lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. na verdade, nas...

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lugares e danças fev / 2013 Kanzelumuka é bailarina, pesquisadora e professo- ra de dança. Bacharel em Dança, pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), e membro / co- fundadora d’A Nave Gris Cia. Cênica, pesquisa re- presentações performáticas de origem banto no Bra- sil. Seu pensamento parte do pressuposto de que a dança acontece a partir da história corporal de cada indivíduo, dos elementos que ela compreende e do seu diálogo com outras linguagens, refletindo a pluralidade e diversidade existentes no mundo. Integrou o elenco do espetáculo de tanztheater Es-boço (2004-2007), coreografado e dirigido por Sayonara Pereira. Desen- volveu a pesquisa “Em águas abundantes: um estudo sobre as diferentes escrituras do corpo cênico a partir das matrizes corporais das danças de Kayaia (Ieman- já)” (2006-2007), sob orientação de Inaicyra Falcão dos Santos. Em 2008, foi convidada por Rui Moreira para fazer parte do elenco da SeráQ. Cia de Dança (MG), onde atuou nos espetáculos Es quiz e Q’eu Isse. De- pois de uma passagem pela Cia. Teatro Dança Ivaldo Bertazzo, estreou e circulou pelo Brasil com o espetácu- lo de dança-poesia Poemacumba, uma parceria com o poeta mineiro Leo Gonçalves. Atualmente, também é educadora de dança na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís – programa do governo estadual em São Paulo (SP). A Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura, instituição da Secretaria de Esta- do da Cultura, é um local de celebração da poesia, da literatura e da arte em geral. Localiza-se no coração de São Paulo, num casarão na Avenida Paulista, e serve de cenário para a efervescência da vida cultural, sen- do um espaço de acolhimento e produção em artes. Lugares e Danças busca apresentar profissionais de dança contemporânea e das artes do corpo através de uma série de entrevistas realizadas em diferentes centros de criação, ensino e pesquisa ao longo de 2013. As conversas abordam a trajetória de cada artista a partir da relação entre lugar, ação e suas implicações políticas, estéticas e de mercado. A segunda conversa da série aconteceu na Casa das Rosas (SP), com a bailarina e coreógrafa Kanzelumuka. Nela, a artista fala de sua bus- ca por uma dança cada vez mais conectada com sua ancestralidade negra. foto: André Bern foto: Dirceu Rodrigues / fonte: poiesis.org.br #2

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Page 1: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

lugares e danccedilasfev 2013

Kanzelumuka eacute bailarina pesquisadora e professo-ra de danccedila Bacharel em Danccedila pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e membro co-fundadora drsquoA Nave Gris Cia Cecircnica pesquisa re-presentaccedilotildees performaacuteticas de origem banto no Bra-sil Seu pensamento parte do pressuposto de que a danccedila acontece a partir da histoacuteria corporal de cada indiviacuteduo dos elementos que ela compreende e do seu diaacutelogo com outras linguagens refletindo a pluralidade e diversidade existentes no mundo Integrou o elenco do espetaacuteculo de tanztheater Es-boccedilo (2004-2007) coreografado e dirigido por Sayonara Pereira Desen-volveu a pesquisa ldquoEm aacuteguas abundantes um estudo sobre as diferentes escrituras do corpo cecircnico a partir das matrizes corporais das danccedilas de Kayaia (Ieman-jaacute)rdquo (2006-2007) sob orientaccedilatildeo de Inaicyra Falcatildeo dos Santos Em 2008 foi convidada por Rui Moreira para fazer parte do elenco da SeraacuteQ Cia de Danccedila (MG) onde atuou nos espetaacuteculos Es quiz e Qrsquoeu Isse De-pois de uma passagem pela Cia Teatro Danccedila Ivaldo Bertazzo estreou e circulou pelo Brasil com o espetaacutecu-lo de danccedila-poesia Poemacumba uma parceria com o poeta mineiro Leo Gonccedilalves Atualmente tambeacutem eacute educadora de danccedila na Faacutebrica de Cultura do Jardim Satildeo Luiacutes ndash programa do governo estadual em Satildeo Paulo (SP)

A Casa das Rosas - Espaccedilo Haroldo de Campos de Poesia e Literatura instituiccedilatildeo da Secretaria de Esta-do da Cultura eacute um local de celebraccedilatildeo da poesia da literatura e da arte em geral Localiza-se no coraccedilatildeo de Satildeo Paulo num casaratildeo na Avenida Paulista e serve de cenaacuterio para a efervescecircncia da vida cultural sen-do um espaccedilo de acolhimento e produccedilatildeo em artes

Lugares e Danccedilas busca apresentar profissionais de danccedila contemporacircnea e das artes do corpo atraveacutes de uma seacuterie de entrevistas realizadas em diferentes centros de criaccedilatildeo ensino e pesquisa ao longo de 2013 As conversas abordam a trajetoacuteria de cada artista a partir da relaccedilatildeo entre lugar accedilatildeo e suas implicaccedilotildees poliacuteticas esteacuteticas e de mercadoA segunda conversa da seacuterie aconteceu na Casa das Rosas (SP) com a bailarina e coreoacutegrafa Kanzelumuka Nela a artista fala de sua bus-ca por uma danccedila cada vez mais conectada com sua ancestralidade negra

foto Andreacute Bern

foto Dirceu Rodrigues fonte poiesisorgbr

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Andreacute Bern Qual eacute o lugar da sua danccedilaKanzelumuka Qual o lugar da minha danccedila Eu acho que sei laacute [risos] Acho que sem-pre procurei o lugar da minha danccedila sempre foi uma inquietaccedilatildeo O que me fez e o que me faz pesquisar o que eu pesquiso a danccedila que eu desejo na qual eu acredito tem a ver com esse lugar de busca A cada dia que passa ao mesmo tempo que tenho minhas convicccedilotildees acredito em determinados princiacutepios numa determinada eacutetica eu consigo ateacute ser muito flexiacutevel sobre o que vem a ser danccedila poeacutetica em danccedila Na verdade nas uacuteltimas semanas cheguei agrave conclusatildeo de que o lugar da minha danccedila eacute um lugar de fissura uma encruzilhada Vou caminhando caminhando caminhando e quando vejo estou de novo nessa encruzilhada de ter que definir coisas decidir pra onde ir o que apontar E ao mesmo tempo sem neces-sariamente querer ter que definir determinadas coisas Eu sou o que sou minha danccedila eacute o que sou e eacute isso Acho que essa encruzilhada eacute o lugar desse encontro Ela se faz muito a partir dos encontros que eu tenho do que eu esco- lho pra carregar ou daquilo que natildeo escolho e acaba ficando em mim inconscientemente sem eu ter noccedilatildeo de que eu estou tatildeo impregna-da de algo de uma influecircncia uma referecircncia um som um lugar Acho que carrego muitos lugares pelos quais passei com os quais con-vivi em mim E conforme o tempo vai passan-do esses lugares ficam mais latentes mais do que eu poderia imaginar Eacute muito esquisito [risos] Passar por Belo Horizonte por exemplo que de alguma maneira foi o meu pontapeacute ini-cial profissionalmente no que vem a ser danccedila contemporacircnea em grupo em companhia as pessoas aqui acham que sou mineira Eu acho isso muito gozado porque eu natildeo sou mineira Fiquei laacute dois anos praticamente e acho que natildeo adquiri um jeito mineiro de ser Mas talvez eu seja uma pessoa que se afina com aquele tempo de alguma maneira com aquele falar Ou consegui absorver sem perceber alguns trejeitos Talvez minha mineirice pelo fato bi-oloacutegico de 50 de mim ser do sul de Minas tenha se aflorado Meu pai eacute mineiro mas natildeo consigo reconhecer essa mineirice em mim Natildeo como as pessoas paulistanas ou paulistas

foto Samuel Mendes

que me conheceram depois de eu vir de Belo Horizonte dizem As pessoas tecircm essa ne-cessidade neacute Acham que porque vocecirc ficou muito tempo num lugar trabalhou muito tempo com uma pessoa vocecirc eacute parte daquele lugar daquela pessoa Eacute difiacutecil elas comeccedilarem a desassociar isso Mas ao mesmo tempo eu vejo que tem um saudosismo em mim Foi um periacuteodo artisticamente muito importante porque pocircde me trazer outras e mais referecircn-cias Me desequilibrou no bom sentido me fa-zendo perceber outros aspectos da danccedila da arte da cultura brasileira Enfim coisas que eu natildeo fazia ideia que poderia encontrar por laacute Ir danccedilar com um determinado grupo compa-nhia pressupotildee que vocecirc vai ter que se rela-cionar com o lugar neacute E isso vai te transfor-mar de alguma maneira Mesmo sendo muito resistente ndash eu queria me manter paulista sou do interior de Satildeo Paulo ndash esse conflito foi fa-zendo com que eu tambeacutem fosse impregnada de outras relaccedilotildees bairristas mineiras no bom sentido As pessoas foram me apresentan-do a cidade Eu fui me embrenhando porque eu gosto dessa coisa de descobrir a cidade andar de ocircnibus ficar na muvuca mesmo natildeo gostando de ndash eu sei que eacute meio clichecirc ndash estar onde o povo estaacute [risos] Eu sou uma pessoa do povo vou ao mercado pego ocircni-bus horaacuterio de pico do metrocirc compro onde as pessoas compram Entatildeo eu acabei me vendo naquelas situaccedilotildees os bairros de pe-riferia algumas vezes comendo nas casas das pessoas Querendo ou natildeo eu fui me aminei-rando tentando ser fagocitada pela cidade

ldquoO lugar da minha danccedila eacute um lugar de fissura ()rdquo

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AB A sua danccedila tambeacutem se amineirouK Talvez ela tenha se amineirado porque co-mecei a repensar alguns conceitos mais tradi-cionais de criaccedilatildeo em danccedila Descobri que meu modo de criar vem muito da improvisaccedilatildeo As coisas vecircm e vatildeo e eu preciso fechar E a ma-neira disso acontecer eacute pensando mais qua-dradinho a danccedila no sentido da coreografia em si Eu acho belo muitas vezes um momento tipicamente coreograacutefico Entatildeo como isso eu vejo muito laacute que as pessoas fazem uma danccedila ldquodanccedilardquo ndash a que todo mundo pensa quando o assunto eacute danccedila ndash nesse aspecto talvez minha danccedila tenha se amineirado Eu natildeo fico soacute no conceito na ideia Preciso materializar essa ideia entatildeo eu parto da composiccedilatildeo coreograacutefi-ca poreacutem de uma maneira teatralizada de for-ma que eu precise de um mapa de accedilatildeo um subtexto Tambeacutem natildeo sei se isso eacute amineirar a danccedila Talvez Belo Horizonte tenha me trazi-do algo que eu tenha esquecido ou achado que natildeo fosse importante Mas aiacute chegava num pon-to em que eu via que eu precisava retornar pro lugar de onde eu saiacute pro estado de Satildeo Pau-lo Eacute outra maneira de pensar a danccedila de pro-duzir danccedila o movimento em torno da danccedila Mesmo que seja difiacutecil o capital de giro acon-tece de outra maneira os incentivos fiscais tecircm um outro jogo Mesmo a gente sabendo que tem coisas que existem em todos os lugares que se vocecirc tem um colega uma determinada

rede de contatos ainda assim alguns cami-nhos satildeo mais fluidos Eu queria isso Que-ria ter esse movimento Quando o fluxo da danccedila laacute [em Belo Horizonte] estava baixo eu natildeo queria parar de danccedilar de trabalhar com danccedila Em Satildeo Paulo de alguma manei-ra isso eacute viaacutevel Consigo fazer aula oficinas gratuitas com profissionais bacanas Consi-go circular pelo meio cultural gratuitamente com mais facilidade Em Belo Horizonte eu natildeo conseguia Pelo menos natildeo enquanto eu estava laacute cinco anos atraacutes Mas em com-pensaccedilatildeo laacute eu comecei a me relacionar com outros artistas para aleacutem da danccedila muacutesicos atores escritores performers Isso foi mui-to bacana Era quando o conflito vinha que tipo de bailarina sou eu Qual eacute a danccedila que eu faccedilo O que eu quero dizer com a minha danccedila Eacute possiacutevel ser universal mesmo saben-do que eu tenho como base fundamento as danccedilas de peacute de terreiro as danccedilas dos Minkise Mesmo sabendo que a minha for-maccedilatildeo primeira eacute outra ateacute tradicionalzinha

