luís de camões com que voz com que voz chorarei meu triste … · 2017-03-17 · tenho por v....

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Luís de Camões Com que voz Com que voz chorarei meu triste fado, que em tão dura paixão me sepultou. Que mor não seja a dor que me deixou o tempo, de meu bem desenganado. Mas chorar não estima neste estado aonde suspirar nunca aproveitou. Triste quero viver, pois se mudou em tristeza a alegria do passado. Assim a vida passo descontente, ao som nesta prisão do grilhão duro que lastima ao pé que a sofre e sente. De tanto mal, a causa é amor puro, devido a quem de mim tenho ausente, por quem a vida e bens dele aventuro. Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente Erros meus, má Fortuna, Amor ardente Em minha perdição se conjuraram; Os erros e a Fortuna sobejaram, Que para mim bastava Amor somente. Tudo passei; mas tenho tão presente A grande dor das cousas que passaram, Que já as frequências suas me ensinaram A desejos deixar de ser contente. Errei todo o discurso de meus anos; Dei causa a que a Fortuna castigasse As minhas mal fundadas esperanças. De Amor não vi senão breves enganos. Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse Este meu duro Génio de vinganças! Memória de meu bem cortado em flores Memória de meu bem cortado em flores Por ordem de meus tristes e maus fados, Deixai-me descansar com meus cuidados Nesta inquietação de meus amores. Basta-me o mal presente e os temores Dos sucessos que espero infortunados, Sem que venham de novo bens passados Afrontar meu repouso com suas dores.

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Luís de Camões Com que voz Com que voz chorarei meu triste fado, que em tão dura paixão me sepultou. Que mor não seja a dor que me deixou o tempo, de meu bem desenganado. Mas chorar não estima neste estado aonde suspirar nunca aproveitou. Triste quero viver, pois se mudou em tristeza a alegria do passado. Assim a vida passo descontente, ao som nesta prisão do grilhão duro que lastima ao pé que a sofre e sente. De tanto mal, a causa é amor puro, devido a quem de mim tenho ausente, por quem a vida e bens dele aventuro. Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente Erros meus, má Fortuna, Amor ardente Em minha perdição se conjuraram; Os erros e a Fortuna sobejaram, Que para mim bastava Amor somente. Tudo passei; mas tenho tão presente A grande dor das cousas que passaram, Que já as frequências suas me ensinaram A desejos deixar de ser contente. Errei todo o discurso de meus anos; Dei causa a que a Fortuna castigasse As minhas mal fundadas esperanças. De Amor não vi senão breves enganos. Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse Este meu duro Génio de vinganças! Memória de meu bem cortado em flores Memória de meu bem cortado em flores Por ordem de meus tristes e maus fados, Deixai-me descansar com meus cuidados Nesta inquietação de meus amores. Basta-me o mal presente e os temores Dos sucessos que espero infortunados, Sem que venham de novo bens passados Afrontar meu repouso com suas dores.

Perdi numa hora quanto em termos Tão vagarosos e largos alcancei, Deixai-me pois, lembranças desta glória. Cumpre acabe a vida nestes ermos, Porque, neles com meu mal acabarei Mil vidas, não uma só, dura memória!

