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RUI PETRY DA GEMEINDE À COMUNIDADE : uma análise das mudanças de paradigma geradas pelas crises dos anos 30 e 40, entre os imigrantes alemães luteranos e seus descendentes em Curitiba. Monografia Final do Curso de História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Federal do Paraná. Orientador: Prof. Sérgio Odilon Nadalin CURITIBA 2002

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RUI PETRY

DA GEMEINDE À COMUNIDADE : uma análise das mudanças de

paradigma geradas pelas crises dos anos 30 e 40, entre os imigrantes alemães

luteranos e seus descendentes em Curitiba.

Monografia Final do Curso de História,

Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, da

Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Sérgio Odilon Nadalin

CURITIBA

2002

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Dedico este trabalho a minha esposa Jaqueline,

e aos filhos Mateus Vinícius e Débora Melissa,

pelo estímulo e alegria e afetividade que

encontro na estabilidade de nossa vida familiar.

Também, em especial, à Comunidade

Evangélica Luterana de Curitiba, por todo

apoio recebido.

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SUMÁRIO 1 APRESENTAÇÃO.........................................................................................................1

2 UM ELEMENTO ESTRANHO E DIFERENTE: O ALEMÃO................................5

2.1 OS IMIGRANTES NA TRANSIÇÃO ENTRE O IMPÉRIO E A REPÚBLICA......11

2.2 O IMIGRANTE NA VISÃO DOS BRASILEIROS...................................................13

3 O NOVO SÉCULO: HORA DE SE TORNAR BRASILEIRO................................17

4 BRASILIANISMO X PANGERMANISMO..............................................................23

4.1 A CONSTRUÇÃO DO BRASILEIRO NO CONFRONTO COM O IMIGRANTE 23

4.2 O PANGERMANISMO NA PROPAGAÇÃO DO DEUTSCHTUM.........................29

4.3 A GEMEINDE E O DEUTSCHTUM EM CURITIBA...............................................38

4.4 AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO DA IMIGRAÇÃO (1829-1929)........45

5 O IMIGRANTE ENTRE O NACIONALISMO BRASILEIRO E O

NACIONAL-SOCIALISMO ALEMÃO...................................................................47

6 A COMUNIDADE NO TURBILHÃO DA CRISE....................................................52

7 CONCLUSÃO...............................................................................................................59

8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................63

9 NOTAS SOBRE O USO DAS FONTES ....................................................................66

9.1 ENTREVISTAS ..........................................................................................................66

9.1.1 LISTA DE PESSOAS ENTREVISTADAS ............................................................67

9.1.2 TRANSCRIÇÃO DOS TRECHOS MAIS RELEVANTES ...................................67

9.2 REGISTROS DOS LIVROS DE ATAS DA COMUNIDADE .................................82

9.2.1 COMUNIDADE LUTHÉRICA (CHRISTUSKIRCHE)..........................................83

9.2.2 COMUNA EVANGÉLICA .....................................................................................84

9.3 RELATÓRIOS DOS PRESIDENTES DE PROVÍNCIA...........................................88

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1. APRESENTAÇÃO

08 a 10 de Novembro de 1935: estes foram dias marcantes para a vida da

Comunidade Evangélica Alemã, em Curitiba. Nesta data, foram comemorados os 75 anos

da realização dos primeiros cultos evangélicos na cidade. A Deutsche Evangelische

Gemeinde (Comunidade Evangélica Alemã), como era chamada entre os teutos, estava em

festa. Como era típico no seio das associações alemãs de qualquer natureza, naquela

programação também não podiam estar ausentes os corais, de voz e de metais, além do

teatro, dos jogos e da boa comida. Na tarde do Domingo, dia 10, o ponto alto da festa teve

lugar no salão principal da “Handwerker-Unterstützungsverein” – A Sociedade de Auxílio

ao Trabalhador (posteriormente chamada de Sociedade Operária), no Alto São Francisco.

Para este momento em especial, toda a população curitibana estava convidada.

Toda, em termos, pois o convite para a festa, encontrado em um livreto produzido

especialmente para este fim, foi feito em língua alemã! Constam dele dados interesses sobre

os primórdios da Comunidade, que passou a ser efetivamente estruturada em 1862, quando

vinte famílias se uniram para bancar a vinda periódica do Pastor Johann Friedrich Gärtner.

