tais posturas, e as que l existiam tinham sido solicitadas pela

    nova Cmara Tesouraria Provincial; ora, ponderava, conseguintemente no era de

    estranhar que seus empregados estivessem na ignorncia dos deveres que legalmente

    deveriam cumprir, circunstncias em que se acha o indiciado, sendo certo, como j tive a

    ocasio de observar, que no mesmo estado de ignorncia acha-se quase toda a populao

    desta Capital em relao s suas obrigaes e direitos41; ento, ele prprio no tivera

    ocasio, durante as funes da extinta Cmara, de conduzir vveres da Chapada para o

    mercado, onde era costume ficarem os gneros expostos venda por 24 horas somente, e

    assim mesmo quando no estava repleto de gneros da mesma qualidade? E conclua: ...

    ora, sou informado de que os gneros que o indiciado conduziu para sua casa j se

    achavam h mais de 24 horas expostos venda por muitos e que de mais a mais havia no

    Mercado abundncia de vveres da mesma qualidade, como se poder ver no livro de

    entrada do Mercado nesses dias; em suma, o seu cliente no era um atravessador e nem

    tinha levado tais gneros alimentcios para sua casa para especular com a misria e a

    carestia pblica, dada a insignificncia dos gneros apreendidos; 2. de que, por

    conseqncia, considerando a vida carssima na capital, e tendo que sustentar uma famlia

    de oito irmos (quatro irms, j moas, e 4 irmos), aps o falecimento dos pais durante a

    39 Infelizmente, no documento no consta o nome do advogado que procedeu defesa de Salustiano. 40 APEMT [Doc117], op. cit., (nfase acrescentada). 41 Ibidem.

  • 23

    terrvel epidemia de bexigas que se abatera sobre a capital em 1867, ... bem depressa a

    misria lhe bateria porta, e dali a desonra se apresentaria medonha e horrorosa no seio

    de sua honesta e extremosa famlia, se no tivesse Salustiano suas agncias e seu trabalho

    dirio como ajudante de fiscal e as diligncias s quais se dedicava (compra de gneros

    alimentcios, sem a devida fiscalizao da Cmara); e conclua: seu cliente era digno de

    louvor e no de punio, pelo ato praticado involuntariamente e em boa f.42

    No dia 4 de maro do mesmo ano, o processo era dado como concludo. Quanto ao

    lavrador Benedito Janurio da Costa, que vendera 12 alqueires e meio de farinha ao

    infrator, nenhuma sano lhe foi imposta, por considerar-se que, ignorando as disposies

    das posturas municipais, no tinha como contrariar as ordens recebidas de Salustiano, que

    no teve a mesma sorte.43 Alm da priso correcional por dois dias, assim mesmo por obter

    fiana, acabou sendo demitido de seu emprego de ajudante de fiscal e ainda foi condenado

    a entregar o equivalente a doze e meio alqueires de farinha Santa Casa de Misericrdia de

    Cuiab, que pagou religiosamente.44

    Mas o mais dramtico que esse ciclo de estiagens prolongadas e perodos de muita

    chuva, ao proporcionar a carestia, e levar carncia alimentar, debilitava a sade da

    populao. Assim, de acordo com os relatrios expedidos pelos inspetores de sade aos

    presidentes de provncia, as doenas que mais acometiam a sua populao nessas pocas

    eram as do aparelho respiratrio, as diarrias e as febres intermitentes. Paralelamente, as

    constantes ameaas de epidemias, como a da varola, da clera, e do sarampo, alarmavam

    os mdicos e as autoridades governamentais. Na dcada de 1880, o Inspetor de Sade

    Pblica de Mato Grosso, Dr. Jos Antnio Murtinho, alertava o governo provincial para o

    42 APEMT [Doc117], op. cit. - Qualquer concluso que se queira tirar dessas colocaes do defensor de

    Salustiano, no se pode negar que, apoiando-se em preceitos morais, a miserabilidade era apontada como um caminho inevitvel para a prostituio, e por isso mesmo considerava seu ato digno de louvor e da benevolncia judicial.