José Régio Painel in Poemas de Deus e do Diabo (1925) Ora uma noite de luar medonho (lembro-me disto como dum sonho) Alevantou-se um Homem a meu lado, Todo nu, e desfigurado. Mal me atrevendo a olhá-lo, eu quase só adivinhava Seu corpo devastado que sangrava... E uma lembrança, longe, longe, havia em mim De já o ter amado, ou outro assim. Seu rosto, que, decerto, era sereno e puro, Resplandecia, como um mármore, no escuro; E as suas lágrimas, rolando devagar, Deixavam rastros que faziam luar... Eu prosseguia, todo trémulo e confuso, Cheio de amor e de terror por esse intruso. À minha mão direita, ele avançava aèreamente, Com seu ar espectral e transcendente... Os seus pés nem pousavam no caminho; E então, eu desatei a soluçar baixinho, Porque notara que em seu rosto exangue As suas lágrimas corriam misturadas com seu sangue. Oh, onde a vira eu, essa figura peregrina Feita de terra humana e de ascensão divina? Sim, onde a vira eu, que, só de o perguntar, Me arrepiava, com vertigens de ajoelhar? Mas, de repente, como um sobressalto, E como a angústia de quem rola de muito alto, Alguma coisa em mim passou, que pressentia, E que se arrepelava, e que tremia... É que em meu ombro esquerdo alguém se debruçava, Alguém que ria um riso que espantava, Um riso tenebroso, e cheio de atracção, Com fogo dentro como a boca dum vulcão!

E, sem o ver, eu via-o todo inteiro, Essoutro novo e inseparável companheiro: Um que também conheço, nem sei donde nem de quando, Por mais que me torture procurando... E tinha pés de cabra, e tinha chifres, tinha pêlos, E tinha olhos sulfúricos, esfíngicos e belos... A baba do seu riso escorregava-lhe da boca, E em todo ele ardia uma lascívia louca! À minha mão direita, absorto, aéreo, hirto, Coroado de abrolhos e de mirto, O Outro continuava a chorar lágrimas caladas, Com as mãos lassas como rosas desfloradas... Entre os dois, eu sentia-me pequeno e miserando, Vibrando todo, tumultuando, soluçando, Com olhos meigos, lábios torpes - indeciso Entre um inferno e um paraíso! Um riso doido e cínico, sem regra, Subia em mim como uma onda negra, E, estrelados de lágrimas, meus olhos inocentes Ajoelhavam como penitentes... Entretanto, os dois vultos desmedidos Iam crescendo entre os meus risos e gemidos, Crescendo sempre, sempre e tanto, que, depois, Eu ficava esmagado entre eles dois. A noite em que isto foi, não sei..., sei lá?... (Seria Essa em que minha Mãe, com tanta angústia, me paria...) Sei que o luar era medonho, era amarelo, E que tudo isto me parece um pesadelo! O DOIDO E A MORTE Ópera de Câmara em Um Ato Baseada na Farsa de Raul Brandão Música e Libreto de Alexandre Delgado Libreto Personagens: Governador Civil (tenor) Senhor Milhões (barítono) Aninhas (meio-soprano) Nunes, polícia (actor) Dois enfermeiros (actores/figurantes)

Prólogo (instrumental) 1.ª Variação (No gabinete do governador civil. O governador está a compor.) GOVERNADOR CIVIL (enquanto compõe): Allegro con fuoco... con molta espressione. "Oh, que horror! Sinto o solo fugir-me debaixo dos pés!" Estou inspirado. Tudo me sorri, a manhã, o céu, a musa. Ó Nunes! NUNES (entrando): Senhor governador civil... GOVERNADOR: Se vier por aí alguém, não estou para ninguém. NUNES: Sim, senhor. GOVERNADOR: Seja quem fôr. NUNES: Sim, senhor. GOVERNADOR: Para ninguém. (Nunes sai.) Aproveitemos tão felizes disposições. "Sabes enfim o que não ouso confessar?" - Precisava aqui de um acorde de efeito. "É o momento mais grave da minha vida." Estou a comover-me muito. Até me pode fazer mal. NUNES (entrando): Está aqui... GOVERNADOR: Caramba, Nunes! Não estou p'ra ninguém! NUNES: É que está aqui... GOVERNADOR: Cale-se! Isto é demais, Nunes! Isto é demais! Vou ter de o castigar com três dias de vencimento! NUNES: Está aqui o Senhor Milhões, com uma carta do senhor ministro. GOVERNADOR: O Senhor Milhões? 2.ª Variação ...Que vida esta! Que país este! Tinha que ser logo agora. Exactamente no momento em que me remontava. Não há direito! Isto não é um país. Isto não é um país! Isto é uma selva onde os homens de génio têm que ser ao mesmo tempo governadores civis. NUNES: É que está aqui o Senhor Milhões à espera... GOVERNADOR: Isto não é um país! NUNES: ...diz que tem um assunto muito grave... GOVERNADOR: Isto não é um país! NUNES: ...e trás uma carta do senhor ministro.

