luciana falcão lessa ufba/ceao salvador dezembro/2015 · irmandade da boa morte da barroquinha...
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V SEMINÁRIO DA PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
UFRB
GT 05: Gênero, Raça e Subalternidade
O IMPACTO DA ESCRAVIDÃO E DO RACISMO NA SUBJETIVIDADE DOS
AFRODESCENDENTES
Luciana Falcão Lessa
UFBA/CEAO
SALVADOR
DEZEMBRO/2015
O IMPACTO DA ESCRAVIDÃO E DO RACISMO NA SUBJETIVIDADE
DOS AFRODESCENDENTES1
LUCIANA FALCÃO LESSA2
A verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada de consciência
das realidades econômicas e sócias. Só há complexo de inferioridade após um duplo
processo: inicialmente econômico, em seguida pela interiorização, ou melhor, pela
epidermização dessa inferioridade.
Franz Fanon
O objetivo deste ensaio é refletir sobre o impacto da colonização, da escravidão
e do racismo na subjetividade dos afrodescendentes a partir das experiências cotidianas,
familiares e afetivas das mulheres integrantes da Irmandade da Boa Morte de São
Gonçalo dos Campos. Ou seja, discutir como experiências de dominação,
subalternização e escravização constroem subjetividades, modelam corpos e
comportamentos e induzem, também, à construção de estratégias de resistência e de
sobrevivência. Isto, tendo como sujeitos mulheres negras de São Gonçalo dos Campos.
Durante pesquisa desenvolvida no curso de mestrado sobre a Irmandade da Boa
Morte de São Gonçalo dos Campos, enquanto um espaço de ressignificação de práticas
culturais de origem afro e do catolicismo barroco, onde havia a mistura do sagrado com
o profano, o estudo da Irmandade foi utilizado como um meio para vislumbrar a
formação cultural e histórica deste município. Nessa perspectiva ao acompanhar o
1 Trabalho apresentado no V Seminário da Pós Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e
Desenvolvimento - realizado entre os dias 02, 03 e 04 de dezembro de 2015, em Cachoeira, BA, Brasil 2 Luciana Falcão Lessa é mestre em História Social e doutoranda em Estudos Étnicos e Africanos
cotidiano dessas irmãs, os valores concebidos, suas experiências e visões de mundo, e
registrar as experiências de vida, as práticas e representações de um grupo de mulheres
negras e solteiras, que trabalhavam por conta própria, seus conflitos sociais e com a
sociedade como um todo, outras inquietações foram surgindo, principalmente a partir de
como essas mulheres se viam e eram vistas. Ou seja, o estudo da Irmandade colocou um
problema bem mais complexo, a internalização das diferenças, da subalternização e da
inferiorização, pelas mulheres negras.
O município de São Gonçalo dos Campos3 está localizado na microrregião do
Recôncavo baiano, abrangendo uma área territorial de 288 km², com limites que se
distribuem com os municípios de Feira de Santana, Santo Amaro, Conceição da Feira e
Antônio Cardoso, distante a 109 km da capital do estado pela BR 324. A principal
atividade econômica do município, desde a colonização até os dias atuais é a cultura,
beneficiamento e comercialização do fumo. Em segundo plano estão os gêneros de
subsistência para o consumo local, como o feijão, o milho e a criação de gado. Antonil
comentou a predominância da cultura fumageira4 nos Campos da Cachoeira,
denominação de São Gonçalo dos Campos quando pertencente à Cachoeira:
Há pouco mais de cem anos que esta folha se começou a plantar e
beneficiar na Bahia e vendo o primeiro que a plantou o lucro e boa
aceitação em Lisboa animou-se a plantar mais. Até que, imitado por
vizinhos, que a plantaram e enviaram em maior quantidade, e depois de
grande parte dos moradores dos Campos que chamam de Cachoeira, e
de outros do sertão da Bahia, passou pouco a pouco a ser um dos
gêneros de maior estimação que hoje saem desta América meridional
para o reino de Portugal e para os outros reinos e repúblicas de nação
estranha (ANTONIL, 1963, p.59).
A História de São Gonçalo dos Campos deve ser inserida no projeto colonizador,
pois permaneceu atrelada ao município de Cachoeira durante o período colonial até
1884, data de sua emancipação política, importante núcleo de povoamento e de
produção econômica, não só pela produção de açúcar, mas, também, do fumo. Os
currais de gado por seu turno não se aclimatando à região foram gradualmente
deslocados para os campos mais altos, os Campos da Cachoeira. Para Andrade (1984,
3 Ver: Marli Geralda e Maria José de Souza Andrade: nessa obra as autoras descrevem a história
econômica e política do município, utilizando como eixo central a cultura fumageira, relatada desde o
período colonial até 1984, data do centenário da emancipação política do município. 4 Sobre a cultura fumageira no Recôncavo ver: Costa Pinto, 1998; Elizabete Rodrigues da Silva: Fazer
charutos uma atividade feminina. Salvador, 2001; Valdomiro Lopes dos Santos. A Pecuarização do
Recôncavo Fumageiro. Bahia, 1990; Silza Fraga Costa Borba. Industrialização e Exportação de Fumo na
Bahia. Salvador, 1975.
p.26) é “improvável que a criação de gado bovino tivesse contribuído para o
povoamento, dada às características de extrema mobilidade dos rebanhos”, entretanto,
os sertões foram sendo ocupados e constituindo uma cultura própria.
