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228 192. Francisco: Uma ampliação do conceito de poesia para atividades outras, a mais que ouvir, a mais que ler? A poesia não seria apenas a oralidade, apenas a leitura, que, em última análise, também é oralidade? SF: Não há motivos para restringir a poesia à fala, seja a fala da boca (os, oris, boca, oral), seja a “fala do pulso”, a escrita em papel, agora no computador. Se o corpo (gesto, mí- mica, dança, ritual) também fala; se um artefato (pedra, cepo, tronco, escultura, desenho, quadro, foto, pintura) também comunica, não há motivos de negar-lhes o poético; “desde quê”, é claro! Um quadro, uma pintura? Claro que pode ser pura poesia, sem qualquer palavra, sem qualquer rima. As palavras e as rimas estão de dentro. O mes- mo numa pedra qualquer, indague de Michelangelo. Claro que mão que opera uma unha encravada ou um coração — há de fundar-se em movimentos tais, de absoluta poeticidade. O corpo que dança, o Chaplin fazendo caretas… O baila- rino estremecendo o Bolero. Isto tudo é poesia. Sem metro algum. Aliás, com metro absoluto, nem uma linha a mais ou a menos. A não ser que a comunicação seja apenas racional. 193. Francisco: Racional? Algo con- tra? SF: Sim! A que se destinam os co- municados? A se fazerem entender, naturalmente. Usam-se, na maior das vezes, argumentos do tipo por isto, isso e aquilo; conclusão, dois pontos, assim, e não assado. Dizem que este é o linguajar do filósofo racionalista. Também do jurídico. Contudo, ai do advogado que utili- zar em suas petições o argumento estritamente racional, do tipo “a + b = c”, como se fosse um jogador de xadrez. Dá-se o mesmo linguajar racional no computador. Por isto é que o computador tornou-se um excelente jogador de xadrez, a pon- to de derrotar o Kasparov. A exati- dão da análise, artigo por artigo, la- cuna por lacuna, no caso dos autos; ou, lance por lance — em toda a amplidão de lances possíveis, bi- lhões, no super computador, do jogo de xadrez. Num caso ou no outro, não há lugar para o aleatório. Quan- do muito, o descuido do jogador. Ou a falha no programa, no computa- dor, uma queda de corrente. Espe- ram-se alguns segundos, religa-se a máquina e retoma-se a racionalidade. 194. Francisco : Não seria a racionalidade o ideal? U m clarão profundo FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI , A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM- BÉM É FRANCISCO

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192. Francisco: Uma ampliação doconceito de poesia para atividadesoutras, a mais que ouvir, a maisque ler? A poesia não seria apenasa oralidade, apenas a leitura, que,em última análise, também éoralidade?SF: Não há motivos para restringira poesia à fala, seja a fala da boca(os, oris, boca, oral), seja a “fala dopulso”, a escrita em papel, agora nocomputador. Se o corpo (gesto, mí-mica, dança, ritual) também fala;se um artefato (pedra, cepo, tronco,escultura, desenho, quadro, foto,pintura) também comunica, não hámotivos de negar-lhes o poético;“desde quê”, é claro! Um quadro,uma pintura? Claro que pode serpura poesia, sem qualquer palavra,sem qualquer rima. As palavras eas rimas estão de dentro. O mes-mo numa pedra qualquer, indaguede Michelangelo. Claro que mãoque opera uma unha encravada ouum coração — há de fundar-se emmovimentos tais, de absolutapoeticidade. O corpo que dança, oChaplin fazendo caretas… O baila-rino estremecendo o Bolero. Istotudo é poesia. Sem metro algum.Aliás, com metro absoluto, nemuma linha a mais ou a menos. Anão ser que a comunicação sejaapenas racional.

193. Francisco: Racional? Algo con-tra?SF: Sim! A que se destinam os co-municados? A se fazerem entender,naturalmente. Usam-se, na maiordas vezes, argumentos do tipo poristo, isso e aquilo; conclusão, doispontos, assim, e não assado. Dizemque este é o linguajar do filósoforacionalista. Também do jurídico.Contudo, ai do advogado que utili-zar em suas petições o argumentoestritamente racional, do tipo “a +b = c”, como se fosse um jogador dexadrez. Dá-se o mesmo linguajarracional no computador. Por isto éque o computador tornou-se umexcelente jogador de xadrez, a pon-to de derrotar o Kasparov. A exati-dão da análise, artigo por artigo, la-cuna por lacuna, no caso dos autos;ou, lance por lance — em toda aamplidão de lances possíveis, bi-lhões, no super computador, do jogode xadrez. Num caso ou no outro,não há lugar para o aleatório. Quan-do muito, o descuido do jogador. Oua falha no programa, no computa-dor, uma queda de corrente. Espe-ram-se alguns segundos, religa-sea máquina e retoma-se aracionalidade.

194. Francisco: Não seria aracionalidade o ideal?

Um clarão profundo

FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI,A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA

E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM-BÉM É FRANCISCO

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SF: De forma alguma! O homemnunca se moveu dentro daracionalidade. Usa-se a raciona-lidade, digamos, a bula de medica-mentos: uma colher de sopa (15ml)logos após o almoço, dia sim e dianão. O que seria dia sim e dia não:o remédio, o almoço? Veja, vão-seformando lacunas, a serem preen-chidas com os “embargos de decla-ração”: [Doutor, quer dizer que o do-ente pode almoçar todos os dias?][Claro!] [Só em dias claros, senhor?][O quê?!]

195. Francisco: Um diálogo de doi-dos?SF: Exatamente! É um risco! Só opoético consegue a comunicaçãoabsoluta a atingir o leitor em seucerne mais profundo, nos seus ar-quétipos, as senhas, em coisas queele sempre soube, embora nuncaas tenha visto. Mas sabe delas,sempre soube.

196. Francisco: Uma receita de boloé algo racional?SF: De forma alguma. Repare nolinguajar: separe, reserve, sal agosto, uma xícara de farinha. O queé separe? O que se há de entenderpor reserve. Sal a gosto? Um dia fuiaprontar uma receita, nem me lem-bro de que, quando chegou no “sal agosto”, fiquei sem saber. Por ondecomeçar? Com uma pitadinha? Oque seria uma pitadinha? Emsuma, se você não tiver visto suamãe preparar o bolo, botará tudo aperder. A receita anotada ou lida nolivro será apenas um guia, um“meme” de coisas que você já sabe:“reserve”, “separe”, “pitada”, “xíca-ra”, etc. Racional só a fórmula ma-

temática. Mesmo assim, dizem ago-ra que Newton estava errado!

197. Francisco: Fale do terceirocéu, por favor.SF: Há um outro espaço no homemque não é sensorial. Nem pode sermedido, contado, pesado, cheirado,olhado. É o espaço de suas velhassenhas animais, primitivas, subs-tituídas pela linguagem. Foramsubstituídas, mas permanecemintactas, lá dentro. Veja, a criançapequena, ponha-lhe o dedo na pal-ma da mão. Ela agarrará. Se for orabo de uma serpente, o cano de umrevólver ou o cabo de um punhal,tanto faz, agarrará do mesmo jeito.E por aí vai. Os valores inegociáveis.Só o vates “sabe” deles. Aliás, nemo vates sabe que, sem desvendá-los,os desvenda. Não há explici-tação.O pior, ou melhor, é que quem faz opoema não sabe que o fez naquelaintensidade. Sim, mistério por den-tro de mistério.

198. Francisco: Confuso, não?SF: Muito! O jogo das senhas. Nãohá como decifrá-las, sequer atingi-las pelos sentidos. Se intensidadetiver, há a necessidade de dois po-etas: um, do lado de dentro que faz,o “faber”; outro, do lado de fora, que“lê”, o intérprete. Mas, susto mai-or, a leitura pode ir além do que oautor imaginou; noutra via, nãoatingir o leitor, permanecendo amensagem apenas no quintal doseu autor.

199. Francisco: Afinal, os poemasde terceiro céu, por favor.SF: Vamos lá, por favor: no primei-ro dia da criação, e não queira en-tender isto como algo científico, que

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ciência é outra coisa; pois bem,veja lá: A terra estava informe e va-

zia; as trevas cobriam o abismo e o

Espírito de Deus pairava sobre as

águas. Deus disse: Faça-se a luz! E

a luz foi feita. Deus viu que a luz era

boa, e separou a luz das trevas. Deus

chamou à luz dia, e às trevas noite

[Gênesis, 1, 2-5].

200. Francisco: O relato bíblico?!Paciência!SF: Consoante o relato, a luz foi cri-ada no primeiro dia, bem antes doSol e da Lua, dos luzeiros e das es-trelas, que só foram criados noquarto dia. Que luz seria aquela doprimeiro dia? Anote aí, por favor: éaquela luminescência que o poemaverdadeiro tenta encontrar, e, severdadeiro for, encontrará. Aresplandecência. Digamo-la, agora,em linguagem tão-só simbólica: orosto de Deus! A primeira letra (J)do Seu santo e impronunciávelnome.

201. Francisco: É por aí?SF: Sim, é por aí. O texto poético doterceiro céu nos atinge noutra di-mensão, quase sempre de chofre;não é apenas o olhar, o sentir, ocheirar, o pegar, o apalpar. Um jor-ro de luz que não é do fogo. Nem dosol. A sarça ardente ardeu mas nãoqueimou. Nem o clarão de Paulo.Ficou cego, sim, mas o cegar faziaparte das senhas do jogo e do jugode converter. Nem é o clarão súbitoe demolidor de Hiroshima. Quantoà validade desse relato, do ponto devista científico, nenhuma. Do pon-to de vista de nossa civilização ju-daico-cristã, nesta banda do mun-do chamada Ocidente, validade ab-soluta, independentemente de crer

ou não. Sem esquecer que esse“mito” ou “verdade absoluta” ali-menta, com versões assemelhadas,as crenças do outro lado do mundo,Oriente, até para quem não crê. E,por favor, crença e “senhas”, nadaa ver.

202. Francisco: Em Camões, o fogoque arde sem se ver?SF: Não basta dizer “fogo” para sen-ti-lo. Nem basta pronunciar “silên-cio” para nada mais escutar. O fogodo primeiro dia, aliás, a Luz, é algoque apossa de dentro, “queimando”e “acendendo” lá dentro. E mais:ascendendo, pleonasmo mesmo, norumo de cima, para cima. Tal poé-tica, bem próxima do impossível, oleitor vai encontrar, digamos, nadespedida de Heitor e Andrômaca.A gente lê aquilo, milhares de anosdepois, até mesmo na certeza deque jamais aconteceu, tudo lenda,tudo mito, mas é como se fosse real,próximo, imediato, verdadeiro,fulgente, iluminante. A passagemde Jacob pelo Jaboc (o mesmo nome,apenas com inversão da última sí-laba, COB x BOC, que o nome sem-pre se escreveu Jacob), quando elemanda as mulheres, os filhos, osservos e animais atravessarem orio e fica sozinho. Aquilo é escritocom palavras tais (?), com ligamen-tos de uma certa ordem (?) que nosatingem dentro do peito, na gargan-ta, nas lacrimais, na temperatura,na salivação, etc. tal. Em suma, oêxtase, o acendimento, o ascendi-mento. (Com quem, afinal, brigouJacob? Consigo mesmo, pelo visto!).Outra passagem tocante — istomesmo, tocante, o vocábulo queestava procurando, “tocante”, dá-se

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no funeral de Heitor, o domador decavalos, último capítulo da Ilíada.

