1872-a revolta das medidas em tavira

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ARTUR ÂNGELO BARRACOSA MENDONÇA Praça da Constituição em Tavira (fins séc. XIX) A Revolta das Medidas em Tavira (1872): subsídios para história da implementação do sistema decimal em Portugal VI JORNADAS DE HISTÓRIA DE TAVIRA 4 DE NOVEMBRO 2006

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Revolta das Medidas em Tavira

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ARTUR ÂNGELO BARRACOSA MENDONÇA

Praça da Constituição em Tavira (fins séc. XIX)

A Revolta das Medidas em Tavira (1872):

subsídios para história da implementação do sistema

decimal em Portugal

VI JORNADAS DE HISTÓRIA DE TAVIRA

4 DE NOVEMBRO 2006

2

A Revolta das Medidas em Tavira (1872): subsídios para história da

implementação do sistema decimal em Portugal

Artur Ângelo Barracosa Mendonça

A) O contexto político, económico e cultural da época

Durante o ano de 1872, Portugal vive sob o impacto dos acontecimentos

internacionais como os ecos da Comuna de Paris, a revolução republicana espanhola ou

acontecimentos nacionais como o primeiro surto de greves operárias em Lisboa, a

realização de um conjunto de reuniões anticlericais no Porto, o malogro da tentativa

revolucionária denominada A Pavorosa, que conduziu à prisão o marquês de Angeja,

Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão iniciam a publicação de As Farpas, Oliveira Martins

publica Teoria do Socialismo, surge o jornal O Pensamento Social e Teófilo Braga

lança a obra Teoria da História Literária. Alguns destes acontecimentos e, em

particular, a Comuna da Paris, despertaram “um interesse que a política interna viciada

pelo jornalismo apagara de todo dos espíritos”1 como o reconheceu Teófilo Braga.

No Algarve estes acontecimentos vivem-se com relativo distanciamento. A

imprensa local era quase inexistente e a de carácter nacional era difundida com atraso.

O telégrafo era o meio mais utilizado para difundir as notícias. Estas sofriam o efeito

nefasto da transformação em boato, que era muito frequente e regular ao tempo. A

dificuldade de comunicação com a região dificultava a propagação do impacto dos

acontecimentos. Seria nos meios urbanos, com mais acesso aos jornais, com população

mais alfabetizada que faria algum sentido falar do impacto destes acontecimentos. É

necessário ter presente que o comboio só vai chegar a Faro em 1889 e a Tavira em

1905. As viagens eram geralmente feitas por via marítima ou terrestre demorando

bastante tempo, com elevado risco de assalto ou avaria.

1 Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Veja,

Lisboa, 1983, p. 93.

3

Mais próximo, e com alguma repercussão na região, havia o problema da revolta

carlista em Espanha 2. Esta revolta provocava combates intensos na região da Andaluzia

que provocaram a debandada de alguns habitantes da região em busca de local seguro

no Algarve. A comunidade castelhana na região algarvia aumentou consideravelmente

nesta época conturbada da vida política no país vizinho. Muitas pessoas instalaram-se

nas principais vilas e cidades algarvias, dedicando-se especialmente ao comércio.

A guerra carlista, que se desenrolou entre 1872 e 1876, já tinha sido antecedida

por outras que decorreram entre 1822-1823 e entre 1833-1840. O movimento carlista

tinha sido reorganizado após a revolução de 1868. Foi um período politicamente

conturbado, em Espanha, porque Amadeu I, entre Dezembro de 1870 e Fevereiro de

1872, realizou três eleições gerais, nomeou seis governos e registou oito crises

governamentais. Esta instabilidade conduziu o parlamento a proclamar a República.

Mas também o novo regime foi marcado pela grande instabilidade, em dez meses de

existência houve quatro presidentes.

A vereação da Câmara Municipal de Tavira era, em 1872, constituída por:

Sebastião José Teixeira Neves de Aragão, João Pires, João Pedro da Fonseca Gomes,

José Mendes Pereira Neto, João Rodrigues Gomes Centeno. O presidente da câmara era

o major reformado José Joaquim Pimentel3. O comandante do Batalhão de Caçadores nº

4, era José António de Sousa Chagas4, o Juiz de Direito era Leocádio Maria Andresson5

e o Delegado do Procurador Régio era José Júlio de Oliveira Baptista6. Estes foram

2 Carlismo: movimento político legitimista, antiliberal e anti-revolucionário que se desenvolveu em

Espanha, durante o século XIX, tendo por objectivo o estabelecimento de um ramo alternativo aos Bourbon no trono do país vizinho. A situação agravou-se quando, nas eleições de 1871, o partido carlista, denominado Comunhão Católico-Monárquica, conseguiu eleger cerca de 50 deputados e 30 senadores. Perante a possibilidade de perder deputados em novas eleições e, sobretudo, preocupado em impedir uma restauração da família de Bourbon, o partido carlista optou pela via da guerra em 21 de Abril de 1872.

3 Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 1993, p. 151 e 155.

4 Ofir Chagas, Tavira. Memórias de uma Cidade, Edição do Autor, Tavira, 2004, p. 177. Tentando desenvolver um pouco mais a biografia deste oficial pode afirmar-se que José António de Sousa Chagas terá nascido cerca de 1813, assentou praça em 9-06-1832; alferes em 28-07-1837; tenente em 15-02-1845; capitão em 20-01-1847; major em 29-04-1851; tenente-coronel em 21-01-1863 e coronel em 22-05-1868 in Almanach do Exercito ou Lista Geral de Antiguidades dos Officiaes e Empregados Civis do Exército, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, p. 46-47. Não foi possível determinar a data exacta da morte deste oficial do exército, mas ela deve ter ocorrido durante esta década de setenta do séc. XIX.

5 Pequena nota biográfica: Leocádio Maria Andresson, nasceu em Portel, em 06-09-1829, filho de Eduardo Augusto Andresson Limpo de Vasconcellos e de Quitéria Margarida de Azevedo Vellez. Matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em Outubro de 1845, tendo seguido a carreira de Juiz. Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXX, fl. 13. Cota: IV-1ª D-5-2-70.

6 Paulo Jorge Fernandes, “Baptista, José Júlio de Oliveira”, Dicionário Biográfico-Parlamentar 1834-1910, vol. I (A –C), coord. Maria Filomena Mónica, Col. Parlamento, ICS/Assembleia da República, 2004, p. 290-291. A biografia elaborada nesta obra permite compreender um pouco melhor a

4

alguns dos protagonistas dos acontecimentos que tiveram lugar em Tavira em 8 de

Dezembro de 1872.

B) A evolução do sistema métrico decimal em Portugal

Desde tempos antigos que se vinha tentado implementar um sistema uniforme de

pesos e medidas, porque estas variavam “de região para região, de cidade para cidade,

de aldeia para aldeia7”, o que dificultava muito o desenvolvimento da actividade

comercial. Segundo David Justino, uma das primeiras tentativas frustradas que

aconteceram em Portugal, terá ocorrido em 1575, quando se publicou uma lei que

visava a uniformização dos pesos e medidas pelos padrões de Lisboa8. A questão só

começou a ser solucionada em 1795, quando, em França, foi decretada a lei de 18 de

Germinal do ano III (7 de Abril de 1795), que instituiu o revolucionário sistema

métrico-décimal. Poucos meses depois, esta medida era avaliada em Portugal com uma

memória da autoria de José Abreu de Bacelar Chichorro, que analisando os dados

científicos que tinham conduzido à sua implementação em França a considerava mais

adequada para resolver a referida questão em Portugal.

Publicaram-se alguns estudos ao longo dos tempos para tentar implementar a esta

medida a Portugal, mas existiam muitas resistências que barravam a sua concretização.