Conhecido internacionalmente, o fumo era mercadoria frequente no comércio
atlântico e, no final do século XIX, a Bahia alcançou o primeiro lugar no volume das
exportações do fumo. A partir da segunda metade do século XIX as exportações desse
produto foram sempre crescentes, chegando ao fim do século a alcançar o primeiro
lugar no volume das exportações baianas. A lavoura fumageira, com sua mão-de-obra
predominantemente escrava, marcou definitivamente a história econômica e social de
São Gonçalo dos Campos.
Era neste espaço que se moviam as mulheres pertencentes à Irmandade da Boa
Morte de São Gonçalo dos Campos, uma irmandade que não possui estatuto ou termo
de compromisso e é bem provável que fosse uma irmandade de devoção, apenas com o
objetivo de realizar a festa da santa, pois não são conhecidos, nem foram lembrados
pelos testemunhos orais, casos de ajuda mútua, como a realização de funerais para irmãs
carentes, visita e assistência a doentes, práticas comuns das irmandades que possuíam
estatuto.
De acordo com Silveira (2004, p.18), a origem da Irmandade da Boa Morte é
controversa e sua história é conhecida através da tradição oral, pois um incêndio
destruiu os arquivos existentes na sede da Barroquinha, para onde foi transferida a
Irmandade dos Martírios que, inicialmente, também integrava a devoção à Boa Morte.
Silveira (2004, p.22) supõe que a Irmandade dos Martírios, na sua origem, tenha sido
uma irmandade de crioulos descendentes da Costa da Mina, entre os quais os jejes e os
nagôs, que, com o tempo, passou a ser integrada também por africanos de outras
regiões. Segundo Luís Nicolau Parés (2005, p.89-90), as primeiras notícias da
Irmandade da Boa Morte da Barroquinha datam de 1851 e, no livro das resoluções da
Irmandade dos Martírios, datado de 1865, constam reclamações contra os excessos a
que se entregam as mulheres dessa devoção na vigília da sua festa.
Campos (2001) teve acesso ao arquivo e foi quem afirmou que a Irmandade do
Senhor Bom Jesus dos Martírios, dos crioulos naturais da cidade da Bahia, era integrada
por africanas e a Boa Morte era apenas uma devoção dos irmãos e irmãs dessa
irmandade. Provavelmente, na segunda metade do século XIX, aquela irmandade, com
suas práticas religiosas africanas, se expandiu para o Recôncavo baiano. Por volta de
1870 era uma associação expressiva na sociedade e no comércio cachoeiranos, pois o
jornal “A Formiga”, de 15 de agosto de 1871, anunciava “para as irmãs da Boa Morte
sapatinhas ricamente enfeitadas a $4000 o par, vende o Nolasco à Rua de Baixo”.
Todavia, os seus membros eram moradores de várias cidades do Recôncavo - Muritiba,
Cruz das Almas, São Gonçalo dos Campos - e sertões como Feira de Santana. João da
Silva Campos (2001, p. 359) fez referência a essa associação utilizando o termo
“irmandade” para designar uma devoção dos “[...] irmãos e irmãs do Senhor dos
Martírios, sodalício a quem pertence o templo”. Isto provavelmente quer dizer que a
Boa Morte era originalmente uma devoção da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos
Martírios dos crioulos naturais da cidade da Bahia.
Segundo as fontes orais a Irmandade da Boa Morte foi organizada em São
Gonçalo dos Campos tendo em vista o que já acontecia em Cachoeira e atribuíram a
organização dessa confraria a Felismina Araújo e Cecília Araújo, respectivamente mãe e
filha, ambas negociantes, que já participavam da irmandade em Cachoeira e eram as
únicas que usavam beca (traje característico da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira)
e eram moradoras, anteriormente, daquela cidade. De fato, Felismina aparece no
primeiro caderno da Irmandade, datado de 1900 e é comumente descrita como africana
legítima. Já o nome de Cecília Araújo aparece pela primeira vez vinte e três anos mais
tarde, em 19235·. Foram muitas as referências a essas irmãs da Boa Morte como:
negras, mães solteiras, pequenas negociantes. Elas eram descritas como mulheres
calmas, sisudas e não gostavam de brincadeira. Provavelmente possuíam o poder de
mando e de liderança dentro da Irmandade, advindo da prerrogativa de terem-na
organizado.
