festa da boa morte - cadernoipac2

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    Salvador - Bahia2010

    Festa da Boa Morte

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    INSTITUTODOPATRIMNIO

    ARTSTICOE CULTURALDABAHIA

    FUNDAOPEDROCALMON

    GOVERNO DO ESTADO DA BAHIA

    Jaques Wagner

    SECRETARIA DE CULTURA

    Mrcio Meirelles

    DIRETORIA GERAL DO IPAC

    Frederico A.R.C. Mendona

    DIRETORIA GERAL DA FUNDAO PEDRO CALMON

    Ubiratan Castro de Arajo

    DIRETORIA DE PRESERVAO ARTSTICO E CULTURAL

    Paulo Canuto

    GERNCIA DE PESQUISA , LEGISLAO PATRIMONIAL E PATRIMNIO INTANGVEL

    Mateus Torres

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    SumrioFOTOGRAFIASElias Mascarenhas

    PROJETO GRFICO E EDITORAOPaulo Veiga

    PESQUISA HISTRICAMagnair Santos Barbosa

    ENTREVISTANvea Alves dos SantosMagnair Santos Barbosa

    REVISO DE TEXTOJorge Manuel da Costa MachadoAmlia Gomes de Santana

    REVISO BIBLIOGRFICAMaisa Menezes de Andrade

    IMPRESSO E ACABAMENTOGrca QualiCopy (Salvador/Bahia)

    B135 Bahia. Governo do Estado. Secretaria de Cultura. IPAC.Festa da Boa Morte. / IPAC. Salvador : Fundao

    Pedro Calmon; IPAC, 2010.122 p. : il. (Cadernos do IPAC, 2)

    ISBN: 978-85-61458-30-0

    1.Festa da Boa Morte 2.Bahia Festa Popular. 3.IrmandadeNossa Senhora da Boa Morte 4.Cachoeira - Bahia Histria.I.Ttulo. II.Srie.

    CDD 394.265 981 42

    9. METODOLOGIA

    Ednalva Queiroz

    13. CACHOEIRA: PONTO DE CONFLUNCIA DO RECNCAVO BAIANO

    Magnair Santos Barbosa

    ENTRE O AIY E O ORUM

    25. IRMANDADE DE NOSSA SENHORA DA BOA MORTE:

    Magnair Santos Barbosa

    53. ORGANIZAO HIERRQUICA E RELAO DE PODER

    Mateus Torres Barbosa

    67. ABIYAMO OBIRIN DI OKU: ME. MULHER. MORTE

    Raul Lody

    75. DEPOIMENTOS DAS IRMS

    109. PARECER TCNICO REGISTRO DO BEM CULTURAL DE NATUREZA IMATERIAL:

    A FESTA DA BOA MORTE EM CACHOEIRA

    Notas de Contedo: Acompanha 01 DVD

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    * Historiadora.

    Metodologia* Ednalva Queiroz

    Este estudo sobre a Festa da Boa Morte, manifestao caracterstica da re-ligiosidade popular que acontece todos os anos na cidade de Cachoeira,Recncavo Baiano, foi norteado pela premissa de que o bem cultural, como

    todo signo, tem um imprescindvel suporte fsico dimenso material que o

    suporte de comunicao; uma estrutura simblica que lhe d sentido e que se

    estabelece na prtica dos sujeitos capazes de atuar segundo certos cdigos; que

    o bem de natureza imaterial ou intangvel se caracteriza, segundo a Constituio

    Brasileira, como uma referncia identidade, ao, memria dos diferentes

    grupos formadores da sociedade.

    A partir da solicitao feita ao Instituto do Patrimnio Artstico e Cultural da

    Bahia IPAC, em 2009 pela Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, ini-

    ciou-se o processo de Registro da Festa da Boa Morte como Patrimnio Cultural

    da Bahia, com base no parecer favorvel emitido pela Gerncia de Pesquisa,

    Legislao Patrimonial e Patrimnio Intangvel - GEPEL, tendo em vista a sin-

    gularidade dessa manifestao cultural e sua representatividade para a formao

    da identidade baiana.

    O plano de trabalho elaborado por uma equipe interdisciplinar privilegia o m-

    todo de pesquisa qualitativa, considerando a existncia de um vnculo indis-

    socivel entre o mundo objetivo e a subjetividade do indivduo que no pode

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    ser traduzido em nmeros. Caracteriza-se pela utilizao de um conjunto de

    diferentes tcnicas que permitem a interpretao dos fenmenos, a atribuio

    de signicados e possibilitam descrever e decodicar os componentes que do

    sentido ao objeto estudado, facilitando o emprego de uma lgica emprica e a

    denio e dimensionamento do campo de trabalho com o objetivo de evidenciar

    os elementos simblicos ritos, adornos, vesturios, msicas, danas, expresses

    que o conguram.

    Para denio e dimensionamento do campo de trabalho, considerou-se impor-

    tante contextualizar o objeto em sua dinmica histrico-social, denindo a rede

    de relaes que foram estabelecidas pela interao dos diversos agentes dentro,

    sobre e em torno do objeto estudado.

    Considerando a historicidade inerente ao objeto de estudo, a pesquisa documen-

    tal e os relatos se constituram elementos fundamentais para a anlise. Neste

    caso, considera-se que a linguagem utilizada foi um elemento importante para a

    construo de um saber repleto de abordagens que se relacionam entre a histria,

    a tradio e prticas culturais.

    O processo de pesquisa compreendeu as seguintes fases:

    Pesquisa documental no acervo da Irmandade, Arquivo Pblico Municipal,

    Arquivo da Cria Metropolitana;

    Pesquisa iconogrca no acervo da Irmandade, Fundao Pierre Verger e

    jornais;

    Levantamento bibliogrco referente ao tema;

    Entrevistas com as irms, estudiosos e autoridades leigas e religiosas ligadas

    Irmandade e Festa;

    Acompanhamento da preparao e dos rituais da Festa da Boa Morte;

    Registro de histrias de vida e observao participante;

    Registro videogrco e fotogrco dos rituais e etapas da Festa.

    A documentao iconogrca foi constituda, por 50 horas de lmagem, com

    produo de um documentrio de 26 minutos e inmeras fotograas captadas

    durante a festa em agosto de 2009.

    Foram realizadas entrevistas com as irms, historiadores e estudiosos, autori-

    dades religiosas e outras pessoas ligadas direta ou indiretamente Irmandade e

    Festa da Boa Morte. Resultaram das entrevistas gravao de udio com 20 horas

    e captao de imagens que compuseram o documentrio que ilustra este estudo.

    Para elaborao deste dossi o pesquisador valeu-se de todo um referencial

    histrico, simblico, e documental, alm da interlocuo dos sujeitos envolvi-

    dos, detalhando ambientes e fatos, para obteno de dados que justiquem a

    importncia do registro e salvaguarda da Festa da Boa Morte como Patrimnio

    Imaterial da Bahia.

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    Cachoeira: Ponto deConfuncia do Recncavo Baiano

    * Magnair Santos Barbosa

    Situado na Baa de Todos os Santos, s margens do rio Paraguau, na partecncava, recuada e entrecortada por rios, chamada de Recncavo, o Mu-nicpio de Cachoeira, outrora Freguesia Nossa Senhora do Rosrio (1674) e, pos-

    teriormente, Vila de Nossa Senhora do Rosrio do Porto da Cachoeira do Para-

    guau (1698), foi colonizado pelas famlias portuguesas Dias Adorno e Rodrigues

    Martins. Foi a segunda Vila a ser instalada no Recncavo, em 29/01/1698, por

    Carta Rgia de 27/12/1693, sendo elevada Cidade atravs da Resoluo Pro-

    vincial de n 44 de 13/03/1837. 1

    O Recncavo est localizado num ponto estratgico da Bahia, logo, sua dinmica

    deve ser compreendida a partir de um prisma que comunga das suas dimen-

    ses: siogrca, histrica, social, poltica e econmica. O que L. A. Costa Pinto

    chamou de o anteatro 2 para a sua sionomia morfolgica, pode-se usar

    por emprstimo para aludir a um espao scioeconmico e cultural. O Recn-

    cavo da Bahia serviu de ncleo regional, tendo papel importante no projeto de

    colonizao do Brasil. O desenvolvimento urbano dessa regio e o perl social

    dos seus habitantes esteve alicerado na base econmica instalada acuareira,

    fumageira, subsistncia, dividida por sub-regies, conforme os diversos tipos de

    solos e topograas:

    * Historiadora.

    1 IBGE. Enciclopdia dos Municpios Brasileiros. Rio de Janeiro, 1958, vol. XXI.2 COSTA PINTO, L. A. Recncavo: Laboratrio de uma experincia humana. Rio de Janeiro, 1958.

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    1 - Zona da pesca e do saveiro, situada na orla martima;

    2 - Zona do acar, localizada nas terras do massap;

    3 Zona do fumo, mais recuada do litoral;

    4 Zona da agricultura de subsistncia [...] espalhada por todo o Reccavo;

    5 Zona do petrleo [...] na orla martima, nas ilhas;

    6 Zona urbana de Salvador [...]. 3

    O Recncavo apresenta um quadro multifacetado de tipos humanos, de pers

    sociais e culturais, de sujeitos e cenrios, considerando uma rea territorial de

    aproximadamente 6.5000 km2. No entanto, pode-se destacar algumas variveis

    que foram marcantes para conferir regio uma identicao territorial para

    alm das suas dimenses geolgicas e geogrcas.

    A lgica da colonizao e ocupao do territrio baiano esteve ligada a uma

    trilogia dominante: terra-homem-tcnica. O equivalente a latifndio-escravo-en-

    genho, entretanto, esta estrutura no exclua outras formas de atividades produ-

    tivas convivendo com a grande lavoura. A produo estava necessariamente

    voltada para a exportao, j que o objetivo do colonizador desde a sua chegada

    nas terras braslicas, era extrair tudo o que a terra lhe oferecia e no precisamente

    habitar, no sentido de xar-se no territr io. O lema era: habitar para conquistar, ga-

    rantir a posse da terra e explorar o que convinha ao Imprio Lusitano. Por isso,

    desde o sculo XVI, Portugal distribuiu sesmarias aos homens bons, dona-

    trios, dando-lhes o direito de usufruto sobre a terra, mas garantindo os lucros,

    deixando-os sob controle da Metrpole.

    A monocultura aucareira encontrou solo frtil na regio de massap da Ba-

    hia. Nesses terrenos foram instalados engenhos administrados por senhores que

    se intitulavam representantes do poder central na Colnia. E de fato o eram.

    Realizavam negociaes na capital onde, por ventura, mantinham residncia e

    ocupavam instituies civis e religiosas. Multiplicaram-se engenhos, tal por ser

    a produo de acar a atividade econmica que garantia o interesse portugus

    nas terras do Brasil. Alm do engenho, coexistiam a casa grande e senzala, um

    ncleo patriarcal onde famlia e trabalho se mesclavam, formando o trao estru-

    tural da vida cotidiana nos primeiros anos de colnia. O porto de Cachoeira era

    fundamental para escoar a larga produo aucareira, envi-la ao porto da Capi-

    tal, o mais movimentado do Atlntico Sul no sculo XVIII, onde se localizavam

    as casas de exportao e, por conseguinte, onde eram realizadas as transaes

    comerciais. 4

    A vila primitiva de Cachoeira nasceu de um engenho. Tal como em outros pon-

    tos do Recncavo Baiano, as relaes intrnsecas e extrnsecas estabelecidas por

    engenhos foram polos de atrao de populaes no exercer de outras atividades,

    principalmente, a produo agrcola de subsistncia. Do engenho para a forma-

    o de uma rede urbana, era assim que se formavam os primeiros corpuspopula-

    cionais coloniais ou, pelo menos, seguindo a extenso dos engenhos, nasceram e

    se desenvolveram as vilas no interior do territrio baiano.

