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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem LUCIANA FERREIRA TAVARES CHICO BUARQUE “PARATODOS”: da banda que passa ao leite que se derrama Campos dos Goytacazes 2012

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE FLUMINENSE DARCY RIBEIRO Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem

LUCIANA FERREIRA TAVARES

CHICO BUARQUE “PARATODOS”: da banda que passa ao leite que se derrama

Campos dos Goytacazes 2012

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LUCIANA FERREIRA TAVARES

CHICO BUARQUE “PARATODOS”:

da banda que passa ao leite que se derrama

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Cognição e Linguagem.

Orientadora: Prof.ª Dra. Arlete Parrilha Sendra.

Campos dos Goytacazes 2012

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FICHA CATALOGRÁFICA

Preparada pela Biblioteca do CCH / UENF

Tavares, Luciana Ferreira

Chico Buarque “Paratodos” : da banda que passa ao leite que se derrama / Luciana Ferreira Tavares -- Campos dos Goytacazes, RJ, 2012.

140 f.

Orientador: Arlete Parrilha Sendra Dissertação (Mestrado em Cognição e Linguagem) – Universidade

Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Centro de Ciências do Homem, 2012

Bibliografia: f. 129 - 140

1. Música Popular Brasileira. 2. Buarque, Chico – Crítica e Interpretação. 3. Linguagem Musical. I. Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro. Centro de Ciências do Homem. II. Título.

CDD –

781-630981

009/2012

T231

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LUCIANA FERREIRA TAVARES

CHICO BUARQUE “PARATODOS”:

da banda que passa ao leite que se derrama

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Cognição e Linguagem.

Aprovada em 30 de março de 2012.

COMISSÃO EXAMINADORA:

_______________________________________________________________

Prof.ª Dr.ª Arlete Parrilha Sendra Universidade Estadual do Norte-Fluminense Darcy Ribeiro – UENF

Orientadora

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Eduardo Batista de Sousa

Universidade Estadual do Norte-Fluminense Darcy Ribeiro – UENF

_______________________________________________________________ Prof. Dr. Joel Ferreira Mello

Centro Universitário Fluminense (UNIFLU): Campus II – Filosofia de Campos

_______________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Luciana Affonso Gonçalves

Fundação Educacional de Macaé – FUNEMAC

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A meus pais. E a Philippe, filho querido.

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AGRADECIMENTOS

A todos que contribuíram para a realização deste trabalho, fica expressa aqui a

minha gratidão, especialmente:

À Professora Arlete Parrilha Sendra, pela orientação, pelo aprendizado e apoio em

todos os momentos necessários.

Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Cognição e Linguagem da

Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.

Aos meus colegas de classe, pela rica troca de experiências.

Aos bibliotecários, pela ajuda incondicional.

Aos meus queridos alunos do Colégio Estadual Dom Otaviano de Albuquerque,

pelo incentivo.

Ao professor Márcio, pelo carinho e generosidade.

Ao professor Frederico, pelos ensinamentos filosóficos.

Ao meu irmão, pela paciência.

A minha mãe, farol da minha caminhada.

Ao meu pai falecido, pela teimosia herdada.

Ao meu amigo Roberto, pela dedicação.

A minha amiga Rita, pelo companheirismo.

Ao meu amigo Tetsuo, pela solidariedade.

A minha amiga Ingrid, pelo desprendimento.

Ao meu filho, pela paz.

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Festa Imodesta (Caetano Veloso) Minha gente era triste e amargurada Inventou a batucada pra deixar de padecer. Salve o prazer, salve o prazer! Numa festa imodesta como esta vamos homenagear todo aquele que nos empresta a sua testa construindo coisas pra se cantar. Tudo aquilo que o malandro pronuncia que o otário silencia toda festa que se dá ou não se dá passa pela fresta da cesta e resta a vida. Acima do coração que sofre com razão a razão que volta no coração E acima da razão a rima e acima da rima a nota da canção bemol natural sustenida no ar. Viva aquele que se presta a esta ocupação: Salve o compositor popular! (HOLLANDA, Chico Buarque de. Literatura Comentada. São Paulo: Abril Educação, 1980, p. 8).

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RESUMO

O presente trabalho examina a trajetória histórico-social da Música Popular Brasileira –

MPB – e a “canção literomusical” de Chico Buarque. Pretendemos, através de uma visão

hermenêutica, demonstrar que a sonoridade brasileira teve seus primeiros acordes com o

ritmo africano que, em múltiplos desdobramentos, vem compondo nosso cenário musical.

Nosso enfoque será a música popular – Chico Buarque de Hollanda (1944) –, sua

linguagem híbrida, seu resgate de diversos momentos musicais, sua brasilidade e seu

contexto pós-moderno. Em extensão metodológica, destacaremos a contribuição da música

popular para a realização da proposta Modernista (1922) de atualização da cultura

brasileira. Enfatizaremos a análise das canções buarqueanas, sua tessitura de aderência:

palavra e melodia, conjuntamente. Utilizaremos também, como procedimento para

pesquisa, o aporte descritivo das obras: “A banda” (1966), “O velho Francisco” (1987),

“Paratodos” (1993), “Sonhos sonhos são” (1998), Estorvo (1991), Leite Derramado (2009),

ou seja, trabalharemos a linguagem voltada para o texto verbal e a voltada para o texto

musical. Objetivamos assim, estabelecer um diálogo entre música e arte, dentro da vertente

histórico-cultural, gadameriana, portanto, uma heterogeneidade de vozes do passado e

interlinguagens cancionais que se abrem para o futuro.

Palavras-chave: Música Popular Brasileira. Chico Buarque. Linguagem Híbrida. Brasilidade.

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ABSTRACT

The present study examines the historical-social trajectory of the Popular Brazilian Music

– PBM – and the song lyrics by Chico Buarque. We intend, through a hermeneutic view, to

show that the Brazilian sonority had its first chords with the African rhythm which, by

multiple unfoldings, has been compounding our musical scenery. Our focus will be the

popular music – Chico Buarque de Hollanda (1944) –, its hybrid language, its rescuing of

various musical moments, its Brazilian sense and its post-modern context. In

methodological length, we will highlight the contribution of the popular music to the

holding of the Modernist proposal (1922) of the Brazilian culture updating. We will

emphasize the analysis of the Buarqueanas’ songs, its weaving adherence: word and

melody, jointly. We will also use, as a procedure for research, the descriptive support of

the pieces of work: “A banda” (1966), “O velho Francisco” (1987), “Paratodos” (1993),

“Sonhos sonhos são” (1998), Estorvo (1991), Leite Derramado (2009), that is, we will

work on the language toward the sonorous text and the verbal one. We will object to

establish a dialog between music and art, within the historical-cultural side, Gadamer’s

one, therefore, a heterogeneity of past voices and song inter-languages which open

themselves to the future.

Key-words: Popular Brazilian Music. Chico Buarque. Hybrid Language. Brazilian.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

Compassos iniciais buarqueanos............................................................................................9

CAPÍTULO 1

Um Percurso Musical: dos lundus à sonoridade buarqueana...............................................18

CAPÍTULO 2

Alinhavando o texto, costurando a prosa.............................................................................39

CAPÍTULO 3

O menino Francisco e a banda.............................................................................................62

CAPÍTULO 4

Chico Paratodos....................................................................................................................76

CAPÍTULO 5

Sonhos sonhos são estorvo...................................................................................................92

CAPÍTULO 6

Ainda sobrou o leite nas memórias do meu coração..........................................................107

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Modulação em trechos de buarque.....................................................................................124

REFERÊNCIAS ................................................................................................................129

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INTRODUÇÃO

COMPASSOS INICIAIS BUARQUEANOS

Esta dissertação tem como intenção fundamental revisitar a trajetória histórico-

social (XVII-XX) da Música Popular Brasileira – MPB – e a “literomusicalidade” de

Chico Buarque. A relevância do tema se impõe por ser um resgate dos diversos momentos

musicais e por serem esses momentos, em mão dupla, presenças de nossa brasilidade que,

paralelamente, a retroalimentam. Uma brasilidade que não está atrelada a (uma) identidade

nacional, mas – como sublinham Renato Cordeiro Gomes e Heloísa Buarque de Hollanda

(1999) – um relato das cidades nas cidades, sem privilégios de regionalidades, ou seja, a

coexistência de múltiplas culturas urbanas no espaço a que chamamos, urbano: das cidades

centralizadas às multifocais, policêntricas, onde se desenvolvem outros novos centros.

Por compreendermos a simbiose cidade/cultura, cada vez mais flagrante nos

estudos culturais, elegemos o espaço verbo-musical buarqueano como texto representativo

do entrecruzamento histórico de raízes populares e eruditas. A hipótese defendida, neste

trabalho, nos remete a esta dupla estética: a popular – voltada para um diálogo com o povo,

trazendo à tona as raízes do Brasil, como em “Paratodos”, de 1993 e a erudita – voltada à

leitura verticalizada de sua obra no que tange à sua disposição poética e o seu desenho

melódico, o que podemos verificar em “A banda”, de 1966, prefácio de sua identidade

musical.

Utilizaremos como aporte teórico a hermenêutica gadameriana (2008), por

entendermos que ouvir nossa consciência histórica − que nos chega através de uma

pluralidade de vozes nas quais reverbera o passado −, revivifica a essência da tradição. A

investigação histórico-moderna mediada por nossas experiências permite que ouçamos

outras vozes − que mesmo silenciadas, ressoam do passado e ressoam o passado. Em nosso

roteiro metodológico, também privilegiamos conceitos semióticos − desenvolvidos por

Charles Sanders Peirce sob a abordagem de Lucia Santaella (2005) − como passaporte para

penetrarmos na linguagem verbo-musical.

Nossa pesquisa será desdobrada em seis capítulos – momentos – que apresentam,

respectivamente: um panorama sobre a criação, consolidação e disseminação de uma

prática cancional no Brasil; a obra artística de Chico Buarque de Hollanda; uma reflexão

sobre a aderência entre melodia e letra na música “A banda” de 1966; uma análise sobre a

aderência entre melodia e letra na música “Paratodos,” de 1993; a influência da música

“Sonhos sonhos são” (1998) no romance, Estorvo (1991); a influência da música “O velho

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Francisco” (1987) no romance, Leite Derramado (2009) − a incorporação das

manifestações verbo-musicais no contexto-pós-moderno.

Procuramos fazer uma visita aos temas, discussões e transformações realizadas em

torno das raízes da música popular, mais precisamente entre a vertente do samba e da bossa

nova, identificando a sonoridade de Chico Buarque de Hollanda. Tendo como referências

as obras de Luiz Tatit, Affonso Romano de Sant’Anna, José Miguel Wisnik e José Ramos

Tinhorão, procuramos dar continuidade às pesquisas desenvolvidas no âmbito literário

rumo a uma fenomenologia musical.

Para identificarmos a sonoridade de Chico Buarque de Hollanda foi feito um breve

histórico sobre a origem do samba, sua evolução e inter-relacionamento com a música

estrangeira – o jazz – e, consequentemente, a criação de um ritmo genuinamente brasileiro

– a bossa-nova – que engajada no contexto pré e pós-1964, adquiriu a forma e a estrutura

das canções de protesto.

Ressaltaremos que com o impulso dado à indústria fonográfica, o samba perdeu sua

vertente crítica e carnavalesca, ganhando assim, um aspecto intimista em que o tema do

amor passa a ter um caráter sentimental; por isso, o samba dessa fase era conhecido por

samba-canção. Esse período fez com que o samba se tornasse matéria-prima do tipo

exportação.

Mostraremos que em meados de 1950 – em decorrência da evolução natural do

samba-canção – surgiu uma nova batida rítmica, descontínua, nos redutos da classe média

carioca. Sob a influência de Tom Jobim (1927-1994) e João Gilberto (1931), a bossa-nova

passou a definir uma nova maneira de tocar.

Focaremos que a bossa-nova não é a negação da música popular anteriormente

realizada no Brasil, à medida que apenas decantou a canção brasileira de qualquer

característica muito acentuada, até mesmo dos procedimentos virtuosísticos da música

norte-americana, reprogramando em seu artesanato impecável de violão e voz a gênese de

todos os estilos, passados e futuros.

Seguindo essa proposta, retrataremos que após o período inicial (1958-1962), as

músicas da bossa-nova − temática leve e intimista − modificaram seu repertório e passaram

a acompanhar o contexto político da época. Instaurando-se assim, o estado de contestação,

conhecido como corrente de “samba participante.” Essa nova tendência da bossa-nova –

político-social – contribuiu com o ideal de renovação ideológica, justamente por sua

possibilidade de penetração nas massas.

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Demonstraremos que a música popular contribuiu para realizar a proposta

Modernista de atualização da cultura brasileira. Dentro de um projeto literário, a

originalidade do Modernismo possibilitou uma experimentação formal, usou de uma

linguagem de prevalência inventiva, visualizou uma concepção crítica do real, documentou

uma autenticidade nacional e um substrato de consciência ideológica, elementos que

viriam confluir e atuar, em coesão poética, junto à MPB.

Salientaremos que a música popular, a partir de 1922, inaugura uma nova fase,

devido, justamente, à interinfluência com o Movimento Modernista. Desse contato,

surgiriam múltiplas linguagens – conforme a divisão didática de Affonso Romano – que

convergeriam para dois tipos de disposições poéticas:

a) Poética do Centramento: constituída pela mimese consciente voltada para a

cópia da realidade e pela paráfrase. Nessas configurações poéticas o

sobredeterminante é o referente externo, tanto a oralidade da tradição

quanto dos escritos. As duas se definem como uma transcrição do real e

acham-se envolvidas com a ideologia na qual se centram e a qual procuram

reproduzir especularmente num universo de infinitude-fechada. A

linguagem que se desdobra nesse universo fechado é a linguagem do

Mesmo;

b) Poética do Descentramento: representada pela mimese inconsciente e pela

paródia. Elas são um corte com o real. O referente é aprisionado. A mimese

se apodera da tradição escrita e dela se afasta, procurando uma nova sintaxe,

ordenando-a de modo diferente da realidade. A linguagem que se desdobra

nesse universo aberto é a do Outro.

Pautaremos no princípio – já defendido por Teixeira Coelho em sua obra, Moderno

Pós Moderno (2001) – que qualquer análise sobre obras artísticas contemporâneas precisa

ser integral e não parcial. Não considerar o período modernista como um fato cultural e a

modernidade como a consciência deste fato, é compreender o moderno pela metade,

reivindicando apenas um dos polos da modernidade, o da inovação, deixando de lado o

outro, sem o qual a modernidade não vinga: o da tradição. Por isso, reivindicaremos as

estruturas didáticas de Affonso Romano – já citadas anteriormente – para embasarmos

nossa hipótese defendida: Chico Buarque opta por uma dupla estética: de um lado, entra

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em contato com o imaginário popular através do ritmo e da história, como pano de fundo

de suas narrativas musicais; de outro, pela riqueza melódica e contextualização de sua

letra, bem como o universo ficcional de seus romances, atinge a esfera da erudição.

Operando nesses dois campos, simultaneamente, as obras artísticas de Chico

Buarque invadem a esfera popular sem, contudo, apelar para os meios de comunicação de

massa − generalização do kitsch, do mau gosto e do vulgar, ainda que tragam um estado

geral de desestetização − e, tão pouco, perfazem uma arte, altamente, estetizada, onde

apenas o intelectual possa apreciá-la. Nesta simbiose, a obra projeta-se como o espaço da

diferença, portanto, da democracia, abarcando um diálogo da convergência de leituras

diversificadas e diversificáveis.

Essa tendência estética buarqueana encontra amparo no discurso pós-moderno de

decomposição da arte áurica por uma nova cultura, em prol de uma hibridização em que o

elevado e o popular instruem-se mutuamente. O universo pós-moderno não é de

delimitação, mas de mistura, de celebração de cruzamento, do híbrido, do pot-pourri.

Assim, o pós-moderno figura como um índice de mudança crítica na relação entre

tecnologia avançada e o imaginário popular.

Nessa perspectiva pós-moderna, podemos inferir que a visita ao mundo popular era

uma constante desde os tempos de Anacleto de Medeiros (1866-1907), Chiquinha Gonzaga

(1847-1935) e Ernesto Júlio de Nazareth (1863-1934) e ainda persistiu com todo vigor nas

partituras de Villa-Lobos (1887-1959) que conviveu com chorões, seresteiros e sambistas

de sua época, apenas confirmando a tradição da via erudito-popular. A celebração do

cruzamento sociocultural, a mistura de ritmos e melodias já marcava a posição de alguns

artistas na ambiência vanguardista e, numa leitura hermenêutica, pós-vanguardista.

Será neste cenário, que enfatizaremos a análise das canções buarqueanas, sua

linguagem híbrida, seu discurso circular: a palavra, a história e o ser. Obra que gravita,

poeticamente, na linguagem e se mimetiza nesse painel literário. Literatura esta, que recria

uma nova realidade na tessitura da escrita contemporânea, tornando-se um texto plural.

Aliando-se ora ao eu da enunciação do texto musical, ora ao eu da enunciação do texto

narrativo, entre a realidade subjetiva e a objetividade crítica, o artista Chico projeta, na

diversidade de temas e personagens, um universo para todos: do ritmo à melodia, do

popular ao erudito, a leitura de suas obras perfazem uma heterogeneidade sociomusical.

Por incorporar as fronteiras artísticas de outrora num novo âmbito cultural ampliado,

ajuda-nos a reavaliar nossas antigas categorias críticas e avaliativas (fundadas

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precisamente na radical diferenciação entre o modernismo e a cultura de massa) numa

perspectiva menos funcional.

Nossa ideia básica partiu de uma interpretação contextualizada da música brasileira

que, desde o século XVII, vem desenvolvendo um modo de dizer singular em suas

canções. Entre o lundu, de origem fincada nos batuques e nas danças que os negros

trouxeram da África e aprimoraram no Brasil, e a modinha, cujo caráter melódico evocava

trechos de operetas europeias – um gênero apontando para os terreiros e o outro para os

salões do século XIX – constituiu-se a canção do século XX. De modo que um estudo

analítico torna-se necessário para que possamos compreender a poiesis musical de Chico

Buarque de Hollanda. Poiesis nascida de uma musicalidade pensante, configuradora de

uma discursividade literária constituidora de um fazer cultural onde história e ficção

interagem para dar voz à imaginação. A metáfora que constitui o procedimento literário

buarqueano − fundamento mimético ou recriação de uma nova realidade − opera-se no

signo literário articulador de uma realidade vivencial: o repensar do ser do homem, suas

buscas e descaminhos: o velar e des-velar de seu caminhar errante.

As obras potencializadoras de memórias e deflagradoras de uma narratividade lírica

será o espaço privilegiado que vestirá sua melodia e seu texto ficcional para falar do

extremamente essencial – “o tempo”. Nada melhor do que a música que é, antes de tudo,

uma arte do tempo.

No sentido de esclarecer o tema que move nosso pensar, bem como gravita nas

manifestações artísticas buarqueanas acima citadas, estruturamos os capítulos de nossa

pesquisa da seguinte forma:

Capítulo 1: “Um Percurso Musical: dos lundus à sonoridade buarqueana” –

buscaremos esclarecer que a criação de um ritmo brasileiro aconteceu, no

século XVII – com a chegada dos africanos. Ritmo que invadiu todos os setores

urbanos da sociedade da época e se manifestou sobre a forma de um gênero

musical: os lundus. Mostraremos como se difundiram as modinhas, no século

XVIII – acompanhadas pelo fundo rítmico dos batuques e das inflexões da fala

cotidiana – e seu intercâmbio cultural. Identificaremos a disseminação, no

século XIX – com o aparecimento do gramofone – de uma prática cancional,

impulsionando os sambistas a compatibilizar a entoação da fala ao canto,

convocando a melodia entoativa das frases para produzir ênfase no fluxo

discursivo, sem outro tratamento especial que não o exigido pelo texto verbal e,

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por último, apontaremos a consolidação, no século XX, das matrizes da bossa

nova, revolucionando, esteticamente, a música artística, com a elaboração da

harmonia;

Capítulo 2: “Alinhavando o texto, costurando a prosa” – constitue-se de um

diálogo com a vida e a obra de Chico Buarque de Hollanda, seus primeiros

contatos na adolescência com o violão e o rádio, a aproximação com seus

eternos parceiros musicais, a influência da literatura em suas composições e os

reflexos da figura paterna em sua escritura. Os princípios norteadores de Sergio

Buarque de Hollanda – a existência e seu termo enquanto acontecimento

histórico – acompanham a escrita buarqueana como possibilidade de reencontro

com o passado e com o presente no instante da sucessão dos fatos envolvidos e

enovelados por uma narrativa que teima em reconhecer no encantamento da

palavra os limites precários da própria vida. Precisaremos analisar o processo

de criação buarqueano, seu funcionamento, sua relação com o tormento, a

angústia e a insônia. É nesse turbilhão de emoções fortes que ele tece a matéria-

prima da sua criação. O elo entre o abismo e a salvação. Transcreveremos os

depoimentos de Chico Buarque sobre seu processo criativo a fim de que

possamos revelar a sua concepção criativa: escrever é diferente de compor. A

dicotomia entre o Chico Buarque escritor e o Chico Buarque compositor − uma

realidade no processo criativo do artista;

Capítulo 3: “O menino Francisco e a Banda” – trataremos da canção, “A

banda” (1966), pelo viés mítico, como espaço da consolidação intersubjetiva

propiciada pelo autor-cantor para a agregação dos afetos. Ressaltaremos que a

expressão simbólica cria a possibilidade da visão retrospectiva e prospectiva,

pois determinadas distinções não só se realizam por seu intermédio, mas ainda

se fixam como tais dentro da consciência. O que uma vez foi criado, o que foi

salientado do conjunto das representações, não mais desaparece se o som verbal

lhe imprime o seu selo, conferindo-lhe um cunho determinado. Nesse sentido,

nossa leitura englobará a aderência da melodia à letra, demonstrando que Chico

Buarque se utiliza de um ritmo popular – a marchinha – como elemento

simbólico da comunhão coletiva, mas a enriquece, musicalmente, ao enfatizar,

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na tessitura da canção, sofisticadas melodias que, coadunadas ao texto verbal,

configuram instantes, harmoniosos.

Capítulo 4: “Chico Paratodos” – focaremos a influência da música “Paratodos”

(1993) como símbolo do imaginário coletivo onde o compositor utilizando-se

de um ritmo regional – o baião – descreve a herança musical de seu povo,

considerando o espaço de experiência do passado na reinscrição do horizonte

de expectativa do futuro, de modo a projetar, pela sequência de acordes

musicais, o entrelaçamento de diferentes gerações. Ressaltaremos que a história

baseia-se no fato de que somos afetados pela história e afetamos a nós mesmos

pela história que fazemos, pois nossa ego-história, é justamente esse vínculo

entre a ação histórica e um passado herdado que preserva a relação dialética

entre horizonte de expectativa e espaço de experiência. A música será a

mediação aberta para se pensar essa herança musical de recepção do passado,

vivência do presente e futuro inacabado na trajetória cancional buarqueana;

Capítulo 5: “Sonhos sonhos são estorvo” – focaremos a influência da música

“Sonhos sonhos são” (1998) em seu romance, Estorvo (1991), demonstrando

que as metáforas utilizadas por Chico Buarque desestabilizam os signos

linguísticos de modo a romper as convenções ideológicas operadas na

linguagem, possibilitando uma desconstrução do significante. Nesse sentido,

nossa investigação englobará o des/cobrir as múltiplas camadas de sentido que

permeiam este invólucro narrativo. Percorreremos nesta obra, a técnica

romanesca utilizada por Chico Buarque, o olho mágico – seu caráter especular

– como característica presente da escolha de uma perspectiva estética, que

medeia, respectivamente, na estrutura cíclica da narrativa a deformação da

imagem processada: processo de inversão, ou melhor, fusão dos contrários.

Dispondo desse poder inquietante de lidar com as palavras, as utiliza como sua

matéria, não apenas desentranhando sua musicalidade, mas extraindo dela o

máximo de possibilidades, em seu jogo recíproco com as demais; e, por fim,

Capítulo 6: “Ainda sobrou o leite nas memórias do meu coração” – trataremos

da narrativa e do ato de recontar, que geralmente se encontra fragmentado e

disperso em diversas formas, sob as quais estão os rastros da memória. Desse

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modo, pretendemos enfatizar as memórias afetivas experienciadas pelo

narrador-personagem de Leite Derramado, enquanto modo de

autocompreensão de sua história e de seu tempo. Dentre as várias

interpretações hermenêuticas de tempo, nos concentraremos no tempo da

narrativa ficcional, isto é, um tempo que pode ser estendido pela cadeia da

memória e prolongado pela imaginação porque contar a história de uma vida

verídica ou fictícia que um sujeito conta de si mesmo é apenas, uma identidade

narrativa. Nosso entendimento sobre tempo se insere nos fundamentos

filosóficos de Paul Ricoeur.

Acreditamos que o ritmo da linguagem e a melodia das palavras revelem o

significado último de todo ser de linguagem, fundamento de todo dizer poético: a verdade

do homem, a verdade da obra literária buarqueana. Apesar de sabermos que toda obra de

arte é inacabada, confiamos que a nossa leitura, embora relativa, ultrapasse os objetos que

estão mais além das palavras. E o que está além das palavras é o texto, texto este que não é

composto apenas de linhas, mas também das entrelinhas, dos seus vazios, da

discursividade, do vigor de ler.

Ler Chico Buarque é acompanhar sua capacidade de se transportar, de não ter pele,

de viajar e entrar no outro. Sem vontade de estabelecer limites rígidos entre fantasia e

verdade, alça voo no corpo dos personagens que vai criando em sua obra. Obra que vem

acompanhando a mutação do ciberespaço cultural, delineando o desaparecimento de uma

atmosfera ingênua e impregnada de esperança – que as letras dos anos 60 projetavam no

horizonte – ao surgimento de uma melodia recorrente, como a indicar um tempo presente

sufocado e instantâneo, que se autoconsome no liquidificador de imagens que vão sendo

permutadas e embaralhadas até o transtorno total de seu espaço pós-moderno.

Espaços vinculadores desses mal-estares, aflições e ansiedades típicos do mundo

contemporâneo – resultante do gênero de sociedade que oferece cada vez mais liberdade ao

preço de cada vez menos segurança. Mal-estares que nasceram da liberdade, em vez da

opressão. São estas, as características presentes nas narrativas ficcionais buarqueanas – a

capacidade de simplificar a desnorteante complexidade, selecionar um grupo finito de atos

e personagens na infinda multiplicidade, reduzir o infinito caos da realidade a proporções

intelectualmente manejáveis, compreensíveis e evidentemente lógicas, apresentar o

contraditório fluxo de acontecimentos como uma narrativa com um enredo interessante de

se ler –, que parecem talhadas sob medida para os descontentamentos pós-modernos: das

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aflições e sofrimentos dos homens e mulheres, aturdidos pela escassez de sentido,

porosidade dos limites, incongruência das sequências, volubilidade da lógica e fragilidade

das autoridades.

Pretendemos, ao final desta pesquisa, poder considerar que as obras verbo-musicais

buarqueanas problematizam em sua produção artística, a condição humana, no que ela tem

de mais inquietante: o ser humano à procura da verdade, tentando redimensionar sua

presença enquanto ser pensante e desse modo, poder escapar da experiência nadificadora

de ser pensado, conferindo, em sentido amplo, significado atemporal e, em sentido estrito,

profunda comunhão com a angústia emergente da contemporaneidade.

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CAPÍTULO 1

UM PERCURSO MUSICAL: DOS LUNDUS À SONORIDADE BUARQUEANA

A presença dos africanos no Brasil, início do século XVII, trouxe para o nosso país

o vírus da escravidão – vírus que como teias envolveu a terra brasiliense – que dele ainda

não se libertou. Arrancados de sua geografia física e humana, esses homens, tentaram

reconstruir sua identidade perdida nos estranhos cenários da terra desconhecida. Perdendo,

compulsoriamente, alguns elos de suas práticas cotidianas, pela dança e com a dança

invocavam pelo canto e com o canto suas entidades espirituais, e com elas revitalizavam

seus batuques, orações que os irmanavam na religião, alimentavam sua resistência e os

faziam produtores de alegria. Cantando, os negros elevavam suas vozes a seus deuses. E

cantando, amenizavam o banzo que os envolvia. Desde sempre, cantar torna a vida mais

leve, torna mais suave a dor de viver. Esta presença – marcada pelo canto e pela dança –

penetrou pelos largos espaços da Casa Grande, ora tornando-se objeto descartável de uso e

de abuso, ora elemento alavancador da economia “dos coronéis”.

Segundo Luiz Tatit (2004:22), foi dos batuques voltados para o lazer, mas ainda

repletos de signos religiosos e canto responsorial1, que nasceram as principais diretrizes da

sonoridade brasileira. Vendo lascividade no gingar dos corpos, esses ritmos e sua

coreografia incomodaram os costumes europeus. Foi em tempos de Inquisição, que a

umbigada tem sua origem: dança com a finalidade estrita de antever, com representações

alegóricas, as cenas amorosas que sucedem à cerimônia do casamento.

Pode-se observar que da energia da terra aos gestos sublimes, o que se verifica

nesses quinhentos anos de Brasil, é um distanciamento das celebrações e uma maior

aproximação com o corpóreo, ou seja, o corpo que coreografava os rituais aos deuses,

coreografava também os rituais de seus apetites carnais.

Na história da música brasileira, é passível de visualização um ethos musical,

resultante de uma qualidade mimética e de uma potencialidade ética, onde a capacidade de

infundir ânimo e potencializar virtudes do corpo preponderou sobre a instância do espírito.

Essas considerações nos remetem à relevância do poeta barroco, Gregório de Matos

Guerra (1636-1695) e sua produção híbrida entre literatura e expressão oral – retratando

1Espécie de diálogo de uma voz solo com o coro (Expressão empregada por J. R. Tinhorão, Os Sons dos Negros no Brasil, São Paulo: Art Editora, 1988, p. 46).

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aspectos religiosos, satíricos e jogos obscenos2 da cidade de Salvador e de outros centros

urbanos e rurais do Recôncavo –, dando mostras de que um gênero inusitado, ainda

embrionário, se formava no Brasil.

Para Tinhorão (1998:75), a contribuição do poeta barroco é imprescindível para a

leitura desse momento. Foi através de seus versos, que tivemos informações sobre os mais

diferentes tipos de diversões e danças dos primeiros núcleos sociais de vida urbana do

Brasil3, demonstrando, assim, o intercâmbio de influências coreográfico-musicais,

comprovadamente verificado entre Brasil e Portugal, como podemos inferir pela

chansoneta:

Ao som de uma guitarrilha, que tocava um colomim [curumim, menino índio] vi bailar na Água Brusca As Mulatas do Brasil: Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi! Não usam de castanhetas, por que cós dedos gentis fazem tal estropeada, que de ouvi-las me estrugi: Que bem bailam as Mulatas, que bem bailam o Paturi.4

Pela descrição dessa dança de mulatas, podemos inferir que, naquela época, já se

dançava – na área rural – castanholando com os dedos. A característica do estalar de dedos

própria do fandango ibérico, apontada no sexto verso5 como paturi, remete-nos à

umbigada, vista em festas de Salvador – em homenagem à Nossa Senhora do Amparo.

Essas danças reunidas fariam surgir no século XVIII, o lundu. 6

Apoiando-nos ainda em Luiz Tatit (2004:25), diremos que em meados do século

XVIII, assistia-se à “cancionalização” dos batuques africanos fortalecida, nas rodas

musicais, pelo aumento da participação de mestiços e brancos das classes menos

2 Usamos a palavra “obsceno” em sua etimologia: obs-cena – o prefixo nos traz o sentido semântico de fora; em obsceno, lemos aquilo que está fora da cena, fora do campo conceitual do consenso sociocultural. (cf. entendimento da professora Arlete Sendra Parrilha). 3 “Núcleos sociais, ainda estreitamente ligados à área rural não apenas pela proximidade dos limites, mas pela sobrevivência, na própria cidade, de roças e até de engenhos” (cf. TINHORÃO, J. R. História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: Ed. 34, 1998, p. 73). 4 Ibidem, p. 76. 5 Para atender às discussões em torno da MPB, se suas letras são constituídas de versos, nesse caso poesia, ou se essas mesmas letras devem ser vistas como composições musicais, usaremos, neste caso, ora versos, ora linhas. 6 Ritmo de frases curtas e sincopadas que deram origem a dois tipos de canções: o lundu de salão (que os compositores de escola transformariam ainda no século XVIII em quase árias de ópera) e o lundu popular dos palhaços de circo e cançonetistas do teatro vaudevilesco, de fins do século XIX e início do século XX (cf. TINHORÃO, J. R. op. cit., p. 103-106).

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favorecidas. Sem perder o fundo rítmico dos batuques, agora havia, também, a melodia do

canto para descrever o sentimento amoroso, melodias, muitas vezes, convertidas em

refrãos. Esse batuque, em termos de relações qualitativas, era envolvido em fluxos de

energia:

(...) acumulação, descarga e recuperação. Assim, a acumulação ou arsis caracteriza-se por um aumento de tensão ou excitação que prossegue até um determinado momento, quando o limite máximo de tensão é atingido, ocorrendo a descarga ou thesis. Esta é seguida de uma fase de relaxamento ou stasis, que prepara uma nova fase de acumulação, e assim sucessivamente. Esse movimento cíclico só é possível pela operatividade de uma lei, a lei do ritmo (COKER apud SANTAELLA, 2005:172). (grifos do autor)

O primeiro caso de influência de um artista brasileiro em setores da sociedade

portuguesa deu-se com Domingos Caldas Barbosa7, autor e intérprete de lundus e

modinhas8. Este artista representou a configuração do tripé9 – ritmo, melodia e inflexões

românticas – sobre o qual veríamos erigir, no século XX, a canção popular, que invadiu

através dos meios de comunicação de massa todas as faixas sociais. Essas características

atravessaram o oceano e foram se exibir em Lisboa:

Nós lá no Brasil A nossa ternura A açúcar nos sabe, Tem muita doçura. Oh! se tem! tem.

Tem um mel mui saboroso É bem bom, é bem gostoso.

Ah manhã, venha escutar Amor puro e verdadeiro, Com preguiçosa doçura, Que é Amor de Brasileiro.10

7 Filho do português Antônio de Caldas Barbosa e de uma escrava angolana alforriada, Antônia de Jesus. Domingos Caldas Barbosa nasceu em terra carioca em 1740. Morreu no dia 9 de novembro de 1800, no palácio do Conde de Pombeiro, em Bemposta, Lisboa, sendo sepultado na igreja de Nossa Senhora dos Anjos (cf. SEVERIANO, J. Uma história da música popular brasileira: das origens à modernidade. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 13-16). 8 “A modinha teria nascido como gênero de canção erudita em meados do século XVIII em Portugal, como variante das modas portuguesas que se integravam à categoria geral das cantigas e, após sua banalização durante o Império por músicos de fora, professores, virtuoses, comerciantes e biscatistas, principalmente vindos na esteira das companhias líricas, acabaria por vir a confundir-se, às vezes integralmente, com a melódica geral da popular” (cf. ANDRADE, Mario de. apud TINHORÃO, J. R. op. cit., p. 126-127). 9 “Suas peças baseavam-se num aparato rítmico oriundo dos batuques, suas melodias deixavam entrever gestos e meneios da fala cotidiana, e, finalmente, suas inflexões românticas, expandindo o campo de tessitura das canções, introduziam certo grau de abstração sublime” (cf. TATIT, Luiz. O século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004, p. 27). 10 HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 61.

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Anunciava-se a consolidação de um gênero que vinha se formando desde o

encontro dos portugueses com o povo africano ao país. A obra de Domingos Caldas

Barbosa é considerada, por Jairo Severiano, o marco zero da música popular brasileira.

Seguindo um provável percurso de formação da Música Popular Brasileira – MPB11

–, temos, no século XIX, a figura emblemática de Francisca Edwiges Neves Gonzaga

(1847-1935), mais conhecida como Chiquinha Gonzaga, pioneira entre os artistas a levar o

choro12 para o piano. Foi ela, também, a responsável pela introdução do maxixe13 nos

palcos dos teatros, a bordo da revista musical “A Corte na Roça”, de 1885 – primeira

opereta com música escrita por uma mulher a ser encenada nos palcos brasileiros. Essa

atividade acabaria por se tornar a vertente mais importante de sua obra, consolidando seu

prestígio musical. Chiquinha Gonzaga deixou mais de trezentas composições, das quais

podem ser destacadas – o tango "Gaúcho” (1897), a opereta “Forrobodó” (1911), a canção

“Lua Branca” (1912), a marcha-rancho14 “Ó abre alas”. Com esta marcha composta em

1899:

Abre Alas, Que eu quero passar Eu sou da Lira, Não posso negar Ô Abre Alas, Que eu quero passar Rosas de Ouro é quem vai ganhar15,

Chiquinha antecipou, em quase vinte anos, a prática de se fazer música para o carnaval.

Aliás, a visita ao mundo popular, que já era uma constante desde os tempos de Anacleto de

Medeiros16 (1866-1907), ainda persistia com todo vigor em suas partituras: união do choro,

11 Convencionamos que a referência à Música Popular Brasileira será feita nessa pesquisa como MPB. 12 Pode-se assim dizer que os nossos choros primitivos eram polcas tocadas à moda brasileira, ou seja, polcas que incorporavam a síncope do batuque. Paralelamente, evoluiu de música dançante para música virtuosística, feita para ser ouvida e apreciada (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 34). 13 Descendendo ainda do tronco habanera-tango espanhol, adaptado à sincopação afro-brasileira, e com seu aparecimento ocorrido na década de 1870, o maxixe entrou para a história como a primeira dança urbana brasileira (cf. Ibidem, p. 30-31). 14 Foi em 1927, com Moreninha do pioneiro Eduardo Souto (1882-1942), gravada por Frederico Rocha, que a marcha-rancho ganhou autonomia como gênero praticado por compositores profissionais. SOUZA, Tárik de. Melodias elaboradas em meio à folia carnavalesca. Disponível em: <http://cliquemusic.uol.com.br/ materias/ ver/ marcharancho>. Acesso em: 29 mar. 2011. 15 GONZAGA, Chiquinha. Ô Abre Alas. Disponível em: <http:// www.letras.com.br/chiquinha- gonzaga/o - abre-alas>. Acesso em: 27 mar. 2011. 16 Filho de uma escrava liberta, Anacleto de Medeiros começou na música tocando flautim da Banda do Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro. Aos 18 anos foi trabalhar como aprendiz de tipógrafo na Imprensa Nacional, e ao mesmo tempo matriculou-se no Imperial Conservatório de Música. Nessa época já dominava quase todos os instrumentos de sopro, e tinha especial preferência pelo saxofone. Fundou, entre os operários da tipografia, o Clube Musical Gutemberg, iniciando aí sua função de organizador de conjuntos musicais.

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seresta17 e o samba de sua época, confirmando uma música de via erudito-popular (TATIT,

2004:21).

Da mesma forma que a música, as danças importadas, também, foram submetidas

ao processo de nacionalização e fundidas por nossos músicos populares a formas nativas

de origem africana, conhecidas pelo nome genérico de batuque. Foi assim que, na década

de 1870, nascia o tango18 brasileiro, o maxixe e o choro, ao mesmo tempo em que se

abrasileirava a técnica de execução de vários instrumentos, como o violão, o cavaquinho e

o próprio piano. Parentes próximos, os três gêneros, teriam em comum o ritmo binário e a

utilização da síncope afro-brasileira, além da presença da polca19, em sua gênese.

Em meio a esta síncope afro-brasileira, podemos depreender que o samba não

existiria se antes não tivesse existido o maxixe, o lundu e as múltiplas formas de samba

folclórico, praticadas nas rodas de batuque. A síntese de todas essas influências culminou

no samba urbano carioca, gênero musical binário, sincopado, fixado por compositores

populares. O samba nasceu, pode-se dizer, em agosto de 1916, no quintal da casa da baiana

Hilária Batista de Almeida (1854-1924), a Tia Ciata20 (SEVERIANO, 2008:69).