203. Francisco: Um orgasmo?SF: Nada a ver! O orgasmo é umasensação corporal, da vontade. Aomanuseio, até. O enlevo poético háde vir de fora para dentro, a serrecepcionado de dentro para fora.Uma combustão, como se. O poetaé o pontífice que faz a ligação entreo divino e o humano. Só isto.

204. Francisco: A quem pertenceessa suposta iluminação? Aos per-sonagens do poema? Ao poeta? Aoleitor?SF: Aos personagens do poema, cer-tamente não. O herói nem sabenem está ali agindo de herói. O atoé heroico, mas, regra geral não in-tencional. Deveras, o sargento quesaltou no tanque cheio de arira-nhas para salvar uma criança aquem ele jamais vira, não praticouato intencional algum. O heroísmodele (poiésis mais puro) o compeliu,ainda que sob o risco de ser comidovivo pelas ariranhas. Com certeza,o enlevo pertence ao poeta, ao au-tor. E ao leitor. A communicatio sedá entre o autor e o leitor. Na des-pedida de Andrômaca e Heitor é pro-vável que ambos apenas se tenhamdespedido… E a emoção? É do cego,o autor! Se ele a sentiu? Provávelque sim, mas bem depois, relendo;na hora, não; provável que não. Osargento não sabia que estava sal-tando. Saltou. Os deuses compeli-ram-no a saltar. Foi empurrado poruma força interior, que nem elesabe de onde saiu. Saltaria outravez? Com certeza. E agora conosco,milhares de anos depois, seus lei-tores, Homero. E com o futuro, a

quem ler, no século cem, deÉsquilo, o salto do sargento. Ah, onome dele, Sílvio DelmarHollenbach.

205. Francisco: Século cem, deÉsquilo?SF: Sim! A primeira estrofe deFernando Pessoa, Ode Triunfal, emque ele faz a ligação dos átomos quebrilhavam dentro de uma lâmpadaelétrica, a maior novidade de en-tão, afirmando que dentro daquelalâmpada estavam a brilhar os mes-mos átomos do cérebro de Virgílio ede Platão. E que tais átomos iriamfazer febre ao cérebro do Ésquilo doSéculo Cem. Esse mote, a essên-cia da suprema reconstrução hu-mana, em Salomão, o próximo li-vro.

206. Francisco: Se há uma ilumi-nação, a poesia seria incompatívelcom o chulo, o vulgar?SF: Completamente incompatível.Vamos a estes dois exemplos, nomonumental Crime e Castigo. Oprimeiro, quando o criminoso con-ta o crime para a jovem prostituta,Sonia, uma das mulheres de mai-or compleição moral de toda a gran-de literatura. Ela diz: “eram pesso-as”. Ele rebate, mas o faz de umamaneira tão estranha que o leitor“percebe” de imediato a presençadaquela luz do dia inicial. Esquecetambém o leitor que a jovem bemque poderia ser bela, rabuda,boazuda, peituda e sexy; aliás, aabsoluta desnecessidade de confi-gurar o corpo da prostituta, quandoali, em jogo o caráter, a alma, maiscoisas… não sei bem o quê. Pou-cas, em toda a Literatura, comoSônia. Vivo dizendo que Crime e

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Castigo nada tem a ver com crimenem com castigo, mas com a “lei-tura secreta” sobre a puta, a Sônia.Talvez o fosse sexy, mas nada a ver.Também esquece que as mãos delefediam a sangue e crueldade. O pioré que não precisa crer nos deusespara senti-los. Melhor até que nãoos creia. Senti-los-á do mesmo jei-to, ou mais. O outro episódio é quan-do ele, o criminoso, comparece paraconfessar. Ali, na mesa do delega-do, aqueles mesmos vagalumes dopico Caga-fogo começaram apinicar um leve e repetidoacendimento (ascendimento), bor-rando, irremediável e completa-mente, todo o mal. A visitação! Dequem? Melhor que nem creia! Sen-tirá muito mais.

207. Francisco: Falou sobre um li-vro de prosa, um romance. Indagueisobre poesia. Falou também “leitu-ra secreta”?SF: A poética nada tem a ver comfórmula, nem com forma. A poesiatão-só de ouvido, sim: há de termetro e métrica, quando poeta saiatrás de rimas quando a rythma háde estar no interior. [Compadre, mearranje uma rima para gatuno][Bote Netuno!]. Nesta outra, de ilu-minação e ascese, não. As rimasacontecem “lá dentro”. Nos recôn-ditos para além do ouvir, do ver, dopegar. Mas não me indague muito,que não saberei explicar. Ninguémsabe.

208. Francisco: Outros exemplos de“terceiro céu”, por favor.SF. Por favor, tire as aspas. Claroque é um sentido figurado, mas real,de nada a ver com as sensações fí-sicas dos cinco sentidos. Veja, no

sacrifício de Abrahão, sobre o qualse fundam os valores ocidentais,Deus diz, sem qualquer rythma oumetro: “Abrahão! Abrahão!” Ele res-ponde: “Eis-me aqui”! Evidente queo cenário aos olhos, aos ouvidos, aotato, ao paladar ao olfato e aos mús-culos foi suprimido. (Ou não foi?Claro que foi! Todo o corpo deAbrahão sabia, sabia de quê, tantoassim que, sem discutir, atendeu).O nosso Alencar teria gastoquantas laudas a descrever o cená-rio daquelas paragens secas, talqual as daqui, raposas tísicas inclu-sas?! E Proust, de que tanto paradissertar sobre a barba de Deus e oodor do sovaco de Abrahão, três diase três noites viajando sem tomarbanho, tangendo um jumento comuma carga de lenha? E o cinema,de que tamanho o cenário do épi-co? Entanto, o poema, em sua forçaabsoluta de nomes-coisa: “Deus”,“Abrahão”, o “chamamento”, e o“eis-me aqui”, mais que suficien-tes para detonar o cenário interiorem toda a sua plenitude, não seiquantos séculos depois, que aindahoje é assim. O atingimento pros-segue. Se o objetivo de Deus eralegítimo ou não, em exigir que o paimatasse o próprio filho para nada epor nada, por favor, isto não está emjogo. Veja, o pleno iluminismo ci-entífico, computadores e tudo omais, mesmo assim alguns mi-lhões rodeiam, todos os anos, umlocal em Meca, a atirar pedras emSatã, que atentava Abrahão garan-tindo que Deus havia de enganá-lo. As pedras são recolhidas e espa-lhadas outra vez à passagem denova leva de “leitores” que as rebo-lam de volta no velho demônio etudo se repete num ciclo de poesia

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absoluta. As pedras? Já estão bemlisinhas de tanto serem atiradas novelho Satã que, ali, bem calminho,não dá um pio. Ou dá? Por favor, nãome comprometa. Evidente, uma lin-guagem “noite”, das crenças, de parcom uma linguagem “dia” daracionalidade. De dia, contratos; denoite, pactos. Com os deuses. Oucom satã.

209. Francisco: Donde, conclusão,a musa é cruel?SF: Sim e não. Aliás, nada a ver. Oestado poético cria a sua próprialegitimidade, como no exemplo deAbrahão. De fato, não há no mundoocidental um mandamento aospais: “Honrar os filhos”, tal como o“Honrar pai e mãe”. Hoje, as crian-ças registram BOs contra os paisante qualquer maltrato; os vizinhostelefonam para polícia quando ospresenciam. Está certo. Melhor as-sim. Mas o nosso lastro poético-civilizatório impunha (e continua!)que o pai, Abrahão, havia de diri-gir-se ao monte e enfiar o cutelo à-toa no filho, a mando de Deus. Cla-ro que quem fizer isto, nos dias dehoje, ganhará no mínimo uma pri-são perpétua, senão uma injeçãoletal, mesmo que aqui não haja pri-são perpétua nem injeção letal; oua internação num asilo de loucos.A leitura do poema não é sob sig-nos de hoje, mas sob as senhas deentão, que permanecem. Desculpe-me, nada disto: a poesia verdadei-ra “arma o cenário”, coloca o leitordentro dele e faz do leitor gato e sa-pato. Em Esdras, outro texto bíblico,os homens de Israel são instados a

despachar mulheres e filhos quenão fossem judias. O pior é que,dentro daquele cenário de loucurae impiedade absolutas, lê-se hojeaquela doidice como coisa normal,com grande aprovação, quando todomundo sabe que desterrar mulhere filhos apenas porque ela é estran-geira é um absurdo que não temtamanho. Ainda no campo da cru-eldade, dada como coisa absoluta-mente normal, tão-só por força daalta poesia, em Josué, a ordem depassar ao fio da espada todos os ani-mais de fôlego. Genocídio, até con-tra os brutos? Sim! Respirou, mor-reu! O pior: poeticamente é belo. Eterrível. Em suma, o cenário. Hajacenário! Haja “leitor”.

210. Francisco: Algo mais ameno,por favor.SF: Veja este outro exemplo, o ateuconfesso José Saramago produz noEvangelho segundo Jesus Cristoesta pérola da maior intensidadepoética. É o episódio da chegada deTomé ao Cristo. [Saramago seriamesmo ateu? Com certeza, crentealgum seria capaz de produzir textotão belo e tão devoto. A crença ha-veria de atrapalhar]. Pois bem, opoema está oculto num cesto deprosa, num texto de prosa. (Propo-sital? Não! Acho que não!) E quemconhece a prosa de Saramago sabeda dificuldade de entender: tudoengalfinhado, sem pontuação. Nempor isto! Aqui está o original, emsímile do livro, Companhia das Le-tras, Brasil, 33ª Reimpressão, pá-ginas 398 e 399, com o rabisco dequando o li:

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Olha, Tomé, o teu pássaro foi-se embora!

Vem aqui, Tomé,

vem comigo até a borda da água,

vem ver-me fazer uns pássaros

com esta lama que colho...

Repara como é tão fácil,

formo e modelo o corpo

e as asas;

afeiçôo a forma da cabeça

e do bico; engasto estas pedrinhas

que são os olhos;

ajeito as penas compridas

da cauda;

equilibro-lhes as pernas e os dedos

e tendo feito

este, faço mais onze;

aqui os tens, um dois, três

quatro, cinco, seis, sete, oito,

nove, dez, onze, doze pássaros

de lama...

211.Francisco: E se esse Tomé nãotiver existindo?SF: Não está em jogo tenha existidoou não o Tomé; e, redobradorespeito, existido ou não esse outrosenhor, Jesus. Minha panela irápara o fogo (ou não) com eles ousem. (Melhor com! E que meapareçam para o jantar! A festa. Quefesta!) O que está em jogo é a belezamesma, o tocante, do poema. Sim,o formato de prosa ou de poesia,

nada a ver. Ao poeta-leitor, agora,cumpre o “arejamento”. A buscadado ritmo dos olhos — e de tudo omais, de dentro —, leitura e voz…Em voz alta!, mas sem dizerpalavra. É pegar o texto em bruto —a pedra, como se, o bloco de pedra— a arejá-la de escultura… tintase pinceis… uma cirurgia cardíaca…uma aula magistral… No formatode “poesia”. Ei-la, sem lhe alteraruma única linha…

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Imagina, até, se quiseres,

dar-lhes nomes: este é Simão,

este é Tiago, este é André, este é João, e este,

se não te importas, chamar-se-á

Tomé.