AB Que formaccedilatildeo tradicionalzinhaK Como a maioria das meninas eu fui pra uma escolinha de danccedila no interior fazer baleacute Fiz jazz mas sabia que natildeo era daque-la maneira que eu sentia prazer O precon-ceito eacute muito forte Com quinze anos fui obrigada a ouvir de uma professora que

foto Richard Melo

ldquo() o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedilardquo

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o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedila As pessoas acham que a gente esquece isso neacute Eu fiquei fula da vida porque me contaram ou-tras mentiras me enganaram Acharam que eu natildeo era inteligente o suficiente pra entender as coisas Eu decidi que ia parar de danccedilar Escon-di tudo o que era meu de danccedila Fiquei um ano sem querer ver filme de danccedila documentaacuterio de danccedila Nada de danccedila Ateacute que outros co-legas criaram um grupo e me chamaram pra substituir uma menina Era um grupo que natildeo sabia se era contemporacircneo moderno mas onde todo mundo criava danccedila junto Natildeo tinha algueacutem que criava pra gente Foi a primeira vez que eu ouvi falar de danccedila contemporacircnea Isso foi 2000 meio de 2000 A gente ensaiava saacuteba-dos e domingos e fez um espetaacuteculo chamado

H2O a foacutermula da vida Pra mim hoje isso eacute muito simboacutelico porque a aacutegua sempre eacute o meu divisor [risos] de possibilidades caminhos Esse espetaacuteculo me fez ver que era aquilo que eu queria pra mim Eu soacute tinha que ter coragem pra enfrentar todos os natildeos todos os empeci-lhos pra decidir fazer uma faculdade de danccedila Se eu continuasse onde estava natildeo ia a lugar algum Ia ficar sendo subjugada agravequilo que eles achavam que era danccedila E que pra mim natildeo era eu queria treinar capoeira conhecer danccedila de rua adoro batuque Mas ali numa cidade do Vale do Paraiacuteba que eacute Pindamonhangaba vocecirc enquanto negro negra tem que se colo-car no seu lugar Pra vocecirc ser aceito tem que fazer o que todo mundo faz ter seu carro sua casa proacutepria seu dinheiro Estar bem na vida eacute isso natildeo importa se vocecirc chora toda noite O que importa eacute que vocecirc eacute como todo mundo ldquoPra que vocecirc vai morar longe Pra quecircrdquo Foi quando eu saiacute da minha cidade Decidi enfren-tar e rompi Rompi mesmo Antes eu ficava em crise tinha vergonha de assumir isso que era um rompimento Eu natildeo voltei mais natildeo sen-ti vontade de voltar pra um lugar onde eu me achava sempre esquisita estranha no ninho

AB E a universidadeK Na universidade ao mesmo tempo que eu encontrei pessoas muitas para aleacutem da danccedila que pensavam de maneira parecida que ti-nham histoacuterias de vida muito semelhantes

ldquoEu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch ()rdquo

agrave minha foi tambeacutem um longo caminho no curso de danccedila pra encontrar a minha danccedila Quando vocecirc chega agrave universidade parece que vocecirc jaacute tem que saber o que vocecirc quer Vocecirc tem que conhecer de tudo Eu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch de Quasar Cia de Danccedila Primeiro Ato nunca tinha ou-vido falar Aiacute vocecirc chega laacute toda assim [encolhe os ombros] e perguntam ldquoPor que vocecirc veio prestar danccedilardquo Porque eu gosto de danccedilar [risos] Foram essas as cobranccedilas porque na cabeccedila de algumas pessoas eu nunca tive nenhum grande professor de referecircncia na minha formaccedilatildeo Eu escolhi a UNICAMP intuiti-vamente natildeo foi pelo corpo docente Era perto da minha cidade natal e no Rio na eacutepoca es-tava tendo uma onda de violecircncia no noticiaacuterio

foto Marcos Buiati

Minha matildee falou que eu natildeo ia morar no Rio de Janeiro Meu sonho era ir pra Bahia mas ia ca-lhar a data do vestibular entatildeo fui pra UNICAMP mesmo Foi uma escolha intuitiva porque eu achei que laacute eu ia comeccedilar a encontrar o que eu queria com danccedila E realmente encontrei natildeo posso negar Devo muito agrave minha for-maccedilatildeo na UNICAMP na faculdade de danccedila

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ter vivido na moradia comido no bandejatildeo tido amigo na Geografia na Educaccedilatildeo na Histoacuteria na Antropologia nos momentos de crise ter encontrado pessoas de outras aacutereas que viviam a mesma coisa A gente conseguia conversar confluir e se ajudar a entender esses processos E eu sempre nessa coisa qual eacute a minha turma qual eacute a minha danccedila o que eu quero dizer E sempre sendo cobrada Laacute se cobrava muito isso Eu era sempre a que natildeo ia pro padratildeo Eu natildeo tinha o perfil do padratildeo e aiacute comeccedilam a vir os estereoacutetipos que tambeacutem existem na danccedila contemporacircnea na danccedila moderna Fico me perguntando se realmente tudo eacute pra todo mundo O que cabe o que natildeo cabe Eacute ruim natildeo caber em nada Por eu ser quem eu sou as pessoas queriam me enquadrar nas danccedilas brasileiras ldquoEacute sua carardquo Por que Porque eu sou preta [risos] No comeccedilo eu natildeo entendia e meu corpo natildeo respondia assim Mas depois comecei a natildeo ligar pro que as pessoas falavam e queriam de mim Peraiacute eu tenho que negar a minha histoacuteria que fiz baleacute jazz que eu tenho um coacutedigo impregnado em mim Natildeo daacute pra negar o que a gente eacute o que forma a gente neacute Depois de trecircs anos no auge da crise de-cidi trancar a disciplina de teacutecnica pra natildeo me formar em quatro anos Nesse meio tempo fiz mil disciplinas no teatro achando que ia pres-tar Artes Cecircnicas No teatro eu conseguia ser quem eu era sem julgamentos Querendo ou natildeo o mundo da danccedila eacute muito tradicionalis-ta Eacute difiacutecil achar pessoas que formam e tecircm a cabeccedila mais aberta Adoro as pessoas que nos formaram mas existe uma dificuldade de aceitar aquilo que estaacute fora do padratildeo fora das regras jaacute postas Depois de trecircs anos eu decidi realmente arriscar e natildeo seguir a minha turma Eu natildeo sou uma turma Lembro daquilo que escutei a Morena [Paiva] falar neacute Realmente pra existir coletivo tem que ter indiviacuteduo O in-diviacuteduo tambeacutem natildeo existe sem o coletivo Soacute que eu natildeo podia me anular pra seguir aque-la turma que natildeo vivia o que eu vivia que natildeo saiu de onde eu saiacute Fui fazer a minha histoacuteria Foi quando eu comecei a ficar mais calma mais feliz a descobrir de fato o que eu que-ria pesquisar que eram as danccedilas de terreiro Cheguei a essa conclusatildeo Danccedilas brasileiras

tambeacutem mas eacute muito amplo falar que eu en-tendo de cavalo marinho boi-bumbaacute tambor de mina jongo tambor de crioula carimboacute catira eacute muito muito amplo Nessa inves-tigaccedilatildeo sobre danccedila de terreiro vendo que tambeacutem era importante estudar as questotildees teacutecnicas de corpo que estatildeo para aleacutem da esteacutetica comecei a chegar a essas danccedilas ligadas ao Candombleacute Foi quando escrevi a minha pesquisa de iniciaccedilatildeo cientiacutefica Den-tro da disciplina de Danccedilas do Brasil eu jaacute fui afunilando a minha pesquisa pra isso Treinei muito capoeira especialmente capoeira ango-la Como diz um mestre aqui em Satildeo Paulo comem no mesmo prato o samba a capoeira e o Candombleacute Entatildeo fui pras danccedilas de ter-reiro e pras danccedilas ligadas ao Candombleacute de Angola Tecircm caracteriacutesticas muito distintas o Candombleacute Jeje e o Ketu E aiacute fui de novo pras aacuteguas pras danccedilas que eu queria comeccedilar a pesquisar a entender As aacuteguas do mar as danccedilas de Kayaia de Kaitumba O proje-to nem tinha sido aprovado ainda mas fui pra Salvador tentar conhecer os terreiros de Can-dombleacute ver a festa de 2 de fevereiro o mar Me encantei pela cidade me perdi literalmente pelas ruas de Salvador Fui parar em Cajazei-ras que eacute um bairro longe pra caramba [risos] E aiacute tambeacutem comecei a usar um pouco des-sa cara de preta da qual Salvador estaacute cheia pra passar despercebida pelos lugares Isso foi muito bom em Salvador porque enquanto eu natildeo abria a boca pra ldquofechar a portardquo [reforccedila o ldquorrdquo tiacutepico do sotaque do interior de Satildeo Pau-lo] as pessoas achavam que eu era baiana

foto Guto Muniz

ldquoEacute ruim natildeo caber em nadardquo

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Me possibilitou transitar pela cidade como eu nunca tinha feito em lugar nenhum Pra mim foi encantador uma experiecircncia 21 dias que eacute um nuacutemero muito simboacutelico pra quem vem da cultura de Candombleacute de onde eu voltei pra Campinas num outro tempo falando de outra maneira e toda extasiada com a coisa do mar do sol do cheiro de dendecirc de Salvador com a acolhida que eu tive de pessoas maravilho-sas do Opoacute Afonjaacute [casa tradicional de Can-dombleacute] do terreiro da minha avoacute-de-santo Foi quando se estreitou meu laccedilo com a cidade Eu pude realmente observar as danccedilas ligadas agrave pesquisa que eu queria Quando eu retorno fixo minha pesquisa num terreiro de Candombleacute Angola em Hortolacircndia o Inzo Musambu Hon-golo Menha a Casa do Arco-Iacuteris e comeccedilo a aprofundar essa minha pesquisa em torno das aacuteguas que aacuteguas satildeo essas o que eacute a aacutegua do mar o que satildeo as sereias de Angola Tem uma imersatildeo em Antropologia que foi super impor-tante mas eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila um registro mais de movimento mesmo Depois de um ano eu entrego esse trabalho de iniciaccedilatildeo [cientiacutefica] com algumas reflexotildees em cima da praacutetica da criaccedilatildeo de um trabalho que se chamou Epifanias e Alfazemas Infeliz-mente durou enquanto eu estava na faculdade no uacuteltimo ano Concomitantemente eu fiz parte de um coletivo de seis mulheres onde a gente tratou basicamente do que vem a ser mitologia pessoal num trabalho que se chama rios inter-mitentes Eu sempre briguei pelo caminho do meio Natildeo importa se eu estou pesquisando as danccedilas de Candombleacute ou a danccedila do [George] Balanchine eacute possiacutevel fazer esse diaacutelogo Uma natildeo eacute menos ou melhor do que a outra am-bas tecircm poeacutetica Claro cada uma com suas caracteriacutesticas Quando eu vou pesquisar uma danccedila de terreiro natildeo tem como eu soacute pesqui-sar a danccedila e esquecer todo o contexto que tem ali esteacutetico de simbologia E vice-versa As minhas orientadoras tanto da iniciaccedilatildeo como do trabalho de graduaccedilatildeo foram muito ge-nerosas e me permitiram fazer esse tracircnsito de informaccedilotildees esse diaacutelogo Fiquei muito fe-liz Depois disso quando eu comeccedilo a minha vida profissional mesmo eu opto por sair

de Satildeo Paulo Todo mundo vem pra caacute [suspi-ra eufoacuterica] porque eacute onde borbulha eacute onde a produccedilatildeo acontece Mas se vocecirc chega aqui e natildeo se identifica com essas produccedilotildees A Pina Bausch a Susanne Linke satildeo lindas mas eu posso natildeo me identificar com o que elas fazem natildeo querer fazer aquilo ou algo seme-lhante Entatildeo fui pra Belo Horizonte que jaacute tinha ouvido falar que eacute outro celeiro da danccedila E realmente eacute tem muitos grupos uma pro-duccedilatildeo que eacute distinta que eacute tatildeo bela quanto e completamente diferente de Satildeo Paulo uma outra dinacircmica Danccedilar num grupo que tinha uma proposta esteacutetica muito semelhante ao que eu vinha fazendo foi muito legal E pa-ralelamente a isso tambeacutem amadurecer en-trar num processo de trabalho de docecircncia de ensino de danccedila tambeacutem dei meu pon-tapeacute inicial nesse sentido em Belo Horizon-te Mais do que precisar ndash a maior parte de noacutes artistas vai dar aula porque precisa ndash eu gostava daquilo Eacute um exerciacutecio de pesquisa e de criaccedilatildeo artiacutestica tambeacutem Eacute muito louco mas quando eu dou aula consigo solucio-nar algumas coisas que satildeo difiacuteceis pra mim Querendo ou natildeo o que eu levo pra sala de aula eacute aquilo que eu vivo enquanto artista

foto Adriana Lopes

ldquo() eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila ()rdquo

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

ldquoProcuro natildeo ter preconceito com as coisas com as danccedilasrdquo

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

Agradecimentos

Casa das RosasJackson Oliveira

Dirceu Rodriguespoiesisorgbr

Samuel MendesRichard MeloMarcos Buiati

Guto MunizAdriana LopesCarlos Bozelli

Murilo de Paula

A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista 37 - Bela Vista (Satildeo Paulo - SP)httpwwwcasadasrosas-sporgbr

lugares e danccedilas um projeto de Andreacute Bern para ctrl+alt+danccedila

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Page 2: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