Segundo o historiador Edigar de Alencar, no livro Nosso Sinhô do Samba, uma

roda de batuqueiros, integrada por Donga (1890-1974), Sinhô (1888-1930), Germano

Lopes da Silva (1885-1933) e a própria Tia Ciata (1854-1924), criou, em noites sucessivas,

uma composição chamada “O roceiro”, que Donga (Ernesto dos Santos) registrou com o

título de “Pelo telefone” (1916):

O chefe da folia Pelo telefone manda me avisar Que com alegria Não se questione para se brincar Ai, ai, ai É deixar mágoas pra trás, ó rapaz

(DE MEDEIROS, Anacleto. Biografia. Disponível em: <http: //www.wikipédia.org/wiki/_de_Medeiros>. Acesso em: 15 jan. 2012). 17 No plano da nascente música popular urbana dirigida às camadas sociais mais amplas, começava a se formar, um movimento de interesse romântico dos eruditos pelas manifestações consideradas do povo; resultando assim, no aparecimento da modinha seresteira (cf. TINHORÃO, J.R. op. cit., p. 135). 18 Gêneros binários, muito populares na Espanha e na América Latina, no século XIX. O tango andaluz e a habanera cubana têm provavelmente origem em cantos remotos da África do Norte, levados pelos árabes para a Espanha e pelos negros para a Cuba (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 27). 19 Em meados do século XIX, chegou ao Brasil a polca, forma de música dançante que, juntamente com a valsa, predominaram nos salões do mundo inteiro até os primeiros anos do século XX (cf. Ibidem, p. 26). 20 Mãe-de-santo respeitada, Hilária foi confirmada no santo como Ciata de Oxum, no terreiro de João Alabá, na Rua Barão de São Felix, onde também ficava a casa de Dom Obá II e o famoso cortiço Cabeça de Porco (cf. Moura, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. FUNARTE, 1983, p. 20).

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Ai, ai, ai Fica triste se és capaz e verás21

É desse momento, o samba-enredo, criado sobre um tema histórico ou outro

previamente escolhido pelos dirigentes da escola para servir de enredo ao desfile no

carnaval; o samba-choro, de maior complexidade melódica e harmônica, derivado do choro

instrumental; e o samba-canção, de melodia elaborada, temática sentimental e andamento

lento, que teve como primeiro grande sucesso “Linda flor” (1928), de Henrique Vogeler,

Marques Porto e Luiz Peixoto, gravado em 1929 pela cantora Araci Cortes22(1904-1985).

Também nessa fase nasceu o samba dos blocos carnavalescos dos bairros do

Estácio e Osvaldo Cruz e dos morros da Mangueira, Salgueiro e São Carlos, com

inovações rítmicas que ainda perduram. Nessa transição, ligada ao surgimento das escolas

de samba, destacaram-se os compositores Ismael Silva23 (1905-1978), Nílton Bastos24

(1899-1931).

Ainda centrando-nos na magia da batucada, não poderíamos esquecer, Heitor dos

Prazeres (1898-1966), o compositor que lançou o samba de breque25 “Eu choro” (1933).

Esse tipo de samba atingiu toda sua força cômica nas interpretações de Moreira da Silva26

(1902-2000), cantor ainda ativo na década de 1990, que imortalizou a figura maliciosa do

sambista malandro.

21 SANTOS, Ernesto dos. Pelo Telefone. Disponível em: <http://letras.terra.com.br/donga>. Acesso em: 01 abr. 2011. 22 Nascida no Estácio, foi criada pela madrinha muito severa; cresceu e mudou-se com a família para o Catumbi, aonde teve como vizinho um rapaz negro que tocava flauta, Pixinguinha, o fundador do grupo Oito batutas. Por iniciativa própria começou a cantar em vários teatros da cidade, tornando-se conhecida pela voz de timbre soprano e o jeito personalista de cantar. O reconhecimento veio com a música “Que Pedaço”, de Sena Pinto (1923), e em seguida outro sucesso, “Jura”, de Sinhô (1928). (CORTES, Araci. Biografia. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Araci_Cortes>. Acesso em: 15 jan. 2012). 23 Ismael Silva, o bamba do Estácio, começou ainda na adolescência a frequentar rodas de samba e a compor. Como era talentoso, suas composições logo começaram a se espalhar pela cidade. A parceria de Ismael Silva com Chico Buarque lhe rendeu fama e ao último, exclusividade do repertório do primeiro. (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 121-122). 24 Nilton Bastos era mecânico do Arsenal de Guerra e compositor. Além dos conhecidos sambas, feitos com Ismael Silva, é autor de “O destino Deus é quem dá”, sucesso lançado por Mario Reis, em 1929. (cf. Ibidem, p. 124). 25 A principal característica do estilo é a pausa no acompanhamento acentuadamente sincopado para uma intervenção declamatória do intérprete. (Samba de breque. Definição. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Samba_de_breque>. Acesso em: 15 jan. 2012). 26 Considerado o criador do samba-de-breque, Moreira da Silva iniciou sua carreira em 1931, com “Ererê” e “Rei da Umbanda”. Em 1992, foi tema do enredo da escola de samba Unidos de Manguinhos. Em 1995 gravou "Os três Malandros In Concert" com Dicró e Bezerra da Silva, aos 93 anos de idade. Em 1996, foi tema do livro Moreira da Silva - O Último dos Malandros. Com 98 anos de idade, ainda se apresentava em shows. Participou do histórico disco de Chico Buarque de Holanda, a "Ópera do Malandro" de 1979, fazendo dueto com o próprio Chico. (DA SILVA, Moreira. Biografia. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Moreira_da_Silva>. Acesso em: 15 jan. 2012).

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O partido alto27 também ressurgiu entre os compositores das escolas de samba dos

morros cariocas, já não mais ligado à dança, mas sob a forma de improvisações feitas

individualmente, alternadas com estribilhos conhecidos e cantados pela assistência.

Caminhando na esteira das raízes brasileiras, nesse momento ainda, começava a

tocar e a compor, profissionalmente, o jovem Pixinguinha, Alfredo da Rocha Viana (1897-

1973), que iria se tornar um ícone de nossa música popular, na primeira metade do século

XX. Normalmente reconhecido "apenas" por ser um flautista de alta virtuose, era também

compositor, como nos confirma a música, “Carinhoso” (1917):

Meu coração, não sei por quê Bate feliz quando te vê E os meus olhos ficam sorrindo E pelas ruas vão te seguindo, Mas mesmo assim foges de mim28

Tomando por base as pesquisas de Severiano (2008:77) e Tinhorão (1998:254-255),

a marchinha de carnaval surge, na década de 1920, passando a dividir a hegemonia da

canção carnavalesca com o samba. Ao contrário deste, oriundo das camadas mais humildes

da população, a marchinha de carnaval foi uma invenção da classe média. As marchinhas,

nessa época, saíam dos palcos da Praça Tiradentes para o sucesso popular, amparadas

apenas na repercussão dessa produção para as revistas. 29

Já a história das orquestras populares30 brasileiras, primeira metade do século XX,

Severiano (2008:193) nos diz que os personagens principais, dessa época, foram

Pixinguinha (1897-1973) e Radamés Gnattali (1906-1988). Ambos criaram os padrões

básicos de arranjo para a MPB, servindo seus trabalhos de paradigma para os músicos

nacionais que pontificaram nas décadas de 1930 e 1940. Pixinguinha apreciava os metais e

Radamés, as cordas.

Nesse cenário erudito-popular, temos a presença do compositor brasileiro, Heitor

Villa-Lobos (1887-1959), cujo convívio com os exímios chorões do Rio de Janeiro,

27 As reuniões, como as que patrocinavam a baiana Tia Ciata, denominavam-se ‘partideiros’, isto é, de gente que se dedicava ao ‘partido alto’ – a expressão provém da alta dignidade desse samba, cultivada por minorias negras. (cf. CESAR, Ligia Vieira. Poesia e política nas canções de Bob Dylan e Chico Buarque. São Paulo: Novera, 2007, p. 85). 28 ROCHA VIANA, Alfredo da. Carinhoso. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/pixinguinha>. Acesso em: 04 abr. 2011. 29 O Teatro de Revista foi, em seus tempos áureos, uma forma de espetáculo cômico-musical em que se mesclava a sátira política e social com a exploração de um humor livre, malicioso e a exibição generosa da plástica das atrizes (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 54). 30 A origem das orquestras populares remonta aos costumes do século XVIII, com os barbeiros músicos. Com o desaparecimento desses músicos, as bandas militares assumiram a função de principal difusora da música instrumental, marcial e popular (cf. Ibidem, p. 47-48).

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levava-o a considerar o folclore rural, como a fonte por excelência para sua inspiração

nacionalista. O compositor de obras clássicas, absorvia sobretudo, o “nacionalismo

universal” de Stravinsky (1882-1971), sabendo transpor essa abstração para o contexto

brasileiro. Com uma vasta produção, Villa-Lobos criou suas melhores peças – “Noneto”

(1923), “Rudepoema” (1926), “Choros” (1928), “Bachianas Brasileiras” (1930) –,

alinhavando temas musicais de nosso folclore.

Valendo-se de melodias entoativas (entre o choro e a modinha), Villa-Lobos atingia

soluções admiráveis no campo harmônico: do ritmo de batuque à oralidade inscrita nos

coros (TATIT, 2004:36-37). Com o tempo, desenvolveu uma linguagem própria e

inconfundível, criando uma síntese entre o panorama erudito europeu e os temas musicais

de nosso folclore brasileiro. Gilberto Freyre viria a considerar que esse compositor teria

concentrado em si, a essência da música nacional:

Direi que, no caso de Villa-Lobos, ele parece ter sido influenciado, como carioca, em grande parte, por impactos sociais, e direi que esses impactos sociais se tornaram nele sócio-musicais. É um assunto para um estudo detalhado do que se pode chamar, ao lado de uma sócio-linguística, uma sócio-musicalidade. [...] Vamos imaginar que, como sócio-músico, ele começou a absorver em si influências sócio-musicais vindas para um morador, como ele, quando plasticamente jovem, de um Rio de Janeiro, capital na época do Brasil, como sons não abstratamente sons, porém sons sociais confluentes, que viessem a confluir nele, carioca, dando-lhe uma perspectiva trans-carioca, ultra-carioca, pan-brasileira. Villa-Lobos foi, decerto, assim, sócio-músico, um dos maiores compositores que o mundo tem visto um pan-brasileiro supremo, não só carioca, não só do sul do Brasil, mas um pan-brasileiro que chegou a compreender os Brasis mais remotos, os mais remotamente gaúchos, os mais remotamente amazônicos.31 (grifos do autor)

Esse panorama de renovação musical, iniciado no período anterior, contribuiu,

decisivamente, para que acontecesse a “Época de Ouro” (1929-1945), constituída pelos

artistas da geração de 30. Destacam-se os compositores Ary Barroso (1903-1964), com

“Aquarela do Brasil” (1939)

Brasil, meu Brasil brasileiro Meu mulato inzoneiro Vou cantar-te nos meus versos O Brasil, samba que dá Bamboleio que faz gingá O Brasil do meu amor Terra de Nosso Senhor Brasil! Brasil! 32

31 apud GUÉRIOS , Paulo Renato. Heitor Villa-Lobos e o ambiente artístico parisiense: convertendo-se em um músico brasileiro. Revista Mana [online], Rio de Janeiro, vol.9, n.1, p. 81-108, 2003. 32NESTROVSKI, Arthur (Org). Lendo Música, 10 ensaios sobre 10 canções. São Paulo: Publifolha, 2007, p. 130.

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Lamartine Babo (1904-1963), com a marchinha carnavalesca “História do Brasil” (1934)

Quem foi que inventou o Brasil? Foi seu Cabral! Foi seu Cabral No dia vinte e um de abril Dois meses depois do carnaval Depois Ceci amou Peri Peri beijou Ceci Ao som... Ao som do Guarani!33

e Noel Rosa (1910-1937), com “Conversa de Botequim” (1935)

(...) Uma boa média que não seja requentada Um pão bem quente com manteiga á beça Um guardanapo, E um copo d'água bem gelada Feche a porta da direita Com muito cuidado... Que não estou disposto A ficar exposto ao sol Vá perguntar ao seu freguês do lado Qual foi o resultado do futebol34

O primeiro entrou para o meio musical tocando piano em cinemas e orquestras.

Escolheu o samba como principal meio de expressão, dando-lhe novas formas em um

processo de sofisticação que culminou em obras-primas como “Na Baixa do Sapateiro”

(1938) e “Aquarela do Brasil” (1939); o segundo, surgido, também, no final da década de

20, dedicou-se, especialmente, à marchinha, podendo ser considerado, juntamente com

João de Barro (1907-2006), fixador do gênero; e o terceiro, que revolucionou a poiesis de

nossa música popular, foi Noel Rosa (1910-1937).

Ressalta-se a importância, ainda nesse período, do canto coloquial35 de Mario Reis

(1907-1981). Até o aparecimento desse cantor, predominava entre nossos cantores

populares, a escola do bel canto italiano. Era a época do vozeirão, dos tenores e barítonos

de voz empostada, como a voz de Antônio Vicente Filipe Celestino (1894-1968). Isso

acontecia não apenas por razões de gosto ou tradição, mas pela impossibilidade de o

33 BABO, Lamartine. História do Brasil. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/lamartine-babo>. Acesso em: 04 abr. 2011. 34ROSA, Noel. Conversa de Botequim. Disponível em: <http://www.paixaoeromance.com/conversa_botequim.htm>. Acesso em: 04 abr. 2011. 35 Acreditando que a maneira certa de cantar exigia uma aproximação da língua falada – o que representava o oposto à eloquência do bel canto – e utilizando ao máximo sua apurada musicalidade e seu perfeito domínio sobre a divisão do fraseado musical, Mário desenvolveu uma técnica de interpretação que revolucionou nossa maneira de cantar (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 112).

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indivíduo se fazer ouvir cantando à meia-voz em recintos amplos ou em gravações, no

precário sistema mecânico. Com a chegada ao Brasil, em 1927, da gravação e amplificação

eletromagnética, com seus microfones e alto-falantes, foi superada a necessidade de se

possuir voz forte para gravar ou cantar em público.

Seguindo a trajetória histórico-social da MPB, nos deparamos com Herivelto de

Oliveira Martins (1912-1992). Esse compositor ajudou a consolidar a chamada “Época de

Ouro”, de nossa música popular. Somente no período de 1942-1949, esse artista iria

deslanchar como compositor trágico-romântico. Pertencem à sua grande fase, sambas

carnavalescos como “Praça Onze”, com Grande Otelo (1942); “Laurindo” (1943); “Odete”

(1944), com Dunga. E o samba-canção, “Ave Maria no Morro” (1942):

Barracão De zinco Sem telhado Sem pintura lá no morro Barracão é bangalô36

Não podemos esquecer a participação do sambista, da década de 40, Wilson

Batista37 (1913-1968). Data de 1929 seu primeiro samba, “Na estrada da vida”, cantado no

palco por Aracy Cortes (1904-1985) e só lançado em disco em 1933, por Luís Barbosa

(1910-1938). Seu repertório não se restringia aos temas românticos. Destacavam-se,

também, os temas voltados para os costumes:

Lá vem o Chico Brito Descendo o morro Na mão do Peçanha É mais um processo É mais uma façanha O Chico Brito fez do baralho Seu melhor esporte É valente no morro E dizem que fuma uma erva do norte38

Severiano (2008:165-166) assim comenta:

36 MARTINS, Herivelto. Ave Maria no Morro. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/herivelto-martins>. Acesso em: 29 mar. 2011. 37 Suas desavenças com Noel Rosa acabaram se transformando em sambas: “Lenço no Pescoço”, “Mocinho da Vila”, “Conversa Fiada”, “Frankenstein da Vila” (por causa do queixo defeituoso de Noel) e “Feitiço da Vila”. (BATISTA, Wilson. Biografia. Disponível em: <http://www.letras.com.br/biografia/wilson-batista>. Acesso em: 29 mar. 2011). 38 BATISTA, Wilson. Chico Brito. Disponível em: <http://www. letras.com.br/wilson-batista/chico-brito>. Acesso em: 29 mar. 2011.

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Esses temas ele desenvolveu com um perfeito sentido de síntese, descrevendo os traços essenciais de seus personagens e dos ambientes em que os situava. Era característica em sua técnica narrativa a focalização do protagonista movimentando-se num quadro vivo, como se fosse uma cena cinematográfica (...). (grifos nossos)

Nessa turbulência de lançamentos, houve uma divisão do samba-canção em duas

vertentes, a tradicional e a moderna. A tradicional era musical e poeticamente inspirada em

modelos consagrados na “Época de Ouro” (1929-1945), e tinha como expoentes os

veteranos compositores Lupicínio Rodrigues (1914-1974) e Herivelto Martins (1912-

1992). A vertente moderna era, essencialmente, renovadora e propunha novos rumos não

apenas para o samba-canção, mas também para a própria música popular e tinha como

representantes os jovens cantores Dick Farney (1921-1987) e Lúcio Alves (1927-1993).

Enquanto parte considerável da primeira derivou para formas popularescas, a segunda

sofisticou-se, desembocando na bossa nova.

É necessário ressaltar que a geração “pós-Época de Ouro” – a maioria pertencente à

área do samba-canção – tem como figura de destaque, Antônio Carlos Jobim (1927-1994),

compositor de “Matita Perê” (1973):

Manhã noiteira de força viagem Leva em dianteira um dia de vantagem Folha de palmeira apaga a passagem O chão, na palma da mão, o chão, o chão E manhã redonda de pedras altas Cruzou fronteira de servidão Olerê, quero ver Olerê, 39

cuja personalidade foi formada com influências que iam dos clássicos aos impressionistas,

até as grandes figuras da música brasileira – especialmente, Villa-Lobos. Essa depuração

musical é percebida através da qualidade de suas melodias, finamente elaboradas, muitas

das quais, seguidoras de caminhos inusitados, cheias de resoluções inesperadas,

reveladoras de sua formação erudita. Podemos constatar que

realmente Jobim conheceu as harmonias requintadas que usaria em toda a sua carreira diretamente na fonte, ou seja, em obras de impressionistas franceses, como Claude Debussy - outra de suas maiores influências -, enquanto o pessoal da bossa nova as conheceria em segunda mão, através principalmente de músicos do chamado cool jazz (SEVERIANO, 2008:340).

Luiz Tatit (2004:49) menciona que, ainda na década de 50, surge João Gilberto

(1931) com um estilo intimista de cantar. Em 1958, este cantor lança o disco “Chega de

39CARLOS JOBIM, Antonio. Matita Perê. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/tom-jobim>. Acesso em: 29 mar. 2011.

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Saudade” e instaura o movimento bossa nova40, a primeira reviravolta musical operada,

integralmente, no domínio da canção popular. O movimento configurava a maturidade da

linguagem surgida dos terreiros do início do século e a importância que ela foi adquirindo

na formação social e cultural do país. Além de nomear um gênero musical, um tipo de

samba41,

Vai minha tristeza e diz a ela Que sem ela não pode ser Diz-lhe numa prece que ela regresse Porque eu não posso mais sofrer Chega de saudade, a realidade é que sem ela Não há paz, não há beleza, é só tristeza E a melancolia que não sai de mim, não sai de mim, não sai Mas se ela voltar, se ela voltar Que coisa linda, que coisa louca Pois há menos peixinhos a nadar no mar Do que os beijinhos que eu darei na sua boca (...)42

a bossa nova é, como o choro e o samba, um estilo, uma maneira de tocar. Essa maneira de

harmonizar pode ser melhor compreendida na conceituação de Luiz Tatit (2004:49-50):

A bossa nova de João Gilberto neutralizou as técnicas persuasivas do samba-canção, reduzindo o campo de inflexão vocal em proveito das formas temáticas, mais percussivas, de condução melódica. Neutralizou a potência de voz até então exibida pelos intérpretes, já que sua estética dispensava a intensidade e tudo que pudesse significar exorbitância das paixões. Neutralizou o efeito de batucada que, por trás da harmonia, configurava o gênero samba em boa parte das canções dos anos trinta e quarenta, eliminando a marcação do tempo forte na batida do violão. Desfez a relação direta entre o ritmo instrumental e a dança que caracterizava as rodas de samba. Dissolveu a influência do cool jazz nos acordes percussivos estritamente programados para o acompanhamento da canção, sem dar espaço à improvisação. E, acima de tudo, pela requintada elaboração sonora do resultado final, desmantelou a ideia dominante de que música artística só existe no campo erudito. (grifos nossos)

O movimento, que nasceu na zona sul do Rio de Janeiro, modificou a acentuação

rítmica original e inaugurou um estilo diferente de cantar, intimista e suave. Para Augusto

de Campos (2008:78), a revolução proposta pela bossa nova era reduzir e concentrar ao

máximo os elementos poéticos e musicais, abandonando todas as práticas demagógicas.

40 A bossa nova ─ projeto inicial de economia e depuração sonora que jamais deixara de falar sobre ‘amor, sorriso e flor’ ─ passados os cinco anos, foi-se adaptando aos anseios ideológicos da época que conduziam boa parte da classe artística para os temas de ‘raiz’ e para as reivindicações sociais (cf. LUIZ, Tatit. op. cit., p. 180-181). 41 “(...) a forma acelerada de estabilização melódica privilegia os acentos e, portanto, as vogais salientes e breves, entre as quais percutem intensamente as consoantes, que se reportam em última instância aos velhos batuques; a forma desacelerada de estabilização deixa que as vogais se alonguem e se expandam no campo de tessitura, valorizando o percurso melódico em seus desdobramentos progressivos” (cf. Ibidem, p. 43-44). 42GILBERTO, João. Chega de Saudade. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/joao-gilberto>. Acesso em: 04 abr. 2011.

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Evoluir no sentido de uma música de câmara adequada à intimidade dos pequenos

ambientes, característicos das zonas urbanas de maior densidade demográfica. Uma música

voltada por assim dizer, para o detalhe e para uma elaboração mais refinada com base

numa temática extraída do próprio cotidiano.

Essa bossa nova, além de João Gilberto e Tom Jobim (1927-1994) atraiu Vinicius

de Moraes (1913-1980), poeta diplomata que influenciou a harmonia musical entre poesia

e letra:

De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento. 43

Marcus Vinitius da Cruz de Mello Moraes (1913-1980) foi o realizador da peça

intitulada, “Orfeu da Conceição” (1954), peça que haveria de determinar sua definitiva

incursão na MPB. Ao lado de Tom Jobim, reformulou a canção brasileira, sintetizando em

sua obra todo um processo de modernização, por muitos iniciado nos anos anteriores. Os

versos do poeta, que se mostrava letrista, iriam refletir nas novas gerações. De forma

especial, a que se destacaria, na era dos festivais televisivos (SEVERIANO, 2008:335).

Considerando as reflexões de Ligia Vieira Cesar (90-91), observaremos que até a

presente época, essas letras retratavam dramas passionais do samba-canção, com uma

temática leve, bem de acordo com o cenário da zona sul do Rio, falando de mar, amor,

garota da praia; entretanto, a partir de 1962, essas composições passam a fazer parte de

uma política engajada, denominada pelos letristas de samba participante. Essas vanguardas

participantes estão presentes nas composições de Zé Keti, João do Valle, Edu Lobo e nas

vozes de Nara Leão e Maria Bethânia.

Assim, após o período inicial (1958-1962), as músicas da bossa nova passaram a

acompanhar os problemas políticos do Brasil, instaurando, portanto, o estado de

contestação, ou melhor, o samba de protesto. Configura-se um período divisor entre as

canções que foram compostas, inicialmente, e que poderíamos chamar de canções

elitizadas da bossa nova (Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli, Johnny Alf, Roberto Menescal),

com as que, a partir de 1964, procuraram uma participação mais engajada. Um dos letristas

dessa corrente de samba denominado participante – segundo Tinhorão – seria Ruy Guerra,

que, em parceria com Edu Lobo, justifica essa nova tendência da bossa-nova.

43 MORAES, Vinicius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1960, p. 96.

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Mas foi entre 1965 e 1972 que, a televisão brasileira viveu sua fase de maior

interação com a música popular, através de programas – como “O Fino da Bossa” e

“Bossaudade” – todos produzidos pela TV Record – e uma sequência de festivais de

canções, realizados na maioria pela TV Globo do Rio e a TV Record de São Paulo. O II

Festival da MPB, da TV Record, foi um dos mais concorridos, porque registrou um empate

na primeira colocação.44

É nessa segunda fase da bossa nova, com Edu Lobo, Geraldo Vandré, entre outros,

que esses componentes lançam, nesses festivais de música popular, os primeiros produtos

da canção de protesto.45

Partindo das referências de Sant’Anna (1977:179-180), de seu entendimento sobre

equivalências e identidades entre Música Popular e Poesia Brasileira, poderemos afirmar

que o Modernismo de 1922, ou melhor, seu interesse pelo folclore brasileiro e seu projeto

para recriar o cotidiano das diversas realidades do país estavam, explicitamente,

configurados nos lundus, maxixes e sambas-canções dos formadores das sonoridades

culturais brasileiras.

Os efeitos que os modernistas queriam em seus versos: a plasticidade semântica,

visual e sonora com os vocábulos, o lado prosaico da vida, a forma coloquial sem ransos

elitistas, a forma paródica enquanto suporte crítico, a desmusicalização dos versos

tradicionais e os efeitos pictóricos com as palavras encontravam-se presentes no ritmo-

melódico da década de 30, 40 e com maior sofisticação, com a Bossa Nova. Tornando-se

mais nítida, na década de 60, quando as identidades ganharam ainda maiores contornos

com o surgimento das canções de protesto social. O futuro utópico, reparador e mítico,

permitiram cantar o samba, restrito como uma das poucas “soluções” para expressar o

pensamento oposicionista ao regime militar.

Nessa atmosfera, surge a figura do compositor e letrista Chico Buarque46 que se

projetara com “A banda”, em 1966. O próprio radicalismo revolucionário da bossa nossa

preparou, de forma paradoxal, o nascimento deste compositor. Como podemos observar:

44 II Festival da Música Popular Brasileira: 1°) “A banda” (Chico Buarque) e “Disparada” (Geraldo Vandré e Theo de Barros); 2°) “De amor ou paz” (Adauto Santos e Luís Carlos Paraná); 3°) “Canção para Maria” (Paulinho da Viola e Capinan); 4°) “Canção de não cantar” (Sérgio Bittencourt); 5°) “Ensaio geral” (Gilberto Gil) (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 348). 45Tais canções passam a retratar, embora de uma forma velada e com uma linguagem poética repleta de nostalgia, ‘o dia que virá’ e o pessimismo de um tempo de silêncio, tempo esse em que o poeta se coloca como um espectador, testemunhando um período em que não podia cantar. (cf. CESAR, Ligia Vieira. op. cit., p. 93). 46Chico Buarque de Hollanda será aqui referendado ora como Chico Buarque, ora como Chico, ora como Buarque.

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Chico ajuda-nos a entender a música tradicional de antes e depois da bossa nova, através de uma perspectiva mais crítica, criando um estimulante parâmetro de qualidade. Ele comprovaria aquela famosa frase de Jorge Luís Borges: ‘O bom autor é aquele que cria seus precursores’ (CHAMIE apud TÁRIK, 1983:13).

Esse tema foi esclarecido por Chico Buarque em entrevista ao Pasquim, em 1970:

Queria ser bossa-nova, queria cantar igual João. As melodias eram bossa-nova, a harmonia procurava ser ... tudo imitação. Assisti a um show no Mackenzie onde apareceu Vinicius com Baden. Tinham acabado de chegar, cantando sambas novos. Eram sambões, “Formosa”. Me lembro de um comentário de uma cantora que eu conhecia: torceu o nariz e falou “Aquilo é meio bossa-velha”. Havia aquele preconceito. Mas comecei a gostar daquilo de novo. Negócio de ir pra butiquim e cantar todo mundo junto. Não dava mais. A bossa-nova já tinha uns cinco anos (apud TÁRIK, 1976:16).

Partindo do entendimento que a criação, consolidação e disseminação de uma

prática artística no Brasil se constituíram de um processo de mistura e triagem47, podemos

inferir que a bossa nova se manifesta na atividade de cada compositor ou intérprete em

seus momentos de sofisticação melódica. Mas quando se deseja resgatar uma oralidade

brejeira, emprega-se a base rítmica dos lundus e das modinhas de outrora, erigidas e

reinterpretadas, singularmente, nas composições musicais buarqueanas. O foco de sentido

de suas curvas entoativas48 concentram-se sobretudo em suas finalizações, ou seja, nas

inflexões, que antecedem as pausas parciais ou o silêncio derradeiro, como podemos

constatar em: “Pivete” (1978), “O Meu Guri” (1981), “Pedro Pedreiro” (1965), “Gente

humilde” (1969), “Construção” (1971), “Partido alto” (1972), “Linha de montagem”

(1980). As composições de Chico nos despertam uma sensibilidade musical que vai de

encontro à canção gastronômica. 49

Para Walnice Nogueira (1976:113), a obra de Chico pode ser dividida em duas

vertentes: na primeira está a metacanção, essencialmente lírica, embora possa conter

elementos narrativos. A essa vertente pertencem “Sonho de um carnaval”, “Tem mais

samba”, “A Banda”, “Roda-Viva”, “Olê Olâ”, “Realejo”. Na segunda vertente, a canção é

mediada por um personagem, cheia de estranhos pormenores:“Com açúcar, com afeto”,

“Juca”, “Lua cheia”, “Rita”, “Quem te viu, quem te vê”, “Fica”. As canções, do segundo

47 Expressão empregada por Luiz Tatit. 48 O segredo do cancionista residiria, assim, na busca de dar às frases melódicas a intenção de suas como que correspondências no campo da fala: à operação que tem lugar nesta região tensiva, nevrálgica, a este malabarismo chama-se entoação. (cf. NESTROVSKI, Arthur. op. cit., p. 65). 49 Canção de consumo produzida por uma indústria da canção para vir ao encontro de algumas tendências que esta individua (e cultiva) no mercado nacional (cf. ECO, Umberto. Apocalípticos e Integrados; trad. de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2008, p. 295-317).

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tipo, configuram à dicção50 de Noel Rosa, Sinhô, Ataulfo Alves, tendo formas mais

tradicionais.

Para Tárik (1983:17), nenhum outro autor obtém tão largo e influente espectro de

ressônancia popular como Chico: seu repertório atinge dos programas de calouros ao

encasacado espetáculo do Municipal (parcialmente reproduzido no Canecão) com

partituras eruditizadas pelo maestro Isaac Karabtchevski.

Para Augusto de Campos (2008:95), além da poética de Chico, há também a rica

dimensão melódica de suas músicas; seu canto flui, descontraidamente, nas composições

mais simples como nas mais pretensiosas. O intimismo de sua linguagem sugere

igualmente um tratamento musical de câmara, onde a boa articulação do texto, a clareza

melódica e o despojamento interpretativo são aspectos essenciais.

Nas composições musicais de Chico Buarque, nosso passado se essencializa e pode

ser lido em toda a sua diversidade cultural. Seus recursos estéticos de base erudita –

voltados para uma leitura verticalizada de sua obra no que tange à sua disposição poética e

ao seu desenho melódico e de base popular – estão voltados para um diálogo com o povo,

trazendo à tona uma polifonia rítmica que demarca uma formação musical de via dupla, já

operada no século XIX, por compositores instrumentistas, com o intuito de obter uma

significativa obra cancional. Chico transita entre a influência das variações melódicas

jobinianas, como em “Mulheres de Atenas” (1976). Dialoga com a depuração estética de

João Gilberto atrelada ao canto coloquial de Mário Reis – “Vai passar” (1984). Investe nas

peripécias narrativas de Wilson Batista – “Subúrbio” (2006). Duela com a poesia de

Vinicius de Moraes – “Benvinda” (1968) e, recria a singularidade de um Pixinguinha

&Villa-Lobos – “Assentamento” (1997).

A canção buarqueana parece sempre revestida de diversas camadas de sentido que

dão profundidade tridimensional à linha melódica51 (TATIT, 2002:236), como podemos

constatar, através de “Sempre” (2006), texto musical, feito especialmente, para o filme “O

maior amor do mundo”, de Cacá Diegues:

(...) Eu te contemplava sempre Feito um gato aos pés da dona Mesmo em sonho estive atento Pra poder lembrar-te sempre

50 Expressão utilizada por Luiz Tatit. 51 Pode-se dizer que o ritmo é o esqueleto que dá suporte à melodia, enquanto a melodia é aquilo que preenche esse suporte com conteúdo estritamente musical. No sentido físico, a melodia não é senão uma sucessão de sons, ou melhor, de alturas (cf. SANTAELLA, Lucia. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São Paulo: Iluminuras, 2005, p. 174).

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Como olhando o firmamento Vejo estrelas que já foram Noite afora para sempre52

O texto de Chico provoca no leitor uma atitude reflexiva, convidando-o à

desconstrução do signo poético pós-moderno53, ou seja, a leitura inversa do signo com a

intenção crítica de levantar os procedimentos poéticos nos enunciados, sua condição

sígnica pré-existente, desveladora da exploração da estrutura holográfica do poema que

revela a intencionalidade implícita no projeto da criação (ANAZILDO, 2010:25).

Com o advento das tecnologias pós-modernas, as coisas mudaram radicalmente. A

música ligada à poesia pode agora circular ainda mais ampla e rapidamente do que a

palavra escrita, pois ela tem um alcance, um poder de atração muito maior, principalmente

no Brasil, que tem um público leitor escasso. Nesse espaço cibercultural, a

ressemiotização dos signos culturais cristalizados – incluindo as formas artísticas e os

objetos poéticos – estabelece por si só, dentro da legitimidade do processo de criação

artística pós-moderna, um novo conceito de originalidade e, consequentemente, de arte.

Nesse espaço cibercultural, devemos reavaliar a prática cancionista. Em virtude de

seu caráter intersemiótico (ao mesmo tempo linguagem musical e verbal – oral e escrita),

esta prática cancionista se situa paratopicamente em relação à própria literatura, pelo

menos em sua dimensão tópica, isto é, institucional ou acadêmica. A canção é, por um

lado, atraída para seu campo gravitacional, por conta de sua interface escrita (a canção é

letra em diversas fases de sua produção); por outro, é repelida em virtude de sua dimensão

não-escrita (melodia). Dada à institucionalização da prática discursiva literária no mundo

ocidental, há controvérsia nos meios literários sobre se a chamada letra de música é ou não

poesia, o que equivale à questão de se ela tem ou não status equivalente à poesia (COSTA

apud FERNANDES, 2004:333).

E o leitor pós-moderno, penetrando nessa camada palimpsesta, descobre um

mosaico híbrido na linguagem artística de Chico:

A hibridização dos recursos e das formas artísticas na criação pós-moderna, configurada na referenciação, na elaboração intratextual, na montagem figurativa e na mescla estrutural dos estilos, entre outros, assinala o advento de uma estética holográfica portadora de uma nova concepção do belo artístico que reclama o urgente reconhecimento crítico. Essa intenção holográfica da arte pós-

52 HOMEM, Wagner. Histórias de canções. São Paulo: Leya, 2009, p. 315. 53 O pós-moderno é um estilo de codificação dupla, isto é, uma arquitetura que adota um híbrido da sintaxe moderna e da historicista, com apelo tanto para o gosto educado quanto para a sensibilidade popular. É essa mistura liberadora do novo e do velho, do elevado e do vulgar (cf. ANDERSON, Perry. As origens da pós-modernidade; (trad. de Marcus Penchel). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p.30).

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moderna permite entender os objetos artísticos de qualquer natureza – verbais, picturais, musicais, etc. – como um holograma (espécie de fotografia a laser que, partida em pedaços, tem a propriedade de reproduzir a imagem completa do objeto em cada um dos seus fragmentos isolados), de modo que cada objeto de arte reproduziria em si mesmo a criação artística por inteiro, ou seja, o todo de que é parte (ANAZILDO, 210:24-25).

Uma das camadas desse mosaico, que permeia de profundidade a melodia, está

visceralmente comprometida com o mito, com o drama e as emoções conflituosas próprias

do pensamento narrativo. Num estado de paixão imbricam-se vários programas narrativos

definidores do teor tensivo do texto e seu modo de compatibilização com a melodia

(TATIT, 2002:238). A música buarqueana está fortemente articulada não tanto pela

horizontalidade da sucessão narrativa, mas na verticalidade do simultâneo, própria das

estruturas míticas:

Na sua especularidade complementar, o mito é uma narrativa em que a imbricação do sucessivo e do simultâneo dá ao sentido uma configuração cristalina e partitural, e a música (tonal) é uma estrutura sonora em que a trama discursiva dos elementos ganha direcionamemto mítico. A música e a mitologia têm origem na linguagem, mas [...] ambas as formas se desenvolveram separadamente e em diferentes direções: a música destaca os aspectos do som já presentes na linguagem, enquanto a mitologia sublima o aspecto do sentido, o aspecto do significado, que também está profundamente presente na linguagem.54

Nas canções buarqueanas, há a condensação da temática mítico-amorosa55;

apresentando-se nas frestas em dupla dimensão: no plano da fala e no plano do silêncio. No

primeiro, no plano da fala, ela é muitas vezes usada como encobrimento de ideias. No

plano do silêncio, há um falso ocultamento da linguagem. Por ser contida, rompe diques e

inunda os espaços intersubjetivos. Como podemos verificar nessa passagem da música,

desveladora desses subterrâneos:

O teu corpo em movimento Os teus lábios em flagrante O teu riso, o teu silêncio Serão meus ainda e sempre56

Palavra e silêncio se alternam e se completam e seus sentidos se impõem na busca

pela satisfação amorosa. Satisfação esta que não pode ser obtida sem uma verdadeira

humildade, coragem, fé e disciplina. Mas em uma cultura em que essas qualidades são

54 WISNIK, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 164. 55 No Sonho, no Mito e na Arte está a garantia do imaginar, a reatualização e ritualização de atos pensantes, construtores da cultura (cf. SENDRA, Arlete Parrilha. Embornal − de ensaios literários para leituras a granel. Campos dos Goytacazes: Academia Campista de Letras, 2010, p. 216). 56 HOMEM, Wagner. op. cit., p. 315.

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raras, atingir a capacidade de amar continua sendo uma rara realização. Amar significa

estar determinado a compartilhar e fundir duas biografias, cada qual portando uma carga

diferente de experiências e recordação, e cada qual seguindo o seu próprio rumo. Um

acordo sobre o futuro, portanto, sobre o desconhecido (FROMM apud BAUMAN,

2005:69).

O homem, desde sempre depositado na história, conhece, pelas experiências de

viver, a solidão e o abandono, a fuga e o exílio. Dentro desta história, o homem vive a

finitude e a culpabilidade. Viver é um compromisso, muitas vezes, difícil de cumprir. No

viver está presente a sobrecarga de cada instante, a resistência ao tempo. Exige do sujeito

uma permanente reelaboração de sua interioridade, capaz de acoplar uma nova figuração

subjetiva, cabendo à arte externalizar a interioridade singular de cada sujeito (ARLETE,

2010:154).

Para atingir esse acordo com o singular de cada sujeito, é necessário ter o domínio

da carga melódica e do contraponto da letra, como nos diz Luiz Tatit:

Mais que uma questão de mérito, as criações profundas revelam uma perícia especial do compositor no sentido de só dizer o que a melodia tem condições de intensificar. Para isso é necessário um discernimento aguçado na interpretação das insinuações entoativas e, consequentemente, na escolha de um texto compatível. Quase todos os grandes compositores tiveram experiências com criações profundas. Chico Buarque fez delas sua dicção (2002:234).

E Chico, para fazer uso dos interstícios amorosos, acentua o balanceamento

cadencial entre a vogal [a] e a vogal [e] dos morfemas:

Dura a vida alguns instantes Porém mais do que bastantes Quando cada instante é sempre57

dilapidando as estruturas linguísticas:

As entidades matemáticas são estruturas em estado puro e livres de toda encarnação, isentas pois de som e de sentido. As estruturas linguísticas são, ao contrário das matemáticas, duplamente encarnadas, nascendo justamente da intersecção de som e sentido, unidos no entanto numa relação instável, porque nunca se recobrem completamente (as línguas se traduzem indefinidamente sem nunca dizerem a palavra final nem a palavra primordial, deixando margem a formas ou expressões limiares, tangenciais (...) (LÉVI-STRAUSS apud WISNIK, 1989:163).