A Irmandade da Boa Morte de São Gonçalo dos Campos foi organizada
independente da de Cachoeira, embora a utilizando como modelo. As relações entre essas
duas irmandades eram boas, se encontravam no período das festas, contribuíam
mutuamente com a esmola e, muitas vezes, frequentavam o mesmo Candomblé. Várias
irmãs de São Gonçalo vieram de Cachoeira, como tia Mina, dona Ermira, dona Joana –
“Nasci em Cachoeira, na Rocinha atrás do cemitério, atrás da ladeira de Manoel
Santos”.6 Havia muita semelhança entre as duas organizações no que diz respeito à
abstinência sexual, a vestir branco às sextas-feiras, à idade para ingressar na irmandade, à
posição das irmãs mais antigas, etc..
5 Caderno da Irmandade – 1900, na Igreja Católica Matriz de São Gonçalo dos Campos.
6 Entrevista de dona Joana Oliveira, 93 anos. São Gonçalo dos Campos, 2004.
As irmãs da Boa Morte em São Gonçalo dos Campos eram mulheres negras,
pertenciam aos segmentos menos favorecidos da sociedade, cerca de metade delas
trabalhavam na cultura fumageira, como lavradoras, charuteiras ou eram pequenas
negociantes, vendiam doces, bolos, cocadas, lelê, dentre outros quitutes. Algumas eram
fateiras, lavavam o fato, denominação popular das vísceras de animais abatidos (boi,
porco, carneiro), e o vendiam no mercado.
Quanto ao estado civil, as mulheres da Irmandade eram discriminadas, porque
muitas delas tiveram filhos sem serem casadas. Eram estigmatizadas com o adjetivo
pejorativo usual da época: raparigas. Algumas eram amasiadas, sendo que, em alguns
casos, com pessoas ilustres da cidade. “[...] algumas eram amancebadas. Outras, bem
casadas. Mas a maioria era rapariga, mulheres que tinham filhos, mas não eram casadas.
Por isso, a festa da irmandade era conhecida como „festa das raparigas” 7, o que ilustra
aquela realidade, reforçado na declaração de dona Martina, irmã da Boa Morte: “[...] eu
não conheci o marido dessas mulheres. Quem sabe se elas tinham marido?!” 8
Em várias passagens do romance “Teixeira Moleque”, ambientado em
Cachoeira, o autor Ruy Santos, faz referências às raparigas, como mulheres pobres, de
vida fácil: “um pau d‟ água, que vive no meio do meretrício, sustentado por pobres
raparigas” (SANTOS, 1960 p.100).
A condição de rapariga provocou um ressentimento naquelas mulheres e constituía
uma motivação para o ingresso na Irmandade, que, de certa forma, proporcionava um
espaço de sociabilidade, conforto e identidade9, que naquele ambiente se „irmanavam‟,
tornavam-se iguais; não estavam totalmente à margem da sociedade, mas bem posicionadas
numa outra agremiação, onde eram respeitadas entre si. “Trabalhei em armazém de fumo,
não tive a sorte de casar não!. Dona Felicidade tem o mesmo ressentimento: “Tive oito
filhos e seis estão vivos. Criei meus filhos sozinha. Fui doméstica e charuteira, selecionava
e separava a folha para fazer charuto. Onde eu achei casamento, minha filha?
Em uma sociedade patriarcal, em que a mulher estava submissa ao homem, que
lhe impunha as regras de comportamento e os valores e controlava a sua sexualidade,
7 Entrevista do senhor Geraldo Alves Pereira.
8 Entrevista de dona Maria Cazumbá (conhecida como dona Martina), 72 anos. São Gonçalo dos Campos,
04/12/2004. 9 Sobre identidade ver HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:
Editora da UFMG, 2013. O autor utiliza a experiência da diáspora caribenha a partir de 1948, para pensar
a identidade cultural como uma questão histórica construída na dialética com outros povos, com carga e
perda, condição necessária à sua modernidade. Nessa perspectiva, nega a noção de uma identidade fixa,
imutável e impermeável.
uma mulher negra, com filhos e solteira era um estigma, representava a inversão de
valores e o estereótipo que não deveria ser seguido “pelas moças da sociedade”.
Além de agregar pessoas que possuíam a mesma condição social e o mesmo
estado civil, a Irmandade da Boa Morte funcionava como um espaço de identidade
étnica. Paradoxalmente, os entrevistados fizeram referências a essas irmãs como sendo
mulheres de respeito, “[...] todos as chamavam de ‘tia’ e pediam a bênção”10
, e muitas
foram madrinhas de representação: “[...] nos batizados, tinham a função de carregar o
bebê nos braços, que depois de ser abençoado com água benta pelo padre, era entregue
à madrinha de direito”.11
Havia, portanto, um preconceito racial velado, que pode ser
constatado no seguinte episódio, narrado pelo senhor Geraldo:
Na década de 30, em uma das festas de São Gonçalo, Juca Pedreira [jornalista],
dono de „A Verdade‟, foi acionado para fazer a programação da festa e
escreveu: „o bloco das raparigas vinha com seu pano d‟Costa, batas, sandálias
enfeitadas, saias engomadas‟.12
Como resposta doutor Oscar Lacerda, seu antagonista político (filho de dona
Eusébia Lacerda, irmã da Boa Morte), escreveu no jornal A Razão que era “pano de
costa de colocar nas costas”. Juca Pedreira (jornalista de A Verdade), por sua vez, para
informar, escreveu que “o pano vinha da Costa da África, e que as parentes dele [de
doutor Oscar] trouxeram para cá”. (Entrevista com Sr. Geraldo).