    So Francisco do Conde

    Lauro de Freitas

    Simes Filho

    Camaari

    Mata de So Joo

    Candeias

    Itaparica

    So Sebastio do Pass

    Feira de Santana

    Santo Amaro

    Cachoeira

    So Flix

    Maragojipe

    Nazar

    Valena

    Castro Alves

    Saubara

    Jaguaripe

    OCEANO ATLNTICO

    SALVADOR

    3 MACHADO NETO, Zahid. Quadro sociolgico da civilizao do Recncavo. Centro de Estudos Baianos, n. 71,p. 3-4. Diviso estabelecida por L. A. Costa Pinto.

    4 SANTOS, Milton. A rede urbana do Recncavo. In: BRANDO, Maria de Azevedo (Org.). Recncavo da Bahia:sociedade e economia em transio. Salvador: Fundao Casa de Jorge Amado, 1998, p. 88-93.

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    Dessa forma, pode-se dizer que a atividade comercial contribui decisivamente

    para a formao de vilas e, assim, para fomentar o principal objetivo da Coroa

    Portuguesa.

    Em 1559, Mem de S promoveu na regio uma entrada para abrir caminho

    buscando colonizar, matar e expulsar indgenas. Um engenho e um alambique

    foram instalados, no espao que viria a ser Cachoeira, em Cachoeira por Rodrigo

    Martins, na margem esquerda do Rio Paraguau, na proximidade da atual ponte

    D. Pedro II, por volta da segunda metade do sculo XVI. 5 Indcios histricos

    apontam terem os incessantes ataques indgenas, constantes at 1610, frustado

    o desenvolvimento desse stio primitivo que se formava, mesmo com a atuao

    da aliana estabelecida em 1595 entre ndigenas e lvaro Rodrigues Adorno,lho de D. Antnio Dias Adorno, morador da regio. Em meados desse mesmo

    sculo, coube ao capito-mor Gaspar Rodrigues Adorno a incumbncia de dis-

    persar os indgenas que perturbavam os interesses da Metrpole. Como recom-

    pensa pelos servios prestados, recebeu quatro lguas de terra que incluiam os

    riachos do Caquende e Pitanga, local onde j estava instalado engenho, senzala e

    capela sob invocao de Nossa Senhora do Rosrio (atual capela Nossa Senhora

    D Ajuda). 6 Era comum a prtica clientelista ser estabelecida pelos homens para

    garantir o domnio colonial. Como retribuio, eram conferidas honrarias de

    prestgio e lealdade s aes dos benevolentes, na forma de concesso de terras,

    pela troca de favores e servios.

    No incio do sculo XVII, os solos arenosos imprprios para o cultivo de acar,

    adubados com esterco, cederam lugar produo fumageira. Cultivado em Ca-

    choeira e na sua circunvizinhana, o fumo era primordialmente utilizado como

    moeda de troca no trco de escravos, apreciado em frica por ter um sabor

    adocicado. J na segunda metade desse mesmo sculo, o porto de Cachoeira era

    amplamente frequentado pelos produtores de fumo da regio, existindo em

    1697, quatro armazns para guardar, especicamente, rolos de fumo. 7

    As terras s margens de rios e do mar eram as mais valorizadas porque poderiam

    servir ao escoamento da produo e servir como fonte de energia aos engenhos.

    Considerando ser a interlndia agrcola circundada por um verdadeiro mar interno,

    a funo do embarcadio e do transporte martimo era vital para a unidade regional,

    bem como na relao com Salvador, que dependia desses saveiros para se abastecer

    de alimentos. Stuart Schwartz levantou 2.148 embarcaes, realizando esse trnsito,

    em 1775. Nessas embarcaes trabalhavam cerca de 4 mil marinheiros e pescadores,

    metade deles, escrava. 8 Foi, justamente, a navegao uvio-martima e a atividade

    comercial que fortaleceram o ncleo populacional que se formava em Cachoeira.

    Ainda em 1775, a Vila de Cachoeira, uma das mais extensas da Bahia at o sculo

    XIX, agrupava na forma de comando geo-poltico sete importantes Freguesias daregio: Feira de Santana, Muritiba, Conceio de Feira, So Gonalo dos Cam-

    pos, Oiteiro Redondo, Cruz das Almas e Castro Alves. Era, tambm, o segundo

    ncleo populacional da Bahia, contando com cerca de 4 mil habitantes no per-

    metro urbano. 9 Na medida que essas regies foram se tornando independentes,

    com a efetiva povoao e, ainda, xao de atividades econmicas, conseguiram,

    por meio de Carta Rgia, tornarem-se vilas e posteriormente cidades. 10 Atual-

    mente, o Municpio de Cachoeira possui como distritos, alm da prpria sede,

    Belm de Cachoeira e Santiago do Iguape.

    Localizada numa rea privilegiada, entre a fronteira do Recncavo e do Serto,

    duas regies economicamente complementares, Cachoeira era ainda uma porta

    de entrada para o serto 11 e, por isso, ponto de partida das tropas que se en-

    caminhavam para o interior, j que litoral e Recncavo viviam gradativamente o

    limiar do processo de colonizao. Estas expedies so conhecidas por entra-

    das ou bandeiras (normalmente usava-se esse termo para as tropas que partiam

    das regies Sul e Sudeste do Brasil). Esses entradistas eram verdadeiros

    5 SOUZA. G. S. de. Notcias do Brasil. So Paulo: MEC, 1974. 6 SILVA, P. C. da. A Cachoeira e o seu municpio. Revista do IGHBa, Salvador, n.63, 1937.

    7 VIANNA FILHO, Luis. O negro da Bahia: um ensaio clssico sobre a escravido. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1988; SCHWARTZ, Op. Cit., p. 84-85.

    8 COSTA PINTO, Op. Cit., p. 33; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedadecolonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 77-78.

    9 REIS, Joo Jos. Magia jeje na Bahia: A invaso do Calundu do Pasto da Cachoeira, 1785. Revista de Histria,v. 8, n. 16 (1988), p. 66. Para o Termo pertencente Cachoeira, Schwartz calculou, em 1816, 60 mil habitantes.O mapa utilizado nessa pesquisa encontra-se nessa referncia, p. 64.

    10 MILTON, A. Ephemrides Cachoeiranas. Salvador: UFBA. 1979. 11 SCHWARTZ, Op. Cit., p. 84.

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    desbravadores dos sertes 12, que enfrentavam situaes inspitas, por sua prpria

    conta e risco, abrindo caminhos, conhecendo o oculto, buscando riquezas minerais,

    defendendo o territrio de invasores estrangeiros, ocupando e povoando o ter-

    ritrio, expulsando e dizimando o nativo, pretendendo, posteriormente, obter

    reconhecimento pela concesso de amplas extenses de terras.

    Duas importantes vias terrestres convergiam, respectivamente, de Cachoeira e

    So Flix; a primeira, a Estrada Real de Gado que conduzia para as bandas do

    Rio So Francisco e para a rota da pecuria que, normalmente, acompanhava

    a atividade mineradora, e a Estrada das Minas, dirigida s regies da Chapada

    Diamantina, Minas Gerais e Gois. Alm do porto, a movimentao na cidade

    rumo s estradas era constante durante o sculo XVIII, visto que a economiado acar estava no auge do seu preo e a abundncia de ouro nas Minas do

    Rio de Contas se fazia presente. Acar, fumo, ouro e diamantes, descobertos

    em Mucug e em Lenis, no incio do sculo XIX, eram escoados no porto de

    Cachoeira.

    Cachoeira seguia o ritmo da atividade econmica de parte signicante do Recn-

    cavo. Tudo (era) comrcio, tudo (era) atividade comercial 13. A feira de Ca-

    choeira tinha, evidentemente, grande relevncia e movimentao, oferecendo a

    venda de gneros diversos, como algodo, alimentos, quitutes, gado, carne, cou-

    ro e sebo, justamente, por ser mercado regional, ponto de parada obrigatria e

    transbordo do serto. Tanto o Recncavo quanto Salvador dependiam do serto

    para suprirem-se dos gneros citados acima; alis, era com o couro que se enro-

    lava o fumo e com a trao animal que se dava o transporte e a fora motriz nos

    engenhos de acar. Dessa forma, pode-se dizer que litoral e interior estavam

    ligados num ponto comum: o porto de Cachoeira.

    O viajante Robert Av-Lallemant, mdico alemo, ao visitar as provncias da Ba-

    hia, em 1855, deixou informaes minuciosas acerca da importncia de Cachoei-

    ra. J nesse perodo havia um vapor direto da Bahia para Cachoeira, que fazia

    o trajeto duas vezes na semana. Para chegar terra rme era necessrio passar

    por meio de outro transporte, as canoas, que levavam passageiros e mercadorias,

    j que no existia ponte para desembarque. Essa era uma atividade comum, re-

    alizada normalmente por negros, na Baa de Todos os Santos e no cotidiano de

    cidades interligadas por vias uviais, tais como Cachoeira e So Flix. 14

    A cidade de Cachoeira sobre o Paraguau to poderosa e importantepara o comrcio da Bahia, que, embora pequena e apertada na margem doseu rio, tem que ser considerada como parte essencial de todo o comrciobaiano, merecendo a visita de todo viajante. 15

    Cachoeira chegou a ser sede do governo por duas vezes: a primeira, durante as

    lutas pela independncia da Bahia, sendo sede da Junta Governativa e depois, do

    Governo Provisrio em 1822, fato que, posteriormente, lhe rendeu o ttulo de

    Cidade Herica 16. A segunda, em 1837, durante a Sabinada. 17 At a primeira

    metade do sculo XIX, Cachoeira viveu sua era de ouro, sendo considerada [...]

    sem dvida a mais rica, populosa e uma das mais agradveis vilas de todo o Bra-

    sil. Numerosas vendas e armazns cheios de vrios ar tigos europeus revelam o

    alto grau de movimentao de seu comrcio.18

    Do povoado primitivo sobre uma colina, a cidade se expandiu ao longo do Para-

    guau, com seus sobrados. Para geri-la era preciso organizar sua infraestrutura,

    com a pavimentao de ruas, construo de chafariz pblico, pontes e cais. A

    partir do crescimento da cidade instalada num vale e cercada por morros, foi

    necessrio aterrar parte do rio, na segunda metade do sculo XIX. No perodo

    colonial, era frequente medir a colonizao a partir da ocupao territorial e no

    do crescimento populacional, conforme se expandiam engenhos e igrejas, e com

    estas irmandades e devoo aos santos, elemento marcante da religiosidade local

    elaborada entre as igrejas e ter reiros de candombls.

    A decadncia de Cachoeira como zona de auncia, iniciada na segunda metade

    do sculo XIX, ocorreu devido a queda progressiva da produo econmica.

    12 A etimologia da palavra variada, podendo referir-se ao clima semi-rido, a regio e a cultura do Nordeste,a local distante e desconhecida, o interior, as terras no cultivadas. NEVES, Erivaldo Fagundes (Org.).Caminhos do Serto: ocupao territorial, sistema virio e intercmbios coloniais dos Sertes da Bahia. Salvador:

    Arcdia, 2007.13 AV-LALLEMANT, Robert, 1812-1884. A provncia da Bahia. Viagens pelas provncias da Bahia, Pernambuco,

    Alagoas e Sergipe. Belo Horizonte: Itatiaia; So Paulo: USP, 1980, p. 65.