Andreacute Bern Qual eacute o lugar da sua danccedilaKanzelumuka Qual o lugar da minha danccedila Eu acho que sei laacute [risos] Acho que sem-pre procurei o lugar da minha danccedila sempre foi uma inquietaccedilatildeo O que me fez e o que me faz pesquisar o que eu pesquiso a danccedila que eu desejo na qual eu acredito tem a ver com esse lugar de busca A cada dia que passa ao mesmo tempo que tenho minhas convicccedilotildees acredito em determinados princiacutepios numa determinada eacutetica eu consigo ateacute ser muito flexiacutevel sobre o que vem a ser danccedila poeacutetica em danccedila Na verdade nas uacuteltimas semanas cheguei agrave conclusatildeo de que o lugar da minha danccedila eacute um lugar de fissura uma encruzilhada Vou caminhando caminhando caminhando e quando vejo estou de novo nessa encruzilhada de ter que definir coisas decidir pra onde ir o que apontar E ao mesmo tempo sem neces-sariamente querer ter que definir determinadas coisas Eu sou o que sou minha danccedila eacute o que sou e eacute isso Acho que essa encruzilhada eacute o lugar desse encontro Ela se faz muito a partir dos encontros que eu tenho do que eu esco- lho pra carregar ou daquilo que natildeo escolho e acaba ficando em mim inconscientemente sem eu ter noccedilatildeo de que eu estou tatildeo impregna-da de algo de uma influecircncia uma referecircncia um som um lugar Acho que carrego muitos lugares pelos quais passei com os quais con-vivi em mim E conforme o tempo vai passan-do esses lugares ficam mais latentes mais do que eu poderia imaginar Eacute muito esquisito [risos] Passar por Belo Horizonte por exemplo que de alguma maneira foi o meu pontapeacute ini-cial profissionalmente no que vem a ser danccedila contemporacircnea em grupo em companhia as pessoas aqui acham que sou mineira Eu acho isso muito gozado porque eu natildeo sou mineira Fiquei laacute dois anos praticamente e acho que natildeo adquiri um jeito mineiro de ser Mas talvez eu seja uma pessoa que se afina com aquele tempo de alguma maneira com aquele falar Ou consegui absorver sem perceber alguns trejeitos Talvez minha mineirice pelo fato bi-oloacutegico de 50 de mim ser do sul de Minas tenha se aflorado Meu pai eacute mineiro mas natildeo consigo reconhecer essa mineirice em mim Natildeo como as pessoas paulistanas ou paulistas

foto Samuel Mendes

que me conheceram depois de eu vir de Belo Horizonte dizem As pessoas tecircm essa ne-cessidade neacute Acham que porque vocecirc ficou muito tempo num lugar trabalhou muito tempo com uma pessoa vocecirc eacute parte daquele lugar daquela pessoa Eacute difiacutecil elas comeccedilarem a desassociar isso Mas ao mesmo tempo eu vejo que tem um saudosismo em mim Foi um periacuteodo artisticamente muito importante porque pocircde me trazer outras e mais referecircn-cias Me desequilibrou no bom sentido me fa-zendo perceber outros aspectos da danccedila da arte da cultura brasileira Enfim coisas que eu natildeo fazia ideia que poderia encontrar por laacute Ir danccedilar com um determinado grupo compa-nhia pressupotildee que vocecirc vai ter que se rela-cionar com o lugar neacute E isso vai te transfor-mar de alguma maneira Mesmo sendo muito resistente ndash eu queria me manter paulista sou do interior de Satildeo Paulo ndash esse conflito foi fa-zendo com que eu tambeacutem fosse impregnada de outras relaccedilotildees bairristas mineiras no bom sentido As pessoas foram me apresentan-do a cidade Eu fui me embrenhando porque eu gosto dessa coisa de descobrir a cidade andar de ocircnibus ficar na muvuca mesmo natildeo gostando de ndash eu sei que eacute meio clichecirc ndash estar onde o povo estaacute [risos] Eu sou uma pessoa do povo vou ao mercado pego ocircni-bus horaacuterio de pico do metrocirc compro onde as pessoas compram Entatildeo eu acabei me vendo naquelas situaccedilotildees os bairros de pe-riferia algumas vezes comendo nas casas das pessoas Querendo ou natildeo eu fui me aminei-rando tentando ser fagocitada pela cidade

ldquoO lugar da minha danccedila eacute um lugar de fissura ()rdquo

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AB A sua danccedila tambeacutem se amineirouK Talvez ela tenha se amineirado porque co-mecei a repensar alguns conceitos mais tradi-cionais de criaccedilatildeo em danccedila Descobri que meu modo de criar vem muito da improvisaccedilatildeo As coisas vecircm e vatildeo e eu preciso fechar E a ma-neira disso acontecer eacute pensando mais qua-dradinho a danccedila no sentido da coreografia em si Eu acho belo muitas vezes um momento tipicamente coreograacutefico Entatildeo como isso eu vejo muito laacute que as pessoas fazem uma danccedila ldquodanccedilardquo ndash a que todo mundo pensa quando o assunto eacute danccedila ndash nesse aspecto talvez minha danccedila tenha se amineirado Eu natildeo fico soacute no conceito na ideia Preciso materializar essa ideia entatildeo eu parto da composiccedilatildeo coreograacutefi-ca poreacutem de uma maneira teatralizada de for-ma que eu precise de um mapa de accedilatildeo um subtexto Tambeacutem natildeo sei se isso eacute amineirar a danccedila Talvez Belo Horizonte tenha me trazi-do algo que eu tenha esquecido ou achado que natildeo fosse importante Mas aiacute chegava num pon-to em que eu via que eu precisava retornar pro lugar de onde eu saiacute pro estado de Satildeo Pau-lo Eacute outra maneira de pensar a danccedila de pro-duzir danccedila o movimento em torno da danccedila Mesmo que seja difiacutecil o capital de giro acon-tece de outra maneira os incentivos fiscais tecircm um outro jogo Mesmo a gente sabendo que tem coisas que existem em todos os lugares que se vocecirc tem um colega uma determinada

rede de contatos ainda assim alguns cami-nhos satildeo mais fluidos Eu queria isso Que-ria ter esse movimento Quando o fluxo da danccedila laacute [em Belo Horizonte] estava baixo eu natildeo queria parar de danccedilar de trabalhar com danccedila Em Satildeo Paulo de alguma manei-ra isso eacute viaacutevel Consigo fazer aula oficinas gratuitas com profissionais bacanas Consi-go circular pelo meio cultural gratuitamente com mais facilidade Em Belo Horizonte eu natildeo conseguia Pelo menos natildeo enquanto eu estava laacute cinco anos atraacutes Mas em com-pensaccedilatildeo laacute eu comecei a me relacionar com outros artistas para aleacutem da danccedila muacutesicos atores escritores performers Isso foi mui-to bacana Era quando o conflito vinha que tipo de bailarina sou eu Qual eacute a danccedila que eu faccedilo O que eu quero dizer com a minha danccedila Eacute possiacutevel ser universal mesmo saben-do que eu tenho como base fundamento as danccedilas de peacute de terreiro as danccedilas dos Minkise Mesmo sabendo que a minha for-maccedilatildeo primeira eacute outra ateacute tradicionalzinha

AB Que formaccedilatildeo tradicionalzinhaK Como a maioria das meninas eu fui pra uma escolinha de danccedila no interior fazer baleacute Fiz jazz mas sabia que natildeo era daque-la maneira que eu sentia prazer O precon-ceito eacute muito forte Com quinze anos fui obrigada a ouvir de uma professora que

foto Richard Melo

ldquo() o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedilardquo

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o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedila As pessoas acham que a gente esquece isso neacute Eu fiquei fula da vida porque me contaram ou-tras mentiras me enganaram Acharam que eu natildeo era inteligente o suficiente pra entender as coisas Eu decidi que ia parar de danccedilar Escon-di tudo o que era meu de danccedila Fiquei um ano sem querer ver filme de danccedila documentaacuterio de danccedila Nada de danccedila Ateacute que outros co-legas criaram um grupo e me chamaram pra substituir uma menina Era um grupo que natildeo sabia se era contemporacircneo moderno mas onde todo mundo criava danccedila junto Natildeo tinha algueacutem que criava pra gente Foi a primeira vez que eu ouvi falar de danccedila contemporacircnea Isso foi 2000 meio de 2000 A gente ensaiava saacuteba-dos e domingos e fez um espetaacuteculo chamado

H2O a foacutermula da vida Pra mim hoje isso eacute muito simboacutelico porque a aacutegua sempre eacute o meu divisor [risos] de possibilidades caminhos Esse espetaacuteculo me fez ver que era aquilo que eu queria pra mim Eu soacute tinha que ter coragem pra enfrentar todos os natildeos todos os empeci-lhos pra decidir fazer uma faculdade de danccedila Se eu continuasse onde estava natildeo ia a lugar algum Ia ficar sendo subjugada agravequilo que eles achavam que era danccedila E que pra mim natildeo era eu queria treinar capoeira conhecer danccedila de rua adoro batuque Mas ali numa cidade do Vale do Paraiacuteba que eacute Pindamonhangaba vocecirc enquanto negro negra tem que se colo-car no seu lugar Pra vocecirc ser aceito tem que fazer o que todo mundo faz ter seu carro sua casa proacutepria seu dinheiro Estar bem na vida eacute isso natildeo importa se vocecirc chora toda noite O que importa eacute que vocecirc eacute como todo mundo ldquoPra que vocecirc vai morar longe Pra quecircrdquo Foi quando eu saiacute da minha cidade Decidi enfren-tar e rompi Rompi mesmo Antes eu ficava em crise tinha vergonha de assumir isso que era um rompimento Eu natildeo voltei mais natildeo sen-ti vontade de voltar pra um lugar onde eu me achava sempre esquisita estranha no ninho

AB E a universidadeK Na universidade ao mesmo tempo que eu encontrei pessoas muitas para aleacutem da danccedila que pensavam de maneira parecida que ti-nham histoacuterias de vida muito semelhantes

ldquoEu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch ()rdquo

agrave minha foi tambeacutem um longo caminho no curso de danccedila pra encontrar a minha danccedila Quando vocecirc chega agrave universidade parece que vocecirc jaacute tem que saber o que vocecirc quer Vocecirc tem que conhecer de tudo Eu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch de Quasar Cia de Danccedila Primeiro Ato nunca tinha ou-vido falar Aiacute vocecirc chega laacute toda assim [encolhe os ombros] e perguntam ldquoPor que vocecirc veio prestar danccedilardquo Porque eu gosto de danccedilar [risos] Foram essas as cobranccedilas porque na cabeccedila de algumas pessoas eu nunca tive nenhum grande professor de referecircncia na minha formaccedilatildeo Eu escolhi a UNICAMP intuiti-vamente natildeo foi pelo corpo docente Era perto da minha cidade natal e no Rio na eacutepoca es-tava tendo uma onda de violecircncia no noticiaacuterio

foto Marcos Buiati

Minha matildee falou que eu natildeo ia morar no Rio de Janeiro Meu sonho era ir pra Bahia mas ia ca-lhar a data do vestibular entatildeo fui pra UNICAMP mesmo Foi uma escolha intuitiva porque eu achei que laacute eu ia comeccedilar a encontrar o que eu queria com danccedila E realmente encontrei natildeo posso negar Devo muito agrave minha for-maccedilatildeo na UNICAMP na faculdade de danccedila