As notícias dos jornais da época sobre as Irmãs da Boa Morte fizeram referência
à sua condição de raparigas o que as desqualificavam socialmente. Em outra matéria,
mais extensa, do jornal A Razão, de 27, de agosto de 1948, cujo título é Bôa Morte:
No dia 15 do findando realizou-se aqui a tradicional festa de Nossa
Senhora das Angústias, comumente chamada de „Bôa Morte‟.
Patrocinada sempre pelas raparigas da cidade, essa festa tem entre nós o
cunho das grandes solenidades e a ela se associam todas as classes sociais
n‟uma eloqüente prova de que na religião católica romana tudo é
entendimento e a mesma fé nivela todos n‟um mesmo plano de crença e
igualdade.
Às 10 horas d‟aquele dia tem lugar a missa solene celebrada pelo
Cônego Bráulio Seixas que ao evangelho produziu bela oração sobre o
dia. [...] À tarde, como de costume, concorrida procissão percorreu as
ruas da cidade acompanhada pela Lyra Sangonçalense [...]. Foi juíza da
festa deste ano a rapariga Antônia Cazumbá. Em 1949 as festividades
estarão a cargo de Cecília Araújo, que certamente se esforçará para que
10
Entrevista do senhor Antônio Borges Falcão, 70 anos. São Gonçalo dos Campos, 02/09/2005. 11
Entrevista do senhor Geraldo Alves Pereira. São Gonçalo dos Campos, 03/12/2004. 12
Entrevista do senhor Geraldo Alves Pereira. São Gonçalo dos Campos, 03/12/2004.
a festa da „Bôa Morte‟ continue com o brilho e a pompa de todos os
anos (A RAZÃO, 1948b).
A predominância da população negra na Irmandade, não era uma exigência ou
critério, se deve ao fato da mesma ter sido, inicialmente, uma associação de africanas,
atraindo mulheres tanto pela descendência quanto pelas práticas culturais e condição
civil, pois naquele espaço eram livres e iguais.13
Assim, a inserção e participação
estavam diretamente vinculadas à questão de identidade, onde se percebe a existência de
laços de amizade, cumplicidade, parentesco e, principalmente, hereditariedade, com a
presença de mães, filhas e netas.
Eram mulheres que andavam na rua, brigavam, falavam alto, dividiam o espaço
de trabalho (a rua) com homens e, na prática, assumiam os papéis sociais, pois
precisavam sustentar a casa, criar os filhos, impondo as suas próprias regras.
Durante a pesquisa realizada sobre as irmãs da Boa Morte de São Gonçalo dos
Campos, evidenciaram-se as características de mulheres mães solteiras, ressentidas pelo
fato de não terem casado. Estas informações remetem a duas discussões, uma sobre o
processo de organização familiar das mulheres afrodescendentes; e outra, sobre a
questão da afetividade, a internalização de estereótipos construídos pelo grupo social
hegemônico e reproduzidos por todos. Para essa análise faz-se necessário localizar as
trajetórias dessas mulheres no contexto da colonização, escravidão e racismo que
afetaram as paixões, as relações e o comportamento dos afrodescendentes. Isto porque,
o processo de colonização parte da concepção de inferioridade do colonizado e da
superioridade dos modelos dos colonizadores, que transplantados para colônia tornam-
se modelos ideais, pois não condizem com as experiências, contribuindo para um
complexo processo de negação e exclusão das práticas dos povos colonizados.
Na perspectiva de corroborar nessa discussão Raquel Soihet (1997, p.
367) afirma,
“as mulheres sentiam-se inferiorizadas quando não casavam, e
internalizavam os rótulos impostos pela sociedade”, em São Gonçalo eram chamadas de
raparigas e estavam à margem da sociedade sangonçalense.
Joel Nolasco14
ao estudar as representações das camadas abastadas da população
sobre casamento, honra e padrões ideais de gênero, faz uma discussão sobre a passagem
do casamento religioso para o civil no século XIX, como parte dos acontecimentos que
13
Nos registros não consta a presença de mulheres brancas entre elas. 14
Nolasco, Joel. Casamento, Cabaço e Cabeceira: Os Imaginários de Gênero e da Honra na Bahia dos
Oitocentos. Salvador: UFBA, 2010. (Dissertação de Mestrado).
vieram a reboque da transição entre as formas de organização da ordem
patriarcal/paternalista/religiosa e a burguesa/republicana. Ao analisar os discursos das
camadas abastadas da sociedade sobre casamento e honra, retrata o perfil ideal da
mulher: as vestes, a educação, a leveza, a pele branca, os movimentos delicados, a
sutileza, docilidade e submissão, além da administração do lar.