    14 O Vapor Cachoeira realizava o trnsito entre capital e seu Recncavo desde 04/10/1819, tendo exclusividadeno servio durante 14 anos, com alguns intervalos se fez presente nas guas do Paraguau at a dcada de 60 desculo XX. Ver Jornal A Tarde, 04/10/2009.

    15 AV-LALLEMANT, Op. Cit., p. 58.16 Foi considerada Cidade Monumento Nacional atravs do Decreto n 68.045, de 18/01/1971.17 MILTON, A. Ephemrides Cachoeiranas. Salvador: UFBA, 1979.18 SPIX e MARTIUS. Viagem pelo Brasil (1817-1820). So Paulo ; Rio de Janeiro: Edies Melhoramentos ;

    Instituto Nacional do Livro, 1976; SCHWARTZ, Op. Cit., p. 82. Constatao da sua riqueza obtida junto aosdados referentes contribuio que coube a cada vila para reconstruo de Lisboa no terremoto sofrido em 1755.

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    Motivados, primeiramente, pelo o m do trco e depois com a abolio da

    escravido, somados a dois outros motivos destacados por Av-Lallemant que,

    possivelmente, levaram a produo aucareira na Bahia decadncia: a produo

    do acar de beterraba na Europa e a diculdade para escoar a produo local

    devido falta de estradas.

    Cachoeira perdeu, ainda, parcela signicativa da sua populao, que se deslocou

    para outras regies, cerca de 1/3, devido a crise fumageira. Por outro lado, algumas

    construes so realizadas nesse perodo, talvez como tentativa de recuperar seu

    faustoso brio: a Estrada de Ferro da Central da Bahia (dc. 1860/70/80), a Ponte

    D. Pedro II (1882-1885), Hidreltrica de Bananeiras (1907-1920), e a rodovia

    Salvador-Feira de Santana (1924-1928).

    Na segunda metade do sculo XIX acontece, de fato, a elaborao urbana do

    Recncavo, a partir da modernizao dos transportes. Inicia-se, em 1860, a Era

    Ferroviria, perodo do vapor e da mecnica. Comea a se pensar na organizao

    de uma estrada de ferro Tram Road Paraguassu, que partiria de Feira de Santana,

    por ter se tornado, no perodo, a principal praa comercial da Bahia. No entanto,

    a construo da rede ferroviria seguiu outro caminho, partiu dos portos mais

    solidicados: Salvador, Cachoeira, Santo Amaro e Nazar. A Estrada de Ferro

    Central da Bahia partia de Cachoeira rumo a Feira de Santana, onde chegou

    em 1887, sendo sua construo motivada pelas minas de diamantes, pois [...]

    a Chapada era ento o maior cliente do comrcio da Bahia 19. Com as estradas

    de ferro, os portos comearam a se especializar. Cachoeira na exportao do

    fumo e Santo Amaro na exportao de acar. O primeiro obtinha vantagem

    sobre o segundo por ser um centro comercial que aglutinava variada atividade

    econmica. 20

    A rede ferroviria instalada na regio foi a grande responsvel pela requalicao

    espacial, inclusive, na estrutura da propriedade rural, dando nova feio ao interior,

    desenhando uma sionomia urbana paisagem colonial. As ferrovias, no entanto,

    no eram interligadas, tornando-se necessria a implantao de estradas de rodagens.

    A concluso da rodovia Salvador-Feira, em 1924-1928, e sua interligao com fer-

    rovias baianas termina por fazer com que o porto de Cachoeira perdesse de vez suas

    funes virias, iniciadas com a crise da agro-indstria aucareira e fumageira.

    O fumo deixou de servir ao comrcio negreiro e passou a ser produzido por

    indstrias tabaqueiras em processo de expanso, apoiadas na experincia cuba-

    na, instalando-se na Bahia pela regio do Recncavo, mais especicamente, em

    Maragojipe e So Flix em ns do sculo XIX e, posteriormente, em Cachoeira.

    Havia, em 1892, na Provncia da Bahia, 12 (doze) fbricas de charutos: 06 (seis)

    em So Flix, 04 (quatro) em Salvador, e 02 (duas) em Maragojipe . No incio

    do sculo seguinte, o aumento do consumo de charutos e cigar rilhas manufatu-

    rados, em nvel mundial, impulsionou o alargamento da produo nas fbricas e

    na abertura de novas unidades fabris em Cachoeira, Muritiba e Cruz das Almas.

    A fbrica de charutos Leite&Alves, uma extenso da Fbrica de cigarros SoDomingos, com sede em Niteri - Rio de Janeiro, desde 1881, instalou-se em

    Cachoeira em 1936, continuando presente no municpio at a dcada de 70 do

    sculo XX, quando foi comprada pela Empresa H Madeiro, devido a reincidente

    crise fumageira que se prolonga at os dias atuais.

    A mo-de-obra utilizada no fabrico do charuto, produzido de forma caseira ou

    industrial, era exclusivamente feminina. Os homens estavam ligados s planta-

    es e aos armazns de fumo. O ofcio de charuteira dava a essas mulheres uma

    maior autonomia social. Ascendendo econmica e socialmente elas poderiam

    manter suas famlias e, por isso, passaram a ocupar lugares de poder na rgida

    sociedade patriarcal. Essa brecha no mercado de trabalho deve-se lgica capi-

    talista que, diante da precariedade social da regio, naquele contexto, se utilizou

    da mo-de-obra farta e barata. Somando-se disponibilidade ao trabalho, as

    mulheres se mostravam hbeis, cuidadosas e exmias no trato com o fumo. 22 Ten-

    do em vista que o emprego signicava para as mulheres instrumento de acesso a

    autonomia de gnero, o trabalho com o fumo proporcionou para as charuteiras,

    mesmo considerando as formas de explorao s quais estavam submetidas, uma

    especializao prossional. Engendrou, ainda, uma recongurao na estrutura

    familiar e, consequentemente, um alargamento no espao de atuao da mulher.

    19 SANTOS, Op. Cit., p. 77.20 OTT, Carlos. O povoamento do Recncavo por seus engenhos (1536-1888). Bahia: Bigraf, 1996, p. 60.

    21 ALVES, Jos Ramos de Almeida. Palestra proferida no Rotary Club Cachoeira - So Flix, 9 de abril de 1952. Correiode So Flix. n. 876, 26/04/1952.

    22 As memrias das mulheres dessa regio fumageira, inclusive das Irms da Irmandade da Boa Morte de Cachoeira,apontam para o mundo do trabalho, segundo a Irm Maria da Glria dos Santos naquela poca quem no trabalhavana fbrica, trabalhava nos armazm.

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    Considerando sua trajetria e signicncia, Cachoeira deixou suas marcas histri-

    cas como registro do brio do seu passado, inscritas na cultura material e imaterial.

    A regio de maior relevncia para a economia da Capitania da Bahia, nos trs

    primeiros sculos de histria luso-afro-amenrndio, atualmente, sobrevive do

    turismo cultural. Os turistas, estudantes e pesquisadores que se dirigem, atual-

    mente, a Cachoeira buscam suas peculiaridades locais: seu stio arquitetnico,

    seus casarios e sobrados, suas comidas, seus ritmos, suas festividades, sua religio-

    sidade, enm, seu imensurvel patrimnio cultural.

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    Seria uma espcie de assimilao de signos/smbolos para conferi-los novos sig-

    nicados pela incorporao de contedos cristos.

    O uso da imagem e dos cdigos mentais que a mesma comporta foi utilizado

    como mecanismos de comunicao e educao da mensagem crist para ama-

    ciar psquica e culturalmente as populaes tidas por primitivas e iletradas. O-

    cializado o culto s imagens, o culto aos santos passou a ser aceito e esteve pri-

    mordialmente alicerado nas irmandades leigas, que formavam uma sociedade

    social crist integrada por nativos nos territrios colonizados. A partir dessa

    poltica crist de adaptao cultural, praticada amplamente no sc. VIII, a Igreja

    passou a tolerar paraliturgias, ou seja, renovaes celebrativas, tais como bnos

    e coroaes, declinando-se tambm para festividades: santos padroeiros, cultoaos mortos, aniversrios de evangelistas, festas da Virgem Maria, alm de festas

    pags que foram concomitantemente incorporadas ao calendrio eclesistico.

    [...] psicologicamente a imagem desempenha um papel relevante no dis-positivo colonizador, ao contribuir para a formao da mentalidade sub-missa; e socialmente o ponto de atrao do rebanho disperso na con-fraria: a existncia da imagem portanto uma condio fundamental paraa aglomerao das ovelhas em uma instituio em que as mentalidadespossam ser convenientemente condicionadas. 24

    Durante a Idade Mdia as confrarias catlicas leigas se espalharam pela Europa.

    Divididas entre irmandades e ordens terceiras, tinham por principal atividade

    servir aos desvalidos atravs da caridade. Riolando Azzi as diferencia a partir dos

    seus dirigentes. As primeiras formadas tanto por religiosos quanto por leigos,

    sendo uma extenso das corporaes de artes e ofcios. J as segundas obtinham

    maior prestgio por agrupar as ordens conventuais medievais, franciscanas, car-

    melitas e dominicanas. 25

    Em Portugal, as irmandades leigas, bem mais numerosas, expandiram-se da

    metrpole lusitana para o Imprio Ultramarino, ao qual estava inclusa a colnia

    braslica, para onde foram transportadas suas formas bsicas de organizao.

    A Igreja, todavia, se responsabilizava por scalizar e supervisionar essas associaes

    nos territrios colonizados, como parte da poltica colonialista de dominao. 26

    A caridade sempre foi um exerccio de poder e demarcao social entre os nobres

    lusitanos para com os desprivilegiados. Logo, as Santas Casas de Misericrdia,

    confrarias com funes de auxlio aos carentes, se estruturaram, justamente, para

    cumprir prerrogativas desse esprito benevolente e cristo. 27 Exercendo obras

    de misericrdia, proviam assistncias hospitalares e funerrias, intercediam, ai-

    nda, perante aos doentes, aos presos e s mulheres principalmente as vivas e

    as rfs (casando muitas delas) e s crianas abandonadas, estas ltimas deixa-

    das valia, numa espcie de roda giratria conhecida por roda dos expostos.

    No ultramar, essas confrarias eram responsveis, tambm, pela organizao reli-giosa, nanciada pela Coroa Portuguesa. No Brasil, tendeu a acompanhar a rota

    de explorao econmica do territrio, expandindo-se do litoral para o interior

    e, assim, na Bahia, da Capital e do seu Recncavo para o serto. 28

    Enquanto a Igreja cuidava do esprito por meio dos trabalhos missionrios, di-

    vididos complementarmente entre as ordens seculares (Irmandades e Ordens

    Terceiras), a Misericrdia se concentrava na assistncia fsica, no cuidado com o

    corpo e, na falta deste, com a alma dos mortos, no exerccio de servios funerri-

    os. As funes no eram to harmnicas como parece, haja visto o monoplio

    das Misericrdias que no era aceito por agentes religiosos regulares (Ordens

    Primeiras) que, por vezes, organizavam-se em confrarias ans para conquistar o

    espao social ocupado pelas Santas Casas.