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ter vivido na moradia comido no bandejatildeo tido amigo na Geografia na Educaccedilatildeo na Histoacuteria na Antropologia nos momentos de crise ter encontrado pessoas de outras aacutereas que viviam a mesma coisa A gente conseguia conversar confluir e se ajudar a entender esses processos E eu sempre nessa coisa qual eacute a minha turma qual eacute a minha danccedila o que eu quero dizer E sempre sendo cobrada Laacute se cobrava muito isso Eu era sempre a que natildeo ia pro padratildeo Eu natildeo tinha o perfil do padratildeo e aiacute comeccedilam a vir os estereoacutetipos que tambeacutem existem na danccedila contemporacircnea na danccedila moderna Fico me perguntando se realmente tudo eacute pra todo mundo O que cabe o que natildeo cabe Eacute ruim natildeo caber em nada Por eu ser quem eu sou as pessoas queriam me enquadrar nas danccedilas brasileiras ldquoEacute sua carardquo Por que Porque eu sou preta [risos] No comeccedilo eu natildeo entendia e meu corpo natildeo respondia assim Mas depois comecei a natildeo ligar pro que as pessoas falavam e queriam de mim Peraiacute eu tenho que negar a minha histoacuteria que fiz baleacute jazz que eu tenho um coacutedigo impregnado em mim Natildeo daacute pra negar o que a gente eacute o que forma a gente neacute Depois de trecircs anos no auge da crise de-cidi trancar a disciplina de teacutecnica pra natildeo me formar em quatro anos Nesse meio tempo fiz mil disciplinas no teatro achando que ia pres-tar Artes Cecircnicas No teatro eu conseguia ser quem eu era sem julgamentos Querendo ou natildeo o mundo da danccedila eacute muito tradicionalis-ta Eacute difiacutecil achar pessoas que formam e tecircm a cabeccedila mais aberta Adoro as pessoas que nos formaram mas existe uma dificuldade de aceitar aquilo que estaacute fora do padratildeo fora das regras jaacute postas Depois de trecircs anos eu decidi realmente arriscar e natildeo seguir a minha turma Eu natildeo sou uma turma Lembro daquilo que escutei a Morena [Paiva] falar neacute Realmente pra existir coletivo tem que ter indiviacuteduo O in-diviacuteduo tambeacutem natildeo existe sem o coletivo Soacute que eu natildeo podia me anular pra seguir aque-la turma que natildeo vivia o que eu vivia que natildeo saiu de onde eu saiacute Fui fazer a minha histoacuteria Foi quando eu comecei a ficar mais calma mais feliz a descobrir de fato o que eu que-ria pesquisar que eram as danccedilas de terreiro Cheguei a essa conclusatildeo Danccedilas brasileiras

tambeacutem mas eacute muito amplo falar que eu en-tendo de cavalo marinho boi-bumbaacute tambor de mina jongo tambor de crioula carimboacute catira eacute muito muito amplo Nessa inves-tigaccedilatildeo sobre danccedila de terreiro vendo que tambeacutem era importante estudar as questotildees teacutecnicas de corpo que estatildeo para aleacutem da esteacutetica comecei a chegar a essas danccedilas ligadas ao Candombleacute Foi quando escrevi a minha pesquisa de iniciaccedilatildeo cientiacutefica Den-tro da disciplina de Danccedilas do Brasil eu jaacute fui afunilando a minha pesquisa pra isso Treinei muito capoeira especialmente capoeira ango-la Como diz um mestre aqui em Satildeo Paulo comem no mesmo prato o samba a capoeira e o Candombleacute Entatildeo fui pras danccedilas de ter-reiro e pras danccedilas ligadas ao Candombleacute de Angola Tecircm caracteriacutesticas muito distintas o Candombleacute Jeje e o Ketu E aiacute fui de novo pras aacuteguas pras danccedilas que eu queria comeccedilar a pesquisar a entender As aacuteguas do mar as danccedilas de Kayaia de Kaitumba O proje-to nem tinha sido aprovado ainda mas fui pra Salvador tentar conhecer os terreiros de Can-dombleacute ver a festa de 2 de fevereiro o mar Me encantei pela cidade me perdi literalmente pelas ruas de Salvador Fui parar em Cajazei-ras que eacute um bairro longe pra caramba [risos] E aiacute tambeacutem comecei a usar um pouco des-sa cara de preta da qual Salvador estaacute cheia pra passar despercebida pelos lugares Isso foi muito bom em Salvador porque enquanto eu natildeo abria a boca pra ldquofechar a portardquo [reforccedila o ldquorrdquo tiacutepico do sotaque do interior de Satildeo Pau-lo] as pessoas achavam que eu era baiana

foto Guto Muniz

ldquoEacute ruim natildeo caber em nadardquo

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Me possibilitou transitar pela cidade como eu nunca tinha feito em lugar nenhum Pra mim foi encantador uma experiecircncia 21 dias que eacute um nuacutemero muito simboacutelico pra quem vem da cultura de Candombleacute de onde eu voltei pra Campinas num outro tempo falando de outra maneira e toda extasiada com a coisa do mar do sol do cheiro de dendecirc de Salvador com a acolhida que eu tive de pessoas maravilho-sas do Opoacute Afonjaacute [casa tradicional de Can-dombleacute] do terreiro da minha avoacute-de-santo Foi quando se estreitou meu laccedilo com a cidade Eu pude realmente observar as danccedilas ligadas agrave pesquisa que eu queria Quando eu retorno fixo minha pesquisa num terreiro de Candombleacute Angola em Hortolacircndia o Inzo Musambu Hon-golo Menha a Casa do Arco-Iacuteris e comeccedilo a aprofundar essa minha pesquisa em torno das aacuteguas que aacuteguas satildeo essas o que eacute a aacutegua do mar o que satildeo as sereias de Angola Tem uma imersatildeo em Antropologia que foi super impor-tante mas eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila um registro mais de movimento mesmo Depois de um ano eu entrego esse trabalho de iniciaccedilatildeo [cientiacutefica] com algumas reflexotildees em cima da praacutetica da criaccedilatildeo de um trabalho que se chamou Epifanias e Alfazemas Infeliz-mente durou enquanto eu estava na faculdade no uacuteltimo ano Concomitantemente eu fiz parte de um coletivo de seis mulheres onde a gente tratou basicamente do que vem a ser mitologia pessoal num trabalho que se chama rios inter-mitentes Eu sempre briguei pelo caminho do meio Natildeo importa se eu estou pesquisando as danccedilas de Candombleacute ou a danccedila do [George] Balanchine eacute possiacutevel fazer esse diaacutelogo Uma natildeo eacute menos ou melhor do que a outra am-bas tecircm poeacutetica Claro cada uma com suas caracteriacutesticas Quando eu vou pesquisar uma danccedila de terreiro natildeo tem como eu soacute pesqui-sar a danccedila e esquecer todo o contexto que tem ali esteacutetico de simbologia E vice-versa As minhas orientadoras tanto da iniciaccedilatildeo como do trabalho de graduaccedilatildeo foram muito ge-nerosas e me permitiram fazer esse tracircnsito de informaccedilotildees esse diaacutelogo Fiquei muito fe-liz Depois disso quando eu comeccedilo a minha vida profissional mesmo eu opto por sair

de Satildeo Paulo Todo mundo vem pra caacute [suspi-ra eufoacuterica] porque eacute onde borbulha eacute onde a produccedilatildeo acontece Mas se vocecirc chega aqui e natildeo se identifica com essas produccedilotildees A Pina Bausch a Susanne Linke satildeo lindas mas eu posso natildeo me identificar com o que elas fazem natildeo querer fazer aquilo ou algo seme-lhante Entatildeo fui pra Belo Horizonte que jaacute tinha ouvido falar que eacute outro celeiro da danccedila E realmente eacute tem muitos grupos uma pro-duccedilatildeo que eacute distinta que eacute tatildeo bela quanto e completamente diferente de Satildeo Paulo uma outra dinacircmica Danccedilar num grupo que tinha uma proposta esteacutetica muito semelhante ao que eu vinha fazendo foi muito legal E pa-ralelamente a isso tambeacutem amadurecer en-trar num processo de trabalho de docecircncia de ensino de danccedila tambeacutem dei meu pon-tapeacute inicial nesse sentido em Belo Horizon-te Mais do que precisar ndash a maior parte de noacutes artistas vai dar aula porque precisa ndash eu gostava daquilo Eacute um exerciacutecio de pesquisa e de criaccedilatildeo artiacutestica tambeacutem Eacute muito louco mas quando eu dou aula consigo solucio-nar algumas coisas que satildeo difiacuteceis pra mim Querendo ou natildeo o que eu levo pra sala de aula eacute aquilo que eu vivo enquanto artista

foto Adriana Lopes

ldquo() eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila ()rdquo

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

ldquoProcuro natildeo ter preconceito com as coisas com as danccedilasrdquo

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

Agradecimentos

Casa das RosasJackson Oliveira

Dirceu Rodriguespoiesisorgbr

Samuel MendesRichard MeloMarcos Buiati

Guto MunizAdriana LopesCarlos Bozelli

Murilo de Paula

A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista 37 - Bela Vista (Satildeo Paulo - SP)httpwwwcasadasrosas-sporgbr

lugares e danccedilas um projeto de Andreacute Bern para ctrl+alt+danccedila

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Page 3: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

AB A sua danccedila tambeacutem se amineirouK Talvez ela tenha se amineirado porque co-mecei a repensar alguns conceitos mais tradi-cionais de criaccedilatildeo em danccedila Descobri que meu modo de criar vem muito da improvisaccedilatildeo As coisas vecircm e vatildeo e eu preciso fechar E a ma-neira disso acontecer eacute pensando mais qua-dradinho a danccedila no sentido da coreografia em si Eu acho belo muitas vezes um momento tipicamente coreograacutefico Entatildeo como isso eu vejo muito laacute que as pessoas fazem uma danccedila ldquodanccedilardquo ndash a que todo mundo pensa quando o assunto eacute danccedila ndash nesse aspecto talvez minha danccedila tenha se amineirado Eu natildeo fico soacute no conceito na ideia Preciso materializar essa ideia entatildeo eu parto da composiccedilatildeo coreograacutefi-ca poreacutem de uma maneira teatralizada de for-ma que eu precise de um mapa de accedilatildeo um subtexto Tambeacutem natildeo sei se isso eacute amineirar a danccedila Talvez Belo Horizonte tenha me trazi-do algo que eu tenha esquecido ou achado que natildeo fosse importante Mas aiacute chegava num pon-to em que eu via que eu precisava retornar pro lugar de onde eu saiacute pro estado de Satildeo Pau-lo Eacute outra maneira de pensar a danccedila de pro-duzir danccedila o movimento em torno da danccedila Mesmo que seja difiacutecil o capital de giro acon-tece de outra maneira os incentivos fiscais tecircm um outro jogo Mesmo a gente sabendo que tem coisas que existem em todos os lugares que se vocecirc tem um colega uma determinada

rede de contatos ainda assim alguns cami-nhos satildeo mais fluidos Eu queria isso Que-ria ter esse movimento Quando o fluxo da danccedila laacute [em Belo Horizonte] estava baixo eu natildeo queria parar de danccedilar de trabalhar com danccedila Em Satildeo Paulo de alguma manei-ra isso eacute viaacutevel Consigo fazer aula oficinas gratuitas com profissionais bacanas Consi-go circular pelo meio cultural gratuitamente com mais facilidade Em Belo Horizonte eu natildeo conseguia Pelo menos natildeo enquanto eu estava laacute cinco anos atraacutes Mas em com-pensaccedilatildeo laacute eu comecei a me relacionar com outros artistas para aleacutem da danccedila muacutesicos atores escritores performers Isso foi mui-to bacana Era quando o conflito vinha que tipo de bailarina sou eu Qual eacute a danccedila que eu faccedilo O que eu quero dizer com a minha danccedila Eacute possiacutevel ser universal mesmo saben-do que eu tenho como base fundamento as danccedilas de peacute de terreiro as danccedilas dos Minkise Mesmo sabendo que a minha for-maccedilatildeo primeira eacute outra ateacute tradicionalzinha