Em 1812, a Comissão para o Exame dos Forais e Melhoramento da Agricultura

recomenda a reforma do sistema dos pesos e medidas. Ainda no reinado de D. João VI,

em 18149, apesar do rei se encontrar no Brasil, houve a tentativa de executar novos

padrões de pesos e medidas respeitando os protótipos vindos de França que seriam

situação que então teve lugar e os reflexos que causou na vida de alguns dos seus intervenientes. Acrescentando algo mais a esta biografia pode dizer-se que José Júlio de Oliveira Baptista nasceu em 27-05-1841, em Passarela, freguesia de Lagarinhos, concelho de Gouveia, filho de Joaquim Lourenço Borges Saraiva e Ana de Oliveira Baptista. Realizou a sua primeira matrícula na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra em 05-10-1857. (Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXVII, fl. 265. Cota: IV-1ª D-5-2-67.) Em 1880, quando era deputado, foi eleito vice-secretário da Câmara dos Deputados e pertenceu à comissão de legislação civil. Em 1883, era juiz de comarca em Olhão. Veio a falecer, no Porto, no hospital de alienados daquela cidade, em Março de 1889. Cf. Anónimo, “Falecimentos”, Novidades, Lisboa, 24-03-1889, Ano V, nº 1467, p. 2, col. 2.

7 A. H. Oliveira Marques, “Pesos e Medidas”, Dicionário de História de Portugal, vol. V, dir. Joel Serrão, Livraria Figueirinhas, Porto, 1992, p. 67.

8 David Justino, A Formação do Espaço Económico Nacional. Portugal 1810-1913, vol. II, col. Documenta Histórica, Vega, Lisboa, s.d., p. 195, nota 71. Este autor elaborou uma resenha histórica da evolução do sistema métrico-décimal em Portugal entre as páginas 194 e 200 desta obra.

9 http://www.cm-maia.pt/cmm/metrologia/historia.htm. Ainda sobre este tema ver o texto de Nuno Crato, “Da Mão-Travessa ao Metro”, in http://www.instituto-camoes.pt/CVC/ciencia/e36.html. Ver ainda o texto de Elenice de Souza Lodron Zuin, “O sistema métrico decimal em Portugal nos Liceus do século XIX: considerações sobre o Tratado Elementar de Arithmethica de Luiz Porfírio da Motta Pegado”, http://fordis.ese.ips.pt/docs/siem/texto25.doc.

5

distribuídos pelos concelhos. Nesse ano chegou a ser criada uma comissão para a

Reforma dos Pesos e Medidas no Reino. Em 1815, Sebastião Francisco Mendes

Trigoso, publica uma memória na Academia Real das Ciências de Lisboa10 que

apontava para a necessidade de introduzir o novo sistema de pesos e medidas em

Portugal dando seguimento aos estudo que vinham a ser efectuados por diversos

membros daquela academia. Porém, a revolução de 1820, adiou todos estes projectos,

porque a situação chegou a um impasse e os seus principais defensores compreenderam

que os seus estudos e trabalhos científicos tinham caído num esquecimento que se iria

prolongar por várias décadas.

Nos trabalhos parlamentares, encontram-se ecos deste assunto ter sido debatido

com alguma insistência entre Janeiro e Fevereiro de 1845, entre Fevereiro e Março de

1850 e em Junho e Julho de 1869. O tema ligado ao sistema de pesos e medidas volta a

ser debatido mais tarde, já em 1893 e 1896, mas com menor número de intervenções.

Em 1852, a 13 de Dezembro, depois de cerca de quatro décadas de longos e

laboriosos estudos, foi adoptado o sistema métrico decimal. Porém, a sua

implementação iria acontecer gradualmente ao longo de um período de tempo. Segundo

este decreto, o país teria dez anos para implantar o sistema métrico. Em simultâneo com

a adopção do sistema métrico decimal, foi criada no Ministério das Obras Públicas,

Comércio e Indústria, a Comissão Central de Pesos e Medidas (22 de Dezembro de

185211), que propôs, em 1855, a criação de uma Inspecção Geral dos Pesos e Medidas

do Reino12 e uma Estação de Aferições, dependentes dessa Inspecção. Contudo, em

1868, foram extintas a Repartição dos Pesos e Medidas e as Inspecções Distritais,

confiando-se o afilamento dos pesos e medidas às Câmaras Municipais, sujeitas a

inspecção das Repartições Distritais de Obras Públicas, sendo posto em causa, em

poucos anos, todo o esforço de implementação do novo sistema.

C) As revoltas contra o novo sistema de pesos e medidas

10 Sebastião Francisco Mendes Trigoso,, “Memória sobre os pesos e medidas portuguesas, e sobre

a introdução do sistema metro-decimal”, Memórias Económicas da Academia Real das Ciências de Lisboa, Tomo V, 253-305, 1 mapa, Lisboa, 1815 [reed. Banco de Portugal, 1991].

11 Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852, nº 302, p. 1363 e 1364. 12 Esta repartição teve como um dos seus elementos mais destacados, Joaquim Henriques Fradesso

da Silveira (15-04-1825 a 26-04-1875), professor da Escola Politécnica de Lisboa e autor de diversas obras entre as quais destacamos: Compendio do novo systema legal de medidas, approvado pela commissão central de pesos e medidas, Typ. Cent. Com., Lisboa, 1856; Mappas das Medidas do novo Systema Legal: comparadas com as antigas nos dversos concelhos do Reino e Ilhas, Lisboa, Imp. Nacional, 1868; A questão de fazenda, Impr. Nacional, Lisboa, 1872; O Ensino Primário na Belgica, Imp. Nacional, Lisboa, 1872.

6

O relatório que antecede a publicação do Decreto de 13 de Dezembro de 1852, e

que o justifica, afirmava “muito lucraria a nossa civilização se fora possível substituir

num breve espaço de tempo o novo sistema legal dos nossos antigos pesos e medidas, e

se os costumes e os hábitos longamente enraizados não opusessem sempre um certo

embaraço que a lei só pausada e prudentemente pode vencer com segurança”13.

Antevendo os obstáculos que surgiriam, começaram por reconhecer que “decretar a

adopção imediata do sistema métrico, sem contar com as resistências e com as

dificuldades do uso, e da ignorância, seria comprometer o bom êxito de uma reforma de

tanto momento e interesse nacional”14. Estas dificuldades que se adivinhavam acabaram

por se confirmar, assim, o decreto no seu artigo 3º, definia um período de dez anos para

o novo sistema de pesos e medidas estar em pleno vigor.

Para estimular e acelerar a entrada em vigor do decreto, o Ministério da Obras

Públicas, Comércio e Indústria, em 11 de Janeiro de 1853, mandava que a partir de 1 de

Fevereiro desse ano, todas as repartições dependentes do referido ministério adoptassem

o sistema métrico decimal15.

Porém, a implementação do novo sistema de pesos e medidas levantou muitas

resistências e, em 1862, surgem notícias de um levantamento popular em Guimarães16,

devido à obrigatoriedade do mesmo sistema. No ano seguinte surgem revoltas populares

na província do Minho e só durante a década de setenta do século XIX é que as câmaras

municipais generalizaram o sistema a todo o País, embora com algumas resistências

como as que se verificaram nas Freixedas (Pinhel) e Tavira.

D) A Revolta das Medidas em Tavira na imprensa periódica

As principais fontes utilizadas para acompanhar esta revolta foram os órgãos da

imprensa periódica de Lisboa e Coimbra, que fizeram eco da situação e acompanharam-

na durante vários dias. Também o testemunho de dois intervenientes na época que eram

o governador civil, José de Beires e o testemunho de José Júlio de Oliveira Baptista na

sua intervenção parlamentar em 21 de Março de 1881, quando numa intervenção relata

os acontecimentos ocorridos em Tavira. Finalmente, mas talvez mais importante, a

correspondência trocada, na época, entre o governador civil e o Ministério do Reino a

relatar a situação, que se encontra no Arquivo Distrital de Faro.