    As confrarias leigas realizavam as partilhas das doaes dos seus scios cabendo-

    lhes, por vezes, parcela expressiva nos testamentos, principalmente, daqueles que

    queriam, aps sua morte, continuar contribuindo com as obras assistencialistas,

    at porque a caridade era, na mentalidade crist, um dos meios para se ingressar

    24 SILVEIRA, Op. Cit., 2006, p. 133.25 AZZI, Riolando. A instituio eclesistica durante a primeira poca colonial. In: Histria da Igreja no Brasil.

    Petropolis: Edies Paulinas; Vozes, 3.ed., 1983. REIS, Joo Jos. As irmandades. In: A Morte uma festa: ritosfnebres e revolta popular no Brasil do sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 1991, p. 49.

    26 SILVEIRA, Op. Cit., 2006, p. 128-129. Para o Brasil Alberto da Costa e Silva prefere diferenciar os termos apartir de parmetros tnico-raciais, sendo as irmandades formadas por negros e/ou pardos e as confrariasexclusivas de brancos.

    27 Ver RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e Filantropos: A Santa Casa de Misericrdia da Bahia, 1550-1750.Braslia: Unb, 1981.

    28 ABREU, Laurinda. O papel das Misericrdias dos lugares do alm-mar na formao do imprio portugus.Histria, Cincias e Sade. Manguinhos, v 8, n.3, p. 591-611, set./dez. 2001.

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    no reino celestial. Muitas vezes as deixavam, tambm, por testamento, respon-

    sveis pela quantia referente ao dote e por providenciar casamentos de mulheres,

    principalmente, as rfs.

    Existia, no mundo luso-portugus, e esse modelo no foi diferenciado no Brasil,

    duas tendncias na formao de irmandades, que dizem respeito aos seus inte-

    grantes. De um lado, irmandades cujos scios pertenciam a diversicadas classes

    sociais, de outro, irmandades especcas para diferentes segmentos, divididos

    por ofcios, estatuto social, e/ou cor da pele, ambas ligadas a um santo de de-

    voo. 29 Na Bahia setecentista, por exemplo, a maior parte dos comerciantes se

    dividia nas Ordens Terceiras de So Francisco e So Domingos, os sapateiros e

    seleiros na Confraria de So Crispim, os ferreiros e serralheiros na de So Jorge,e os pedreiros, carpinteiros, torneiros e canteiros na de So Jos. 30

    Para ser ocializada e reconhecida pela Igreja e pelo Estado, toda e qualquer

    irmandade deveria redigir um estatuto, chamado, tambm, de compromisso e

    encaminhar s suas instncias superiores para t-lo sancionado. Nele, estavam

    contidos o calendrio festivo, os direitos (assistncia jurdica e mdica, ajuda na

    compra de alforria ou necessidade nanceira, enterro decente na igreja), deveres

    e obrigaes (boa conduta, bom comportamento, participao nas cerimnias

    religiosas e civis, pagamento da anuidade), alm das formas de admisso de no-

    vos membros (condio racial ou social) e critrios para compor a mesa. 31

    Era o compromisso que regulava administrativamente a irmandade, normatizan-

    do, disciplinando e organizando as relaes no seu interior, atravs de uma mesa

    hierrquica, cujos cargos tinham funes especcas. Segundo o direito cannico,

    as irmandades leigas deveriam ser organizaes voluntrias e independentes 32,

    onde, para se associar, era necessrio prover de uma jia (espcie de anuidade

    e parte da receita) com as quais os prprios integrantes encarregavam-se da

    manuteno do culto. Seus integrantes exerciam funes religiosas, devocionais,

    festivas, assistenciais, funerrias, polticas e sindicais.

    Caoicismo neo na Amica Poesa

    O processo de cristianizao teve como ponto de conuncia a cooptao de

    populaes diversas ao catolicismo. Parece ser este um dos motivos para se tolerar

    ou mesmo motivar a devoo aos santos de cor. O antroplogo Jlio Braga

    pensa terem sido as irmandades negras utilizadas como meio de controle so-

    cial e ainda instrumento poderoso de submisso para o escravo 33, caracteres

    estes enfatizados pelos estudos que vem essas organizaes religiosas como

    instrumento de acomodao e de aculturao. Fato que os africanos transpor-

    taram para as associaes religiosas crists um ethos identitrio de ser, pensar,

    agir e cultuar.

    Alguns estudiosos insistem em pensar as irmandades no contexto da permis-

    sividade aos africanos, como forma de concesso, tal como nas festividades

    lundus, batuques, calundus, mascaradas, reinados , tidas por alguns senhores de

    engenho como forma de distrair os escravos e distanci-los de subverses. Seria

    a devoo aos santos catlicos por africanos, dentro dessa lgica de anlise, um

    meio de atrao religio do branco com o conseqente controle e vigilncia

    sobre os comportamentos.

    Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que so o nico alvio do seucativeiro, quer-los desconsolados e melanclicos, de pouc a vida e sade.Portanto, no lhes estranhe os senhores o criarem seus reis, cantar e bailarpor algumas horas honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente tarde depois de terem feito, pela manh suas festasde Nossa Senhora do Rosrio, de So Benedito e do orago da capela doengenho [...]. 34

    Todavia, essas organizaes foram verdadeiras vias de mo dupla, pois podiamservir como instrumento moderador de tenses sociais, mas, tambm, legiti-

    mar aos africanos e seus descendentes um cunho institucional para alm da esfera

    religiosa, fazendo deles agentes polticos. Ao participar de prticas catlicas, os

    escravos podiam se projetar para alm das fronteiras do trabalho, seja esse exer-

    cido num mbito mais privativo e fechado das senzalas, ou urbano, mais ab erto29 MATTOSO, Ktia M. Queirz. A Bahia No sculo XIX: uma provncia no Imprio. Rio de. Janeiro: NovaFronteira, 1992, p. 397.

    30 FLEXOR, Maria Helena. Ofcios mecnicos na cidade do Salvador. Salvador: Prefeitura de Salvador, 1974,p. 22; OLIVEIRA, L. Privilgios da nobreza e dalguia de Portugal. Lisboa: Nova Ocina de JooRodrigues Neves, 1806, p.92.

    31 REIS, Op. Cit., 1991, p. 50; 53. Nas irmandades nobres comumente era solicitado aos candidatos a irmoscomprovao de pureza de sangue, ou seja, que no tivesse descendncia moura, indgena, africana, judiaou qualquer outra raa tida por impura ou infecta.

    32 O que de fato no acontecia, era comum na Bahia a aliana informal entre as irmandades, inclusive aquelasde diferentes cultos.

    33 BRAGA, Jlio. As irmandades de cor: generalidades. In: Sociedade Protetora dos Desvalidos: uma irmandadede cor. Salvador: Ianam, 1982, p. 92.

    34 ANTONIL, Andr Joo. Cultura e Opulncia do Brasil. So Paulo: Nacional, 1967, p. 159; 164.

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    e exvel, onde era possvel ainda reunir-se nos cantos 35. Movimentando-se no

    mundo dos brancos, os negros catolizados podiam gozar de certa isonomia so-

    cial, pelo menos no mbito da representao, na medida em que faziam suas

    festas, procisses e enterros igualmente suntuosos.

    Pertencer a uma irmandade numa sociedade colonial era a forma mais aprazvel

    de introjetar na populao uma identidade cvica, de congraamento com o

    territrio e com o outro. [...] Os negros no podiam ser, sentir-se e parecer

    brasileiros sem ser ao mesmo tempo catlicos 36, por isso, institucionalmente,

    a irmandade deu um passo frente para a cidadania ou, por meio desta, podia-

    se contempl-la. Provavelmente por esse motivo grande parcela dos africanos,

    independente do seu estatuto legal, integrava as leiras dessas associaes.

    Na Bahia, at a primeira metade do sculo XIX, havia 36 irmandades de crioulos,

    africanos, escravos e libertos, cujos scios computavam cerca de 90% do total

    de africanos e seus descendentes, sendo comum a participao em mltiplas ir-

    mandades. 37 J para a Cidade do Salvador do sculo XVIII, Lucilene Reginaldo

    encontrou 16 irmandades negras 38 :

    FREGUESIAS IRMANDADES

    So Salvador da S Bom Jesus da Ressurreio;So BeneditoSanta Ignia

    Nossa Senhora da Vitria Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

    Nossa Senhora da Conceio da Praia

    Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;

    So Benedito;

    Senhor Bom Jesus da Redeno

    Santo Antnio Alm do Carmo Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

    So Pedro Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;

    Santo Antnio de Categer;

    Santo Rei Baltazar

    Senhora Santana Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

    Santssimo Sacramento da Rua do Passo Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;

    Senhor Bom Jesus dos Martrios

    Nossa Senhora da Penha de Frana de

    Itapagipe

    Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;

    So Benedito

    33

    35 REIS, Joo Jos. De olho no canto: trabalho de r ua na Bahia nas vspera da Abolio. Revista Afro-sia,n. 24, 2000. Canto um conceito utilizado para especicar os grupos de trabalhos de escravos e libertosorganizados etnicamente nas ruas da Bahia.

    36 PRANDI, Reginaldo. Referncias sociais das religies afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento, africanizao.In: CAROSO, Carlos & BACELAR, Jeferson (Org.). Faces da Tradio Afro-Brasileira: religiosidade, sincretismo,anti-sincretismo, reafricanizao, prticas teraputicas, etnobotnica e comida. Rio de Janeiro: Pallas; Salvador:CEAO, 1999, p. 96.

    37 OLIVEIRA, Maria Ins Crtes. O liberto: seu mundo e os outros. Salvador: 1790-1890. Corrupio. Dados obtidosjunto a testamentos de libertos.

    38 Conforme quadro apresentado por REGINALDO, Lucilene. Os rosrios dos angolas: irmandades negras,experincias escravas e identidades africanas na Bahia setecentista. Tese de Doutorado, UFBA, 2005.

    FREGUESIA IRMANDADES

    So Salvador da SBom Jesus da Ressurreio;

    So Benedito;Santa Ignia

    Nossa Senhora da Vitria Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

    Nossa Senhora da

    Conceio da Praia

    Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;So Benedito;

    Senhor Bom Jesus da Redeno

    Santo Antnio Alm do Carmo Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

    So PedroNossa Senhora do Rosrio dos Pretos;

    Santo Antnio de Categer;Santo Rei Baltazar

    Senhora Santana Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos

    Santssimo Sacramentoda Rua do Passo

    Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;Senhor Bom Jesus dos Martrios

    Nossa Senhora da Penha de

    Frana de Itapagipe

    Nossa Senhora do Rosrio dos Pretos;

    So Benedito

    33

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    As irmandades que obtinham a preferncia dos homens pretos da Bahia, foram

    aquelas de invocao a Nossa Senhora do Rosrio, a mais antiga devoo do Brasil,

    e a So Benedito. Algumas ordens religiosas so responsveis pela propagao de

    santos especcos entre as populaes colonizadas. Difundido no pas de origem

    (Itlia), este foi o caso de So Benedito que, por ter pertencido Ordem Fran-

    ciscana, foi amplamente divulgado nas atividades missionrias desses religiosos

    na Amrica Portuguesa. Alm desse orago, outros santos pretos tiveram grande

    aceitao entre os irmos de cor da Bahia. Santa Ignia substituda, contudo, por

    Santa Luzia no Convento de So Francisco na Cidade do Salvador pelos frades

    alemes 39, Santo Elesbo, difundido pelos carmelitas 40, Rei Baltazar 41 e Santo

    Antnio de Categer ou Categerona 42, popular tanto em Portugal quanto em

    Angola, alm das invocaes de Nossa Senhora 43. A escolha do santo protetorperpassava pela mentalidade afetiva, atravs de anidades mantidas com sua tra-

    jetria, histria de vida e morte, e agruras.