A mulher negra não se enquadra neste perfil, tanto por sua trajetória histórica,
quantos pelas suas características físicas, portanto “não eram dignas de casar”, restando-
lhes o concubinato. Ou seja, “... na escolha do cônjuge influía uma gama de fatores que
dependiam da posição sócio-econômica, da raça, do nível intelectual, das características
físicas e comportamentais e do grau de afetividade dos envolvidos” (Nolasco p.28).
Assim, o concubinato era uma prática comum entre os setores menos abastados da
sociedade. A falta de mulheres brancas e honradas levava ao concubinato, mas, mesmo
para essas pessoas o casamento legal era a forma almejada de convivência marital, não
querendo com isso dizer que era predominante.
A análise da história das formas de organização familiar no Brasil é crucial para
a compreensão da construção de estereótipos sobre a família dos afrodescendentes. A
literatura sobre família negra utiliza como parâmetro a família patriarcal de Gilberto
Freyre focalizando “... apenas as classes dominantes como agentes de nossa história,
expulsam do nosso horizonte de pesquisa a possibilidade de investigar formas
alternativas de organização familiar no Brasil”. (CORRÊA, 1993, p.05).
Nessa perspectiva, Florestan Fernandes (1978) descreve um contexto de
preconceito e marginalização dos homens negros após a abolição, caracteriza a família
negra como incompleta e desorganizada, onde a mulher seria a responsável pelo
sustento dos filhos e da família. Esse modelo de família é resultado do processo de
exclusão do negro, em primeiro lugar, no mercado de trabalho.
Thales de Azevedo identifica quatro tipos de família na sociedade brasileira: a
família patriarcal remanescente, a família nuclear conjugal, os amasiados e a família
parcial. Os pobres, e entre estes os negros, estariam concentrados no último tipo, que
Azevedo designa igualmente, como família matripotestal, todo poder e responsabilidade
sobre os filhos recai sobre a mãe, praticamente nenhuma responsabilidade econômica ou
moral cabe aos pais. Estes nunca viveram no lar nem tem função no mesmo, são os pais
biológicos de alguns filhos de certa mulher, mas não os chefes da casa.
Para Roger Bastide (1971) as famílias negras são matrifocais, e esta forma de
organização familiar produz consequências na própria constituição de uma psicologia
específica do homem negro. Esse autor defende ainda que a acentuada frouxidão ou
mesmo ausência dos laços conjugais tenderia a ser transmitida aos filhos, contribuindo
para perpetuar o modelo.
Nos estudos clássicos o homem é descrito como elemento acessório, secundário
e instável,
[...] é essencialmente o excluído, anômico, sempre ausente da família e
omisso no desempenho das responsabilidades masculinas/ paternas que
lhe caberiam ao núcleo familiar. Tendencialmente, como cônjuge ou
como pai, o homem negro estaria além –ou aquém- dos laços que se
tecem na rede de deveres e obrigações econômicas e morais,
constitutivas do papel de provedor e da autoridade do chefe de família.
Do seu lugar e posições marginais na família derivariam
comportamentos sexuais e reprodutivos igualmente descomprometidos-
ou mesmo irresponsáveis- frente à companheira, em primeiro lugar, e
aos filhos em decorrência (FERNANDES 1978 apud GIACOMINI,
2006, p.60)
O debate clássico em torno da família negra foi travado entre a Antropologia e
Sociologia, representadas respectivamente por Melville Herskovits (1943) e Franklin
Frazier (1973). Na verdade esse debate visa explicar o “modelo de família negra”
desenvolvido no Brasil, caracterizada por forte taxa de ilegitimidade, ausência
permanente do pai, matrifocalidade, instabilidade, promiscuidade sexual, parcial e
incompleta. É interessante notar que esse modelo em nenhum momento é questionado
por essa literatura, tornou-se um senso comum, um paradigma.
Para Frazier as práticas familiares dos negros é uma herança da desorganização
decorrente do sistema escravista: se os negros não têm família isso se deve ao trabalho
escravo e a marginalidade sofrida pelos homens negros.
Já Herskovits identifica nas famílias negras uma herança do passado africano.
Assim, seria necessário voltar-se para a África a fim de compreender os sentidos das
práticas culturais dos negros.
Enquanto Herskovits dentro de uma tradição culturalista, busca as
instituições e referências culturais que teriam sustentado a
sobrevivência de práticas africanas na América. Frazier se debruça
sobre a família negra, visando construir a história das determinações
estruturais que explicariam as razões de sua desorganização e de seu
esgotamento em relação à norma universal. O debate encontra-se,
portanto, articulado entorno da seguinte questão: deve o negro ser
pensado a partir da forma como se deu e se reproduz sua integração nas
Américas ou a partir de uma perspectiva que acentua suas origens (e
patrimônio cultural)? (GIACOMINI, 2006, p. 62).