Quanto aos outros vamos esperar

que os nomes apareçam;

os nomes, muitas vezes, atrasam-se

no caminho, chegam

mais tarde...

E agora vê como faço — lanço esta rede

por cima das avezinhas

para que elas não possam fugir, os pássaros..., se

não temos cuidado.

Queres dizer-me que se esta rede

for levantada os pássaros fogem?

Esta é a prova com que querias

convencer-me?

Sim e não!

Como, sim e não?

A melhor prova, mas essa

não é de mim que depende, seria

não levantares tu a rede e acreditares

que os pássaros fugiriam se a levantasses.

São de barro, não podem fugir.

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Experimenta! Também Adão,

nosso primeiro pai, foi de barro e tu

descendes dele.

A Adão deu-lhe vida Deus!

Não duvides mais, Tomé! Levanta a rede, eu sou

o Filho de Deus.

Assim o quiseste, assim o terás,

estes pássaros não voarão!

Com um movimento

rápido, Tomé levantou

a rede, e os pássaros,

livres, levantaram vôo, chilreando,

duas voltas

sobre a multidão maravilhada

e desapareceram no espaço.

Disse Jesus:

Olha, Tomé, o teu pássaro

foi-se embora.

E Tomé respondeu:

Não. Senhor, está aqui ajoelhado a teus pés,

sou eu.

212. Francisco: O arejamento? Oque disse o Saramago em o senhormeter a mão no poema dele?SF: Sim, com certeza, um areja-mento, com todos os créditos aonome dele. O que ele disse? Bom,ao que eu saiba, não disse nada ou,se disse, eu não sei. A autoria? Édele, claro! Cumpriu-me tão-só o

“acabamento”, a buscada do ritmoe respiração… a rigor, o “acha-mento”. Está agora bom de ler; ali-ás, ótimo de ler. Veja esta cesurano quinto verso, de cima para bai-xo, nesta página: “Não duvidesmais. Tomé. Levanta a rede, eusou”. Esta expressão “eu sou” é, afi-nal de contas, o nome de Deus,

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“Aquele que é”, absoluto, sem adje-tivos. O nome pelo nome; o verbo, oabsoluto “é”. Sim, sem nenhumaaula de filosofia, sem crença algu-ma, todos sabemos deste nome. SeEle existe? Nada a ver. Isto não estáem jogo. Mas não há de ser umasimples cesura aos olhos do poetaque lê. Há de impor-lhe uma pau-sa, uma selah extraordinária, dealguns séculos, um engasgamentomonumental ainda que não tenhacomido peixe algum. Veja nestaoutra estrofe, a última do poema, openúltimo verso, quando Tomé pros-trado diz: “ajoelhado a teus pés”…… … no outro verso: “sou eu”.

213 Francisco: O senhor tem ditoque o poeta nem sempre sabe dabeleza que cometeu. Saramago ter-se-ia dado conta?SF: Acho que não. Tal como atoheroico, quando o sargento saltouno tanque de ariranhas para sal-var a criança que ali caíra (saltoupor tinha que saltar! Era do seu ta-lento, a sua Arte interior. E anteri-or! Sim, também “anterior”, ele car-regava consigo, desde os tempos,sem saber, aquela arte-Suprema desaltar-para-salvar), pois bem, o atopoético, sem nenhuma diferença,também ocorre na mão (ou noquengo) do poeta, sem nenhum…planejamento. Os deuses, asmusas… isto que chamamos… ta-lento? Com certeza. Sem esquecerque o gesto do sargento, tambémpoético, no sentido da criação, nãolevou em conta nenhuma paga,nem se branco ou preto o meninopor salvar. Salvou e morreu. Isto fazparte. Salvou porque tinha que sal-var! Os deuses impuseram-lhe,sem qualquer aviso, o dever de sal-

var. Mérito racional algum, mesmoporque naquele átimo de pular-e-salvar (assim mesmo, hifenizado!)não há tempo. Já não há tempo! Seisto é poesia? Não lhe vejo outronome. O nome dele, cumpre-meaqui a glória de repeti-lo, como sefosse possível infinitas vezes estenome: Sílvio Delmar Hollenbach,1943-1977.

214. Francisco: Genialidade, não?SF: Sim! Sem dúvida. Tanto maisnas mãos de um ateu confesso,anticlerical, como o nosso nobel.Seria ele realmente um incréu?Sei não. Talvez o mais crente detodos os crentes, sem se dar contaque o fosse. O texto, crenças à par-te, arrepia. Por outra, a certeza deque crente algum seria capaz deescrever o que ele escreveu. Don-de, conclusão: a Arte, nada a vercom as convicções pessoais do ar-tista. Ou, pelo menos com o que elediz professar.

215. Francisco: E a autoria, ficacom quem a autoria?SF: Claro que é dele! Ao “novo poe-ta”, o poeta-leitor, apenas o areja-mento. Mas não duvide apareça al-guém e declare que o autor, é cla-ro, é mesmo NSJC, quando permi-tiu pela boca de um ímpio, o Sara-mago (ímpio só por fora, pelo que sevê), que o nome dEle fosse glorifi-cado no chilrear daqueles pássarosde barro… Vejamos o que disseramalguns leitores. Antes porém: oEVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO, todointeiro, é pura poesia. Se Saramagoera increu? […] Sei não! […] Dá para“retirar” centenas de poemas damesma estirpe. Assim também OsSertões:

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ALCKMAR LUIZ DOS SANTOS: Liseu exercício, interessante emmuitos aspectos, e fiquei assuntan-do. Você conhece um tipo de exer-cício de criação poética em cimad'Os Lusíadas, que teve alguma vogalá pelo século XVII? É assim: pe-gam-se 14 versos, em cantos e oi-tavas distintas e, com eles, faz-seum soneto segundo os ditames dogênero e da espécie. E fica a per-gunta: quem é o autor, Camões, quefez os versos, ou o poeta outro, queos ajuntou a seu modo e jeito? Umexemplo disso você encontra noantologia "Poesia Barroca", da Me-lhoramentos, organizada porPéricles Eugênio da Silva Ramos.Outro está no livro organizado pelaAna Hatherly, "A Experiência doProdígio" (Casa da Moeda/Impren-sa Nacional, Lisboa). Vale a penaconferir.

ALEILTON FONSECA: Eita, seupoeta tinhoso da molesta! Serámago do universo esse cantador

juramentado que sabe versificar asprosas saramagas? De tom em tom,eis a poesia da qualidade toda. Queas musas te abençoem, seu poetadanado... de bom! Abracíssimos.Aleilton

ANA CABREIRA: Não pude deixarde pensar em Borges! Lembra do"Pierre Menard, autor del Quijote",in Ficciones? Pois é. A tese ali é deque todo homem deve ser capaz deter todas as ideias... Pierre Menard- criação exuberante de Borges -decide escrever o Quixote comoCervantes o fez. E vai escrevê-lo,não como mera cópia ou vergonho-so plágio, mas como autor das idei-as postas ali no papel. E assim, asua empresa - tecendo versos comritmo e pulsação - a partir de idei-as já existentes em prosa, corrobo-ra a tese de Menard. Ah, eu gosteidemais. E acho que Borges adorou!

ANIBAL BEÇA: Li seu trabalho decolocar em verso a prosa de

Canudos não se rendeu.Exemplo único em toda a História,resistiu até o esgotamento completo.

Expugnado palmo a palmo,na precisão integral do termo, caiuno dia 5, ao entardecer,quando caíram seus últimos defensores,que todos morreram.

Eram apenas quatro: um velho,dous homens feitos e uma criança,na frente dos quais rugiamraivosamente cinco mil soldados".

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Saramago. Um exercício que sóvem deixar à mostra o seu talentonatural de lidar com o ritmo do poe-ma. Bandeira e muitos outros poe-tas, sempre afirmaram ser o poe-ma, livre das amarras dametrificação, muito mais difícil dese ajustar à musicalidade do que ometrificado. Concordo. Mesmo sen-do a prosa de um poeta comoSaramago, você construiu uma par-titura sua, de sua respiração pes-soal. Não fora vossimecê, afilhadodos rapsodos da Grécia Nordestina.Parabéns. Deixo-lhe um repto: Po-nha em verso a Carta de Pero Vazde Caminha. Mas depois, quando foreditada, e ganhar os olhos de mi-lhares de autores, lembre-se des-sa velha patativa da floresta...

BATISTA DE LIMA: O seu arranjosobre Saramago é obra de arte.

CARLOS AUGUSTO VIANA: Exce-lente seu trabalho sobre o ritmo deSaramago em seu Evangelho.

CLIVANIA TEIXEIRA: Quem derapudesse eu ter palavras para elogi-ar sua proeza, um magnifico traba-lho que transcende a técnica atépela intenção de realizá-lo. Creioque o próprio Saramago ficaria,como eles portugueses dizem"ESTUPEFACTO" diante de sua pró-pria obra vinda nesta embalagemfantástica de versos... É neste rit-mo que perdemos o fôlego... Mara-vilhoso, obrigada pela lembrança.

ELIZABETH LORENZOTTI: Eu melembro de ter lido acho que emJoseph Campbell, o grande mitólogo,que as pessoas costumam ler a Bí-blia ao pé da letra, e então trans-

formam poesia em prosa. Belo étransformar prosa em poesia e ah,se pudéssemos fazer isso com a nos-sa vida. Muito lindo. Só você mes-mo.

ERGÓGIRO DANTAS: É tarefa defôlego longo versejar quem já emprosa nos brinda com pura poesia.E devo reconhecer que é trabalhode belíssima cepa, e de poderosoresultado.

ERORCI SANTANA: li a versão po-ética do fragmento da belíssima obrado Saramago, um dos melhores ro-mances que ja li, aquele "Evange-lho...". Taí uma opinião sobre poe-sia e prosa que o Fernando Pessoaassinaria embaixo, pois ele afirmouque a diferença entre os dois gêne-ros era apenas de superfície e nãode conteúdo, superficial e nãovisceral. Reparando bem, qualquerum vê, por exemplo, que o "GrandeSertão: Veredas", do Rosa, o melhorromance que já li na vida, é na ver-dade um poemão. Outras obras háde qualidade que, sendo poemões,não deixam de ser romanções, como"Os Lusíadas", do vovô Luís deCamões. E tudo isso me alegra:montão.

GLAUCIA LEMOS: E agora, meuDeus, tô arrepiada!!! não é que te-nho um feliz e privilegiado encon-tro com meu herói literário, aque-le a quem os deuses doaram todasabedoria de palavras e de fazeresliterários, o incrível Saramago, emversão Feitosina? Li e reli. GrandeSaramago que leio e releio emmuitos livros seus que possuo econsagro como os mestres do esti-lo. Grande Feitosa que vai ao vate

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luso e sabe banhá-lo no mel da poe-sia de quem, também dos deuses,recebeu o dom da sabedoria dos ver-sos. Agora mesmo terminei a lei-tura de Levantado do chão, um po-ema em prosa sobre o Alentejo, ain-da estou impregnada da unção deobra tão forte. E vem então vocêcom os pássaros de Tomé e meembebeda ainda mais a sensibili-dade. E me embriaga com licor sa-grado. Que Deus os abençoe, a vocêe a ele, para SUA maior glória, quetambém é glória de Deus ver assuas criaturas derramando-se embelezas de tanta grandiosidade.