    A dispora e a escravido dissolveram os laos familiares consangneos afri-

    canos, entretanto, pelo catolicismo negro tornava-se vivel uma reaproximao

    de laos scioafetivos, e assim foi feito pela tipologia do termo parente, t o

    presente quando se consulta os documentos internos das irmandades negras.

    No falar portugus dos africanos no interior das irmandades, ser parente muito mais que ser irmo. A irmandade implica uma vaga noo deque todos so irmos de compromisso, expresso comum a todas as ir-mandades de pretos, pardos e brancos. J ser parente, indica um vnculoconstitudo a partir de uma identidade tnica calcada na reconstruo deum passado comum e de uma organizao social e religiosa presente. 44

    As irmandades de cor tinham como marca de distino um conjunto diversi-

    cado e complexo de identidades tnicas. Alm disso, a condio jurdica era uma

    forma de distinguir a posio social ocupada pelo africano no mundo colonial,

    transportada para as irmandades que os dividiam entre livres e cativos. Desde

    o reino portugus as diferenas de cor de pele foram lidas como marcas sim-

    blicas de distino social 45, mas as formas como se delinearam no contexto

    da colnia braslica ganharam traos locais, tendo em vista que a cor da pele

    ditava os limites entre liberdade e escravido. Os pardos forros, normalmente,

    conseguiam uma ascenso na hierarquia social no que diz respeito a uma melhor

    condio econmica, dicilmente atingida pelos escravos, j que os libertos e os

    pardos livres formavam a ala trabalhadora urbana manual de Salvador, mesmo

    com os mecanismos limitativos e de regulao inerentes de uma sociedade colo-

    nial, desigual e, por isso, excludente.

    Os pardos e os crioulos ocuparam, por vezes, posies sociais destacadas, exaltan-

    do traos da dalguia conquistada pela minimizao dos rastros africanos. Por

    isso, Lus dos Santos Vilhena, professor de grego e cronista da Cidade do Sal-

    vador no sculo XVIII, diz serem [...] soberbos, e pouco amigos dos brancos,

    e dos negros, sendo diferentes as causas 46. Dissociados do projeto de recom-

    posio de uma frica no Brasil, constituram irmandades separadas, impedindo

    s vezes a participao de africanos ou limitando seu acesso aos cargos diretivos.

    Tentando demonstrar o poder de uma categoria em ascenso, possivelmente,

    exercendo o comrcio e a posse de terras e a de escravos, pardos e crioulos

    tambm se vinculavam s Ordens Terceiras, formando arquiconfrarias, ou seja,

    liais de uma confraria, obtendo, com isso, alguns privilgios e indulgncias.

    Pode ter sido nessas condies que se formou, na Vila de Cachoeira, em 1720, a

    Venervel Ordem dos Cordigrios da Penitncia do Patriarca So Francisco de

    Assis, criada por pardos livres. 47

    Seguindo as formas de organizao das irmandades negras, os estudos clssicos

    tendem a apontar para exclusivismos tnicos, a partir da procedncia de nao.

    Estariam, na Bahia, dividas assim: a Irmandade do Rosrio das Portas do Carmo,

    composta exclusivamente de africanos da nao angola, a devoo do Senhor39 PINTO, Tnia Maria de Jesus. Os negros cristos catlicos e o culto aos santos na Bahia Colonial. Salvador: UFBA,

    Dissertao de Mestrado, 2000, p. 46.40 Presente na Igreja de So Loureno na Ilha de Itaparica.41 Compromisso da Irmandade do Glorioso Santo Rei Baltazar da Igreja da Freguesia de So Pedro da Cidade

    do Salvador, IAN/TT, Chancelarias Antigas Ordem de Cristo, Livro 297.42 Compromisso da Irmandade de Santo Antnio de Categerona na matriz de So Pedro na Cidade da Bahia, 1699.43 Diversas irmandades na capital e nas vilas da colnia tiveram invocao de Nossa Senhora: Nossa Senhora

    de Guadalupe, Nossa Senhora do Amparo, Nossa Senhora da Conceio, Nossa Senhora do Rosrio, NossaSenhora da Boa Morte.

    44 SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade tnica, religiosidade e escravido no Rio de janeiro,sculo XVIII. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2000, p. 222.

    45 LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravido, cultura e poder na Amrica Portuguesa. Campinas:UNICAMP, 2004, p. 156.

    46 VILHENA, Luis dos Santos. A Bahia no sculo XVIII. Salvador: Itapu, 1969, v. 1, p. 53.47 Compromisso da Venervel Ordem dos Cordigrios da Penitncia do Patriarca So Francisco de Assis, Vila

    de Cachoeira, AHU, Cdide 1662.

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    Bom Jesus das Necessidades por jejes, a de Nosso Senhor dos Martrios exclu-

    siva de homens e a de Nossa Senhora da Boa Morte exclusiva de mulheres

    pela nao ketu. 48 Verger, em trabalho posterior, ir rever suas observaes acerca

    das naes, entretanto, persistindo no mesmo erro, dividindo-as etnicamente.

    [...] os negros africanos agrupam-se por naes de origem; os angolanos econgoleses formam a Irmandade de Nossa Senhora do Rosrio, na praado Pelourinho; os daomeanos, a de Nosso Senhor das Necessidades e daRedeno, na capela do Corpo Santo e os Nago-Yorubs, esta formadapor mulheres a de Nossa Senhora da Boa Morte, na pequena igreja daBarroquinha. 49

    A idia de transposio de nao, ou seja, de toda uma estrutura ncada emlaos consangneos, lingsticos, culturais e religiosos para o Brasil, termina

    por congelar historicamente as experincias identitrias, formadas na travessia

    e vividas material e afetivamente do outro lado do Atlntico. Seria, ento, ana-

    crnico pensar a nao tal como em frica, diante da complexidade das relaes

    mantidas pelos africanos no Novo Mundo. Mostra-se mais apropriado utilizar a

    terminologia nao quando o referencial for o trco atlntico, por ter servido

    de sistema classicatrio entre africanos e autoridades coloniais, como categoria

    de identicao. Os escravos recebiam nomes catlicos seguidos da informao

    sobre a nao, que comumente nominavam os portos de embarque. Por isso,

    nao diz respeito a conguraes tnicas, a uma referncia ao passado, no

    se estendendo aos descendentes, e a grupos tnicos. Pertencer a uma nao no

    Imprio Portugus designava uma reelaborao identitria e tnica, e ainda, o

    reconhecimento como grupo. 50

    As irmandades fundadas por brancos foram, ao longo do sculo XIX, entran-

    do em decadncia. Muitas se extinguiram por ser fechadas o bastante para no

    aceitarem a participao de negros e crioulos que ascendiam econmica e so-

    cialmente, tendendo participar das irmandades de prestgio. 51 Restaram, com o

    tempo, aquelas administradas por negros e crioulos que se organizavam por et-

    nias eclticas de origens jeje, angola, ketu, haus, forjando alianas intertnicas,

    que faziam essas fronteiras uidas no contexto das convenincias, o que, muitas

    vezes, resultou na excluso de algumas etnias, quando se objetivava armar gr u-

    pos majoritrios.

    No entanto, era comum a participao de brancos como irmos honorcos

    nas irmandades negras, como guras mediadoras, de boa conduta, de respaldo

    diante da justia, responsveis pela manuteno da ordem e, por isso, nomeados

    para cargos relevantes nas mesas. Eram normalmente funcionrios do Estado

    e membros da Cmara de Vereadores, com poderes para interceder junto aos

    rgos pblicos em favor das irmandades. Pagando elevadas jias, eles investiam

    nas solenidades, nanciando as festas do patrono e, em contrapartida, passavama ter a cumplicidade dos irmos. Pelo menos dois governadores da Bahia, Conde

    dos Arcos (1810-1818) e Conde de Sabugosa (1729-1735), durante o exerccio

    dos seus governos, foram membros honorcos da Irmandade negra Senhor

    Bom Jesus dos Martrios, da Ig reja da Barroquinha. Traavam-se, ento, verda-

    deiras relaes clientelistas entre brancos e negros no seio das irmandades, onde

    prevaleciam vnculos pessoais de lealdade e de interesse mtuo. 52

    Feseja ses sanos: caoicismo baoco pos abasieiado 53

    As culturas diversicadas no contexto do Novo Mundo foram se remodelando,

    gerando novas construes. Concomitante ao catolicismo ocial, onde preva-

    leciam deveres e obrigaes (missas, jejuns, comunho) entrou no Brasil uma

    religiosidade intimista-sentimental, mais aberta a assimilaes. Amalgamou-se

    um catolicismo popular que abarcou inuncias dos cultos judaico, africano, in-

    dgena e portugus, visveis no culto aos mortos e s santidades, na venerao a

    Nossa Senhora, nas artes mgicas e no gosto pelas festas, danas, rituais e procisses.

    Estabeleceu-se um ambiente de muita reza e pouca missa, muito santo e pouco

    padre, de estreita relao pessoal e direta com os santos de devoo, quase que

    contratual quando a meta era obter um benefcio. 54

    48 CAMPOS, Joo da Silva. Procisses Tradicionais da Bahia. Salvador: Publicaes do Museu da Bahia, 1941,p. 494; CARNEIRO, Edison. Ladinos e crioulos: estudos sobre o negro no Brasil. Rio de Janeiro: CivilizaoBrasileira, 1964; VERGER, Pierre. Orixs: Deuses na frica e no Novo Mundo. So Paulo: Corrupio, 1981, p. 28.

    49 VERGER, Pierre. Notcias da Bahia, 1850. Salvador: Corrupio, 1981, p. 65.50 SOARES, Mariza de Carvalho. A nao que se tem e a terra de onde se vem: categorias de insero social

    de africanos no imprio portugus, sculo XVIII. Estudos Afro-Asiticos, v. 26, n. 2, 2004.51 MATTOSO, Ktia M. Queirz. A Bahia no sculo XIX: uma provncia no Imprio. p. 402.

    52 SILVEIRA, Op. Cit., 2006, p. 148-149. S poderiam ser ir mos honorcos pessoas recatadas, por isso seusnomes deveriam normalmente ser de apreo do Chefe de Polcia, j que no poderiam ter na cha delitos g ravese contestao poltica.

    53 Terminologia utilizada pelo Pe. Sebastio Heber, Jornal A Tarde, 25/07/2009, para o catolicismo tipicamentepraticado na Bahia.