    43 Ibidem ... porque achando-se o seu gnero imposto venda no lugar indicado, retirara dele em conseqncia de ordem de uma autoridade legal, como seja o ajudante do fiscal, lugar que ento exercia o ru, sob pretexto que iriam para o depsito da fora pblica, segundo as ordens em vigor.

    44 Ibidem De fato, ao final do auto de infrao, l estava a assinatura do Provedor da Santa Casa, Victoriano Mendes, aposta no recibo passado, e com data de 7 de maro de 1869, escrito nos seguintes termos: Recebi de Luiz Salustiano Lousada doze e meio alqueires de farinha de milho que fez entrega Santa Casa de Misericrdia desta cidade.

  • 24

    fato de que desde o final da Guerra do Paraguai, a sfilis vinha se transformando na pedra

    de toque das enfermidades da provncia45.

    Segundo Cavalcante, os mdicos sanitaristas da provncia, influenciados pelas

    correntes cientficas que circulavam nas faculdades de Medicina da Bahia e do Rio de

    Janeiro, buscavam conscientizar as autoridades governamentais sobre os motivos e para os

    perigos da proliferao das doenas, justificando que as enfermidades que acometiam a

    populao estavam intimamente ligadas a fatores como o clima, o charlatanismo, a

    deficincia de mdicos e a falta de higiene de sua populao. Defendiam que o quadro

    sanitrio melhoraria somente quando o poder pblico, ao cuidar da higienizao do espao

    urbano, destrusse os focos miasmticos, como os alagadios e pntanos, vistos como um

    dos motivos responsveis pela disseminao das molstias. Nessa verdadeira cruzada,

    recomendavam a construo de cemitrios em locais distantes da cidade, a proibio dos

    enterramentos dentro das igrejas e a edificao imediata de um matadouro pblico, como as

    principais medidas urgentes para a preservao da sade da populao.46

    Em 1870, a Cmara Municipal de Cuiab imputava falta de chuvas e ao excessivo

    calor os fatores que concorriam para os freqentes casos de infeco disentrica, de carter

    epidmico, que atingiam e vitimavam principalmente as crianas.47 Tambm considerava

    indispensvel para a higiene e sade da populao, o consumo de uma alimentao de boa

    qualidade para os citadinos e o asseio da capital, argumentando, inclusive, que a falta de um

    matadouro pblico para o abate de rezes colocava em risco a vida da populao, que

    continuava a se alimentar de carne verde de m qualidade.48 Entretanto, apesar da Cmara

    Municipal ter conscincia que os habitantes de Cuiab ingeriam carne de pssima qualidade

    e que a construo de um matadouro era de vital importncia, o poder pblico continuou

    alegando que a inexistncia desse melhoramento estava relacionada falncia dos cofres

    pblicos.49 Em 1865, apesar de haver ajustado a compra de um terreno e ter mandado

    confeccionar, pelo engenheiro da provncia, um projeto para a sua edificao, Augusto

    45 APEMT - Relatrio do Inspetor de Sade, Doutor Jos Antonio Murtinho, ao presidente da Provncia, Gal.

    Hermes Ernesto da Fonseca, datado de 2 de janeiro de 1878. [Doc1087]. 46 CAVALCANTE, Else, O Estado Sanitrio, texto indito (xrox), 2002. 47 APEMT - Ofcio da Cmara Municipal, encaminhado ao Presidente da Provncia, informando a respeito da

    situao deplorvel da sade pblica e do matadouro pblico da cidade de Cuiab, s.d. [Doc123]. 48 Ibidem. 49 APEMT - Relatrio da Cmara Municipal de Cuiab, encaminhado ao Presidente da Provncia, Gal.