GUSTAVO DOURADO: E louvo-tepelos textos de Saramago e Euclidesda Cunha...os outros verei em se-guida... sei que tb são bons. Real-mente você tem a verve e a ener-gia dos mestres da linguagem... Asua linguagem é única e peculiar,carregada de satironia e um graupicaresco advinda da linguagem doromanceiro popular e de outrosambientes... Admiro a força de seutalento e de suas ações virtureaise revirtuais.

IZACYL GUIMARAES FERREIRA:Poeta, espiei. Pra ver que a poesiasopra o que quiser, não só quandoquer,como disse Mestre ManuelBandeira. Espiei também os outrosdesentranhamentos como o citadoMestre fez com Schmidt e maisamigos. Pra ver que a poesia sopracomo quer, porque quer e ondequer. Basta saber através de quem.Olhe: você com essas glosas trans-versais e com o "newest criticism"deflagrado pela querela dos"rascunheiros" está fazendo é ofi-cina de poesia, coisa muito neces-

sitada nestas latitudes e longitudes.Palmas para o coautor! E o abraço.

KATIA MENDES: como se diz lá emMinas, quem sabe faz, quem nãosabe bate palmas. Elogiar é choverno molhado. Mas o encanto da poe-sia é justamente este: pegar o ba-nal, o comum e embalar em papelde sonho, em cores de entardecer,em cheiros de nossa infância, emlembranças que nem sabíamos ter.A poesia destampa a rudeza quecobre nossa alma e mostra que ain-da há um sopro de Deus, apesar detantas vidas, tantos erros, tantasestórias. Abençoado o poeta peloseu dom! Abençoado você por per-mitir a todos este momento de en-levo.

LAETICIA JENSEN EBLE: Comosempre tocando fundo em nossaalma dedicada... O filho de Deus deuvida ao barro fazendo pássaros (po-deriam ser homens). SoaresFeitosa deu nova vida à prosatransmutando-a em Poesia. E as-sim, experimentou ser Deus (pelomenos nessa esfera!). É Divino. Arede..., acreditando que os pássa-ros fugiriam.

LUCIANO MAIA: Li o trabalho ela-borado sobre o texto de Saramago.Ovo de Colombo? Não, uma inven-ção engenhosa, oportuna. E paraalém disto, uma bela homenagem.Ao criador e à criatura: autor & tex-to.

MARCIO CATUNDA: Uma belezaessa versificação do Saramago.Você continua pesquisando coisasessenciais na arte da palavra.

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MARCO POLO GUIMARÃESMARTINS: Chego de manhã na re-dação, nesta sexta-feira recifenseensolarada, e leio seu Arranjo, so-bre texto de Saramago, mais suaargumentação sobre poesia & pro-sa. Que maravilha! Começo meufim-de-semana com o pé direito.Muito obrigado e parabéns!

NILTO MACIEL: Poeta Feitosa, istoé maravilhoso. Você, leitor sagaz epoético, sabe onde está a Poesia.Quem não sabe passa a vida dizen-do besteiras e rabiscando "versos"que nunca passarão de lama emcontraste com os passarões dos Po-etas como Saramago e você. Tenhaa minha admiração por tudo o quevocê tem escrito e anotado.

RICARDO ALFAYA: Você é um dosartistas realmente mais interes-santes do pedaço. Sempre inovan-do, buscando, experimentando porcaminhos diversos. Tudo que meconvida a ler sempre me deixa gra-tificado. Desta vez, o que na verda-de se acha por trás de seu experi-mento e de sua indagação aos lei-tores na verdade irá fatalmentedesaguar na seguinte questão: oque é poesia? Um texto poético, po-rém francamente discursivo, pas-sa a ser poema se apresentado emversos? O que mais se aproxima deum poema: um texto ruimempilhado em versos ou um bomtexto em prosa poética? É lícito con-siderar-se uma narrativa poema?Você, poeta e crítico experiente,sabe que para muitos escritores odiscursivo não constitui poesia. Sefor uma narrativa, então, nem pen-sar. Na verdade são ideias moder-nas, bem recentes, aliás, pois a po-

esia épica sempre foi narrativa, dis-tinguindo-se da prosa, estrutural-mente, pelo fato justamente de es-tar em versos e atender a certasregras de rima e metrificação. En-quanto esses modelos e critérios semantiveram estáveis e predomi-nantes nunca houve maior proble-ma quanto a isso. Foi justamentea ruptura contemporânea com esseparadigma que gerou a imprecisãoentre os gêneros. Perguntado numaentrevista sobre sua leitura prefe-rida, Rosário Fusco não hesita emresponder: "Filosofia, porque é poe-sia pura". Em certos casos é verda-de, sem dúvida. E claro que, ao con-cordar com Rosário, estou implici-tamente reconhecendo que nãoentendo a existência do poéticocomo simples resultado da aplica-ção de uma, digamos, estrutura fí-sica do texto. O poético transcendea estrutura, o que o torna inefável,evidentemente, assim como é im-possível dizer o que exatamenteconstitui a beleza de uma sinfoniade Beethoven, como observou Ru-bem Alves no ensaio "O que é reli-gião". Rubem observa e acrescen-ta: a beleza não é um atributo ci-entificamente comprovável da ma-téria. Então, assim como a descren-ça de Tomé não pôde impedir quepássaros de barro levantassem voo,não há como querer aprisionar oque é poético numa gaiola de con-ceitos. Do barro do texto, o poéticosempre se erguerá, abrirá suasasas e empreenderá seu voo.

ROBERTO PIRES: Acho que possofazer um dos maiores elogios aopoema sacro pois ao terminar de lersurpreendi meus olhos cheio delágrimas... Não entendo bem mas

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algumas coisas me emocionam atéàs lágrimas... Certa feita, assistiana tv um parto e ao ver a criancinhanascendo meus olhos ficaram, tam-bém, pleno de lágrimas! Acho queconsegui te passar o efeito de teutrabalho em minh'alma de poeta,filho de Salomão! Aproveitando otema sacro desejo que aquele quepadeceu no madeiro infamante con-tinue te inspirando!

RODRIGO PETRÔNIO: Uma belezaesse arranjo para assobio e harpanatural que você compôs a partir dogrande Saramago. Esse final é pun-

gente, e você apreendeu muito bemo ritmo das frases. Parabéns!

VICENTE FRANZ CECIM:Alquímico SF: Onde guardaste aResídua, o que sobrou da decanta-ção efetuada no texto? Mandasteque ficasse girando nos anéis deSaturno - onde estão girando, tam-bém, as coisas perdidas pelos ho-mens - objetos cotidianos: um pé dechinelo, um velho relógio, uma fotoantiga - como adivinhou MárioQuintana? Também eu ando giran-do, me extraviando de mim. Forteabraço. Do teu amigo, sempre/Vicente.

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FOLGUEDOS DE QUANDO CHOVE

FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI,A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA

E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM-BÉM É FRANCISCO

216. Francisco: Proposital?SF: De forma alguma! Digo isto poruma razão muito simples, aliás,duas. A primeira é que eles,Saramago e Euclides são poetas-Poetas, dos verdadeiros, quandoescrevem em prosa porque assimo fazem com a mesma poeticidade.As rythmas interiores de que já falei;a segunda é…, digamos, maiscômodo prosear do que arrumar emversos. Preguiça? José de Alencar?Iracema é um poema absoluto. Todoo Rosa também. E Suassuna. Oessencial é lê-los em voz alta, a todovolume, mas sem pronunciar umúnico som, nem mover qualquer

músculo. Sequer nos dentes;sequer nos lábios. A leitura inte-rior, de dentro para dentro. Seiexplicar não, desculpe-me.

217. Francisco: E o gênerofescenino, o que diz?SF: Muito válido o fescenino, ogênero “putaria”. Muitos bonspoetas o cultivam. Trabalha umapoética, digamos, do coração parabaixo. Ali moram três bichos: oporco, o bode e a serpente. O“fescenino” imundo, e muitos fazemuma “estética” do asqueroso, é dosuíno. O “fescenino” do sexo é dobode. O “fescenino” da crueldade, e

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219. Francisco: É um bom poema?SF: Bom? Não! É simplesmenteexcelente! Superlativo! Condoreiroaté! O cego vem lá de cima, feitoum gavião feroz, invocando a musamaior, Nossa Senhora, justo a daProvidência. O cego era muito bompoeta. Ele diz: aqui estou obrigado, oque lhe retira qualquer responsa-bilidade, coagido que estava poraquela corja, doidos por putaria; ele,não. Depois dessa providencialressalva, ele faz uma pequenapausa, sinalizada pelo colchete(uma selah, que somente os ótimosrecitadores conhecem), eprossegue, agora impiedoso: Mas

digo de consciência! Repare como ossons “digo-de-consci” arrumam-sedentro da boca e percutem noouvido… e em todo o corpo. Claroque o cego é ótimo! Ótimo é pouco!Excelente! E completa, depois deuma respiração que só acompetência sabe que sabe, aparadinha do pênalti: O caso agora

é sisudo! Usa um som grave — udo—, com sentido de coisa grave!Perfeito! O caso sisudo! Sob essecenário, a mocinha, a noiva (minhabisavó), toda pura, bela, belíssima,fininha em cima, cheinhaembaixo, só poderia ser assim, ela,a noiva, com o seu papudo! Agora,

Ó Virgem da ProvidênciaAqui estou obrigadoA cometer um pecadoNo meio de tanta inocência[...]Mas digo de consciência[...]O caso agora é sisudoQue um priquito papudoDepois de bem arretadoMerece ser atochadoCom pica culhão e tudo!

aí inclua a sátira, é da serpente.Se conseguir juntar os três bichosnum texto só, tenha cuidado. Forçasterríveis, contra o Homem, podemser detonadas. Há coisas bonitas,mas no sentido de dar umas boasgargalhas, que nada tem com oenlevo, nem com a caminhada aessa luz do primeiro dia da criação.

218. Francisco: Um exemplo de umbom poema de putaria?SF: É para já. Era uma festa, pa-rentes meus, no tempo antigo. Não

havia CD, discos, essas coisas deouvir, sequer rádio. Toda animaçãohaveria de ser feita peloscantadores; cegos, os melhores. Erao casamento da filha do Coronel,tetravô meu. Lá para as tantas,chamaram o cego em particular, esob boas gorjetas deram-lhe ummote que ainda hoje seria perigoso,imagine-se naquele tempo: Com

pica, culhão e tudo. O cego pinicou aviola. No ato! Parece até que estavaesperando:

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tarefa do noivo, primo daqueles“safados” de pura gandaia. É de crerque o noivo já fizera competen-temente a devida “ajeitação”,preliminares, como se diz hoje,mas, naquele tempo havia de sersem qualquer palavra, no escuroabsoluto, até a lamparina tinha queapagar, a noiva de camisola comum buraco no local, coisa assim. Eagora? Claro que o cego tinha areceita! Atochá-lo! O papudo! Taquia altura, ó! O que mais o senhorquer? É o que podemos dizer: umpoema perfeito. E, por favor, muitocuidado com o caso sisudo!