13 Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852, nº 302, p. 1363, col. 3. 14 Idem 15 Diário do Governo, Lisboa, 14-01-1853, nº 12, p. 63, col. 2 e 3. 16 David Justino, ob. cit., p. 198.

7

Os factos ocorridos relatam-se de forma sucinta: no dia 8 de Dezembro de 187217,

domingo, feriado nacional, em Tavira, realizava-se o habitual mercado dos domingos. A

Câmara Municipal, em reunião realizada dias antes, tomara a decisão de aplicar o novo

sistema de pesos e medidas. Perante esta alteração, surgiram logo muitas dúvidas aos

compradores no mercado que, desconfiados, tentavam saber se estavam a ser enganados

pelos comerciantes. Face a uma situação descoberta de oportunismo a população reage

em revolta e começa a destruir os novos pesos e medidas. A tropa que estava presente,

primeiro, tentou acalmar a situação, mas como a população parecia cada vez mais

revoltada acabou por realizar algumas detenções entre os mais exacerbados. Parece que

momentaneamente o problema acalmou, mas depois os desordeiros organizaram-se para

ir solicitar a libertação dos companheiros que tinham sido presos. Como não foram

atendidos, apedrejaram os soldados e o quartel de caçadores nº 4, ferindo alguns

soldados e oficiais. O comandante do quartel, face ao desacato à autoridade, acabou por

dar ordem de fogo sobre os manifestantes, o que aconteceu tendo causado seis mortos e

catorze feridos. O delegado do procurador régio, Dr. José Júlio de Oliveira Baptista,

interpôs uma acção em tribunal contra o coronel José António de Sousa Chagas, por

abuso de autoridade e de força que teria resultado na sua despromoção, mas o recurso

hierárquico interposto pelo militar e por influência do Barão de Rio Zêzere18, acabou

por não ser pronunciado.

O Governador Civil, José de Beires, logo que teve conhecimento dos

acontecimentos de Tavira teve o cuidado de dar conhecimento da situação ao Ministro

do Reino, António Rodrigues Sampaio, num telegrama datado de 8 de Dezembro, mas

ainda sem ter toda a informação afirmava “às 10 horas de hoje começou a amotinar-se o

17 Arnaldo Casimiro Anica, “A chamada Revolução das Medidas”, Lestalgarve, Tavira, 10-06-

1985, Ano IV, nº 98, p. 3, col. 1 a 3. Reproduz-se aqui um artigo publicado no Povo Algarvio, Tavira, 02-12-1967, nº 1746, p. 1, col. 2 e 3 e p. 2, col. 1 e 2, a que se acrescentam algumas notas importantes do distinto investigador da história de Tavira. Mais recentemente o mesmo autor, publica mais algumas notas sobre este acontecimento que encontrou no processo existente no Tribunal de Tavira Cf. Arnaldo Casimiro Anica, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, vol. II, Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 2001, p. 53 e 54. Ver também os verbetes: “Anderson [Andresson], Leocádio Maria”, p. 146; “Chagas, José António de Sousa”, p. 177; “Revolta das Medidas”, p. 305 in Ofir Chagas, Tavira. Memórias de uma cidade, Ed. do Autor, Tavira, 2004.

18 Joaquim Bento Pereira (Barão do Rio Zêzere), nasceu em Setúbal, a 7 de Setembro de 1798, e faleceu em Lisboa, a 19 de Dezembro de 1875. Militar do exército, assentou praça em 27 de Junho de 1816. Combateu na campanha do Rio da Prata (América do Sul), regressou a Portugal e combateu os miguelistas. Personalidade muito controversa, chegou a ser condenado à morte em conselho de guerra, mas conseguiu repetir o julgamento e sair ilibado. Participou em diversos duelos e tornou-se um inseparável amigo do marechal Saldanha, tendo-o acompanhado em todas as suas aventuras político-militares. Foi comandante militar da região do Algarve a partir de 1850 até perto de 1866, conseguindo estabelecer aí uma forte rede de influências que se fazia ainda sentir em 1872, quando dos acontecimentos em questão.

8

povo em Tavira por causa das novas medidas, sendo necessário intervir a força. Deram-

se três ou quatro ferimentos em paisanos na ocasião em que estes atacavam o quartel de

Caçadores 4”19. No jornal Diário Popular20, publicado em Lisboa, dois dias depois,

dizia-se logo em primeira página “os serranos em Tavira revolucionaram-se contra as

novas medidas, quebrando-as. A tropa foi apedrejada, um sargento e oito soldados

feridos. A tropa fez fogo resultando muitos ferimentos e sete mortes”21. No mesmo dia,

o jornal Revolução de Setembro22, publicava em primeira página “o governo teve ontem

notícia de que às 10 horas da manhã tinha havido desordens em Tavira por causa das

novas medidas, e que se tinha atacado o quartel sendo os desordeiros repelidos. Poucas

horas depois recebeu nova participação de que tinham acabado os tumultos, mas não

sem a morte de três paisanos e sem o ferimento de soldados e paisanos. Um telegrama

de hoje anunciava que o governador civil de Faro partira para Tavira, onde não havia

nada que indicasse novos motins. Parece que o governo tinha tido informações de que

se tentava ali alguma surpresa”23.

O jornal Revolução de Setembro, referia por diversas vezes o governo e não o

fazia inocentemente. Na época, fazia parte do executivo António Rodrigues Sampaio,

Ministro do Interior e redactor principal deste diário português. A notícia procurava

realçar a acção governamental no controlo da situação e reforçar a ideia de manutenção

da ordem pública por parte do exército.

19 José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Arquivo Distrital de Faro (ADF) - Fundo do Governo Civil, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, cota: Livro 348 A, fl. 25.

20 Jornal diário, fundado em Lisboa, em 13 de Julho de 1866. Tinha por director Mariano de Carvalho, mais tarde substituído por Mariano Pina e por João Cesário de Lacerda. Foram redactores Alberto Pimentel, Mariano Prezado, Câmara Lima, Silva Pinto, Tomás Bastos, Alfredo Ribeiro entre outros. Este jornal surgiu resultando da fusão dos jornais O Noticiário Português (Lisboa, 1 de Maio a 12 de Julho de 1866) e As Notícias (Lisboa, 27 de Março a 15 de Julho de 1866), para tentar fazer concorrência ao Diário de Notícias, fundado por Eduardo Coelho, porém termina a sua publicação em 13 de Junho de 1896. Era impresso na Tipografia Lusitana. Cf. Rocha Martins, Pequena História da Imprensa Portuguesa, col. Cadernos Culturais, Editorial Inquérito, Lisboa, 1942, p. 69-70. Segundo conseguimos apurar eram proprietários do jornal entre outros: António Centeno, Joaquim de Vasconcelos Gusmão e o Marquês da Foz (Tristão Guedes Correia de Queirós Castelo Branco), pelo menos cerca de 1890, como afirma Silva Pinto, Pela Vida Fora (1870-1900), Livraria Editora Guimarães e Libânio, Lisboa, 1900, p. 144. Cf. ainda Lourenço Cayolla, Revivendo o Passado, Imprensa Limitada, Lisboa, 1928, p. 144-145.