57 Ibidem, p. 315.

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A elaboração das melodias atreladas à composição da letra, em forma narrativa,

requer uma escuta musical apurada para captar a melodia exata no que o texto propõe a

dizer, configurando, um entrelaçamento harmonioso na composição musical e na

compreensão da espessura da canção por parte do leitor da música de Chico:

A avaliação de um texto musical separado de sua música pode ser válida em muitos casos, mas será sempre arbitrária ou incompleta. Tanto a composição como a análise de uma letra podem ser afetadas de várias maneiras pela melodia. Algumas dessas possibilidades são um certo intervalo ou valor temporal (duração) que faz com que uma palavra ou frase se destaque, o fortalecimento de uma ideia ou expressão no movimento das notas musicais, e a preferência por uma vogal mais alta que corresponda a um tom mais alto. Quando se avalia a estrutura, o significado e a efetividade poética da letra de uma canção é preciso considerar como o fluxo das palavras está arrumado para a entonação harmoniosa e se as características melódicas têm algum efeito notável sobre o texto (PERRONE, 1988:12).

Esse autor de estrutura musical, basicamente narrativa, (em contraponto ao

impressionismo instrumental da bossa nova) escreveu textos plurais: marchas-rancho –

“Noite dos Namorados” (1966), modinhas – “Até Pensei” (1968), choros – “Um

chorinho” (1967), serestas – “Realejo” (1967) e “Olé Olá” (1965), sambas – “Ela

Desatinou” (1968) e “Tem mais Samba” (1964), ritmos ultramarinos – “Fado Tropical”

(1972-1973), charleston – “Ai, se eles me pegam agora” (1977-1978), valsas – “Terezinha”

(1977-1978) e baião/rock – “Baioque” (1972); demonstrando-nos que sua identidade

sonora se entrelaça, harmoniosamente, pela junção de melodia e letra. No espaço rítmico, a

polifonia popular, a síncope da matriz musical africana; no espaço melódico e erudito, a

polifonia clássica, a síncope do modelo musical europeu − ambos inscritos no interior da

letra − constituem uma renovação músico-cultural.58

Segundo Muniz Sodré (1998:25), o elemento comum aos diversos gêneros musicais

de origem negra, do jazz norte-americano ao choro e ao samba brasileiro, é a síncope,

recurso musical que se manifestou na música brasileira como uma junção da síncope

melódica europeia com a síncope rítmica africana. Em vista disso, podemos inferir que dá

mesma forma que o negro brasileiro acabou aceitando o sistema tonal, a melodia europeia,

as músicas buarqueanas também o incorporaram, mas desestabilizando-o, através do

contraste polirrítmico. Dessa forma, suas composições musicais apresentam a síncope

como um importante elemento na sua técnica de hibridização. Isto podemos comprovar

pelas palavras de Chico Buarque, no livro, O Som Nosso de Cada Dia: “Procurei frear o

58 A música tem sido a linguagem que mais possibilita a integração do homem com seu tempo. Ela envolve o homem nas reais dimensões de entendimento com seu meio e faz com que esse homem hodierno conheça as múltiplas dimensões de seu momento histórico-cultural (cf. SENDRA, Arlete Parrilha. op. cit., p. 177).

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orgulho das melodias” (TÁRIK, 1983:13). O tempero dessa mistura de raças e acordes

musicais permitiu uma sociomusicalidade.

Nesse contexto, concordamos com Arthur Nestrovski (2007:59-61) ao concluir que

essa tradição sociomusical tem como correlato semiológico a série de cruzamentos

culturais – batuque de origem africana, melodias europeias e letras urbanas – de que viria a

resultar o samba como gênero musical definido.

O samba, mestiço, depositário de uma tradição de encontros, de formas de

sociabilidade transclassistas e transculturais está, portanto, no cerne do que Chico Buarque

desenvolveu em suas canções, à maneira dos velhos e clássicos compositores como Noel

Rosa e Ismael Silva e remodelada pela bossa nova.

Alinhavando o texto, vamos costurar esta prosa buarqueana.

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CAPÍTULO 2

ALINHAVANDO O TEXTO, COSTURANDO A PROSA

O menino Francisco Buarque de Hollanda, nascido no Hospital São Sebastião, no

bairro do Catete, no dia 19 de junho de 1944; coincidentemente quando o Rio se

movimentava ao som de Ataulfo Alves, Mário Lago, Lupicínio Rodrigues, Lamartine

Babo, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Herivelto Martins, Ary Barroso, Donga, Ismael

Silva, Dorival Caymmi e muitos outros bambas que, em meados dos anos 40, povoavam as

rádios com sambas e marchinhas de carnaval.

Os dois primeiros anos de sua infância, ele os passa na rua Ronald de Carvalho,

esquina com a Avenida Atlântica, em Copacabana, onde viveu com o pai Sérgio Buarque

de Hollanda (1902-1982) – historiador, crítico literário, bacharel em Direito e jornalista –

a mãe Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda (1910-2010) e os irmãos Heloísa

(cantora e compositora), Sérgio (professor e economista) e Álvaro (advogado). Mais tarde

ainda viriam Maria do Carmo (fotógrafa), Ana Maria (cantora e ministra da Cultura desde

2011) e Cristina (cantora).

O compositor do amanhã aproveitou como pôde esses dois anos no Rio, porque,

mesmo depois de a família se mudar para São Paulo, rebocada pelo patriarca Sérgio, Chico

nunca mais deixou de se envolver com os encantos da cidade em que nasceu e para onde se

mudaria aos 22 anos.

Aos cinco anos, Chico já se interessava pelo universo da música e colecionava um

álbum de recortes com fotos de cantores do rádio. O menino era inquieto e observador.

Brincava muito com as irmãs, sobretudo com Maria do Carmo (Pii), que vinha logo abaixo

dele e Heloísa (Miúcha) – com quem aprendeu os primeiros acordes do violão – a

primogênita.

A casa da infância em São Paulo era repleta de saraus, histórias e brincadeiras. Mas

o movimento não se dava apenas por causa das crianças. A música deslizava tímida do

piano de sua mãe. Carioca e torcedora do Fluminense, Maria Amélia adorava levar os

meninos – Sérgio, Álvaro e Chico – para assistir aos jogos no Pacaembu, quando o time

carioca se apresentava.

Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda, ou Memélia, como os netos e

toda a família passariam a chamá-la, apesar de pequena e de aparência frágil, cuidava, com

firmeza da casa para que o marido pudesse trabalhar no escritório, lendo e escrevendo seus

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livros. Ajudava-o em suas pesquisas, datilografando seus trabalhos a fim de que Sérgio

Buarque de Hollanda realizasse suas atividades de maneira produtiva.

Os livros de Sérgio Buarque de Holanda ultrapassavam a biblioteca e se

esparramavam pela casa dos Buarques, ocupando até o banheiro. O historiador passava

todo o tempo em sua biblioteca, lendo e trabalhando. Interrompia o trabalho para receber

amigos como Manuel Bandeira, Rubem Braga, Antonio Candido, Fernando Sabino,

Vinicius de Moraes, Afonso Arino entre outros. A imagem mais forte que os filhos

guardaram do pai pode ser observada no seguinte fragmento:

Ele sentado em seu escritório com os óculos na testa e um livro na mão. Era capaz de acordar no meio da noite com uma ideia nova ou a lembrança de uma informação preciosa que lera em algum lugar. Deixava a porta aberta do escritório para acompanhar os movimentos da casa e, sobretudo, para ouvir as últimas fofocas. E quando queria esfriar a cabeça, lançava mão de uma coleção de gibis da Luluzinha, que guardava num caixote e adorava ler (ZAPPA, 2008:23).

Para Regina Zappa (2011:26), Sérgio Buarque de Hollanda era um grande

devorador de livros e um homem que viveu plenamente sua época. Tinha a inquietude e a

inteligência que destacou no próprio filho. Escreveu Raízes do Brasil, considerado um dos

livros mais importantes já escritos no país. Criou o conceito do brasileiro como homem

cordial, defendendo que a inimizade pode ser tão cordial quanto à amizade, porque ambas

nascem do coração, da esfera íntima, do familiar, do privado, como quase tudo no Brasil.

Na casa Buarque de Hollanda, uma figura foi de extrema importância para a

consolidação do gosto e da cultura musical de todos os filhos; a babá – filha de índios do

Pará – que trabalhara com a família, quando Beatriz (Miúcha), a primeira filha de Sérgio e

Amélia, tinha 10 meses. Babá era como a chamavam, mas seu nome era Benedita Motta.

Contava para as crianças histórias de mula-sem-cabeça, curupira e saci pererê.

Depois que todos cresceram, Babá continuou na casa, como cozinheira. Sua

importância foi além do cuidado com os meninos. Foi ao som do radinho que ela ganhou

de presente, quando completou 10 anos de casa, que Chico e os irmãos afinaram seu

repertório de sambas e marchinhas. Na área de serviço, a criançada, principalmente

Miúcha e Chico, se aboletava em torno do radinho e passava horas ouvindo e cantando

músicas. Muita coisa se ouvia. Desde Noel Rosa, Ataulfo Alves, música italiana, música

francesa até Dorival Caymmi. São palavras de Maria Amélia:

Chico cresceu numa época em que a música era moda. Em toda festinha, toda reunião, tinha sempre alguém que pegava um violão e todos cantavam. Havia os

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festivais e ele se inscrevia. Por isso, foi-se voltando cada vez mais para a música. Ele tira a inspiração para suas composições dos sons da vida (ZAPPA, 2008:25).

Entre Rio e São Paulo, uma terceira capital seria palco da infância de Chico (mais

tarde, seu exílio). Em 1952, a família passa a residir em Roma, quando Sérgio Buarque de

Hollanda recebe o convite da Universidade de Roma para compor a cátedra de estudos

brasileiros. Além de aprender o italiano, Chico cursou a escola americana Mary Mount

School, onde aprendeu inglês. A volta de Roma, em 1954, aos 10 anos, fez Chico se sentir

um peixe fora d‘água, uma vez que havia se integrado ao estilo italiano e usava roupas e

sapatos diferentes dos meninos brasileiros. Mas não demorou a se adaptar à rotina das duas

cidades em que crescia. Enquanto o Rio continuava a ser a cidade das férias, São Paulo

moldava seu cotidiano escolar.

Chico cursou o ensino fundamental no Colégio Santa Cruz, um semi-internato para

meninos, dirigido por padres canadenses, no Alto de Pinheiros e, o ensino médio, com

exceção do último ano, que cursou em Cataguazes, para onde foi mandado pelos pais por

desvio de conduta. Acontecimento relatado em Chico Buarque Tantas Palavras:

Ele estava na terceira série ginasial, no Santa Cruz, em 1958, quando, sem se dar conta, embarcou num movimento religioso, os Ultramontanos, que viria a ser um dos embriões da TFP, a organização fascista Tradição, Família e Propriedade. Não estava sozinho: a maioria da turma – dezesseis garotos em vinte e cinco –também entrou, aliciada por um jovem professor de História Geral, Carlos Alberto de Sá Moreira, que agia sem o conhecimento da direção do colégio, de padres católicos progressistas. Os Ultramontanos viviam ancorados na Idade Média e anunciavam para já o Juízo Final, quando a espada justiceira dos anjos do Senhor não pouparia mais que uns poucos eleitos (WERNECK, 2006:24-25).

Ainda no tempo do Santa Cruz, Chico viveu experiências de fundo religioso mais

decisivas que os ultramontanos. Assim nos diz Werneck:

Ligando-se a um movimento chamado Organização de Auxílio Fraterno, ele participou algumas vezes de expedições noturnas como a Estação da Luz, no centro de São Paulo, sob o comando de um dos professores do colégio, o padre André. Levava cobertores para os miseráveis que dormiam nas calçadas, e ficou marcado pela reação daquelas pessoas, que fugiam como animais assustados à aproximação de quem vinha ajudá-las (2006:27).

Em 1963, entrou para a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de

São Paulo (FAU), mas não se entusiasmou pela prancheta. A faculdade funcionava num

antigo prédio da Rua Maranhão, no bairro de Higienópolis, onde fermentava uma intensa

agitação – Juão Sebastião Bar, reduto paulistano da Bossa Nova criado pelo jornalista

Paulo Cotrim, na rua Major Sertório, bar que sobreviveu de 1962 a 1966. A animação,

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naquela roda da FAU, era favorecida por um pessoal de fora, como João do Vale, Taiguara

e Toquinho, este aluno de contabilidade no Mackenzie.

Em 1965, o nome de Chico Buarque já tinha certo significado nos meios musicais

de São Paulo, onde a multiplicação de shows e o borbulhar de novos talentos

prenunciavam a era dos festivais, prestes a começar. O desencadeador dessa agitação foi

um espetáculo organizado no dia 25 de maio de 1964, no velho prédio do Teatro

Paramount, na Avenida Brigadeiro Luiz Antônio. Promovido por estudantes, o evento

chamou-se O fino da Bossa e pôs, no palco, Oscar Castro Neves, Alaíde Costa, Jorge Ben e

Nara Leão. O piloto desse programa, Primeira audição, foi gravado no auditório do

Colégio Rio Branco, em Higienópolis, em 2 de outubro de 1964. Em sua estreia televisiva,

Chico mostrou, entre outras criações, “Marcha para um dia de sol” (1964), acompanhado

por Maria do Carmo (Pii), Ana Maria (Baía), Cristina e uma amiga, Helena Hungria.

No mesmo ano, fez um show, no Colégio Santa Cruz, e mostrou aquela que seria a

sua música número um, ou seja, o marco zero da sua carreira musical: “Tem mais samba”

(1964). Canção feita de encomenda para o musical Balanço de Orfeu. Chico a partir desse

momento, começava a fazer a síntese do que seria a sua obra: reatava os laços com o

samba, sua primeira influência, trazia outras sonoridades da música brasileira, como a

modinha, o choro, a marcha-rancho e as marchinhas, e temperava tudo com as lições da

bossa nova. Assim nos fala o compositor Chico:

As primeiras músicas que fiz não contam e não constam da minha biografia musical porque eram claramente tentativas de fazer bossa nova. Evidentemente, imitações de bossa nova. E alguns sambas que gravei no começo da carreira eram também um pouco pastiches daqueles sambas dos anos 1930, 1940. Revistos, porque passavam pelo círculo da bossa nova e resultavam talvez em algo original por causa disso (ZAPPA, 2008:58).

Humberto Werneck (2006:43-44) nos conta que Chico já não era apenas o irmão da

Miúcha quando, no começo de 1965, o escritor e psicanalista Roberto Freire lhe propôs um

desafio: queria que musicasse o poema Morte e Vida Severina, escrito em 1954-55, por

João Cabral de Melo Neto. A peça estreou em São Paulo em 1966 e um ano depois,

recebeu, na França, o 1ºlugar no Festival Internacional de Estudantes (FIE), em Nancy.

O falecido autor de Morte e Vida Severina se deliciou com o improviso que o filho

do amigo, Sérgio Buarque de Hollanda, inseriu no texto. Há no poema uma passagem em

que nasce uma criança e os circunstantes vão levar-lhe oferendas – e Chico teve a ideia de

acrescentar aos presentes uma oferenda adicional, uma cavala-perna-de-moça, peixe

reputadíssimo, em Pernambuco, terra natal do poeta.

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Na época em que Roberto Freire lhe pediu músicas para o poema de João Cabral,

Chico estava fazendo sua estreia fonográfica – um falso disco ao vivo, com palmas

aplicadas sobre gravação realizada nos estúdios da RGE, em São Paulo. O compacto

chegou às lojas no dia 6 de maio de 1965. No final do ano sairia outro, com “Olê olá”

(1965) e “Meu refrão” (1965). O carro-chefe desse primeiro disco era “Pedro pedreiro”

(1965) que, a partir daquele momento, fez com que Chico fosse solicitado a cantar onde

quer que aparecesse.

O surpreendente não foi só a boa aceitação da música por parte do público, mas

também a revelação feita por Chico, mais de 40 anos depois:

A canção, na verdade, surgiu da vontade de ser Jorge Ben, de fazer uma música parecida com as dele. Pedro Pedreiro não tem nada a ver com samba antigo, e era pós-bossa nova, mas tem a ver com uma coisa que me impressionou muito naquele tempo, que era violão percussivo do Jorge Ben. Não sabia fazer o violão dele, mas havia ficado muito impressionado com aquilo (ZAPPA, 2008:62).

Foi também com o ritmo do samba e na cadência da Juventude Universitária

Católica (JUC) que Chico – ainda na faculdade – conviveu com o governo de João Goulart

(1919-1976) e o golpe militar que o derrubou em primeiro de abril de 1964.

Regina Zappa (2011:87-90) nos relata que nessa época, o movimento estudantil foi

ganhando força e as universidades passaram a ser um dos principais focos de resistência ao

regime militar. Nesse clima e durante o tempo em que foi universitário, Chico participou

das manifestações, ajudando a fazer vigília para que a faculdade não fosse tomada,

cantando junto com outros artistas, que se revezavam dia e noite. O Brasil começava a

entrar em um dos períodos mais negros de sua história, com o general Humberto de

Alencar Castello Branco (1897-1967) assumindo o poder.

Humberto Werneck (2006:47) também nos afirma que os primeiros anos que se

seguiram ao golpe de abril de 1964 foram, de qualquer forma, animados por uma intensa

produção cultural. Embora a resistência ao governo tenha começado no dia 1 de março de

1964, por parte da classe artística – principalmente, o pessoal da música e do teatro – a

repressão não se iniciou de forma violenta e o cerco só foi se formando à medida que o

tempo passava. Chico só teve que enfrentar de fato a repressão a partir do Ato Institucional

n°5.

Em 1965, os militares extinguiram os partidos políticos, acabaram com as eleições

diretas para a Presidência da República e começaram a intervir na universidade. Mas a

cena cultural, ao mesmo tempo, dava sinais de grande vitalidade, não faltando reações

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explícitas ao progressivo fechamento que se observava no país. Surgia assim, destemida e

vigorosa, a Revista Civilização Brasileira, importante publicação que circularia até o AI-5.

Nesses dois primeiros anos de regime militar, a experiência de Chico com a censura

se limitou à proibição pela Marinha, da canção “Tamandaré”, em 1966. Uma brincadeira

que fez com a figura do almirante Joaquim Marques Lisboa, marquês de Tamandaré,

estampada nas notas de 1 (um) cruzeiro. É o que nos diz Wagner Homem (2009:34): “A

Marinha brasileira entendeu que havia na letra desrespeito à figura de seu patrono, e a

música foi proibida.”

No Brasil, o ambiente cultural e político eram efervescentes. Cultura e política se

mesclavam e as artes dialogavam como nunca na década de 60. O teatro de Arena e de

Opinião cediam seus autores politizados para o Cinema Novo, que fervia, capitaneado por

Glauber Rocha que filmava – Deus e o diabo na terra do sol. A música nesse momento,

começava a se tornar arma política.

Chico abandona a Faculdade e a carreira de arquiteto. A bem comportada bossa

nova começaria, portanto, a dar lugar a uma produção musical diferenciada. Como

podemos perceber pelas palavras de Regina Zappa:

O próprio Vinicius foi artífice da mudança, ao compor com Baden os primeiros afro-sambas. Era a hora da transição. Chico, que já tinha ficado muito impressionado com “Pra que chorar”, de Baden e Vinicius, ficou mais ainda quando os dois passaram a compor músicas como “Berimbau”, na época do show Opinião, no Rio, e dos espetáculos do Arena, em São Paulo. A cabeça de Chico, atenta a esse novo rumo, começou a mudar. E a sentir necessidade de recuperar a memória da música brasileira, sobretudo o samba, que havia sido deixado de lado em favor da bossa nova (2008:59).

Em 1994, Chico afirmaria em entrevista ao programa Ensaio, de Fernando Faro:

A partir do momento em que Baden e Vinicius compuseram os afro-sambas e ‘Berimbau”, e em que aconteceram o show Opinião, no Rio, e os espetáculos do Arena, houve, pra nós, ou pelo menos pra mim, a necessidade de recuperar um pouco essa memória que havia sido radicalmente abandonada com a bossa nova, mas incorporando tudo o que a bossa nova havia trazido de novo. Ou seja, havia uma fusão, que é um pouco o que João Gilberto sempre fez, só que João Gilberto transformava essas canções em canções de João Gilberto, ele era um compositor daquelas músicas. E eu, que havia abandonado Noel Rosa, Ismael, me permiti retomar aquilo, mas tocando com o que eu imaginava que fosse a harmonia da bossa nova. Coisa que eu fui desenvolver mais depois do contato com o Tom Jobim (ZAPPA, 2008:63-64).

Esse resgate da memória musical brasileira pode ser comprovado tanto em “Pedro

Pedreiro” (1965) quanto em “Olê olá” (1965), quando Chico inaugura o que ele chamou de

linha do samba, com extensas narrativas. A revista O Cruzeiro publicaria: “Há realmente

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alguma coisa do Poeta da Vila no autor de Pedro pedreiro, principalmente a mesma técnica

cinematográfica; em ambos, cada composição parece um filme” (ZAPPA, 2008:64).

Já em 1966, Chico resolve fazer uma música para ganhar no festival. Mesmo

incompleta, apresenta “A banda” 59 a Gil e Torquato, que se entusiasmaram. Já amigo de

Nara Leão60, convida-a para defender “A banda” (1966), no Festival de Música Popular

Brasileira – MPB – da TV Record, em São Paulo.

A princípio, ela cantaria sozinha, mas o diretor Manoel Carlos decidiu que Chico

Buarque deveria cantar também. Ficou resolvido que Chico faria uma espécie de

introdução com o violão, cantaria a música toda, e depois Nara entraria com banda, tuba e

tudo, para cantar novamente.

Naquele ano, o país ficou tomado pela “Banda”. Nos primeiros dias, logo depois

de lançado, o disco de Nara com a música vendeu mais de 50 mil cópias. E Chico tornara-

se aos 22 anos, um popstar. O reconhecimento do compositor da Banda já era tanto que

em 1967, o maestro Lindolfo Gaia61 compôs um poema sinfônico baseado em suas músicas

para apresentar no Teatro Municipal, sob a regência de Isaac Karabtchevsky.

Numa entrevista para o Museu da Imagem e do Som – MIS –, pouco depois da

explosão de “A banda” (1966), Chico reflete sobre seu sucesso inesperado:

Me sinto mal pra burro. Atrapalha um pouco, mas chega uma hora que se está cheio de compromisso e não se pode fugir. Aí tem que aproveitar a maré que, financeiramente, para mim é muito importante para garantir um dinheirinho e ficar mais sossegado. Não sinto prazer em cantar, para falar a verdade. E não gosto das coisas que estão feitas, quero fazer outras. Por isso, preciso voltar a ter o tempo que sempre tive, que é o de não fazer nada, que é muito importante para fazer coisas. Quando a gente está à toa na vida é que acontecem as coisas. Acontece também de ficar sem fazer nada por um tempo. Uma vez fiquei seis meses sem fazer nada. Pode ser que um dia seque e eu não faça mais nada. Esse receio sempre tenho (ZAPPA, 2008:81).

Depois de A banda, Chico lança seu primeiro LP, que trazia na capa o nome do

artista: Chico Buarque de Hollanda, com as músicas de sua primeira fase, “A banda”

59  “A banda” ainda lhe renderia seu primeiro programa de televisão e o primeiro embate com a ditadura militar. O programa, comandado por ele e por Nara Leão, ia ao ar pela TV Record e chamava-se Pra ver a banda passar. Já o embate com a ditadura ocorreu quando o governo resolveu usar “A banda” numa propaganda de alistamento militar. Chico protestou, e a peça deixou de ser veiculada. (cf. HOMEM, Wagner. op. cit., p. 43-44). 60 Mais que uma intérprete, Nara Lofego Leão foi uma pensadora da Música Popular Brasileira (MPB). Sua militância musical privilegiava os compositores. Era a eles que buscava e suas músicas que desejava divulgar. Cantou sempre com inteligência, sensibilidade e convicção. (cf. ZAPPA, Regina. Pra seguir minha jornada: Chico Buarque. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011, p.153). 61 O maestro Lindolfo Gaia compôs uma suíte sinfônica reunindo “Olê, olá”, “Pedro pedreiro”, “Sonho de um carnaval”, “Quem te viu, quem te vê” e “A banda”. Essa apresentação impulsionou Chico Buarque a declarar emocionado: “era preciso que houvesse essa aproximação entre as músicas clássica e popular.” (cf. Ibidem, p. 160).

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(1966), “Pedro pedreiro” (1965), “Sonho de um carnaval” (1965), “A Rita” (1965), “Olê

olá” (1965), “Meu refrão” (1965), “Madalena foi pro mar” (1965), “Tem mais samba”

(1964); inaugurando assim, oficialmente, a obra de estilo buarqueano.

Seu segundo disco, um long-play, saiu em 1967, demostrando sua capacidade de

passear por estilos distintos como a modinha em “Lua cheia” (1965) e “Realejo” (1967) e a

marcha-rancho de “Noite dos mascarados” (1966). Volta aos sambas novelescos com

“Logo eu?” (1967) ou já buarqueanos, como “Fica”, composta em 1965. E, claro, esse

mesmo disco trazia a clássica, “Quem te viu, quem te vê” (1966):

Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala Você era a favorita onde eu era mestra-sala Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua Suas noites são de gala, nosso samba ainda é [na rua62

feita na linha dos sambas de Ataulfo Alves63 (1909-1969), uma das fontes de inspiração

de Chico; além, de Tom Jobim.

Na verdade, Chico só foi conhecer Tom Jobim, em Ipanema, quando foi levado à

casa do maestro por Aloysio de Oliveira, por volta de 1966. Tom Jobim estava vindo de

mais uma viagem aos Estados Unidos, onde já havia gravado uma música instrumental de

sua autoria chamada “Zíngaro” e o disco A certain Mr. Jobim.

Regina Zappa (2008:95), assim comenta: “O contato com Tom o estimulou a ter

aulas de teoria musical”. Chico nunca tivera aulas de violão (e nunca teria dali para frente)

ou de voz, apenas de teoria musical, com Vilma Graça, quando já estava no Rio e antes de

viajar para a Itália, em 1969. Essa parceria com Tom Jobim culminou na transformação da

música “Zíngaro” (1965), rebatizada por Chico na composição: “Retrato em branco e

preto” (1968).

Esse momento tranquilo foi, paulatinamente, substituído pelo conturbado ano de

1968, que concentrou os movimentos de contestação, a revolta estudantil e as mudanças

comportamentais no mundo inteiro, despontando no Brasil uma repressão militar sem

precedentes, desde o golpe de 1964. Esse ano, o fatídico AI-5 que fechou o Congresso e

acabou com as liberdades democráticas.

62 WERNECK, Humberto. Chico Buarque Tantas Palavras. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 151. 63 Ataulfo Alves de Souza foi um compositor e cantor de samba brasileiro, um dos sete filhos de um violeiro, acordeonista e repentista da Zona da Mata chamado "Capitão" Severino. (ALVES, Ataulfo. Biografia. Disponível em: <http:// www.wikipedia.org/wiki/Ataulfo_Alves>. Acesso em: 05 jan. 2012).

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Começava uma fase em que os compositores, em geral, e Chico, em particular,

sentiam necessidade de resistir à censura e expressar seu desagrado com o regime militar,

fazendo as chamadas “músicas de protesto”.

Apoiando-nos em Anazildo Vasconcelos (2010:32-33) poderemos ressaltar que o

protesto na canção de Chico Buarque resultou da insistência de o compositor referenciar a

proposição de realidade interditada em toda sua produção lírica e, com maior destaque,

após a suspensão do veto político, confirmando o rompimento de sua obra a determinado

contexto circunstancial. Embora a proposição de realidade pressuposta tenha que ser o

segmento histórico imediato do artista, nada impede que o espaço-temporal seja diverso;

criando-se um contexto mais amplo por se tratar de uma referencialidade de cunho

socioexistencial.

Por analogia, recorrendo ao entendimento de Zuenir Ventura (2010:172), diremos

que, hoje, a música de protesto, a música engajada é a música da periferia. Vem de lá esse

movimento de rebeldia. Há toda uma cultura da periferia com características próprias, de

protesto social. Naquela época, a esquerda queria falar em nome da periferia, mas nos

tempos atuais, é a própria periferia que quer levar a todos o seu recado.

Na música “Subúrbio” (2006), podemos verificar que apesar da ausência de

repressão política, Chico mantém seu protesto, ou seja, seus questionamentos em relação à

problemática social brasileira. É pela música, enquanto portadora de uma cultura, que a

voz da periferia revela a sua existência e introduz pelas frestas a sua historicidade. O

subúrbio que, muitas vezes, não figurava nos mapas cresce no ritmo inovador do hip hop

mesclado a rap buarqueano:

Lá não tem claro-escuro A luz é dura A chapa é quente Que futuro tem Aquela gente toda?64

Segundo nos conta Humberto Werneck (2006:60), em 29 de setembro de 1968, o

final do III Festival Internacional da Canção, a plateia do Maracanãzinho soterrou com

vaias quase unânimes a concorrente “Sabiá”, música que Tom compusera para a soprano

Maria Lúcia Godoy e que, antes de ganhar letra de Chico, se chamava “Gávea”.

64 HOMEM, Wagner. op. cit., p. 319.

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Num momento em que se intensificava a radicalização ideológica, grande parte do

público ansiava por canções armadas, como “Pra não dizer que não falei das flores”

(1968), de Geraldo Vandré65 e “Sabiá”, tinha uma manifestação política discreta.

Ainda em 1968, o terceiro LP de Chico foi dedicado ao poeta João Cabral de Melo

Neto e vinha recheado de lirismo como “Januária” (1967), “Desencontro” (1965), “Até

pensei” (1968), “Retrato em branco e preto” (1968), “Carolina” (1967), “Sem fantasia”

(1967). Mas a contundente “Roda - viva” (1967) já era interpretada como uma provocação

ao regime militar. Além de “Funeral de um lavrador” (1966), poema de João Cabral de

forte cunho social musicado por Chico.

A imagem de bom moço, entretanto, já começava a se desfazer mesmo antes de

“Sabiá”, quando Chico sacudiu o “distinto público” com sua primeira peça de teatro, Roda

Viva, que estreou no Rio, em 15 de janeiro de 1968, com uma montagem polêmica e

histórica do diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa.

Roda Viva, em sua segunda montagem, em São Paulo, teve militantes do Comando

de Caça aos Comunistas (CCC) invadindo o Teatro Ruth Escobar, junto com a polícia e

espancando artistas e público. Regina Zappa (2008:103) nos informa que em 20 de

dezembro, véspera de Natal, Chico foi levado pela primeira vez para o famigerado

Departamento de Ordem Política e Social66 (Dops). Encaminhado depois, para ser

interrogado no I Exército e em seguida, solto. Após o interrogatório, foi informado de que

deveria comunicar às autoridades militares toda vez que pretendesse sair da cidade. Chico

Buarque, assim se pronuncia:

Nunca fui comunista de pertencer ao partido, talvez para não vir a ser um anticomunista mais adiante. Sempre tive a ilusão de que as pessoas pudessem se entender e nada me chateava mais que as picuinhas, as intrigas e as fofocas entre os diversos grupos da esquerda. Entrei no Centro Brasileiro Democrático (Cebrade) ─ entidade criada por intelectuais e artistas em 1978 ─ muito por causa do meu pai, que era um dos vice-presidentes (apud WERNECK, 2006:66).

Sérgio Buarque de Hollanda – um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores

(PT) ─ nunca foi comunista, mas o presidente da entidade, Oscar Niemeyer e o outro vice,

65 Geraldo Pedrosa de Araújo Dias nasceu na Paraíba, em 12/09/1935. Desde cedo, já manifestava seu desejo de ser cantor de rádio. Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951 com a família onde conheceu pessoas ligadas ao meio artístico.(VANDRÉ,Geraldo. Biografia. Disponível em: <http://www.velhosamigos.com.br>. Acesso em: 15 jan. 2012). 66 O Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), criado em 1924, foi o órgão do governo brasileiro, utilizado principalmente durante o Estado Novo e mais tarde no Regime Militar de 1964, e tinha como objetivo controlar e reprimir movimentos políticos e sociais contrários ao regime no poder. (Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Departamento_de_Ordem_Política_e_Social>. Acesso em: 05 jan. 2012).

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o diretor Ênio Silveira, eram militantes notórios. Com isso, o Cebrade foi, frequentemente,

identificado como linha auxiliar do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

De 1966 a 1986, Chico produziu pelo menos um disco por ano, com exceção de

1969, o ano do autoexílio italiano.67 Wagner Homem, assim escreve:

Durante 1969, período em que Chico esteve na Itália, continuaram as cassações; Caetano Veloso e Gilberto Gil, após a prisão, exilaram-se em Londres; em abril a ditadura aposentou compulsoriamente Vinicius de Moraes; as denúncias de tortura a presos políticos provocaram até um pronunciamento do papa Paulo VI; a repressão às manifestações conduziu ao recrudescimento das ações armadas; em agosto, o presidente Costa e Silva foi vitimado por uma isquemia cerebral, e uma junta militar assumiu o poder, impedindo a posse do vice, Pedro Aleixo; em setembro, o Congresso, reaberto, elegeu o general Emílio Garrastazu Médici o terceiro presidente do regime militar. E, para completar, o Ato Institucional n°14, de 5-9-1969, reintroduziu a pena de morte, ‘em nome da garantia da ordem e da tranquilidade da comunidade brasileira’ (...) (2009:82-83).

A situação do país, porém, ia se deteriorando. A família e os amigos telefonavam,

escreviam e o aconselhavam a não voltar. E o que era para ser uma viagem de 10 dias

transformou-se numa ausência forçada do solo brasileiro por 14 meses. O “Samba de Orly”

(1970), com Toquinho, data dessa época. A base com orquestra foi gravada no Brasil por

César Camargo Mariano e, na Itália, Chico colocou a voz. Assim nasceu Chico Buarque de

Hollanda nº4, com “Samba e amor” (1969).

Em 20 de março de 1970, Chico, Marieta e Silvia chegaram ao Aeroporto do

Galeão, sendo recebidos por amigos, fãs, a Torcida Jovem Flu, bandinha e tudo mais,

mostrado pela tevê. Caetano e Gil ainda sofriam o exílio forçado em Londres. Uma das

razões que motivaram a prisão e o exílio de Gil e Caetano teria sido o movimento

tropicalista68. A Tropicália, liderada pelos dois, era provocativa e propunha uma ruptura

com a ideologia dominante na época. Algo impraticável para os militares.

Seguindo o entendimento de Luiz Tatit (2004:203-204) podemos inferir que apesar

dos líderes do movimento afirmarem o entendimento de que a canção brasileira era

formada por todas as dicções – nacionais ou estrangeiras, vulgares ou elitizadas, do

passado ou do momento – sem qualquer tipo de exclusão, ainda assim conduziram um

processo de depreciação dos artistas pouco comprometidos com a causa tropicalista.

67 A escolha da Itália para o autoexílio se deveu a dois fatores: em janeiro de 1969, Chico passara dois anos de sua infância e, portanto, dominava o idioma; e o sucesso que a gravação de “A banda” pela cantora Mina fizera naquele país lhe valeu um convite para lançar um disco na Itália pela RCA e fazer um show no Midem, em Cannes, na França. (cf. HOMEM, Wagner. op. cit., p.77). 68 O Tropicalismo foi um movimento cultural revolucionário e polêmico. Propunha inovações estéticas na produção cultural brasileira e se transformou na ‘aventura de um impulso criativo surgido no seio da música popular brasileira, na segunda metade dos anos 1960 (cf. ZAPPA, Regina. op. cit, p. 266).

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Essa rivalidade era alimentada pela imprensa que mantinha acalorada a disputa

entre Caetano e Chico Buarque. A rixa só acabou quando um amigo de Chico, Roni

Berbert de Castro, teve a ideia de reunir os dois num Show no Teatro Castro Alves, em

novembro de 1972.

Em 1971, segundo Regina Zappa (2008:107) foi lançado Construção, seu quinto

disco, visceralmente antagônico ao regime em músicas como “Deus lhe pague” (1971) e

“Construção” (1971), político em “Cordão” (1971) e “Samba de Orly” (1971), mas sempre

lírico e delicado em “Olha Maria” (1971), “Valsinha” (1970) e “Acalanto” (1985).

“Cotidiano” (1971) se tornaria uma de suas mais consagradas canções, que seguiria a

trajetória de “Pedro pedreiro” (1965) ao contar histórias da vida comum. O cortante arranjo

de “Construção” (1971), feito pelo maestro tropicalista Rogério Duprat é, até hoje, um de

seus prediletos.

No ano seguinte, Chico participou como ator do filme Quando o carnaval chegar,

de Cacá Diegues, e lançou dois discos: a trilha do filme, que gravou ao lado de Nara Leão,

MPB-4 e Maria Bethânia, e o histórico Chico e Caetano juntos, que traz, entre outras,

“Partido alto” (1972), “Você não entende nada” (1972) e “Bom conselho” (1972); sem

contar as de canto feminino como “Bárbara” (1972/1973), “Esse cara” (1972) e “Atrás da

porta” (1972). Esta última marcou o começo da parceria com Francis Hime.

A capacidade de dar voz a personagens plurais, reveladores da vida coletiva são

uma forte e poderosa marca na obra de Chico. Como ele mesmo nos diz:

Muitas vezes o objeto da música é impreciso porque o próprio sujeito é impreciso, porque eu não sou eu. A criação musical é muito isso, é sair de você, do seu mundo. Na época da ditadura, quando se estava centrado em você mesmo, era a pior fase da criação para mim, como compositor. Porque aí você está muito eu, eu, eu. Aquilo invade e perturba a sua criação. Isso vai existindo cada vez menos. Você sai de você. Quase sempre você não é você e eu não sou eu (apud ZAPPA, 2008:108).

Em 1973, com a peça Calabar, que escreveu com o cineasta Ruy Guerra, Chico,

também, sofreu com a censura. Regina Zappa (2008:108) expõe com detalhes essa

passagem:

Na época, havia uma censura prévia e uma posterior para todos os espetáculos e, obedientes às regras da ditadura, Chico e Ruy mandaram a peça para que os censores analisassem. Foi aprovada com cortes, tirando-se palavrões aqui e ali. Chico e Ruy se juntaram ao ator Fernando Torres e produziram o espetáculo. Estavam prestes a estrear e marcaram o ensaio geral para a ‘segunda censura’ conferir se os cortes haviam sido feitos. Os censores não apareceram e foram adiando tanto a ida ao ensaio que os produtores não conseguiram esperar e acabaram falindo. (...) Para Chico, ‘foi uma proibição branca’. “Vence na vida

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quem diz sim” foi totalmente censurada e apareceu na versão instrumental, assim como “Ana de Amsterdam”. Apesar de tudo, músicas como “Tatuagem” e “Fado Tropical” nasceram clássicos, junto com “Não existe pecado ao sul do equador”.

Quando fez “Bolsa de amores” (1971),

Comprei na bolsa de amores As ações melhores Que encontrei por lá Ações de uma morena dessas Que dão lucro à beça Pra quem sabe E pode jogar Mas o mercado entrou em baixa Estou sem nada em caixa Já perdi meu lote Minha morena me esquecendo Não deu dividendo Não deixou filhote69

para Mário Reis, também proibida, a censura alegou que se tratava de um atentado contra

a mulher brasileira. Tudo era motivo para censurar as músicas de Chico Buarque –

considerado um símbolo da resistência cultural ao regime.

Ainda na trilha do teatro, Chico havia escrito, em 1975, com Paulo Pontes, Gota

d’água, inspirada em Medeia, de Eurípedes, e transformada em tragédia urbana, em forma

de poema com mais de quatro mil versos. O disco com a trilha sonora da peça saiu em

1977. Em 1978, fez Ópera do Malandro, baseada na Ópera dos mendigos (1728), de John

Gay, e na Ópera de três vinténs (1928), de Bertolt Brecht e Kurt Weill. A peça teve versão

cinematográfica de Ruy Guerra e o disco saiu em 1979, com as músicas “Pedaço de mim”

(1977/1978) e “Uma canção desnaturada” (1979), entre muitas.