Este era pastor da Comunidade de Joinville e, provavelmente, já devia conhecer famílias

que haviam se deslocado para Curitiba, num movimento de remigração que se tornava cada

vez mais intenso e contínuo. O Pr. Gärtner, bem de acordo com o espírito evangélico, não

poderia abandonar aquelas famílias sem nenhum tipo de assistência espiritual. Assim, ele ia

à Curitiba, a fim de oficiar cultos e celebrações, como batismos e casamentos. Na verdade,

o pastor Gärtner já vinha fazendo este atendimento, desde 1860, quando realizou o primeiro

batismo de uma família protestante em Curitiba. A celebração dos 75 anos de cultos

justamente remonta a esta data: novembro de 1860.

Os protestantes eram uma novidade por aqui, numa sociedade oficial e

absolutamente católica, que até a chegada dos imigrantes europeus, havia tido um mínimo

contato com a presença de pessoas não-católicas. Além disto, três coisas chamam a nossa

atenção no folheto de anúncio daquelas festividades: a primeira é a de que o referido, como

já mencionado, está escrito em língua alemã. A segunda é a temática da festa popular na

tarde do Domingo: “Festa de fundação de igreja na praça de uma cidade alemã”. E a

terceira e mais intrigante, é a presença da suástica, ao lado dos símbolos da Santa Ceia do

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Senhor! Estes três elementos parecem ser bastante reveladores acerca da compreensão

étnica, cultural e religiosa, e do grau de assimilação com a cultura local.

Estamos no ano de 1935, no meio de uma década de grande ebulição no Brasil e no

mundo. Na Europa recrudescem as tensões e, com a ascensão de Hitler ao poder, ganham

vulto os fantasmas dos conflitos mal-resolvidos da Grande Guerra. Os jornais da época,

mesmo no Brasil, regularmente trazem notícias acerca destas tensões, provocadas pelo

ressurgimento destas duas grandes forças: a Alemanha e a Itália, comandadas por Hitler e

Mussolini. Por aqui, o governo de Getúlio também vai assumindo uma veia ditatorial,

sendo pública a sua simpatia pelo Führer alemão, e pelo modelo político-econômico

implantado na Alemanha.

Quem eram estes alemães e descendentes que, aqui em Curitiba, se encantaram com

a Nova Alemanha, do outro lado do Atlântico, a ponto de usarem a suástica nazista num

convite para uma festa popular religiosa? Sua presença efetiva na cidade remonta à década

de 50, do século XIX. O primeiro momento significativo, que marca a presença de um

grupo identificado, e não mais apenas de indivíduos esparsos, se dá a 20 de Agosto de

1857. Curiosamente isto se deu devido ao falecimento de Johann Friedrich Prohmann. Ele

era protestante, e por não ser da religião oficial, seu corpo não foi aceito para ser sepultado

no Cemitério Municipal. Indignados com a situação, e no afã de dar um enterro digno e

civilizado aos seus familiares, os protestantes uniram forças e pleitearem um lugar para

enterrarem os seus mortos. A Câmara Municipal, então, doou um terreno, “além do Alto da

Glória”, onde o Sr. Prohmann pode ser sepultado com dignidade, sendo seu corpo o

primeiro a ocupar aquele lugar.1 Este incidente, de certa forma, nos serve para datar a

percepção das autoridades e do povo local, de que há uma presença nova e diferente em seu

meio: a do imigrante europeu. No caso específico dos imigrantes alemães, não só era uma

presença cultural e étnica nova, como também, uma presença religiosa nova, já que a

maioria deles era formada por protestantes.2 É claro que havia uma diversidade cultural e

étnica também entre aqueles que para cá vieram, mesmo entre os chamados alemães. A

Alemanha unificada só veio a existir em 1870. Além disto, todos os de origem suíça,

1 BOLETIM do Archivo Municipal de Curitiba. Atas das sessões da Câmara. Curitiba, 60, 1932, p. 76. 2 Dependendo da região de procedência, havia uma predominância de católicos ou de protestantes entre os imigrantes alemães. Porém, de um modo geral, o número de protestantes se manteve com ligeira predominância sobre o de católicos que imigraram ao Brasil.