Tanto Herskovits quanto Frazier reproduzem o modelo analítico dos estudos das
relações raciais nos Estados Unidos, ao tratamento da família negra brasileira. Enquanto
naquele país uma segregação entre brancos e negros teria conduzido às especificidades
de suas organizações familiares; no Brasil, por conta do mito da democracia racial e da
rendição da cor à classe, o que teria dificultado o desenvolvimento de estudos sobre
uma organização específica familiar dos negros. Assim, esse modelo analítico é
deslocado para o estudo das famílias pobres ou das classes trabalhadoras.
Sônia Giacomini ao estudar o clube Renascença construído na década de 1950
por um pequeno grupo composto majoritariamente por negros diplomados e bem de
vida no Rio de Janeiro, afirmava que O Renascença ostentava o fato de ser um clube
negro de famílias negras. É como se a simples presença de famílias estáveis,
estruturadas segundo o dominante modelo conjugal monogâmico, conferisse ao grupo
atributo de distinção. Essa prática revela tanto uma distinção em relação a uma maioria
de negros “pobres” e “ sexualmente desregrada” e, consequentemente, a internalização
do modelo de família imposto oficialmente, quanto desconstrói a predominância da
matrifocalidade como principal forma de organização familiar dos negros, divulgada
pelos estudos clássicos.
Ângela Figueiredo no livro “Novas Elites de Cor” (FIGUEIREDO, 2002) e
Sônia Giacomini colocam em xeque os estudos clássicos, revelando que a família,
segundo o modelo dominante, constitui a base desses grupos de negros em ascensão.
São exceções à regra? Ou representam uma entre outras formas de organização familiar
dos negros?
É importante ressaltar a importância e contribuição dos trabalhos de Marisa
Corrêa (1993), porque questiona a predominância do modelo freyriano de família
patriarcal. “A família patriarcal pode ter existido, e seu papel ter sido extremamente
importante: apenas não existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa-
grande o processo total de formação da sociedade brasileira” (CORRÊA, 1993, p.10).
Em outra passagem afirma “as uniões irregulares eram de fato a ordem dominante”
(CORRÊA, 1993, p.11)
Os estudos clássicos sobre as famílias negras no Brasil não dão conta da sua
complexidade, nem tampouco tem contribuído para um debate que transborde a
academia e discuta principalmente a correspondência entre um modelo hegemônico
imposto e as experiências cotidianas, a fim de desconstruir estereótipos e corroborar
para a descolonização da subjetividade, como define Soihet (1997, p. 370):
O descompasso entre a moralidade oficial e a realidade agia, ainda de
uma outra forma, para fazer vítimas mulheres pobres, a convicção de que
se não podiam ser santas, só lhes restava ser putas.
Qualquer estudo sobre os afrodescendentes que utilize como referência e
ponto de partida o modelo do grupo hegemônico, tanto marginaliza quanto simplifica as
práticas dos afrodescendentes não dando conta da sua pluralidade.
Por outro lado, outras questões precisam ser consideradas nestes estudos, os
antecedentes históricos africanos, o passado da escravidão e a marginalidade no pós-
abolição provocaram a emergência de uma mulher que não se enquadra no modelo
patrifocal. Este modelo implica uma mulher submissa, talvez esta seja a raiz da
estabilidade conjugal das elites e da instabilidade conjugal das mulheres pobres. Aí se
instala o conflito: vivem em sociedade patrifocal, partilham dos valores da elite, mas a
história dessas mulheres não se acomoda dentro de um modelo patrifocal. Estudar a
história familiar dessas mulheres a partir de um modelo europeu metafísico, além de
conduzir a interpretações equivocadas e limitadas contribui para sua exclusão e
marginalização.
Robert Slenes (2010) ressalta a ausência de estudos sobre a família negra, antes
e depois da abolição, principalmente, após 1850. Dentre os historiadores baianos alguns
apresentam em seus trabalhos discussões referentes à família escrava, mas não constitui
tema central, especificamente nas décadas posteriores à escravidão.
Nesta perspectiva faz-se necessário estudar a experiência familiar das mulheres
negras, as formas de expressão de sua afetividade, como emergiram da escravidão,
como construíram as suas vidas, a relação com o outro e, principalmente, avaliar as
condições históricas que concorreram para o processo de uma organização familiar
diferente do modelo oficial nas primeiras décadas após a escravidão no Recôncavo
baiano, pois isto ainda é uma lacuna na historiografia.
A segunda questão subtendida na fala das irmãs da Boa Morte é a internalização
e reprodução da subalternidade e inferioridade que repercute diretamente na afetividade:
“eu não tive a sorte de casar não. Onde eu achei casamento?”. Ou na interiorização e
reprodução dos discursos que as desqualificavam socialmente: “[...] eu não conheci
marido dessas mulheres [...] não”. Ou seja, nestes discursos a expressão dos sentimentos
era determinada pela cor, afirmação devidamente retratada na literatura, dessa forma,
partilhada por todos os grupos sociais: “A môça admirava-o não era amor nem paixão.