21 Anónimo, “Grande Desordem”, Diário Popular, Lisboa, 10-12-1872, Ano 7, nº 2192, p. 1, col. 3 22 Jornal diário fundado em Lisboa em 22 de Junho de 1840, que terminou a sua publicação em 20

de Janeiro de 1901. Foi um dos mais importantes jornais do seu tempo, onde colaboraram personalidades como José Estêvão de Magalhães, Mendes Leite, António Rodrigues Sampaio, Júlio César Machado, António Pedro Lopes de Mendonça e muitos outros ao longo de mais de meio século, embora com algumas interrupções. Ernesto Rodrigues, professor de Cultura Portuguesa, na Faculdade de Letras de Lisboa considera-o “o diário emblemático do Romantismo” no seu blogue http://culturaport.blogs.sapo.pt/arquivo/841621.html.

23 Anónimo, “O governo …”, A Revolução de Setembro, Lisboa, 10-12-1872, Ano 32, nº 9143, p. 1, col. 1 e 2.

9

Por outro lado, o Diário Popular dedica nove artigos, mais ou menos longos, ao

assunto da revolta de Tavira, aproveitando para levantar alguns problemas mais

complicados ao governo. Já nessa altura, talvez mais que nos nossos dias, os órgãos da

imprensa eram muito próximos das correntes políticas dominantes, como reconheceu

José Tengarrinha, “nitidamente noticiosos, só o Diário de Notícias e o Diário Popular;

os outros são, mais ou menos veladamente, órgãos de partidos e facções”24. Neste

contexto noticioso, o Diário Popular transcreve uma correspondência de Faro,

publicada no Jornal do Comércio, em que faz um relato pormenorizado da revolta e

identifica o correspondente25.

A Revolução de Setembro, no dia 11 de Dezembro, dedica o seu artigo de fundo

ao problema da revolta de Tavira e qualifica-o de deplorável, e acrescenta “estão

apagados no espírito dos agitadores todos os sentimentos de patriotismo e de

moralidade política”26. O autor deste artigo poderia, muito provavelmente, ser António

Rodrigues Sampaio, que começa por traçar o quadro comparativo da situação entre

Portugal e Espanha. Afirmava o autor, que o país vizinho, “debate-se entre convulsões

dos partidos extremos, que não levantam audaciosamente a bandeira da revolta, mas que

empregam o banditismo, a luta de guerrilhas como meio de agitar o país, de inquietar o

governo, e de preparar enfim os elementos de insurreição mais séria”. Por seu lado,

“Portugal prossegue em paz no seu desenvolvimento civilizador, dá um exemplo de

cordura às nações”27. Parece óbvia a tentativa que este autor faz de paralelismo entre a

situação de Portugal e de Espanha, criar uma dicotomia entre o que está bem e o que

está mal, porque em Espanha havia guerra e em Portugal não e assim poderíamos

“rivalizar com a Bélgica, logo, que, desembaraçados dos perigos financeiros”28.

A análise feita neste artigo levanta suspeitas de envolvimentos dos agitadores com

os espanhóis, aproveitando o facto de estar em voga, na época, a ideia de iberismo e de

federalismo, que alimentava os sonhos de uma Península Ibérica unida politicamente

24 José Tengarrinha, História da Imprensa Periódica Portuguesa, 2ª ed., Caminho, Lisboa, 1989, p.

231. 25 A identificação dos correspondentes locais dos diferentes jornais nacionais é um trabalho muito

curioso e que ainda está por fazer. Porque estes correspondentes acabavam por criar uma determinada imagem das situações, porque reconstruíam a realidade através do seu olhar e muitas vezes acabavam por criar situações de conflito com personalidades locais que lhes dificultavam a tarefa. Temos acompanhado muitas correspondências locais nos diferentes jornais portugueses dos finais do século XIX e muito poucos são os correspondentes identificados, porque raramente os artigos eram assinados.

26 Anónimo, “Interior”, Revolução de Setembro, Lisboa, 11-12-1872, Ano XXXIII, nº 9144, p. 1, col. 1 e 2.

27 Idem, ibidem. 28 Idem, ibidem.

10

para enfrentar as grandes potências da Europa central. Em Portugal as concepções

iberistas tiveram algum eco através dos autores ligados ao embrionário movimento

republicano que era muito influenciado por pensadores espanhóis e franceses29.

Colocando em comparação a forma como as notícias são apresentadas no Diário

Popular e na Revolução de Setembro podem retirar-se algumas conclusões. O Diário

Popular procurou encontrar várias versões sobre o mesmo acontecimento, entrou em

pormenores, apontou nomes, narrou acontecimentos e apontou algumas críticas. Nas

colunas desse órgão da imprensa escrita chega a afirmar-se em correspondência de

Tavira: “Governo sabia de tudo, estava prevenido de tudo, e não evitou nem as

desordens, nem o derramamento de sangue”30. Esta teria sido a primeira grande dúvida

que se levantou entre a população, como é que um governo sabendo que a revolta

estaria latente, não teria prevenido a situação enviando mais tropas para o mercado? Os

boatos lançados através da imprensa que apoiava o governo regenerador serviram para

criar mais dúvidas, criando situações que fizessem emergir algum “inimigo” com quem

partilhasse as culpas pela revolta. O mesmo jornal, levanta a suspeita de os jornais

governamentais imputarem a responsabilidade da revolta aos republicanos federais e

questiona: “que interesse teriam os republicanos federais em fazer com que um

destacamento espancasse o povo e depois se reunisse ao corpo?”31. Constata-se aqui a

preocupação em questionar, com alguma razão, o facto de os regeneradores estarem a

tentar arranjar alguém mais com quem repartir as responsabilidades, acabando por

encontrar nos republicanos federais, os alvos preferenciais. Por fim, coloca ainda outra

questão pertinente, “sendo a introdução de contrabando tão fácil no Algarve (…), como

se explica que os incitadores não introduzissem armas e deixassem os seus sectários

unicamente com pedras, cacos, nabiças, cidras, rabanetes e outras armas pouco

ofensivas”32. Com um armamento tão pouco ofensivo torna-se interessante também

questionar a desproporção da resposta utilizada pelos militares, ainda para mais quando

os órgãos informativos referem algumas dezenas de pessoas revoltadas. Esta situação

29 Teófilo Braga, História das Ideias Republicanas em Portugal, col. Documenta Histórica, Vega,

Lisboa, 1983, p. 159-161. Sobre a evolução e transformação do positivismo em Portugal cf. Fernando Catroga, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em Portugal 1865-1911, [tese de doutoramento, policopiada], Coimbra, 1988, p. 107 a 219.

30 Anónimo, “A propósito das desordens em Tavira”, Diário Popular, Lisboa, 14-12-1872, Ano 7, nº 2196, p. 1, col. 4.

31 Anónimo, “Segundo as folhas ministeriais …”, Diário Popular, Lisboa, 18-12-1872, Ano 7, nº 2200, p. 2, col. 3.

32 Idem, art. cit.

11

parece indiciar uso excessivo da força por parte dos oficiais da Companhia de

Caçadores nº 4 ou alguma precipitação na tomada de decisões.

Por seu lado, a Revolução de Setembro aborda o problema numa perspectiva mais

analítica, procurando problematizar as situações e estabelecer as comparações entre

países, especialmente a Espanha e Portugal e França e Bélgica. Num primeiro momento,

lança acusações de aventureirismo e banditismo político aos participantes e incitadores

na revolta popular. Por outro lado, defende a posição tomada pelos militares e afirma

que o Governo deve agir “com energia”33. Porém, esforça-se por lançar a dúvida sobre

quem estava por detrás da revolta e afirmava que estes aventureiros “não chegam a

constituir um partido novo com uma ideia nova, nunca actuaram sobre o país com uma

propaganda que desse aos seus compatriotas uma ideia do seu programa e do seu fim, e

são eles com tudo isso homens das revoluções”34. Na mesma linha de raciocínio se

desenvolveram os artigos publicados sobre este assunto noutro diário afecto ao Partido

Regenerador, neste caso o Diário Ilustrado35.