    54 MATTOSO, Ktia M. Queirz. A Bahia No sculo XIX: uma provncia no Imprio, p. 390-391.

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    Algumas irmandades se constituram a partir da devoo a santos especcos,

    tradicionalmente festejados atravs de pomposas procisses. Muitas delas nunca

    foram ocializadas, no entanto, exerciam as mesmas funes, sendo legitima-

    das pelo direito natural. Parece ter sido este o caso da Irmandade de Nossa

    Senhora da Boa Morte de Cachoeira. 55 As irmandades estavam divididas sob

    invocaes dos santos padroeiros, grande parte habitando uma mesma igreja,

    nos altares laterais, at que conseguissem construir sua prpria sede. 56

    Na Bahia, instalou-se o primeiro Bispado (1551) e Arquidiocese (1675) do Bra-

    sil. Faziam parte da rotina dessa cidade as procisses para comemorar datas

    importantes da Igreja e do Imprio, momento onde era montado um verdadeiro

    espetculo de rua. Existiam dois tipos diferentes de procisses: as solenes ougerais, e as devocionais. As primeiras, pblicas, e as segundas, realizadas pelas

    irmandades, conforme autorizao prvia do ordinrio, diferente das primeiras,

    por estarem previstas no Direito Cannico, Leis e Ordenaes do Reino e cos-

    tumes pelo Arcebispado. 57 As mais conhecidas procisses solenes e seus agen-

    tes organizadores eram a Sexta-feira da Paixo (religiosos do Carmo), a Onze mil

    Virgens (Companhia de Jesus), a So Francisco Xavier e a So Sebastio (Senado

    da Cmara), a Corpo de Deus e do a Santssimo Sacramento, entre outras.

    A festa do padroeiro era o evento de maior destaque dentro da irmandade. Logo,

    para sua realizao, se concentravam os esforos da mesa diretora. Nesse mo-

    mento, as rivalidades e as alianas existentes entre as irmandades negras, pardas

    e brancas, tornavam-se visveis, publicamente.

    Cada posio na procisso era juridicamente discutida e disputada, logo [...]

    a mais pequena modicao do lugar atribudo a uma pessoa num cerimonial

    55 No existe documentao interna, livros de registros e prestaes de contas, muito menos compromisso daIrmandade da Boa Morte de Cachoeira. A nica fonte que se pode ter acesso tem como suporte documental aoralidade das irms.

    56 Construir a prpria igreja era um empreendimento dispendioso, por isso diversas irmandades nunca conseguiramsair dos altares laterais. Talvez seja por isso que o Pe. Sebastio Heber aponta terem existido, em toda a Bahia,inmeras irmandades sob invocao de Nossa Senhora da Boa Morte, muitas, provavelmente, foram devoesno chegando a formular compromissos nem erigir seu prprio templo.

    57 Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia (Lisboa, 1719), So Paulo: Typograa Dois de Dezembro,de Antonio Louzada Antunes, 1853, Livro III, Ttulos XIII, XIV, XV. As Constituies Primeiras, institudasem 1707, tentaram regular as irmandades, no entanto, estas caram sob a jurisdio das instncias locais, a Cmarade Vereadores, a Cria Metropolitana e, quando necessrio, do Tribunal da Relao. Na prtica, as irmandadesconseguiam driblar a scalizao, gozando assim, de certo autocontrole e autogesto.

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    a fertilidade do solo e das mulheres ou, ainda, de provocar doenas. Podem-se

    perceber dois pontos centrais no minkisi, o primeiro diz respeito importncia

    do ciclo da vida e o segundo do entrelaamento do bem e do mal. 64

    Pompa para festejar a vida e a morte, essa era a regra nas irmandades negras

    coloniais. Desde o sculo XVII, os funerais suntuosos eram verdadeiros ritos de

    passagem, numa tentativa de igualarem-se s irmandades brancas. A exuberncia

    prescrevia prestgio associao, visto que poderia atrair novos membros.

    O medo de ter o corpo insepulto ou ser sepultado sem honra pela SantaCasa faz com que os pretos queiram um funeral cristo. Por isso os ritos noapenas homenageiam o morto, ajudando-o a trilhar o caminho para o outro

    mundo, mas, em sua pompa, mostram o poder da irmandade em cuidar deseus membros e enterrar seus mortos. [...] As missas solenes, de corpo pre-sente e pelas almas dos ir mos falecidos, assim como os cortejos fnebres,as procisses e outros rituais so oportunidades para renovar a solidariedadedo grupo e demonstrar sociedade a importncia da irmandade. 65

    Os gastos, tanto nas procisses quanto nos funerais, cortejos semelhantes, eram

    exorbitantes, mesmo com as contribuies avantajadas daqueles que ocupavam

    cargos. Por isso, eram realizados peditrios, objetivando arrecadar verbas para

    nanciar as festas dos santos. Alguns desses custos se davam com contratao

    de pregador (cujo prestgio correspondia ao valor do seu pagamento), ornamen-

    taes, trajes, velas, insgnias e com os atos litrgicos e os emolumentos dos

    sacerdotes que celebravam as missas. Contra os preos desses emolumentos,

    os irmos do Rosrio da Vila de Cachoeira, Freguesia de So Pedro do Monte,

    encaminharam, em 1762, queixa ao rei denunciando o vigrio dessa Parquia e

    pedindo que abaixasse o preo, que era de 4.000 ris, para assistncia a missas e

    festas, e 2.300 ris pra novenas, procisses e enterros. 66

    Considerando as complexas dimenses das irmandades, cabe pens-las como insti-

    tuies de resistncias, locais onde escravos e libertos posicionaram-se diante

    do jogo do sistema colonial, revertendo-o, quando possvel, ao seu favor. Esses

    espaos de solidariedades, no tinham precedentes iguais em outras esferas da

    vida, numa sociedade que estigmatizava os papis e posies sociais. As festas

    populares faziam parte do cotidiano colonial, por conseguinte, festejar seus san-

    tos padroeiros era costume na Bahia, previsto num calendrio rgido, onde os

    africanos e seus descendentes eram os participantes mais assduos.

    Imandade da Boa Moe de Cachoeia

    O culto a Nossa Senhora foi difundido por todo o mundo ocidental, desde o

    sculo IX, atravs da expanso catlica. De forte tradio portuguesa, as fes-

    tividades de Nossa Senhora da Boa Morte remonta s realizadas em louvor a

    Nossa Senhora D Agosto. Nos trpicos, sofreu inuncia do catolicismo afro-

    brasileiro.

    H muitos vazios documentais quando se pretende historiar acerca das irman-

    dades negras da Bahia, primeiro porque seus documentos internos no foram

    preservados, segundo, e isso cabe a inmeras irmandades, porque nunca existi-

    ram legalmente. As devoes aos santos, provavelmente, chegaram a realizar as

    mesmas funes das irmandades, mesmo desprovidas do aparato jurdico do

    direito cannico, no somente organizando o culto e festa do padroeiro. 67 Esta

    prerrogativa leva em considerao os constantes distrbios da sociedade colo-

    nial, frente lei e prtica, o plausvel e o costumeiro. Para a Irmandade de

    Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira, a preeminncia da memria das

    irms fundamental para a recomposio da trajetria histrica da instituio.

    Havia, na Cidade do Salvador, desde o sculo XIX, uma devoo de cor exclusi-

    vamente feminina, constituda sob invocao de Nossa Senhora da Boa Morte,

    localizada na Igreja da Barroquinha, onde tambm existia, desde o sculo XVIII,

    a Irmandade de Nosso Senhor dos Martrios. O fato de ter sido reconhecida

    naquele perodo, em momento algum quer dizer que a mesma j no se encon-

    trava em pleno funcionamento. A festa de Assuno da Virgem, a face viva de

    Nossa Senhora, celebrada no dia 15 de agosto naquela igreja, foi considerada A

    mais concorrida, de mais extenso percurso e mais aparatosa apresentao das

    64 MELLO E SOUZA, Op. Cit., 2002, p. 135; 145.65 SOARES, Op. Cit., 2000, p. 175-6.66 Arquivo Histrico Ultramarino, Bahia, Avulsos, caixa 148, doc. 11395.

    67 Em discordncia a Renato da Silveira que pensa ser a devoo simples culto privado, p. 445-446

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    quia. De sete em sete anos, no conhecido ano sete, a prpria Nossa Senhora

    dirige os preparativos da sua festa, representada pela juza perptua que assume,

    nesse momento, o cargo de Provedora.

    Uma semana aps a eleio, as irms saem pelas principais ruas de Cachoeira,

    portando sacolas vermelhas, bordadas com o smbolo da Irmandade, fazendo

    peditrio pelas casas, comrcio e feira livre. Seguem pelas ruas, margeando o Rio

    Paraguau, cantando: Vamos trabalhar, vamos trabalhar pra Iai, vamos trabalhar

    pra Iai, pra Iai nos ajudar. No passado dirigiam-se a outras localidades, nas

    regies da cercania do Recncavo, como So Flix, Muritiba, Governador Manga-

    beira e Cruz das Almas e, tambm, Salvador, meses antes da realizao da festa.

    Foi cumprindo essa tradio que muitas mulheres entraram para a Irmandade, j

    que era comum a Provedora colocar duas novas irms para recolher verba para a

    festa, as chamadas irms de bolsas que, alm de entregar a quantia arrecadada,

    davam jias s componentes da Comisso de festa. Atualmente, a esmola geral

    se apresenta mais como uma obrigao do que meio de arrecadar fundos, con-

    siderando que restrita parcela da populao compreende o signicado temporal

    desse peditrio.

    Um dos principais requisitos para entrar na Irmandade era a indicao por

    parte de alguma das antigas irms, caracterstica que recompe uma instituio

    fechada, com rgidos critrios associativos. Podia-se, tambm, indicar um ente

    familiar, biolgico ou religioso, passando a irm a ser uma espcie de madrinha

    da escolhida. D. Dazinha, por exemplo, foi levada para a Irmandade por sua

    me-de-santo, Maria Ambrosina Sales Barreto, Yalorix do Terreiro Capivari,

    conhecido por Terreiro da Caj, em So Flix.

    Foi acompanhando sua av Vicenza Xod nas procisses e no cotidiano que

    D. Dalva Damiana passou a acompanhar a Irmandade, mas s veio a integr-la

    muitos anos mais tarde. Ao lembrar-se dessa poca D. Dalva revela que mui-

    tas mulheres de Cachoeira participavam indiretamente da Irmandade, tal como

    vrias mulheres integrantes do Samba de Roda Suerdieck, fundado por ela. Era

    comum a alhada ganhar da sua madrinha um corrento e a farda quando cum-

    prisse esse processo de integrao. 92 Para ser admitida como novia, a mulher

    deve ser negra, com mais de 40 anos (madura), devota de Nossa Senhora e com

    bom procedimento, passando, atualmente, por trs anos de observao, dife-

    rentemente do passado, quando esse perodo de observao se estendia por sete

    anos, com exigncia de ser solteira ou viva.

    [...]Porque trs anos pra poder olhar bem voc, se voc uma pessoa digna, sevoc tem responsabilidade, se voc t ali com amor [...]. Se voc t ali voc temf na Santa. [...] Se viu seu comportamento, seu jeito de ser que cai bem pra seruma irm [...] j dizem a voc oh, arruma sua farda, esse ano j recebe a farda. 93

    A irm de bolsa passa por esse processo de iniciao, de aprendizado gradual,

    de observao mtua e de incorporao de uma identidade de grupo. S lhe

    atribudo o uso da farda (roupa festiva) quando eleita para ocupar cargo. Por ser

    iniciante no pode participar nem conhecer todos os ritos, logo, de passo a

    passo, de cargo a cargo, de palavra a palavra, que a iniciante aprende o saber que

    transcende a materialidade dos elementos representativos da Irmandade.

    Pocisso como ao de f e devoo

    A festividade se inicia no dia 13 de agosto, dia em homenagem s irms falecidas.