Prêto não tinha esse direito. Era afeição, uma afeição profunda”. Passagem do romance
“Teixeira Moleque” (SANTOS, 1960, p.97).
Discutir a afetividade e as suas formas de expressão é ainda algo inusitado
na historiografia baiana, apesar da preocupação com os modos de sentir e pensar
ocuparem a atenção dos annalistes desde os primórdios da Revista Annales, (CARDOSO,
p. 187). Para Chalhoub (1990, p.16), o historiador “através de um estudo minucioso de
decodificação e contextualização, pode chegar a descobrir a dimensão social do
pensamento, analisando diferentes vestígios e ralacionando-os entre si” e, se preciso for,
recorrer a outros métodos e disciplinas, para construir o objeto estudado, que não está
posto. Seguindo esta orientação, a análise dos trabalhos de Franz Fanon, Albert Memmi e
Stuart Hall foram indispensáveis, pois discutem a relação entre colonização, racismo e
suas influências na subjetividade dos afrodescendentes. Inclusive seus estudos são
reflexões suscitadas pelas suas experiências enquanto colonizados, na tentativa de
compreender seus lugares entre os homens.
Eu era tunisiano e, portanto, colonizado. Estava descobrindo que poucos
aspectos da minha vida e da minha personalidade não tenham sido
afetados por esse dado. Não apenas meu pensamento, minhas próprias
paixões e meu comportamento, como também o comportamento dos
outros em relação a mim (MEMMI, 2007, p.12).
Estes autores enveredam pela Psicologia a fim de compreender a
subjetividade dos colonizados. Albert Memmi no livro “O Retrato do colonizado
precedido de Retrato do colonizador” analisa os efeitos psicológicos do colonialismo
traçando o perfil tanto do colonizado quanto do colonizador, demonstrando que a
colonização fabrica colonizados assim como fabrica colonizadores, isto é, constrói-se o
perfil do colonizado em oposição ao do colonizador, inclusive para marcar a diferença
e hierarquia entre os dois tipos: o colonizador é o corajoso, aventureiro, capaz; já o
colonizado é o preguiçoso, incapaz.
Onde houve colonização houve racismo, ambas as categorias se baseiam
na hierarquia entre grupos sociais ou étnicos, O desenvolvimento técnico de determinado
grupo social autoriza-o a instalar uma dominação organizada sobre outro grupo
considerado sob essa mesma perspectiva inferior, que é subjugado militar e
economicamente, e desumanizado. O racismo forneceu a justificativa ideológica para a
colonização, que por sua vez reduziu o colonizado à subhumanidade, para justificar o
tratamento que recebia do colonizador.
A desqualificação moral, estética, geográfica ocupam um lugar
privilegiado na ideologia colonizadora, que estabelece um processo contínuo de
desumanização, para que o colonizado reconheça sua incapacidade de participar das
decisões sociais, políticas e econômicas, aceitando e internalizando a submissão, nesse
processo perde-se até mesmo a lembrança da liberdade. “Essa mutilação social e
histórica é provavelmente a mais grave e mais cheia de consequências” (MEMMI,
2007, p.138).
A colonização dá ao colonizado uma
[...] única alternativa a assimilação ou a petrificação. Como a assimilação
lhe é recusada (...) não lhe resta mais a não ser viver fora do tempo. Ao
ser rejeitado no processo de assimilação o colonizado volta para si
mesmo, uma retomada e valorização de suas práticas, aceitando o desafio
da exclusão, o colonizado aceita a si mesmo separado e diferente, mas a
sua originalidade é a que é delimitada, definida pelo colonizador
(MEMMI, 2007, p.178)
Fanon (2008, p.39) faz uma interpretação psicanalítica das anomalias
afetivas, responsáveis pela estrutura dos complexos dos negros. Entretanto, não
acreditamos que haja uma anomalia, mas uma afetividade reprimida, não espontânea, que
procura corresponder a um modelo de comportamento heteroconstruído e imposto, “o que
se espera do negro”, uma afetividade que é consequência do processo de desumanização e
coisificação de todos os colonizados. “De um homem exige-se uma conduta de homem;
de mim, uma conduta de homem negro- ou pelo menos uma conduta de preto.” (FANON
2008, p.107)
A perspectiva de Fanon (2008) corrobora na discussão ao afirmar que em “todo
povo colonizado [...] houve uma interiorização, ou melhor, epidermização da
inferioridade, e o negro, em determinados momentos, fica enclausurado no próprio
corpo”, “quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me
detestam, acrescentam que não é pela minha cor...Aqui ou ali sou prisioneiro de um
círculo infernal” (FANON, 2008 p.110).
Para Fanon (2008, p.29), “só haverá uma autêntica desalienação do negro na
medida em que as coisas, no sentido mais materialista, tenham tomado os seus devidos
lugares”. Não seria antes a liberdade da consciência? Os negros precisam se pensar e
serem pensados além das questões raciais.