GOVERNADOR: Isto é uma selva, onde alguém como eu se vê obrigado a ter funções banais! De que serve ter talento? de que serve? Que desespero. Que desespero! Ser interrompido quando estou cheio de ideias, quando a minha ópera ganhava forma, quando a minha ópera ganhava forma... Deixe lá ver isso. (olhando o cartão de visita) O Senhor Milhões. (começa a olhar para a carta) Ma... Ma... Mas isto é uma carta do ministro... do Primeiro Ministro! O senhor é um irresponsável. Mande já entrar! (Nunes sai). O Senhor Milhões? O Senhor Milhões? É o próprio ministro que me recomenda o homem mais rico de Portugal! 3.ª Variação (Nunes introduz o Senhor milhões e uma caixa que é colocada no chão com muitas precauções. O Senhor Milhões é um homem importante e severo. Enquanto o governador civil fala, dispõe a caixa e faz a ligação dum fio eléctrico para a campainha da mesa que está em frente da secretária.) GOVERNADOR: V. Ex.ª tenha a bondade de se sentar. Há muito que tenho a honra de o conhecer... (vai seguindo os movimentos do outro com curiosidade crescente) ...de vista... e de nome. SENHOR MILHÕES (confidencialmente): O senhor sabe o que está aqui dentro? GOVERNADOR (no mesmo tom de voz): O que é? SENHOR MILHÕES: A morte! GOVERNADOR: Pelo que vejo o negócio é grave? SENHOR MILHÕES: Muito grave. Vim até de automóvel, para ser discreto. Sabe, há muito tempo que o admiro. GOVERNADOR: E eu! e eu! Tenho por V. Ex.ª a maior consideração. (Ao passar entre as mesas dá um pontapé na caixa) SENHOR MILHÕES: Cuidado que podemos ir todos pelos ares. GOVERNADOR(dando um salto): Ahn? SENHOR MILHÕES: É como digo: o negócio que me traz aqui é muito grave. GOVERNADOR: Estou no exercício das minhas funções. SENHOR MILHÕES: O supremo crime, a maior tragédia de todos os tempos! Vamos estoirar dentro de vinte minutos. O que o senhor vê nesta caixa é o mais formidável explosivo SO3 HO4, cem vezes mais poderoso que dinamite ou pólvora ou fulminato de mercúrio. Basta carregar aqui para irmos todos pelos ares. O peróxido de azoto... GOVERNADOR: O quê? o quê? que peróxido? SENHOR MILHÕES: O peróxido de azoto. GOVERNADOR (mastigando): Isso é sério?

SENHOR MILHÕES: Muito sério. GOVERNADOR (esganiçado): O´ Nunes! SENHOR MILHÕES: Pode vir o Nunes, a polícia em peso da capital. Quando eu carregar no botão... GOVERNADOR: O senhor é tolo. SENHOR MILHÕES: ...arraso... GOVERNADOR: Tenha juízo... SENHOR MILHÕES: ...Lisboa e arredores. GOVERNADOR: ...Não se ponha com brincadeiras. SENHOR MILHÕES: O peróxido de azoto é a maior invenção do século. GOVERNADOR: Vamos lá com calma. Eu sou um governador civil, uma autoridade constituída, e o senhor é um homem de ordem, um homem rico, uma pessoa respeitável... O´ Nunes! SENHOR MILHÕES: Chame quem quiser, só não saia daqui. A si escolhi-o para morrer comigo. GOVERNADOR: Muito obrigado. SENHOR MILHÕES: E se dá um passo... GOVERNADOR: Então eu estou aqui, sossegado... SENHOR MILHÕES: ...para lá daquela porta ... GOVERNADOR: ...no cumprimento do dever, a escrever uma ópera... SENHOR MILHÕES: ...explodimos... GOVERNADOR: ...e o senhor entra-me aqui, e quer estoirar... SENHOR MILHÕES: ...todos: ... GOVERNADOR: ...com isto tudo?! SENHOR MILHÕES: Eu, o senhor, ... GOVERNADOR: Mas se eu... SENHOR MILHÕES: ...o prédio, ... GOVERNADOR: ...nunca lhe fiz... SENHOR MILHÕES: ...o bairro, ...