    Hermes Ernesto da Fonseca, datado de 31 de maro de 1876. [Doc1076].

  • 25

    Leverger informava que, em funo da escassez dos cofres provinciais, ficava praticamente

    impossvel a sua construo.50 Numa demonstrao de que a recuperao da provncia, aps

    a guerra do Paraguai, ia se dando de forma bastante lenta, a inaugurao do matadouro

    pblico municipal aconteceria somente em 1891, j no perodo republicano.

    O costume de fazer enterramentos no interior das igrejas tambm foi objeto de

    ateno de mdicos e autoridades governamentais. Os higienistas se opunham a essa prtica

    monopolizada pelas irmandades e confrarias,51 argumentando que os corpos em estado de

    putrefao emanavam miasmas que comprometiam a sade dos fiis que freqentavam as

    igrejas de sua devoo.52

    Como que atendendo solicitao do Inspetor de Sade Pblica, que argumentava

    que uma das primeiras necessidades da capital era a de um cemitrio pblico para a

    inumao dos cadveres, finalmente, em 1864, era inaugurado o Cemitrio de Nossa

    Senhora da Piedade, extirpando-se, de acordo com Albino de Carvalho, um costume que j

    tinha sido extinto na maioria das provncias do Imprio, por no condizer com os mais altos

    valores dos povos civilizados.53

    Desde ento, as autoridades governamentais, defendendo o parecer dos mdicos

    higienistas, impuseram que os sepultamentos fossem feitos nos cemitrios da Piedade, do

    50 APEMT [Doc1093], op. cit. 51 MENDONA, Estevo de, Datas mato-grossenses, op. cit., - Desde 1802, atravs de Carta Rgia de 11 de

    janeiro de 1801, o governador Caetano Pinto de Miranda Monteiro, proibia o enterramento dentro das igrejas e capelas; apesar das determinaes rigorosas expressas nesse documento, as irmandades, que tinham muito poder nessa poca, desrespeitaram essas determinaes e continuaram a fazer as inumaes de seus irmos dentro das igrejas. p. 71.

    52 Alm da Matriz, o cuiabano podia expressar a sua religiosidade em outras igrejas existentes na cidade, como a do Bom Despacho, a de Nossa Senhora da Boa Morte, a de So Gonalo, a de Nossa Senhora dos Passos e a capela da Imaculada Conceio, localizada na Santa Casa de Misericrdia. A religiosidade consistiu em uma importante caracterstica da populao cuiabana, que habitualmente iam a igreja, as festas religiosas ofertadas aos santos e as procisses organizadas geralmente pelo bispado; Na nossa trama, a igreja de Nosso Senhor dos Passos a que mais se destaca, pois o seu personagem central, o at ento, major Lauriano Xavier da Silva habitava nas suas proximidades e foi tambm nas suas imediaes que veio a ser assassinado, dando inicio ao desenrolar desta historia.

    53 APEMT Relatrio do Presidente da Provncia de Mato Grosso, Brigadeiro Alexandre Manoel Albino de Carvalho, apresentado 15 Assemblia Legislativa Provincial na abertura da Sesso ordinria de 3 de maio de 1864. [Doc573]. Contudo, no interior da provncia as autoridades continuavam esbarrando nos dficits dos errios municipais, inviabilizando a generalizao desse projeto; a exemplo disso, veja-se o caso de Pocon, em que o vigrio da vila comunicava, em 1866, ao vice-presidente da provncia que o nico cemitrio ali existente estava em completo abandono, razo pela qual as inumaes continuavam ocorrendo no interior da igreja local.