    Pela tarde, as irms se confessam na sede da Irmandade; j noite, dirigem-se

    com velas sobre pedestal Capela de Nossa Senhora DAjuda, onde rezam e

    incensam o ambiente em torno da imagem de Nossa Senhora morta. Vestidas

    de branco, saem em procisso carregando a imagem postada sobre um andor

    rumo Igreja Matriz Igreja Nossa Senhora do Rosrio , parando apenas na

    Casa Estrela, quando a santa vira-se, tanto para esta casa quanto para a da sua

    frente, n 58 da Rua da Matriz, onde residia D. Zuleika Machado, Juza Perptua

    e responsvel pelos pertences da Irmandade at 1985 94, demonstrando quo

    importantes so aqueles locais, enquanto sagrados.

    Na igreja, colocam a imagem de Nossa Senhora da Boa Morte na frente do altar

    e louvam a Maria com cnticos entoados, tambm, durante a procisso: [...]

    5958

    93 Depoimento da Irm Joselita Sampaio Alves, outubro/2009.94 Em 1985, D. Zuleika Machado colocou o cargo disposio.

    92 Conforme depoimento das irms, a criana escolhida pela irm, passava a manipular suas roupas e jias, alm dearrumar sua madrinha no ms da festa.

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    com a sua proteo Senhora da Boa Morte [...] r ogai por ns, rogai por ns que

    recorremos a vs. Essa missa para as irms falecidas, momento que lembram

    seus nomes, louvando suas memrias. Algumas das irms dizem, inclusive, sen-

    tir a presena espiritual daquelas que j passaram pela Irmandade. Nascimento

    conseguiu reunir nomes, muitos deles indicados por Gaiaku Luiza, de algumas

    antigas irms:

    Stira (na dcada de 1970 residia na rua Comendador Albino. Era cega),Maria Caroxa, Juliana Brech, (irm de Z de Brech, falecida em 1940com 100 anos de idade), Eudxia Machado (tia de Mestre Machado, residiana Rua da Matriz, era de So Gonalo), Maria Nenen (iyalorix, residia naRua do Carmo), Sinh Abalha (iyalorix da Roa de Ventura), Apolinria,

    Damiana, Maria gda da Conceio (iyalorix, residia na rua do Sabo,madrinha de Gaiaku Lusa), Zina, Constncia Grande, Elmira Zoio, Ma-ria do Carmo, Maria Mlton, Mariana, Epifnia Motta (iyalorix, residiano Curiachito, parenta de Maria Motta, me de Z de Brech), VicnciaXod (av de Dalva Xod do samba de roda Suerdieck), Biz (residiano Monte), Mitina, Maria Moreira, Jlia Amlcar, Flora, Isadora, Rosalina,Laudelina, Maria Amlia, Mida do Fato (me de Ioi da venda), Fran-cisca, Edwirgens (Gamo de Oxum da Roa de Ventura, residi a na casavizinha Casa Estrela), Francelina, Justiniana, Caetana, Santinha (lha de Julia Gomes, fundadora da Boa Morte), Tutuzinha (irm de Santinha),Ambrosina, Maria Adeodata de Jesus (residia na Praa do Remdio, naantiga residncia da famlia de Z de Brech). 95

    No dia do enterro simblico, 14 de agosto, com a imagem de Nossa Senhora

    da Boa Morte j na igreja, as irms saem da sede da Irmandade em procisso

    noturna, carregando velas e vestidas com a farda/beca: saia preta plissada, blusa

    branca de richelieu, bioco cobrindo a cabea e o colo (caracterstica mulumana),

    leno branco na cintura e uma chinela branca, exceto as irms de bolsa, que

    se vestem todos os dias festivos, de branco. Os cnticos proferidos durante opercurso fazem meno dormio de Maria: No cu, no cu, no cu com a

    me estarei [...]. Ao chegarem igreja as irms se encontram com a santa morta,

    tiram o vu que cobre seu rosto e colocam ores nos seus brancos, acariciando-

    a; seus atos expressam tristeza.

    Durante a missa, as irms se posicionam diante da Virgem como se pedissem sua

    intercesso, cantando: Maria me de Deus... rogai por ns, Rainha imaculada...

    rogai por ns [...]; a homilia enfatiza a sua morte. A cerimnia festiva termina

    com as irms em volta da imagem, incensada pelo padre, e com a procisso de

    Nossa Senhora da Boa Morte acompanhada por larmnica local, que percorre

    as principais ruas da cidade para, depois, recolher-se na capela de Nossa Senhora

    DAjuda. Nesse dia, assim como no primeiro, as irms esto de sentimento e

    portam-se em procisso tal como num velrio.

    O terceiro dia festivo o mais esperado, 15 de agosto, dia de Nossa Senhora da

    Glria. A procisso sai pela manh da sede da Irmandade, seguida por larmni-

    ca local. Levando nas mos ores, as irms, tambm, carregam o andor de Nossa

    Senhora da Glria, auxiliadas por alguns homens. Na igreja Matriz, o ambiente, anteriormente, incensado pelo padre. Uma pomba branca solta no momento

    da paz, expressando a esperana da vida porque, para as irms, Maria teve uma

    boa morte, j que dormiu e acordou na glria: Por isso o nome de Boa Morte

    [...] quando ela adormeceu os anjos levou ela assunta ao cu. 96

    Na sada da procisso, as irms, emocionadas, jogam ores sobre a imagem de

    Nossa Senhora que logo louvada com palmas pelos is. Nesse dia, a procisso

    mais longa, com muitas vivas a Maria, seguindo o seguinte roteiro: Casa Es-

    trela, feira, pavilho da Universidade Federal do Recncavo Baiano - UFRB, en-

    trada da Ponte D. Pedro II, capela da sede da Irmandade (onde deixam a santa),

    seguindo, novamente, para a Igreja Matriz, onde acontece a transferncia dos

    cargos, com posse da nova comisso de festa.

    As irms comemoram a Assuno de Nossa Senhora adornadas com correntes

    e colares que lembram a faustosa pompa das antigas negras do partido alto.

    Vestidas com a farda/beca, s que com o pano da costa do lado vermelho (traje

    de gala), exprimem a alegria que sentem com a elevao de Nossa Senhora aos

    cus e com a liberdade da escravido. As irms dizem que os escravos pediam

    proteo e uma morte tranqila, sem martrio, a Nossa Senhora da Boa Morte.

    Logo, alforriadas e livres das agruras da escravido, comemoraram o dia de Nos-

    sa Senhora da Glria com comidas e danas na sede da Irmandade.

    6160

    95 http://cacaunascimento.blogspot.com/, postado em: 01/08/2009, Filhas, netas e sobrinhas substitutas das irmsfundadoras da irmandade da boa morte; CARVALHO, Op. Cit., 2006, p.71.

    96 Depoimento da Irm Maria da Glria dos Santos.

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    grupos musicais. As irms se limitam a sambar nesse espao por apenas alguns

    minutos, no nal da tarde. Ali, pessoas embriagadas invadem a roda formada

    pelas irms. Nos dois dias seguintes, o samba-de-roda, tambm acontece, mas

    a presena das irms restringe-se a cumprir a tradio em memria dos ances-

    trais, no mais vivendo aquele momento enquanto protagonistas.

    No dia 16 de agosto, serve-se um cozido farto de verduras, tambm, realizado pela

    comisso do ano. A comisso do prximo ano arca com o mugunz e caruru ofe-

    recidos aos presentes no dia seguinte, 17 de agosto. A diviso de responsabilidade

    sobre as comidas entre as comisses de festa marca o incio da posse daquelas que

    passam, a partir dessa data, a ocupar seus legtimos cargos. O ato de dar comida

    equivale, para as irms, abundncia e prosperidade. Nesse sentido, tornou-se cos-tume levar comida aos presos locais, pelo menos, em um dos dias festivos, j que a

    oferta traz a bonana. No passado, talvez, na poca da Casa Estrela, outras comi-

    das, tambm eram servidas, como bacalhau, sarapatel, manioba, assado de porco

    e peru, juntamente as que, tradicionalmente, se mantm.

    Signifcados da vida e morte: Morte que representa a vida

    A Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte de Cachoeira est intrinseca-

    mente ligada Vida e Morte. Seus smbolos, roupas, comidas e rituais fazem

    meno a essa passagem espiritual do Aiy ao Orum. O braso que representa

    a Irmandade carrega algumas criptograas nesse sentido, divide esses dois pla-

    nos, espiritual e terrestre. Pode-se observar Nossa Senhora viva e, logo abaixo,

    uma Nossa Senhora deitada, representando Nossa Senhora morta. Dentro da

    cosmogonia africana essa imagstica poderia ser interpretada como sendo o ciclo

    da vida. 101

    O vodum Bessem, ou o orix Oxumar, representa essa continuidade, por isso,

    simbolicamente, uma serpente. O cajado aparece como smbolo de poder

    numa cena crist e outra africana, primeiro na mo do profeta israelita Moiss,

    que jogado no cho se transformou numa serpente e, depois, na mo de Obatal

    que, ao bat-lo no cho, provocou uma rachadura separando, assim, cu e terra.

    Essa mesma representao foi amplamente difundida pelos bispos e arcebispos

    da Igreja Catlica, mas, tambm, entre sacerdotes africanos e pastores para unir

    seu rebanho. A divindade Nan, Senhora do portal da vida e da morte, tambm,

    carrega um ibiri fsico e religiosamente semelhante. Oxal, marido de Nan, tam-

    bm leva um opaxor; segundo mitologia africana, este foi dado pela esposa,

    que o designou a determinar o m de todo e qualquer ser, batendo o cajado trs

    vezes no cho. Oxal representa o equilbrio, a paz, porque ele o princpio da

    morte e do descanso. nesse sentido que o basto da Irmandade guarda seus

    mistrios ritualsticos.

    O branco da roupa vestido no dia em reverncia s irms falecidas deve-se ao

    luto, j que na religio afro-brasileira encara-se a morte com naturalidade, haja

    vista que, atravs da intercesso do Pai e da Me alcana-se uma morte pacca,

    ou seja, uma boa morte. Entretanto, a encenao pblica desse momento, na

    Boa Morte, mostra-se trgica, visto as formas barrocas coloniais de se festejar a

    morte. A Irmandade, todavia, se resguarda quando se trata de cumprir os rituais

    internos, justamente, por ser o segredo um preceito sagrado.

    Nan me e Obalua, seu lho, o Senhor da terra e tambm regente da sade,

    aquele que cuida do corpo, mas tambm conduz o esprito do morto junto com

    Oxal para o Aiy. Seria ele o dono da casa da Irmandade e ela a prpria represen-

    tao de Nossa Senhora da Boa Morte, a santinha. A pipoca, sempre presente

    na sede da Irmandade, inclusive na ceia branca, em louvor a Obalua, assim

    como o mugunz em louvor a Oxal. Talvez no seja por coincidncia que o

    dia 16 de agosto, dia de So Roque, protetor dos enfermos e que, tambm, car-

    rega um cajado, seja dia festivo na Boa Morte. A irm que quiser pode, nesse dia,

    distribuir pes e pipocas e realizar novena para o santo, na sede da Irmandade.

    Aps o ltimo dia festivo, as irms entregam s guas, em forma de presente,

    ores perfumadas, renovando, assim, compromisso com a continuidade da vida.

    Esses so os sinais diacrticos da Irmandade da Boa Morte. Neg-los represen-

    taria desconhecimento da sua trajetria enquanto instituio religiosa secularizada

    espacialmente. Mais do que uma Irmandade, com todas suas peculiares funes,

    ela representa a resistncia da mulher negra no Brasil.