GOVERNADOR: ...mal nenhum! SENHOR MILHÕES: ...a capital! GOVERNADOR: O´ Nunes! SENHOR MILHÕES: SO3 HO4. O peróxido... GOVERNADOR: O´ Nunes! SENHOR MILHÕES: ...de azoto é... GOVERNADOR: O´ Nunes! SENHOR MILHÕES: ...a maior invenção... GOVERNADOR (berrando): O´ Nu... SENHOR MILHÕES: Acabe lá com isso!! GOVERNADOR: Então, se V. Ex.ª me dá licença, é só para pedir um copo de água. SENHOR MILHÕES: Chame quem o senhor quiser. A questão é entre mim, V. Ex.ª e o peróxido de azoto. NUNES (entrando): Senhor governador civil... GOVERNADOR: Ó... Ó Nunes, ele está doido. Aquela caixa é de dinamite. Uma caixa daquele tamanho! (O Nunes arregala os olhos) Quando eu disser, assim disfarçadamente: "O senhor não ouve tocar lá em cima?" - vocês entram todos de repente e seguram-no bem seguro. Ouviste? (Nunes sái) SENHOR MILHÕES: Sente-se, não faça figuras tristes. Eu sou imperador, sou rei, sou Deus! Posso aniquilar o universo, ou fazer... GOVERNADOR: Ai Jesus! SENHOR MILHÕES: ...uma hecatombe! GOVERNADOR: Ai Jesus! SENHOR MILHÕES (dando murros na mesa): Eu! eu! eu! GOVERNADOR (mais baixo): Mas o Senhor Milhões... ainda não se explicou. SENHOR MILHÕES: É verdade, ainda não me expliquei. Peço desculpa. 4.ª Variação SR.MILHÕES: Aqui há tempos, faz exactamente um mês, quando passeava à tarde sob as árvores do meu quintal, senti de repente que se me abriam os segundos olhos. GOVERNADOR: Os?!!

SENHOR MILHÕES: Os da alma. GOVERNADOR (sucumbido): Ai meu Deus, que estou perdido! SENHOR MILHÕES: E vi de repente o mundo não como todos o vêem, mas como ele é na realidade. GOVERNADOR: Mas ouça, ouça: o senhor não ouve tocar lá em cima? SENHOR MILHÕES: E à medida que os segundos olhos se me foram abrindo, mais funda se me radicou a vontade de destruir... GOVERNADOR: O senhor não ouve tocar lá em cima? SENHOR MILHÕES: ...tudo isto. GOVERNADOR (frenético): O senhor não ouve tocar lá em cima? SENHOR MILHÕES (num sussurro): Grite mais alto, se lhe parece. Escusava de fazer essa triste figura. (o governador civil abre a porta e não vê ninguém.) Safaram-se. Eu percebi tudo. Sente-se, não podemos perder tempo. Antes de mais preciso que me compreenda. Eu sou um amigo da humanidade. A um gesto meu desaparece a desgraça da face da terra, acabam os crimes, as misérias, as paixões. Fazendo saltar o globo, suprimo para sempre os gritos e todas as injustiças. Suprimo a morte. 5.ª Variação GOVERNADOR: Perdão, Senhor Milhões. Eu não estou preparado para morrer. Não se morre assim sem mais nem menos. Então o senhor pensa que morrer é uma coisa de nada? Morrer é um acto sério, que exige preparação, testamento, cólicas! Não é só chegar aqui e morrer. Morrer? Morrer?! Eu nem quero morrer! Então o senhor entra pela porta dentro e diz-me de repente que eu estou condenado? Tenha juízo! Além disso é um crime atentar contra a vida de uma autoridade constituída, demais a mais no exercício do cargo. Não seja parvo! SENHOR MILHÕES: Faça favor de estar quieto. Eu sou um admirador da sua música. Quando ouvi aquela sua ópera - "O Destino " - disse comigo: que talento! GOVERNADOR (desvanecido): Muito obrigado. SENHOR MILHÕES: Só ele é digno de morrer comigo. GOVERNADOR: Mau, mau, mau... Mas se eu já lhe disse que isso é um crime! SENHOR MILHÕES: Na sua partitura... GOVERNADOR: É um crime punido por lei! SENHOR MILHÕES: ...há passagens maravilhosas. GOVERNADOR: Não se pode atentar contra a vida... SENHOR MILHÕES: São... GOVERNADOR: ...duma autoridade constituída.