Pode dizer-se que os redactores e correspondentes locais do Diário Popular são

mais factuais, narram os factos, colocam algumas questões importantes mas não se

alongam em grandes análises dos acontecimentos. Por seu lado, os autores das colunas

do diário Revolução de Setembro, procuram lançar a culpa dos acontecimentos para

supostas intervenções estrangeiras ou para os revolucionários e perigosos republicanos.

Também O Conimbricense dedicou quatro artigos à questão da revolta de Tavira.

Três deles breves, fazendo relato das ocorrências, dando conta das movimentações

militares que mostravam uma “certa efervescência no Algarve”36 e os receios de que os

problemas pudessem voltar-se a repetir. Por outro lado, fazia referência ao problema dos

boatos que circulavam em Lisboa acerca da situação conturbada na região, mas

assinalava a forte presença da força militar para consolidar a manutenção da ordem

pública. No artigo publicado a 21 de Dezembro de 1872, o autor referia-se aos diversos

tumultos que vinham a ocorrer em diversas regiões do país, “sem causa que os provoque

33 Anónimo, “Interior, Lisboa, 10 de Dezembro ”, Revolução de Setembro, Lisboa, 11-12-1872,

Ano XXXIII, nº 9144, p. 1, col. 1 e 2. 34 Idem, art. cit. 35 Este jornal diário foi fundado em Lisboa, por Pedro Correia da Silva, em Junho de 1872 e

prolongou a sua existência até 1910. Era impresso na Tipografia de Joaquim Germano de Sousa Neves e a redacção localizava-se na Travessa da Queimada, em Lisboa. Foram directores deste jornal Sérgio de Castro e mais tarde Agostinho de Campos. Eram colaboradores do Diário Ilustrado, entre outros: Ramalho Ortigão, Eça de Queirós, Carlos Lobo de Ávila, etc.

36 Anónimo, “Assuntos do Dia”, O Conimbricense, Coimbra, 17-12-1872, Ano XXVI, nº 2650, p. 3, col. 1.

12

nem motivo que os justifique”37. Estas desordens e tumultos que “um grupo de

desordeiros e mal intencionados […] desejam promover a anarquia entre os povos”,

resultando que “os seus agentes devem sofrer todas as consequências de tão estranho e

inqualificável procedimento”38. Conclui-se, portanto, da leitura deste semanário

conimbricense, que a revolta de 8 de Dezembro de 1872 estaria ligada a um movimento

de contestação mais alargado, que visava alterar a ordem pública e a força militar teria

reagido para repor essa situação. Fazia-se a defesa do Estado autoritário, forte,

cumpridor estrito das leis e da sua implementação, como tal não tinha sido possível em

Tavira, tornou-se necessário utilizar os recursos de que dispunham para punir aqueles

que “atentam contra os sagrados e invioláveis direitos da ordem pública”39.

Outro órgão noticioso que também dedica alguma atenção aos assuntos da Revolta

das Medidas foi o semanário coimbrão Correspondência de Coimbra40. Nas duas

notícias que encontramos neste semanário, uma delas merece destaque porque faz a

análise do problema numa perspectiva diferente. Num artigo não assinado, mas

integrado na rubrica regular “Províncias”, faz-se uma análise dos acontecimentos.

Primeiro lamenta o sucedido e aponta os responsáveis dos acontecimentos, que, na sua

opinião, seriam “a ignorância e a péssima educação constitucional, que os políticos lhe

têm dado [ao povo] há trinta anos a esta parte”41. Por outro lado, critica a

desorganização e a falta de interesse pela escola, o pouco empenho dos párocos em

explicar a importância do Estado e, finalmente, os influentes políticos locais que

exploram a ignorância, a mesquinhez e criam obstáculos ao progresso que era

representado pela introdução do novo sistema de pesos e medidas.

Segundo o autor do artigo na Correspondência de Coimbra havia duas causas

essenciais que estiveram na origem da Revolta das Medidas: “primeira – a ignorância

absoluta do sistema métrico decimal e das suas vantagens aplicadas aos pesos e

medidas”, apontando a grande importância da escola e do ensino para ultrapassar esta

37 Anónimo “Coimbra”, O Conimbricense, Coimbra, 21-12-1872, Ano XXVI, nº 2651, p. 1, col. 1

e 2. 38 Idem, art. cit. 39 Idem, ibidem. 40 Jornal semanário que se publicou em Coimbra a partir de 1 de Janeiro de 1872, fundado por

Joaquim Gualberto Soares e por Araújo Pinto. O redactor principal era o professor da Faculdade de Direito, Manuel Emídio Garcia (até 1874) e eram colaboradores deste jornal, entre outros: José Silvestre Ribeiro, Júlio de Vilhena, Luís Jardim (Conde de Valenças), José Cavalheiro, Oliveira Matos e Sousa Refoios. Terminou a sua publicação em 1908. Cf. A. Carneiro da Silva, Jornais e Revistas do Distrito de Coimbra, Edição da Biblioteca Municipal, Coimbra, 1947, p. 49-50.

41 Anónimo, “Províncias –Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15-12-1872, Ano I, nº 51, p. 3, col. 2 e 3.

13

situação. Concomitantemente, o outro problema era “a cobardia inacreditável com que

os governos reconsideram na pronta execução das leis, que suspendem e vão adiando de

ano para ano”42. O autor do texto defendia que a firmeza na aplicação do novo sistema

de pesos e medidas, por parte do poder executivo, não teria criado tantos obstáculos e

não suscitaria tanta oposição à obediência das leis. Com a situação criada, de avanços e

recuos na aplicação do sistema decimal, tornou-se necessário recorrer ao uso da força

para conseguir fazer respeitar as leis.

E) As impressões da revolta nas autoridades locais

No Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro, publicado em

Coimbra, por José de Beires, no ano seguinte aos acontecimentos, dedicou várias

páginas a este assunto, no capítulo da “Ordem e Segurança”. O Governador Civil

começa por lamentar o sucedido “com bem mágoa no meu coração”43 e, destaca a

gravidade dos factos ocorridos, porque “enlutou algumas famílias, arrastou muitas

infelizes ao leito da dor e encheu de consternação os povos do Algarve”44. O relato feito

dos acontecimentos de Tavira, acrescenta alguns aspectos novos que não são descritos

nos artigos da imprensa, como o facto dos indivíduos revoltosos terem entrado em

diversos estabelecimentos comerciais de uma das mais frequentadas ruas de Tavira e

destruído as novas medidas em diversas lojas. Outro elemento a considerar são os

mortos resultantes da revolta que, na sua versão, foram cinco, enquanto os órgãos da

imprensa periódica referiam somente três, quatro ou sete. Finalmente, refere-se também

à repercussão da revolta na região e no país que provocou “grande sensação” e

alimentou boatos de que haveriam, em preparação, novas tentativas de revolta. Porém, o

Governador Civil, saúda o facto de que tal não tenha acontecido porque, “as medidas de

prevenção adoptadas impusessem respeito aos mal intencionados” ou “porque no

espírito naturalmente bondoso e pacífico daquela população, momentaneamente

desvairada até à loucura, não podiam, depois da reflexão, caber ideias subversivas”45.

Concluía José de Beires que o processo da revolta estava a ser julgado pelos tribunais

sendo necessário analisar legalmente os factos e “punir os verdadeiros criminosos”46.