Saturado das proibições constantes em suas composições e peças teatrais, resolveu

criar o personagem Julinho da Adelaide, que assinava a composição “Acorda amor”

(1974). Gravou o disco “Sinal Fechado” (1974) com canções de Noel Rosa, Tom Jobim,

Jackson do Pandeiro, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e experimentou o personagem

Julinho. E a música passava sem maiores problemas. Essa brincadeira durou um ano

inteiro.

Regina Zappa (2008:110) nos diz que depois de muito fugir da imprensa, Chico,

deu uma entrevista ao jornal Última Hora, em 1974, mostrando ser, sinceramente, um

compositor sem caráter. Entre outras coisas, comentava que fazia ‘copidesque do

cotidiano’ e que Julinho se aproveitava de Chico Buarque na mesma medida em que Chico

se aproveitava dele. O disfarce veio abaixo.

69 WERNECK, Humberto. op. cit., p. 189.

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Em 1974 – afastado do meio musical há nove meses – Chico escreveu a novela

pecuária Fazenda Modelo, na qual os animais compunham uma alegoria do Brasil

ditatorial, como podemos demonstrar através dessa passagem:

Então tomo a roda-gigante, que confunde céu com chão, céu com chão, léu com cão, daí acelera e dispara e não se vê mais coisa com coisa, se desgoverna, a gente perde a noção do tempo, do céu e do chão, perde a noção da gente, e quando susta ninguém mais se lembra de nenhum problema, volta para casa e dorme feito bicho de pelúcia (2006:39).

Começava a incursão pela literatura e a alternância entre escrever e compor que,

mais tarde, se transformaria no processo de criação buarqueano. Valendo-se do alegórico e

do grotesco com apuro paródico, Chico Buarque oferece-nos o que Affonso Romano de

Sant’anna (1977:20) chama de poética do descentramento: “a mimese se apodera da

tradição escrita e dela se afasta procurando uma nova sintaxe, ordenando-a de modo

diferente da realidade. A linguagem se desdobra nesse universo aberto para o Outro.”

Em oposição a essa poética, temos a representação da mimese consciente, voltada

para a cópia da realidade e da paráfrase – a linguagem do Mesmo. Em entrevista a Marisa

Lira, publicada no Diário de Notícias, Ari Barroso assim nos diz:

Fui sentindo toda a grandeza, o valor e a opulência da nossa terra (...). Revivi, com orgulho, a tradição dos painéis nacionais e lancei os primeiros acordes, vibrantes, aliás. Foi um clamor de emoções. O ritmo original, diferente, cantava na minha imaginação, destacando-se do ruído forte da chuva, em batidas sincopadas de tamborins fantásticos. O resto veio naturalmente, música e letra de uma só vez (...) Senti-me outro. De dentro de minh’alma, extravasara um samba que eu há muito desejara, um samba que, em sonoridades brilhantes e fortes, desenhasse a grandeza, a exuberância da terra promissora, de gente boa, laboriosa e pacífica, povo que ama a terra em que nasceu. Esse samba divinizava, numa apoteose sonora, esse Brasil glorioso (apud NESTROVSKI, 2007:119-120).

A partir desse depoimento, podemos entender porque “Aquarela do Brasil” –

composta em 1939 – ganhou evidências midiáticas como música oficiosa do Estado Novo.

Já as imagens de Buarque ganham outros contornos cinematográficos; por isso,

muitas de suas músicas acabam se transmutando em filmes como “O que será” (1976),

sobretudo na versão “À flor da Terra”, tema do filme Dona Flor e seus dois maridos de

Bruno Barreto, “Meu caro amigo” (1976), endereçada ao amigo Augusto Boal no exílio e

“Vai trabalhar vagabundo” (1973), a pedido do diretor Hugo Carvana.

Na sucessão de discos, o intervalo entre cada um foi ampliando-se, à medida que a

composição se tornava mais elaborada e a literatura ia se plasmando em espaço da criação.

Em meio ao bombardeio da censura, Chico escolheu uma trégua e criou, traduziu e ajudou

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a dirigir o musical infantil Saltimbancos (1977), inspirado no conto dos irmãos Grimm “Os

músicos de Bremen”. Chico trabalhou sobre o texto de Sérgio Bardotti e música de Luiz

Enriquez Bacalov, adaptando a história e traduzindo as músicas para a língua portuguesa.

Em 1979 – promulgada no Brasil a Lei da Anistia – não havendo mais a luta contra

a censura, o compositor lançou o disco da Samambaia; as músicas vetadas aparecem de

novo. “Cálice” (1973), “Apesar de você” (1970), “Tanto mar” (1978) – todas entraram

nesse disco. “Angélica” (1977), composta com Miltinho do MPB-4, só entraria no disco

Almanaque, de 1981, no qual gravou também um de seus principais hits, “As vitrines”,

(1981). Gravou o disco Vida com as canções “Eu te amo” (1980), com Tom Jobim, “Mar e

lua” (1980), “Bastidores” (1980), “Vida” (1980) e “Bye bye, Brasil” (1979).

Das escolas de samba do Rio, a Mangueira foi a escolhida. Dedicou seu apreço a

essa escola em músicas como “Piano na Mangueira” (1993), com Tom Jobim, “Chão de

esmeraldas” (1997) e “Estação derradeira” (1987). Foi homenageado com um enredo,

Mangueira despontando na avenida Ecoa como canta um sabiá Lira de um anjo em verso e prosa De um querubim que em verde e rosa Faz toda a galera balançar "Hoje o samba saiu" Pra falar de você Grande Chico iluminado E na Sapucaí eu faço a festa E a minha escola chega dando o seu recado É o Chico das artes... O gênio Poeta Buarque... Boêmio (bis) A vida no palco, teatro, cinema Malandro sambista, carioca da gema70

contando sua vida na Sapucaí, em 1998. A paixão de Chico Buarque pela verde e rosa

ficou registrada em Cancioneiro Chico Buarque, de Regina Zappa:

Pode ser que esse orgulho exista nas outras escolas. Aconteceu na minha vida essa história de gostar da Mangueira por causa das músicas, e porque vi a escola entrar com Monteiro Lobato. E bateu. É assim que as coisas acontecem. Fiquei próximo da Mangueira e eles preservam muito a sua história. É muito forte mesmo. Às vezes alguém diz: Está vendo aquela lá? É a Dina. Que Dina? Da música: A Dina subiu lá no morro pra me procurar..., do samba do Zé Keti. Ela existe, está lá. Isso é formidável. Tem as ruas, as casas onde os compositores foram criados. Tudo isso. Tem também a noção que vai se ganhando com o tempo de que cada coisa que você faz é uma coisa mais duradoura do que quando se começa (2008:122-123).

70 G.R.E.S. Estação Primeira De Mangueira. Chico Buarque da Mangueira. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/mangueira-rj>. Acesso em: 02 dez. 2011.

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O mesmo orgulho de ser mangueirense, ele tem em esquadrinhar suas melodias.

Regina Zappa (2008:123) nos relata que Chico nunca escreveu uma letra de música antes

de fazer a melodia. Diz que compõe com a melodia puxando a letra. É guiado pela música.

E raramente fez música para letras de outros compositores. No início, as duas coisas, letra

e música, iam se desenrolando juntas nas suas composições. Com o tempo, ele é cada vez

mais parceiro dele mesmo, fazendo a música para depois pôr a letra.

Dos parceiros de Chico, Tom Jobim era o que mais o intimidava por ser um grande

letrista. Francis Hime, que ele classifica como “parceria aberta”, rendeu trabalhos como

“Atrás da porta” (1972) e “Vai passar” (1984). Com Milton Nascimento, fez “O cio da

terra” (1977); com Gilberto Gil, “Cálice” (1973). Com Sivuca fez “João e Maria” (1977).

A mais extensa parceria até hoje é com Edu Lobo. Parceiros em “Dança da meia-lua”

(1988) e “O grande circo místico” (1983), ou peças como Cambaio (2001) e Corsário do

rei (1985). Edu Lobo vê na trajetória de Chico uma transformação.

Existe uma preocupação dele com a música que é crescente. Preocupação com o detalhe musical, com a harmonia. Quase todas as músicas foram compostas para projetos. Sinto um avanço musical do meu trabalho por estar trabalhando com o Chico. Quando o vi mostrando a letra de ‘Beatriz’, do “Circo místico”, eu no piano, ele cantarolando e muito inseguro com a letra, não acreditei. Eu, se fizesse uma letra feito ‘Beatriz’, não ia achar em nenhum momento que alguém pudesse não gostar. Ela tem detalhes que descobri depois. O negócio, por exemplo, da palavra chão na nota mais grave e céu na mais aguda. A música tem uma extensão brutal (apud ZAPPA, 2008:127).

Chico sempre disse que sua vocação literária é anterior à trajetória musical, no

entanto depois que escreveu Fazenda Modelo, em, 1974, só foi retomar o trabalho literário

em 1979, quando fez Chapeuzinho Amarelo:

Amarelada de medo. Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho. Já não ria. Em festa, não aparecia. Não subia escada nem descia. Não estava resfriada mas tossia. Ouvia conto de fada e estremecia. 71

Livro-poema – considerado altamente recomendável pela Fundação Nacional do

livro Infantil e Juvenil, no mesmo ano da publicação – sobre os temores infantis.

71 BUARQUE, Chico. Chapeuzinho Amarelo. Rio de Janeiro; José Olympio, 2009.

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Em 1990 escreveu Estorvo, que lançou em 1991. O crítico literário, Roberto

Schwarz, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), assinalou que

(...) o protagonista de Estorvo transita entre o universo burguês de sua família e a marginalidade fluidamente. Além disso, mostra os personagens de todas as classes conscientes do apelo da imagem na sociedade de hoje. A personagem principal é ‘não menos anômala e acomodada no intolerável que as faunas do luxo ou do submundo’. Ricos e marginalizados unidos pela desilusão das utopias de décadas anteriores e pela erosão da ética. O ‘estorvo’ é de mão dupla: o protagonista, deslocado da sociedade, que incomoda seus familiares; e o estado quase anômico desse meio social, no qual ‘Eu’ não encontra onde se encaixar. 72

Em outra crítica, José Cardoso Pires afirma que

Estorvo é, quanto a mim, uma peregrinação alucinada em demanda das raízes perdidas, através dum percurso existencial povoado de assombro e de solidão. Aqui todas as funções de equilíbrio das estruturas sociais – família, amizade, poder – perdem a sua consciência formal logo ao primeiro embate e entram em ruptura quando o olhar do protagonista (e do escritor) se prolonga sobre elas (apud Zappa, 2011:390).

Os romances, depois de Estorvo, ocupariam, aos poucos, espaço equivalente ao da

música. Depois desse romance, lançou o disco Paratodos, em 1993. Mas o segundo

romance não demoraria a vir. Benjamim foi publicado em 1995 e as comparações entre os

dois livros aconteceram, inevitavelmente. Augusto Massi, professor de Literatura

Brasileira da Universidade de São Paulo (USP) e diretor editorial da Cosac Naify, em

ensaio para a revista científica Novos Estudos Cebrap, escreveu que a narrativa não linear,

iniciada em flashback, não era uma novidade nos romances de Chico. Estorvo também não seguia a ordem cronológica. Do modo como o capítulo inicial foi construído, fica a impressão de sequência no tempo. Porém, ao notar que a figura vista pelo olho mágico aparece rapidamente mais tarde, é possível perceber que a situação descrita nas primeiras páginas de Estorvo é na verdade posterior às cenas que vêm em seguida. Outra semelhança é justamente esse deslocamento intenso do personagem, que, no entanto, não sai da imobilidade. Ambos os protagonistas continuam deslocados na sociedade e incapazes de se apossar de ou atingir alguma meta. São também claramente decadentes, pessoas que já viveram dias mais gloriosos. Como ex-modelo de publicidade, Benjamim vive a eterna frustração de ter seu rosto reconhecido, mas apenas pela aparência.73

O terceiro livro de Chico, Budapeste – prêmio Jabuti de melhor Livro de Ficção em

2004 ─ começou a ser escrito em 2001 e só seria lançado em 2003 pela Companhia das

Letras, suscitando comentários entusiasmados, como de José Saramago (ZAPPA,

2008:128): “Não creio enganar-me dizendo que algo novo aconteceu no Brasil com este

livro”.

72 ALBERT, André. Narrador em amadurecimento. Revista Bravo, São Paulo, Abril, n.2, 2009, p. 50. 73 Ibidem, p. 51.   

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O jornalista André Albert (2009:56), na revista Bravo, também se pronuncia: “de

acordo com a crítica, em alguns momentos, a escrita de Chico teria a qualidade poética de

um sonho dito em voz alta.” Sonhos transformados em filmes: Estorvo, pelas mãos de Ruy

Guerra; Benjamim, pelas mãos de Monique Gardenberg; e Budapeste, pelas mãos de

Walter Carvalho.

Depois de lançar o livro Benjamim em 1995, Chico começou a preparar o disco As

cidades: “Iracema voou” (1998), “Xote de navegação” (1998), “Assentamento” (1997).

No disco Carioca, em 2006, Chico desfia uma extensa lista com nomes de bairros

do subúrbio carioca, em “Subúrbio” (2006), faz uma viagem aos sentimentos juvenis, em

“As atrizes” (2006), a história de um desencontro no tempo, em “Bolero blues” (2006), ao

estado de busca de um amor, em “Renata Maria” (2005) e “Imagina” (1983).

Com o livro Leite Derramado, o premiado romance lançado em 2009, Chico deixa

de lado o músico e retorna a indumentária literária, envolvendo-se, involuntariamente,

numa polêmica em torno dessa premiação. Como o livro não venceu na categoria Melhor

Romance questionou-se a validade de levar o prêmio de Melhor Livro do Ano. Mesmo

causando polêmica, o quarto romance buarqueano rendeu comentários nos principais

meios de comunicação. Heitor Ferraz (2009:10), na revista Bravo, assim se manifesta:

Ao ler o livro, é inevitável pensar no Machado de Assis de Dom Casmurro e de Memórias Póstumas de Brás Cubas ─ este último por conta do enredo em que aparentemente não acontece nada e nenhuma narrativa se estabelece como determinante. É como se o escritor tivesse aproveitado o centenário machadiano para revisitar aquela obra e reafirmar, a partir de uma nova ficção, em perspectiva contemporânea, a herança da ideologia escravocrata.

Francisco Bosco, em um artigo, no jornal O Globo, também demarca seu

posicionamento em relação ao romance:

Em Leite Derramado os tempos encontram-se também tensionados, o presente derruído em oposição ao passado faustoso. E é dessa oposição que ressai uma dimensão importante no livro e sem precedentes, ao menos com essa insistência e intensidade, na obra literária de Chico Buarque (...). Leite Derramado é o tempo perdido e irrecuperável da vida do narrador. Acolhe também uma dimensão sexual, que remonta a suas identificações com o pai e está diretamente relacionada a seu destino (apud ZAPPA, 2011:410).

Essa maestria artística incursionada em diferentes setores e segmentos contribuiu

para que os períodos de criação musical começassem a se alternar com longos períodos de

criação literária e os discos, foram se reduzindo aos poucos. Centrando-nos nas reflexões

de Regina Zappa (2008:135), diremos que desde que passou a se dedicar também à

literatura, convivem no mesmo corpo, em tempos diferentes, um escritor e um músico.

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Quando escreve assume a personalidade do romancista e abandona a do músico. Quando

compõe, deixa o escritor adormecido e passa a habitar o universo sonoro.

Chico Buarque (apud ZAPPA, 2008:137), assim escreveu: “Comecei a desconfiar

que, enquanto estou me dedicando exclusivamente a uma das duas coisas, por exemplo, à

literatura, o músico não está adormecido. Ele está trabalhando, se exercitando de alguma

forma”.

O andarilho Buarque, sempre disse que não queria repetir o que estava feito, mas

que seu impulso era procurar outros caminhos e tentar descobrir outras formas de dizer

aquilo ainda não dito. O maestro Luiz Cláudio Ramos, que faz os arranjos das músicas de

Chico nos shows e discos, acompanhou a evolução musical e garante ser Buarque o maior

mestre em juntar música e letra. O maestro assim se expressa:

É muito bonito esse aspecto da personalidade dele ─ de se dedicar e não se acomodar. Antes era tudo mais natural, depois ele começou a procurar mais. O caminho harmônico de ‘Futebol’, por exemplo, é surpreendente. ‘Dura na queda’ é outro exemplo que dá de música harmonicamente complexa. Essa fase mais sofisticada começou com ‘Sambando na lama’. Foi quando começou a percorrer caminhos harmônicos inesperados e interessantes (apud ZAPPA, 2008:140).

A ensaísta Adélia Bezerra de Menezes, professora de literatura da Universidade de

São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) – em entrevista

concedida à revista Cult: Chico Buarque em prosa e verso – analisa o momento em que a

obra buarqueana ultrapassa os limites da Música Popular Brasileira (MPB) e passa a

integrar o repertório da poesia brasileira. Segue a transcrição:

Na canção popular letra e música formam um corpo único, entranhadamente articulado. E a música, sendo por si produtora de significado, ‘reforça’, por assim dizer, a letra. O próprio Chico, quando perguntado em múltiplas entrevistas sobre seu processo de criação, fala que palavra e música vêm junto, uma puxa a outra, apesar de reconhecer uma certa precedência da música. Mas confessa-se um ‘impuro’ no mundo dos compositores musicais, uma vez que penderia mais para a letra do que para a música. Mas, se formos pensar bem, em toda a poesia (refiro-me à poesia escrita) há essa dialética de música e palavra, ou, em termos valéryanos, de som e sentido. É importantíssimo a sonoridade na poesia; só que na canção o processo é radicalizado. A canção como que desentranha e deflagra a musicalidade que a palavra – toda palavra humana –embute. Por outro lado, a palavra cantada apresenta uma dimensão mais sensorial: ela nos atinge, ainda mais do que a poesia, no nível dos sentidos. Mais do que num poema (sobretudo numa leitura silenciosa, de lábios fechados), na canção a palavra é corpo: modulada pela voz humana, portanto carregada de marcas corporais; a palavra cantada é um sopro que se deixa moldar pelos órgãos da fala, trazendo as marcas cálidas de um corpo humano. (...) A palavra cantada é isso: ligação de sema e soma, de signo e corpo. (...) Por sinal, a articulação poesia e música se faz na tradição poética desde os gregos, cuja poesia era cantada. A Ilíada e a Odisséia, por exemplo, eram apresentadas ao público acompanhadas de melodia. E ‘lírica’ era a poesia acompanhada ao som da lira.

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Aliás, o termo grego aedo significa ao mesmo tempo poeta e cantor, indissociavelmente ligados (2003:54).

Já Starling (2009:20), professora adjunta da Universidade Federal de Minas Gerais

(UFMG), reforça o entendimento supracitado ao lembrar que no processo de composição

de Chico Buarque, em geral é o som que origina o sentido de uma canção, e não o

contrário. Sua gênese costuma ser melódica; a confecção final da letra vem depois. A

canção é sempre um corpus documental muito característico, por conta de sua natureza

híbrida, ao mesmo tempo verbal e poética, musical e interpretativa, quanto de sua

capacidade para engendrar uma estética singular. De modo que toda canção está a serviço

do locus musical da palavra.

O processo de composição está atrelado ao momento da criação – momento da

insônia – descrito por Chico Buarque:

Na insônia burra você nem sabe como se dorme. Você só quer dormir, fica pensando: como é que se faz para dormir? Você não sabe, é como se não soubesse fazer aquilo. Simplesmente não vem, você está cansado, muito cansado, e o sono não vem. (...) Quando penso nos períodos da vida em que estive vivendo essa angústia, mas criando em cima dela, tenho saudades, sinto inveja daquele estímulo. E era danado, porque aí a angústia se juntava à insônia. Ficava dois, três, quatro, cinco dias praticamente sem dormir, dormindo muito pouco, muito mal. Até a exaustão. Mas ao mesmo tempo sabendo que essa insônia, que é barra pesada, era bem-vinda. Na verdade, nessas horas, eu não quero dormir (apud ZAPPA, 1999:146).

Ainda citando Regina Zappa:

Chico precisa do tormento, se alimenta do tormento, o tormento é necessário, é vital. E quando o tormento vira criação, aí é o paraíso. Quem está de fora sente aquela felicidade inacreditável. São, então, os verdadeiros e grandes momentos de felicidade. No que aflora qualquer ideia, começa o grande prazer, o grande gozo. Mesmo quando a coisa não está pronta, mas o caminho já está pavimentado. Aí é o grande barato, são os grandes momentos da pessoa. Tudo muda, tudo brilha. É quando Chico não dorme, são as grandes insônias, mas as insônias que ele adora. As boas. O maior tormento para Chico é a não criação. O tormento total. Poe mais que hoje ele já tenha uma vivência disso, parece que tem que acreditar também profundamente na angústia para poder sair dela (1999:147-148).

A dicotomia entre o Chico escritor e o Chico compositor é uma realidade no

processo criativo do artista. Para Chico Buarque, fazer literatura é muito mais solitário do

que compor canções. Como podemos observar pela entrevista concedida à Folha de São

Paulo, em 1994:

O fato de estar solitário escrevendo um livro, que não vai ser apresentado em público, mas que depois vai ser lido individualmente, me despe um pouco do

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sujeito atirado e algo ingênuo que sou como músico. (...) O lado racional, crítico e seco aflora-se. É o meu lado que não cabe na música, que precisa de outro veículo.74

Essa dicotomia foi esclarecida por Regina Zappa:

Chico parece ter criado esse revezamento entre os dois universos para ordenar sua criação, que se expressa nessas duas formas. Ele costuma afirmar que o escritor não convive com o músico porque o tempo de imersão de cada um é absoluto. Quando vem o ciclo musical, ele se distancia, naturalmente, da literatura para poder escrever as letras das canções. Para ele, a literatura da música popular não tem nada a ver com a literatura dos livros. É outra linguagem (2011:401).

Marieta Severo75 – mãe de suas três filhas – assim se pronuncia: “Chico se nega a

fazer análise porque acredita que se começar a entender muito os seus mecanismos

internos vai acabar com o mistério da criação” (ZAPPA, 1999:151). Uma inquietação

constante segue seus passos. A angústia da criação se instala com intensidade quando

Chico está vivendo seu lado escritor e, muitas vezes, tem vontade de retornar seu lado

músico. Quando está escritor, o que ameniza o tormento da criação literária são as

caminhadas que Chico Buarque faz todos os dias, pela cidade onde vive – o Rio de Janeiro.

Na reportagem de Glória Silva Nunes para a revista Romance, abril de 1981, Chico

Buarque nos explica a outra face da angústia – a perda da capacidade de criar:

Isso está obviamente ligado ao medo da velhice e da morte. Quando passo um mês ou dois sem criar, fico muito preocupado, assustado. Não com a minha imagem e sim comigo mesmo (...) Não durmo bem e passo a ter preocupações de todo tipo. Tenho uma necessidade pessoal, quase física, de estar fazendo alguma coisa, estar me ocupando de alguma coisa e estar criando. Sem produzir, sem realizar algo, sem fazer música, realmente fico insatisfeito, incompleto (...) O instante da criação é muito solitário (...) são momentos únicos, só meus, mesmo quando trabalho em parceria. Depois é que eles são discutidos, depois de escritos no papel (apud ZAPPA, 2011:373).

Voltando ainda a Starling (2009:14-15), acreditamos que o tempo age sobre Chico

Buarque – como na música “Tempo e artista” (1993) – e o artista busca nessa experiência

viva algo que lhe seja próprio e cujo brilho seja eternamente seu: a canção. A tarefa e a

grandeza desse Buarque é tentar enfrentar o movimento inexorável de finitude que

embosca o indivíduo e intercepta o curso da história, reafirmando que apesar da brevidade

74TOSO, André. Escrever é diferente de compor. [sobre o processo criativo de Chico]. Revista Bravo. São Paulo, n.2, 2009, p. 65. 75 Marieta Severo – trabalhava na peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come – quando foi apresentada a Chico Buarque por Hugo Carvana. Ficaram casados por tinta anos, tiveram três filhas: Sílvia, Helena e Luísa e sete netos. Sílvia tem a filha Irene. Helena é mãe de quatro filhos ─ Francisco, Clara, Cecília e Leila. E Luísa, a caçula, tem Lia e Teresa (cf. ZAPPA, Regina. op. cit., p. 23-114).

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da vida e, consequentemente, da velhice, a canção pode em certa medida entrar na

continuidade do tempo, reconciliar-se com ele e nele fazer sua morada.

Morada que, a todo o momento, reflete a figura paterna na escrita de Chico

Buarque. Na música “Paratodos” (1993), encontraremos nas entrelinhas a escrita de Sérgio

Buarque de Hollanda, como a nos dizer que:

Os objetivos e os desejos de cada um de nós não podem se esgotar somente no interior de um cenário minuciosa e cuidadosamente calculado para abrigar nosso mundo doméstico, profissional ou religioso. Para que o Brasil siga mais justo e mais livre é preciso, ao contrário, que seus habitantes também considerem parte indispensável da própria vida os pequenos e grandes encontros, a liberdade do falar um com o outro, a complexa experiência de trocar opiniões sobre alguma coisa e a convicção de que é preciso entender o país em que se vive como algo plural, múltiplo e comum a muitos (STARLING, 2009:34).

É, portanto, irmanados por esses sentimentos, que podemos compreender o medo

de Chico ao perder a capacidade de criação – aquilo que o impulsiona numa permanente

mutação, transformando-o, de tempos em tempos, em um novo escritor ou em um novo

músico. Em entrevista a Fernando Eichenberg, na revista Gol Linhas Áreas Inteligentes,

Chico expõe sobre essa sensação de renovação artística:

Às vezes, você tem a impressão de que já falou sobre tudo, todos os assuntos, já tocou todas as notas, já harmonizou de todas as formas possíveis. Mas você sempre pode descobrir coisas novas. As músicas que eu compus agora têm pouca a ver melódica e harmonicamente com o que eu fiz antes (...). Em “Subúrbio”, do CD As cidades, foi incluída uma sequência harmônica tipo espanhola (apud ZAPPA, 2011:374).

A maturidade o deixou mais à vontade para compor e escrever de forma elaborada.

Pode parecer paradoxal, mas o tempo, que acalma as necessidades juvenis, reforçou em

Chico o poder de preservar a força e o prazer da descoberta que cada vez mais revela na

sua obra a beleza do amor. O novo CD Chico, lançado em julho de 2011, tem, de fato, esse

clima romântico; talvez pelo seu namoro com a cantora e compositora Thais Gulin. Chico,

no documentário Dia voa, confessa o que motivou o seu novo CD – sua fonte de

inspiração:

Naturalmente, tem que se levar em conta que quando se fala de um amor, você não é mais aquele garoto, é um senhor de respeito. Tem que reconhecer a beleza de um amor maduro, sem esquecer o lado de um possível ridículo e o que há de risível nisso, e você começa a achar graça de você mesmo, de seus sentimentos juvenis, e isso parece que não tem cabimento, mas tem. É essa possibilidade de assumir e de brincar com isso, de assumir seu tempo e a idade que você tem e não ficar se desesperando por causa disso. Eu sempre desconfiava [ele ri] desde garotinho que ia ficar velho: eu acho que ainda vou ficar. É a melhor coisa ficar (apud ZAPPA, 2011:415).

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Outra fonte criativa – sobre o blues que compôs, “Essa Pequena” (2011), para o

novo CD, Chico – diz respeito as suas primeiras influências musicais. Chico Buarque

prossegue:

Antes de aparecer a bossa nova e João Gilberto, eu ouvia de tudo, ouvia rádio e rádio tocava tudo. Tinha um grupo de amigos que se reunia para ouvir música americana. Cheguei a tocar bateria. Ouvíamos não só os grandes músicos de jazz, mas os grandes cantores, como Ray Charles e Nat King Cole. Depois veio a bossa nova e aquilo acabou. Virei bossa - novista. Mas essa música toda ficou lá no fundo. E brincou com o linguajar dos jovens. Volta e meia estou fazendo um blues. Tipo blues. Nesse disco é tudo tipo. Tipo uma valsa russa, tipo um baião. É assim. Tipo um disco, tipo um CD (apud ZAPPA, 2011:417).

Pode ser que algum dia seque a fonte de criação, mas até lá Chico Buarque vai

negociando os acordes, gravando primeiro a base, violão, baixo, bateria, piano e voz;

vestindo a canção com metais, cordas, madeira e a vibração do sentimento que altera o

espírito da música. O som das suas palavras reafirmam nossa cultura popular: o samba, o

Carnaval, a marchinha.

A forma poética encontrada por Chico de expressar nossa cultura, onde o

imaginário e a história se coadunam, foi através da banda. Manifestação musical que se

apresenta na construção de um valor e de um sentido singular cuja melodia parece não ir a

lugar algum, pois está sempre retomando o que já apareceu antes, seja no plano das

pequenas unidades – tema –, seja no plano das partes integrais – o que conhecemos como

refrão. Resultado de um momento político que se plasmava em suas canções.

A poesia política de Chico (CESAR, 2007:142) consiste em tornar a realidade

opaca, permanecendo suas ideias independentes da história, para assim essas ideias

poderem explicar essa realidade que lhes é adversa. Chico se propõe a desvendar os

processos reais, delatando o poder de dominação, de exploração do sistema sobre os

dominados, opondo-se à racionalidade histórica da lógica do sistema que consolida as

injustiças sociais, fazendo de sua música, “A banda”, um espaço de paz.

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CAPÍTULO 3

O MENINO FRANCISCO E A BANDA

“A banda” (1966) Estava à toa na vida O meu amor me chamou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor A minha gente sofrida Despediu-se da dor Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O homem sério que contava dinheiro parou O faroleiro que contava vantagem parou A namorada que contava as estrelas parou Para ver, ouvir e dar passagem A moça triste que vivia calada sorriu A rosa triste que vivia fechada se abriu E a meninada toda se assanhou Pra ver a banda passar Cantando coisas de amor O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou A moça feia debruçou na janela Pensando que a banda tocava pra ela A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu A lua cheia que vivia escondida surgiu Minha cidade toda se enfeitou Pra ver a banda passar cantando coisas de amor Mas para meu desencanto O que era doce acabou Tudo tomou seu lugar Depois que a banda passou E cada qual no seu canto Em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor76

Chico voltava da Europa e vivia do sucesso de Morte e vida severina. Era julho de

1966. Estava em casa, esperava o almoço, quando veio à cabeça a imagem de uma banda

passando e várias coisas acontecendo. Lembrou-se de a banda da infância que tocava no

terreno atrás da sua casa, na rua Haddock Lobo, em São Paulo. Lembrou-se de a banda da

pequena cidade de Cataguazes, onde, aos 17 anos, ficara no internato. Lembrou-se até da

troca da guarda do Pálacio de Buckingham, que vira em Londres. Teve nesse momento, a

ideia, mas os versos não saiam. Esqueceu o almoço, pegou o violão, um papel e, ali na

76 HOMEM, Wagner. op. cit., p. 40-41.

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mesa, “A banda” saiu quase inteira, de estalo. Pensou em deixar a banda tocando para

sempre na rua, mas preferiu tornar as coisas mais reais.

Centrando-nos nas palavras de Caetano Veloso (apud FERNANDES, 2004:30):

“Chico Buarque anda pra frente arrastando a tradição”, compreenderemos que no

mapeamento sonoro buarqueano sempre estiveram presentes o novo e o velho, o

contemporâneo e a tradição. Seu texto sonoro faz emergir da gaveta de nossas lembranças,

a música domingueira das praças (segunda metade do século XIX), que prefacia a

identidade musical de Chico Buarque.

O imaginário de Chico encontra sua essência nas marchinhas militares e, aliado às

suas intenções, esse imaginário constrói no inconsciente coletivo, a história da música

popular. Acompanhando as lembranças de Chico Buarque – os passos iniciais de sua

composição – apreenderemos a matriz de A banda.

Retomando o fio dessa história, Tinhorão (1998:191) nos conta que com a

valorização das bandas de tropas da Primeira Linha e da Guarda Nacional, centenas de

músicos de origem popular encontravam oportunidade de viver de suas habilidades e de

seu talento, dialogando com o povo, através da música de coreto e de festas cívicas, um

tipo de formação instrumental muito próxima das orquestras das elites. E a prova de que a

ação das bandas militares extrapolava, realmente, suas funções estritas reside no fato de

que os próprios civis imitavam sua formação, criando bandas semelhantes para tocar

música de baile ou de coreto de praça.

Foi exatamente pela necessidade de entremear as marchas militares com músicas do

gosto popular que essas bandas de corporações fardadas começaram a incluir, em seus

repertórios, os gêneros mais em voga àquele tempo, ou seja, as valsas, polcas e mazurcas

importadas da Europa para atender aos propósitos de modernidade das novas camadas da

pequena burguesia.

No Rio de Janeiro, essas relações entre as bandas militares e a música popular iriam

ser favorecidas pelo advento do carnaval à europeia, em 1855, por iniciativa do escritor

José de Alencar, numa tentativa de superpor ao Entrudo77 popular, um estilo de

divertimento ao agrado da classe média. Em contraste com a violenta explosão popular do 77 O costume de se brincar no período do carnaval foi introduzido no Brasil pelos portugueses, provavelmente no século XVI, com o nome de Entrudo. Já na Idade Média, costumava-se comemorar o período carnavalesco em Portugal com toda uma série de brincadeiras que variavam de aldeia para aldeia. A partir de 1830, uma série de proibições se sucedem na tentativa, sempre infrutífera, de acabar com a festa grosseira. Combatido como jogo selvagem, o entrudo continuou a existir com esse nome até as primeiras décadas do século XX e existe até hoje no espírito das brincadeiras carnavalescas mais agressivas, como a "pipoca" do carnaval baiano ou o "mela-mela" da folia de Olinda. (Entrudo. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Entrudo>. Acesso em: 19 jan. 2012).

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Entrudo do povo miúdo, os foliões se reuniam no Passeio Público e passavam a tarde como

se passa uma tarde de carnaval na Itália, distribuindo flores, confete e intrigando os

conhecidos e amigos.

Essa importância nacional assumida pelas bandas militares, ao serem

democraticamente postas a serviço da divulgação da música popular em discos e

apresentações em lugares públicos, acabaria por traduzir-se na dignidade conferida a seus

músicos. Em 1931, em artigo para a revista Weco, da Casa Carlos Wehers, o funcionário

da editora Djalma De Vincenzi, referendava o prestígio popular das bandas militares:

Certamente que seria de muita conveniência ir aos poucos habituando essa gente [referia-se ao povo das praças públicas, reunido para ouvir música de coreto] a apreciar também boas melodias, e assim modificar o juízo de que os concertos públicos são unicamente para os que têm pelos sambas e maxixes restrita preferência; e não compreendem a beleza e valores artísticos das obras musicais de Miguez, Delgado de Carvalho, Barroso Neto, Nepomuceno, Fróes, Francisco Braga, Francisco Mignone, Lorenzo Fernandes, Assis Republicano, e outros tantos inspirados compositores patrícios.78

Nesse seletivo filme sedimentado por Tinhorão, encontraremos a trajetória

sociomusical de Chico Buarque. Sem perder o vínculo primeiro da estrutura do samba, das

marchinhas que inspiraram Noel Rosa – “Cidade mulher” (1936):

Cidade notável Inimitável Maior e mais bela que outra qualquer Cidade sensível Irresistível Cidade do amor Cidade mulher79

e os outros compositores da era do rádio, as músicas do filho de Sérgio Buarque são

dominadas ora pela pulsação periódica da batida – ao agrado do público de gosto popular

– ora pelas manobras melódicas ao estilo da bossa nova – ao agrado do público de classe

média comprometido com os valores artísticos das obras musicais – inspiradoras de

Vinícius e Tom Jobim – “Garota de Ipanema” (1962):

Olha que coisa mais linda Mais cheia de graça É ela menina Que vem e que passa No doce balanço, a caminho do mar80

78 apud TINHORÃO, José Ramos. op. cit., p. 200-201. 79 MOUTINHO, Marcelo. (Org). Canções do Rio: a cidade em letra e música. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009, p. 51. 80 Ibidem, p. 90.

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Mas lutando com os limites da linguagem musical e da linguagem verbal, Chico

deixa patente sua busca no desconhecido, no mistério da condição humana. Sua

composição é a própria escritura no domínio do tempo que, liricamente, chancela sua arte

de questionar no silêncio da fresta:

E cada qual no seu canto Em cada canto uma dor Depois da banda passar Cantando coisas de amor81

A convergência de nossa compreensão encontra amparo em Meneses (2002:48-49),

que nos relata que há muito de saudosismo nesse Chico Buarque, saudosismo marcado por

lembranças do ontem. No entanto, seus versos musicais, nessa fase, são caracterizados de

forma nostálgica não porque se utilize de figuras da infância, mas pela postura lírica do

compositor, seu desejo de retorno, a ânsia dolorida por uma volta a uma situação ou a um

espaço que não fazem parte da realidade atual.

Essa volta nem sempre representa um retorno ao passado, podendo comportar

também, a criação de um espaço privilegiado, em que se opera a proposta de um tempo-

espaço outro – a festa, a banda, o carnaval, a marchinha – onde a fraternidade e o amor

possibilitem a comunhão dos afetos.

Cantando e dançando, manifesta-se o homem como membro de uma comunidade

superior. É justamente isso que os versos de Chico Buarque tentam resgatar, aquela

transição secular do mundo bucólico, imaculado ao citadino, industrial, capitalista, da

constituição da história como progresso. Os versos-rítmicos revelam uma atmosfera de

encantamento. Os versos-melódicos participam da produção de um tempo circular,

recorrente, que encaminha para a experiência de um não-tempo ou de um tempo virtual.

Mas os mesmos versos se deixam reduzir pelo campo harmônico, à sucessão cronológica e

à rede de causalidades que amarra o tempo social comum: “Mas para meu desencanto” /

“O que era doce acabou” / “Tudo tomou seu lugar” / “Depois que a banda passou”.

Dentro desse quadro de profundidade e movimento, a manifestação da linguagem

musical buarqueana é concebida. Sua música conseguiu fazer com que as palavras

passassem a valer mais pela parte sonora do que pelos seus significados. Suas invenções

artísticas remontam às raízes míticas ─ modo específico de interpretar o mundo e o homem

─ o que nos levou a ressuscitar as palavras de Shopennhauer:

81 HOMEM, Wagner. op. cit., p. 40-41.

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Como um pescador no seu barco, tranquilo e pleno de confiança na sua embarcação, no meio de um mar desmesurado que, sem limites e sem obstáculos, levanta e derruba montanhas de ondas cheias de espuma, mugindo e bramindo, o homem individual, no meio de um mundo de dores, permanece sereno e impassível, porque se apoia confiadamente no principium individuationis. 82

Poderíamos dizer que a confiança inabalável neste princípio, e a serenidade calma

de quem nele se compenetra, encontrou em Apolo a expressão mais sublime, a imagem

divina do princípio de individuação, cujos gestos e olhares nos falam de toda a sabedoria e

de toda a alegria da aparência.

De acordo com Nietzsche (1948:22-34), Apolo aparece-nos, porém, como imagem

divinizada do princípio de individuação, princípio pelo qual se cumprem os desígnios do

Uno primordial, mostrando-nos assim, com gestos sublimes quanto o mundo do sofrimento

é necessário, para que o indivíduo seja obrigado a criar a visão libertadora, porque desse

modo, abismado na contemplação da beleza, o homem permanecerá calmo e sereno,

levado na sua frágil barca por entre as vagas do mar alto. Mas ao lado do sublime há o

êxtase arrebatador – o prazer – que surgirá no indivíduo com todos os seus desvarios e suas

desmedidas, a demonstrar que no fundo do abismo, também, reina Dionísio.

Voltando às fontes, encontraremos também, na República, o estabelecimento e a

defesa da norma que se faz contra dois males: a inovação e o transe dionisíaco.