SENHOR MILHÕES: ...as que lá não estão. GOVERNADOR: Pelo amor de Deus! SENHOR MILHÕES: Porque é preciso... GOVERNADOR: Ganhe juízo! SENHOR MILHÕES: ...que o senhor saiba: em Arte o que lá está em regra não presta; o que nós a partir dela criamos é que é verdadeiramente superior. GOVERNADOR: Ora, ora, isso é apenas um momento de desvario e nada mais. SENHOR MILHÕES (clerical): Por isso lhe perdoei as banalidades todas que tem escrito, e passei a admirá-lo. GOVERNADOR: Ai que ele está doido varrido. SENHOR MILHÕES (semicerrando os olhos): Pulverizando-o comigo e com o globo realizo o pensamento dos mais altos filósofos. (Faz lentamente menção de tocar na campainha...) GOVERNADOR (como se fosse dizer "amen") Aaaaaai qu'ele está doido varrido!!! SENHOR MILHÕES (mas detem-se no último instante): Ser pulverizado, pertencer ao cosmos... GOVERNADOR: Perdão! perdão! Ao menos outra morte! estoirado não! SENHOR MILHÕES: ...viajar nas nuvens... GOVERNADOR: Dê-me outra morte, uma morte em que o meu cadáver (começa a ficar choroso) se possa sepultar com decência... SENHOR MILHÕES: ...que melhor quer o senhor? GOVERNADOR: ...e em que haja possibilidade... SENHOR MILHÕES: Que mais... GOVERNADOR: ...de me fazer um enterro digno... SENHOR MILHÕES: ...quer o senhor? GOVERNADOR: ...dum governador civil. 6.ª Variação ANINHAS (entrando de repente): Que se passa? O que foi? Onde está toda a gente?

GOVERNADOR: A minha mulher! O´ Aninhas, Aninhas! Ainda bem que chegaste! (Disfarçando) Estou aqui num sufoco. ANINHAS: Fui às compras, não é? e passei por aqui. Será que tens aqui contigo o livrinho de cheques? GOVERNADOR: O´Aninhas! (fala-lhe apressadamente ao ouvido). ANINHAS (enquanto vai ouvindo): Oh! Oh! O quê? GOVERNADOR: Ele, ali! ANINHAS: O quê? GOVERNADOR: Ele, ali! ANINHAS: O quê, o quê? GOVERNADOR: Aquela caixa enorme! ANINHAS: Que estás tu a dizer? GOVERNADOR: Sim, Aninhas, bem vês, estou nas mãos deste infame! ANINHAS: Mas que coisa! Porquê? Como é que pode ser? GOVERNADOR: Sei lá porquê!! Se dou um passo daqui para fora, pulveriza-me. É dinamite, é peróxido... ANINHAS: Nunca ouvi nada assim, não tem pés nem cabeça! GOVERNADOR: ...aquela caixa enorme! ANINHAS: Espera aí... GOVERNADOR: É do pior... ANINHAS: ...espera aí... GOVERNADOR: ...um horror... ANINHAS: ...espera aí... GOVERNADOR: ...arrasa prédios e bairros! ANINHAS: ...espera aí que eu já venho!(Faz menção de saír.) GOVERNADOR: Espera! Espera, espera!! ANINHAS: Ora essa! E os nossos filhos? GOVERNADOR: Salva-me! ANINHAS: Sim, e os nossos filhos? GOVERNADOR: Salva-me ou morre comigo! ANINHAS: Não sejas egoísta!