AB Que formaccedilatildeo tradicionalzinhaK Como a maioria das meninas eu fui pra uma escolinha de danccedila no interior fazer baleacute Fiz jazz mas sabia que natildeo era daque-la maneira que eu sentia prazer O precon-ceito eacute muito forte Com quinze anos fui obrigada a ouvir de uma professora que

foto Richard Melo

ldquo() o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedilardquo

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o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedila As pessoas acham que a gente esquece isso neacute Eu fiquei fula da vida porque me contaram ou-tras mentiras me enganaram Acharam que eu natildeo era inteligente o suficiente pra entender as coisas Eu decidi que ia parar de danccedilar Escon-di tudo o que era meu de danccedila Fiquei um ano sem querer ver filme de danccedila documentaacuterio de danccedila Nada de danccedila Ateacute que outros co-legas criaram um grupo e me chamaram pra substituir uma menina Era um grupo que natildeo sabia se era contemporacircneo moderno mas onde todo mundo criava danccedila junto Natildeo tinha algueacutem que criava pra gente Foi a primeira vez que eu ouvi falar de danccedila contemporacircnea Isso foi 2000 meio de 2000 A gente ensaiava saacuteba-dos e domingos e fez um espetaacuteculo chamado

H2O a foacutermula da vida Pra mim hoje isso eacute muito simboacutelico porque a aacutegua sempre eacute o meu divisor [risos] de possibilidades caminhos Esse espetaacuteculo me fez ver que era aquilo que eu queria pra mim Eu soacute tinha que ter coragem pra enfrentar todos os natildeos todos os empeci-lhos pra decidir fazer uma faculdade de danccedila Se eu continuasse onde estava natildeo ia a lugar algum Ia ficar sendo subjugada agravequilo que eles achavam que era danccedila E que pra mim natildeo era eu queria treinar capoeira conhecer danccedila de rua adoro batuque Mas ali numa cidade do Vale do Paraiacuteba que eacute Pindamonhangaba vocecirc enquanto negro negra tem que se colo-car no seu lugar Pra vocecirc ser aceito tem que fazer o que todo mundo faz ter seu carro sua casa proacutepria seu dinheiro Estar bem na vida eacute isso natildeo importa se vocecirc chora toda noite O que importa eacute que vocecirc eacute como todo mundo ldquoPra que vocecirc vai morar longe Pra quecircrdquo Foi quando eu saiacute da minha cidade Decidi enfren-tar e rompi Rompi mesmo Antes eu ficava em crise tinha vergonha de assumir isso que era um rompimento Eu natildeo voltei mais natildeo sen-ti vontade de voltar pra um lugar onde eu me achava sempre esquisita estranha no ninho

AB E a universidadeK Na universidade ao mesmo tempo que eu encontrei pessoas muitas para aleacutem da danccedila que pensavam de maneira parecida que ti-nham histoacuterias de vida muito semelhantes

ldquoEu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch ()rdquo

agrave minha foi tambeacutem um longo caminho no curso de danccedila pra encontrar a minha danccedila Quando vocecirc chega agrave universidade parece que vocecirc jaacute tem que saber o que vocecirc quer Vocecirc tem que conhecer de tudo Eu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch de Quasar Cia de Danccedila Primeiro Ato nunca tinha ou-vido falar Aiacute vocecirc chega laacute toda assim [encolhe os ombros] e perguntam ldquoPor que vocecirc veio prestar danccedilardquo Porque eu gosto de danccedilar [risos] Foram essas as cobranccedilas porque na cabeccedila de algumas pessoas eu nunca tive nenhum grande professor de referecircncia na minha formaccedilatildeo Eu escolhi a UNICAMP intuiti-vamente natildeo foi pelo corpo docente Era perto da minha cidade natal e no Rio na eacutepoca es-tava tendo uma onda de violecircncia no noticiaacuterio

foto Marcos Buiati

Minha matildee falou que eu natildeo ia morar no Rio de Janeiro Meu sonho era ir pra Bahia mas ia ca-lhar a data do vestibular entatildeo fui pra UNICAMP mesmo Foi uma escolha intuitiva porque eu achei que laacute eu ia comeccedilar a encontrar o que eu queria com danccedila E realmente encontrei natildeo posso negar Devo muito agrave minha for-maccedilatildeo na UNICAMP na faculdade de danccedila

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ter vivido na moradia comido no bandejatildeo tido amigo na Geografia na Educaccedilatildeo na Histoacuteria na Antropologia nos momentos de crise ter encontrado pessoas de outras aacutereas que viviam a mesma coisa A gente conseguia conversar confluir e se ajudar a entender esses processos E eu sempre nessa coisa qual eacute a minha turma qual eacute a minha danccedila o que eu quero dizer E sempre sendo cobrada Laacute se cobrava muito isso Eu era sempre a que natildeo ia pro padratildeo Eu natildeo tinha o perfil do padratildeo e aiacute comeccedilam a vir os estereoacutetipos que tambeacutem existem na danccedila contemporacircnea na danccedila moderna Fico me perguntando se realmente tudo eacute pra todo mundo O que cabe o que natildeo cabe Eacute ruim natildeo caber em nada Por eu ser quem eu sou as pessoas queriam me enquadrar nas danccedilas brasileiras ldquoEacute sua carardquo Por que Porque eu sou preta [risos] No comeccedilo eu natildeo entendia e meu corpo natildeo respondia assim Mas depois comecei a natildeo ligar pro que as pessoas falavam e queriam de mim Peraiacute eu tenho que negar a minha histoacuteria que fiz baleacute jazz que eu tenho um coacutedigo impregnado em mim Natildeo daacute pra negar o que a gente eacute o que forma a gente neacute Depois de trecircs anos no auge da crise de-cidi trancar a disciplina de teacutecnica pra natildeo me formar em quatro anos Nesse meio tempo fiz mil disciplinas no teatro achando que ia pres-tar Artes Cecircnicas No teatro eu conseguia ser quem eu era sem julgamentos Querendo ou natildeo o mundo da danccedila eacute muito tradicionalis-ta Eacute difiacutecil achar pessoas que formam e tecircm a cabeccedila mais aberta Adoro as pessoas que nos formaram mas existe uma dificuldade de aceitar aquilo que estaacute fora do padratildeo fora das regras jaacute postas Depois de trecircs anos eu decidi realmente arriscar e natildeo seguir a minha turma Eu natildeo sou uma turma Lembro daquilo que escutei a Morena [Paiva] falar neacute Realmente pra existir coletivo tem que ter indiviacuteduo O in-diviacuteduo tambeacutem natildeo existe sem o coletivo Soacute que eu natildeo podia me anular pra seguir aque-la turma que natildeo vivia o que eu vivia que natildeo saiu de onde eu saiacute Fui fazer a minha histoacuteria Foi quando eu comecei a ficar mais calma mais feliz a descobrir de fato o que eu que-ria pesquisar que eram as danccedilas de terreiro Cheguei a essa conclusatildeo Danccedilas brasileiras

tambeacutem mas eacute muito amplo falar que eu en-tendo de cavalo marinho boi-bumbaacute tambor de mina jongo tambor de crioula carimboacute catira eacute muito muito amplo Nessa inves-tigaccedilatildeo sobre danccedila de terreiro vendo que tambeacutem era importante estudar as questotildees teacutecnicas de corpo que estatildeo para aleacutem da esteacutetica comecei a chegar a essas danccedilas ligadas ao Candombleacute Foi quando escrevi a minha pesquisa de iniciaccedilatildeo cientiacutefica Den-tro da disciplina de Danccedilas do Brasil eu jaacute fui afunilando a minha pesquisa pra isso Treinei muito capoeira especialmente capoeira ango-la Como diz um mestre aqui em Satildeo Paulo comem no mesmo prato o samba a capoeira e o Candombleacute Entatildeo fui pras danccedilas de ter-reiro e pras danccedilas ligadas ao Candombleacute de Angola Tecircm caracteriacutesticas muito distintas o Candombleacute Jeje e o Ketu E aiacute fui de novo pras aacuteguas pras danccedilas que eu queria comeccedilar a pesquisar a entender As aacuteguas do mar as danccedilas de Kayaia de Kaitumba O proje-to nem tinha sido aprovado ainda mas fui pra Salvador tentar conhecer os terreiros de Can-dombleacute ver a festa de 2 de fevereiro o mar Me encantei pela cidade me perdi literalmente pelas ruas de Salvador Fui parar em Cajazei-ras que eacute um bairro longe pra caramba [risos] E aiacute tambeacutem comecei a usar um pouco des-sa cara de preta da qual Salvador estaacute cheia pra passar despercebida pelos lugares Isso foi muito bom em Salvador porque enquanto eu natildeo abria a boca pra ldquofechar a portardquo [reforccedila o ldquorrdquo tiacutepico do sotaque do interior de Satildeo Pau-lo] as pessoas achavam que eu era baiana

foto Guto Muniz

ldquoEacute ruim natildeo caber em nadardquo

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Me possibilitou transitar pela cidade como eu nunca tinha feito em lugar nenhum Pra mim foi encantador uma experiecircncia 21 dias que eacute um nuacutemero muito simboacutelico pra quem vem da cultura de Candombleacute de onde eu voltei pra Campinas num outro tempo falando de outra maneira e toda extasiada com a coisa do mar do sol do cheiro de dendecirc de Salvador com a acolhida que eu tive de pessoas maravilho-sas do Opoacute Afonjaacute [casa tradicional de Can-dombleacute] do terreiro da minha avoacute-de-santo Foi quando se estreitou meu laccedilo com a cidade Eu pude realmente observar as danccedilas ligadas agrave pesquisa que eu queria Quando eu retorno fixo minha pesquisa num terreiro de Candombleacute Angola em Hortolacircndia o Inzo Musambu Hon-golo Menha a Casa do Arco-Iacuteris e comeccedilo a aprofundar essa minha pesquisa em torno das aacuteguas que aacuteguas satildeo essas o que eacute a aacutegua do mar o que satildeo as sereias de Angola Tem uma imersatildeo em Antropologia que foi super impor-tante mas eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila um registro mais de movimento mesmo Depois de um ano eu entrego esse trabalho de iniciaccedilatildeo [cientiacutefica] com algumas reflexotildees em cima da praacutetica da criaccedilatildeo de um trabalho que se chamou Epifanias e Alfazemas Infeliz-mente durou enquanto eu estava na faculdade no uacuteltimo ano Concomitantemente eu fiz parte de um coletivo de seis mulheres onde a gente tratou basicamente do que vem a ser mitologia pessoal num trabalho que se chama rios inter-mitentes Eu sempre briguei pelo caminho do meio Natildeo importa se eu estou pesquisando as danccedilas de Candombleacute ou a danccedila do [George] Balanchine eacute possiacutevel fazer esse diaacutelogo Uma natildeo eacute menos ou melhor do que a outra am-bas tecircm poeacutetica Claro cada uma com suas caracteriacutesticas Quando eu vou pesquisar uma danccedila de terreiro natildeo tem como eu soacute pesqui-sar a danccedila e esquecer todo o contexto que tem ali esteacutetico de simbologia E vice-versa As minhas orientadoras tanto da iniciaccedilatildeo como do trabalho de graduaccedilatildeo foram muito ge-nerosas e me permitiram fazer esse tracircnsito de informaccedilotildees esse diaacutelogo Fiquei muito fe-liz Depois disso quando eu comeccedilo a minha vida profissional mesmo eu opto por sair

de Satildeo Paulo Todo mundo vem pra caacute [suspi-ra eufoacuterica] porque eacute onde borbulha eacute onde a produccedilatildeo acontece Mas se vocecirc chega aqui e natildeo se identifica com essas produccedilotildees A Pina Bausch a Susanne Linke satildeo lindas mas eu posso natildeo me identificar com o que elas fazem natildeo querer fazer aquilo ou algo seme-lhante Entatildeo fui pra Belo Horizonte que jaacute tinha ouvido falar que eacute outro celeiro da danccedila E realmente eacute tem muitos grupos uma pro-duccedilatildeo que eacute distinta que eacute tatildeo bela quanto e completamente diferente de Satildeo Paulo uma outra dinacircmica Danccedilar num grupo que tinha uma proposta esteacutetica muito semelhante ao que eu vinha fazendo foi muito legal E pa-ralelamente a isso tambeacutem amadurecer en-trar num processo de trabalho de docecircncia de ensino de danccedila tambeacutem dei meu pon-tapeacute inicial nesse sentido em Belo Horizon-te Mais do que precisar ndash a maior parte de noacutes artistas vai dar aula porque precisa ndash eu gostava daquilo Eacute um exerciacutecio de pesquisa e de criaccedilatildeo artiacutestica tambeacutem Eacute muito louco mas quando eu dou aula consigo solucio-nar algumas coisas que satildeo difiacuteceis pra mim Querendo ou natildeo o que eu levo pra sala de aula eacute aquilo que eu vivo enquanto artista

foto Adriana Lopes

ldquo() eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila ()rdquo

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

ldquoProcuro natildeo ter preconceito com as coisas com as danccedilasrdquo

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

Agradecimentos

Casa das RosasJackson Oliveira

Dirceu Rodriguespoiesisorgbr

Samuel MendesRichard MeloMarcos Buiati

Guto MunizAdriana LopesCarlos Bozelli

Murilo de Paula

A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista 37 - Bela Vista (Satildeo Paulo - SP)httpwwwcasadasrosas-sporgbr

lugares e danccedilas um projeto de Andreacute Bern para ctrl+alt+danccedila

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Page 4: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

o meu corpo natildeo era um corpo pra danccedila As pessoas acham que a gente esquece isso neacute Eu fiquei fula da vida porque me contaram ou-tras mentiras me enganaram Acharam que eu natildeo era inteligente o suficiente pra entender as coisas Eu decidi que ia parar de danccedilar Escon-di tudo o que era meu de danccedila Fiquei um ano sem querer ver filme de danccedila documentaacuterio de danccedila Nada de danccedila Ateacute que outros co-legas criaram um grupo e me chamaram pra substituir uma menina Era um grupo que natildeo sabia se era contemporacircneo moderno mas onde todo mundo criava danccedila junto Natildeo tinha algueacutem que criava pra gente Foi a primeira vez que eu ouvi falar de danccedila contemporacircnea Isso foi 2000 meio de 2000 A gente ensaiava saacuteba-dos e domingos e fez um espetaacuteculo chamado