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austríaca e de algumas regiões tchecas e eslavas, aqui eram rotulados e se agrupavam sob a

chancela de “alemães”. A língua, a religião, os costumes e as tradições culturais,

certamente foram os fatores centrais que mais contribuíram para este amálgama aqui

observado.

Para compreendermos um pouco melhor toda a variedade e a complexidade dos

contatos culturais entre os diversos grupos de pessoas que para cá concorreram, e

entendermos como a sociedade receptora os percebia e como estes se viam diante daquela,

é que escolhemos a Deutsche Evangelische Gemeinde, a partir de um recorte que enfoca a

década de 35 a 45, onde certamente ela enfrentou a maior crise com a sociedade receptora.

Esta crise passa não só pelo rompimento de relações com a sociedade emissora, devido aos

desdobramentos da Segunda Guerra Mundial, como pela sua própria autocompreensão. As

dificuldades vividas neste período mexeram profundamente com tudo aquilo que diz

respeito aos valores, aos mitos e aos sonhos que eram subjacentes a sua existência. Toda

esta situação tem a ver com a questão racial, étnica, cultural e com toda a compreensão do

sagrado.

Há três fatores de grande importância que concorreram para isto: o fim do grande

fluxo migratório, o desencadeamento de um amplo programa da nacionalização, e o

realinhamento do Brasil com os EUA, que nos levou à guerra. A declaração de guerra à

Alemanha e aos países do eixo, a proibição do uso da língua alemã e o aprisionamento de

muitas pessoas simpatizantes ou não do nazismo, é certamente o ponto alto da crise e das

mudanças que passaram a ocorrer desde então. Para dentro deste universo de crise e

mudança de paradigmas, é que nos propomos a olhar neste estudo. Para tanto, queremos,

num primeiro momento, situar e contextualizar a questão migratória no país, e os seus

reflexos para dentro da sociedade receptora. Num segundo momento, vamos olhar para

dentro da Comunidade Evangélica Alemã, como local de encontro entre o étnico, o cultural

e o sagrado, e num momento conclusivo buscaremos perceber o novo que emerge daqueles

anos de crise. A Deutsch Evangelische Gemeinde, passou a se denominar “Comuna

Evangélica de Curitiba”, e anos depois assumiu o nome que mantém até aos dias atuais:

Comunidade Evangélica Luterana de Curitiba. Terá sido esta uma mudança feita apenas por

força da lei que a obrigou a tal mudança, como ocorreu em inúmeras outras associações, ou

terá havido juntamente uma mudança de espírito, de mentalidade, uma mudança de seu

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espaço, sua compreensão, seus valores mais caros? Vamos na busca de respostas através da

pesquisa em livros, atas, documentos, jornais da época, e através das entrevistas feitas com

algumas pessoas da comunidade, que viveram aqueles acontecimentos, e acompanham a

vida da Comunidade até o presente momento.

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2. UM ELEMENTO ESTRANHO E DIFERENTE: O ALEMÃO

A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil é considerada, em seus

primórdios, como uma igreja de imigração. Diferente de outras igrejas do protestantismo

histórico, que aqui se estabeleceram a partir de projetos missionários, a preocupação dos

evangélico-luteranos era exclusivamente a de acompanhar seus adeptos que emigraram da

Europa. A idéia era a de assistir espiritualmente os alemães, que começaram a emigrar para

o Brasil já na década de 20, do séc. XIX. A imigração de europeus está intimamente ligada

ao Brasil Império. Já desde seus mais recente anos, as elites imperiais começaram a sentir a

necessidade de importar trabalhadores europeus, sustentados por idéias que já foram

estudadas à exaustão, o que não faremos mais uma vez neste trabalho. Apenas citarei as

noções mais centrais e importantes, fundamentais para a compreensão de nosso objeto de

estudo.

O Paraná, diferente de algumas outras regiões do Brasil, enquanto foi apenas uma

Comarca de São Paulo, praticamente desconheceu a prática da imigração. Na província de

São Pedro do Rio Grande do Sul, por exemplo, os imigrantes já desembarcavam desde

1824. O mesmo acontecia no Rio e em São Paulo. É verdade que, a prática imigrantista

adotada para o extremo Sul do país, diferia bastante daquela escolhida para o Sudeste. Em

São Paulo e no Rio de Janeiro, havia uma grande falta de braços servis para a lavoura. Com

o declínio do comércio escravagista, extinto em 1840, havia uma aguda falta de gente que

trabalhasse nas lavouras. Curiosamente, a falta do “trabalhador” para as lavouras no Novo

Mundo, correspondia a um excedente deste na Europa. Lá, especialmente como resultado

da revolução industrial, as sociedades experimentavam os primórdios do que viria a ser

uma das marcas da modernidade: a substituição constante e crescente do homem pela

máquina.