GOVERNADOR: O´Aninhas, Aninhas, mas tu sempre disseste... ANINHAS: Nunca passaste de um reles egoísta. Sim, dum reles egoísta... GOVERNADOR: ...mas tu sempre disseste que quando eu morresse... ANINHAS: ...foi o que eu sempre disse, um reles egoísta. (falam os dois ao mesmo tempo) Nem te quero ouvir, não me digas mais nada, já sei, eu já sei que tu não queres saber das crianças para nada, já sei, eu já sei! GOVERNADOR: O´Aninhas! O´Aninhas, Aninhas, mas tu... tu disseste que quando eu morresse... que quando eu morresse também tu morrias comigo, morrias logo também! ANINHAS: Disse e digo. Estou pronta a cumprir o dever. Sou duma família ciente do dever. Mas nunca te disse que morria, como as mulheres da Índia, numa pira. Queimada, não! A minha religião é católica, apostólica, romana! Saiba morrer, quem viver não soube. (para o Senhor Milhões.) Quanto falta? SR.MILHÕES: O senhor é inconsciente. Faça favor de me apresentar a sua esposa. GOVERNADOR: Minha mulher, Sr.ª D. Ana de Baltasar Moscoso - o Senhor Milhões. ANINHAS (anda de roda da caixa com precauções para lhe apertar a mão) Muito Gosto. SENHOR MILHÕES: Encantado. ANINHAS: Quanto tempo é que falta? SENHOR MILHÕES: Dez minutos, três segundos, minha senhora. ANINHAS: É o tempo ideal. Vou-me então retirar... GOVERNADOR: O´Aninhas, despede-te ao menos de mim. ANINHAS: Não há tempo a perder. Um automóvel e pronto! GOVERNADOR: O´Aninhas... ANINHAS: Um automóvel, um automóvel... um automóvel e pronto! GOVERNADOR: Olha que quero... SENHOR MILHÕES (ligeira vénia): Minha senhora, foi uma honra. GOVERNADOR: ...uma lápide monumental. ANINHAS: Quanto falta? SENHOR MILHÕES: Nove minutos e vinte e três segundos. ANINHAS: Então eu cá me vou... GOVERNADOR: Uma lápide gravada a letras de ouro, dizendo: "Aqui jaz um homem de génio que não teve tempo de se revelar".

SENHOR MILHÕES: Tanta piequice! GOVERNADOR: Homem, o senhor abusa! Nem me deixa fazer testamento! ANINHAS (decidida): Eu retiro-me. GOVERNADOR: O´Aninhas! Despede-te ao menos de mim! ANINHAS: Quanto falta? SENHOR MILHÕES: Nove minutos, três segundos. ANINHAS: Quanto tempo falta? SENHOR MILHÕES: Nove minutos bem precisos. GOVERNADOR: O´Aninhas! ANINHAS: Terei eu tempo de fugir? SENHOR MILHÕES: Oito minutos e cinquenta e seis segundos. GOVERNADOR: O´Aninhas! Aninhas! ANINHAS: É preciso... é preciso ter em conta... SENHOR MILHÕES: Já falta pouco, tenha calma. ANINHAS: ...o trânsito infernal! GOVERNADOR: ...pelo menos, faz-me um enterro bonito! SENHOR MILHÕES: Falta pouco, tenha calma. ANINHAS: Adeus, adeus... GOVERNADOR: O´Aninhas, ao menos faz-me um enterro bonito. ANINHAS: ...morrer queimada, não! GOVERNADOR: Um enterro solene. Estás a ouvir? ANINHAS: Um automó... GOVERNADOR: Estás a ouvir-me?! Quero... ANINHAS: Um automó... GOVERNADOR: ...um enterro digno! ANINHAS: Morre em paz! Jaz em paz! Descansa em paz! GOVERNADOR: Aninhas... vê lá se... ao menos dizes...