H2O a foacutermula da vida Pra mim hoje isso eacute muito simboacutelico porque a aacutegua sempre eacute o meu divisor [risos] de possibilidades caminhos Esse espetaacuteculo me fez ver que era aquilo que eu queria pra mim Eu soacute tinha que ter coragem pra enfrentar todos os natildeos todos os empeci-lhos pra decidir fazer uma faculdade de danccedila Se eu continuasse onde estava natildeo ia a lugar algum Ia ficar sendo subjugada agravequilo que eles achavam que era danccedila E que pra mim natildeo era eu queria treinar capoeira conhecer danccedila de rua adoro batuque Mas ali numa cidade do Vale do Paraiacuteba que eacute Pindamonhangaba vocecirc enquanto negro negra tem que se colo-car no seu lugar Pra vocecirc ser aceito tem que fazer o que todo mundo faz ter seu carro sua casa proacutepria seu dinheiro Estar bem na vida eacute isso natildeo importa se vocecirc chora toda noite O que importa eacute que vocecirc eacute como todo mundo ldquoPra que vocecirc vai morar longe Pra quecircrdquo Foi quando eu saiacute da minha cidade Decidi enfren-tar e rompi Rompi mesmo Antes eu ficava em crise tinha vergonha de assumir isso que era um rompimento Eu natildeo voltei mais natildeo sen-ti vontade de voltar pra um lugar onde eu me achava sempre esquisita estranha no ninho

AB E a universidadeK Na universidade ao mesmo tempo que eu encontrei pessoas muitas para aleacutem da danccedila que pensavam de maneira parecida que ti-nham histoacuterias de vida muito semelhantes

ldquoEu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch ()rdquo

agrave minha foi tambeacutem um longo caminho no curso de danccedila pra encontrar a minha danccedila Quando vocecirc chega agrave universidade parece que vocecirc jaacute tem que saber o que vocecirc quer Vocecirc tem que conhecer de tudo Eu nunca tinha ouvido falar de Pina Bausch de Quasar Cia de Danccedila Primeiro Ato nunca tinha ou-vido falar Aiacute vocecirc chega laacute toda assim [encolhe os ombros] e perguntam ldquoPor que vocecirc veio prestar danccedilardquo Porque eu gosto de danccedilar [risos] Foram essas as cobranccedilas porque na cabeccedila de algumas pessoas eu nunca tive nenhum grande professor de referecircncia na minha formaccedilatildeo Eu escolhi a UNICAMP intuiti-vamente natildeo foi pelo corpo docente Era perto da minha cidade natal e no Rio na eacutepoca es-tava tendo uma onda de violecircncia no noticiaacuterio

foto Marcos Buiati

Minha matildee falou que eu natildeo ia morar no Rio de Janeiro Meu sonho era ir pra Bahia mas ia ca-lhar a data do vestibular entatildeo fui pra UNICAMP mesmo Foi uma escolha intuitiva porque eu achei que laacute eu ia comeccedilar a encontrar o que eu queria com danccedila E realmente encontrei natildeo posso negar Devo muito agrave minha for-maccedilatildeo na UNICAMP na faculdade de danccedila

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ter vivido na moradia comido no bandejatildeo tido amigo na Geografia na Educaccedilatildeo na Histoacuteria na Antropologia nos momentos de crise ter encontrado pessoas de outras aacutereas que viviam a mesma coisa A gente conseguia conversar confluir e se ajudar a entender esses processos E eu sempre nessa coisa qual eacute a minha turma qual eacute a minha danccedila o que eu quero dizer E sempre sendo cobrada Laacute se cobrava muito isso Eu era sempre a que natildeo ia pro padratildeo Eu natildeo tinha o perfil do padratildeo e aiacute comeccedilam a vir os estereoacutetipos que tambeacutem existem na danccedila contemporacircnea na danccedila moderna Fico me perguntando se realmente tudo eacute pra todo mundo O que cabe o que natildeo cabe Eacute ruim natildeo caber em nada Por eu ser quem eu sou as pessoas queriam me enquadrar nas danccedilas brasileiras ldquoEacute sua carardquo Por que Porque eu sou preta [risos] No comeccedilo eu natildeo entendia e meu corpo natildeo respondia assim Mas depois comecei a natildeo ligar pro que as pessoas falavam e queriam de mim Peraiacute eu tenho que negar a minha histoacuteria que fiz baleacute jazz que eu tenho um coacutedigo impregnado em mim Natildeo daacute pra negar o que a gente eacute o que forma a gente neacute Depois de trecircs anos no auge da crise de-cidi trancar a disciplina de teacutecnica pra natildeo me formar em quatro anos Nesse meio tempo fiz mil disciplinas no teatro achando que ia pres-tar Artes Cecircnicas No teatro eu conseguia ser quem eu era sem julgamentos Querendo ou natildeo o mundo da danccedila eacute muito tradicionalis-ta Eacute difiacutecil achar pessoas que formam e tecircm a cabeccedila mais aberta Adoro as pessoas que nos formaram mas existe uma dificuldade de aceitar aquilo que estaacute fora do padratildeo fora das regras jaacute postas Depois de trecircs anos eu decidi realmente arriscar e natildeo seguir a minha turma Eu natildeo sou uma turma Lembro daquilo que escutei a Morena [Paiva] falar neacute Realmente pra existir coletivo tem que ter indiviacuteduo O in-diviacuteduo tambeacutem natildeo existe sem o coletivo Soacute que eu natildeo podia me anular pra seguir aque-la turma que natildeo vivia o que eu vivia que natildeo saiu de onde eu saiacute Fui fazer a minha histoacuteria Foi quando eu comecei a ficar mais calma mais feliz a descobrir de fato o que eu que-ria pesquisar que eram as danccedilas de terreiro Cheguei a essa conclusatildeo Danccedilas brasileiras

tambeacutem mas eacute muito amplo falar que eu en-tendo de cavalo marinho boi-bumbaacute tambor de mina jongo tambor de crioula carimboacute catira eacute muito muito amplo Nessa inves-tigaccedilatildeo sobre danccedila de terreiro vendo que tambeacutem era importante estudar as questotildees teacutecnicas de corpo que estatildeo para aleacutem da esteacutetica comecei a chegar a essas danccedilas ligadas ao Candombleacute Foi quando escrevi a minha pesquisa de iniciaccedilatildeo cientiacutefica Den-tro da disciplina de Danccedilas do Brasil eu jaacute fui afunilando a minha pesquisa pra isso Treinei muito capoeira especialmente capoeira ango-la Como diz um mestre aqui em Satildeo Paulo comem no mesmo prato o samba a capoeira e o Candombleacute Entatildeo fui pras danccedilas de ter-reiro e pras danccedilas ligadas ao Candombleacute de Angola Tecircm caracteriacutesticas muito distintas o Candombleacute Jeje e o Ketu E aiacute fui de novo pras aacuteguas pras danccedilas que eu queria comeccedilar a pesquisar a entender As aacuteguas do mar as danccedilas de Kayaia de Kaitumba O proje-to nem tinha sido aprovado ainda mas fui pra Salvador tentar conhecer os terreiros de Can-dombleacute ver a festa de 2 de fevereiro o mar Me encantei pela cidade me perdi literalmente pelas ruas de Salvador Fui parar em Cajazei-ras que eacute um bairro longe pra caramba [risos] E aiacute tambeacutem comecei a usar um pouco des-sa cara de preta da qual Salvador estaacute cheia pra passar despercebida pelos lugares Isso foi muito bom em Salvador porque enquanto eu natildeo abria a boca pra ldquofechar a portardquo [reforccedila o ldquorrdquo tiacutepico do sotaque do interior de Satildeo Pau-lo] as pessoas achavam que eu era baiana

foto Guto Muniz

ldquoEacute ruim natildeo caber em nadardquo

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Me possibilitou transitar pela cidade como eu nunca tinha feito em lugar nenhum Pra mim foi encantador uma experiecircncia 21 dias que eacute um nuacutemero muito simboacutelico pra quem vem da cultura de Candombleacute de onde eu voltei pra Campinas num outro tempo falando de outra maneira e toda extasiada com a coisa do mar do sol do cheiro de dendecirc de Salvador com a acolhida que eu tive de pessoas maravilho-sas do Opoacute Afonjaacute [casa tradicional de Can-dombleacute] do terreiro da minha avoacute-de-santo Foi quando se estreitou meu laccedilo com a cidade Eu pude realmente observar as danccedilas ligadas agrave pesquisa que eu queria Quando eu retorno fixo minha pesquisa num terreiro de Candombleacute Angola em Hortolacircndia o Inzo Musambu Hon-golo Menha a Casa do Arco-Iacuteris e comeccedilo a aprofundar essa minha pesquisa em torno das aacuteguas que aacuteguas satildeo essas o que eacute a aacutegua do mar o que satildeo as sereias de Angola Tem uma imersatildeo em Antropologia que foi super impor-tante mas eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila um registro mais de movimento mesmo Depois de um ano eu entrego esse trabalho de iniciaccedilatildeo [cientiacutefica] com algumas reflexotildees em cima da praacutetica da criaccedilatildeo de um trabalho que se chamou Epifanias e Alfazemas Infeliz-mente durou enquanto eu estava na faculdade no uacuteltimo ano Concomitantemente eu fiz parte de um coletivo de seis mulheres onde a gente tratou basicamente do que vem a ser mitologia pessoal num trabalho que se chama rios inter-mitentes Eu sempre briguei pelo caminho do meio Natildeo importa se eu estou pesquisando as danccedilas de Candombleacute ou a danccedila do [George] Balanchine eacute possiacutevel fazer esse diaacutelogo Uma natildeo eacute menos ou melhor do que a outra am-bas tecircm poeacutetica Claro cada uma com suas caracteriacutesticas Quando eu vou pesquisar uma danccedila de terreiro natildeo tem como eu soacute pesqui-sar a danccedila e esquecer todo o contexto que tem ali esteacutetico de simbologia E vice-versa As minhas orientadoras tanto da iniciaccedilatildeo como do trabalho de graduaccedilatildeo foram muito ge-nerosas e me permitiram fazer esse tracircnsito de informaccedilotildees esse diaacutelogo Fiquei muito fe-liz Depois disso quando eu comeccedilo a minha vida profissional mesmo eu opto por sair