220. Francisco: Tão perfeito, porque não equipará-lo aos demais?SF: Onde o poema do cego percutiu?No baixo ventre! Nada contra o baixoventre, por favor. Os urras, os vivas,os palavrões e os gestos nãopronunciados, ainda que com todaa naturalidade, todos eles vêm láde baixo. Tanto vêm lá de baixo,repare quando as pessoas riem, oque se move, subindo e descendono cristão? Não é o peito que arfa,mas o ventre, o baixo vente, quá-

quá-quá, subindo e descendo. Nadacontra, repito. O poeminha do cegonão produziu nenhuma resplande-cência naquela plateia meiodevassa, e muito justo que assimestivesse, devassa, depois de muitacomilança, bebida, danças efolguedos, todos muito excitados.Era aquela festa o seu equivalenteaos jogos da primavera — videStranvinsky —, o festival deacasalamento, suas respectivassenhas – as saturnais, as baladasde hoje. Muito provável que depoisde grandes algazarras, quem tinhao seu par tenha ido intentar uns

amassos em meio àquele purita-nismo de antigamente, nalgumesconderijo, ainda que para umsimples beijo. Muito justo! E quemnão tinha, deve ter corrido àsjumentas, bananeiras e espelhos.Esta a diferença: o fescenino, comouma purga, chama pelo baixo ven-tre. O poema de luminescência,ainda que em prosa, chama, a partirdo coração, ao arfar do peito, ao altoda cabeça. Aliás, para muito maisalto. Ao infinitamente alto. Ao Alto.

221. Francisco: Seria possívelexemplificar essa tal iluminaçãopoética com um soneto que, bom deouvir, nos atinja não só nossentidos, mas a neste outro“departamento”, o “Alto”?SF: O sinistro “desde quê” está pre-sente neste soneto de Luís AntonioCajazeira Ramos. Não preenche orequisito sinestésico porque, saltomaior, vai direto do ouvido (rythma)para o terceiro céu. Todo ele emversículos, uma façanha para umdecassílabo. Sem arcar com o maiordefeito que um soneto pode conter,o sonetismo, a “forçação de barra”para fechar a rima ou o metro. Como sonetismo, o perigo da palavrafrouxa, um acréscimo de nada a ver,um penetra, melhor que ficasse o“buraco” do que quebrar o fluxoapenas para rimar. Neste soneto,pelo contrário, a palavra justa,como uma peça de mestre-torneiro,um cone, a preencher uma sede,nem frouxo, nem apertado. A peçaexata. Justa. Se houver umatesoura, será de mero enfeite: nadaa cortar. Um frasco de cola? Não!Precisa não:

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Véspera do dia dos mortos

Eu não amei meu pai como devia.Houve o dia de amá-lo e não o amei.Ele morreu, e não nasci ainda.Amanhã levantei sem seu amor.

Nenhum conselho amigo soa seu.Uma vida padrasta me acompanha.Meu caminho não quis olhar pra trás.Tão longe de meu pai me abandonei.

Nem meu, nem de ninguém, nunca fui seu.Não me quis dar a quem eu estranhava.Só teu colo, mamãe, era aconchego.

Do pai, resta-me um calo de silêncios.Ai, arranco do peito o corpo estranho.Coração, cava o chão, busca meu pai.

222. Francisco: O que é, afinal, opoema?SF: Vou tentar, mas sei que a res-posta é impossível. O poema verda-deiro, de terceiro céu, é odesvendamento das senhas. Nãocomo quem resolve um enigma,uma charada, ou preenche comacerto uma palavra-cruzada. Diga-mos, o leitor encontra no poemaverdadeiro os signos do seu (dele,leitor) achamento. Encontra oachamento? A expressão é ruim,mas não tenho outra no lugar. En-quanto que no mau poema, encon-trará os signos de sua perdição,sempre com a mensagem, muitosutil, você é incapaz, perdeu a aula,não prestou a atenção. O verdadei-ro é de regozijo; o falso, de desespe-ro.

223. Francisco: Explicitamente?

SF: Um instante! Dei-me conta quea definição do poema aplica-se comouma luva à didática. Ou não? Achoque sim. É que apesar do desven-damento, as senhas permanecem,porque também a didática, se ver-dadeira, dá-se pelo não-explicita-mento absoluto. Há de deixar, comono poema, o espaço ao aluno... a clá-usula penúltima... que ele, aluno,descubra-a, preencha… e cresça.Veja, Ezra Pound escreveu: “deixa-vam espaços em branco,// embranco,// para as coisas que nãosabiam”. Canto 13, tradução  Ir-mãos  Campos e Décio Pignatari,Ed. Hucitec), que também há deaplicar à didática. O professor temque deixar algo em branco, das coi-sas que ele, professor, sabe, justa-mente ao aluno poder completar.Em regozijo. Há de se exigir, emArte, a não-explicitude. Sim, se o

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discípulo não conseguir, com mui-ta habilidade, insinuar-lhe sutil-mente a resposta. Em suma, aditática (arte, a Arte de ensinar) étambém um exercício de subtileza.

224. Francisco: Subtileza? Não se-ria sutileza?SF: Sim e não. Sim porque a regraatual elimina o “c”. Não porque faz-se necessário frisar o “sub”. O ar-tista (o perador da Arte) há de estarpor cima, delegação dos deuses que,evidente, estão lá em cima man-dando tudo aqui embaixo…, às nos-

sas custas. Mas há de configurar-se todo o tempo por baixo; eis a li-ção fundamental. Esta a retóricasuperior, do convencimento, anti-Sócrates que, em vez de rebaterrebaixando, tange para outro cami-nho.

225. Francisco: Sempre a caminhodo bom caminho?SF: Nada a ver, já disse. Melhor queseja em prol. E, nessa caminhada“em prol”, onde se lê o bem, às ve-zes lê o mal; onde se lê o mal, tam-bém às vezes, lê-se o bem.

Um cronômetro para piscinas

Um instante só de minhadistração, e Alídio, o comerciante,dizendo-se cliente do Coronel,contou a história do próprio pai, ummatuto muito trabalhador, valentee cheio de mulheres, lá das

brenhas dos sertane-jos, perto de Arapi-raca.

Contou que só demulheres com onome de Vera, o paimontara casa paratrês, novas e bonitas,

mas havia outras, com outrosnomes, uma infinidade de Marias,Antônias e Franciscas.

Um dia, ele desconfiou que umadaquelas Veras o traía. Fez que iade viagem e foi, mas voltou antesdo fim do caminho, a ponto dechegar no romper da barra. Buzinoue focou a luz da camionete bem emcima da casa. Só deu tempo ver,bem ligeira, a janela do oitão lat-eral se abrir como se fosse uma

lufada de vento ao contrário, e, noseu rastro, a pernada do cabra. Umcorisco teria sido mais lerdo,fugindo, seminu, para o matagal, ocabra. Dois tiros rápidos, do pai,mas não acertou nenhum.

Então, súbito, na sequência dapernada, surgiu, na janela, umrosto na direção do cabra, fugindo.E voltou-se, em rosto, bem nadireção aos tiros...

«Meu filho — assim me dissemeu pai —, era um olhar tão docee gentil, que, imediato, lancei-lhea desistência. Sim, acho que ela meviu. Era contra os faróis do carro,mas era a favor da luz do Sol, queacabara de nascer. Viu, sim! Ela meviu! A Vera, de remorsos, olhandosó para mim! O problema, meufilho, e por favor repare nos seusirmãos pequenos, é que o terceirotiro já havia sido disparado. Bem nomeio da testa — e se benzeu —, lánela».

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O comerciante prosseguiu,baseado no que lhe dissera o pai:

— Ela, ali, pelo lado de dentro dacasa, ciscando como uma galinhaquando a gente lhe puxa o pescoço.As crianças acordando e chamandopelo nome dele, pai, a Verinha e oFrancisco; e pelo dela, mãe, o nome.Já estão crescidinhos, sabem ler eescrever, mas não esquecem.Dizem que não perdoam, mas o paifaz de tudo pelos pequenos. Eutambém faço, são meus irmãos, sóde pai é certo, mas são.

— ?— Contei essa história ao

Coronel quando fui-lhe pagar unshonorários de outra questão e lhelevei de agrado um pacote decastanhas torradas. Ele abriu umuísque e tomou três cálices,sorvendo-os, na ponta da língua,sem gelo, sem nada, como quemtoma chegada de um vinho raro.

— ?— Não, nunca vi ninguém beber

daquele jeito! Não era emborcandoo copo de goela abaixo. Era assim,de leve, na ponta da língua,debicando commuito cuidado, masr a p i d a m e n t etomou três cálicese comeu meioprato de castanhastorradas namanteiga, com sal.Nunca vi ninguémbeber uísque emcálice. Ele insistiucomigo, mas eunão estava bem da gastrite.

— ?— Agora, essa história de que a

finada se virara para meu paijustamente para levar o tiro bem

no meio da testa, lá nela, e que osolhares se haviam cruzado, istoquem inventou foi ele, o senhorCoronel.

— ?— Sim, ele mesmo, o Coronel! A

história que eu havia contado erabem simples. Meu pai havia errado

os tiros no cabra,mas acertou um natesta de Vera. Masassim que termineide contar, aliás, àmedida que eu iacontando, ele botavaesses enfeites deque ela olharaprimeiro para ocabra, depois nadireção de onde

vinham os tiros. Também o lanceda aurora, das luzes se cruzando,da camionete e do Sol, ele queinventou. Confesso que fiqueimuito emocionado, sobretudo com

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isto de o senhorCoronel dizer quemeu pai a perdoara.Acho difícil, meu paié um homem brabo,do sertão.

— ?— Mas, pensando melhor, talvez

o senhor Coronel esteja certo. Meupai não pode falar no nome dela quejá começa a tossir. E, com poucofica vermelho. Sei não, talvez ele,naquela hora, fosse perdoando comuma mão e atirando com a outra...

— ?— Perdoou, sim, tanto que não

mandou matar o cabra, o que é delei, lá, dando-lhe tempo para fugirpara um seringal do Acre. Depois,meu pai disse a um parente docabra que ele podia voltar, como defato voltou, e ambos rezam, sem secumprimentar, é claro, no túmuloda finada, mas quem chega porúltimo espera que outro termine.

— ?— Depois de comer as

castanhas, aliás, comendo-as efalando, o Coronel me garantiu queo homem valente é aquele queanda desarmado. Pediu meurevólver. Eu entreguei. Ele disseque daria fim nele... acredito quetenha dado.

—?— Então, ele mandou um abraço

para o meu pai. Mandou a senho-rita estagiária comprar dois pre-sentes para as crianças, os filhosda finada, meus irmãos de pai.

—?— Sim, ele me deu um presente:

um cronômetro de piscinas que eunem sabia como funciona, mas eleensinou.

—?

— Ele me disse: «Alídio, emqualquer aflição, acuda-se destecronômetro. Marque o tempo quequiser e repare no ponteirocorrendo em direção do eterno. Quepode ser morte, que pode ser vida,que a diferença é nenhuma. Quemdirá o lado vencedor será sua mão,sua mãe... Assim, ó!» — E botou amão em pé, como quem mede aaltura de um porco, virando-a paradireita e para a esquerda, lá e cá, àfortuna. Só então me dei conta dequanto é frágil o pender da morte,da sorte.