ANINHAS: Morre em paz e deixa-me em paz! GOVERNADOR: Se ao menos... ANINHAS: Morre em paz! Jaz em em paz! Deixa-me em paz! GOVERNADOR: ...se ao menos fazes ver... ANINHAS: Morre em paz! Deixa-me em paz! GOVERNADOR: ...que eu, perante a morte... não... ANINHAS: Tu morre em paz! em paz! GOVERNADOR: ...não... eu não... ANINHAS: Morre em paz! (Sai a correr) Quero um tááá... GOVERNADOR:...eu não... não fraquejei! Aninhas! Aninhas! Aninhas, Aninhas!!! ANINHAS: ...xi! Táxi!! Táxi!!! 7.ª Variação SENHOR MILHÕES: Aí tem o senhor o que são as mulheres. A sua... e as dos outros. GOVERNADOR: Não me tire as últimas ilusões. Se ao menos lhe pudesse acertar com um banco pela cabeça! SENHOR MILHÕES: Vamos, vamos! Isto a bem dizer não é a morte, é a pulverização. Não sente nada, verá. GOVERNADOR CIVIL (dirigindo-se à janela): Toda a cidade deserta... Um silêncio de túmulo. Fugiu tudo ao peróxido de azoto... Que morte a minha! Posso dizer bem alto que não há ópera no mundo que se compare esta. (Seguindo outra ideia.) E veja o senhor essa mulher, que me disse sempre que quando eu morresse morria comigo!... SENHOR MILHÕES: Essas coisa dizem-se mas nunca se fazem. Além disso, essa mulher que o senhor lamenta não é a mulher ideal que lhe convém. Ela engana-o. GOVERNADOR: Oh! SENHOR MILHÕES: Desde sempre. GOVERNADOR: Senhor! SENHOR MILHÕES: O senhor tem cara de ser enganado por todas as mulheres. GOVERNADOR: Basta!!! SENHOR MILHÕES: Livro-o dela, livro-o do dever, que é tudo o que há de mais estúpido no mundo, e o senhor ainda se queixa.