  • 26

    So Gonalo e no de Nossa Senhora do Carmo, que havia sido construdo em 1867, durante

    o surto epidmico da varola, com a finalidade de enterrar os bexiguentos.54

    Outro problema grave enfrentado pelas autoridades governamentais e inspetores de

    sade, era a carncia de mdicos. A maior parte dos que clinicavam na provncia pertencia

    ao corpo militar, e tinha vindo para a provncia engajada, com a misso de atender aos

    militares estacionados na fronteira. No interior de Mato Grosso, a carncia de mdicos era

    ainda mais dramtica do que em Cuiab, o que levava muitos indivduos no habilitados ao

    exerccio da medicina. Em 19 de julho de 1870, por exemplo, Silva Kelly, Inspetor da

    Tesouraria Provincial, denunciava ao Baro de Diamantino que honorrios mdicos, no

    valor de40$000 ris mensais, vinham sendo pagos regularmente a Amncio Delfino

    Antunes, como contratado pela presidncia para curar as praas do destacamento da Guarda

    Nacional de Pocon. Embora no estivesse legalmente habilitado para exercer essa

    profisso, ponderava que no era admissvel que nos destacamentos de to pequena fora

    tivesse um facultativo destinado ao seu exclusivo cuidado. E se esse procedimento no era

    tolervel at entre as tropas de linha, quanto mais em um pequeno destacamento, cujas

    despesas lhe pareciam totalmente descabidas.55

    Em 1872, a falta de oficiais mdicos era sentida at no Corpo de Sade da

    provncia. Nesse ano, por exemplo, o farmacutico da enfermaria desse Corpo destacado na

    fronteira acabou sendo designado para medicar os enfermos que ali se achavam

    hospitalizados, at que o governo pudesse enviar para l um nmero suficiente de

    facultativos para serem distribudos por todas as fronteiras. Alm do mais, justificava o

    oficial encarregado, as enfermidades endmicas que ali grassavam j eram conhecidas,

    razo pela qual estavam ao alcance daquele farmacutico, que, inclusive, j tinha servido de

    facultativo, podendo, por esse motivo, praticar a arte de curar.56 Era to sentida a falta de

    mdicos e farmacuticos formados, que Manoel de Souza Machado chegou, em 1865, a

    receber do governo imperial uma penso no valor de 600$000 ris, pelo prazo de 4 anos,

    54 Mais tarde, esse cemitrio acabaria se destinando ao enterramento da populao pobre e de escravos. 55 APEMT - Ofcio do Inspetor da Tesouraria da Fazenda, Antnio Caetano da Silva Kelly, ao Presidente da

    Provncia, Antnio de Cerqueira Caldas, datado de 19 de julho de 1870. [Doc244]. 56 APEMT - Ofcio datado de 1872, notificando a carncia de oficias do Corpo de Sade na Provncia, razo

    pela qual era indicado o farmacutico da enfermaria para assumir as funes de facultativo, no combate s enfermidades endmicas que reinavam nas regies de fronteira. [Doc127].

  • 27

    para ir estudar farmcia na Escola de Medicina da Corte. Alm disso, ficava autorizado o

    pagamento para as despesas de ida e volta e matrcula do pensionista.57

    O Doutor Murtinho, Inspetor de Sade, ainda a respeito dessa carncia, apontava em

    seus relatrios ao governo provincial que o charlatanismo58 tambm representava uma

    ameaa sade da populao. Contudo, esse inspetor nunca chegou a afirmar que o motivo

    para esse comportamento estivesse associado deficincia de facultativos, argumentando

    apenas que tal costume era o resultado da ignorncia do povo mato-grossense, que no

    acreditava na medicina.59 Ora, sabemos que a prtica do charlatanismo no era uma

    especificidade da populao da provncia e nem mesmo do sculo XIX, no Brasil.60

    Evidentemente, no podemos aceitar que esse costume estivesse relacionado

    somente deficincia de mdicos.O medo e a cultura popular, sem dvida, eram outros

    fatores que ajudam a explicar a resistncia das camadas pobres da populao medicina,

    uma vez que os tratamentos mdicos da poca se baseavam em sangrias, sanguessugas,

    ventosas, vomitrios, sudorferos e laxantes, prticas essas quase sempre nauseabundas e

    que causavam um certo desconforto. Alm do mais, sabendo que ao carem doentes s lhes

    restava um internamento quase que na condio de indigentes numa instituio pia que

    mais parecia uma priso destituda das mnimas condies de higiene, preferiam procurar

    os charlates, cujos tratamentos baseavam-se, especialmente, no uso de ervas medicinais da

    flora brasileira.