Para efeito de coesão da pólis, Platão afirma a superioridade dos instrumentos mono-harmônicos (a lira e a cítara, instrumentos de Apolo) sobre os instrumentos de muitas harmonias e cordas (a harpa, o bombyx – flauta elaborada e virtuosística – e o aulos popular, instrumento dionisíaco). (...). Em contraposição, recomendam-se as harmonias capazes de levar à temperança, ao heroísmo altivo, à soberana aceitação de adversidade. Muito sintomaticamente também, numa poética apolínea e antidionisíaca como esta, indica-se a dominância da poesia sobre a música: ‘o ritmo e a harmonia seguem a letra, e não esta àqueles.83

É desse modo que compreendemos o ethos musical de “A banda” (1966) como uma

estética plural, entre o sagrado (Apolo) e o profano (Dioniso). O desencadear de uma

sacralidade apolínea, identificada com a voz da ordem, da razão, dos personagens estáveis

no âmbito da sociedade – o homem sério, o faroleiro e a namorada – mescla-se ao aulos

dionisíaco, identificado com a voz dos “não-cidadãos”, das minorias, dos personagens

82 apud FRIEDRICH WILHELM, Nietzsche. A Origem da Tragédia: Proveniente do Espírito da Música; (trad. de Erwin Theodor). São Paulo: Moraes, 1872, p. 22. 83PLATÃO apud WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 103.

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paratópicos84 (sendo atribuídos a estes, os ritmos considerados não-harmônicos) – a moça

triste, feia e o velho fraco – tornando assim, essa obra semierudita.

A utilização de motivos folclóricos ou rurais pelo compositor Chico tem um sentido

de ancoragem histórica, para que sua produção não se distancie muito das raízes populares

e tenha a chance de ser reconhecida e apreciada pela coletividade. Mas a versatilidade

buarqueana confere ao ritmo popular um tratamento melódico sofisticado.

Aproveitando os ensinamentos de Wisnik (1989:163), diríamos que “A banda”

(1966) por ser uma música tonal85, perde as suas antigas funções rituais, remetidas agora

ao âmbito da contemplação estética, no contexto exclusivo da representação (música de

câmara, adequada a esse novo estado de ritualidade em suspensão). É nesse momento que a

linguagem musical de Buarque, sem ter propriamente uma função ritual e sem ser narrada

por um mito, se investe internamente de estruturas míticas – o seu mito é o da crise e da

reparação da ordem questionada e recomposta.

Concebida como o próprio elemento regulador do equilíbrio cósmico que se realiza no equilíbrio social, a música é ambivalentemente um poder agregador, centrípeto, de grande utilidade pedagógica na formação do cidadão adequado à harmonia da pólis e, ao mesmo tempo, um poder dissolvente, desagregador, centrífugo, capaz de pôr a perder a ordem social. 86

Neste ponto de vista, os versos musicais buarqueanos tornam-se símbolos não no

sentido do que designam, mas no sentido de que cada um deles gera seu próprio mundo

significativo. A leitura mítica é um deles. Cito Sendra: “O pensamento mítico ao caminhar

para o pensamento lógico vai deixando pelos caminhos pegadas, cujos sentidos, ainda que

fragilizados, testemunham, quando chamados, um passado que se pensa passado, mas se

faz presente como semente originária.”

Se considerarmos “A banda” (1966) na sua especularidade complementar, vamos

encontrar uma narrativa em que a imbricação do sucessivo e do simultâneo dão ao sentido

uma configuração partitural, uma estrutura sonora em que a trama discursiva dos

elementos ganha um direcionamento mítico.

84 Em seu livro O contexto da obra literária: enunciação, escritor, sociedade, Dominique Maingueneau qualifica a condição de personagens paratópicos os indivíduos ou grupos cuja pertinência à sociedade é problemática (monstros, mendigos, ladrões). (apud DE FERNANDES, Rinaldo. (Org). Chico Buarque do Brasil: textos sobre as canções, o teatro e a ficção de um artista brasileiro. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, p. 333). 85 “Enquanto as músicas modais circulam numa espécie de estaticidade movente, em que a tônica e a escala fixam um território, a música tonal produz a impressão de um movimento progressivo, de um caminhar que vai evoluindo para novas regiões, onde cada tensão se constrói buscando o horizonte de sua resolução”. (cf. WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 114). 86 Ibidem, p. 102.

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Se pensarmos, ainda em contexto grego, nas lendárias harpas eólias, tocadas pelo

vento, combinaríamos a forma apolínea (a lira) e a força dionisíaca (o oceano) como dois

modos representativos de um só evento: “Os golfinhos apolíneos vêm em socorro do

músico, surgindo do abismo oceânico como um princípio de organicidade que permite

flutuar. Dionísio, com a sua força, que domina as formas, transforma os marinheiros, que

pensam submetê-lo, em golfinhos: dando-os a Apolo”. 87

Talvez possamos ver, nesse momento mítico, as notas musicais de Buarque como

sendo os delfins desse oceano sonoro: ponto de apoio e de referência. A articulação entre

elas toma as formas de escalas, repertório de sons inter-relacionados, capazes de gerar

frases melódicas dotadas de sentido.

Partindo da análise acima, podemos observar que no fraseado progressivo de A

banda, as melodias caminham por um fio lógico em que se distinguem claramente o antes e

o depois na linearidade do tempo, mas por possuir fragmentos sonoros recorrentes, transita

pela esfera do mito.

Olhando, panoramicamente, a música de Buarque, observaremos que na tessitura de

sua canção – onde se constitui, se problematiza e se dissolve a grande diacronia – o mundo

da dialética e do romance se autoreferenciam. Assim, tudo se passa como se a música e a

narrativa da banda dividissem entre si a herança do mito e do tempo histórico, ficando uma

com o tecido relacional através do qual se encadeiam os motivos e a outra com os

personagens e a ação.

Esse paradoxo temporal pode ser explicado por conta de determinados fatores:

1. O fato de ser filho de Sérgio Buarque de Hollanda, um dos mais importantes historiadores e críticos literários do Brasil, teria despertado Chico Buarque a conhecer diversas formas literárias, pondo-o em contato com a cultura e poesia medievais; 2. Seu interesse pela cultura popular, em especial a nordestina ─ que em certos aspectos pode ser considerada descendente da literatura medieval; 3. Também poderia ter influído seu contato com poetas estudiosos da poesia medieval, como Vinicius de Moraes que recorria às cantigas de amigo. 88

Meneses (apud FERNANDES, 2004:158) nos informa que essa contradição na

figuração do tempo representa um lastro cultural que vai “do tempo cíclico do mito, sob o

signo de Odisseu, que parte de Ítaca e que volta para Ítaca, ao fim de sua odisseia; ao

tempo histórico, sob o signo de Abraão, que parte de sua cidade, Ur, na Caldeia, rumo à

87 WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 72. 88 CALADO, Luciana Eleonora de Freitas apud Fernandes, Rinaldo de. op. cit, p. 274.

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Terra Prometida, sem retorno, inaugurando o movimento inexorável da história. Imbricam-

se assim, duas visões, “duas vivências de tempo”: o tempo helicoidal da filosofia grega e o

tempo irreversível do monoteísmo judaico.

Por isso, percebemos que na tentativa de dominar a palavra, a música e os versos

buarqueanos se procuram como se quisessem suprir a falta de um signo total sobre o qual

se deslocam num movimento contínuo, buscando sempre um elo de significação. Nesse

movimento de tensão e repouso, que se desenrola graças à procura permanente de

significações, emergirão trocas sonoras a caminho do campo harmônico. “Pode-se dizer

que no movimento cadencial a crise é introduzida e harmonizada: o sistema se constitui

admitindo o conflito na medida em que este pode ser solucionado dentro do horizonte do

próprio código. O equilíbrio dos intercâmbios entre o poder tensionante e o poder

resolutivo é a marca do estilo clássico” (WISNIK, 1989: 115).

De modo que, pensar as relações entre a música buarqueana e o mito significa

pensar a música como portadora de uma história do sentido (da memória) cindida pela

recorrência do pulso (esquecimento, dissolução do sentido no refrão onomatopaico, na

sílaba rítmica). Aristóteles, em Política, assim escreve:

Palas Atena, a deusa virgem saída diretamente do crânio de Zeus, persona da sabedoria, da razão e da castidade, defensora do Estado e do lar contra seus inimigos externos, protetora da vida civilizada e inventora das rédeas que controlam os cavalos, ao ver sua face refletida num lago, quando tocava o aulos dionisíaco, estranha seu próprio rosto (inflado pelo sopro) e atira o instrumento às águas. 89

O aprofundamento da separação entre a música apolínea e a dionisíaca – em “A

banda” – a favor da primeira provocará, com o tempo, a estabilização de uma hierarquia

em que, assim como a música se subordina à palavra, o ritmo se subordina à harmonia; já

que o ritmo equilibrado é aquele que obedece a proporções harmônicas em detrimento dos

excessos rítmicos, melódicos e instrumentais da festa popular.

Além disso, o som da banda também traz uma ilusão momentânea de felicidade a

quem ouve, arrancando as pessoas dos sentimentos de solidão e sofrimento, para o qual

elas retornam quando cessa o som. A lírica buarqueana, segundo Anazildo Vasconcelos

(2010:107), não traça a trajetória do eu-lírico diferençado em sua problemática subjetiva,

mas insere-se na experiência compartilhada da problemática humano-existencial.

89 apud WISNIK, José Miguel. op. cit., p. 105.

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A ilusão momentânea a quem ouve o som da banda diz respeito à percepção sonora

que é, por princípio, uma percepção singular. A escuta captura o sensível do som, traço

fugaz da audição, que se esvai com a desaparição do objeto sonoro e o retorno à realidade

circundante. Há, na verdade, uma espécie de experiência sensorial primitiva como se a

música capturasse, por todo o corpo, as figuras míticas de nosso sentir original, agisse

fisicamente. Nossa memória auditiva determina nossa percepção acústica e torna nossa

necessidade interior, com a passagem da música, momentaneamente concretizada. A

música evoca a vida orgânica do nosso corpo. Ela nos atravessa. Isto se dá porque

(...) os sons têm a capacidade de estimular, com grande eficiência, reações corporais por similaridade ao estímulo apresentado. Essa é sem dúvida a base fisiológica para a eficiência significante do pulso rítmico. Um pulso sonoro constante, principalmente nas frequências baixas, pode estabelecer rapidamente uma ressonância com nossos ritmos corporais inconscientes e provocar alterações em nosso estado de percepção consciente. (...)90

O verdadeiro teor de uma percepção sonora é inatingível pelo outro e

intransmissível por quem a viveu. Utilizando a linguagem verbal, podemos resgatar parte

dessa experiência, projetá-la na esfera da coletividade e obter certa empatia por

aproximação de experiências. Pela canção parece que essa singularidade faz aproximar as

experiências vividas, individualmente, e o compositor movido pelo fazer criativo,

coletiviza essas vivências. Chico Buarque imprime essa canção-vivência91, esquadrinhada

por pioneiros como Noel Rosa, Ismael Silva, mas sem continuidade desde o alastramento

da paixão pelos boleros e sambas-canções das décadas de 40 e 50 e esquematização dos

conteúdos passionais empreendidos pela bossa nova.

Apropriando-nos da semiótica musical, desenvolvida por Luiz Tatit (2002:20),

diremos que Chico Buarque com “A banda” (1966) enfeixou essas experiências singulares

porque soube projetar na esfera da coletividade os acordes, melodias e ritmos sugeridos

pela alma do seu povo.

Para Sendra (2010:82), na heterogeneidade semiótica de um texto estão presentes

tanto uma consciência natural do homem, elemento isolado, como a cultura, enquanto

inteligência coletiva que vem trazendo sua memória. De modo que a arqueologia do tempo

tecidas pela historiografia e pela literatura popular devem transformar a força da imagem a

seu favor para que empreendam uma cartografia mnemônica do ato de escavar e recordar

90 SANTAELLA, Lucia. op. cit., p. 111. 91 Expressão utilizada por Luiz Tatit. 

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através da filosofia da linguagem. Esse fundamento pode ser compreendido em um dos

fragmentos da Crônica berlinense (1974) onde Benjamin afirma:

A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o médium. É o médium onde se deu a vivência, assim como o solo é o médium no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo, pois fatos nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação, ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos de nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do colecionador. E certamente é útil avançar em escavações segundo planos. Mas é igualmente indispensável a enxada cautelosa e tateante na terra escura. E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. Assim, verdadeiras lembranças devem proceder muito menos informativamente e antes indicar o lugar exato onde o investigador se apoderou delas. A rigor, épica e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo tempo fornecer a imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente.92 (grifos nossos)

A fotografia desse inventário de achados populares, de raízes culturais onde o

tradicional dialoga com o moderno, indica a geografia sociocultural e cronotópica por onde

transita o brasileiro Chico: da geração da poesia ao futebol, da feijoada à música

carnavalesca, da solidariedade ao bom humor, como se festejasse as labaredas de uma

cidade.

Segundo Marcelo Moutinho (2009:17), uma cidade que evoca em seu epíteto o

verso de uma canção já revela a inequívoca vocação musical. O Rio sempre esteve

presente no cancioneiro de décadas e décadas anteriores. Do início do século passado até

os dias que correm, a cidade foi comentada, criticada e saudada por intermédio da música,

seja com a alusão a suas ruas e seus bairros, seja por meio da crônica de seus personagens.

Ou ainda, e de forma mais direta e global, em odes ou antiodes que descortinam a dor e a

delícia de se viver nele.

Todas essas emoções foram tatuadas na crônica de Carlos Drummond de Andrade –

elogio ao criador da banda:

O jeito, no momento, é ver a banda passar, cantando coisas de amor. Pois de amor andamos todos precisados, em dose tal que nos alegre, nos reumanize, nos corrija, nos dê paciência e esperança, força, capacidade de entender, perdoar, ir

92 BENJAMIN apud SILVA, Márcio Seligmann (Org). História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. São Paulo: Editorada Unicamp, 2003, p. 403-404.

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para a frente. Amor que seja navio, casa, coisa cintilante, que nos vacine contra o feio, o errado, o triste, o mau, o absurdo e o mais que estamos vivendo ou presenciando. A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e a banda vêm trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, a falta de ar. A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a ideia de como andávamos precisando de amor (...) 93

Apesar de saudada com entusiasmo por figuras tão díspares, “A banda” (1966) não

fez de Chico a tal unanimidade nacional que se propalava. Havia quem visse no lirismo e

na singeleza da canção um retrocesso, uma postura alienada para uma época que exigia o

engajamento político dos artistas. O que o patrulhamento ideológico chamava de alienado

era, na verdade, uma atitude pensada, conforme o próprio Chico esclareceu em entrevista à

Rádio do Centro Cultural São Paulo:

Quando compus “A banda” eu me lembro que ─ pra não dizer que havia unanimidade ─ havia, sim, uma discreta condenação por parte da esquerda que ainda insistia em ouvir o grito do Opinião, o grito de um ‘Carcará’ e tal. A Nara Leão, aliás, me acompanhou nesse movimento, porque ela também já estava um pouco cansada dessa tal música de protesto que se fazia então, que não passava das portas do teatro e que, no fim das contas, era ineficaz. “A banda” era uma retomada do lirismo, proposital mesmo, porque eu não era tão inocente assim quanto parecia. Eu tinha um passado ─ também discreto, porque eu era muito garoto ─ de luta estudantil. 94

Tentando recapitular esse momento, Ligia Vieira (2007:100) nos explica que a

repressão que tomou conta do país, a partir de 1964, focou inicialmente os sindicatos,

partidos políticos, entidades estudantis, não se estendendo às artes. O Teatro de Protesto,

os Centros de Cultura, o Cinema Novo, a Poesia Violão de Rua, a música de vanguarda

puderam, assim, prosseguir livremente, como uma espécie de desafio ao regime. Dessa

forma, a música e as artes passaram a conter o desabafo, a expressar o repúdio ao arbítrio

governamental.

O governo Castelo Branco, até 1968, foi liberal com a arte de protesto e a

intelectualidade da esquerda, desde que desvinculadas suas possíveis manobras com a

classe popular. A esse respeito, comenta Roberto Schwarz: “Cortadas naquela ocasião às

pontes entre o movimento cultural e as massas, o governo Castelo Branco não impediu a 93 HOME, Wagner. op. cit., p. 44-45. 94 Ibidem, p. 46.

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circulação teórica nem artística do ideário esquerdista que, embora em área restrita,

floresceu extraordinariamente” (apud CESAR, 2007:101).

Paralelamente a esse contexto, Fernando de Barros (2004:37-41) nos diz que boa

parte dessa energia oposicionista e esquerdizante que irradiava da cultura havia sido

canalizada para a música, desaguando na chamada era dos festivais, a partir de 1965. “Mas

para lá também convergiram, de um lado, disputas e interesses comerciais crescentes entre

emissoras que se profissionalizavam e descobriam o filão do showbiz e, de outro, as

rivalidades entre os novos astros da MPB, que esses mesmos festivais e TVs começavam a

projetar.”

Galvão (1976:93) salienta que, desses festivais, nasceu a Moderna Música Popular

Brasileira (MMPB), apresentando uma proposta nova dentro da tradição. Este projeto tinha

duas faces. No plano musical, implicava numa volta às velhas formas da canção urbana

(marcha, marcha-rancho, modinha, frevo) e da canção rural (moda de viola, samba de roda,

desafio). No plano literário, implicava um compromisso de interpretação do mundo que

nos cerca, particularmente, em suas concreções mais próximas, brasileiras.

A proposta nova da Moderna Música Popular Brasileira (MMPB) residia nesse

compromisso com uma realidade cotidiana, fazendo com que os compositores derrubassem

velhos mitos que se encarnavam em lugares comuns da canção popular, como o sertão, o

morro.

Chico Buarque por ser um dos compositores brasileiros mais sensíveis às

manifestações populares insere-se, portanto, nessa nova proposta. Muitas das suas

composições penetram na natureza do carnaval e no caráter utópico dessa festa popular.

Para Luciana Eleonora de Freitas (apud FERNANDES, 2004:275), o Carnaval,

nesse sentido, não se confunde apenas com a festa mais popular do Brasil. Trata-se antes

de um tempo-espaço em que a comunidade liberta todas as suas repressões, assumindo nas

máscaras e nos disfarces a sua verdadeira identidade.

A respeito da cultura do carnaval e de outras festas populares celebradas na Idade

Média, Bakhtin faz a seguinte análise:

Todos esses ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da Igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado; pareciam ter construído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas (apud Fernandes, 2004:276).

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A felicidade e o riso, projetados na banda, terão esses dois traços marcantes: será

fugaz e sempre relacionado a motivos musicais e próprios da cultura popular – o Carnaval,

a cabrocha, o violão; além disso, terá os olhos voltados para a realidade, para o mundo

oficial e sério.

Essa arte de virar ao avesso às formas de comportamento sério e conservador da

ideologia oficial é uma marca representativa na música de Buarque. “Porém, se os poetas

medievais privilegiavam o ataque à literatura sagrada, em textos impregnados de elementos

grosseiros e obscenos, as paródias do compositor Chico apresentam um caráter político”

embora não percam o tom lírico e trovadoresco (FREITAS apud FERNANDES,

2004:277).

Sant’Anna (apud FERNANDES, 2004:163) analisa “A banda” como se a saída da

rotina, o advento da música e o retorno ao prosaico estivessem assinalados por um

movimento de fechamento ou de abertura dos indivíduos em relação à música que passa.

Vivenciando diferentes momentos geridos e gerados por fatos sociais, o compositor Chico

vai regenerando o tempo e elaborando a paz proporcionada pelo samba, pela marchinha de

carnaval.

Movido por esse sentimento, mobília sua próxima música com restos da delicadeza

quase perdida desse país. Porções inteiras do nosso vivere civile concentradas em versos

que cortam transversalmente a cidade e integram públicos diversos até o limite do

indivíduo comum.

Chico nos convida a ouvir “Paratodos” (1993), guiados pelo som de uma toada com

jeito de serenata, na tentativa de costurar com a melodia o seu modo de pensar o país e o

percurso da história brasileira. As carreiras de todos os cantores populares, instrumentistas

e especialistas na interpretação de canções do século XIX ao século XX vão sendo

traduzidas pelos versos democráticos a que Chico nos submete a fim de que leiamos a

trajetória da obra de cada artista.

Trajetória que se desenvolveu dentro da interação campo-cidade seguindo sempre

representada pelos frevos pernambucanos, pelas marchas, sambas de Carnaval, sambas de

enredo, sambas-canções, toadas, baiões, gêneros sertanejos e canções românticas em geral.

O que essa evolução do processo sociocultural brasileiro no âmbito das camadas

urbanas nos revela – das gerações da Época de Ouro, passando pelos festivais populares

com os tropicalistas, bossa novistas e a Jovem Guarda – é o emblema de um país cordial.

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Só compreenderemos a amplitude dessa posição histórica por dois ângulos:

cordialidade-civilidade; o que nos faz lembrar à crítica feita por Sérgio Buarque de

Hollanda ao intelectualismo e à racionalização. Poderemos entender a discussão a partir do

problema de como modernizar-se sem objetivar e reduzir as relações sociais. Isto se

coaduna com a concepção modernista de recuperar no passado a especificidade da cultura

nacional, de forma a relacioná-la e integrá-la – como contribuição particular – ao moderno

e ao universal. De outro lado, outra forma de confrontar a oposição cordialidade-civilidade

é compreendê-la a partir da incompatibilidade entre a cordialidade e a democracia. Neste

caso, o que Chico nos sugere com sua próxima música “Paratodos” (1993) é a

possibilidade de unir os contrários: “um país onde a civilidade não seja sinônimo de

impessoalidade, mas condição de existência do político e de uma sociedade democrática.”

Chico insiste na necessidade de configuração de uma memória pronta para resgatar

– da geração do samba de outrora – o vigor e a continuidade de seus feitos aos novos

sucessores. Sua canção procura exprimir o diálogo do compositor com as raízes musicais,

um diálogo capaz de insinuar que o chão emocional e doméstico em que cada um de nós,

ouvinte, pisa, guarda em si, mais do que imaginamos, uma terra originária e comum a

todos seus habitantes.

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CAPÍTULO 4

CHICO PARATODOS

“Paratodos” (1993)

O meu pai era paulista Meu avô pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Meu maestro soberano Foi Antônio Brasileiro Foi Antônio Brasileiro Quem soprou esta toada Que cobri de redondilhas Pra seguir minha jornada E com a vista enevoada Ver o inferno e maravilhas Nessas tortuosas trilhas A viola me redime Creia, ilustre cavalheiro Contra fel, moléstia, crime Use Dorival Caymmi Vá de Jackson do Pandeiro Vi cidades,vi dinheiro Bandoleiros, vi hospícios Moças feito passarinho Avoando de edifícios Fume Ari, cheire Vinicius Beba Nelson Cavaquinho Para um coração mesquinho Contra a solidão agreste Luis Gonzaga é tiro certo Pixinguinha é inconteste Tome Noel, Cartola, Orestes Caetano e João Gilberto Viva Erasmo, Ben, Roberto Gil, Hermeto, palmas para Todos os instrumentistas Salve Edu, Bituca, Nara Gal, Bethania, Rita, Clara Evoé, jovens à vista O meu pai era paulista Meu avô, pernambucano O meu bisavô, mineiro Meu tataravô, baiano Vou na estrada há muitos anos Sou um artista brasileiro95

95 WERNECK, Humberto. op. cit., p. 403-404.

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A ensaísta Starling (2009:13-17) nos conta que Paratodos é um álbum que foi

produzido no momento em que Chico Buarque completava cinquenta anos de idade.

Repleto de referências autobiográficas, o disco expõe também esse lado íntimo e pessoal –

talvez por considerar necessário revelar a mudança e seu tempo de gestação na criação

madura do autor. Na canção título do álbum, o ato de rememorar, mais do que estabelecer

uma genealogia, traduz um esforço de fundação.

Na canção de Chico96, o legado deixado por essa tradição não é uma aquisição, um

bem que se acumula e se petrifica; ao contrário, essa é, principalmente, uma tradição

descontínua, sempre fragmentária, repleta de falhas que a tornam instável e no interior da

qual, as gerações de compositores não coincidem com a ordem natural da história desses

desencadeadores da Música Popular Brasileira (MPB). De modo que, seguir os versos de

“Paratodos” (1993) será recontar essa história coletiva introduzindo um novo significado

ao que já foi esquecido e só assim, será possível construir um vínculo sólido com essa

tradição – entrega consciente de nosso passado.

O percurso de quem se aventura a retecer historicamente o texto dessa experiência

– testemunhal – de um passado histórico é interminável. A promessa do reencontro nunca

se cumpre integralmente. O eidos não pode ser perfurado. Quem se propõe em

desdobrar os compartimentos da memória – afirma Benjamin –, encontra sempre novos membros, novas varinhas, nenhuma imagem o satisfaz, pois ele reconheceu que ela se deixa desdobrar; o próprio encontra-se nas dobras: aquela imagem, aquele gosto, aquele tatear pelo qual nós separamos e desdobramos tudo; e então a recordação vai do pequeno ao menor e do menor ao mais diminuto e sempre se torna mais violento aquilo com o que ela se defronta nesses microcosmos.97

Por isso, se o artista tem como seu centro de gravidade o trabalho com a memória

(ou melhor, o trabalho da memória), a música buarqueana que situa a tarefa do testemunho

no seu núcleo, por sua vez, é a literatura popular par excellence da memória. Para tanto, o

movimento de construção e desconstrução do passado é levado a efeito pelo compositor,

resultando na emergência do fragmentário e do residual como forma de autoproteção da

linguagem, que se expande e se contrai até os limites da sua impossibilidade de tudo

abarcar no espaço do signo.

A memória, como a tradição, diz respeito à organização do passado em relação ao

presente. Nós reproduzimos continuamente memórias de acontecimentos ou estados

96 STARLING, Heloisa Maria Murgel. Uma pátria paratodos: Chico Buarque e as raízes do Brasil. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2009, p.41. 97 BENJAMIN apud SILVA, Márcio Seligmann. op. cit., p. 408.

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passados, e estas repetições conferem continuidade à experiência. Sendo assim, a

integridade da tradição não deriva do simples fato da persistência sobre o tempo, mas do

trabalho contínuo de interpretação que é realizado para identificar os laços que ligam o

presente ao passado (GIDDENS, 1997:82).

Disso procede, no nosso entender, o feliz reencontro entre a tradição cultural

popular nordestina e a memória sonora buarqueana – o baião, elemento rítmico brasileiro.

Essa identificação e reinterpretação do passado em “Paratodos” (1993) nos mostra o

objetivo do artista Chico em promover o traço fundamental da cultura brasileira: o

sincretismo. O compositor se utiliza de um gênero musical surgido da união do maracatu

africano com o fado português para elaborar o seu samba. A linguagem popular adotada

pelo artista aparece como um resgate histórico e de reinvenção da tradição, ou melhor, um

meio organizador da memória coletiva.

Na verdade, a canção de Chico é uma mostra do modo como uma determinada ética

da história atua na construção de uma imagem do passado. Para Márcio Seligmann

(2003:67), “não existe uma História neutra; nela a memória, enquanto uma categoria

abertamente mais afetiva de relacionamento com o passado, intervém e determina em boa

parte os seus caminhos.”

Não por acaso, os caminhos trilhados da música “Paratodos” (1996) evocam o

ofício do historiador e, consequentemente, das raízes buarqueanas. Essa árvore genealógica

está registrada em Buarque – uma família brasileira, de Bartolomeu Buarque de Holanda,

um primo de Chico. Segundo o livro,

José Ignácio Buarque de Macedo, poderoso senhor de engenho do Nordeste, casou-se, em 1897, com a ex-escrava e analfabeta Maria José Lima, que, já naquele tempo, elegeu a educação como prioridade da família. Um deles, Antonio, tornou-se conselheiro e ministro do Supremo. O neto, Manoel Buarque de Macedo, foi ministro da Agricultura do Império. O nome Buarque de Hollanda também não existiria se não fosse Cristovão, avô de Chico por parte do pai, Sérgio. Já adulto, Cristovão, pernambucano, foi fazer o seu registro de identidade e decidiu diminuir a série de sobrenomes que herdara dos pais: Paes Barreto Hollanda Cavalcanti Buarque de Gusmão. Foi no seu nascimento que a família Buarque se uniu à família Hollanda. Cristovão era filho de Maria Magdalena Paes Barreto de Hollanda Cavalcanti com Manoel Buarque de Gusmão, que se casaram em 1850. E para encurtar a história, o rapaz se registrou simplesmente como Cristovão Buarque de Hollanda, mudando a ordem dos nomes e fazendo uma mistura do Hollanda da mãe com o Buarque do pai a seu bel-prazer. Quatro gerações depois de Maria Magdalena e Manoel, nascia Chico Buarque de Hollanda.98

98 ZAPPA, Regina. op. cit., p. 21-23.

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Contudo, também é importante lembrar que essa vivência de laços consanguíneos

tem, paralelamente, a de laços afetivos, que diz respeito à própria vida cancional de Chico

Buarque. Um desses representantes que detonam a potencialidade de suas articulações

sonoras foi Antônio Carlos Jobim (1927-1994), maestro soberano, brasileiro, carioca, que

pôs toda a sua criatividade a serviço dos acordes musicais.99

Luiz Tatit (2002:164) identifica na dicção de Tom Jobim, o tratamento do arranjo

orquestral, inteiramente concebido para o piano. Cada acorde contém uma fonte de energia

melódica100 que orienta o sentido do percurso, como se toda a substância protéica da

melodia estivesse armazenada no encadeamento harmônico. 101

Um acorde de Jobim é um dispositivo harmônico que, não apenas reforça a

densidade do solo principal, mas, sobretudo, intercepta a corrente melódica, rompendo sua

previsibilidade e sugerindo outros encaminhamentos até então considerados dissonantes

pelos ouvidos não familiarizados.

Outro ilustre participante dessa genealogia musical, é Dorival Caymmi (1914-

2008). Quando fala de paixão e de seus estados interiores, esse compositor jamais se

dilacera nas tensões da carência. Trata o sentimento com delicadeza e cuidado como se

assim preservasse a integração de seu ser com a natureza. As emoções culturalmente

marcadas, como ciúme, vingança, desprezo não fazem parte de seu estilo. Só aquelas que

brotam espontaneamente em qualquer idade, em qualquer época. Busca a emoção humana

essencial, sem vícios. Declarou diversas vezes que seu sonho era chegar à perfeição de

compor uma Ciranda-Cirandinha que se perdesse no meio do povo (Dorival Caymmi, em

Nova História da Música Popular Brasileira, 1976: 09).

O universo mimético de Caymmi decanta a Bahia, o samba, o mar e o faz com

intenso vigor temático, num ritmo original e fisicamente estimulante. Não tendo, como de

praxe, qualquer formação musical, inventou batidas e toques de violão específicos para a

sua dicção. Com seu texto icônico, sua melodia rodeando a tônica e seu instrumento

99 Acorde é a união de várias notas, em harmonia, formando assim um único som. Em música, uma consonância (do latim consonare, significando soar junto) é uma harmonia, um acorde ou um intervalo considerado estável, em relação a uma dissonância que é considerada instável. (Teoria Musical. Disponível em: <http://www.musicaeadoraçao.com.br>. Acesso em: 18 jan. 2012). 100 Melodia é uma sucessão rítmica, ascendente ou descendente de sons simples, a intervalos diferentes e que encerram certo sentido musical. A melodia faz a música ter vida. (Teoria Musical. Disponível em: <http://www.musicaeadoraçao.com.br>. Acesso em: 19 jan. 2012). 101 Harmonia são notas diferentes executadas juntas em conformidade ou em harmonia entre si formando uma consonância lógica. Sua função é dar vida à música. (Teoria Musical. Disponível em: <http://www.musicaeadoraçao.com.br>. Acesso em: 20 jan. 2012).

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esboçando o arranjo final, cada fragmento de composição já é uma obra completa (TATIT,

2002:106).

Se dirigirmos nosso olhar mais à frente, veremos a face de um artista paraibano que

irrompeu no meio musical carioca: Jackson do Pandeiro (1919-1982). Severiano

(2008:286) nos relata que esse artista se lançou interpretando sacudidos cocos e rojões, os

instrumentos que melhor se adaptavam ao estilo alegre, buliçoso que o distinguia de Luiz

Gonzaga (1912-1989).

Naturalmente, esses cocos e rojões eram estilizações, sem maior rigor

musicológico, dos ritmos folclóricos originais. Segundo alguns especialistas, o rojão é

uma variante do baião em que o cantador narra suas façanhas, contando vantagens. No

caso de Jackson, seu rojão diferenciava-se do baião convencional por ter um ritmo mais

vivo de forte marcação.

Em contínuo contorno de estilos e gêneros musicais, temos o resgate de Ary

Barroso (1903-1964). Pensar em “Aquarela do Brasil” (1939) é exaltar Ary que

(...) foi um dos mais pungentes autores (juntamente com Noel Rosa) da canção passional surgidos na década de 30. Conhecia o segredo de fazer o texto parecer experiência pessoal vivida. Com um leve desvio desse imenso potencial ardoroso, esse compositor engajou-se no samba exaltação, decantando os valores brasileiros que considerava autênticos. Noção de autenticidade brasileira que, circunstancial e coincidentemente, atendeu a dois grandes interesses conjunturais (ao governo de Getúlio e aos planos exóticos de Walt Disney).102

Sant’Anna (1977:201-202) e Tinhorão (1998:304) comentam que “Aquarela do

Brasil” (1939) inscreveu-se como paráfrase: continuação dos padrões ideológicos

dominantes, preservação de uma mesma interpretação dos fatos totalmente facciosa, ainda

que poética. Houve no plano cultural um espírito de aproveitamento das potencialidades

brasileiras que informava a chamada nova política econômica, lançada pelo governo

Vargas, encontrando correspondência nos campos da música erudita com o nacionalismo

de inspiração folclórica de Villa-Lobos e no da música popular, com o samba de exaltação.

Saindo das molduras patrióticas e cívicas, visualizamos em tela, Vinicius de Morais

(1913-1980) que, embora tenha se iniciado na música popular com o fox-trot “Loura ou

Morena” (1932), originariamente, provém da série literária. Vinicius traz para a música

popular uma das contribuições notáveis ─ a recuperação do coloquial carioca.

Sant’Anna (1977:215), em Música Popular e Moderna Poesia Brasileira nos

informa que, em matéria de música, Vinicius procura exercitar-se em todos os gêneros e

102 TATIT, Luiz. O Cancionista. São Paulo: Edusp, 2002, p. 84-85.

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ritmos: sambas afro-brasileiros compostos com Baden Powell (“Canto de Ossanha”, 1966 e

“Berimbau”, 1964); as marchas ranchos como “Marcha de Quarta-feira de Cinzas”, 1964,

com Carlos Lira; as canções-recitativos como o “Samba da Benção”, 1964, e as canções e

sambas compostos com Tom Jobim. Mas ainda que seus textos retratem tanto o falar

“moderninho” de Ipanema e o “coloquial” carioca permanece sempre, indisfarçável, em

suas músicas o tom literário de seus valores culturais.

Inventariando o passado, uma nova identidade surge com sua voz rouca:103 o toque

rústico no violão; as cordas graves conduzindo à harmonia; as melodias tristes de

contornos incomuns; os temas da morte e do sofrimento repetidos, obsessivamente; as

imagens e resoluções poéticas insólitas, características que se combinam na obra de Nelson

Cavaquinho (1911-1986), formando um todo único, indissociável, conferindo ao sambista

um lugar especial entre os artistas mais originais da música popular brasileira de todos os

tempos. Contemporâneo dos principais nomes da chamada Era de Ouro da música popular

brasileira (MPB), ao contrário daqueles, permaneceu na condição de marginalizado durante

a maior parte de sua carreira. O cantor e compositor não se preocupava com a

comercialização de suas músicas, preferindo tocar e cantar, como um trovador urbano, nos

bares, pelas madrugadas.

O ritmo de Luiz Gonzaga (1912-1989) também não ficou de fora das

reminiscências de Chico Buarque. Abordar essas revivências, nada melhor do que

Severiano, em Uma história da música popular brasileira: da origem à modernidade, para

celebrar esse encontro. Segue a descrição dos fatos:

Durante o século XIX, criou-se no interior da Bahia uma variante do lundu, descrita por Pereira da Costa (citado no Dicionário do folclore brasileiro, de Câmara Cascudo) como ‘uma dança rasgada, lasciva, movimentada, ao som de canto próprio, com letras e acompanhamento a viola e pandeiro’. Com o passar do tempo, subvariantes dessa dança espalharam-se por outros estados do Nordeste, popularizando-se sob o nome ‘baião’, uma corruptela de ‘baiano’, termo como era conhecida originalmente. Foi a música ligada a essa dança, também chamada baião, que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira escolheram como modelo a ser usado em seus projetos musicais. Preferida para animar os bailes sertanejos, essa música inspirou também um certo toque de viola, executado nos intervalos das cantorias de repentistas, base do ritmo adotado na estilização (2008:280).

A Era do Baião durou, pode-se dizer, de 1946 a 1957, alcançando o auge no triênio

de 1949 a1951. Nesse intervalo, Gonzaga fixou a banda ideal para acompanhá-lo, que se

tornaria o conjunto padrão adotado pelos cultores do baião: acordeão, zabumba e triângulo.

103 Cavaquinho, Nelson. Biografia. Disponível em: < http://www2.uol.com.br/nelsoncavaquinho>. Acesso em: 15 jan. 2012.

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Foi com o “baião” “No meu pé de serra” (1946) que, pela segunda vez, se empregava essa

palavra para designar o ritmo de uma canção na discografia brasileira. A primeira foi usada

por João Pernambucano104 (1883-1947) em sua composição “Estrela d’alva”, cantada em

1930, por Stefana de Macedo105 (1903-1975), no disco Columbia nº5157.

Alfredo da Rocha Vianna Filho ou Pixinguinha106 (1897-1973) – nome que mistura

o dialeto africano "Pizin Din" (menino bom) com "Bexiguinha", por ter contraído bexiga –

foi um dos músicos da fase inicial da Música Popular Brasileira (MPB) que não escapou

dos versos buarqueanos. Com domínio técnico e um dom de improvisação encontrados nos

grandes músicos de jazz, Pixinguinha é considerado um flautista talentoso, além de um

irreverente arranjador e compositor.

Neto de africanos, começou a tocar primeiro cavaquinho, depois uma flautinha de

folha, acompanhando o pai que tocava flauta. Aos 15 anos, já tocava profissionalmente em

casas noturnas, cassinos, cabarés e teatros. Em 1917, gravou a primeira música de sua

autoria, a “Valsa Rosa”, e, em 1918, o choro “Sofres Porque Queres”. Nessa época,

desenvolveu um estilo próprio, mesclava seu conhecimento teórico com sua origem

musical africana, salpicado de polcas, maxixes e tangos. Aos 20 anos, formou o conjunto

Os Oito Batutas (flauta, viola, violão, piano, bandolim, cavaquinho, pandeiro e reco-reco).

Além de ter sido pioneiro na divulgação da música brasileira no exterior, adaptando

para a técnica dos instrumentos europeus a variedade rítmica produzida por frigideiras,

tamborins, cuícas e gogôs, o grupo popularizou instrumentos afro-brasileiros, até então

conhecidos apenas nos morros e terreiros de umbanda107, abrindo novas possibilidades para

os músicos populares.