42 Anónimo, “Províncias – Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15-12-1872, Ano I, nº

51, p. 3, col. 2 e 3. 43 José de Beires, Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro (1873), Imprensa

Literária, Coimbra, 1873, p. 26. 44 José de Beires, ob. cit., p. 26 45 Idem, ibidem, p. 27-28. 46 Idem, ibidem, p. 28.

14

Um aspecto muito importante deste relato é o facto de não se apresentar a defesa

de nenhuma das partes. José de Beires tem o cuidado de nunca referir nomes, nem

identificar culpados de forma nominal. Relata a situação, como ele teve conhecimento, e

porque teria acontecido, mas não tenta encontrar culpados. Mesmo sendo um nomeado

político, não procura encontrar nos adversários políticos as culpas dos acontecimentos

como os jornais tinham procurado fazer.

Nove anos mais tarde, em 1881, José Júlio de Oliveira Baptista, deputado eleito

pelo círculo de Tavira, recorda, num longo discurso realizado perante a Câmara dos

Deputados no dia 21 de Março, alguns aspectos menos conhecidos e as consequências

daquela revolta. Um dos principais visados, pela sua visão critica dos acontecimentos,

era o então Ministro da Justiça, Augusto César Barjona de Freitas, porque tomou

posição em favor de uma das partes, tentou limitar a acção do procurador régio47 e

favorecer a sua própria situação política. Assim, Oliveira Baptista acusou-o de ser um

dos responsáveis pela sua transferência para delegado do procurador régio na comarca

da ilha de S. Jorge, porque ele tinha tomado a decisão de querelar sem sua anuência, o

comandante do Batalhão de Caçadores nº 4. Esta decisão era uma consequência da

análise legal dos factos, porque o coronel José António de Sousa Chagas teria

“usurpado ilegalmente as atribuições”48 que, no ponto de vista de José Júlio de Oliveira

Baptista, pertenceriam ao administrador substituto do concelho. Por outro lado, era

bastante estranho que cerca de “cento e trinta homens, todos armados e mais ou menos

disciplinados”49 que estariam no quartel de Tavira, não conseguissem fazer recuar

quatro ou cinco dezenas de revoltosos. Finalmente, e talvez a questão de maior

gravidade fosse o problema de se ter verificado “pelos exames, que muitos desses

ferimentos eram nas costas”50, tendo o juiz legitimamente concluído que estes

ferimentos tinham sido infligidos quando as pessoas já estavam em fuga, o que se

tornaria um crime de homicídio.

Perante todos estes acontecimentos, o então delegado do procurador régio, enviou

um ofício para a Procuradoria Régia para solicitar apoio na tomada de decisões. Porém,

na Procuradoria Régia, só estavam preocupados com as testemunhas parciais arroladas

para relatar os factos, com a tentativa de comprometer a força armada e a situação em

47 Era Procurador-Geral da Coroa, João Baptista da Silva Ferrão Carvalho Martens (28-01-1824 a

15-11-1895), nomeado em 28 de Julho de 1868 e manteve-se nessas funções até cerca de 1885. 48 Diário da Câmara dos Senhores Deputados (1881), Imprensa Nacional, Lisboa, 1881, p. 1105. 49 Idem, ibidem. 50 Idem, ibidem.

15

que estava o processo em face do depoimento prestado pelas testemunhas. José Júlio de

Oliveira Baptista tomou então a responsabilidade de interpor querela “não só contra os

tumultuosos, mas contra o comandante do Batalhão de Caçadores nº4, por ter excedido

os limites da justa defesa; reconheci-lhe o direito de se defender a si, ao batalhão do seu

comando e ao seu quartel, mas entendi, em face das provas dos autos, que ele tinha ido

além desse direito e que por isso devia responder criminalmente”51. Ao transmitir esta

informação à Procuradoria Régia soube que, nesse mesmo dia, foi enviado um ofício

daquela instituição ao conservador colocado em Tavira, com o objectivo de conseguir

informações pessoais sobre o procurador. Dois dias depois era transferido para a

comarca da ilha de S. Jorge.

O processo de transferência contra o delegado do Procurador Régio de Tavira foi

ainda marcado por uma tentativa feita pelo próprio de conseguir uma entrevista junto de

Barjona de Freitas, que se realizou na Câmara dos Deputados. Nesse encontro, Barjona

de Freitas teria dito que “o castigava com a transferência, porque não podia tolerar que

um agente do Governo querelasse sem a sua anuência outro agente do mesmo

Governo”52. A questão jurídica era encarada de formas diferentes por um governante e

por executante no terreno das decisões vindas do ministério. Porque, no entendimento

de Barjona de Freitas, o delegado do Procurador Régio deveria ter consultado primeiro

o ministro para formular uma acusação, mas, mais grave ainda, era o facto de ter

interposto um acção criminal contra o comandante do Batalhão de Caçadores nº 4 e não

contra incertos.

No seu longo discurso na Câmara dos Deputados, Oliveira Baptista reconhece que

tentou encontrar apoiantes com alguma influência para tentar demover o Ministro da

Justiça de conseguir realizar a transferência proposta. Porém, a resposta não lhe foi

favorável e foi mesmo intimado a tomar posse. Porém, como estava impossibilitado de

viajar, juntou ao seu processo um atestado médico comprovativo, mas nem essa

situação conseguiu demover o ministro. Como resultado de não ter cumprido as ordens,

que tinha recebido do Ministério da Justiça, para tomar posse na ilha de S. Jorge,

acabou por ser demitido, tendo sido publicado um despacho no Diário do Governo.

A principal conclusão que se retira da análise deste discurso é a necessidade de

ajuste de contas entre Oliveira Baptista, Barjona de Freitas e o Barão de Rio Zêzere. As

acusações mais graves eram feitas ao então Ministro da Justiça e ao barão. O ministro,

51 Idem, ibidem, p. 1106. 52 Idem, ibidem.

16

porque tentou interferir nas decisões do delegado e, como não o conseguiu, acabou por

criar um esquema que conduziu ao seu castigo. O Barão, porque manobrando sempre na

sombra, conseguiu mover as suas influências pessoais para escapar ao cumprimento da

lei e protegendo assim, o amigo e compadre, coronel José António de Sousa Chagas.

Quanto à documentação oficial sobre a “Revolta das Medidas”, encontraram-se

nove cartas e telegramas enviados sobre este assunto pelo Governador Civil ao

Ministério do Reino. Dois telegramas datados de 8 de Dezembro, dia da revolta popular,

dirigidos ao Ministério do Reino. No dia seguinte, outro telegrama dirigido ao mesmo

ministério. No dia 10, encontramos um telegrama dirigido ao Governador Civil de Beja

e um longo relato em forma de correspondência confidencial ao Ministério do Reino.

No dia 11, novo telegrama confidencial ao referido ministério a alertar para a

necessidade de tomar de novas medidas e outro telegrama a informar sobre a situação

local. Três dias depois novo telegrama sobre o mesmo assunto ao ministério supra

referido. No dia 16, José de Beires, envia nova carta pormenorizada sobre a revolta de

Tavira.

Que informações nos fornecem estes documentos oficiais? Como são feitos os

relatos dos acontecimentos? Que medidas foram tomadas pelo Governador Civil?

Os telegramas do dia da revolta mostram que o governador civil ainda dispunha de

informações truncadas e parciais. O primeiro telegrama parece ter sido enviado ao início

da tarde, não sendo ainda conhecidos os acontecimentos mais graves53. No outro

telegrama urgente, enviado nesse mesmo dia pelo Governador Civil, já se fazia menção

às vítimas mortais “houve infelizmente a lamentar a morte de 3 paisanos, e ferimentos

em 3 soldados e alguns paisanos”54.