    Alis, a deficincia de instituies hospitalares minimamente aparelhadas para o

    atendimento populao carente era outro dos problemas mencionados com freqncia

    pelas autoridades mdico-sanitrias. Em Cuiab, as enfermidades que afetavam a sade dos

    livres pobres e dos escravos eram tratadas especialmente na Santa Casa de Misericrdia.

    57 APEMT [Doc1093], op. cit. - S no ficamos sabendo se, ao final do curso, o referido cidado retornou a

    Cuiab. 58 VIEIRA, Sabino Rocha, Climatologia. Algumas notcias mdicas e outras observaes acerca da Provncia

    de Mato Grosso, p. 13. - Em 1844, o doutor Sabino Rocha Vieira, ao chegar a Mato Grosso, percebeu de imediato que a falta de facultativos era um entrave sade pblica. Na narrativa acerca da sua estadia em Cuiab, o mdico se mostrou surpreendido com a infinidade de pessoas que o procuravam para cuidar de suas doenas e criticou o hbito dos habitantes da provncia de buscar a cura dos seus males nos charlates.

    59 APEMT - Relatrio do Inspetor de Sade Pblica, Dr. Jos Antnio Murtinho, ao Presidente da Provncia, Dr. Herculano Ferreira Penna, datado de 13 de janeiro de 1863. [Doc981].

    60 THOMAS, Keith, Religio e declnio da magia, p. 1991. Nesse minucioso estudo sobre o combate magia e s prticas herticas na Inglaterra entre os sculos XVI e XVII, o autor procura demonstrar as formas de resistncia que a populao inglesa ia encontrando para no ter que recorrer aos mdicos quando adoecia, preferindo buscar nos magos e charlates o alvio para os incmodos causados pelas doenas.

  • 28

    Alm dessa instituio pia, outro hospital de fundamental importncia era o do So Joo

    dos Lzaros, construdo distante da cidade, com a finalidade exclusiva de abrigar os

    portadores de lepra.61

    As comisses de visitas organizadas pela Cmara Municipal de Cuiab e os

    relatrios dos Inspetores de Sade Pblica no se cansavam de denunciar s autoridades

    governamentais as carncias dessas duas instituies hospitalares, que iam desde a falta de

    alimentos, de leitos, de limpeza, de mdicos, da estrutura dos prdios e at da inexistncia

    de medicamentos em suas boticas. O problema, obviamente, no chegou a ser solucionado

    na dcada de setenta, pois em 1895 a Santa Casa e o So Joo dos Lzaros ainda se

    encontravam em estados deplorveis. De acordo, com o fiscal da Sociedade Beneficente da

    Santa Casa de Misericrdia, Flavio Crescncio de Matos, at mesmo os dois pequenos

    cmodos destinados priso e tratamento de alienados precisavam de urgentes reparos,

    devido ao seu estado de runa. O fiscal relatava, ainda, que na Santa casa os doentes

    dormiam em camas quase nuas, enquanto no Hospital dos Lzaros, os morfticos dormiam

    sobre couros estendidos sobre o cho.62

    Em 1876, o provedor da Santa Casa, Joaquim Gaudie Ley, ao mesmo tempo em que

    denunciava que o Hospital de So Joo dos Lzaros precisava de urgentes e valiosos

    reparos,63 informava s autoridades provinciais que a nica botica que havia na Santa Casa

    de Misericrdia, no satisfazia as necessidades do hospital, e por isso considerava como a

    melhor soluo dispensar o farmacutico e contratar o suprimento dos medicamentos em

    uma farmcia particular, ao constatar que gastaria bem menos do que se conservasse em

    funcionamento a botica do hospital. Entretanto, Gaudie Ley no conseguiu manter esta

    deciso por um longo tempo, pois os abusos de falsificao praticados pelas farmcias

    particulares comearam a aparecer, o que fez com que se visse obrigado a encomendar no