— ?— Sim, eu ando com o meu. Na

saída passei na loja em frente aoescritório do Coronel, e comprei umcronômetro de piscinas igualzinhopara meu pai — disse ocomerciante, Alídio.

Ah, meu caroleitor e minhadistinta leitora,como se nãopudesse existirhistória maisconfusa do queesta, oc o m e r c i a n t eengasgou-se com a própria fala. Amãe do Coronel socorreu-lhe umcálice do vinho das paridas. Eleretemperou-se e chispou namesma carreira em que haviachegado.

Acho que o cabra que saltou ajanela da cama de dona Vera — queDeus a tenha! — ficara menosaflito, ainda que correndo das balasno garranchal do sertão, do queAlídio, o comerciante.

O fato inconteste, ali, na frentede todo mundo, é que a história dopai de Alídio, o comerciante, fora

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remendada pelo Coronel. O mongereclamou:

— Senhor Coronel, essecomerciante contou a vergonhosahistória de um triste assassinato.Com que direito o senhor lheenfeitou a versão, inventando esselance da troca de olhares? Perdão!?Quem já viu assassino perdoarninguém?!

Antes que oCoronel res-p o n d e s s e ,alguém falouque fora comesses ornatosque ele ganha-ra a questão dopai do comerci-ante e, eviden-te, novos paga-mentos, novas

castanhas e outros uísques adebicar no cálice.

Sim, eu concordo que a históriaseca seria algo bruto, mas, com olance do trágico, da força impossívelde atender, mais o lance do perdão

— e algum dinheiro do comerciante,é claro —, fora assim que o Coronellhe soltara o pai.

Não! Não deu para identificar dequem, mas em meio a essasdivagações, uma voz, que atédesconfio tenha sido o própriomonge, de ventríloquo. Não serásurpresa se tiver sido ele. Ou,quem sabe, tenha sido do Profeta avoz que nos pegou a todos desurpresa:

«Nisto a Arte, meu caro senhormonge Jorge! Porque só a Arte temo legítimo poder de transformar opuro em imundo; o imundo emsagrado. Onde se lia o Mal, leia-seo Bem!»

E, numa compulsão terrível,desta vez reconhecido, assim falouo senhor Capitão:

— Só a ARTE, meu caroBibliotecário Djalma! Só a ARTE!

Eu disse que sim, aliás, nadadisse, apenas meneei com acabeça, e, lá longe, o vulto docomerciante pelas costas.

ALEXANDRE FORTE: O poeta,como o soberano antigo, tem doiscorpos. Um é mortal, sujeito às con-tingências humanas; o outro, imo-ral, para além de toda decrepitudedo bem e do mal. O corpo mortal dopoeta está sujeito aos vícios e vir-tudes, passível de cometer e ser ví-tima do mal e do bem. O corpo imor-tal do poeta, porque imoral e irres-ponsável, só conhece da tragédiahumana: bem e mal imbricadoscomo dois amantes. O poeta deMein Kampf não pode ser respon-

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sabilizado pelos atos do corpo mor-tal do Führer ; nem o poeta da Ter-ra Prometida pode ser responsabi-lizado pelos saques e atentados aopovo egípcio. Somente despidos datúnica de poetas e, por conseguin-te, de profetas, podem ser respon-sabilizados. No princípio, o poeta, oprofeta e o soberano encarnavam overbo divino. Os atos do ofício divi-no são irresponsáveis, porque ema-nados de uma fonte supra-huma-na. Não por acaso, Platão excluiuos poetas da utopia republicana.

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Aceitar o poeta como estadista se-ria introduzir a tragédia na histó-ria, excluindo por completo qual-quer tentativa racional de distin-guir o bem do mal. Não que os poe-tas sejam incapazes de valorar. Nin-guém mais capacitado para dizer obem do mal e vice-versa. A verdadepura jorra da boca dos poetas. Aosdemais mortais resta apenas a re-latividade dos conceitos, os limitessensoriais do corpo. O poeta no des-frute da imoralidade é um feiticei-ro de alta grandeza. Para além eaquém da sensorialidade, o poetase faz desbravador do mundo, douniverso. O corpo mortal do poeta,no entanto, não resiste a muitoexperimentalismo. Ao primeirochoque com os limites tetra-dimensionais se espedaça. Mas, opoeta não pode ser culpado. Goethenão induziu ninguém ao suicídiocom Werther. Como poeta, está to-cado pelo sagrado. E santos os quepereceram. A perdição do poeta écolocar o corpo imoral a serviço docorpo mortal: os grandes crimes queo digam. O corpo mortal deve estara serviço do corpo imoral, imortal,reunindo no compasso cósmico –Vide Soares Feitosa – as musasregentes da epopeia humana. So-mente o poeta que coloca o corpoperecível a serviço daquel’outro temautoridade para dizer: «O bem é omal vestido de bem; e vice-versa».Afinal, o que é o sumo bem dianteda pequenez humana? A única sal-vação do poeta é a epopeia. A tragé-dia humana é a argamassa quereúne justos e injustos.Por isso: —A Arte, só a Arte!

ADRIANO ESPÍNDOLA: Comecei enão parei mais. A narrativa pega.

Mas não é linear, requer releitura;uma estória como se fosse contadapor várias pessoas, com várias ver-sões. Início de um romance? Estouna fila para comprá-lo/lê-lo. Se vc.me mandou um bode, digo-lhe quevocê é um cabra bom da peste. Suaescritura tem essa característica:pega o leitor, atiça-lhe a curiosida-de; é arte que transforma o leitor ea realidade.

ANA CABREIRA: Mas que coisa é aArte, não? O senhor vai lá, amon-toa umas palavrinhas - aquelasmesmo que, tão comportadinhas nafila do dicionário, nem dão piado - etransforma tudo num rio revolto,aluvião, remoinho, belezura... Tudotão bonito, tche! Aí está o que cha-mo de Arte: aquele estranhamentoque agudiza nossa percepção doreal. Agora quero mais...

ANA PELUSO: Tua obra é uma arte."Nisto, a arte, meu caro senhormonge Jorge! Porque só a Arte temo legítimo..." Poder da verdade en-redada em cantos que o Feitor faz enela cremos. E lá fui eu crendo naprimeira narrativa e quando viAlídio me aludia à Vera de remor-sos, olhando o Pai. Ah, ele me paga,viu Coronel Feitor? E vais tecendoa história como tear de mentiras,que é o que faz um verdadeiro/bomescritor (e vai saber se das menti-ras, algumas verdades?) e quandovemos, levamos uma bela rasteiranum "bordado madrigal". Te ler é lerpoesia em forma de conto! E teaplaudo, te beijo e me benzo, por-que não é sempre que Djalma, obibliotecário, entra em cena e secontenta com as interrogações. Ouserá, vi demais? O que fará ele com

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o que viu, ouviu, presenciou e par-ticipou (magistralmente bem agar-rado sem direito a dizer sim ou não:tascado lá feito testemunha de Saloque vem pra frente, intuo eu), só opróprio Salo sabe. Eu aguardo. Eguardo os momentos que vi a vidasendo feita. Ah, Feitor, o que mefazes!? Hoje segue um pedaço demeu coração pra ti. Isso sem con-tar que dependendo de quem contauma história, ela pode levar um tipode recado. E a memória da huma-nidade anda suja à beça. Apesardele ter dado o tiro em Vera na cara(exata) dura, eu prefiro imaginarque as luzes que se cruzaram sãoas culpadas dos dois (in)distintoscavalheiros trocarem a gentileza dese revezarem diante do túmulo daVera de muitos, casada com o Paidas três Veras e tantas, uma infi-nidade: Marias, Antônias eFranciscas.

CARLOS FELIPE MOISÉS: Gosteimuito da multiplicação de vozes norelato do Alídio, que reconta ao lei-tor a história contada pelo pai, amesma história antes recontada,pelo filho, ao Coronel, que teria in-troduzido alguns acréscimos, e poraí vai. Gostei muito do contrasteentre a rudeza dos eventos e a deli-cadeza do palavreado sutil. (Enten-di bem?) Se entendi, acho que deconfusa a história não tem nada, éaté muito simples. A técnica do re-lato é que é elaboradíssima; comotoda boa literatura, não é para lei-tor qualquer. Taí o que o texto tem(a meu ver) de melhor: induz o lei-tor a se julgar mais perspicaz do queé. Em suma: beleza pura, o prazerda escrita e o prazer da decifraçãoda escrita.

CLEBERTON SANTOS: no tom dos"bons e velhos" causos do sertão,sua narrativa é instigante/intri-gante, prendendo o leitor ao desejoda leitura e ao desvendamento doepisódio que se passa com o comer-ciante. traços de lirismo acompa-nham o fluxo da narrativa. A trans-formação de um estória popular pelavoz do narrador/clássico em arteficcional é fabulosa. as interroga-ções durante o diálogo me chama-ram bastante a atenção. acreditoque este recurso deu um efeito deimagem muito representativo paraa narrativa (chego a visualizar umadas personagens do diálogo apenascom o ar de interrogação e movi-mento a cabeça). bem, desculpepelas bobagens que acabo de dizer,pelo menos tento ser sincero quan-do escrevo sobre algum trabalho li-terário. E quando não gosto, silen-cio. estas são apenas impressõesde leitura de um jovem poeta e en-tusiasmado pesquisador da litera-tura nacional.

ELIZABETH LORENZOTTI: Que bi-chinho arretado esse seu bode.Achei um tanto difícil de entenderno início, mas depois, como sem-pre, amei. Fiz uma entrevista re-centemente com o cineasta UgoGiorgetti, que entre outras coisasboas filmou Boleiros, um filme so-bre velhos jogadores de futebol. Eleestá terminando um documentáriosobre uma usina falida no interiorde São Paulo, da família Morganti.O documentário, na verdade, é so-bre a capela, que foi pintada peloVolpi. A indústria está em ruínas,a arte na capela sobrevive. Comen-tei com ele sua máxima- só a a arte

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fica - e ele disse que você certamen-te gostaria de ver essedocumentário. Eu também acho. Euacho, como já te disse, que a artesalva, sempre.