Hooks (2006, p.188-198), fez uma análise do impacto da escravidão no ato de
amar, onde o “sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito
difíceis. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a
opressão e a exploração distorcem e impedem a nossa capacidade de amar.” A
sobrevivência dos escravos, portanto, estava, muitas vezes, determinada por sua
capacidade de suprimir emoções e praticar amor naquele contexto instável poderia
tornar uma pessoa vulnerável a um sofrimento insuportável.
A escravidão condicionou o negro a reprimir e conter muitos dos seus
sentimentos, “a escravidão foi muito mais que um sistema econômico; ela moldou
condutas, definiu hierarquias sociais e raciais, forjou sentimentos, valores e etiquetas de
mando e obediência (FRAGA, 2006, p.26), que se prolongou após a escravidão, é o que
João Reis chama de “sombras da escravidão” e que se entendem por fenômenos e
processos históricos que da escravidão se projetam no tempo, para além da abolição
e/ou se articulam com o fenômeno axial que é a instituição do cativeiro enquanto
existiu. Interessa, portanto, entender “a vida do liberto no pós-abolição, em particular
sua vida familiar e espiritual, sua mobilidade social e geográfica, sua pobreza ou
prosperidade, e a trajetória de seus descendentes” (REIS, 2012, p.9).
Estas são questões urgentes porque impactam na subjetividade e afetividade dos
afro-descendentes, “de repente me conscientizei da contradição da cultura colonial, de
como a gente sobrevive à experiência da dependência colonial, de classe e cor e de
como isso pode destruir você, subjetivamente” (HALL, 2013, p.457)
Notou-se que a colonização matava materialmente o colonizado. É
preciso acrescentar que ela o mata espiritualmente. A colonização
falseia as relações humanas, destrói ou esclerosa as instituições e
corrompe os homens colonizadores e colonizados. Para viver, o
colonizado precisa suprimir a colonização. Mas, para se tornar um
homem, deve suprimir o colonizado que se tornou. Se o europeu deve
aniquilar em si o colonizador, o colonizado deve superar o colonizado.
(MEMMI,2007, p. 189)
Enfim, é importante salientar que não se trata de vitimizar o negro, nem
tampouco de afirmar que são incapazes de qualquer tipo de sentimento, como Hooks
(2006) deixa transparecer nas entrelinhas, mas, entender as condições históricas para o
processo de organização familiar das mulheres negras, diferente do modelo imposto
pelo grupo social hegemônico, como emergiram da escravidão e de que forma
expressavam a sua afetividade. Urge uma pesquisa mais sistemática, na perspectiva de
contribuir para a história social do negro, para a compreensão de si mesmo e dos
processos que levaram, não no sentido linear, o desenvolvimento e proliferação de
teorias racistas que militam contra a descolonização epistemológica e subjetiva, que
primeiro nega a condição de ser humano dos afrodescendentes, para justificar a
espoliação dos seus direitos civis, de representação política e conquistas materiais.
CONSIDERAÇÕES
Articular gênero, raça, identidade e afetividade é resgatar os sujeitos, isto é, as
trajetórias dessas mulheres integrantes da Irmandade da Boa Morte de São Gonçalo dos
Campos numa perspectiva histórica, considerando o contexto político e econômico, suas
ações individuais e coletivas, suas lutas diárias para enfrentar as adversidades, não só
materiais, mas as lutas internas que travamos a cada instante contra uma discriminação
sempre presente, que ora nos aparece como um fantasma, ora como um assaltante com
arma em punho. Talvez a face mais perversa do racismo seja a opressão da nossa
subjetividade, que secundariza os nossos sentimentos, a nossa beleza, as nossas práticas
culturais, a nossa história. Esses resgates, além de dar uma dimensão histórica a esta
associação, suscitam discussões que podem influenciar uma nova forma de pensar, de
expressar sentimentos, um novo olhar, a liberdade... e uma nova postura política
Discutir o impacto da colonização e da escravidão no acesso a bens
materiais é lugar comum. Mas estudar esse impacto na subjetividade dos
afrodescendentes implica estudar estruturas internas, íntimas, psicológicas. É preciso ter
coragem para expressar o que nunca foi dito, para se desconstruir e depois renascer,
livre para usufruir de seus direitos humanos e civis.
Além e a priori de discutir e propor a descolonização material e
epistemológica é importante trazer para o centro do debate a descolonização da
subjetividade e da afetividade, historicamente reprimida, ignorada, considerada de
menor importância ou mesmo ausente, a fim de retirar do afrodescendente a condição de
ser humano e consequentemente negando a esses grupos, direitos humanos e civis.
A descolonização material e epistemológica só será possível quando os
afrodescendentes ultrapassarem, através da liberdade de consciência, a barreira
horizontal de um status quo que os reprime e os inferioriza, tornando suas práticas
culturais, suas necessidades e conquistas materiais, suas dores e sentimentos, menos
importantes do que qualquer outro grupo étnico, o que implica “um novo pensar”.
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