de Satildeo Paulo Todo mundo vem pra caacute [suspi-ra eufoacuterica] porque eacute onde borbulha eacute onde a produccedilatildeo acontece Mas se vocecirc chega aqui e natildeo se identifica com essas produccedilotildees A Pina Bausch a Susanne Linke satildeo lindas mas eu posso natildeo me identificar com o que elas fazem natildeo querer fazer aquilo ou algo seme-lhante Entatildeo fui pra Belo Horizonte que jaacute tinha ouvido falar que eacute outro celeiro da danccedila E realmente eacute tem muitos grupos uma pro-duccedilatildeo que eacute distinta que eacute tatildeo bela quanto e completamente diferente de Satildeo Paulo uma outra dinacircmica Danccedilar num grupo que tinha uma proposta esteacutetica muito semelhante ao que eu vinha fazendo foi muito legal E pa-ralelamente a isso tambeacutem amadurecer en-trar num processo de trabalho de docecircncia de ensino de danccedila tambeacutem dei meu pon-tapeacute inicial nesse sentido em Belo Horizon-te Mais do que precisar ndash a maior parte de noacutes artistas vai dar aula porque precisa ndash eu gostava daquilo Eacute um exerciacutecio de pesquisa e de criaccedilatildeo artiacutestica tambeacutem Eacute muito louco mas quando eu dou aula consigo solucio-nar algumas coisas que satildeo difiacuteceis pra mim Querendo ou natildeo o que eu levo pra sala de aula eacute aquilo que eu vivo enquanto artista

foto Adriana Lopes

ldquo() eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila ()rdquo

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

ldquoProcuro natildeo ter preconceito com as coisas com as danccedilasrdquo

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

Agradecimentos

Casa das RosasJackson Oliveira

Dirceu Rodriguespoiesisorgbr

Samuel MendesRichard MeloMarcos Buiati

Guto MunizAdriana LopesCarlos Bozelli

Murilo de Paula

A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista 37 - Bela Vista (Satildeo Paulo - SP)httpwwwcasadasrosas-sporgbr

lugares e danccedilas um projeto de Andreacute Bern para ctrl+alt+danccedila

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Page 5: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

ter vivido na moradia comido no bandejatildeo tido amigo na Geografia na Educaccedilatildeo na Histoacuteria na Antropologia nos momentos de crise ter encontrado pessoas de outras aacutereas que viviam a mesma coisa A gente conseguia conversar confluir e se ajudar a entender esses processos E eu sempre nessa coisa qual eacute a minha turma qual eacute a minha danccedila o que eu quero dizer E sempre sendo cobrada Laacute se cobrava muito isso Eu era sempre a que natildeo ia pro padratildeo Eu natildeo tinha o perfil do padratildeo e aiacute comeccedilam a vir os estereoacutetipos que tambeacutem existem na danccedila contemporacircnea na danccedila moderna Fico me perguntando se realmente tudo eacute pra todo mundo O que cabe o que natildeo cabe Eacute ruim natildeo caber em nada Por eu ser quem eu sou as pessoas queriam me enquadrar nas danccedilas brasileiras ldquoEacute sua carardquo Por que Porque eu sou preta [risos] No comeccedilo eu natildeo entendia e meu corpo natildeo respondia assim Mas depois comecei a natildeo ligar pro que as pessoas falavam e queriam de mim Peraiacute eu tenho que negar a minha histoacuteria que fiz baleacute jazz que eu tenho um coacutedigo impregnado em mim Natildeo daacute pra negar o que a gente eacute o que forma a gente neacute Depois de trecircs anos no auge da crise de-cidi trancar a disciplina de teacutecnica pra natildeo me formar em quatro anos Nesse meio tempo fiz mil disciplinas no teatro achando que ia pres-tar Artes Cecircnicas No teatro eu conseguia ser quem eu era sem julgamentos Querendo ou natildeo o mundo da danccedila eacute muito tradicionalis-ta Eacute difiacutecil achar pessoas que formam e tecircm a cabeccedila mais aberta Adoro as pessoas que nos formaram mas existe uma dificuldade de aceitar aquilo que estaacute fora do padratildeo fora das regras jaacute postas Depois de trecircs anos eu decidi realmente arriscar e natildeo seguir a minha turma Eu natildeo sou uma turma Lembro daquilo que escutei a Morena [Paiva] falar neacute Realmente pra existir coletivo tem que ter indiviacuteduo O in-diviacuteduo tambeacutem natildeo existe sem o coletivo Soacute que eu natildeo podia me anular pra seguir aque-la turma que natildeo vivia o que eu vivia que natildeo saiu de onde eu saiacute Fui fazer a minha histoacuteria Foi quando eu comecei a ficar mais calma mais feliz a descobrir de fato o que eu que-ria pesquisar que eram as danccedilas de terreiro Cheguei a essa conclusatildeo Danccedilas brasileiras

tambeacutem mas eacute muito amplo falar que eu en-tendo de cavalo marinho boi-bumbaacute tambor de mina jongo tambor de crioula carimboacute catira eacute muito muito amplo Nessa inves-tigaccedilatildeo sobre danccedila de terreiro vendo que tambeacutem era importante estudar as questotildees teacutecnicas de corpo que estatildeo para aleacutem da esteacutetica comecei a chegar a essas danccedilas ligadas ao Candombleacute Foi quando escrevi a minha pesquisa de iniciaccedilatildeo cientiacutefica Den-tro da disciplina de Danccedilas do Brasil eu jaacute fui afunilando a minha pesquisa pra isso Treinei muito capoeira especialmente capoeira ango-la Como diz um mestre aqui em Satildeo Paulo comem no mesmo prato o samba a capoeira e o Candombleacute Entatildeo fui pras danccedilas de ter-reiro e pras danccedilas ligadas ao Candombleacute de Angola Tecircm caracteriacutesticas muito distintas o Candombleacute Jeje e o Ketu E aiacute fui de novo pras aacuteguas pras danccedilas que eu queria comeccedilar a pesquisar a entender As aacuteguas do mar as danccedilas de Kayaia de Kaitumba O proje-to nem tinha sido aprovado ainda mas fui pra Salvador tentar conhecer os terreiros de Can-dombleacute ver a festa de 2 de fevereiro o mar Me encantei pela cidade me perdi literalmente pelas ruas de Salvador Fui parar em Cajazei-ras que eacute um bairro longe pra caramba [risos] E aiacute tambeacutem comecei a usar um pouco des-sa cara de preta da qual Salvador estaacute cheia pra passar despercebida pelos lugares Isso foi muito bom em Salvador porque enquanto eu natildeo abria a boca pra ldquofechar a portardquo [reforccedila o ldquorrdquo tiacutepico do sotaque do interior de Satildeo Pau-lo] as pessoas achavam que eu era baiana

foto Guto Muniz

ldquoEacute ruim natildeo caber em nadardquo

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Me possibilitou transitar pela cidade como eu nunca tinha feito em lugar nenhum Pra mim foi encantador uma experiecircncia 21 dias que eacute um nuacutemero muito simboacutelico pra quem vem da cultura de Candombleacute de onde eu voltei pra Campinas num outro tempo falando de outra maneira e toda extasiada com a coisa do mar do sol do cheiro de dendecirc de Salvador com a acolhida que eu tive de pessoas maravilho-sas do Opoacute Afonjaacute [casa tradicional de Can-dombleacute] do terreiro da minha avoacute-de-santo Foi quando se estreitou meu laccedilo com a cidade Eu pude realmente observar as danccedilas ligadas agrave pesquisa que eu queria Quando eu retorno fixo minha pesquisa num terreiro de Candombleacute Angola em Hortolacircndia o Inzo Musambu Hon-golo Menha a Casa do Arco-Iacuteris e comeccedilo a aprofundar essa minha pesquisa em torno das aacuteguas que aacuteguas satildeo essas o que eacute a aacutegua do mar o que satildeo as sereias de Angola Tem uma imersatildeo em Antropologia que foi super impor-tante mas eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila um registro mais de movimento mesmo Depois de um ano eu entrego esse trabalho de iniciaccedilatildeo [cientiacutefica] com algumas reflexotildees em cima da praacutetica da criaccedilatildeo de um trabalho que se chamou Epifanias e Alfazemas Infeliz-mente durou enquanto eu estava na faculdade no uacuteltimo ano Concomitantemente eu fiz parte de um coletivo de seis mulheres onde a gente tratou basicamente do que vem a ser mitologia pessoal num trabalho que se chama rios inter-mitentes Eu sempre briguei pelo caminho do meio Natildeo importa se eu estou pesquisando as danccedilas de Candombleacute ou a danccedila do [George] Balanchine eacute possiacutevel fazer esse diaacutelogo Uma natildeo eacute menos ou melhor do que a outra am-bas tecircm poeacutetica Claro cada uma com suas caracteriacutesticas Quando eu vou pesquisar uma danccedila de terreiro natildeo tem como eu soacute pesqui-sar a danccedila e esquecer todo o contexto que tem ali esteacutetico de simbologia E vice-versa As minhas orientadoras tanto da iniciaccedilatildeo como do trabalho de graduaccedilatildeo foram muito ge-nerosas e me permitiram fazer esse tracircnsito de informaccedilotildees esse diaacutelogo Fiquei muito fe-liz Depois disso quando eu comeccedilo a minha vida profissional mesmo eu opto por sair

de Satildeo Paulo Todo mundo vem pra caacute [suspi-ra eufoacuterica] porque eacute onde borbulha eacute onde a produccedilatildeo acontece Mas se vocecirc chega aqui e natildeo se identifica com essas produccedilotildees A Pina Bausch a Susanne Linke satildeo lindas mas eu posso natildeo me identificar com o que elas fazem natildeo querer fazer aquilo ou algo seme-lhante Entatildeo fui pra Belo Horizonte que jaacute tinha ouvido falar que eacute outro celeiro da danccedila E realmente eacute tem muitos grupos uma pro-duccedilatildeo que eacute distinta que eacute tatildeo bela quanto e completamente diferente de Satildeo Paulo uma outra dinacircmica Danccedilar num grupo que tinha uma proposta esteacutetica muito semelhante ao que eu vinha fazendo foi muito legal E pa-ralelamente a isso tambeacutem amadurecer en-trar num processo de trabalho de docecircncia de ensino de danccedila tambeacutem dei meu pon-tapeacute inicial nesse sentido em Belo Horizon-te Mais do que precisar ndash a maior parte de noacutes artistas vai dar aula porque precisa ndash eu gostava daquilo Eacute um exerciacutecio de pesquisa e de criaccedilatildeo artiacutestica tambeacutem Eacute muito louco mas quando eu dou aula consigo solucio-nar algumas coisas que satildeo difiacuteceis pra mim Querendo ou natildeo o que eu levo pra sala de aula eacute aquilo que eu vivo enquanto artista

foto Adriana Lopes

ldquo() eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila ()rdquo

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

ldquoProcuro natildeo ter preconceito com as coisas com as danccedilasrdquo

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

Agradecimentos

Casa das RosasJackson Oliveira

Dirceu Rodriguespoiesisorgbr

Samuel MendesRichard MeloMarcos Buiati

Guto MunizAdriana LopesCarlos Bozelli

Murilo de Paula

A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista 37 - Bela Vista (Satildeo Paulo - SP)httpwwwcasadasrosas-sporgbr

lugares e danccedilas um projeto de Andreacute Bern para ctrl+alt+danccedila

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Page 6: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