    61 NASCIMENTO, Heleno Braz, A lepra em Mato Grosso: caminhos da segregao social e do isolamento

    hospitalar (1924-1941), Tese de Mestrado em Histria - UFMT, Cuiab, 2001, p. 50. Os dois hospitais eram estabelecimentos pios sustentados por donativos feitos por pessoas privilegiadas da sociedade mato-grossense. A construo de um hospital para tratar especificamente da lepra justificava-se pela rapidez com que a doena se propagava, atingindo toda a populao. Segundo Nascimento, embora a edificao do So Joo dos Lzaros tenha ocorrido em 1816, a doena j alarmava as autoridades governamentais desde o perodo colonial.O capito-General Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cceres, durante o seu governo, ao registrar um caso de lepra, determinou medidas visando combat-la.

    62 APEMT - Ofcio do fiscal da Sociedade Beneficente da Santa Casa de Misericrdia, Flvio Crescncio de Mattos, ao Presidente do Estado, Dr. Manoel Jos Murtinho, datado de 30 de maro de 1895. [Doc211].

    63 APEMT - Ofcio do Provedor da Santa Casa, Joaquim Gaudie Ley, ao Presidente da Provncia, Gal. Hermes Ernesto da Fonseca, datado de 22 de junho de 1876. [Doc1251].

  • 29

    Rio de Janeiro um sortimento de drogas medicinais, em especial aquelas usadas com

    freqncia pelos hospitais64. A crise, como se pode ver, era de longa data.

    Outro servio que poderia representar um avano rumo modernizao da cidade,

    mas que tambm sucumbiu diante da falncia dos cofres pblicos, era o servio de

    iluminao pblica, que s comeou a ser tratado com seriedade j no perodo republicano.

    Durante muito tempo a iluminao noturna continuou sendo feita atravs de lampies

    abastecidos com querosene, apesar de terem aparecido, aps a guerra, empresrios

    interessados na implantao de um sistema revolucionrio chamado de globe-gaz, mas

    que nunca vingou de fato.

    Devido a um hbito arraigado, ou porque havia a necessidade de economizar

    combustvel, os lampies simplesmente no eram acesos nas noites em que havia luar,

    embora, mesmo nas noites mais escuras, ficassem bruxuleando at por volta da meia

    noite, quando eram apagados. Era o tempo da natureza do tempo do pr do sol e do tempo

    de noites enluaradas , que ia determinando o ritmo desse servio pblico. At o final da

    dcada de 1850, eram poucos os lampies espalhados pelo centro da cidade, e como eram

    apenas relativamente fixos, ou melhor, pendurados, podiam mudar de lugar, de acordo com

    as convenincias da polcia, que era a grande responsvel pela manuteno desse servio

    pblico. Esquinas de ruas, travessas, becos e chcaras muito prximas, quase sempre sobre

    a porta de alguma figura importante, estes eram alguns dos pontos determinados pelo Dr.