O destino dos que “sobravam” seria o Novo Mundo. A Europa queria exportar seus

excedentes, e as Américas desejavam a sua presença. Seu principal destino eram os EUA,

para onde emigraram mais de 5 milhões de alemães.3 O Brasil é o segundo maior país

receptor de imigrantes alemães. Eles vieram para cá, trazidos pelas elites brasileiras, com

3 Conforme tabela feita por Marschalk, 1973, in.: Magalhães, Marionilde B. de. Pangermanismo e nazismo

a trajetória alemã rumo ao Brasil. 1998. p. 20

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três propósitos fundamentais: substituir a mão-de-obra escrava nas lavouras, especialmente

as de café; colonizar áreas despovoadas, especialmente nas fronteiras do Sul do país e

possibilitar um branqueamento da raça, pois muitos entendiam que a miscigenação ocorrida

no Brasil Colônia era a maior causa do atraso verificado no país.

A Curitiba de 1853, da época em que remigram para cá os primeiros alemães,

vindos de Dona Francisca (Joinville) e alguns de Rio Negro, tinha tão somente 5.819

habitantes, e em torno de 200 habitações.4 Saint Hilaire, em sua viagem pelo Brasil,

registrou que “encontrou em Curitiba tanta gente branca como em nenhuma outra parte do

Brasil”.5 Assim, Curitiba aparentemente não se caracterizava por nenhuma das razões que

motivavam a busca por imigrantes europeus. Não haviam grandes lavouras, havia um

reduzido número de escravos,6 que não ultrapassava muito os 10% de toda a população, e

não estava em uma área limítrofe com os países do Prata, não considerando o Paraná como

um todo. Porém, depois de sua emancipação política de São Paulo, em 1853, as autoridades

locais começaram e refletir sobre a necessidade de trazer imigrantes para alavancar o

desenvolvimento da Província e da Capital paranaense. Aliás, houve séria querela naquele

tempo, pela escolha da própria capital, pois muitas pessoas entendiam que esta devia ser

Paranaguá. Curitiba era vista como um buraco lodoso e pantanoso, que nem depois de um

século seria digna de ser a capital do Paraná!7 Enquanto que Paranaguá era uma cidade

mais desenvolvida, plana, estruturada, com diversos prédios urbanos e próxima do litoral e

do porto, para Curitiba faltavam todos os recursos para ser a capital. Demétrio Acácio da

Cruz se refere no Correio Oficial com as seguintes palavras sobre a cidade escolhida para

ser a capital do Paraná:

É custoso viver num lugar constantemente lamacento ou charcoso, e nimiamente frio quase duas terças partes do ano, onde tudo cada vez mais se dificulta e encarece. Este lugar efetivamente nada promete, estéril e sem cultura, nem sequer tem comércio, exceto um pequeno mercado, ora feito com empregados civis e militares. Isolada, é hoje apenas receptáculo dos empregados civis ou militares, ou

4 Heisler, Alfredo. Apontamentos históricos e sobre a immigração allemã no Estado do Paraná (1829-1929). In: Os Allemães no Estado de Santa Catarina e no Paraná. 1929. P. 61 5 Ibid. P. 61 6 Ibid. p. 61 7 CRUZ, Demétrio Acácio da. Relatos e reflexões de um funcionário da Alfândega, sobre a necessidade

prática da Colonização do Paraná! In: Fontes acerca da Colonização do Paraná, publicado no Correio Oficial, Curitiba : 1861.