EMERSON DAMASCENO: Réqui-em de 2002 - Espasmos. É essa aconclusão a que chego em meio àsdivagações noturnas do último diado ano. As reminiscências do pas-sado me provam de formainsofismável que somos pequenosátimos de luz na história. Perceboque um punhado de anos são so-mente dias atrás. Fatos aconteci-dos há algumas décadas parecem-me semanas apenas. Tudo tão ví-vido e próximo. Imerso nessas re-miniscências nostálgicas. Vidasque transcorrem em alguns meses.Frágil tempo, o que dizer-lhecolosso? E nessa ode ao passadomorto, tão vivo, eu pensava nessediletantismo notívago, o que dizersobre o tempo. Eis que recordo daímpar poesia de Soares Feitosa,mentor do instigante Jornal de Po-esia amigo e poeta, Um cronôme-tro para piscinas, onde percebo quea arte liberta! Talvez mais do que odesabrochar dos grilhões que nossolapam os devaneios. A arte ma-terializa o encontro que não tive,os caminhos que não percorri, estebeijo que eu não te dei. Nesse am-biente cujo ilogismo é concreto, otempo se arrasta sofregamente. Umcronômetro para nossas vidas, otempo nem sempre rege a razão noque a arte não lhe permite. A artenão cria, apenas materializa aoagregar letras, a dor lancinante dopoeta. E dor é também o prazer infi-nito, como diria Schoppenheauer.E percebo que quando o Poeta

Feitosa estava a agrupar as letrasque deram causa a Um cronôme-tro para piscinas, no alfarrábio desua escrivaninha, trazia consigoum sorriso nos lábios, murmuran-do à cumplicidade alguns arreme-dos que lhe ditava o Coronel, quebalançava-se sentado na cadeira debalanço ao seu lado. E quando lhefaltavam palavras era ajudado pe-los seus cúmplices de poesia. E vejoque o Poeta fazia do imaginário essemundo maravilhoso que só a arteliberta. Assim vivemos no SéculoCem de Ésquilo. E agora enquantodigito estes últimos suspiros de pa-lavra, o Coronel me chega e brada,açoitado com a paráfrase - eu ou-saria chamar licença poética -desautorizada, um plágio esdrúxulodum fato que nunca se deu, masantes que puxe o gatilho da Luggerque sacara da bainha dos algozesda cultura, ele sorri com os lábioscerrados e me diz: "É doutor, sómesmo a Arte, só ela..."

FAGUNDES OLIVEIRA: Exuberan-te! Há que ter visão dos valoresmetalinguísiticos. Da dimensão dasideias. Do calor vocabular. Doexpressionismo sustentador do ní-vel autorial. Na minha linguagem:Esplêndido. Bode deste porte orna-menta minha pasta de guardados-relíquia. Obrigado pela oportunida-de-presente E este bode com chei-ro de gente, trabalha em que grau?Exuberante! Há que ter visão dosvalores metalinguísiticos. Da di-mensão das ideias. Do calorvocabular. Do expressionismosustentador do nível autorial. Naminha linguagem: Esplêndido.

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ERORCI SANTANA: "Quando vensao Ceará? Tens um amigo aqui:eu." E de pronto construí no pensa-mento/ mais esse Paraíso/ praguardar como reserva/ no meu vas-to coração,/ com simplicidade erealeza:/ um bode majestoso, umsol ardido,/ ao qual chamaram in-ferno uns flagelados/e uns turistaschamaram arrebol.// Mas Paraíso,sim, que é lugar de eleição: UmSiarah com poetas Feitosas,Tufics,/ Dimas, Florianos,tuaregs,/sustos e suspiros, promis-sões e rezas, /em que a esperançaseja um verso só,/seja um fiod'água no sertão, jangadas,/engenhocas de pau pra marinar/como aquelas talhadas pelos anô-nimos/homeros de Derek Walcott,/uma palmeira debruçada na mari-nha/farfalhando sob o vento, umacantata se elevando /ao céu muitodo azul. Archiabraço amigo do ErorciSantana

FRANCISCO PERNA FILHO: É, defato, uma bela "história", a trajetó-ria de um Alídio, cheio dealumbramentos, dando-se a conhe-cer pelos remendos da memória deresgate, num magnífico ensaio so-bre o fazer ficcional. Reafirmo a suacapacidade criacional e o seu com-promisso com as letras, além deapreciar a sua inventividade artís-tica e o seu engenho linguístico.

GISELE LEITE: só a arte pode fa-zer comédia de uma tragédia, outransformar uma tragédia numacomédia. Gostei muito, parabéns...Você é o melhor contador de histó-rias que já li... principalmente pe-las entrelinhas...

HERALDO AMARAL: Sim, você meé caro pelo que a beleza da tua obrame causa - e eu teimo em imagi-nar tal beleza aparentada contigo,a quem, em verdade, não conheço!Te digo com muita objetividade - jáque não há site ou página para vocêsaber de mim: sou meio médico,meio monstro, ou seja, funcionáriopúblico - engenheiro sanitaristaconcursado pela Prefeitura deDivinópolis (MG) - e artista - escri-tor bissexto, compositor e músico.Componho canções com algumaassiduidade - esse ofício termina porme fazer também algum poeta -,estou preparando um CD e termi-nei há pouco a revisão de meu pri-meiro conto, que estou te envian-do anexo. Creio que uma obra deneófito mereça quase sempre al-gum tipo de crítica, do tipo "vá emfrente, você leva jeito" ou "desistaenquanto isso ainda está entreamigos". Fique à vontade. LouvoMachado de Assis quando afirma denada valer sobre o quê escreve umescritor, mas como escreve - esté-tica é tudo. Amo o Ceará, onde es-tive há dois anos conhecendo For-taleza e Jericoacoara (passei por tuacidade natal, colada em Fortaleza,não é mesmo?) - seria a ViaCatuana a estrada que liga uma aoutra? Lembro-me de carnaubais ecajuais sem fim ao longo desse tra-jeto. Tenho um grande amigo mú-sico que é professor da Escola deMúsica da UFC. Chama-se MárcioResende - um saxofonista/flautis-ta genial. Perdi o seu paradeiro, eando atrás do telefone da UFC paraum novo contato - tenho planos degravar em Fortaleza. Belíssima aestória do pai do comerciante! Con-tada com um estilo fascinante, ofe-

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receu-me enorme prazer. Prefiro-a, por enquanto, aos poemas - igual-mente lindos, de fôlego criativo des-comunal - precisamente por sabero quanto tenho ainda que explorá-los, ao passo que a estória já se con-sumou de pronto, singrando de umamargem a outra no lago brumoso etranquilo das minhas veleidadesmatinais desta 2ª feira modorrenta.Grato por fazê-la melhor!

LAETICIA JENSEN EBLE: Li comcarinho seu presente ("Um cronô-metro para piscinas"), extrema-mente criativo e que me deixoumuito curiosa para ler o resto deSalomão. Não tenho muita experi-ência em analisar textos, mas mesinto à vontade para tecer algunscomentários que me chamaram aatenção: 1. a presença ideológicamachista, tipicamente cultural bra-sileira, em que o pai de Alídio podiamanter relação com várias mulhe-res ao mesmo tempo e isso era ple-namente aceito, porém ao menordeslize de uma delas (Vera), estamereceu um tiro mortal. E ainda a"compreensão" alegórica e interes-seira do coronel com o fato, dá aentender que se fosse ele teria fei-to a mesma coisa, reforçando aideia machista. 2. aquele recorren-te "— ?" é genial. Abre um espaçoem que o leitor se projeta, faz elemesmo os questionamentos acer-ca dos absurdos que o comercianteconta. O leitor ali entra e se insta-la como personagem da cena, éonde ele se identifica. 3. e a cita-ção em que diz "só a Arte tem o le-gítimo poder de transformar o puroem imundo", aproxima a arte detodos nós. A arte é um fingimento,e nisso todos somos experts. Quem

nunca se viu fazendo o mesmo queo coronel? Enfeitando e ornandouma verdade, lhe acrescentandosignificado em favor próprio? A meuver essa citação do monge (?) co-roou o capítulo e deu um coloridoespecial ao seu conteúdo, foi o "fe-cho de ouro".

LUCIANO BOMFIM: Caro poeta,este bode dá bode... e como existemdeles nos sertões de Crateús eInhamus. Mas antes, surpresa mecausou, e das boas e de vera, não ado coronel, nem a vera nem a sur-presa, ao acessar e encontrar e leras mensagens do/no correio eletrô-nico, aquele SF, e me surpreendiainda mais com o pai de chiquei-ro... Após a leitura, fico a imaginar,pensar, cogitar sobre o restante, ojá existente e o vindouro, do bode,digo, do cronômetro para piscinas,e por passo à frente, no Salomão(conto? novela? romance?), aguar-do o convite para o lançamento,mas antes deste acontecimento,gostaria de outros pedaços destechurrasco de bode, não amarre obode... Algumas palavras e expres-sões, tão nossas, talvez causemestranheza aos de fora ou aos dedentro que estão fora ou que se sen-tem como tal (O que é ser cearense?é nascer, crescer e padecer poraqui? ou não nascer por aqui e pa-decer por causa, a favor daqui? Nãoapenas padecer, pois isto é muitocristão para o meu (anti)gosto... indoalém, ou aquém, por exemplo, lite-ratura, o que é literatura cearense,a que é feita por aqui e não nos diznada ou a que é feita "fora" e nos étão próxima? Não apenas pela geo-grafia ou pela vizinhança ou por sercompadre ou... A sua consegue nos

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fazer encontrar o Ceará e a sua li-teratura, "consigo mesma", é pordentro, sem contudo, mas com tudo.Contudo, não captei, ainda, depoisde algumas leituras, por exemplo:a Monalisa integrando o corpo dotexto, será ela o resumo de todasas Veras, Marias, Antônias eFranciscas e Zuleicas e Kareninase Btatvaskis e Bovarys e Lolitas e...de Salomão ou do pai de Alídio ou dopróprio, ou do coronel, por que nãodo monge?, existem tantos escân-dalos na história, e recentementeentão… Mesmo sendo sobre o ser-tão, ou como você diz 'das brenhasdos sertanejos' só me lembrei de G.Rosa, quando te referes ao'garanchal' e a palavra o trouxe amim,... creio,... que esta voz do tex-to, é a tua, própria, diria, a tua pró-pria e particular, agora socializada,e como isto me deixa feliz, pois es-tou farto de pessoas falando com 'lín-guas" que não são suas. Há um tre-cho, perto do final, quando surge afala do/de (um) narrador, que nãoesta claro para mim a sua "intro-missão" no texto. Outro, onde esta-va o monge, até a sua fala? - sobrea fala do monge, questionando o di-reito do coronel de enfeitar a ver-são contada, pergunto, para além dotexto, ao autor: a religião não su-porta a arte? Nem o conhecimen-to?, neste momento me lembro deNietzsche no nascimento da tragé-dia e na Genealogia da moral, masessa ideia de colocar um persona-gem modificando dentro do própriotexto o próprio texto é de esbagaçaras bandas, não a do bode. São duasou mais possibilidades de contaruma mesma história, é uma "ofi-cina", um ofício, um estudo,Metalinguagem ou meta linguagem

e com calma(risos)... lembrei-me deFantoches do E. Veríssimo, não pelaconteúdo ou pela forma, mas por queeu lembrei mesmo, é isso e só. Nãofiz revisão de nada. Neste caso adispersão e o sentimento trazidopelo texto com método, nestes ca-sos: Bode revisto é cabrito ou ca-bra, e não é da peste. SoaresFeitosa, parabéns pelo seu incan-sável trabalho em prol da literatu-ra e da vida, e da arte, que modificaa vida e a própria arte e a arte dosgregos..., mas "onde se lia o mal,leia-se o bem!".