No dia 9 de Dezembro de 1872, o Governador Civil, José de Beires, esteve em

Tavira, a acompanhar os acontecimentos. O relato dos mesmos assume cada vez maior

gravidade, aumentara o número de vítimas mortais e os dados são apresentados de

forma clara. Os feridos, entre os populares, eram catorze, e entre os militares eram doze.

A tropa, na expressão utilizada pelo Governador Civil, “só fez fogo na última

53 José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às

Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25. Nota: o telegrama era acompanhado da nota urgente.

54 José de Beires, “Telegrama – Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v.

17

extremidade, e depois de receber ferimentos e insultos graves no próprio quartel, que foi

acometido à pedrada”55.

No dia 10, é então enviada uma longa missiva, com carácter confidencial, onde o

Governador Civil começa por se queixar que o administrador do concelho não lhe

transmitiu totalmente os assuntos. Narra os acontecimentos com base nos testemunhos

que recolheu junto das “autoridades civis, militares, câmara municipal e principais

cavalheiros da localidade”56.

Desta missiva retiram-se alguns elementos interessantes e novos. Segundo José de

Beires, a introdução do novo sistema de pesos e medidas, no distrito de Faro, tinha

vindo a acontecer “a pouco e pouco e sem repugnâncias notáveis (…) tendo contribuído

para isso a prudente direcção que este serviço têm dado as Câmaras e autoridades

locais”57. Na opinião deste representante do poder central, em Tavira, a Câmara

Municipal forçou a intervenção do administrador do concelho com o objectivo de

“impedir o uso das medidas antigas nos mercados públicos”. Este optou por explicar, no

dia 1 de Dezembro, aos vendedores e compradores no mercado, o funcionamento das

novas medidas e avisou que no mercado seguinte era obrigatório utilizar o novo

sistema.

No dia 8 de Dezembro, o mercado começou por funcionar normalmente, com a

utilização do novo sistema de pesos e medidas. Porém, cerca das dez horas da manhã,

“três ou quatro indivíduos gritando contra as novas medidas, quebrando as primeiras

que se lhe deparavam, e incitando o povo à destruição de todas. Foi instantâneo e geral

o motim então no mercado”58. A revolta popular dirigiu-se contra os representantes do

Estado presentes no mercado, destruindo as medidas, agredindo os representantes da

autoridade, invadindo e destruindo estabelecimentos comerciais pela cidade de Tavira e

apedrejando as forças militares presentes na cidade. No início, o administrador do

concelho, com 40 praças, tentou restabelecer a calma sem utilizar meios violentos e

acabou por conseguir terminar o tumulto na praça da cidade cerca das duas horas da

tarde. Porém, ao mesmo tempo que isto acalmava num lado surgia noutro ponto da

cidade. Um grupo de populares dirigiu-se ao quartel e apedrejou-o, provocando alguns

55 José de Beires, “Telegrama – Ao mesmo”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições

Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v. 56 José de Beires, “Telegrama – Ao mesmo”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições

Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 25 v. Esta correspondência apresenta, marginalmente, o número 176.

57 Idem, ibidem. 58 Idem, ibidem, fl. 26.

18

feridos entre oficiais e praças, os ataques e agressões continuaram até que houve a

tentativa de invasão do quartel. Face a esta ameaça, o relato afirma que “a força que se

achava dentro do quartel se viu obrigada a fazer fogo e, ainda assim, dando os primeiros

tiros para o ar”59. Apresenta-se o balanço mais actualizado dos mortos e feridos em

consequência da revolta e termina por lançar a culpa pelos incidentes aos populares

vindos das aldeias, embora reconheça que não foi orquestrado, ou preparado com

antecedência, como alguma imprensa tentou fazer crer, porque reconhecia José de

Beires, “se apresentaram desarmados servindo-se unicamente de pedras”60. Finalizava a

carta “lastimando as deploráveis consequências da desordem” e elogiando “o modo

prudente por que, tanto a autoridade, como a força pública se houveram”61.

Face aos rumores que circulavam, às notícias que os jornais publicavam e à

efervescência que se vivia na região, provocada pelos acontecimentos em Tavira, o

Governador Civil decide, no dia 11 de Dezembro, tomar algumas medidas preventivas.

Assim, comunica ao Ministério do Reino, por novo telegrama confidencial, que seria

“arriscado deixar Loulé completamente desguarnecido de força, principalmente no

domingo, dia de mercado, sem dúvida o mais concorrido do Algarve”62. Esta situação

da deslocação de tropas terá provocado alguma preocupação, porque existem indícios de

fortes concentrações militares em Tavira nos dias que se seguem à revolta. Existem

mesmo notícias de destacamentos vindos de longe que se vieram juntar nesta cidade63,

procurando impedir novas revoltas. Havia receio que surgissem situações semelhantes

em outros lugares onde houvesse grande concentração de pessoas, neste caso, eram

particularmente acompanhados os mercados e feiras, que se realizavam periodicamente

pelo País e pela região.

Os boatos que circulavam levaram as autoridades a tomar medidas para prevenir

situações que podiam ser bastante desagradáveis. Assim, José de Beires, em telegrama

datado de dia 11 de Dezembro, dava conta das preocupações existentes de se “preparar

59 Idem, ibidem, fl. 26 v. 60 Idem, ibidem. 61 Idem, ibidem. 62 José de Beires, “Telegrama confidencial urgente ao Ministério do Reino”, Livros de

Correspondência Dirigida às Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 27. 63 Anónimo, “Caçadores 6”, Diário Ilustrado, Lisboa, 13-12-1872, Ano I, nº 166, p. 1, col. 2 e 3.

Cf. também Anónimo, “Províncias – Tavira”, Correspondência de Coimbra, Coimbra, 15.12-1872, Ano I, nº 51, p. 3, col. 4. Cf ainda Anónimo, “Assuntos do Dia – Continua a reinar…”, O Conimbricence, Coimbra, 17-12-1872, Ano XXVI, nº 2650, p. 3, col. 1. Estes jornais fazem menção aos regimentos de infantaria nº 15, de caçadores nº 6 e infantaria nº 17.Como cada regimento era composto por cerca de cem homens segundo informavam as nossas fontes, significa que a cidade de Tavira ficou em estado de sítio com quase meio milhar de militares a patrulhar o perímetro urbano.

19

para domingo uma agressão armada à força militar de Tavira e às repartições

públicas”64. Anunciava a sua intenção de acompanhar pessoalmente a situação no local

e, entretanto, procurava estabelecer contactos para impedir que se dessem “tais

desvarios”. Não podemos comprovar se houve de facto contactos entre o Governador

Civil e os grupos de descontentes, mas o certo é que não voltou a haver problemas como

se chegou a pensar.

No dia 14 de Dezembro, José de Beires, parte de Faro para Tavira, mas as

informações de que dispunha eram já animadoras, antevendo que não houvesse os

problemas que se temiam. Dois dias depois envia nova longa correspondência para o

Ministério do Reino, dando conta dos receios que tinham existido de uma revolta

devido à “excitação de ânimos que nos primeiros dias se observava na classe artística e

marítima da cidade, em consequência de pertencerem a estas classes dois dos indivíduos

falecidos em virtude daquele conflito”65. Os boatos que circularam indicavam que teria

estado a ser preparada, entre as populações rurais, uma força para atacar os quartéis

militares e as repartições públicas. Porém, as medidas de prevenção tomadas impediram

novas tentativas de revolta, como assinalava, habilmente, o Governador Civil. A

requisição de forças militares em grande número, para estarem presentes nos mercados

dominicais de Tavira e Loulé, mostraram estar dispostas a “empregar todos os meios de

prevenção para obstar e reprimir, sendo necessário, qualquer tentativa”66 e impedir

novas aventuras revolucionárias.