104 Filho de família muito humilde, semi-analfabeto, ferreiro de profissão, era possuidor de grande talento, tornando-se exímio violonista já na adolescência. Assim, em 1904, ao mudar-se para então capital do país, trazia na bagagem, além do inseparável violão, um vasto conhecimento da cultura popular de sua região, adquirido no interior e na cidade de Recife. Ao mesmo tempo em que apresentava aos cariocas os cocos, emboladas e toadas de sua terra, enfronhava-se ele mesmo nos segredos do choro. (cf. SEVERIANO, J. op. cit, p. 242-243). 105 Inaugurou a linha de cantoras folcloristas, numa época em que só homens atuavam. Em 1926 apresentou-se ao violão, quando esse instrumento ainda estava restrito à então chamada malandragem, no Cassino do Copacabana Palace. Em 1928 estreou em disco interpretando pela Odeon as canções "Tenho uma raiva de vancê" e "Sussuarana", ambas de Luiz Peixoto e Hekel Tavares. No mesmo ano, gravou de Catulo da Paixão Cearense o samba "Leonor" e de Hekel Tavares e Joracy Camargo, a canção "Lua cheia". (MACEDO, Estefana de. Biografia. Disponível em: <http://www.cantorasdobrasil.com.br/cantoras/estefana_de_macedo>. Acesso em: 15 jan. 2012). 106 VIANNA FILHO, Alfredo da Rocha. Biografia. Disponível em: <http://www.biografias.netsaber.com.br> Acesso em: 15 jan 2012. 107 Umbanda é uma religião brasileira formada através de elementos de outras religiões como o catolicismo ou espiritismo juntando ainda elementos da cultura africana e indígena. A palavra é derivada de u´mbana, um termo que significa ‘curandeiro’ na língua banta falada na Angola, o quimbundo. A umbanda tem origem nas senzalas em reuniões onde os escravos vindos da África louvavam os seus deuses através de danças e

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Na década de 1940, sem a mesma embocadura para o uso da flauta e com as mãos

trêmulas devido à sua devoção ao uísque, Pixinguinha trocou a flauta pelo saxofone,

formando uma dupla com o flautista Benedito Lacerda. Fez uma parceria famosa com

Vinícius de Moraes, na trilha sonora do filme Sol sobre a Lama, em 1962.

O compositor e letrista, renovador de nossa lírica, cujos versos permaneceriam

como exemplo de poesia popular, foi saudado por Chico. Noel de Medeiros Rosa (1910-

1937) resolveu a equação da canção popular brasileira demonstrando que o samba não era

apenas um gênero, um ritmo ou uma batida.

Segundo Tatit (2002:29), seu samba era uma conciliação de tendências opostas: de

um lado, a complexidade da vivência pessoal e seu relato impreciso e aperiódico, de outro,

a pulsação regular e os apelos reiterativos das melodias visando à memória do ouvinte e à

ginga do corpo. O desafio era fazer samba atingindo a particularidade da experiência com

manobras melódicas, sem perder as constâncias musicais do gênero, sobretudo a pulsação

periódica da batida.

Para Severiano (2008:135), a obra de Noel pode ser dividida em dois abrangentes

segmentos: o amargo, pessimista, que trata das agruras do amor – paixões, ciúmes, traições

– e que é muitas vezes autobiográfico e até confessional; e o alegre, otimista, que faz a

crônica do cotidiano, dos fatos pitorescos, além da exaltação de Vila Isabel, do samba e de

outras bossas.

Outro compositor e violonista que não poderia deixar de figurar nessa majestosa

lista de homenagens, é Angenor de Oliveira (1908-1980). Cartola, como era conhecido, foi

o integrador de uma turma de brigões e arruaceiros que, não por acaso, formaram o Bloco

dos Arengueiros, em 1925. Esse bloco seria o embrião da G.R.E. S Estação Primeira de

Mangueira (RJ). A ampliação e fusão do bloco com outros existentes no morro geraram,

em 28 de abril de 1928, a segunda escola de samba carioca e uma das mais tradicionais da

história do carnaval da cidade.

Mas a melhor maneira de descrever esse artista popular é relendo a crônica –

Cartola, no moinho do mundo – feita por Carlos Drummond de Andrade, publicada no

Jornal do Brasil em 27/11/1980, três dias antes da morte do criador de "As Rosas Não

Falam” (1976):

cânticos e incorporavam espíritos. (Umbanda. Disponível em: <http://www.osignificado.com.br/umbanda>. Acesso em: 18 jan. 2012).

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(...) Esse Cartola! Desta vez, está desiludido e zangado, mas em geral a atitude dele é de franco romantismo, e tudo se resume num título: Sei Sentir. Cartola sabe sentir com a suavidade dos que amam pela vocação de amar, e se renovam amando. Assim, quando ele nos anuncia: “Tenho um novo amor”, é como se desse a senha pela renovação geral da vida, a germinação de outras flores no eterno jardim. O sol nascerá, com a garantia de Cartola. E com o sol, a incessante primavera. A delicadeza visceral de Angenor de Oliveira (e não Agenor, como dizem os descuidados) é patente quer na composição, quer na execução. Como bem me observou Jota Efegê, seu padrinho de casamento, trata-se de um distinto senhor emoldurado pelo Morro da Mangueira. A imagem do malandro não coincide com a sua. A dura experiência de viver como pedreiro, tipógrafo e lavador de carros, desconhecido e trazendo consigo o dom musical, a centelha, não o afetou, não fez dele um homem ácido e revoltado. A fama chegou até sua porta sem ser procurada. O discreto Cartola recebeu-a com cortesia. Os dois convivem civilizadamente. Ele tem a elegância moral de Pixinguinha, outro a quem a natureza privilegiou com a sensibilidade criativa, e que também soube ser mestre de delicadeza. (...) Cartola soube botar em lirismo a sua vida, os seus amores, o seu sentimento do mundo, esse moinho, e da poesia, essa iluminação.108

A crônica de Drummond reafirma nosso entendimento de que a proposta

Modernista (1922) – atualização da cultura brasileira – foi realizada pelo samba e outros

gêneros populares nas décadas de 20 e 30. A linguagem empostada e literária que

acompanhava as modinhas de salão do século XIX foi sendo deixada de lado para

encontrar pouso certo numa linguagem coloquial e lírica de um Cartola, Noel Rosa, entre

tantos outros que encontraram o tom da língua brasileira que os modernistas perseguiram.

Penetrando na intimidade das modinhas de salão, rastreamos Orestes Barbosa

(1893-1966), figura carismática, romântica, jornalista panfletário, poeta, letrista e

frequentador do Café Nice (1928) – reduto dos artistas que construíram a Época de Ouro

da música popular e do rádio brasileiro. O brilho de Orestes Barbosa pode ser esboçado

pelos versos do poema musicado “Chão de Estrelas” (1937):

Minha vida era um palco iluminado Eu vivia vestido de dourado Palhaço das perdidas ilusões Cheio dos guizos falsos da alegria Andei cantando a minha fantasia Entre as palmas febris dos corações Meu barracão no morro do Salgueiro Tinha o cantar alegre de um viveiro Foste a sonoridade que acabou E hoje, quando do sol, a claridade Forra o meu barracão, sinto saudade Da mulher pomba-rola que voou Nossas roupas comuns dependuradas Na corda, qual bandeiras agitadas

108 DE ANDRADE, Carlos Drummond. Cartola, no moinho do mundo. Disponível em: <http://www.algumapoesia.com.br/drummond>. Acesso em: 16 jan. 2012.

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Pareciam estranho festival!109

Saindo de um modelo comportado, clássico, aterrissaremos no seu oposto, a

carnavalização da cultura. Nada melhor do que Caetano Veloso (1942) – um dos

fundadores do movimento Tropicalista, integrante do grupo de letristas e músicos

contestadores que se insurgiram contra o consenso geral representado pela classe

dominante ─ para nos apresentar com “Alegria, alegria” (1967) o coração do Brasil:

Caminhando contra o vento Sem lenço e sem documento No sol de quase dezembro Eu vou... O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas Em cardinales bonitas Eu vou...110

Para Sant’Anna (1977:239), o Tropicalismo tentou fazer uma crítica da cultura

nacional. O estilo é feito dentro do processo de colagem, colocando em confronto os

elementos mais díspares: a cidade e o campo, a cultura e a natureza, o civilizado e o

primitivo. Confronta Catulo da Paixão Cearense111 (1863-1946) com os caminhões e

aviões. José de Alencar e a garota de Ipanema. Esta visão deixa claro que, os tropicalistas

incorporaram a estética do belo e do mau-gosto, em seus textos musicais, numa visão

carnavalizada de nossa cultura. O texto de Caetano Veloso é essa extensa paródia, isto é, a

manipulação dos dados de sua cultura pelo avesso, fora dos ditames convencionais.

O tropicalismo também teve como figura de destaque, o compositor-cantor Gilberto

Gil (1942). Cantor este que abrange, em sua obra musical, uma ampla dimensão e

variedade de ritmos em suas composições, pertinentes à realidade e à modernidade; da

desigualdade social às questões raciais, da cultura africana à oriental, da ciência à religião.

Formulando, portanto, uma música que incorpora rock, reggae, funk e ritmos da Bahia,

como o afoxé.

Outra figura emblemática do Tropicalismo, foi Gal Costa (1945). Ostentando

vastíssima cabeleira negra e interpretando “Baby” (1968), de Caetano Veloso e “Divino

109 BARBOSA, Orestes. Chão de Estrelas. Disponível em:< http://www.letras.terra.com.br/orestes_barbosa> Acesso em: 16 jan. 2012. 110 VELOSO, Caetano. Alegria, alegria. Disponível em: < http://www.wikipedia.org/wiki/alegria_alegria>. Acesso em: 16 jan. 2012. 111 Maranhense de São Luís, morou dos 10 aos 17 anos no Ceará, e mais tarde no Rio de Janeiro, onde desenvolveu sua bem-sucedida carreira artística. Flautista, cantor, violonista e poeta, cedo começou a despertar a atenção com seus versos, sua voz e seu violão nas rodas de seresta e modinha que frequentava. (CEARENSE, Catulo da Paixão. Biografia. Disponível em:< http://cliquemusic.uol.com.br/catulo-da-paixao-cearense> Acesso em: 16 jan. 2012).

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Maravilhoso” (1968), de Gilberto Gil e Caetano Veloso, seu nome se popularizou. A partir

desses sucessos, exibindo uma afinação e uma expressividade corporal impecáveis, Gal

consagrou-se na década de 1970 como uma cantora de sua geração.

Severiano (2008:426) nos informa que além de Gal Costa, integrou-se ao

movimento Tropicalista, Rita Lee (1947). Cantora e compositora de músicas como “Banho

de Espuma” (1981), “Lança Perfume” (1980), como “Mania de você” (1979), “Chega

Mais” (1979), engendrou melodias fáceis, animadas, dançantes, regadas com letras

maliciosas, bem-humoradas, por vezes sarcásticas, que levaram ao auge o pop-rock

brasileiro.

Tomando por base a manifestação ideológica difundida pelo Tropicalismo112,

podemos compreender, esteticamente, a arquitetura musical de João Gilberto (1931).

Apontado como o criador do ritmo que ganhou o nome de bossa nova, mais

especificamente após o lançamento do seu primeiro álbum, Chega de Saudade (1958), o

músico baiano eternizou a típica batida no violão.

Para Sant’Anna (1977:214), com o início da bossa nova ocorre uma mudança no

ritmo, no arranjo, na letra e na própria voz do cantor. O ritmo modificado pela batida

original de João Gilberto, os arranjos mais eruditos de Tom Jobim, a letra mais direta e

elaborada, enfim, a voz do cantor não mais operística, completavam um novo estilo de

comunicação sonora mais sofisticado. Sob um ponto de vista social, a bossa nova elaborou

a expansão do samba dentro da classe média, realizando um samba mais refinado que se

irradiava de Copacabana, Ipanema e Leblon, reconhecendo a importância dos Festivais

Internacionais da Canção Popular (FIC), que Chico nos presenteia com o compositor Edu

Lobo (1943). Segundo Severiano (2008:361), aprendiz de acordeom desde os 8 (oito) anos,

o jovem músico trocou este instrumento pelo violão aos 16 (dezesseis), justamente quando

começou a frequentar reuniões onde se tocava bossa nova. Embora as canções de estreia

levassem a marca da bossa nova, não era bem este tipo de música que Edu Lobo pretendia

fazer. Suas influências ─ Tom Jobim e Heitor Villa-Lobos ─ musicais o ensejaram a

empregar com maestria modernos e refinados recursos no tratamento de motivos

inspirados na rústica música nordestina, uma característica importante de seu trabalho.

112 Caetano Veloso achava que sua atividade de cantor e compositor devia contrapor algo novo, radical e inusitado a certas tendências que desaprovava na música pós-bossa nova. Essa ideia, que coincidia com o pensamento de Gilberto Gil, foi posta em prática no terceiro festival da Record, em 1967, com o lançamento das composições “Alegria, alegria” (de Caetano) e “Domingo no parque” (de Gilberto Gil), constituindo assim no marco inaugural de um movimento poético-musical de vanguarda, universalista-popular, logo chamado de Tropicália ou Tropicalismo. (cf. SEVERIANO, J. op. cit., p. 383).

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Ao lado de todos os compositores acima descritos, eis que surge a musa da bossa

nova: Nara Leão (1942-1989). Artista que deixou de lado a bossa nova e resgatou o samba

de morro de Cartola a Nelson Cavaquinho. Suas músicas estão de algum modo

comprometidas com a realidade social brasileira. Nara se engajou na luta por justiça social

tendo como principal arma, sua canções.

Ligia Vieira (2007:98) nos diz que a partir de 1964, o povo brasileiro, ante a

perplexidade do momento histórico e impossibilitado de manifestar-se politicamente, vê na

música, mais precisamente na bossa nova, o seu escapismo. A bossa nova, após o período

de êxito internacional em que passou de influência do jazz para a influenciadora do jazz,

sofre uma ruptura brusca em sua temática, e a canção de resistência assume uma posição

dominante entre seus compositores.

Sem perder o vínculo com os diferentes momentos musicais e históricos, que nos

deparamos com a linguagem sonoro-existencial, “Carcará” (1964), de Maria Bethânia

Viana Teles Veloso (1946):

Pega, mata e come Carcará! Num vai morrer de fome Carcará! Mais coragem do que homem Carcará! Pega, mata e come Carcará! Lá no sertão... É um bicho que avoa que nem avião É um pássaro malvado Tem o bico volteado que nem gavião113

Essa canção, feita por João do Vale (1934-1996), foi interpretada por Nara Leão

pela primeira vez no Teatro Opinião, no Rio de Janeiro, em 1964. No ano seguinte, Maria

Bethânia deu vigor a essa música, fazendo uma analogia entre o pássaro carcará e o

sofrimento do povo nordestino.

Gravitando, ainda, em torno das estruturas musicais, teremos a presença reveladora,

no II Festival Internacional da Canção Popular (FIC), do cantor e compositor, Milton

Nascimento (1942), o Bituca, como é chamado pelos amigos.

Severiano (2008:370) nos relata que as composições de Milton já revelavam as

características básicas de seu estilo, ou seja, um surpreendente aproveitamento da música

113 DO VALE, João. Carcará. Disponível em: <http://www.letras.terra.com.br/joao-do-vale>. Acesso em: 17 jan. 2012.

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regional mineira, tratada com os requintados recursos harmônicos da bossa nossa, do jazz e

dos Beatles. Motivos inspirados na tradição das toadas e modinhas, transformados pelo

compositor em sofisticado produto musical.

Outro movimento musical, posterior ao arsenal técnico e artístico trazido pela bossa

nova, foi a Jovem Guarda. Segundo Severiano (2008:399), o ano de 1966 marcou o apogeu

desse movimento, ou melhor, do chamado iê-iê-iê, o ritmo que o caracterizou. O iê-iê-iê

era um subgênero inspirado no rock dos Beatles, temperado por uma mistura com certas

formas da canção brasileira ─ inclusive a bossa, da qual adotou o coloquialismo ─ e que

cultivava letras de um romantismo ingênuo, com salpicos de rebeldia.

Os representantes desse movimento foram Roberto Carlos (1941) e seu parceiro

Erasmo Carlos (1941), que difundiram um projeto dedicado, quase que exclusivamente, à

juventude. “Se agradavam a todos, das crianças aos avós, era em função dos limites de

rebeldia muito bem estabelecidos pelo marketing, com a conivência dos artistas” (TATIT,

2002:186).

Disputando espaço para divulgação de seu trabalho musical, aparece em cena Jorge

Ben (1942). “Apesar de ter um estilo musical diferente e original, Jorge Ben foi adotado

pela turma da bossa nova, fonte da qual bebeu ao se deparar com a força inovadora de João

Gilberto” (ZAPPA, 2011:110).

Severiano (2008:380) nos conta que Jorge Ben transitou pelos mais diversos

territórios da música popular, sempre marcando presença por onde passou. Irrompendo em

cena em 1963, num LP intitulado Samba esquema novo, seus pontos altos eram os sambas-

maracatu “Mas, que nada” e Chove chuva”.

Tatit (2002:210-211) comenta que Jorge Bem além do samba, assimilou os signos

apreendidos da história em quadrinhos e do futebol. Ele identifica-se com o lado humano e

justiceiro que permeia as narrativas, extraindo daí inúmeras cenas que reproduz em suas

canções. E quanto à marca do futebol, o malabarismo do cancionista tem muito da arte

desse esporte, sobretudo no momento de junção do texto com a melodia. “Tudo ocorre

como se o texto fosse a bola e a melodia, o gesto físico do jogador.”

Ainda na esteira da originalidade, deparamo-nos com o cultuador do som da

natureza, ou melhor, Hermeto Pascoal114 (1936). Compositor arranjador e multi-

instrumentista brasileiro (toca acordeão, flauta, piano, saxofone, trompete, bombardino,

114 PASCOAL, Hermeto. Biografia. Disponível em: < http://www.wikipedia.org/wiki/Hermeto_Pascoal>. Acesso em 16 jan. 2012.

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escaleta, violão e diversos outros instrumentos musicais), nasceu em Alagoas, e se tornou a

atração de diversos eventos importantes, como o I Festival Internacional de Jazz, em 1978.

Se nos remetermos à canção “Morena de Angola” (1980)

que leva o chocalho [amarrado na canela Será que ela mexe o chocalho ou o chocalho é [que mexe com ela (...) Será que a morena cochila escutando [o cochicho do chocalho Será que desperta gingando e já sai [chocalhando pro trabalho115

de Chico Buarque, veremos que a interpretação de Clara Francisca Gonçalves Pinheiro116,

mais conhecida como Clara Nunes (1943-1983) representa não apenas os sons da

natureza, mas a própria recriação mística e mítica desse som. Pesquisadora da música

popular brasileira, de seus ritmos e de seu folclore, conheceu as danças e as tradições afro-

brasileiras, a ponto de se converter à umbanda. Foi uma das cantoras que mais gravou

canções dos compositores da Portela, sua escola do coração.

É nesse dialogismo com as tradições afro-brasileiras e os diferentes tipos de sons:

acordeão, zabumba, triângulo, flauta, piano, saxofone, trompete, violão ou baterias de

escola de samba, que Chico Buarque homenageia os cantores, compositores e

instrumentistas brasileiros. Com o intuito de nos dizer que, por meio das peculiares formas

de linguagem, (a verbal e a musical), as canções populares encontraram as mais diferentes

soluções para a ocupação desse lugar rítmico, “onde passam senhas sobre os seus modos

de sociabilidade” (WISNIK, 1989:214).

É através do som, ou melhor, do ritmo do baião que Chico nos convida a reler a

origem dos nossos cancioneiros populares e pelo viés dessa ancestralidade reinaugurar um

horizonte de expectativa cultural. As experiências de identidade compartilhadas em suas

músicas e reimpressas por novos signos culturais nos estimulam a decodificá-los como

“etnificação da cultura.”

Heloísa Buarque de Holanda ressalta que, “hoje se fala mais em cidade do que de

nação. Fala-se mais de cultura carioca, paulista ou pernambucana do que de cultura

nacional como até bem pouco tempo, sintoma que expressa uma certa descentralização da

115 WERNECK, Humberto. op. cit., p. 303. 116 GONÇALVES PINHEIRO, Clara Francisca. Biografia. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/wiki/Clara_Nunes>. Acesso em: 17 jan. 2012.

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cena cultural que passa agora a privilegiar a autoafirmação de expressões multiculturais

(apud GOMES, 1999:22-23).

Certamente, a cultura urbana estabelece uma complexidade multicultural, que antes

não se considerava de maneira forte, uma vez que a preocupação era com a construção de

uma unidade nacional. Quero assinalar com isso que os significantes indígenas, africanos,

urbanos, suburbanos e rurais, captados e amplificados pelo olho mágico dos modernistas

de 1922, eram na tentativa de formar, pela diversidade, um espaço geográfico homogêneo.

Por sua vez, o posicionamento em 1960, da Música Popular Brasileira (MPB), pretendia-

se, justamente, ancorar esse espaço definido.

Segundo Nelson Barros (apud FERNANDES, 2004:341-342), essa visão é

totalmente diferente da espacialização da MPB buarqueana, que procura ancorar-se acima

de qualquer localização regional, temática, dialetal ou social. Mesmo que o Rio de Janeiro

seja, constantemente, referenciado na obra do compositor, esta obra ganha outro perfil,

passando a ser a concretude polifônica e multicultural do espaço a que chamamos urbano.

Para Anderson (1999:116), “a arte de outrora era entendida como uma imagem da

realidade, para a qual a história da arte oferecia uma moldura. Nos tempos

contemporâneos, porém, a arte escapou da moldura. As definições tradicionais não podem

mais abarcá-la, com novas formas e práticas proliferando.” As práticas visuais da cena pós-

moderna tem que ser exploradas com o mesmo espírito etnográfico com que se

investigavam os ícones pré-modernos, sem compromisso com qualquer ciência da

aparência bela. Essa transformação cultural, na qual o mercado passa a incluir tudo, é

acompanhada por uma metamorfose social e artística.

Por isso, a convergência das palavras e da música “Paratodos” (1993) criam o lugar

onde se embala um ego difuso, irradiado por todos os pontos e intensidades sonoras, como

se no mesmo Eu do compositor resultassem “Eutros” gestos e imaginários modulados por

tempos e contratempos, pulsões e contrastes de cada arte e de cada histórica de vida.

Para chegar a essa estrutura de sentido, percebida nos arpejos e polifonias da

narrativa musical buarqueana, é preciso captar os percursos discursivos que avançam

retomando sempre sob novas formas aquilo que já foi apresentado, de modo a evidenciar

pela própria sintaxe uma espécie de sentido global da sua canção. É uma leitura que

necessita de uma reconstrução contínua do que está sendo ouvido na borda da linguagem.

Starling (2009:40) assinala que, nos versos de “Paratodos” Chico Buarque retoma

componentes formadores de uma tradição que não é nostalgia elegíaca, mas indicação de

caminho, de uma forma diversa de viver o tempo e conjugar o encanto daquilo que é novo,

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único, ainda não experimentado, com a felicidade obtida de algo renovado – “Evoé, jovens

à vista” – uma espécie de contraponto, portanto, à continuidade das vivências

momentâneas, carentes de recordação, próprias à pós-modernidade.

A fragmentação do seu espaço sonoro e a dissolução do horizonte repetitivo dos

seus refrãos correspondem ao fracionamento do tempo musical, numa sequência de

presentes sucessivos de duração variável, pedem ao leitor/ouvinte uma interpretação do

aqui e agora de cada momento. Por isso, as faixas de ondas das diversas cidades

apresentadas se contaminam e se interferem, levadas pela elaboração musical de cada

artista homenageado, instruindo um modo de dizer que, em última instância, espera por

uma nova temática, um novo mundo. E o mundo sempre nos afeta. Interage conosco.

Numa troca mútua de marcas recíprocas. Somos marcados à medida que sofremos seus

efeitos, e o marcamos à medida que produzimos efeitos sobre ele. Portanto, só resta um eu

que vai se modificando a cada momento, com o viver. A escrita é uma forma de petrificar a

modificação de cada momento e o relato de um desconforto... Um “Estorvo.”

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CAPÍTULO 5

SONHOS SONHOS SÃO ESTORVO

Para Peirce (apud SANTAELLA, 2005:32), não há pensamento sem signos nem

pouco uma linguagem apenas por meio de símbolos. Há sempre um entrecruzamento de

diferentes matrizes – sonora, visual e verbal – que é constitutiva de todo pensamento, de

modo que a relação de interlocução é fundamental para a constituição do pensamento e da

linguagem, enquanto modalidade simbólica. Como podemos inferir pelo pensamento de

Bakhtin (1992:73-74), “os enunciados não são indiferentes uns aos outros, nem

autossuficientes, cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados,

com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação verbal.” Nesse sentido,

tanto Peirce quanto Bakhtin consideram a linguagem fundação primeira de todo discurso.

O verbal é uma das manifestações de um tipo dentre muitos outros tipos de signos.

O signo pode ser tanto uma unidade constitutiva quanto uma complexidade mais vasta sem

limites definidos. Por isso, Santaella (2005:379) nos diz que as linguagens concretizadas

são na realidade corporificações de uma lógica semiótica abstrata que lhes está subjacente,

sustentada pelos eixos da sintaxe na sonoridade, da forma na visualidade e pela

discursividade no verbal escrito. Assim sendo, todas as linguagens, uma vez

corporificadas, são híbridas.

Para compreendermos a linguagem textual dos signos, envolvidos nas múltiplas

camadas de sentido que permeiam a criação, precisamos (des)cobrir a essência que emana

de cada obra artística – “que força o pensamento em seu exercício involuntário e

inconsciente, isto é, transcendental” (DELEUZE apud MACHADO, 2010: 197).

A correlação entre signo e sentido diz respeito a interpretar o que está oculto ou

latente em cada enunciado, seja ele musical, pictórico ou literário. É através dessa

pluralidade de enunciados artísticos que os signos ganham status de qualidades sensíveis e

passam muitas vezes a convergir na sociedade contemporânea numa vertiginosa

multiplicidade de representações contextualizadas.

Para a professora em semiótica, Sendra, em Embornal – de ensaios literários para

leituras a granel, a estruturação sintagmática da obra artística se projeta num jogo de

espelhos:

Um universo mimético que não é, pois, um universo fechado; é antes, um universo aberto pelo constante dialogar/silenciar dos tempos e das referências, o do prazer do receptor e o da maestria retórico-poética do emissor. A arte e a

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relação desta com os filtros da leitura do receptor são o que mais importa para que a verossimilhança e a mimese do texto se efetivem (2010: 43).

De acordo com Vasconcelos, a mímesis encontra-se na base de toda produção e

fruição imagética, transcendendo as possibilidades criativas de seu tempo:

[...] a hibridização dos recursos e das formas artísticas na criação pós-moderna, configurada na referenciação, na elaboração intratextual, na montagem figurativa e na mescla estrutural dos estilos, entre outros, assinala o advento de uma estética holográfica portadora de uma nova concepção do belo artístico que reclama o urgente reconhecimento crítico (2010:24).

Nas palavras de Jamroziak – analista e intérprete da arte contemporânea e pós-

moderna – as imagens artísticas se revelam como

[...] prontas para absorver sentidos e significados, enfrentam o espectador contemporâneo como fantasmas: intrigantes e intensas, embaraçosas e sedutoras pelo que elas próprias são e pelas cadeias em que podem ser colocadas e em que aparecem graças a seus criadores e a seus receptores inclinados à interpretação. [...] O autor de imagens pós-modernas é um animador ou apresentador, mais do que criador. [...] A autoria consiste no ato de montar o processo em movimento, enquanto o processo assim originado não tem em mira algum ponto de objetivação final numa forma reificada, funcionando, em vez disso, de maneira livre e desabrida, através de muitos caminhos – e continua incompleto e aberto...117

Em função dessas considerações, podemos perceber que este recurso estilístico pós-

moderno que se opera de maneira híbrida na obra literária – Estorvo118 (2004) – de Chico

Buarque, instaura um novo modo de ver e de se relacionar com o mundo: “Estorvo,

estorvar, exturbare, distúrbio, perturbação, torvação, turva, torvelinho, turbilhão, trovão,

trouble, trápola, atropelo, tropel, torpor, estupor, estropiar, estrupício, estrovenga, estorvo”.

A epígrafe desta obra configura as três matrizes da linguagem à medida que manifesta no

leitor a sugestão do som enquanto ruído, a percepção de uma confusão labiríntica própria

do ambiente onírico e a materialização do elemento insólito119. Esta reconfiguração da

realidade pode ser apreendida por diferentes linguagens, como bem enfatiza Santaella

(2005:19):

1. A linguagem sonora tem um poder referencial fragilíssimo. O som não tem poder para representar algo que está fora dele. Pode, no máximo, indicar sua

117 JAMROZIAK, Anna apud a BAUMAN, Ziygmunt. O mal-estar da pós-modernidade; (trad. de Mauro Gama e Cláudia Martinelli Gama). Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 135. 118 O romance Estorvo, de Chico Buarque, terá a seguinte sigla: Est. 119 “Essa explosão do nome e da significação do nome corresponde à extensão de sentido pela qual, no enunciado metafórico, as palavras satisfazem à atribuição insólita.” (cf. RICOEUR, Paul. A Metáfora Viva; (trad. de Dion Davi Macedo). São Paulo:Loyola, 2005, p. 432).

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própria proveniência, mas não tem capacidade de substituir algo, de estar no lugar de uma outra coisa que não seja ele mesmo. Essa falta de capacidade referencial do som é compensada por seu alto poder de sugestão, o que fundamentalmente o coloca no universo do icônico, onde operam as mais puras associações por similaridade; 2. Quanto à linguagem visual, sua característica primordial está na insistência com que imagens singulares, aqui e agora, se apresentam à percepção. Ver é estar diante de algo, mesmo que esse algo seja uma imagem mental ou onírica, pois o que caracteriza a imagem é sua presença, estar presente, tomando conta da nossa apreensão. A linguagem visual é quase sempre figurativa, o que a categoriza como signo indicial; 3. O que define basicamente a natureza da linguagem verbal é o seu poder conceitual, a ponto de podermos afirmar que o verbal é o reino da abstração. Isso corresponde com exatidão às características daquilo que Peirce definiu como signo simbólico, o universo da mediação e das leis. (grifos nossos)

Segundo Costa (1995:110), a epígrafe de Estorvo é um amontoado de palavras, cuja

significação desconexa aponta para a própria linguagem enquanto objeto de representação.

Linguagem de obstáculos como uma espécie de torvelinho sonoro, gráfico e conceitual,

instância caótica perturbadora da mente humana.

Para Pereira (apud FERNANDES, 2004:113), a escolha de Chico é pelo rápido para

acentuar a falta e, desta forma, aproximar-se de uma linguagem cinematográfica, na qual

tudo acontece com rapidez, numa reprodução da realidade dos grandes centros nas últimas

décadas.

Já Starling (2009:53), percebe a influência da música de Buarque em sua obra

ficcional. A terrível angústia que desenha o clima de absurdo e pesadelo no romance

Estorvo cita, quase naturalmente, o soturno e desesperado cenário onírico de “Sonhos

sonhos são” (1998). Narrativa ficcional que dialoga sonora e verbalmente com um deslocar

de signos pretéritos que tencionam apontar o descompasso entre as raízes brasileiras, o

sentido de pátria e o não-pertencimento pela completa carência política.

O historiador Sérgio Buarque em suas pesquisas científicas – Raízes do Brasil

(1995) – já havia identificado essa incompletude onde fundar uma nação onde só parece

crescer o vazio, criar formas de vida em comum, introduzir a possibilidade de convívio

político a partir das margens; seriam tarefas que nos caberiam implementar efetivamente.

Sugestões que parecem difíceis de realizar diante da leitura de Estorvo (2004) – tradução

mais acabada de quem está à deriva, sem referências, vivendo o reflexo de uma desordem

externa que se mistura ao seu caos interior.

O novo arranjo de “Sonhos sonhos são” (1998):

Sei que é sonho

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Incomodado estou, num corpo estranho Com governantes da América Latina Notando meu olhar ardente Em longínqua direção Julgam todos que avisto alguma salvação Mas não, é a ti que vejo na colina120

é carregado de dissonâncias como se a canção pretendesse acompanhar o sonho, ou

melhor, o pesadelo de um país que perdeu o prumo no curso de seu projeto de

modernização. A melodia corre lenta e repetitiva, sugerindo um tempo insuportavelmente

vazio como do personagem anônimo de Estorvo (2004) cujo início volta sempre ao fim e

fecha os horizontes. Como a nos mostrar que diante de um país atado às disposições de um

mercado sem limites e indiferente em face ao absurdo da exclusão social, ele, Chico, não

se sente pertencendo totalmente a lugar nenhum121 – um estrangeiro dentro do seu próprio

país.

Em Sérgio Buarque de Holanda, reaparece também a presença fundadora do

desterrado, enfatizada a partir da passagem famosa: “Somos ainda hoje uns desterrados em

nossa terra”.122 Em seus últimos textos sobre literatura colonial, ele já apontava para a

presença dessa figura ainda no século XVIII, aparecendo, de maneira emblemática, na

poesia de Cláudio Manuel da Costa – poeta cujos versos eram atravessados pelo

sentimento melancólico de perceber-se estrangeiro em terra natal.

Assim, constatamos que a literatura buarqueana agrega uma natureza híbrida entre

o ritmo da palavra e a cápsula que a envolve – imagem-signo –, desencadeando radiações

sugestivas derivadas, sobretudo, das forças sensíveis da linguagem. Estas atuam de acordo

com o que se poderia chamar de tons semânticos superiores, quer dizer, significações que

só se encontram nas zonas limites de uma palavra ou se produzem por uma associação

anormal de palavras. O que nos faz lembrar Frye:

A literatura parece ser intermediária entre a música e a pintura: suas palavras formam ritmos que se aproximam de uma sequência musical de sons numa de suas fronteiras e formam padrões que se aproximam da imagem pictórica ou hieroglífica na outra. As tentativas de se chegar tão próximo quanto possível dessas fronteiras formam o corpo principal daquilo que se chama de escrita experimental. Podemos chamar o ritmo da literatura de narrativa, e o padrão, a apreensão mental simultânea da estrutura verbal, de significado ou de significação. Ouvimos e escutamos uma narrativa, mas quando compreendemos o padrão total de um escritor “vemos” o que ele quer dizer (apud SANTAELLA, 2005:385-386).

120 HOMEM, Wagner. op. cit. , p. 295. 121 ZAPPA, Regina. A Volta do Malandro. Revista Alfa, São Paulo, Editora Abril, n.6, 2011, p. 48. 122 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 19.

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Portanto, não resta dúvida de que as matrizes da linguagem não são puras, operam o

processo da mistura e englobam umas às outras na mais completa variedade de formas e

conteúdos – uma representatividade de interpenetrações e interfaces expressionais.

Podemos desse modo, compreender a plurivalência da linguagem buarqueana –

esse registro contínuo, penetrante, do movimento circular da sua escrita – como uma

manifestação inerente de sua busca por um sentido existencial humano. O artista Chico,

diante de sua angustiante consciência histórica, parte para uma poética da vida

contemporânea, engendrando assim, a épica do instante. Devolvendo o primitivo nexo

entre percepção e expressão, este agenciador do imaginário reconhece na linguagem, –

constituinte ou operante – a inseparável intencionalidade de significar, própria do uso

flexível dos signos. Essa conquista liberatória – condição do alcance simbólico na forma

literária – atesta a existência da obra literária buarqueana como uma fonte abundante de

ressignificações da realidade.

Chico Buarque opta por uma linguagem crítica de cunho social, questionando o

tempo presente – tempo que se contrai no espaço. Delatando o momento atual –, por meio

de signos negativos e repetitivos – este artista da palavra projeta imagens caóticas na

tentativa de evidenciar a despersonalização do homem contemporâneo. O que nos faz

lembrar Valéry (apud MAFFESOLI, 2003:125): “O homem moderno é o escravo da

modernidade”, mostrando que não há nenhum progresso que não se torne completa

servidão.

Em seu engajamento literário, nos apresenta o retrato sem retoques do sistema

dominante (projetos e valores político-sociais capitalistas) que resulta culturalmente, na

proliferação do inconstante, como consciência defectiva do transitório – a era da imagem

do mundo ou do mundo convertido em imagem. Como podemos entrever nessa passagem:

Quando entro no quarto, o menino e a menina estão bem despertos, acocorados na esteira diante do aparelho de televisão. O menino, de uns sete anos e cabeça raspada, avista-me sem me ver e retoma o comando do videogame. [...] Não me importei com as crianças porque pensei que fosse deitar e dormir, mas as minhas pestanas tremelicam com o reflexo do videogame. Pulsa na tela uma figura semelhante a um intestino, em cujos tubos correm animaizinhos verdes. Por algum motivo, esses tubos às vezes se obstruem, obrigando o moleque da cabeça raspada a se contorcer com o comando das mãos. Em consequência, os animaizinhos chocam-se uns contra os outros, impelindo-se como bolas de bilhar e emitindo bips. Também acontece de eles se entalarem nas paredes dos tubos, numa reação em cadeia que provoca a explosão do intestino, acompanhada de um alarme e um clarão. Os animaizinhos boíam na tela branca e o jogo recomeça inúmeras vezes [...] (Est.:27-28). (grifos nossos)

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A metamorfose do museu televisivo se aproxima de estilos diferentes, entre os

quais não há passagens nítidas, colocados, porém, em pé de igualdade do ponto de vista

dos valores plásticos, como objetos estéticos, reunidos assim, numa espécie de espaço

transistórico e transcultural do mundo pós-moderno.

A escrita de Chico Buarque objetiva demonstrar que as coisas fundidas entre si,

movem-se e trocam-se à vontade, como um caso particular de desrealização da irrealidade

sensível, pois tal liberdade consiste na evasão das ordens reais, na fusão do irreal das

coisas mais díspares – é o sonho, ou seja, a fantasia superior à realidade. A literatura, por

meio da metáfora, realiza uma transposição daquilo que é objetivo em imagens, que não

existem no mundo real. O sentido enigmático, que se estabelece na narrativa ficcional

buarqueana dá origem ao aparecimento do insolúvel – tentativa de reordenar o real

reduzindo-o ao seu contrário.

Estorvo é a escritura caótica que revela, em última análise, o processo referenciador

do próprio absurdo da condição humana. Nessa confusão labiríntica, configura-se a fuga do

personagem anônimo que como um herói errante às avessas, perambula pela cidade do Rio

de Janeiro. Desde o início da narrativa, ao descrever os locais por onde transita, o

persongem-narrador não faz menção a nenhum topônimo da capital fluminense, mas por

meio das entrelinhas podemos subentender a metáfora em potencial – processo retórico

pelo qual o discurso liberta o poder que certas ficções comportam de redescrever a

realidade. Como podemos observar através deste fragmento: “[...] sumo correndo na

primeira à esquerda [...] eu emboco no túnel, alcanço outro bairro, respiro novos ares [...]

eu subo as encostas, as prateleiras da floresta, as ladeiras invisíveis, com mansões

invisíveis, de onde se avista a cidade inteira” (Est.:11).

Diremos que a escritura tem a missão de redimensionar, revitalizar e preencher

todos os componentes e instâncias que se fazem ausentes na existência solitária do

protagonista. Reside na escritura, a única possibilidade do narrador fazer renascer o

interlocutor em meio a um cenário que instaura uma nova pertinência semântica no nível

do enunciado metafórico. Segundo Ricoeur (2005:455), essa metáfora é proveniente da

torção imposta a essas palavras pelo fazer sentido com o enunciado em sua totalidade.

Podemos ler, em Estorvo, como símbolo do desterro ao qual figura o personagem-

narrador, variante do percurso existencial em que viveu o escritor em 1969 – a necessidade

de abandonar o cenário brasileiro em virtude do cerceamento de liberdade e de opinião

imposta pela ditadura militar. O escritor/narrador este, que parece viver a agonia da

opressão do passado à liberdade desmedida e inconsequente dos dias atuais. Essa dialética

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manifesta-se em sua produção literária perfazendo uma alegoria123 sobre o Brasil e suas

amarras políticas:

Pode ser que eu já tenha visto aquele rosto sem barba, mas a barba é tão sólida e rigorosa que parece anterior ao rosto. O terno e a gravata também me incomodam. Eu não conheço muita gente de terno e gravata, muito menos com os cabelos escorridos até os ombros. [...] Procuro imaginar aquele homem escanhoado e em mangas de camisa, desconto a deformação do olho mágico, e é sempre alguém conhecido, mas muito difícil de reconhecer (Est.:8-9).

Essa alegoria do “desconhecido” 124 tanto pode ser o signo da tortura de outrora

quanto o cerceamento de liberdade – pelo poder paralelo –, nas ruas do Rio de Janeiro.