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de um ou outro especulador. É uma cidade sem significação, de presente e futuro desesperadores. Em um século, apenas pouco mais será que a Coritiba destes dias.8

Após a chegada dos 139 colonos alemães que foram instalados em Rio Negro, em

1829, não há notícias de outros grupos de imigrantes que tenham vindo ao Paraná. Somente

com a emancipação política, o corpo dirigente da Província volta a investir na vinda de

imigrantes. Para eles, o atraso da Província é muito grande, dependendo apenas de

exportação de madeira e erva-mate. A idéia é a de criar colônias de imigrantes, que

possibilitassem o desenvolvimento de núcleos de imigrantes. Assim surgem algumas

colônias com o incentivo do governo. A primeira delas, de fato, se estabelece em

Paranaguá, numa de suas ilhas, chamada Superagüi, e que é fundada e dirigida por Gentil

Perret, um suíço naturalizado brasileiro. A colônia modelo, contudo, por muito tempo, foi a

Colônia do Assunguy, criada em Cerro Azul, na direção de Castro. Ela deveria ser o

protótipo do desenvolvimento e da expansão do Paraná. Era formada por nacionais e

estrangeiros de diversas origens.9 Porém, diversos erros de estratégia e de percepções de

ordem prática e econômica, fizeram com que ela não desse o retorno pretendido. É certo

que ela cresceu, mas não se desenvolveu como o esperado, especialmente pela falta de

comunicação, e de estradas transitáveis para o escoamento de seus produtos. Fato é que

havia um discurso, e até um corpo de leis preparadas para receber os imigrantes, como a

Lei n. 601, de 18 de Setembro de 1850, chamada de Lei de Terras, que tratava de uma nova

prática agrária a ser desenvolvida no país, a partir de então. Mas, na prática, pouco ou quase

nada acontecia. Faltavam os recursos e as condições de financiamento. Citem-se palavras

do Presidente José Francisco Cardoso, em relatório dos anos 60: “urge a adoção de medidas

tendentes ao suprimento de operários e cultivadores úteis... a imigração estrangeira é a

esperança que resta contra a decadência agrícola, causada pelo fim do tráfico de escravos.10

O referido presidente relata ainda que: “este é o assunto que mais tem prendido a atenção

pública”11

8 Ibid. Correio Oficial. Curitiba : 1861 9 O assunto Colônia do Assunguy está presente em praticamente todos os relatórios de Presidentes de província, nas primeiros vinte anos da Província (1853-1873). 10 Relatório do Presidente de Província do Pr, José Francisco Cardoso, 1861. 11 Ibid.

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Voltando ao discurso de Demétrio Fernandes da Cruz, publicado no mesmo ano de

1861, podemos verificar a defesa das mesmas teses:

Carecemos de agricultores inteligentes que, amestrados pela experiência prática, e por conseguinte onde mais adiantadas estão as descobertas científicas, e de seu mister, possam com segurança e quase infalibilidade cultivar determinadas espécies... Sendo a velha Europa a parte do mundo onde mais tem penetrado a civilização e mais aperfeiçoados os instrumentos aratórios, vamos... aí buscar os agricultores.12

Ele também registra a proposta de ocupação e desenvolvimento agrário que

efetivamente traria os resultados desejados, mas que ninguém ousara ou tivera as condições

de implementar até então:

- Escolha de terrenos nas proximidades de centros populosos; - Derrubada do mato e destocamento do mesmo; - Demarcação exata dos prazos; - Edificação de casas adequadas, e com todas as condições higiênicas para receber, para cada prazo, uma família; - Entrega, a cada chefe de família de colono, da escritura de posse de sua propriedade e de um título descritivo da mesma, com a necessária junção da planta; - Boas estradas de rodagem para o lugar designado para a colônia; -Criar armazéns de provisões de boca, para supri-los por um tempo indeterminado;13

Os governantes paranaenses criaram, desde então, um discurso que idealizava o

Paraná como o melhor lugar do país para o assentamento dos imigrantes europeus. A idéia

de “vender” o Brasil como a terra da promissão sempre esteve no discurso das autoridades

do país. Um lugar abençoado, com tudo o que se precisa para viver bem e enriquecer.

Terras disponíveis e férteis, clima favorável (pelo menos no Sul), povo pacífico e tudo o

mais que alguém com o menor espírito empreendedor precise para encontrar a felicidade e

a riqueza.

