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Lucrécio. De rerum natura. Livro II, v. 1-61. LUCRÉCIO [Tito LUCRÉCIO Caro]. Da Natureza. Pref., trad. e notas Agostinho da Silva. Estudos de E. Joyau e G. Ribbeck. Porto Alegre: Globo,1962. p. 77. É bom, quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros *; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem. É bom também contemplar os grandes combates de guerra travados pelos campos sem que haja da nossa parte qualquer perigo. Mas nada há de mais agradável do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados pelas doutrinas dos sábios, donde se podem ver os mais errar por um lado e outro e procurar ao acaso o caminho da vida, lutar à força de talento, ter rivalidades e nobreza e esforçar-se, com trabalho de dias e de noites, por alcançar as maiores riquezas e apoderar-se do governo. Ó pobres espíritos humanos, ó cegos corações! Através de que trevas e perigos se passa o pouco tempo de vida! Não sente cada um o que a Natureza a gritos proclama, que esteja sem dor o corpo e goze a mente, fora de medo e de cuidado, de um agradável sentimento? Pouco é necessário, naturalmente, pelo que diz respeito ao corpo: tudo o que suprime a dor pode dar-lhe ao mesmo tempo numerosas delícias. E, entretanto, a própria natureza não exige nada mais agradável: se não temos

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Page 1: Lucrécio

Lucrécio.  De rerum natura. Livro II, v. 1-61.

LUCRÉCIO [Tito LUCRÉCIO Caro].  Da Natureza.  Pref., trad. e notas Agostinho da Silva.  Estudos de E. Joyau e G. Ribbeck.  Porto Alegre: Globo,1962.  p. 77.

    “É bom, quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os

rudes trabalhos por que estão passando os outros*; não porque haja qualquer prazer

na desgraça de alguém, mas  porque é bom presenciar os males que não se sofrem.  É

bom  também contemplar os grandes combates de guerra travados pelos campos sem

que haja da nossa parte qualquer perigo.

    Mas nada há de mais agradável do que ocupar os altos e serenos lugares fortificados

pelas doutrinas dos sábios, donde se podem ver os mais errar por um lado e outro e

procurar ao acaso o caminho da vida, lutar à força de talento, ter rivalidades e nobreza

e esforçar-se, com trabalho de dias e de noites, por alcançar as maiores riquezas e

apoderar-se do governo.

    Ó pobres espíritos humanos, ó cegos corações!  Através de que trevas e perigos se

passa o pouco tempo de vida!  Não sente cada um o que a Natureza a gritos proclama,

que esteja sem dor o corpo e goze a mente, fora de medo e de cuidado, de um agradável

sentimento?

    Pouco é necessário, naturalmente, pelo que diz respeito ao corpo: tudo o que

suprime a dor pode dar-lhe ao mesmo tempo numerosas delícias.  E, entretanto, a

própria natureza não exige nada mais agradável: se não temos em casa estátuas

douradas de jovens segurando na mão direita lâmpadas ardentes que dêem luz aos

banquetes noturnos, se a casa não refulge com a prata nem rebrilha como o ouro, se

não ressoam as cítaras pelas salas lacadas e douradas, não exigem os corpos grandes

bens, desde que estejam deitados sobre a branda relva, perto de um rio de água

corrente, à sombra de uma alta árvore, sobretudo quando o tempo sorri e a estação do

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ano adorna de flores as ervas verdejantes.  E as febres ardentes não se afastam mais

depressa do corpo por se estar deitado sobe tapetes bordados e sobre a rubra púrpura

do que por nos termos de deitar num pano plebeu.

    Por isso, visto em nada serem os tesouros úteis ao corpo, nem a nobreza nem a

glória de mandar, o que falta é pensar que também não são úteis ao espírito.  Ora, é

certo que o verem-se por acaso as legiões, cheias de ardor, simular a guerra no campo

de Marte, com reservas numerosas, providas de armas e igualmente animadas, ou ver

uma frota fazer-se ao largo com celeuma, em nada influi – para que fujam do espírito,

temerosas, as pávidas crendices, nem os temores da morte deixam o peito vazio e livre

de cuidados.  E, se pensarmos que tudo isto é ridículo e vão, o que é verdade é que os

terrores dos homens, e os cuidados pertinazes não temem o som das armas nem os

terríveis arremessos, e audaciosamente se metem entre reis e poderosos, não receando

os fulgores do ouro nem o brilhante esplendor de um vestuário de púrpura: por que

razão se há de duvidar de que só a inteligência o possa fazer, quando toda a nossa vida

se passa labutando entre trevas?

    Exatamente como trêmulos meninos que tudo receiam nas obscuras trevas, assim nós

tememos à luz do dia o que em nada é mais de recear do que as fantasias que

atemorizam os meninos no escuro.  E a este terror do espírito e a estas trevas, não 

afastam, não os raios do Sol, nem os luminosos dardos do dia: só o fazem o estudo da

Natureza e suas leis.

    Vamos então agora explicar** por que  ...”