    Costa Freire, Chefe de Polcia em 1858, para que fossem pendurados os 30 lampies

    existentes: 1 no largo do Rosrio, 2 na Prainha, 1 na rua Direita, 2 na rua Augusta, 4 na rua

    da S, 2 na rua Formosa, 5 na rua Bela do Juiz, 3 na rua dos Pescadores, 1 na travessa da

    Alegria, 2 na travessa da Assemblia, 3 na travessa do Palcio, 2 no largo da S e 2 no

    largo do Mundu.65

    Data de 1865 o incio do fornecimento da iluminao mediante contrato firmado

    com um cidado particular, que ficava responsvel por acender, agora, um nmero bem

    mais expressivo de 109 lampies espalhados pela cidade, cabendo polcia fazer valer o

    64 APEMT - Relatrio do Provedor da Santa Casa de Misericrdia, Joaquim Gaudie Ley, ao Presidente da

    Provncia, Gal. Hermes Ernesto da Fonseca, datado de 24 de abril de 1876. [Doc1246]. 65 APEMT Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Joaquim Augusto Holanda Costa Freire, ao Presidente da

    Provncia, Almirante Joaquim Raimundo Delamare, datado de 6 de abril de 1858. [Doc948].

  • 30

    seu cumprimento, mediante fiscalizao diria.66 Raras vezes, contudo, esses precursores da

    iluminao na capital da provncia cumpriam risca os contratos firmados com o governo

    imperial, e por isso eram multados.

    Mesmo em 1880, relativizando um pouco o mito do progresso, a iluminao pblica

    continuava sendo extremamente comprometedora. No dia 24 de novembro desse ano, sem

    oferecer maiores explicaes, o Chefe de Polcia, Dr. Joo Maria Lisboa, denunciava ao

    presidente da provncia, Baro de Maracaju, que na noite anterior simplesmente no tinha

    havido iluminao pblica.67 A situao era to precria, que o contratante desse servio

    pblico, o cidado Andr Virglio Pereira de Albuquerque, chegara a depositar dois dias

    antes, a ttulo de garantia do pagamento das multas que incorresse por cada dia que

    deixasse de acender e apagar os lampies,68 a quantia de 1:000$000 ris, na Tesouraria

    Provincial.69 Ao que tudo indica, a cidade, nesse perodo, ficou vrios dias s escuras, pois,

    de acordo com o presidente da provncia, entre os dias 19 de novembro e 2 de dezembro

    daquele ano, o empresrio havia sido multado em 800$000 ris por no ter cumprido a

    clusula 12 do contrato celebrado.70

    De qualquer modo, apesar desse relativo melhoramento ir a reboque da expanso

    urbana, continuaram sendo constantes as denncias dos chefes de polcia contra o fato de

    que apenas a regio central da cidade era aquinhoada com o servio de iluminao. Para

    essas autoridades, esse servio precisava ser urgentemente estendido para os bairros pobres,

    como o Ba, Mundu e o Porto Geral, pois a falta de iluminao nesses pontos

    comprometia um policiamento preventivo e permitia a proliferao da desordem e da

    violncia urbana.71 Mesmo porque a priso correcional de bbados, turbulentos, escravos

    que freqentavam batuques e cururus, sem bilhetes de seus senhores, prostitutas, enfim,

    toda uma legio de transgressores que no respeitavam o toque de recolher, estimulados

    66 APEMT [Doc1093], op. cit. 67 APEMT Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Joo Maria Lisboa, ao Presidente da Provncia, Baro de

    Maracaju, datado de 24 de novembro de 1880. [Doc1271]. 68 APEMT Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Joo Maria Lisboa, ao Presidente da Provncia, Baro de

    Maracaju, datado de 23 de novembro de 1880. [Doc1272]. De acordo com esse documento, o empresrio deveria ser multado em 50$000 ris por cada dia que deixasse de oferecer o servio contratado.

    69 APEMT Ofcio do Presidente da Provncia, Cel. Rufino Enas Gustavo Galvo, Baro de Maracaju, ao Ten. Cel. Inspetor da Tesouraria Provincial, datado de 22 de novembro de 1880. [Doc1273].

    70 APEMT Ofcio do Presidente da Provncia, Cel. Rufino Enas Gustavo Galvo, Baro de Maracaju, ao Ten. Cel. Inspetor da Tesouraria Provincial, datado de 18 de novembro de 1880. [Doc1274].