O Paraná também sempre foi descrito desta forma pelas suas autoridades. Mais do

que isto, é recorrente nos relatórios presidenciais que o Paraná é o melhor lugar do país, o

qual oferece as melhores condições para servir de receptáculo à colonização européia. Seu

clima frio é parecido com o europeu, seus rios navegáveis, suas terras férteis e a escassa

12 Correio Oficial do Paraná, 1861, itens III e IV. 13 Ibid. item V.

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população formaram o ideário pelo qual os administradores locais entendiam que mereciam

lugar de destaque central e a particular atenção do governo imperial.

Que outro lugar do país poderia ser mais propício para o estabelecimento dos

imigrantes, que o Paraná? Recorridas vezes se fala da uma terra abençoada e idílica. O

clima é exaltado como o mais propício do país para a adaptação dos colonos europeus. Seus

abundantes rios e suas terras férteis não encontrariam similar na nação. “Se há província

que deverá obter resultados vantajosos...” diz o presidente Antônio Luiz Affonso de

Carvalho, “esta é a nossa, não só pelas suas riquezas naturais, e sua situação topográfica,

como pelo crédito que vai adquirindo entre os alemães, pelo bem-estar dos colonos aqui

estabelecidos”.14 Este bem-estar dos colonos aqui referidos certamente não é o daqueles

que tinham se integrado ao sistema colonial oficial, mas daqueles que vieram

espontaneamente, conseguiram emprego na capital ou em seus arredores, e ali se

estabeleceram, seja como agricultores, ferreiros, marceneiros ou de outra forma. Nos

primórdios, havia muitas dificuldades. Emprego só para a abertura de valetas em função da

demarcação de terras. Chegou a existir até uma organização, uma espécie de sindicato dos

fazedores de valas, de tantos que eram os imigrantes que trabalhavam na abertura de valetas

demarcatórias de propriedades.15 Parece que somente a partir desta experiência não-oficial

ou, pelo menos, que não havia sido programada e planejada, é que o fluxo migratório é

realmente incrementado. Mesmo que o discurso sempre fosse o de que não podia haver

melhor lugar do que o Paraná para o estabelecimento dos imigrantes, na prática isto não

acontecia, até o início dos anos 70.

Foi com os presidentes Lamenha Lins e Agostinho Ermelino de Leão que o fluxo de

remigração e de imigração para Curitiba finalmente vingou. Isto porque finalmente as

autoridades perceberam que o caminho não era o de colocar os colonos em locais isolados e

de difícil acesso, mas que o desenvolvimento vinha do entorno dos centros mais populosos.

Assim, os arredores de Curitiba foram aos poucos tomados por uma população de origem

européia. Suas chácaras floresciam e sua arte de lidar com a terra trouxe um novo impulso

econômico para a cidade. Este fato também atraiu muitos imigrantes de outras origens para

cá nas últimas três décadas do XIX, sendo que os imigrantes de origem germânica

14 Ibid., p. 43. 15 STROBEL, Gustav Hermann. Relatos de um pioneiro da imigração alemã, p. 75

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deixaram de ser maioria, perdendo esta posição para os de origem italiana, e mais tarde,

para os de origem polonesa e ucraína.

O florescimento econômico trouxe muitas mudanças. Ele veio aliado a um novo

conceito de trabalho, que estava estreitamente ligado à toda esta reflexão acerca da

colonização. Porém, mais do que isso estava ligado ao pensamento progressista e a

mudança do conceito de trabalho, que tem suas raízes no pensamento protestante, no

Iluminismo e na Revolução Industrial, ou seja, nas mudanças tecnológicas e mercantis por

ela implementadas. O fim do trabalho escravo requeria que se buscassem pessoas com uma

nova mentalidade: a de valorização do trabalho braçal. Pessoas que vissem o trabalho livre

e braçal como algo digno e honroso.

Isto porque o trabalho mecânico e braçal no Brasil Colônia jamais fora bem visto,

sendo apenas tarefa de pessoas escravas e socialmente marginalizadas. Agora ele passa a

assumir paulatinamente um papel de destaque. Não que passasse a ser coisa para as elites,

mas estas passam a perceber que um novo modelo de desenvolvimento não é possível, sem

o trabalho braçal e o uso das inovações tecnológicas. Podemos perceber este pensamento já

no primeiro relatório produzido na Província, onde lemos sobre a Colônia de Superagüi: “o

procedimento de tais colonos serve para ensinar aos nativos que, melhor do que apenas

pescar, é arar a terra”.16 Na fala de Perret Gentil, um dos colonizadores pioneiros do