As medidas que a autoridade administrativa mais importante na região tomou são

enumeradas e explicadas pelo próprio. O envolvimento pessoal na questão é destacado

nos textos que envia ao Ministério do Reino. Esforça-se por conseguir o

reconhecimento da sua acção pós conflito, e esta parece ser preponderante, pois afirma

nessa missiva “recomendei à autoridade local e a algumas pessoas ali preponderantes

que, por interesse próprio, fizessem por acalmar os ânimos e interviessem com os

párocos e pessoas mais influentes das freguesias rurais para desviarem os povos de

qualquer tentativa criminosa fazendo-lhes ver o mal inevitável que os esperava”67. Note-

se o reconhecimento do papel dos influentes locais e dos párocos, que conseguiam

moldar os comportamentos das populações nos meios rurais, sendo eles os

64 José de Beires, “Telegrama ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às

Repartições Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 27 e 27 v. 65 José de Beires, “Ao Ministério do Reino”, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições

Superiores, ADF – Fundo Governo Civil, cota: 348 A, fl. 28. 66 Idem, ibidem. 67 Idem, ibidem, fl. 28 v.

20

intervenientes preferenciais a utilizar para acalmar a agitação que se fazia sentir. Por

outro lado, é de salientar o facto de o nomeado político nunca assumir, em qualquer das

suas missivas qualquer acusação contra quem quer que fosse. Observa-se o cuidado que

tem em não apontar críticas aos militares, tenta mesmo defender a sua acção e utiliza-os

para intimidar e impor a autoridade e a ordem legal do Estado, mas procura persuadir de

forma pacífica as populações revoltadas.

No fim desta carta, datada de 16 de Dezembro de 1872, o Governador Civil,

reconhecia que os boatos que indicavam a existência de manobras por parte de

opositores políticos ou agitadores estrangeiros, eram completamente infundadas, mas

curiosamente era esse o teor dos artigos escritos nos jornais nessa altura. As autoridades

políticas já tinham conhecimento que estes boatos não faziam qualquer sentido, mas o

debate na imprensa prolongou-se por mais alguns dias. Era importante manter a

população letrada entretida a debater assuntos que os políticos já tinham resolvido,

como acontece tantas vezes nos nossos dias.

G) Conclusões

A Revolta das Medidas, em Tavira, foi um acontecimento de âmbito nacional, o

que se nota pela imprensa, que se desencadeou de forma espontânea entre os populares

presentes no mercado, quando suspeitaram que estavam a ser enganados e começaram a

destruir as novas medidas e os estabelecimentos comerciais. A reacção dos militares

parece ter sido algo desproporcionada face ao perigo que representavam realmente os

revoltosos, mas entende-se quando o próprio quartel foi atacado.

O debate sobre a revolta na imprensa é muito politizado. Os jornais regeneradores

defenderam a posição de força do exército, porque defendiam a manutenção da lei e da

ordem, mas procuram lançar boatos na opinião pública de que as oposições políticas, no

caso, os republicanos federais, poderiam estar na origem do conflito. Por outro lado, os

acontecimentos na vizinha Espanha, em particular na Andaluzia, podiam estar também

na base de uma tentativa de criação de uma República Federada na Península Ibérica.

As perspectivas sobre a revolta na imprensa levantam no entanto alguns

problemas muito interessantes, como a questão do analfabetismo ser um factor

impeditivo para a compreensão do novo sistema de pesos e medidas. Outra situação que

a imprensa levanta é o problema do atraso face aos restantes países europeus, que era

necessário ultrapassar, e a introdução do novo sistema de pesos e medidas facilitaria o

desenvolvimento comercial e funcionaria como um sinal de modernidade.

21

Alguns jornais adoptam uma atitude mais descritiva dos acontecimentos, enquanto

outros procuram analisar a questão sob perspectivas novas e diferentes. Os jornais

oposicionistas procuram salientar essencialmente a acção militar e os mortos e feridos

provocados. Lançam dúvidas sobre a necessidade daquele tipo de intervenção e realçam

o atraso económico do país.

Os relatos oficiais são mais narrativos e autojustificativos. Lamentando sempre os

acontecimentos, o Governador Civil, o delegado do Procurador-Geral da Coroa e as

correspondências oficiais são disso um espelho. Verifica-se ainda a utilização de

estratégias de salvaguarda pessoal, de intermediação, de influência e protecção de

carreiras públicas que ficavam inevitavelmente marcadas por estes acontecimentos.

Algumas questões ficam ainda por responder, esperemos que outros trabalhos

deste género ou mais aprofundados as possam clarificar. Por exemplo:

- Quem seriam os correspondentes locais da imprensa lisboeta?

- Que ligações efectivas haveria antes dos acontecimentos entre o delegado da

Procuradoria Régia, o juiz e o comandante de Caçadores nº 4?

- Quem teria sido contactado pelo Governador Civil para colaborar no processo de

apaziguamento dos acontecimentos?

- Haverá em Tavira ainda descendentes dos intervenientes na revolta com alguma

documentação por revelar, em particular, cartas e telegramas trocados por ocasião ou

sobre os acontecimentos?

Tentou-se dar um pequeno contributo para conhecer melhor este episódio algo

esquecido, mas revelador do lento caminho que, em Portugal, por vezes é necessário

trilhar para alcançar aquilo que designa por modernidade. Porque as mudanças

encontram sempre obstáculos e, sobretudo se as pessoas que são confrontadas com as

transformações, não estão preparadas para as ultrapassar, não têm as suas dúvidas

esclarecidas e não as compreendem, a mudança pode significar instabilidade,

insegurança e revolta. A Revolta das Medidas, de Tavira, insere-se neste processo de

mudança que se assistia nos finais do século XIX em Portugal, com o fim dos anos

dourados do progresso fontista, das falências que se avizinhavam, com o

desenvolvimento das novas ideias republicanas e socialistas e o aumento da

instabilidade política que se acentua neste último trecho de oitocentos.

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H) Fontes e Bibliografia

- Fontes Manuscritas

Arquivo da Universidade de Coimbra:

Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXVII

Livro de Certidões de Idade (1834-1900), Livro LXX

Arquivo Distrital de Faro:

Fundo do Governo Civil, Livros de Correspondência Dirigida às Repartições

Superiores, cota: Livro 348 A

- Fontes Impressas:

Periódicos:

Almanach do Exercito ou Lista Geral de Antiguidades dos Officiaes e

Empregados Civis do Exército, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873

Conimbricense, O, Coimbra, Dez. 1872

Correspondência de Coimbra, Coimbra, Dez. 1872

Diário da Câmara dos Senhores Deputados (1881), Imprensa Nacional, Lisboa,

1881.

Diário do Governo, Lisboa, 14-01-1853

Diário do Governo, Lisboa, 22-12-1852

Diário Ilustrado, Lisboa, Dez. 1872

Diário Popular, Lisboa, Dez. 1872

Lestalgarve, Tavira, 10-06-1985

Novidades, Lisboa, 24-03-1889

Povo Algarvio, Tavira, 02-12-1967

Revolução de Setembro, A, Lisboa, Dez. 1872

Bibliografia consultada:

ANICA, Arnaldo Casimiro Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, Câmara

Municipal de Tavira, Tavira, 1993.

ANICA, Arnaldo Casimiro, Tavira e o seu Termo. Memorando Histórico, vol. II,

Câmara Municipal de Tavira, Tavira, 2001.

BEIRES, José de Relatório Apresentado à Junta Geral do Distrito de Faro

(1873), Imprensa Literária, Coimbra, 1873.

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CATROGA, Fernando, A Militância Laica e a Descristianização da Morte em

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1913, vol. II, col. Documenta Histórica, Vega, Lisboa, s.d.

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