    71 Com mais razo, afirmavam, devido ao exguo contingente policial disponvel para proceder s rondas noturnas pela cidade; cf., a respeito, o Captulo IV, neste trabalho.

  • 31

    pela falta de uma boa iluminao da cidade, s onerava os cofres pblicos e no sanava o

    problema, j que grande parte dessa gente pobre tinha que ser alimentada, enquanto era

    mantida presa, pelo poder pblico.

    Em outras palavras, procurando exercer uma ao moralizadora sobre as camadas

    pobres da cidade, as autoridades e a polcia eram particularmente zelosas em sua misso de

    controlar o lazer e as formas de mitigar os sofrimentos dessa populao, que, vivendo sob

    condies adversas, sob a ameaa constante das doenas endmicas, dos ataques de ndios,

    das dores fsicas insuportveis, como as provocadas por uma fratura de um osso ou de um

    dente estragado ou de um ferimento que gangrenava, enfim, diante de doenas hoje

    consideradas bobas mas que na poca podiam levar morte, predispunham os indivduos,

    mesmo correndo risco de uma priso correcional, ao consumo do nico lenitivo disponvel

    e de fcil acesso a aguardente, em cuja esteira vinham as brigas e a violncia, mas que

    tambm era uma poderosa arma para nivelar as diferenas sociais e aproximar brancos e

    negros, livres e escravos.72

    Nesse sentido, a falta de uma iluminao adequada facilitava a realizao de um

    lazer reputado extremamente perigoso pelas autoridades policiais, que viam na embriaguez

    o maior de seus males. Sob esse aspecto, de acordo com Augusto Leverger, era realmente

    impressionante o nmero de tavernas espalhadas pela cidade. De um nmero de 330 casas

    comerciais recenseadas em 1865, praticamente 55% desse total era representado por 181

    tavernas. Em seguida vinham as lojas de diversos objetos (133), as casas de talhos de carne

    (9), os escritrios de tabelies (4), os escritrios de advogados (2) e uma botica.73

    E, j que estamos falando de priso correcional, o que dizer do sistema carcerrio

    existente em Cuiab?

    72 APEMT Ofcio do Chefe de Polcia, Dr. Jos Joaquim Ramos Ferreira, ao Presidente da Provncia, Gal.

    Hermes Ernesto da Fonseca, datado de 4 de junho de 1876. [Doc1097]. Informava que havia reprimido, em uma residncia no beco Sujo, vrias pessoas, dentre as quais soldados da Guarda Nacional e marinheiros, que danavam batuques e cururus. A autoridade justificou a priso, alegando que fazia um bom tempo que essas algazarras aconteciam naquela casa e que, alm de quebrar uma postura, as reunies sempre terminavam em bebedeiras e brigas.

    73 NDIHR Relatrio do Vice-presidente da Provncia de Mato Grosso, Chefe de Esquadra Augusto Leverger, na abertura da Sesso Ordinria da Assemblia Legislativa Provincial em 17 de outubro de 1865. [Doc194]. Das 133 lojas, 111 eram de fazendas, 9 de molhados, 3 de alfaiates, 4 de latoeiros, 1 de calados, 1 de charutos, 1 de marceneiro e 3 padarias. Continuando com sua estatstica, Leverger informava ainda que subia a 160 o nmero de tendas e casas de oficinas estabelecidas na cidade: 7 de marceneiros, 41 de carpinteiros, 10 de ferreiros, 7 de pinturas, 21 de alfaiates, 5 de seleiros, 1 de caldeireiro, 4 de latoeiro, 13 de oleiros, 33 de sapateiros, 4 de ferradores e 14 de ourives.

  • 32

    Tem sido considerado pelo pela historiografia regional que, desde a dcada de 1860,

    a cadeia pblica da capital deixara de ser apenas um local de recolhimento de delinqentes

    com o obj