Paraná, vemos a mesma idéia, quando ele propõe uma colonização de “um ponto de vista

mais elevado... como meio de introduzir uma população laboriosa e moralizada, do

Atlântico ao interior da Província”. 17

A idéia de que o trabalho mecânico e braçal não é digno, perde lugar. Um novo

conceito está sendo incorporado ao cotidiano, que deve suplantar àquele. Este contempla a

dignidade de todo trabalho, do esforço e da economia, provenientes não de um título ou de

uma herança, da exploração do trabalho escravo, mas do valoroso trabalho cotidiano. É

neste contexto que os imigrantes alemães e europeus se instalam em Curitiba, e passam a

participar da construção de uma nova etapa da capital paranaense, assim como de todo o

Estado, de todo Sul e Sudeste do país.

16 Relatório PPPr – Zacarias Góes de Vasconcelos, 1854. 17 Ibid. – Proposta feita ao governo pelo colonizador Perret Gentil, em 1853.

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2.1 – OS IMIGRANTES NA TRANSIÇÃO ENTRE O IMPÉRIO E A REPÚBLICA

Falando em termos de “contatos culturais”, podemos afirmar que até os primeiros

anos da República, ainda persistiria uma clara situação de enclave cultural.18 Já citei acima

que o sepultamento do Sr. Prohmann, em 1857, é um primeiro marco no reconhecimento da

existência de um grupo cultural e religiosamente diverso. Já o estabelecimento oficial da

Comunidade em 1866, dá início a uma organização desta população de imigrantes,

primeiramente em torno da questão religiosa, mais precisamente, do luteranismo

protestante. O passo seguinte demonstra o crescimento deste grupo, e a intensificação da

presença dos imigrantes, quando inauguram um belo e grande templo, em estilo enxaimel,

no ano de 1876. Este ainda não se fazia acompanhar de torre (aparente) e sinos, pois pela

lei imperial isto ainda era proibido para qualquer templo que não fosse católico! Contudo, é

um marco, por ser o primeiro templo não-católico erguido no Paraná, e por tornar a

comunidade muito mais visível.

Não era só a Comunidade Evangélica Alemã, contudo, que organizava seus quadros

e levantava seus edifícios. Clubes e associações das mais diversas começaram a surgir por

toda parte, no final dos anos setenta e início dos oitenta. Datam daquele período, por

exemplo, clubes tradicionais como o Concórdia, o Thalia e o Rio Branco, entre outros.

Diversas são as leituras e interpretações possíveis destes dados históricos. Primeiro, mesmo

que o ditado diga que: “onde houver dois alemães juntos, aí eles fundam três associações”,

parece que o número destes fora bastante incrementado.

Os imigrantes alemães, mais tarde seguidos pelos italianos e poloneses, começam a

ser contados em grande número na cidade. Nos anos 70 e 80 eles preferencialmente vão se

instalando na periferia de Curitiba. Lá eles estabelecem suas chácaras, e cumprem o

propósito de abastecer o núcleo urbano com produtos horti-fruti-granjeiros. Assim eles

criam um verdadeiro cinturão verde em torno da cidade, nos bairros do Pilarzinho, São

Lourenço, Ahú, Bacacheri, Alto da Glória, Alto da XV, Vila Guaíra e outros. Contudo,

muitos imigrantes têm conhecimento acerca de algum ofício, o que os leva a se estabelecer

mais e mais no núcleo urbano. São ferreiros, carpinteiros, padeiros, cervejeiros, alfaiates,

18 Nadalin, Sérgio Odilon. Uma Comunidade Germânica em Curitiba; demografia e sociedade. In: História Questões e Debates, 1987. P. 137-146.