    101 PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. As irms so todas iniciadasno candombl, muitas ocupam, inclusive, cargos nessa religio, sendo consagradas aos orixs ligados vida ou morte, tal como Nan, Iemanj, Oxumar, Oxum, Ogum, Oxal, Obalua. Agradeo os esclarecimentos e aspontuaes do historiador Luis Cludio Nascimento; bem como o acompanhamento e a orientao daantroploga Nvea Alves dos Santos que foram fundamentais para realizao da pesquisa.

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    Agregada a essa histria religiosa, crescente um fascnio turstico, miditico,

    que busca e valoriza a recuperao de memrias tnicas dos povos africanos,

    atravs de verdadeiras romarias, nacionais e internacionais para, principalmente,

    fortalecer uma compreenso esttica da Boa Morte.

    Nessa construo do imaginrio da Boa Morte podem-se recuperar temas im-

    portantes para o melhor conhecer esta tradio religiosa da Bahia. Quero, ento,

    destacar na indumentria chamada de beca, ou baiana de beca, o uso do

    bioco como pano de cabea, com forma, funo social e de gnero, igual a do xa-

    dor, o que revela uma presena afro-islmica to dominante na compreenso do

    sagrado afro-descendente, como dos povos da frica ocidental, notadamente,

    os do Golfo do Benin.

    Nesse imaginrio, partilhado publicamente pelas Irms da Boa Morte, e que

    prepara para a Glria de Nossa Senhora, rearma-se que o conceito de morte

    crist ampliado pelo conceito de ancestralidade de matriz africana com os

    Egunguns, Ogboni, Gueled, entre outros.

    Para realizar e manifestar essas liturgias to longas, subjetivas e que integram o for-

    malismo catlico s prticas do candombl, esto em destaque as comidas rituais

    que chegam principalmente para simbolizar e, depois, para serem comidas.

    No ritual coletivo chamado Ceia Branca, feito a base de peixe, po, saladas,

    eb, e principalmente doboru pipoca , o momento que se evoca Mawu, o

    mesmo que Nan; e tambm se evoca os gmeos Sapat para partilhar e integrar

    esse ritual ancestral e de puricao. Ento, os doborus so jogados no ambi-

    ente e sobre as pessoas, repetindo-se assim os rituais prprios para a chegada de

    Sapat aos terreiros de candombl, o que lembra o Olubaj grande ritual co-

    letivo que celebra a colheita de tudo o que a terra pode oferecer para o homem.

    Certamente, inseparvel essa compreenso dominante da fertilidade nos rituais da

    Boa Morte, cujo princpio o da vida permanente seja na Glria de Nossa Senhora

    ou na capacidade da vida de Mawu ou Nan. H, tambm, a compreenso plural de

    que Dad Segb pode ser entendida como a grande me-pai. O mesmo se d com

    Liss ou Oxal na sua compreenso como Oxaluf, genitor da terra e dos homens.

    Sabiamente, as Irms da Boa Morte unem Mawu a Lissa, ou Nan a Oxal.

    Assim, so consagrados e notrios os festejos da clebre igreja de Nosso Senhor

    do Bonm, na cidade do So Salvador, localizada na colina sagrada, lembrana

    ancestral do monte Ok, morada mtica do orix Oxal.

    Por isso, anualmente, a cerimnia da Lavagem renova e traz uma fruio de

    fertilidade, idealmente realizada no culto religioso pela maioria das senhoras que

    usam, impecavelmente, seus trajes brancos.

    Embora a turistizao faa dessa cerimnia pblica mais um selo turstico

    de consumo imediato.

    Sem dvida, as Irms da Boa Morte tm seus territrios simblicos muito am-

    pliados em relao ao territrio da Cachoeira e das cidades prximas. Festas de

    Largo, da Conceio, de Santa Luzia, do Bonm, e a mais recente de todas que

    a de Santa Brbara, fazem parte tambm dessa ampla memria da Boa Morte.

    Ento, para conhecer verdadeiramente esse complexo social e religioso que a

    Irmandade da Boa Morte foi necessrio um mergulho profundo nos terreiros de

    candombl e, principalmente, compartilhar da intimidade das irms.

    Contudo, o sentimento dominante diante dessa Irmandade, que uma continui-

    dade do que se entende por f plural do Recncavo, une-se a minha misso de

    pesquisa permanente de campo, vocacionadamente etnogrca.

    Para interpretar e ampliar essas leituras antropolgicas, que para mim tm um

    comprometimento tico e moral preciso viver Cachoeira, se permitindo tam-

    bm um sentimento de afetividade e de alguns xtases religiosos.

    Fundamental conhecer as irms enquanto mulheres-lhas de orixs e voduns,

    conhecedoras das receitas tradicionais da boa cozinha baiana, verdadeiros patrimnios

    vivos da histria social da Bahia.

    Posso trazer memrias pessoais, quando, em 1978, pude estar reunido com as

    Irms da Boa Morte na Igreja Matriz do Rosrio para poder contribuir com

    aes qualitativas, quando poca desempenhei a coordenao de projetos es-

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    peciais na FUNARTE. A, pude, ento, me encharcar de dend, de at, de obi,

    de orob, de efun; e de muitas, muitas conversas.

    As Irms nas suas compreenses de uma temporalidade cultural peculiar mis-

    turavam os orixs, os voduns e os caboclos, dessa herica terra cahoeirana aos

    santos da Igreja, s sereias, s serpentes sagradas que do movimento ao mundo

    e a terra, com as receitas de manioba, de moqueca de folha, de pititinga, de licor

    de jenipapo; de bolo de milho, de lel de milho, e ao farto tabuleiro onde impera

    o acaraj. Pois, tudo ui e reui.

    Ainda, o presente s guas, o cortejo do caboclo, as obrigaes pblicas de

    Omolu momento em que o orix visita as ruas e as casas; e, no samba de rodapra valer que mostra a nobreza dessas mulheres do partido alto.

    A primeira emoo que tive em Cachoeira, no ano de 1978, permanece atualiza-

    da na afetividade e no respeito quelas senhoras conhecedoras dos fundamentos

    dos orixs e dos voduns, e tambm da sua sabedoria de como elas dialogam com

    os santos da Igreja, seja no culto comum, na louvao cotidiana ou no tempo

    das festas do povo do ax, que tem como tema primordial a vida, ou a vida relida

    pela morte, mas sempre a vitoriosa vida.

    Leituras; pesquisas em jornais e livros; conversas com historiadores, com lideran-

    as do candombl e, especialmente, com as Irms; zeram com que escrevesse,

    em 1981, o primeiro livro dedicado, e exclusivo, Irmandade da Boa Morte

    Devoo e Culto a Nossa Senhora da Boa Morte. Pesquisa scio-religiosa.

    Editora Altiva. Rio de Janeiro.

    Esse livro foi uma homenagem, com dedicatria na folha de rosto para a Ir m

    Estelita, juza perptua da Irmandade da Boa Morte. O copyright eu presenteei

    para a Irmandade como preito e homenagem para essas senhoras guardis do

    culto de Nan, e na sua extenso ao culto de Maria.

    Outra emoo vivida na cidade da Cachoeira foi o convite para participar da

    Irmandade do Bom Jesus da Pacincia, como tambm ter conhecido pessoas to

    generosas e que esto agora no Orun como Augusto Rgis e Nini.

    A Irmandade da Boa Morte como a grande serpente D, que se movimenta

    para dar dinmica s coisas do mundo. Essa serpente foi morar nas guas, e

    Mawu ofereceu-lhe Hu o mar. Quando D quer olhar o sol, que Liss, apre-

    senta-se como o arco-ris, unindo assim os princpios da vida e o da morte de

    Dad Segb.

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    tinha recebido uma graa. Esse ano teve uma senhora que diz ter sido curada

    de um cncer. Tudo so momentos que as pessoas contam, que se emociona e

    acredita que ainda existe muita coisa acima desse mundo, que est to violento,

    to cheio de coisas e que ainda tem gente com f, que consegue ainda um grande

    milagre.

    Sede:

    [...] ns no tnhamos ainda este prdio, ento as missas eram realizadas na

    Igreja e alugava uma casa para fazer a festa profana, o samba. Ento chegou

    um determinado tempo que ele (Padre Hlio) no quis devolver Nossa Sen-

    hora, ento quando as irms foraram, ele devolveu uma parte e no devolveu

    a outra, a parte dos ouros.As irms era que fazia tudo, fazia a festa, alugavacasa, com o dinheiro do trabalho delas, faziam a comida em panela de barro e

    fogo de lenha, depois dessa reforma da Bahiatursa foi que deu esse status, que

    vem muita gente de fora.

    Fomao:

    [...] como escravos eles no podiam frequentar a Igreja, ento eles zeram uma

    promessa pra Nossa Senhora da Boa Morte que desse boa morte, boa morte

    por qu? Porque os irmos eram aoitados e jogados nas valas sem um enterro

    decente, digno, ento eles pediam que Nossa Senhora ajudasse, desse uma boa

    morte e pelo menos um enterro digno e a pegaram ela como madrinha. Fizeram

    aquela Igreja da Barroquinha, e diz que no fundo da Igreja eles cultuavam os

    orixs. O tempo foi passando, a veio o General Madeira de Melo na poca da

    independncia, que no gostava desse ritual a expulsaram elas de Salvador e vi-

    eram para Cachoeira. A maioria se espalhou por Belm, Santo Amaro, esse lado

    todo, mas a que vingou mesmo foi aqui em Cachoeira.

    liao com eeio de candomb:

    Sou ligada ao Terreiro Il Iy Bonan, no Rio de Janeiro, de nao angola, sou Equede

    de Omolu, Iyabassu a minha dijina, e sou de Nan, a me que protege o lho.

    Imandade do rosio dos Peos de Savado:

    Eles vinham apenas no dia da Glria, eram os convidados sim, ajudavam car-

    regar a santa, participava na missa, mas ai no vieram mais.

    Esmoa ea:

    Desde o incio elas vendiam comida e tambm pediam dinheiro, vendiam obje-

    tos para comprar as cartas de alforria, hoje a gente pede para fazer a festa. Anti-

    gamente, todo dinheiro arrecadado contava e dava para a provedora.

    Missa das ims faecidas:

    Sempre teve no dia 13 e 14, porque a gente celebra a morte de Maria, pois se-

    gundo a Bblia ela adormece e a gente aproveita para celebrar as irms falecidas.

    Tem irms que dizem que sente a presena das irms na missa, tem gente at que

    v. A gente sente que elas esto ali para participar.

    Ceia banca: como se fosse um jejum para a preparao da festa. Por isso s come peixe,

    comida leve, por isso se faz aquela mesa, as irms se vestem de branco, com

    vinho, po.

    Dia 13 o dia que Nossa Senhora falece ou a dormio, dia 14 o enterro, e dia

    15 a Assuno de Nossa Senhora.

    Indmenia:

    A preta signica o luto e o pano (bioco) em referncia aos mulumanos que vi-

    eram do lado de l. Tudo que ns vestimos hoje vem do tempo das fundadoras.

    Signica a representao de um pouquinho de cada povo que veio. Cada nao

    de cada povo. No dia da glria se usa a farda, uma saia preta, com a camisa de

    rechilieau, com a beca. O lado preto signica o luto e o vermelho a Glria de

    Nossa Senhora, o sangue, o corao, a alegria.

    Adeeos:

    Os elos nos correntes de ouro, de prata ou bronze, signicam o dinheiro da

    luva, de troca. Cada escravo a depender da nao dele, era trocado por um elo,

    a depender do preo que o senhor pedia. A depender do preo se trocava por

    prata, por ouro ou bronze. Por isso no se deixa a Nossa Senhora exposta muito