Nesse emaranhado de memórias coletivas125 – páginas revividas da nossa História –, o

narrador, pelo olho mágico, revive o Brasil de 64 e o protagonista, redescobre o Brasil - na

estaticidade de outrora ao movimento insólito do Ser, do Mundo e da Vida atual. Essa

imagem-marca (lembrança x esquecimento) assim se constrói:

Agora ele já percebeu que é inútil, que não me engana mais, que eu não abro mesmo, que sou capaz de morrer em silêncio, posso virar um esqueleto em pé diante do esqueleto dele, então abana a cabeça e sai do meu campo de visão. E é nesse último vislumbre que o identifico com toda a evidência, voltando a esquecê-lo imediatamente. Só sei que era alguém que há muito tempo esteve comigo, mas que eu não deveria ter visto, que eu não precisava rever, porque foi alguém que um dia abanou a cabeça e saiu do meu campo de visão, há muito tempo (Est.:9).

Esse torpor do passado, em paralelo à reconfiguração dessa realidade no presente,

estabelece um ambiente semiótico da nadificação, atuando de modo ambivalente na

consciência do narrador. A vivência radical do vazio impõe-lhe o confronto de duas forças

contrárias. A ele restaria a possibilidade de abandonar a si mesmo. Todavia, caso o fosse,

transformar-se-ia em mais um ser entre tantos outros que pereceram: “[...] Recebo a lâmina

inteira na minha carne, e quase peço ao sujeito para deixá-la onde está [...]” (Est.:151).

123 A alegoria é um diagrama da significação do discurso. A alegoria torna evidente o procedimento - pela operação sintática - e faz o significado dos termos presentes passar para dentro de outro significado, ausente. (cf. QUINTILIANO, M. F. apud HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Editora da Unicamp, 2006, p. 43). 124 Durante a ditadura militar, o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), o DOI-Coi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), bem como o CCC (Comando de Caça aos Comunistas) operavam a todo vapor; sequestrando e assassinando presos políticos. (cf. HOMEN, Wagner. op. cit., p. 55-94). 125 “O registro da memória – que é fragmentário calcado na experiência individual e da comunidade, no apego a locais simbólicos – não tem como meta a tradução integral do passado. Na sociedade dá-se constantemente um embate entre diferentes leituras do passado, entre diferentes formas de enquadrá-lo.” (cf. SILVA, Márcio-Seligmann. História, memória, literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. São Paulo: Editora da UNICAMP, 2003, p. 65-67).

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Permanecendo, tem o narrador a experiência única de desfrutar a plenitude de seus

desejos.126 Nesses termos, é o seu caminhar errante que o impulsiona para a sua verdadeira

face guardada na memória: “Abandonei e esqueci isto aqui durante cinco anos. Talvez a

inércia do sítio na minha mente, mais do que a longa estiagem, explique agora essa

claridade dura, a paisagem chapada” (Est.:23). A memória do narrador é a única fonte

capaz de legitimar-lhe o discurso, visto que tudo mais é fragmentado e obscuro:

A insônia verdadeira principia quando o corpo está dormente. Semilesado, o cérebro não tem boas ideias, e é incapaz de resistir à chegada do homem do olho mágico, por exemplo, que pode ser um amigo que perdi de vista, e que viria falar de assuntos vencidos, e que não suportaria a minha indiferença, e que, se fosse um sonho, arrancaria exasperado a própria barba e não teria queixo, convertendo-se no proprietário do imóvel que vem cobrar o aluguel. Mas ainda não é sonho e nada devo ao proprietário, pois minha irmã é avalista, adiantou seis meses a título de fiança, e quando mamãe morrer, meu quinhão na herança não paga o que devo à mana, por isso ela pode ter dado meu endereço a um advogado, um oficial de justiça, um tabelião barbudo no olho mágico. Estou para ingressar no sonho quando lembro que quem tem meu endereço é minha ex-mulher; deixei recado na casa dela, uma mensagem formal [...] (Est.:28-29).

Uma obscuridade e um aniquilamento existencial que provoca uma potencialidade

delirante na tentativa de vencer a insônia e se entregar ao sonho. O que nos faz lembrar a

conceituação de sonho por Jung:

O sonho é uma porta estreita, dissimulada naquilo que a alma tem de mais obscuro e íntimo; essa porta se abre para a noite cósmica original, que continua a alma muito antes da consciência do eu e que a perpetuará muito além daquilo que a consciência individual pode atingir. Pois toda consciência do eu é esparsa; distingue fatos isolados, procedendo por separação, extração e diferenciação; só o que pode entrar em relação com o eu é percebido. A consciência do eu, mesmo quando aflora as nebulosas mais distantes, é feita de enclaves bem delimitados. Toda consciência especifica. Mediante o sonho, inversamente, penetramos no ser humano mais profundo, mais geral, mais verdadeiro, mais durável, mergulhado ainda na penumbra da noite original, quando ainda estava no Todo e o Todo nele, no seio da natureza indiferenciada e despersonalizada. O sonho provém dessas profundezas, onde o universo ainda está unificado, quer assuma as aparências mais pueris, as mais grotescas, as mais imorais (1975:360).

Sendo a fragmentação o elo da cadeia narrativa, torna-se inevitável a diluição dos

fatos na consciência subjetiva do narrador, o que lhe possibilita o salto para um mundo em

constante movimento – uma reprodução da realidade dos grandes centros urbanos nas

últimas décadas –, porém a sensação de vazio e de imobilidade ecoam com força nas

fendas de sua escrita.

126 “O desejo que lança o homem para fora de si mesmo o arrasta e faz com que ele transponha os limites impostos pela razão.” (cf. SENDRA, Arlete Parrilha. op. cit., p. 204).

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O homem, assim como o protagonista de Estorvo, vivencia uma situação-limite:

uma cidade repentinamente recebe o impacto da tecnificação, projetando-a num modus

vivendi artificial. A primitiva espontaneidade é adulterada em favor do dinamismo

progressista do século pós-industrial.

De acordo com Nietzsche (apud BERMAN, 2007:32), encontramos uma

explanação em que, tal como em Marx, tudo está impregnado do seu contrário: “[...] Outra

vez o perigo se mostra mãe da moralidade – grande perigo – mas deslocado sobre o

indivíduo, sobre o filho de alguém, sobre o coração de alguém, sobre o mais profundo e

secreto recesso do desejo e da vontade de alguém.”

O que está impregnado do seu contrário gerando uma realidade imprópria e

desconectada se mimetiza na construção linguística e semântica como reconhecimento de

um mundo familiar que se converte em estranheza sensível e de significado invertido:

Eu esperava por ela em casa. Habituei-me sem ela em casa, andava nu, cantava. Mudava a arrumação da sala, planejava empapelar as paredes. Já gostava mais da casa sem minha mulher. Sozinho em casa eu tinha mais espaço para pensar na minha mulher, e era nela fora de casa que eu mais pensava. [...] Um dia ela propôs a separação. E entendi e disse que ia continuar pensando nela do mesmo jeito, a vida inteira. Já deixar a casa foi mais difícil. Eu não saberia como me lembrar da casa. Era dentro da casa que eu gostava da casa, sem pensar (Est.:41).

Hugo Friedrich (1978:206-208) nos relata que a metáfora se transforma no meio

estilístico mais adequado à fantasia ilimitada. A lírica moderna – mutatis mutandis a

literatura – graças à capacidade metafórica fundamental de unir algo próximo com algo

distante, desenvolveu as combinações mais desconcertantes, ao transformar um elemento

que já é longínquo num absolutamente remoto, sem se importar com a exigência de uma

realizabilidade concreta ou, mesmo, lógica. Tais metáforas criam um mundo em antítese ao

mundo familiar. Obscurecem o real para ganhar maior clareza poética. Eis por que o reino

poético tanto quanto o ficcional é o mundo irreal que existe só graças à palavra, ao

discurso.

Mesmo onde a escrita se apresenta de forma suave, possui aquela estranheza cuja

aflição pode ser o desencanto das ruínas da história ou o encanto dos mistérios e da

fantasia de um personagem enigmático e incongruente127 no seu tempo e no seu espaço de

127 O recurso estilístico utilizado por Chico Buarque de Hollanda na construção metafórica do discurso, em Estorvo, é o que Hansen denomina de Malla afectatio, Inconsequentia rerum ou Incoerência. Observa-se que na mala affectatio ou incongruência, ocorre uma espécie de contrariedade, não se respeitando as diferenças específicas que são condição de um conceito proporcionado ou da figuração ordenada. A naturalidade bem conseguida é, assim, a da alegoria imperfeita, situada a meio caminho entre a autonomia do procedimento (incoerência) e o fechamento total da significação (enigma). (cf. HANSEN, João Adolfo. op. cit., p. 67-68).

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fuga e de procura - muitos brasis se descortinam nas curvas da linguagem e da tensão desta

narrativa neorrealista, como podemos assim observar:

Se eu soubesse que minha irmã dava uma festa teria ao menos feito a barba. Teria escolhido uma roupa adequada, se bem que ali haja gente de tudo que é jeito; jeito de banqueiro, jeito de playboy, de embaixador, de cantor, de adolescente, de arquiteto, de paisagista, de psicanalista, de bailarina, de atriz, de militar, de estrangeiro, de colunista, de juiz, de filantropa, de ministro, de jogador, de construtor, de economista, de figurinista, de contrabandista, de publicitário, de viciado, de fazendeiro, de literato, de astróloga, de fotógrafo, de cineasta, de político, e meu nome não constava da lista (Est.:58).

Em tempos como esses, o indivíduo ousa individualizar-se. De outro lado, esse

“ousado” indivíduo precisa desesperadamente de um conjunto de leis próprias, de

habilidades e astúcias, necessárias à autopreservação. As possibilidades são ao mesmo

tempo gloriosas e deploráveis. Esses instintos podem agora voltar-se em todas as direções;

ele próprio é uma espécie de caos. O sentido que o homem pós- moderno possui de si

mesmo e da história vem a ser na verdade um instinto apto a tudo. Mas muitas estradas se

abrem a partir desse ponto. Como farão homens e mulheres para encontrar os recursos que

permitam competir em igualdade de condições diante desse tudo? Nietzsche (apud

BERMAN, 2007:33) observa que há uma grande quantidade de mesquinhos e intrometidos

cuja solução para o caos da vida é tentar deixar de viver: “para eles tornar-se medíocre é a

única moralidade que faz sentido”.

Não há mais possibilidade de retomar o passado. A retomada se tornara inviável. O

testemunho de que ali houvera vida se concretiza na única forma possível: a escritura. Esta

é a um só tempo o reduto do fracasso e da redenção. A errância surgirá do confronto entre

o protagonista e a linguagem, atando a destruição à criação, o fim ao princípio. Será a

trajetória errante a condição reveladora desse personagem diante da circularidade do seu

próprio existir: “[...] Sinto que, ao cruzar a cancela, não estarei em algum lugar, mas saindo

de todos os outros” (Est.:23).

Esse dinamismo semântico-discursivo - próprio da metáfora buarqueana -

possibilita à significância narrativa128 uma ficcionalidade de ganho de sentido e de

referência onde o singular e o universal se entrecruzam entre atos e fatos do Brasil e da

aldeia global:

128 “A narrativa apresenta-se como uma série de elementos mediatos e imediatos, fortemente imbricados; a distaxia orienta uma leitura horizontal, mas a integração superpõe-lhe uma leitura vertical: há uma espécie de encaixamento estrutural, como um jogo incessante de potenciais.” (cf. BARTHES, Roland apud SANTAELLA, Lucia. op. cit., p. 322).

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Parte desses convidados ocupa as mesas redondas que foram armadas no jardim. Como não conheço ninguém, tenho liberdade para contornar as mesas e emendar fragmentos de discursos, discussões, gargalhadas. [...] Posso observar como se comporta um círculo, como se fecha, como se abre, como um círculo se incorpora a outro. Vejo circunferências que se dilatam exageradamente, até que se rompem feito bolhas e dão vida a novas rodas de conversa. Vejo rodas sonolentas, que permanecem rodas pela geometria, não pelo assunto. Tento acompanhar assuntos que saem de uma roda para animar outra, e a outra, como uma engrenagem (Est.:58-59).

Segundo Ricoeur, esse dinamismo semântico confere à significância uma

historicidade, novas possibilidades de significância aberta, encontrando apoio nas

significações já adquiridas. Essa historicidade diz ele,

[...] é conduzida pelo esforço de expressão de um locutor que, querendo dizer uma nova experiência, procura na rede já fixada de significações um portador adequado de sua intenção. É então a instabilidade da significação que permite ao objetivo semântico encontrar o caminho de sua enunciação. De modo que, é sempre em uma enunciação particular – Benveniste chama de instância do discurso – que a história sedimentada das significações mobilizadas pode ser retomada em um objetivo semântico novo (2005:457-458).

Numa época em que os sólidos enunciados particulares de uma história –

paradigmas político-ideológicos do passado – se estilhaçaram quase por completo, o

mundo passa a ser percebido de forma imprecisa, algo desnorteado num estado de

alucinada lucidez. Isto permite ao protagonista-narrador perceber que é ele o incômodo

desse esboço de vida:

[...] Saio do prédio, e logo em seguida fica tudo escuro; penso num dia que se apagasse a cada minuto. Apoio-me na parede de chapisco, deixo-me arriar ralando as costas, e sento-me com a cabeça entre as pernas. Convertido em concha, ouço vozes longínquas, julgo ouvir sirenes. Quando me levanto, posso estar vendo as coisas mais nítidas do que são. [..] Vejo a multidão fechando todos os meus caminhos, mas a realidade é que sou eu o incômodo no caminho da multidão (Est.:114-115).

Se o personagem representa “a metáfora da vida” que se impõe neste ponto da

argumentação é porque o jogo da imaginação e do entendimento recebe uma tarefa das

“Ideias” da razão, às quais nenhum conceito pode igualar-se. Mas lá onde o entendimento

fracassa, a imaginação tem ainda o poder de apresentar a Ideia. É esta apresentação pela

imaginação que força o pensamento conceitual a pensar a mais. A imaginação não é outra

coisa senão essa demanda dirigida ao pensamento conceitual” (RICOEUR, 2005:464-465).

Os demais fatos testemunhados por este sujeito, semelhantemente, não apresentam

uma resposta conclusiva para suas questões, como bem salienta Faria (1999:164-175):

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“caracterizando um aspecto sintomático da deformação do olhar que a cidade proporciona,

negando qualquer idiossincrasia para quem está na turba”.

Esse sujeito submerso na metrópole, incapaz de observá-la como um todo, limita-se

à descrevê-la de forma nua e crua, denunciando ao leitor as mazelas do caos urbano, mas

sem proposta alguma que possa solucioná-las; a não ser pela constatação do mesmo: “[...]

O gêmeo diz ‘grandes camarões’, e volta a proteger a erva com as folhas de bananeira,

como quem protege uma criança” (Est.:93).

Se rebobinarmos um quarto de século, até Nietzsche, na década de 1880,

encontraremos outros preconceitos, devoções e esperanças; no entanto, encontraremos

também, uma voz e um sentimento, em relação à vida moderna, surpreendentemente,

similares ao nosso contexto atual. Para ele, assim como para Marx, as correntes da história

moderna eram irônicas e dialéticas: os ideais cristãos da integridade da alma e a aspiração

à verdade levaram a implodir o próprio cristianismo. O resultado constituiu os eventos que

Nietzsche chamou de “a morte de Deus” e “o advento do niilismo”.

Para Portella (1981:30-310), foi uma acrobacia facílima o salto da dessacralização

para a desumanização, da morte de Deus (Nietzsche) para a morte do homem (Foucault). O

homem se viu estigmatizado como um dos anacronismos da sociedade industrial. Michel

Foucault não vacilou em afirmar que em nossos dias não se pode mais pensar senão no

vazio do homem desaparecido. A noção atualizada de arte é, nas mãos dos críticos da

cultura, uma representação valorizada do homem; deste homem que, inegavelmente, se

encontra numa encruzilhada.

A moderna humanidade se vê em meio a uma enorme ausência de valores, mas, ao

mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades. O mundo é o

espaço em que se produzem os signos; a obra literária é o lugar onde os signos são lidos e

reproduzidos através da função mediadora e criadora do autor, razão por que Castro

(1982:108) reconhece que: “[...] o autor, enquanto agente e celebrador, efetua uma leitura.

O autor é um leitor”.

Por compreender-se o autor como um leitor do mundo, justifica-se a peculiaridade

de cada obra. Da leitura que o autor (sujeito) faz do mundo (objeto), resultará uma ou outra

realidade discursivo-literária. Segundo este ensaísta, esta tensão espetacular de identidade

na diferença e de diferença na identidade projeta-se e reflete-se nos elementos funcionais

que constituem as duas realidades (ficcional e vivencial), através de uma terceira: a

realidade discursivo-literária.

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O projeto ficcional, em estudo, registra, de forma indiscutível, que a preocupação

de Chico Buarque se encontra na procura de um sentido para o estar-no-mundo. Esta é a

identidade presente a partir da qual desfila a condição humana, assinalada pela

perplexidade perante um mundo hostil, a demonstrar a impossibilidade do indivíduo, fora

da visão utópica, reconquistar o significado heroico que em tempos outros a epopeia

registrou.

O herói não habita mais o paraíso, simplesmente por não mais haver paraíso. A

constatação de que a existência gloriosa é um projeto irrecuperável não destrói apenas a

figura do herói, mas põe em risco a própria representatividade do indivíduo. A pós-

modernidade, sustentada pelo discurso da ciência, suposto reduto da verdade e do poder,

rouba do indivíduo o direito de sentir-se agente da história, para apenas reservar-lhe a

condição de figurante cuja função é compor a cena e preencher os vazios da imensa teia

global e globalizante. Tudo acontece ao redor do indivíduo, mas este nada sabe e nada vê.

Sua existência está à mercê de um poder decisório distante do seu controle. Os intensos

conflitos e as densas paixões cederam ao silêncio, à solidão, ao desencanto e ao absurdo,

assim verificado na cena: “Ela preenche o cheque, e seus cabelos castanhos não me

permitem ver se está mesmo sorrindo, nem se esse sorriso quer dizer que eu sou um pobre

diabo” (Est.:17).

Tais situações mostram como este sujeito é posto à margem, seja pela classe que

detém o poder econômico, seja pela que domina o poder paralelo. Nesse plano social, a

ordem que gera os excluídos é repensada pelo discurso metafórico buarqueano através da

concepção tensional de verdade trazida à luz pela configuração do personagem-narrador.

O ambiente em que vive o personagem é de não pertencimento. Por esse círculo da

enunciação do personagem, a experiência do (não) pertencimento inclui o homem no

discurso e o discurso no ser. A leitura intratextual das amarras costuradas e descosturadas

no discurso fragmentado deste personagem nos possibilita entrever a crítica desvelada de

Chico Buarque diante dessa América Latina pré e pós-64: “o escritor latino-americano nos

ensina que é preciso liberar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval

e a fiesta, colônia de férias para turismo cultural” (SANTIAGO, 1978:28).

A posição do escritor – Chico Buarque – é de se utilizar das metáforas discursivas

para desestabilizá-las e desestruturando-as, romper as convenções ideológicas operadas na

linguagem. Essa técnica de inversão semântica buarqueana foi citada por Costa, em Ficção

Brasileira: paródias, histórias e labirintos, que passo a transcrever:

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Estorvo contém tão intensamente o recurso da significação invertida das palavras, que se pode afirmar que existe na obra como que uma poética da inversão. Essas declarações alteram a lógica semântica da língua e perturbam a compreensão do sentido do enunciado. Para promover essa diluição paródica do âmbito normal da linguagem, o narrador apresenta no seu discurso alguns procedimentos técnico-estilísticos, a exemplo das inversões semânticas e do experimentalismo com o significante (1995:112-113).

Esse procedimento estilístico buarqueano nos conduz ao pensamento dialético-

discursivo de Ricoeur (2005:482):

O pensamento especulativo apoia seu trabalho na dinâmica da enunciação metafórica e a ordena em seu próprio espaço de sentido. Sua réplica só é possível porque o distanciamento, constitutivo da instância crítica, é contemporâneo da experiência de pertencimento, aberta ou reconquistada pelo discurso poético, e porque o discurso poético, enquanto texto e obra, prefigura o distanciamento que o pensamento especulativo leva ao seu mais alto grau de reflexão. Finalmente, a duplicação da referência e a redescrição da realidade, submetida às variações imaginativas da ficção, aparecem como figuras específicas de distanciamento, quando essas figuras são refletidas e rearticuladas pelo discurso especulativo.

Esse discurso especulativo – latente na obra ficcional de Chico Buarque – nos

projeta para as fraturas dos estamentos sociais brasileiros. A representatividade do

personagem – signo da marginalidade – nos permite considerá-lo um elemento de

fronteira, situado de forma escorregadia entre um passado harmonioso (representado pelo

paraíso perdido do sítio familiar) e um presente dissonante, marcado pela intolerância, pela

falta de diálogo, como pode ser observado nas inúmeras desistências do narrador de

conversar com sua mãe:

Fico desequilibrado, sozinho naquela mesa oval, olhando o mel, o queijo de cabra, o chá de rosas, pensando na minha mãe. O copeiro traz uma bandeja com o telefone sem fio; é um aparelho de teclas minúsculas, que dedilho rápido e sem olhar direito, um pouco querendo esbarrar noutros números. Ouço tocar uma, duas, cinco vezes, telefone de casa de velho. Mamãe atende mas não fala nada, nunca fala quando atende ao telefone, porque acha vulgar mulher dizer alô. Eu digo “mamãe”, e posso senti-la colar o fone na orelha, para travar o tremor da mão esquerda. O copeiro entra com um carrinho, pergunta “terminou”? e retira os pratos sem sobrepô-los. Eu repito “mamãe”, mas também não tenho muito assunto, e o copeiro amassa o guardanapo que eu deixara intato á minha frente, em forma de canoa. Mamãe não deve ter entendido que era eu, e pouco depois cai a linha (Est.:18-19).

De modo que não possa ser identificado por seu próprio nome ou por sua função

social, este sujeito tece seu discurso em busca de respostas, nem sempre encontradas.

Imagem das grandes cidades, onde meticulosamente é forjada toda a sorte de

“característica desumana, que faz com que se torne difícil que rostos humanos se

reconheçam” (FARIA, 1999:144).

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Essa ausência de rosto nos faz refletir sobre a questão da metrópole tomada como

um lugar situado no limite extremo e poroso entre realidade e ficção, como se suas ruas e

edifícios, atravessados por uma enorme multiplicidade de imagens formassem algo como

um labirinto onírico. Gomes (1999:19-30), assim nos informa: “aceitando [...] o

fragmentário, o descontínuo, e contemplando as diferenças, os discursos contemporâneos

cenarizam e grafam a cidade [...], na busca de decifrar o urbano”.

A desfigurativização e a banalização do eu é facilmente detectada na produção

ficcional buarqueana: “Não lembro se o conheço da televisão, de fotos nos jornais, de

capas de revistas, mas sei que se trata de um homem famoso; alguém que as pessoas

encontram e olham em dois tempos, porque no primeiro a pele parece falsa, e é a fama”

(Est.:134-135).

Essa identidade, formadora de um descentramento do eu pós-moderno, é o que nos

faz retornar a formulação conceitual proposta por Hall:

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo imaginário ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre em processo, sempre sendo formada. [...] A identidade surge não tanto da plenitude da identidade que está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é preenchida a partir do exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros (2006:38-39). (grifos do autor)

A instauração da dialética da identidade e da diferença, presente na manifestação

literária buarqueana, projeta-se através de uma escrita pensante e pensada em sua

individuação129 ─ a dos poetas que poetizam sobre a linguagem.

129 A individuação significa tender a tornar-se um ser realmente individual; na medida em que entendemos por individualidade a forma de nossa unicidade, a mais íntima, nossa unicidade última e irrevogável; trata-se da realização de seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda comparação. Poder-se-ia pois, traduzir a palavra individuação por realização de si-mesmo. (cf. JUNG, C. G. Memórias, Sonhos e Reflexões; (trad. de Dora Ferreira da Silva). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975, p. 355). (Grifos do autor)

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CAPÍTULO 6

AINDA SOBROU O LEITE NAS MEMÓRIAS DO MEU CORAÇÃO

Existe algo nas estruturas profundas de nosso pensamento que nos impulsiona a

busca do desconhecido. De modo que é a precedência e a potencialidade constante do não-

ser que outorgam à criação o esplendor de sua existência e a vulnerabilidade de sua

verdade. A criação, por isso, oferece-se por definição como aquilo que afirma a liberdade e

que inclui e exprime em sua encarnação a presença de tudo que esteja ausente de sua

essência ou de tudo que poderia ter assumido uma forma radicalmente diversa (STEINER,

2003:143).

A verdade que tanto ansiávamos acontece no que Heidegger chama de destino do

ser. O empenho de nosso pensamento para atingir um ponto modal é a própria errância do

sentido do ser. A partir desta constatação, remetemo-nos ao pensamento de Manuel

Antônio de Castro: “Contínua busca de sua origem, o homem parte em busca do que não

pode ser conhecido” (1982:62).

Num esforço de resgatar a essência da verdade e na esperança de conduzi-la ao

horizonte do humano, este investiga dialeticamente (interioridade/exterioridade) sua

situação no mundo. Trata-se de um movimento permanente, por isso errante, que nos

projeta em devir sempre nebuloso, porque coberto pela cortina que nos impede de perceber

a luminescência da verdade. É o que nos diz Ivo Lucchesi:

Inegavelmente, a trajetória do homem se denuncia contraditória, determinando para o seu percurso o esforço na tentativa de o homem superar a contradição. Se o homem estabelece como meta a verdade e apenas vivencia a não-verdade, então está ele condenado ao fracasso. Qual, pois, a razão da procura, se é a escuridão seu ponto de chegada? A razão se sustenta pelo impulso de liberdade. É esta contradição (a busca do inatingível) que confere grandiosidade aos atos humanos (...). Trata-se de uma tensão permanente entre superação e engano (falsa vitória e consciência da perda) que, a cada momento, reafirma a errância em que vê o homem imerso (1987:15). (grifos nossos)

Foi, portanto, por meio da linguagem – tradução de nossos pensamentos – que o

homem pôde expressar seus sentimentos e angústias diante do indizível. Diante desse

conflito, o homem tentou estabelecer um lugar firme para sustentar suas crenças e valores

nas diversas manifestações da sua vontade de verdade. Seus pensamentos se voltaram, a

princípio, para a grandiosidade da vida. Segundo, Charles Bally (1947:20): “No se trata, ya

se ve, de la vida considerada em sí misma, sino de la conciencia de vivir y de la voluntad

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de vivir; no de la vida tal como el biólogo se la representa en su realidad objetiva, sino del

sentido vital que llevamos em nosotros mismos”.

Esse complexo movimento formado de desejos e ações que germinam e se

expandem de nossos pensamentos denomina-se o mundo da vida. Um mundo de palavras.

A questão trazida por Nietzsche é que o homem, como um artista do verbo, não se

contentou apenas com a simplificação e esquematização dessas palavras:

(...) e buscou desenvolver um emaranhado significativo que fosse capaz de substituir as coisas, a pluralidade. Para isto ele precisou esquecer que o que fazia era criar nomes, e passou a acreditar nos nomes das coisas como “em verdades eternas.” É a ficção de correspondência entre as palavras e as coisas a base fundamental em que repousa a construção de um outro mundo. O outro mundo dos signos é a primeira ficção humana. A linguagem é nosso primeiro outro mundo (apud MOSÉ, 2005:45-46).

Através desse universo de palavras, o homem manifestou sua vontade de eternizar a

sua existência e descobriu a palavra: felicidade. Assim,

Todos los hombres – disse Pascal – buscan ser felices: no hay excepción.Por diferentes medios que empleen, todos tienden a esa meta; lo que hace que unos vayan a la guerra, y que otros no, es ese idéntico deseo, acompañado de diferentes perspectivas. La voluntad no da jamás el menor paso sino hacia ese objeto. Es el motivo de todas las acciones de todos los hombres, hasta de los que se quieren perder (apud BALLY, 1947:23).

Como o caminhar do homem é errante, de idas e vindas, trafegando num deserto

povoado de imagens e sensações, de aproximações e afastamentos, de identidades e

diferenças, ele resolveu empreender, como signo de sua existência, uma obra. Quando o

ser instaura sua obra, o mundo e todas as coisas adquirem sua permanência e sua urgência,

sua distância e proximidade, sua amplidão e estreiteza. Através do fazer do homem, a obra

produz algo que chega a manifestar-se: a matéria de que a obra é feita é posta à vista.

Nesse momento, a arte – produção criativa do homem – nos permite erigir uma abertura

introspectiva, como podemos inferir pelas palavras de Bornheim (2001:210): “a obra de

arte é o templo que nos permite uma inspeção, um olhar para dentro desse mundo”.

“Exatamente como no mistério do livre-arbítrio outorgado por Deus às suas

criações, os artistas liberam no mundo agentes do imaginário e de alguma poeira de pré-

existência cujo destino subsequente e cuja liberdade de ação terminam por desafiar o

criador” (STEINER, 2003:187).

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Por isso, quando lemos uma obra, em especial, romances é porque estes nos

oferecem a agradável impressão de habitar mundos em que a noção de verdade é

inabalável. É na ficção, afirma Humberto Eco:

(...) que procuramos a espécie de certeza e segurança intelectual que o mundo real não pode oferecer... Lemos romances a fim de localizar uma forma na informe quantidade de experiências terrenas. Participamos de um jogo, mas dele participamos a fim de instilar sentido na desordenada profusão de fenômenos terrenos – procuramos abrigo contra a Angst, essa profunda ansiedade que nos acossa sempre que desejamos dizer algo a propósito do mundo, com segurança (apud BAUMAN, 1998:151-152).

Mas apesar do deleite com a leitura experienciada, sabemos que a nossa travessia é

temporária e a linguagem é o reflexo dessa certeza – os personagens morrem no final da

história e o livro volta a se fechar. A felicidade da obra é eterna, entretanto a mortalidade

não é virtual. De modo que a comunicação dessa experiência, na contemporaneidade,

tornou-se líquida e esfacelada, a tradição oral dessa experiência deixou de ser

compartilhada coletivamente. A arte de contar torna-se cada vez mais rara porque ela parte,

fundamentalmente, da transmissão de uma experiência cujas condições de realização já não

existem na sociedade capitalista pó- moderna. Quais são essas condições? Cito Benjamin

(1994:10-11):

a. A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte. Pressupõe, portanto, uma comunidade de vida e de discurso que o rápido desenvolvimento do capitalismo, da técnica, sobretudo, destruiu. A distância entre os grupos humanos, particularmente entre as gerações, transformou-se hoje em abismo porque as condições de vida mudam em um ritmo demasiado rápido para a capacidade humana de assimilação. Enquanto no passado o ancião que se aproximava da morte era o depositário privilegiado de uma experiência que transmitia aos mais jovens, hoje ele não passa de um velho cujo discurso é inútil. b. Esse caráter de comunidade entre vida e palavra apoia-se ele próprio na organização pré-capitalista do trabalho, em especial na atividade artesanal. O artesanato permite, devido a seus ritmos lentos e orgânicos, em oposição à rapidez do processo de trabalho industrial, e devido a seu caráter totalizante, em oposição ao caráter fragmentário do trabalho em cadeia, por exemplo, uma sedimentação progressiva das diversas experiências e uma palavra unificadora. O ritmo do trabalho artesanal se inscreve em um tempo mais global, tempo onde ainda se tinha, justamente, tempo para contar. c. A comunidade da experiência funda a dimensão prática da narrativa tradicional. Aquele que conta transmite um saber, uma sapiência, que seus ouvintes podem receber com proveito. Sapiência prática, que muitas vezes toma a forma de uma moral, de uma advertência, de um conselho, coisas com que, hoje, não sabemos o que fazer, de tão isolados que estamos, cada um em seu mundo particular e privado.

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Por conta dessa desagregação do social surge assim, uma tendência das narrativas

contemporâneas em recriar um universo propício para a reconstrução dessa experiência

vivida, solitariamente. O romance parte a procura do sentido da vida, da morte, da história.

Encontramos em Leite Derramado130, de Chico Buarque, a representação simbólica

dessa experiência:

Ás vezes aspiro fundo e encho os pulmões de um ar insuportável, para ter alguns segundos de conforto, expelindo a dor. Mas bem antes da doença e da velhice, talvez minha vida já fosse um pouco assim, uma dorzinha chata a me espetar o tempo todo, e de repente uma lambada atroz. Quando perdi minha mulher, foi atroz. E qualquer coisa que eu recorde agora, vai doer, a memória é uma vasta ferida (LD:10).

A partir dos fragmentos de sua memória, o narrador-personagem de Leite

Derramado ─ Eulálio d’Assumpção ─ vai tecendo e reconstruindo, afetivamente131, os

rastros132 não intencionais deixados ou esquecidos num turbilhão de sensações

conflituosas:

Eu gostaria de ter conhecido meu trisavô, gostaria que meu pai me acompanhasse mais um pouco, gostaria sobretudo que Matilde me sobrevivesse, e não o contrário. Não sei se existe um destino, se alguém o fia, enrola, corta. Nos dedos de alguma fiandeira, provavelmente a linha da vida de Matilde seria de fibra melhor que a minha, e mais extensa. Mas muitas vezes uma vida para no meio do caminho, não por ser a linha curta, e sim tortuosa (LD:55).

Segundo Heitor Ferraz (Bravo, 2009:12), Chico Buarque é um compositor e literato

de mão-cheia. O narrador de sua nova incursão da literatura é um velho gagá, para lá dos

100 anos, com fumos de nobreza, que relata de um leito de hospital qualquer ─ não se sabe

bem para quem, ora para uma enfermeira, ora para a filha, ora para uns sequestradores ─ a

esgarçada história de sua vida.

É, então, dentro desta estrutura que são desveladas as ações e atitudes que

constituem a problemática existencial deste personagem. Recriando a vida a partir de seu

130 O romance Leite Derramado, de Chico Buarque, terá a seguinte sigla: LD. 131 A memória liga-se à lembrança das vivências, e esta só existe quando laços afetivos criam o pertencimento ao grupo e ainda os mantém ao presente. (cf. FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo: Editora UPF, 2004, p. 39). 132 O rastro não é um signo como outro. Mas exerce também o papel de signo. Pode ser tomado por um signo. O detetive examina como signo revelador tudo o que ficou marcado nos lugares do crime, a obra voluntária ou involuntária do criminoso; o caçador anda atrás do rastro da caça; o rastro reflete a atividade e os passos do animal que ele quer abater; o historiador descobre, a partir dos vestígios que sua existência deixou, as civilizações antigas como horizontes de nosso mundo. Tudo se dispõe em uma ordem, em um mundo, onde cada coisa revela outra ou se revela em função dela (LEVINAS apud GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed.34, 2006, p. 113-114).

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fim, o protagonista, Eulálio d’Assumpção, de Leite Derramado, é construído. Recria a vida

recontando o passado.

Eulálio d’Assumpção reconta o passado para que suas palavras façam sentido. Sua

memória se constitui pelo já-dito que possibilita todo dizer:

(...) recordo cada fio da barba do meu avô, que só conheci de um retrato a óleo. (...) É com essa gente antiquada que sonho, quando você me põe para dormir. Eu por mim sonhava com você em todas as cores, mas meus sonhos são que nem cinema mudo, e os atores já morreram há tempos. Dia desses fui buscar meus pais no parque dos brinquedos, porque no sonho eles eram meus filhos. (...) Meu avô foi um figurão do Império, grão-maçom e abolicionista radical, queria mandar todos os pretos brasileiros de volta para a África, mas não deu certo. Seus próprios escravos, depois de alforriados, escolheram permanecer nas propriedades dele. (LD:14-15)

Como na canção “O velho Francisco” (1987),

Hoje é dia de visita Vem aí meu grande amor Ela vem toda de brinco Vem todo domingo Tem cheiro de flor (...) Quem me vê, vê nem bagaço Do que viu quem me enfrentou Campeão do mundo Em queda de braço Vida veio e me levou133

o passado do protagonista Eulálio d’Assumpção se encontra nos fragmentos de uma vida

que não parece mais existir, perdeu de alguma maneira, nesse vaivém entre condutas

individuais e coletivas, o encantamento com as pequenas coisas que cercam o seu

cotidiano. Dentro da alma do protagonista só restam marcas que passaram pelos sentidos:

(...) preciso dos meus anestésicos, minhas dores no peito voltaram a se agravar, sinto que desta noite não passo. Se houver algum padre por perto, mande-o vir me confessar, pois vivo em pecado desde o dia em que conheci minha mulher. Não sei se já lhe contei como pecava em pensamento até dentro da igreja, no tempo em que ainda ia à missa, mas sou batizado e tenho direito à extrema-unção. Estou mesmo inclinado a crer na vida eterna e faço fé em que Matilde esteja à minha espera, apesar de no catecismo nunca terem me explicado direito a ressurreição da carne. (LD:163).

Para Barros Filho (2005:55), desta forma, o passado não age sobre o presente, como

se imagina. Porque não há ação no passado. Porque não há nada no passado. Porque o

passado não é. Só é enquanto presente, porque só o presente é. O passado não convertido

em memória não é. Não é mais. Assim, a refração ─ que nunca conserva ─ pressupõe um

133 HOMEM, Wagner. op. cit., p. 250.

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objeto a refratar, uma matéria-prima presente sobre a qual agir. Signos enunciados e

recebidos no passado, reconstruídos em ato, no presente. Atualizados. Refração é

atualização. Uma potência atualizada, que ganha forma, no instante. Enunciar um discurso

é sempre atualizar uma potência discursiva.

Sob esse aspecto, Ricoeur considera que:

Quanto à memória, por um lado, a marca existe agora (o presente do presente), por outro lado, ela vale pelas coisas passadas que, a esse título, existem ainda dentro da memória. (...) Por isso, quando recontamos coisas verdadeiras, embora coisas passadas, é da memória que as tiramos, não as coisas elas mesmas, que passaram, mas as palavras concebidas a partir das imagens que estão gravadas no espírito, como marcas que passaram pelos sentidos (apud LEAL, 2002:20).

Os signos deixados pela marca do tempo retornam à obra buarqueana porque,

segundo Zygmunt Bauman (1998:157), “a arte torna acessível, desvenda tudo que é

diferente do habitual”. De modo que o narrador de Leite Derramado encontra disperso em

diversas formas o Brasil e os brasileiros ─ matriz mestiçada, dinamizada por uma cultura

sincrética ─ nas memórias do protagonista Eulálio de A’ssumpção. Nessa confluência, de

discurso histórico e literário os acontecimentos vão se sucedendo, fixando e inscrevendo a

história narrativa e a história efetiva.

Heitor Ferraz (Bravo, 2009:14) nos diz que Chico Buarque procurou refazer uma

história do Brasil vista por um sujeito da elite e já decadente, ainda obcecado por sua

mulher, retratada por ele apenas como objeto de um desejo físico ─ e que aos poucos vai

emergindo como uma vítima do ciúme e do preconceito enraizado no narrador, preconceito

que, como sabemos, continua a gerar conflitos na sociedade brasileira.

Fazendo um entrelaçamento do literário com o histórico-social, do texto com o

contexto, Chico opta assim, por retratar uma história que será contada como um evento,

como se através do protagonista Eulálio d’Assumpção o leitor recordasse e a seu modo

explicasse o Brasil nas cenas e relatos deflagrados em cada capítulo de Leite Derramado:

(...) o dinheiro dos Assumpção sempre foi limpo, era dinheiro de quem não precisa de dinheiro. Saiba a senhora que ao ganhar do presidente Campos Sales a concessão do porto de Manaus, meu pai era um jovem político bem-conceituado, sua fortuna de família era antiga. Não sei se alguma vez lhe contei que meu bisavô foi feito barão por dom Pedro I, pagava altos tributos à Coroa pelo comércio de mão-de-obra de Moçambique. Se hoje enfrento privações, em breve viverei à larga, são contingências de quem costuma lidar com grandes somas. Ontem mesmo falei com meus advogados, e finalmente está para sair o ressarcimento pela desapropriação da minha fazenda na raiz da serra. Entra governo, sai governo, são sessenta anos de um processo contra a União, para rever uma indenização irrisória que me estipularam à primeira vista (LD:78-79).