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Me possibilitou transitar pela cidade como eu nunca tinha feito em lugar nenhum Pra mim foi encantador uma experiecircncia 21 dias que eacute um nuacutemero muito simboacutelico pra quem vem da cultura de Candombleacute de onde eu voltei pra Campinas num outro tempo falando de outra maneira e toda extasiada com a coisa do mar do sol do cheiro de dendecirc de Salvador com a acolhida que eu tive de pessoas maravilho-sas do Opoacute Afonjaacute [casa tradicional de Can-dombleacute] do terreiro da minha avoacute-de-santo Foi quando se estreitou meu laccedilo com a cidade Eu pude realmente observar as danccedilas ligadas agrave pesquisa que eu queria Quando eu retorno fixo minha pesquisa num terreiro de Candombleacute Angola em Hortolacircndia o Inzo Musambu Hon-golo Menha a Casa do Arco-Iacuteris e comeccedilo a aprofundar essa minha pesquisa em torno das aacuteguas que aacuteguas satildeo essas o que eacute a aacutegua do mar o que satildeo as sereias de Angola Tem uma imersatildeo em Antropologia que foi super impor-tante mas eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila um registro mais de movimento mesmo Depois de um ano eu entrego esse trabalho de iniciaccedilatildeo [cientiacutefica] com algumas reflexotildees em cima da praacutetica da criaccedilatildeo de um trabalho que se chamou Epifanias e Alfazemas Infeliz-mente durou enquanto eu estava na faculdade no uacuteltimo ano Concomitantemente eu fiz parte de um coletivo de seis mulheres onde a gente tratou basicamente do que vem a ser mitologia pessoal num trabalho que se chama rios inter-mitentes Eu sempre briguei pelo caminho do meio Natildeo importa se eu estou pesquisando as danccedilas de Candombleacute ou a danccedila do [George] Balanchine eacute possiacutevel fazer esse diaacutelogo Uma natildeo eacute menos ou melhor do que a outra am-bas tecircm poeacutetica Claro cada uma com suas caracteriacutesticas Quando eu vou pesquisar uma danccedila de terreiro natildeo tem como eu soacute pesqui-sar a danccedila e esquecer todo o contexto que tem ali esteacutetico de simbologia E vice-versa As minhas orientadoras tanto da iniciaccedilatildeo como do trabalho de graduaccedilatildeo foram muito ge-nerosas e me permitiram fazer esse tracircnsito de informaccedilotildees esse diaacutelogo Fiquei muito fe-liz Depois disso quando eu comeccedilo a minha vida profissional mesmo eu opto por sair

de Satildeo Paulo Todo mundo vem pra caacute [suspi-ra eufoacuterica] porque eacute onde borbulha eacute onde a produccedilatildeo acontece Mas se vocecirc chega aqui e natildeo se identifica com essas produccedilotildees A Pina Bausch a Susanne Linke satildeo lindas mas eu posso natildeo me identificar com o que elas fazem natildeo querer fazer aquilo ou algo seme-lhante Entatildeo fui pra Belo Horizonte que jaacute tinha ouvido falar que eacute outro celeiro da danccedila E realmente eacute tem muitos grupos uma pro-duccedilatildeo que eacute distinta que eacute tatildeo bela quanto e completamente diferente de Satildeo Paulo uma outra dinacircmica Danccedilar num grupo que tinha uma proposta esteacutetica muito semelhante ao que eu vinha fazendo foi muito legal E pa-ralelamente a isso tambeacutem amadurecer en-trar num processo de trabalho de docecircncia de ensino de danccedila tambeacutem dei meu pon-tapeacute inicial nesse sentido em Belo Horizon-te Mais do que precisar ndash a maior parte de noacutes artistas vai dar aula porque precisa ndash eu gostava daquilo Eacute um exerciacutecio de pesquisa e de criaccedilatildeo artiacutestica tambeacutem Eacute muito louco mas quando eu dou aula consigo solucio-nar algumas coisas que satildeo difiacuteceis pra mim Querendo ou natildeo o que eu levo pra sala de aula eacute aquilo que eu vivo enquanto artista

foto Adriana Lopes

ldquo() eu quero eacute uma poeacutetica mais ligada agrave danccedila ()rdquo

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

ldquoProcuro natildeo ter preconceito com as coisas com as danccedilasrdquo

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

Agradecimentos

Casa das RosasJackson Oliveira

Dirceu Rodriguespoiesisorgbr

Samuel MendesRichard MeloMarcos Buiati

Guto MunizAdriana LopesCarlos Bozelli

Murilo de Paula

A Casa das Rosas fica na Avenida Paulista 37 - Bela Vista (Satildeo Paulo - SP)httpwwwcasadasrosas-sporgbr

lugares e danccedilas um projeto de Andreacute Bern para ctrl+alt+danccedila

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Page 7: lugares e danças · flexível sobre o que vem a ser dança, poética em dança. Na verdade, nas últimas semanas, cheguei à conclusão de que o lugar da minha dança é um lugar

ldquo() a gente quer dar um presente fazer uma homenagemrdquo

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Claro que tem alguns padrotildees que vocecirc tem que respeitar alguns paracircmetros coisas que vocecirc precisa trabalhar mas de um modo ge-ral eu consigo ter uma resposta um feedback da sala de aula pro que eu penso idealizo ar-tisticamente Quando eu volto pra Satildeo Paulo eu me vejo fazendo coisas distintas que tecircm essa face que te possibilita dialogar com a danccedila em acircmbitos esteacuteticos diferentes Vejo que algumas coisas que vivi no passado me ajudaram a me colocar no mercado de tra-balho aqui tanto em sala de aula ndash quando eu escuto ou vejo meu aluno aprendiz reproduzir coisas me dizer coisas eu lembro de como eu era quando adolescente ndash como enquan-to artista Eu cheguei aqui e estava afoita pra saber quem seriam os meus parceiros os meus pares neacute Sou muito ansiosa tive que aprender a ter muita paciecircncia Me liguei a um outro coletivo aqui a companhia do Ival-do Bertazzo Foi um ano e meio tendo que ser bailarina-inteacuterprete um exerciacutecio aacuterduo e f [risos] desculpa a palavra Vocecirc tem que ter a sensibilidade de entender o que o outro quer de dizer a fala do outro no seu corpo Natildeo eacute ser um robozinho que natildeo pensa eacute todo um exerciacutecio de lidar com a subjetividade alheia Pra mim essa experiecircncia foi muito bacana pra ver como eu era apta a me colocar de ou-tra maneira A gente tem esse costume de soacute dizer o que a gente quer do nosso jeito do nosso modo e eacute confortaacutevel E onde eacute que fica a zona de potencialidade quando a gente sai

do conforto Como eacute que a gente mexe com isso Tem essa coisa neacute seraacute que eu sou boa seraacute que natildeo Foi tambeacutem um termocircmetro pra saber como eacute o meu corpo como eu me colo-caria em algumas situaccedilotildees que pra mim eram de risco Mas aiacute passado um ano e meio vem a criadora querendo criar neacute [risos] dar vazatildeo pro que ela quer dizer Foi quando eu encon-trei Leo Gonccedilalves aqui na Casa das Rosas numa noite de poesia O poeta mineiro Ricar-do Aleixo veio lanccedilar um livro dele junto com a Mariana Botelho e me apresentou ao Leo Ele tambeacutem estava vindo de Belo Horizonte eacute poeta sempre fez trabalhos ligados agrave danccedila com outro artista de laacute Soacute que eu nunca cru-zei com ele quando morei na cidade Trocamos contatos e num belo dia ele me liga diz que foi convidado pra fazer um sarau aqui e me per-gunta se eu queria fazer uma intervenccedilatildeo com danccedila Eram poemas que tinham a ver com o universo dos orixaacutes da cultura bantu Eu topei e a gente comeccedilou uma parceria Isso era fi-nal de 2011 No dia 24 de novembro de 2011 a gente fez um ldquopocketrdquo [apresentaccedilatildeo curta] de 12 minutos aqui na Casa das Rosas Foi o embriatildeo do que se tornaria o Poemacumba Ao longo de 2012 a gente foi amadurecendo isso ele foi criando mais poemas eu criei mais danccedilas trouxemos mais elementos pra com-por A ideia era restaurar fazer uma releitura do que vinha a ser esse lugar do rito ligado aos nossos ancestrais bantu Assumir mesmo isso a gente quer dar um presente fazer uma ho-menagem Isso se ligou muito ao que eu vivi es-tudando butocirc Foi um ano que eu estudei com a Ana Chiesa da [Cia Teatro] Balagan Percebi o quanto o butocirc tem um pensamento que se liga com algo que eu reconheccedilo nas danccedilas iniciaacuteticas do Candombleacute Ela [Ana Chiesa] tambeacutem pesquisa cultura indiacutegena A gente conseguiu criar uns paralelos e ver que tem alguns fundamentos princiacutepios que satildeo muito parecidos que me alimentam poeticamente Aiacute veio o Poemacumba outras parcerias meu tra-balho enquanto docente Eu comeccedilo a assumir mais esse ano a danccedila negra contemporacircnea a danccedila afro-contemporacircnea e a trabalhar ten-do como base as danccedilas de Minkise e esse diaacutelogo com o que eacute isso aqui em Satildeo Paulo

foto Carlos Bozelli

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

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neacute nessa selva de pedra nesse contexto ur-bano Eu precisei me deslocar do Centro pra encontrar meus pares pra ver que eles estatildeo aiacute camuflados disfarccedilados tambeacutem dialogando criando outros espaccedilos Procuro natildeo ter pre-conceito com as coisas com as danccedilas Isso eacute chato faz com a que a gente natildeo enxergue com amplitude o que a danccedila pode te dar te permitir

AB Quem satildeo seus paresK Meus pares na verdade circulam por Satildeo Paulo ainda que muitos estejam mais afasta-dos Eles satildeo muito mais pares no sentido do diaacutelogo da troca dos encontros que vou ten-do na vida do que necessariamente enquan-to criaccedilatildeo A primeira pessoa que veio nesse meu caminho ainda em Minas Gerais foi a Luli Ramos Tem o pessoal do Espaccedilo Cachuera a Vanusia que tem um pensamento um tra-balho bem bacana Tem as Capulanas Cia de Arte Negra que eacute uma companhia a priori de teatro mas que como eacute um teatro negro o corpo fala muito Ficam laacute na zona sul Tem o pessoal com quem eu trabalho tambeacutem na zona sul que eacute da aacuterea da muacutesica da lite-ratura Inclusive um deles tambeacutem eacute de Minas Gerais morou em Belo Horizonte e veio pra Satildeo Paulo o Josiel que eacute escritor e tambeacutem trabalha com bordados lindo Tem a Baacuterbara que eacute uma menina que eu conheci e a gente troca muitas figurinhas Ela tem uma formaccedilatildeo que natildeo eacute da universidade que ela mesmo diz que eacute da vida Meu eacute uma pessoa que eu gosto muito uma parceira e tanto Tem as pes-soas que foram cruzando meu caminho com quem fui fazendo workshops aqui em Satildeo Pau-lo o pessoal da capoeira angola da danccedila de rua ndash laacute em Belo Horizonte eu cheguei a trei-nar um pouco com o pessoal da danccedila de rua

AB Usando a metaacutefora da aacutegua tatildeo pre-sente na sua fala pra onde o mar estaacute te le-vando no que se refere agrave criaccedilatildeo artiacutesticaK Acabei formando uma companhia com mais trecircs amigos A Nave Gris Cia Cecircnica pra cri-ar trabalhos que dialoguem danccedila teatro performance e o que mais tiver Somos artis-tas que vecircm dessas formaccedilotildees Ana Musido-ra Murilo de Paula ndash inicialmente tiacutenhamos

o Diogo Cardoso que hoje eacute nosso parceiro ndash e eu A gente jaacute fez uma performance que se chama Poeacuteticas do Desacontecer inspirada na obra do Manoel de Barros aqui na Casa das Rosas e depois no Parque da Luz Agora a gente taacute iniciando um processo de criaccedilatildeo de um trabalho cecircnico com base em danccedila no qual provavelmente muitos desses parcei-ros com quem eu venho dialogando vatildeo estar presentes Tem tambeacutem as pessoas que eu fui conhecendo no final do ano passado com quem eu quero trabalhar e que estatildeo pelo mun-do Eu cheguei agrave conclusatildeo de que me tornei uma cidadatilde do mundo ao mesmo tempo que natildeo sou daqui eu sou daqui E quero ser de laacute tambeacutem sabe Eu sou de Pindamonhangaba mas natildeo estou laacute Essa sou eu Uma das coisas belas de Satildeo Paulo de que eu gosto eacute que ela eacute uma cidade de todo mundo mas tambeacutem natildeo eacute de ningueacutem Um pouco triste mas pen-so na minha histoacuteria familiar na trajetoacuteria de vida da minha famiacutelia que eacute de diaacutespora Meu vocirc ajudou a construir essa cidade tambeacutem instalando canos pela zona leste Osasco nos anos sessenta sabe E hoje eu tocirc aqui querendo ou natildeo dando continuidade a esse trabalho Meu pai saiu do sul de Minas pas-sou por Belo Horizonte por vaacuterias cidades mineiras ateacute chegar ao interior de Satildeo Paulo e eu tambeacutem fiz esse trajeto A minha famiacutelia tem ancestralmente tambeacutem a diaacutespora em si Natildeo tem como negar de onde vecircm meus genes taacute na cara Tem coisas que natildeo daacute pra

foto Andreacute Bern

vocecirc apagar neacute Eacute e acabou As duas uacuteltimas geraccedilotildees da minha famiacutelia tambeacutem eacute uma histoacuteria de deslocamentos Pertencem a esse lugar que eacute o Brasil Gosto disso desse movimento Acho que isso alimenta a minha danccedila cada vez mais O dia que cessar o movimento [risos] natildeo vai ter mais danccedila

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