GOVERNADOR: O senhor é doido. SENHOR MILHÕES: Doido? Doido? Saiba então que um homem que não tem ao menos uma parcela de loucura, não presta para nada. Todos os homens que fizeram alguma coisa no mundo, eram doidos. O doido pode seguir à vontade o seu sonho, sem que ninguém se meta com ele. E o seu espírito, leve como uma pluma, paira acima da estupidez humana. (Aproximando o dedo da campainha) Vai agora? GOVERNADOR: Espere, senhor! SENHOR MILHÕES: Não posso esperar, temos que morrer. GOVERNADOR: Não quero! não quero! SENHOR MILHÕES: A vida é estúpida. GOVERNADOR: Não me importo, quero viver! SENHOR MILHÕES: Soou a hora. Uns minutos e… GOVERNADOR: Mas tu quem és?!!... ó supremo canalha, que assim decides eliminar-me, quando eu me agarro com desespero à vida? 8.ª Variação SENHOR MILHÕES (de pé, altivo e transfigurado): Eu sou o doido! Eu sou a morte! Estou farto! Farto! Estou farto de me vestir todos os dias, de cumprimentar todos os dias, dizer todos os dias que sim! Farto de sorrir e de fazer as mesmas coisas inúteis, que não condizem com o meu lugar no universo. Vou suprimir a vida, porque a vida mete-me medo. Quando vi o que ela tem de reles e de grotesco, de trágico e de grotesco, veio-me um vómito de tristeza. Achei grotesca a minha caridade, grotescos o meu dever, os dividendos a receber, os cupões a cortar, um cofre maior que esta sala e um guarda eminente a distribuir seis vinténs à pobreza. Olhei para mim, para dentro de mim e encarei com a vida. Com esta coisa prodigiosa que é a vida, feita para a desgraça, a dor, o sonho - e encontrei-me sórdido com as minhas décimas a pagar. Oh, um instante para deter isto, caótico e doirado, sôfrego e doirado! Oh, um instante para sofrer, lavrar a terra, ser enfim o homem! GOVERNADOR (choroso): Mas que tenho eu com isso? SENHOR MILHÕES: Tu vais morrer, e vais morrer porque com as tuas fórmulas, a tua papelada e o teu burlesco, és também abjecto e inútil. O cavador existe! O soldado existe! O herói existe! Tu não existes! GOVERNADOR: Eu não existo?! SENHOR MILHÕES: És uma sombra e bff.... (sopra-lhe e o outro estremece) faço-te desaparecer como uma sombra. Estas duas coisas não podem mais coabitar - esta estupidez e este sonho dorido e imenso, o grotesco de todos os dias, quando lá fora galopa e passa uma coisa sôfrega e imensa. Não, não posso com tal esplendor, tal abjecção - e vamos morrer! Vamos enfim morrer! Epílogo

GOVERNADOR CIVIL: Morrer? Mo... Mas eu não estou doente! SENHOR MILHÕES: Chegou a hora. GOVERNADOR: Então eu hei-de ser governador civil e morrer? Hei-de ter talento e... morrer?! SENHOR MILHÕES: Lamento muito GOVERNADOR: O senhor é cruel. Não me dispute os ultimos momentos. SENHOR MILHÕES: O que eu sou é seu amigo. Tenho estado aqui a prepará-lo para a grande hora da libertação. GOVERNADOR: Espere! Dê-me ao menos um confessor. SENHOR MILHÕES: O senhor nunca foi católico. GOVERNADOR: É que nunca me vi nestes assados. SENHOR MILHÕES: Tem de seu, dez segundos. GOVERNADOR: Oh, sinto a mente a transbordar de génio! Quantas obras imortais perdidas, por causa deste malandro! SENHOR MILHÕES: Seis segundos. GOVERNADOR: Ouça-me ao menos de confissão! SENHOR MILHÕES: Cinco. GOVERNADOR: Confesso que menti... que menti sempre que pude! SENHOR MILHÕES: Quatro. GOVERNADOR: Que a minha vida... foi uma mentira pegada! SENHOR MILHÕES: Três. GOVERNADOR: Espere! Dói-me a barriga... Preciso de ir lá fora... SENHOR MILHÕES (implacável): Faça no outro mundo. GOVERNADOR: Oh, morrer! nas mão de um doido! e estoirado ainda por cima! SENHOR MILHÕES: É agora! (carrega na campainha.) GOVERNADOR: Pai Nosso que estais no céu santificado seja o Vosso nome seja feita a Vossa vontade assim na terra como no céu... (Entram dois enfermeiros) GOVERNADOR (esgazeado, apontando a caixa): O peróxido!! O peróxido!!! (Um dos enfermeiros destapa a caixa e tira para fora... algodão).

UM ENFERMEIRO: É algodão. (Os dois enfermeiros agarram o Senhor Milhões que os afasta com dignidade) SENHOR MILHÕES: Tragam a caixa. (Sai com os enfermeiros, depois de pôr e tirar o chapéu lustroso e de cumprimentar cerimoniosamente) GOVERNADOR CIVIL (com um fio de voz): Ai o grande filho da puta!