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É dentro de crenças co-participadas, de vontades coletivas abruptamente eriçadas,

que a memória e a história134 emergirão. Essa é a razão por que, em lugar de um quadro

geral da história brasileira, Buarque compõe compartimentos da história em flash back.

Um desses compartimentos refere-se ao racismo brasileiro que tem como característica

primordial não incidir sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor da pele.

Darcy Ribeiro (1995:224-225) comenta que prevalece, em todo o Brasil, uma

expectativa assimilacionista, que leva os brasileiros a supor e desejar que os negros

desapareçam pela branquização progressiva. Ocorre, efetivamente, uma morenização dos

brasileiros, mas ela se faz tanto pela branquização dos pretos, como pela negrização dos

brancos. A forma peculiar do racismo brasileiro decorre de uma situação em que a

mestiçagem não é punida, mas louvada. Com efeito, as uniões inter-raciais, aqui, nunca

foram tidas como crime ou pecado. Provavelmente porque o povoamento do Brasil não se

deu por famílias europeias já formadas, cujas mulheres brancas combatessem todo o

intercurso com mulheres de cor. Nós surgimos, efetivamente, do cruzamento de uns

poucos brancos com multidões de mulheres índias e negras.

Para este antropólogo, o aspecto mais perverso do racismo assimilacionista é que

ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para

lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a

que é submetido.

Neste ângulo, os signos que compõem essa sociedade doentia, de consciência

deformada e deformante desentranharão do processo mimético buarqueano. Narrar para

Buarque, é configurar ações humanas específicas, mas é também discorrer sobre

significados, analisar situações e reconhecer fissuras do preconceito nas imagens que não

cessam de perpassar em sua escritura. Como podemos inferir pelas palavras do narrador-

protagonista que assim se pronuncia:

Quando amanhã minha cama aparecer vazia, muitos aqui farão o sinal-da-cruz, pensando o pior. Mas não se aflijam por mim, pois estarei chupando uvas em Copacabana, numa sala com vista para a praia. Provavelmente em cadeira de rosas, mas dessas motorizadas, para que eu possa descer a passeio por minha conta quando bem entender. Resisti um bocado à ideia de morar em edifício de

134 Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos, e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado. (cf. NORA, Pierre. Entre memória e história ─ a problemática dos lugares; (trad. de Yara Aun Khoury). Projeto História. São Paulo: v.10, dez. 1993, p. 9).

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apartamentos, me parecia promíscuo. Mas afinal me rendi às suas comodidades, e não hesitem em me procurar dia desses, vou lhes deixar o meu cartão. O edifício tem lá sua classe, com o hall de entrada metido a art déco, os vizinhos são discretos, os porteiros limpinhos. Trata-se enfim de um ambiente seleto, e era natural que me causasse espécie entrar comigo no elevador um grandalhão com cara de nortista, nariz chato, pele grossa. Indiquei-lhe o elevador de serviço, mas ele me deu as costas e apertou o botão do meu oitavo andar (LD:141-142).

Entendemos, portanto, que em Leite Derramado não se trata de memória e história,

mas “memória em história”, uma vez que é a memória que dita e a história que escreve. A

narrativa buarqueana, como forma eminente de mnemosyne (deusa da reminiscência),

articula o caráter temporal da experiência humana a fim de revelar no presente135 às

diversas rugas do passado do protagonista:

(...) começo a recapitular as origens mais longínquas da minha família, e em mil quatrocentos e lá vai fumaça há registro de um doutor Eulálio Ximenez d’Assumpção, alquimista e médico particular de dom Manuel I. Venho descendo sem pressa até o limiar do século XX, mas antes de entrar na minha vida propriamente, faço questão de remontar aos meus ancestrais por parte de mãe, com caçadores de índios num ramo paulista, num outro guerreiros escoceses do clã dos McKenzie. Até pouco eu soletrava esses nomes para uma enfermeira, que me deixou depois de espremer minhas memórias até o bagaço. Mas isso é o que ela pensa, saibam os senhores que, só da minha mulher, ainda tenho na cabeça um baú repleto de reminiscências inéditas (LD:185).

Para Leal (2002: 83), o caráter temporal da experiência humana é o ponto para onde

converge o ato de narrar, aquele que supera a clivagem entre o vivido e o cronológico, ou

seja, um tempo ricoeuriano, um terceiro tempo.136 Em nossa língua a história une tanto o

lado objetivo quanto o subjetivo, significa tanto historiam rerum gestarum quanto res

135 A memória para produzir conhecimento histórico, exige, hoje, a instauração de um novo tipo de relação com o passado. Deve-se em primeiro lugar, afastar-se da ilusão positivista de que o passado é totalmente cognoscível (...) hoje, ao contrário, sabemos que muitas vezes a voz do passado é inaudível e que muitos aspectos são inacessíveis e perdidos para o observador. Além disso, sabemos também que o acontecimento pode apresentar novas dimensões na medida em que o presente projeta novas luzes sobre o passado, iluminando-lhe dimensões que somente são percebidas pelas luzes oferecidas pelas perguntas do presente. (cf. FÉLIX, Loiva Otero. op. cit., p. 59-60). 136 Podemos dizer que existem sobre o tempo discursos que se apresentam como inconciliáveis. Um deles é produzido pelos físicos e o outro pelos filósofos. Ao falar do tempo a física concentra-se no número dos movimentos naturais dos corpos. Um tempo que é exterior ao humano, supralunar. Suas características são a mensurabilidade, a reversibilidade, a homogeneidade. Neste tempo natural o vivido pelo homem não é levado em consideração, não há referência à morte, à finitude, ao anseio por eternidade. Os autores desta vertente são Platão, Aristóteles, e físicos como Newton e Einstein. Por outro lado, a filosofia aborda o tempo sob uma outra perspectiva. Aqui o tempo é interior ao humano, sublunar. Dentre suas características destacamos a incomensurabilidade, a irreversibilidade, a sucessividade, e, principalmente a reflexão. Os autores desta tradição vão desde Plotino, Santo Agostinho, passando por Bergson, Bachelard, Husserl e Heidegger. Paul Ricoeur buscará destacar a “capacidade criadora de refiguração do tempo” pela história, na constituição de um terceiro tempo: o tempo histórico. Segundo Ricoeur, o tempo histórico faz mais do que a mediação entre o tempo vivido da consciência e o universal da natureza, mas reinscreve o primeiro no último. (cf. MENDES, Breno. Uma (imperfeita) mediação entre extremos: um panorama sobre as contribuições de Paul Ricoeur à teoria da história em Tempo e Narrativa. Disponível em: <http://www.historiaehistoria.com.br> Acesso em: 15 fev. 2012).

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gestas; tanto a narrativa histórica quanto o acontecimento, os atos e os fatos. A isso se

acrescenta que a compreensão da experiência humana não se realiza sem a mediação dos

sistemas configuradores de uma cultura. Como podemos inferir por este fragmento:

Quando eu sair daqui, vamos começar vida nova numa cidade antiga, onde todos se cumprimentam e ninguém nos conheça. Vou lhe ensinar a falar direito, a usar os diferentes talheres e copos de vinho, escolherei a dedo seu guarda-roupa e livros sérios para você ler. (...) Minha outra mulher teve uma educação rigorosa, mas mesmo assim mamãe nunca entendeu por que eu escolhera justamente aquela, entre tantas meninas de família distinta. Minha mãe era de outro século, em certa ocasião chegou a me perguntar se Matilde não tinha cheiro de corpo. Só porque Matilde era de pele quase castanha, era a mais moreninha de sete irmãs, filhas de um deputado correligionário do meu pai (LD:29-30). (grifos nossos)

Esse fragmento diz respeito a outro compartimento que surge no olhar crítico de

Buarque, o preconceito linguístico. Preconceito esse que, segundo Freyre (2004:220) foi

marcado por uma dualidade de línguas, a dos senhores e a dos nativos, uma de luxo,

oficial, outra popular, para o gasto ─ dualidade que durou seguramente século e meio e que

se prolongou depois, com outro caráter, no antagonismo entre a fala dos brancos das casas-

grandes e dos negros das senzalas ─ tornando-se um vício, em nosso idioma, que só hoje, e

através dos romancistas e poetas mais novos, vai sendo corrigido ou atenuado: o vácuo

enorme entre a língua escrita e a língua falada. Entre o português dos bacharéis, dos padres

e dos doutores, quase sempre propensos ao purismo, ao preciosismo e ao classicismo, e o

português do povo, do ex-escravo, do menino, do analfabeto, do matuto, do sertanejo.

Foi nesse espaço de condições socioculturais distintas que o narrador-protagonista

(Eulálio d’Assumpção-branco) relata a história de uma vida que não cessa de ser

refigurada por todas as histórias verídicas ou fictícias que ele conta sobre si mesmo e sua

esposa (Matilde-negra). Essa refiguração faz da própria vida de Eulálio d’Assumpção um

tecido de histórias narradas:

Eulálio d’Assumpção foi casado com a morena Matilde, que começa como filha de um deputado. Depois, surgem dúvidas sobre sua origem, até tornar-se uma agregada. Com ela, ele teve uma filha, Maria Eulália, que no momento da narração já é uma velha curvada com 80 anos. Maria Eulália, por sua vez, casou-se com um italiano, Amerigo Palumbo, que rapou as joias da família e a deixou só, com um filho, Eulalinho. Este virou comunista e morreu nas mãos da ditadura. Porém, ele também gerou um filho negro com uma ativista de esquerda, que também morreu. Este filho negro ─ descendente de dom Eulálio Penalva d’Assumpção, conselheiro do marquês de Pombal ─ também morre, deixando outro Eulálio, confundindo de vez a cabeça conturbada do leitor (LD:5-195).

A narrativa como modo de emprego da linguagem remete ao ato de recontar, que

quase sempre se encontra fragmentado no tempo porque “o fluxo da consciência possui sua

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própria unidade” (HUSSERL apud RICOEUR, 1997:434). Dessa maneira, a história,

enquanto um dos gêneros que compõem o campo narrativo vê-se implicada na correlação

entre a temporalidade da experiência humana (intratempo/vivido) e a narração

(intertempo/cronológico).

O múltiplo da nossa experiência temporal é posto em correspondência com a

capacidade do discurso narrativo de unificar a temporalidade em que o vivido e o

cronológico se misturam de maneira às vezes contraditórias. A réplica dessa bifurcação do

tempo não é nada mais do que o tempo humano enquanto tempo narrado, o produto da

aplicação da narrativa aos paradoxos do tempo. É esse tempo bifurcado que será recontado

por Eulálio d’Assumpção em Leite Derramado. Para narrar essa história, o narrador-

protagonista constitui uma forma privilegiada de leitura em retorno dos acontecimentos de

sua vida. Segue a transcrição:

Da babá ao portuguesinho do armazém, todos sabiam que sua mãe, desarvorada, tinha partido sem deixar um bilhete ou fazer nada. Mas abandonar uma criança ainda lactante, pequerrucha, de se carregar debaixo do braço, isso não entrava na cabeça de ninguém, não fazia sentido, não podia ser. Nem de um marido a mulher abre mão tão facilmente, ela o troca por outro, e às vezes o faz às pressas porque já vai a ponto de mudar de ideia. Assim como sofre para se desfazer de um vestido velho, quando renova o guarda-roupa. Para uma mãe largar sua criança, só mesmo se outra criança a arrastasse pela cintura com a força de um amante. Por isso, num primeiro momento, cheguei a pensar que sua mãe estava de barriga, quando fugiu (LD:95).

Segundo Ricoeur (apud LEAL, 2002:27), denomina-se leitura em retorno o

itinerário do fim em direção ao começo, significando que nos colocamos no ponto de vista

da conclusão e recapitulamos as condições iniciais do desenrolar da ação através das suas

consequências terminais.

O desenrolar das ações e acontecimentos vão sendo revelados pelos rastros, ou

melhor, pela imagem-marca ─ coisa presente que vale por uma coisa passada ─ deixada na

memória de Eulálio d’Assumpção. Se tomarmos o caráter imaginário do narrador, sua

tentativa de mediatizar e esquematizar esse rastro, teríamos a complexidade de seus

sentimentos para com Matilde. Ao relatar no leito do hospital a travessia de sua existência,

o narrador transforma seu tempo vivido (passado presente) em tempo sucessivo (futuro

passado), preservando, selecionando, rastreando no arquivo de sua memória o motivo que

levou Matilde a se ausentar do lar. Cito essa passagem:

Perguntei por Matilde, Balbina me apontou o chalé, e já do portão se ouvia música. Pensei que fosse um maxixe, mas era o tal samba que ela deu para ouvir todo dia: jura, jura, jura de coração. A porta de casa estava escancarada, e na sala

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deparei com Matilde de maiô, dançando com o preto Balbino. (...) A cena foi ficando insuportável, os dois não queriam parar com aquela dança nojenta, então dei um pontapé na vitrola de Matilde. (...) Voltei de novo pelo centro da cidade, onde comprei uma radiovitrola RCA Victor de último tipo e dois álbuns com vinte e quatro discos de samba. Matilde ficou boba com o presente, voltou às boas comigo, ela era leve de espírito. Só dias mais tarde se fechou para o mundo, passou a esconder o corpo sob os vestidos largos que mamãe lhe dera havia tempo. E hoje saiu sem avisar aonde ia, Matilde nunca foi de sair à noite. Por isso é natural que eu parta feito um louco atrás dela, mas isso só vai acontecer daqui a pouco. É esquisito ter lembranças de coisas que ainda não aconteceram, acabo de lembrar que Matilde vai sumir para sempre (LD:115-117).

Na medida em que o processo da escritura abre ao protagonista e também narrador

a possibilidade do conhecimento, afirma-se-lhe o desejo de busca da verdade,

consolidando, deste modo, a errância (Heidegger, 1970:43): “o espaço de jogo deste

vaivém no qual a ek-sistência in-sistente se movimenta constantemente, se esquece e se

engana sempre e novamente”; como fundamento da existência.

Sabe o narrador que a verdade não se localiza nos limites do existir, menos ainda na

realidade concreta, porquanto esta se encontra esvaziada de sentido, anulada em seus

valores essenciais. Aspira, sim, àquela capaz de impulsioná-la em direção ao encontro

consigo mesmo, razão por que sua preocupação se concentra com o que permanece fixado,

tatuado em sua memória. Por isso, as impressões, as marcas tornam o verbo permanecer

mais importante do que o verbo passar. É pela arquitetura da palavra, uma galeria de

simulacros, que se re/vela e se des/vela o caminhar errante de Eulálio d’Assumpção à

procura do seu ponto de partida:

Passei pelos quartos vazios, ouvia soluços e água escorrendo no banheiro, e surpreender Matilde a me trair no nosso leito, não sei por quê, me diminuiria menos que vê-la se entregar de pé a um homem molhado. Cheguei sem fôlego à porta entreaberta do banheiro, e o que vi foi Matilde debruçada na pia, como se vomitasse. Por um segundo me ocorreu que pudesse estar grávida, depois vi seu ombro direito nu, ela arriara uma banda do vestido. Corri para a abraçar, envergonhado do meu mau juízo, mas ela aprumou o vestido bruscamente e se esquivou de mim, deixando a torneira aberta. E vi respingos de leite nas bordas da pia, o ar cheirava a leite, vazava leite no vestido da sua mãe, nunca lhe contei esse episódio? (LD:135-136)

Sendo seu compromisso único com a linguagem, é a revelação do segredo que se

encontra por detrás das palavras que mais o narrador deseja captar. Todavia, tem ciência de

que não pode empreender a caminhada com os meios já conhecidos. Nesse momento,

emerge do ato criador a face oculta do escritor, a própria energia simbólica do pré-

pensamento, em forma de personagem, cujo nome de origem teutônica se traduz como

sendo a guerreira, a imagem-marca: Matilde. Este é o conflito. O narrador e também

protagonista vê-se diante de uma ambivalência: Matilde é a um só tempo, a matéria-prima

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com que ele procura modelar o discurso ficcional e a fonte geradora que comanda seu

processo criador. É dessa ambivalência que nasce a construção estética buarqueana – de

uma rememorização137 afetiva:

Recordei-a envolta no vapor, já me escancarando os olhos negros, recordei seu sorriso preso nos lábios, seu jeito de encolher os ombros e me chamar para o outro mundo. Recordei seu movimento de corpo, ao se encostar nos cavalos-marinhos da parede, o sutil balanceio dos seus quadris, e de repente me senti dotado de uma força que fazia anos já não tinha. Olhei-me, admirado, havia em meu corpo de velho um desejo por Matilde semelhante ao do nosso primeiro encontro, acho que nunca lhe contei como a conheci na missa do papai (LD: 138).

Segundo a ensaísta Maria Aliete, “não se trata de uma rememoração orientada pelas

circunstâncias factuais, mas pelas convergências de vetores enraizados no âmbito subjetivo

de cada ser, que incluem memória evocativa, memória reflexiva, memória afetiva,

memória mítica” (1982:108).

É desta forma, que a memória do homem se constrói através do fruto da

transmissão oral viva e da conservação pela escrita; reduto fecundo onde o narrador-

protagonista, Eulálio de Assumpção – por meio de suas ressurgências do passado no

presente – vai compartilhar da fragilidade e incerteza de dizer o não-dito: “Muitas vezes de

fato invoquei a morte, mas no momento mesmo em que a vejo de perto, confio em que ela

mantenha suspensa a sua foice, enquanto eu não der por encerrado o relato da minha

existência” (LD:184).

Benjamin (1994:207-208) nos informa que é no momento da morte que o saber e a

sabedoria do homem e, sobretudo sua existência vivida ─ assumem pela primeira vez uma

forma transmissível. “Assim como no interior do agonizante desfilam inúmeras imagens ─

visões de si mesmo, nas quais ele se havia encontrado sem se dar conta disso ─, assim o

inesquecível aflora de repente em seus gestos e olhares, conferindo a tudo o que lhe diz

respeito àquela autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer, para os vivos em

seu redor.”

Para ser fiel a essa semiosfera existencial, o autor não poderia evitar a forma

especular que o romance Leite Derramado – processo semeado em Estorvo – mantém na

137 A rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora que, em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos, ao esquecido e ao recalcado,, para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si mesmo, visa à transformação do presente (cf.GAGNEBIN, Jeanne Marie. op. cit., p. 55).

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trama da narrativa: um invólucro de desconstruções sígnicas. Tal similitude é em parte

explicável até pelo fato de terem sido escritos pelo mesmo olhar apurado de quem esmera

o próprio trabalho sem desgastá-lo.

Pode-se mesmo afirmar que o olhar é um aspecto recorrente na obra de Chico

Buarque. Nesse, o conflito emerge em preocupação com o debruçar-se sobre si mesmo,

tendência imanente na narrativa contemporânea. Seguem-se, apenas, alguns exemplos,

com a finalidade de ilustrar o que foi exposto:

E se algum dia encontrasse Matilde com outro, mais que olhar Matilde eu olharia o outro, eu necessitava saber como era esse homem, para dar substância ao meu ciúme. Eu pensava nesse homem constantemente, muitas noites cheguei a sonhar com ele, mas ao despertar não conseguia lhe conferir forma humana. Nem ódio eu podia ter de um sujeito que não me ultrajou, não entrou na minha casa, não fumou meus charutos, não violentou minha mulher. E pouco a pouco me dispus a aceitá-lo, procurei imaginá-lo como uma alma delicada, como alguém que olharia por Matilde na minha falta. Imaginava um homem que se dirigisse a ela somente com palavras que nunca usei, que tivesse o cuidado de tocar a pele dela onde eu jamais tocava. Um homem que se deitasse com ela sem tomar o meu lugar, um homem que se contentasse em ser o que eu não era. De tal modo que Matilde pensaria em mim sempre que olhasse em torno dele, e em sonhos nos visse os dois ao mesmo tempo, sem compreender quem era a sombra de quem. E ao despertar, talvez só se lembrasse vagamente de ter sonhado com o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana. (...) E onde eu agora caminhava trôpego, trançando as pernas, pois apenas roçasse um pé nas pretas, cairia no inferno. Acho que o inferno era a doença de Matilde (LD:164). (grifos nossos)

Observando, cuidadosamente, o percurso de nossa cultura, concluir-se-á que o

contato do homem com seu espaço existencial se faz apoiar numa relação especular, aqui

compreendida nos dois sentidos básicos originários da forma latina “speculum”

(reprodução fiel e investigação) traduzindo-se por “mesmo” e “outro” (a identidade e a

diferença), o que nos remete ao pensamento de Manuel Antonio de Castro: “Ora, espelho

vem do Latim ‘speculum’, donde também se forma o verbo ‘especu- lar’. A busca da

essência do espelho é a busca da essência do especular, e nela do conhecer, do com-nascer,

da verdade” (1979:14).

É com fundamento na estruturação especular do texto narrativo que Chico Buarque

promove a escritura de Leite Derramado. Não é, contudo, a relação sustentada pelo

confronto eu/mundo. Trata-se, isto sim, de um processo dialético em que tudo se articula

no silêncio solitário do ser, de cuja essência emerge a tensão Narrador/Matilde. A realidade

exterior é negada em favor da afirmação absoluta do ser, como caminho único capaz de

efetivamente permitir o re-pensar da existência. É o que nos diz José Fernandes (1983:75):

“a existência do ser do homem é um novelo, cujo fio revela os mistérios do futuro em

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direção ao passado, com um segundo de presente. Assim concebida, a existência se erige

no futuro com os pés no passado”.

Desse modo, o espelho não reflete o espaço circundante, porque neste o homem

deixou de ter o papel principal. Impõe-se-lhe como solução a vivência da solidão, na

esperança de encontrar, no ato da criação, o sentido do existir, como o fez o personagem

Eulálio de Assumpção: “Mas você perdeu lances fundamentais da minha vida. Do jeito que

anda relapsa, quando você compilar minhas memórias vai ficar tudo desalinhado, sem pé

nem cabeça” (LD:155).

O que busca o narrador é a apreensão do outro, a diferença. É com este objeto que

ele cria Matilde, uma personagem cuja tarefa consiste também em ser a detentora do ato

criativo, o que reforça a relação especular. Enfim, o processo de construção em Leite

Derramado calca-se no confronto de duas escrituras que se procuram. Consolida-se a

dialética da escritura através da qual a identidade (narrador) permitirá aflorar a diferença

(Matilde) com base única e exclusivamente na linguagem, essência do questionamento:

Aos dezesseis anos, quando deixou o colégio para casar comigo, não tinha completado o curso ginasial. Estudara piano, como todas as meninas do seu gabarito, mas tampouco brilhava nessa matéria. Ainda éramos namorados no dia em que ela sentou ao Pleyel de minha mãe, e me preparei para escutar alguma peça de Mozart, compositor que ela cantara, ou fingira cantar, na missa de sétimo dia do meu pai. Mas com mão pesada, ela tocou um batuque chamado Macumba Gegê, vá saber onde aprendeu aquilo (LD:45).

O processo de assimilação da diferença, do confronto especular que o narrador

mantém com Matilde é tão intenso que ele não se dá conta da transformação. O narrador,

erudito e racional, em oposição a Matilde, popular e sentimental, começa a adquirir novos

matizes. Inconscientemente, o narrador-personagem passa a assumir o discurso da mulher

amada. Assim sendo, dilui-se o contraste inicial entre o pensar (narrador = identidade) e o

sentir (Matilde = diferença). A escritura racional se deixa influenciar pela escritura afetiva:

Eu menino não compreendia o que se passava com meu corpo naquelas horas, eu tinha vergonha de sentir aquilo, era como se o corpo de outro menino estivesse crescendo no meu corpo. Pois agora também demorei a atinar comigo, demorei a acreditar que meu desejo pudesse se restaurar a esta altura da vida, tão forte quanto nos dias em que Matilde me olhava como se eu fosse o maior homem do mundo (LD:181).

O que a princípio se mostrava antítese caminha em direção à síntese. A possível

superioridade do criador (narrador) sobre o ser criado (Matilde) pouco a pouco se desfaz,

porque compreende o inevitável buraco negro deixado pela ausência da criatura – Matilde:

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Se não fossem meus tremores e câimbras nas mãos, eu preencheria de próprio punho, com caligrafia miúda, um caderno para cada dia vivido ao lado da minha mulher. Já depois que ela se foi, meus dias seriam de imenso papel para pouca tinta, extensos e vazios de acontecimentos (LD:185).

Andando perdido entre as coisas, seus pensamentos são circulares como se algo

emergisse:

Matilde não vinha, não vinha, aos nossos encontros furtivos. Matilde nunca faltou. E já no limite da minha esperança, eis que ela pisava a relva do jardim na ponta dos pés, e eu descia com o coração na boca para lhe abrir a porta da cozinha. E ela se encostava na parede da cozinha, a me arregalar os olhos negros, mas se calhar essa cena se passava quando ainda nem éramos casados, e não no tempo das coisas que eu vinha narrando (LD:187-188).

Essa configuração – dimensão da linguagem e da verdade – vivida pelo narrador-

protagonista se projeta na ficção: remodelando a experiência do leitor pelos únicos meios

de sua irrealidade e a história o fazendo em favor de uma reconstrução do passado sobre a

base dos rastros deixados por ele (Ricoeur apud Gagnebin, 2006:43).

Rastro e memória, tão evocados por Santo Agostinho e Aristóteles, nos remetem a

proposta do Autor em eleger como tema do seu romance, a solidão. Solidão, corporificada

em memória afetiva, que está sempre em tensão: “entre a presença e a ausência, presença

do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado

desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” (Gagnebin, 2006:44).

Ela, a memória, é o próprio questionamento das ruínas do passado e das feridas não

cicatrizadas do narrador-protagonista – posto em questão. Nesse instante, trava-se um

duelo entre o esquecer – imagem do ressentimento – e o rememorar – evocação da

imagem-marca, guardada no presente. Como podemos depreender das palavras de

Gagnebin:

(...) quando há um enclausuramento fatal no círculo vicioso da culpabilidade, da acusação a propósito do passado, não é mais possível nenhuma abertura em direção ao presente: o culpado continua preso na justificação, ou na denegação, e quer amenizar as culpas passadas; e o acusador, que sempre pode gabar-se de não ser o culpado, contenta-se em parecer honesto, já que denuncia a culpa do outro. Mas a questão candente, a única que deveria orientar o interrogatório ou a pesquisa, a saber, evitar que algo semelhante possa acontecer agora, no presente comum ao juiz e ao réu, não é nem sequer mencionada (2006:102).

Sendo assim, Matilde – imagem-marca da culpabilidade e da denegação do passado

– será o símbolo evocado para que o narrador-personagem reconstrua o seu presente com

os restos guardados do passado. Segundo, Costa Lima (2009:135):

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Ao passo que a memória é retentiva, conservando uma cena do passado, a evocação (anamnesis) supõe a busca de recuperar o que passou a partir do resto que se tenha guardado. Quanto à evocação, a presença da imaginação é ainda mais evidente, pois, para que se efetive, isto é, para que se recupere o que se esqueceu ou esteve sujeito ao esquecimento, será preciso que se estabeleça uma associação de idéias, que não se realiza sem imagens.

Para que a anamnesis atue, o narrador-protagonista parte em busca de um lugar.

Em busca de algo até então inapreensível e secreto. Uma realidade desprovida de sentido é

evocada: “Eu só queria convidá-las a dar um pulo em casa, quem sabe Matilde se animava

a deixar o quarto onde se enfurnara. Mas aí já estou trocando as bolas, Matilde não estava

mais em casa, a casa sem ela virou um desmazelo (...)” (LD:187).

É, pois, Leite Derramado a constatação da necessidade imperiosa do narrador

encontrar a origem do sopro capaz de manter-lhe acesa a chama da existência. Existência

esta que consiste em um projetar-se, que varia de acordo com o modo com que o homem se

compreende como ser-no-mundo, podendo ser: “inautêntico – onde o homem se entende a

partir do que ele não é, e autêntico – onde o homem assume seu ser e luta para impor-se tal

como é” (Beaini, 1981:85).

Sabe o autor que o sopro, não provém do espaço exterior, mas do espaço ontológico

preso à raiz da linguagem, para então poder religar-se ao mundo. Acima de tudo, este

romance é o testemunho de uma escritura que reconhece na vida o valor mais supremo.

Não se trata de afirmar a vida no que ela tenha de efêmero ou circunstancial. É a vida

assumida como fundamento possível do questionamento permanente que encontra em

Matilde, a metáfora referenciadora. Como podemos inferir do comentário de Paul Ricoeur:

“Não há metáfora no dicionário, apenas existe no discurso; neste sentido, a atribuição

metafórica revela melhor que qualquer outro emprego da linguagem o que é uma fala viva;

esta constitui por excelência uma instância de discurso” (1983:148).

Está em Matilde o poder que faz o narrador renascer das próprias cinzas. Ambos

unidos pela solidão: “Mas acho difícil, ela já não respondia quando eu batia à sua porta.

Era capaz até de ter destratado a mulher do médico, que nunca mais apareceu para um

banho de mar. Matilde vivia sempre mais reclusa naquele quarto lateral de chalé (...)” (LD:

133).

É a linguagem a fertilizar a língua que, por sua vez, germina o discurso. Reside em

Matilde a face da diferença que se oculta na identidade do narrador. Uma vez desvelada,

torna-se a velar, pois este é o jogo que sustenta a busca da verdade. Este é o fundamento

ontológico da errância:

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A própria fisionomia de Matilde, um dia percebi que eu começava a esquecê-la, e era como se ela me largasse novamente. Era uma agonia, mais eu a puxava pela memória, mais sua imagem se desfiava. Restavam dela umas cores, um ou outro lampejo, uma lembrança fluida, meu pensamento em Matilde tinha formas vagas, era pensar num país e não numa cidade (LD:136).

Nada resta ao narrador senão recomeçar, na solidão absoluta, a viagem em direção

à realidade exterior, razão por que se manifesta esta, em natureza dubitativa. Não há

experiência ou conhecimento que não se origine da dúvida:

Num impulso tomei meu carro e subi a serra, bati à porta de inúmeros sanatórios, asilos, colônias agrícolas, até num hospício fui parar. Mas ainda que investigasse todos os hospitais do interior do estado, seria impossível localizar uma paciente incógnita, de quem eu nem sequer tinha uma fotografia (LD:185-186).

A mensagem do autor é clarificada, no sentido da obrigatoriedade de se resgatar o

significado da vida. É a afirmação inconteste de que não há possibilidade de se preservar a

consciência crítica além de uma prática permanente do questionamento.

Importante frisar que, Chico Buarque transmite tais conceitos sem, em momento

algum, enveredar por um discurso ideológico. Trata-se, a despeito da solidão e da própria

morte, responder a tudo com o poder da criação, com a investigação dialética, a fim de

permanecemos todos de pé, em posição de resistência ou de re(x)istir. É, em ultima análise,

um convite ao leitor, no sentido de superarmos toda a inautenticidade com que nos

defrontamos ao longo da nossa trajetória errante. É nesta simultaneidade do desvelamento

e da dissimulação que se afirma a errância. A dissimulação e a errância, portanto,

pertencem à essência originária da verdade.

Não serão autênticas as transformações profundas na realidade exterior, sem antes

se processarem no ser do homem. Só há autenticidade no agir, quando resultante do

encontro do pensar com o sentir. É nesta perspectiva que lemos a escritura de Chico

Buarque.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

MODULAÇÃO EM TRECHOS DE BUARQUE

As reflexões em torno das obras verbo-musicais buarqueanas, que, ao longo da

dissertação, se constituíram no alvo de nossas atenções, conduzem-nos à possibilidade da

formulação das seguintes inferências:

1ª) A trajetória histórico-social da Música Popular Brasileira – MPB –

configura-se, esteticamente, na produção cancional de Buarque, revelando

assim, um resgate dos diversos momentos musicais e do que esses momentos

trazem de brasilidade. O acervo musical de Chico Buarque é redimensionado a

composições melódicas sofisticadas que são marcadas ora por recursos

estéticos de base erudita – voltados para uma leitura verticalizada de sua obra

no que tange à sua disposição poética e ao seu desenho melódico, ora os de

base popular – voltados para um diálogo com o povo, trazendo à tona uma

polifonia rítmica.

2ª) Encontramos nas músicas buarqueanas fórmulas rítmico-melódicas que não

apelam mais para uma memória entoativa, baseada no pulso dançante, mas para

uma memória da escrita, uma interlinguagem. Suas obras são elaboradas na

aderência entre melodia e letra, conjuntamente, promovendo um diálogo

permanente de som e sentido, onde os acordes africanos são contidos para dar

vazão às melodias, estruturadas em seu projeto de criação mítico-narrativa.

3ª) A hibridização dos recursos estéticos buarqueanos configuram uma leitura

singular por exigir do leitor uma sensibilidade musical – plano de expressão da

melodia – e uma compreensão do texto verbal – plano de conteúdo da letra –

que integram ambos a relação criativa da composição cancional. E por

integrarem, reciprocamente, o ato de criação, impedem a interpretação

discursiva das duas linguagens, isoladamente, em seus respectivos campos, o

musical e o verbal, considerando que a construção do significante buarqueano é

integrada a uma teia semiótica global e não-global, infragmentável em seu

conjunto literomusical.

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4ª) As construções verbo-musicais de Chico nos convidam a tomar parte no

trabalho musical. Esse trabalho, de uma parte é o pensamento; de outra parte, é

a força do material que o encerra. A música é vista, então, como possuidora de

ideologias, como um universo constituído por nós e pela arte. É no seio dessa

imagem de mundo – realidade objetiva –, que Chico Buarque realiza a instância

linguística de enunciação, acessando o inventário mítico-cultural da experiência

humana e o fluxo musical privilegiado de suas recordações.

5ª) Chico Buarque problematiza a condição humana, no que ela tem de mais

inquietante: o ser humano à procura da verdade. Tentando redimensionar sua

presença enquanto Ser pensante e, assim, escapar da experiência nadificadora

de Ser pensado, confere a seu texto significado atemporal e, em sentido estrito,

profunda comunhão com a angústia emergente da contemporaneidade.

Acreditamos ser pertinente destinar as obras Estorvo e Leite Derramado à

classificação de ficção da errância.

6ª) Os projetos, Estorvo e Leite Derramado, destinam-se ao momento de

realização de uma escritura, em ebulição, capaz de reconduzir o homem à

compreensão de si mesmo e do mundo em que se vê inserido. Desse modo, o

universo ficcional se torna, por excelência, o espaço em que se opera, pelo ato

criador, a leitura crítica desse mundo, sempre sustentada pelo vigor da

linguagem.

7ª) O processo de construção da narrativa buarqueana se articula em base na

relação especular. O mundo é apreendido a partir do que o espelho é capaz de

revelar. Uma apreensão da realidade vivencial cujo cerne de observação recai

sobre a existência inautêntica do Homem que, em razão das contingências pós-

modernas, tem, por conseguinte, cada vez mais reduzido suas escolhas,

impedindo-o de se aproximar de si mesmo. È, portanto, o flagrante do homem

em estado de incompletude e fragilidade que o projeto do escritor em estudo

registra.

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8ª) Chico nos mostra que rememorar o tempo passado e os lugares sentenciados

– de páginas encardidas da nossa História – caracteriza esse gosto inefável por

um tempo sempre e de novo presente, por ser um ontem que se desdobrou no

hoje, em diminuto pedaço de espaço. Espaço que se projeta nas páginas dos

romances de Chico Buarque, a retratar uma poética ficcional da banalidade, que

se instaura, no mundo contemporâneo. Personagens que são aventureiros do

cotidiano, que já não refletem suas esperanças em hipotéticos ideais remotos,

mas se aprazem a viver – na melhor das oportunidades – a vida em sua

imediatez. Apenas o presente e a aceitação do seu destino.

9ª) O projeto ficcional, Leite Derramado, fundamenta sua escritura na

rememoração da experiência vivida. Eulálio d’Assunpção é o narrador

identificado pelo seu objetivo: a busca da verdade. Todavia, esta não deve

emergir, exclusivamente, do momento da criação, mas do confronto discursivo-

situação. O narrador, um ser aprisionado a um passado marcado por signos

conflituosos, tenta recriar na produção de sua escritura laços afetivos a fim de

se manter enraizado à sua história. A palavra busca ultrapassar os limites

impostos por uma realidade cujo absurdo é seu único significado.

10ª) A denúncia de uma sociedade incapaz de dignificar a existência do

indivíduo constitui-se em outro ponto de fluência no projeto ficcional. O

indivíduo é um ser à margem de um processo social alienante, quadro

responsável pela incomunicabilidade. Reconhecendo a impossibilidade de

identificação com espaço social, o narrador de Estorvo se volta para seu próprio

interior, único reduto capaz de solucionar os seu problemas, num universo onde

real e virtual unem-se formando um amálgama indissolúvel, no qual as

respostas turvam-se diante de olhos submersos na multidão. O espaço social

não é mais palco da epifania. Assim sendo, o herói pós-moderno se consagra

pela beleza da ambivalência. O elemento contraditório que não poderemos

jamais superar dialeticamente. A besta reside no ser e sua alteridade absoluta

está no cerne do próprio fundamento da humanidade – mundos subterrâneos e

monstruosos convivem, mais além, nos transmundos, em outras faces do

mesmo homem.

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11ª) Julgando o fazer-literário como processo sustentado pela dialética

escritura-estória, percebemos, nos dois projetos – Estorvo e Leite Derramado –

que o discurso ensimesmado seja também consequência de uma situação

política por que passou o escritor; resquícios de uma trajetória vivida sob o

regime autoritário, o que nos possibilita ler estas produções como estratégia

discursivo-literária. Desse modo, o silêncio e a solidão, por um lado,

questionam a condição humana numa dimensão atemporal, por outro, revelam

certo período histórico, em que ao indivíduo estava vetada qualquer forma de

participação autêntica. O espaço do proibido, ocupado pelas relações de poder,

excluíam a manifestação individual, restando a este, o reduto de uma

consciência fechada, que se operava nas frestas da clandestinidade.

12ª) É importante descobrir o ritmo de uma determinada época. Podemos

caracterizá-lo segundo as especificidades presentes nas obras artísticas.

Trazendo ao nosso propósito esta questão, podemos dizer que a produção

artística buarqueana – em especial, Estorvo – pressupõe um ritmo narrativo que

envolve uma fusão de contrários entre a estabilidade e o movimento, como a

nos dizer que a sociedade atual vive seu momento trágico. Reconhecendo a

brevidade da vida, o personagem assim como o homem, parte para gozá-la ao

máximo. O crescimento e a decadência de cada ser humano e de cada coisa,

social, política, ficcional ou natural, inscrevem-se no ritmo da natureza

universal. É essa narrativa de temporalidade descontínua que encontramos em

nossos dias.

13ª) A relação hermenêutica – existente na memória musical e literária

buarqueana – é circular e se efetua tanto no des-velamento da grafia de sua

escrita – canções e/ou romances – quanto no des-velamento do leitor à sua

própria autobiografia. Esse diálogo intratextual dá-se por uma afirmação ôntica

– identidade do homem consigo mesmo – uma vez que toda linguagem

transcende a essência do texto e percorre a circunscrição do outro. O que se

torna desvelado pela compreensão do leitor ao penetrar no ser que habita esta

obra literomusical, são as manifestações de vestígios do passado em

desdobramento com as moradas do presente que se entrecruzam na grafia do

tempo mnemônico de um eu, presente em cada história.

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14ª) Sendo o lirismo um só e inesgotável em suas manifestações, as atitudes

enunciativas só se distinguem em função da imagem do mundo, em constante

transformação. Os aspectos enunciativos pretendem significar o Homem na

relação existencial com o mundo, reivindicando para a arte o importante papel

de fonte produtora de signos. Desse modo, as manifestações artísticas

buarqueanas servem de arcabouço, estrutura permanente, para resgate do

tempo-espaço histórico e mítico do projeto lírico.

15ª) Pautando-nos no pressuposto que a literatura nacional, enquanto espaço

sígnico de permanência da relação existencial do homem com o mundo, não é

uma produção desconexa, que depende da individualidade de seus vários

autores e oscila ao acaso da inventividade de seus protagonistas, que

concluímos: toda literatura buarqueana implica a realização de um projeto

poético, no qual há uma lógica semiótica que estrutura sua manifestação

estética e ideológica.

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