LUIZ PAULO SANTANA: Li e reli ostextos. Reli o poema "Salomão". Opoema é impressionante, é umavertigem, comparado com a relati-va calma, assim mesmo relativa,da prosa de "Um cronômetro..." e "Aprova do fogo". No poema aatemporalidade se destaca comoem tempestade: a cada clarão, umtempo, ou mesmo vários tempos, oque relampeia, o que troveja, o quechove, o que corre pelo chão, tudoem fúria. Na prosa a mesmaatemporalidade. Mas os ritmos, asvelocidades, são diferentes. Ou poroutra, viajam em mais palavras. Ocaminho é mais longo. O fogo atra-vessando os tempos, desde Prome-teu, passando pelos navios negrei-ros, pela senzala — a gravura deRugendas — o Coronel aprendiz, asfrutas, que o monge cego disse nãoconhecer, e que a mãe do Coronelprometeu servir ali, naquela hori-nha, como se fosse ontem, como sefosse hoje, como se fosse sempre. Eo inusitado cronômetro, mais umsinal dos tempos. Que marca peda-cinhos do tempo, recortes. Na ca-beça do narrador ampliando, como

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uma lupa, o instante fatal, o mo-mento em que tudo pode acontecerpara o bem ou para o mal. O cronô-metro, uma vez disparado, pode serdetido? E nós sempre procurandoauxílio num deus cronômetro. Éassim mesmo. Somos pequenosmas não desistimos. É curioso nãoé, senhora Liberdade, senhor Livre-arbítrio? Não, nada disso, descon-fio. É que não podemos. Tomara quevocê consiga concluir o seu livronesse 2003. E que ele lhe seja tãobom quanto. Mando-lhe, já, já, umoutro é-mail (em resposta ao quevocê me enviou, falando do bode —que não acredita em horóscopo —em que você me pede que fale demeus escritos, de minhas leiturase de minha distinta (sic) pessoa".Farei isso já, já.

MANTOVANI COLARES: O enigmá-tico texto "um cronômetro para aspiscinas"- que já reparei ser da suaessência lançar enigmas, como nosfaz a vida - me levou a uma viagemque tem a ver com mulheres e nos-sa eterna incompreensão do uni-verso feminino. Até porque - e issonão me escapou - você usou a trin-dade como ponto de equilíbrio: trêstiros, três cálices de uísque; e apassagem mais bela do texto, os trêspersonagens/vítimas unidos nocemitério, a ponto de um aguardaro outro, exatamente para formar atríade do traidor, do traído e da fale-cida. Somente a oração por sobre otúmulo foi capaz de unir aquelatríade em cumplicidade. Pesquei láno fundo o triângulo amoroso quepermeia a trajetória dos grandesromances, valendo só para citar omaior de todos de nossa terra, o"Dom Casmurro". Belo texto, sen-

sações de estarmos também perdi-dos na compreensão da volúpia fe-minina, que não aceita as regrasdo jogo (Vera sabia ser uma dentreoutras, mas não tinha o direito depretender fazer de seu protetor uma mais dentre outros), e que nosremonta a uma das maisinstigantes cantigas de roda, ondea Terezinha de Jesus deu a mãoao terceiro - olha aí a tríade de novo- recusando a de seu pai e irmão,pois afinal o coração da mulher umdia rompe com suas raízes e seentrega ao terceiro que passará aser o primeiro.

RICARDO ALFAYA: Vi a caprina his-tória assim: "Cabra" é uma das cha-ves, jogo da imagem "cabra" com"cara". Refere-se sobretudo ao per-sonagem principal da história, o paique cometeu o crime. Quanto aoassassinato, trata-se de episódiotalvez simples, seco e direto, quefoi todo ornamentado. Três Veras.Vera é verdade. São três os tiros e,a despeito, da confusão, são pelomenos três versões (três verdades/ veras) as que sobressaem: a dopai (o cabra); a do filho (comercian-te); e a do coronel. Patativa, litera-to popular homenageado que orna-menta os acontecimentos com ouso da palavra. Aqui, sinônimo dearte. Você escritor de formação in-telectual, que ornamenta o acon-tecimento com o uso da palavra.Aqui, sinônimo de arte, também.Por outro lado, as fotos dos dois or-namentam agora a palavra. Há umjogo de ironia aqui. Monalisa é Verana janela. Porém, mais do que isso,simboliza o enigma do texto. O fa-moso "riso enigmático" deMonalisa, de quem se diz represen-

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tar o próprio riso de Da Vinci. Pare-ce-me que a modelo que pousoupara o quadro era uma pessoa co-mum da época. Ornamentada pelaarte, tornou-se grandiosa e eterna.Decifra-me ou te devoro. As inter-rogações vão descendo pela página.Interrogações, Monalisa, Cabra,sua foto, Patativa, assim como opróprio texto em si. O texto parecequerer chamar a atenção do leitorpara o fato de que ali existe umenigma. Só que, contraditoriamen-te, os recursos para revelar a exis-tência do enigma, terminam elesmesmos acrescentando enigmas aoenigma. Até mesmo a "Moral daHistória", que surge na possível falado monge (nada parece palpável nanarrativa) possui um caráter am-bíguo, de crítica e de elogio, ao mes-mo tempo. Por certo há outros enig-mas, outros detalhes. Como bem jáobservou Yêda Schmaltz, na opiniãoanterior, há uma "discussão do dis-curso dentro dele próprio". Esse éum dos pontos, ou talvez mais pre-cisamente o ponto: na dimensão emque vivemos, a verdade é formadapor múltiplos discursos que se in-tercalam, sendo fugidio, talvez im-possível, o conceito de verdade ab-soluta. Isso me faz recordar algu-ma coisa que li em Michel Foucaulta respeito. Para encerrar, diria queocorreu, enquanto escrevia essaspalavras, uma espécie de"visualização espontânea", na qualapareciam três folhas em brancosuspensas no ar como plataformas.Em cada uma delas se moviam osacontecimentos das três diferentesversões. Talvez adotar como verda-de todas as versões fosse uma so-lução para o problema. A versão,afinal, é sempre maior que o fato. E

toda versão (todo "boato" como tal-vez preferisse Uilcon Pereira) temum fundo (falso?) de verdade. Poroutro lado, se fôssemos procederassim no cotidiano, isto é, aceitan-do todos os discursos e versões comoverdadeiros, terminaríamos sufo-cados ou perdidos pela impossibili-dade de compreender com clarezaaté mesmo os mais corriqueirosfatos, tal como, até certo ponto, su-cede tanto aos personagens envol-vidos na deliberadamente confusahistória, como com todo aquele quea lê. Talvez resida na constataçãoe na proposta desse fenômeno oprincipal objetivo da narrativa. Seráque a minha versão chegou pertoda "verdade verdadeira" a que sepropõe o texto ou fui devorado pelaCabra-esfínge-da-peste?

RODRIGO GURGEL: Acabo de ler ahistória que me enviou e gosteimuito. O momento do tiro na testade Vera é perfeito. Mas o melhortiro é o olhar certeiro dela, olhar queprenuncia a própria morte, pedeperdão e, ao mesmo tempo fere parasempre aquele que a molesta. Umolhar inesquecível.

RUY ESPINHEIRA FILHO: Vocêestá se saindo, poeta, um prosadordos finos. E um prosador poético, oque é raro.

VALDIR ROCHA: Caríssimo Poeta,Contista, Contador, Contante etc.e tal, que tem nome SOARESFEITOSA, Um Cronômetro para Pis-cinas é uma beleza de título cheiode esquisitice. Gosto dele depois;antes nem gosto nem desgosto, massou atraído pela riqueza do sem-sentido. Gosto depois, quando ganha

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(?) algum sentido. Um Cronômetropara Piscinas é uma beleza de con-to, quase monologado, da históriade um corno - às veras - manso ouamansado. Sei que Você diz que UmCronômetro é capítulo de Salomão,livro em processo. Então, 'tá. Paramim é conto e capítulo. Admita. Talqual Vidas Secas, do Graciliano.Seu Salomão, queira ou não, fazparalelo com ele. Secas de um lado,úmidas vidas de outro. Para parodi-ar o personagem, diria que é o jeitode olhar. Tudo é. Nós o dizemos.Salomão, que vai sendo parido aospoucos está ficando bom que é umadesgraça.

YEDA SCHMALTZ: Excelente! Eitaestorinha confusa... rsssss... E você

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pensa que o povo sabe o que é oitãoda casa? Isto é só coisa de quem,como nós, lida com as peixeiras.Admirável o seu lidar com ametalinguagem, a discussão do dis-curso dentro dele próprio, coisa demestre. Vou guardar aqui para fu-tura publicação no boletim, posso?Obrigada pelo momento de prazerestético.

YZACIL GUIMARÃES FERREIRA:SÓ A ARTE, meu caro Feitosa! SÓA ARTE, como a sua, seu philosóficocinematógrapho de um sertão mai-or que o mundo, nos salva damesmice generalizada ao redor(ressalvadas umas quantas exce-ções, pois claro).

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226. Francisco: —?SF: O senhor tem falado num súbi-to clarão, como se fosse, da Arte.Suficiente para inutilizar de bele-za a todo o resto?SF: Sim. O Belo é algo tão poderosoque tem o dom de inutilizar toda afeiura. Quase sempre um únicoverso, se realmente de poesia ver-dadeira, é suficiente ao lampejo/iluminação. Também em Tabaca-ria.

227. Francisco: Tabacaria, o queteria o poema de Pessoa a ver comessa estranha teoria?SF: Sem querer, caí na “leitura se-creta”. Explico: O poema de há pou-co, de Saramago, é a típica leiturasecreta, a comprovar que o Evan-gelho segundo Jesus Cristo, em vezde um livro blasfemo, como todos odizem, muito pelo contrário, é umlivro devoto, pio, santo e santifica-do. Desconfio que o autor não sabiadisto. Nem Eça de Queiroz, nemMachado de Assim, nemDostoievsky, para ficar apenas nes-tes exemplos.

228. Francisco: Por favor prossiga,com Fernando Pessoa, o que teriaele de secreto?

SF: A resposta, numa entrevista atrês jovens poetas goianos, CarlosWillian Leite, Francisco Perna Fi-lho e João Aquino Batista, 2005, dojornal Opção: “[…] Para mim, o poe-ma pode ser triste, perverso, mal-dito até, mas há de trazer, prefe-rencialmente bem dissimulados oacendimento e o ascendimento.Retomemos o exemplo de há pou-co, Tabacaria, de Álvaro de Campos.Claro que é um super-poema! Todaaquela moldura de tristeza e deses-pero é tão-só para dar azo ao sorri-so do Esteves. Sem aquele lampejo,Tabacaria, para mim, não serianada. Tomemos outro exemplo: OCrime do Padre Amaro, de Eça. Ne-nhum romance foi tão anticlerical.Pois bem, demonstro em Salomãoque, pelo contrário, O Crime do Pa-dre Amaro é um livro devoto, santi-ficado, beato e carola, dois pontos.É que em meio a toda aquela pati-faria de Amaro e do padre mestre,cercada por todos os lados por umclero absolutamente ímpio e cor-rupto, surge-nos, bem apagado masluminescente, lá dentro dos matos,um santo, o abade Ferrão. Numúnico parágrafo, Eça nos descreveo bem-dentro-do-mal, o justo emestado puro, como se fosse umAbrahão circundado de Gomorras,

Esteves sorriu

FRANCISCO, PERSONAGEM DO POEMA PSI,A PENÚLTIMA, SAI DE DENTRO DO POEMA

E CONVERSA COM UM CERTO SF QUE TAM-BÉM É FRANCISCO