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chapeleiros e professores, dentre muitos outros. É grande a lista de profissionais que abriam

os mais diversos tipos de negócios.19 Um destes sujeitos que muito ajudou na colocação dos

que chegavam na cidade, era o famoso Miguel Miller. Ferreiro, ele foi pioneiro na

construção de carros de boi de quatro rodas. Era dele o casarão alugado para abrigar a sede

do primeiro governo provincial, pelo presidente Zacarias Góes de Vasconcelos, na Barão

do Serro Azul com a Conselheiro Barradas.20 Dele também era a casa alugada em 1869,

que serviria para a recepção e triagem dos colonos recém-chegados.21 Narra-se a visita de

D. Pedro II à sua oficina, onde o Monarca teria repetidas vezes dito: “Belo exemplo...Este é

dos homens raros! Tudo o que ele ganhou com seu árduo labor sobre esta bigorna,

demonstra o que é possível conseguir com trabalho e vontade férreas.”22 Outro que muito

se destacou foi o engenheiro e mestre de obras Gottlieb Wieland. Ele aparece

primeiramente como diretor da Colônia do Assunguy. Mais tarde, como muitos outros, ele

se muda para Curitiba, onde é o pioneiro na construção de obras que mudariam o panorama

da cidade. Além de participar da construção da Estrada da Graciosa, levam sua assinatura

obras como as primeiras olarias e serrarias com aproveitamento da força hidráulica.23

Participou da construção de grandes edifícios, como o da Santa Casa, e quando já era

engenheiro do Estado, foi chamado para salvar as obras da catedral de Curitiba, que por

erros de cálculo quase não pode ser concluída.24 Quase toda a lista dos profissionais

empregados na construção da catedral católica de Curitiba, aliás, assinam com sobrenomes

germânicos. Além de Wieland, a família Strobel inovou na cidade com obras de

marcenaria. A técnica de montar a estrutura dos telhados no chão, para depois transportá-

los para a parte superior dos prédios, era uma inovação tecnológica que fazia o centro da

cidade parar para acompanhar a colocação de um destes.25

19 HEISLER, Alfredo. Op. Cit. P. 67 20 Ibid. p. 57 e 58. 21 Relatório do PPPr, Carlos Augusto Ferraz de Abreu, 1869. 22 Ibid. p. 58. 23 Ibid. p. 71 24 Ibid. p. 78

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2.2 – O IMIGRANTE VISTO PELOS BRASILEIROS

A percepção da presença do imigrante certamente não tinha um só viés. Para as

autoridades governamentais, que apostavam na sua vinda, com vistas ao desenvolvimento

do Província ou do Estado, estava tudo caminhando muito bem. Há rasgados elogios por

parte de todas elas, como o citado acima, de D. Pedro II, em referência a Miguel Miller.

Nesta direção encontramos o comentário de Jayme Balão, em um Boletim da Secretaria de

Agricultura:

Um dos maiores encantos para o viajante inteligente que aporta as lindas plagas paranaenses é ver e sentir de perto o espetáculo da vida colonial nos arredores de Curitiba: pelas bem tratadas estradas extensas filas de carrinhos, a um e dois cavalos, guiados geralmente por camponesas de trajes vivos e radiantes, conduzem, pejados, os frutos coloniais, para a venda ambulante pelas ruas da cidade, onde por toda parte se ouve o alegre pregão: “Mío, fisson, patata, óvo” ... “Milho, feijão, batata, ovos. (citado do “Boletim Colonial e Agrícola do Estado do Paraná”, Ano I, vol. I, n.3 p. 125.26

O relatório do Presidente Lamenha Lins dá conta de que no rocio da capital

paranaense já havia mais de dois mil colonos estabelecidos no ano de 1876, dando-lhe um

aspecto “florescente e lisonjeiro”.27 Isto coincide com o ano em que o governo Imperial

concorda em “oficializar” as áreas de entorno dos centros mais populosos. Levou algum

tempo, porém, para que as autoridades reconhecessem que foi um erro terem iniciado a

colonização longe dos centros mais populosos. Os colonos precisavam basicamente ter

condições iniciais para fazer a terra produzir, e mercado para seus produtos. As outras

coisas seriam apenas conseqüência.

Assim, uma vez firmado e fortalecido este processo da colonização espontânea,

poderiam ser combatidos, com os seus resultados, os maldosos boatos que se espalham

contra a imigração, por todo o Brasil.28 Se havia opiniões que contestavam todo o processo

imigratório, a opinião geral das autoridades sempre foi muito favorável à ele. Mais do que

isto, sempre atrelaram o futuro e principalmente o desenvolvimento da província e do país,

à presença dos imigrantes. Não foi diferente no relatório do Presidente José Venâncio de

25 STROBEL, Gustav Herrmann. Op. Cit. p. 82 26 Boletim Colonial e Agrícola do Estado do Paraná, Ano I, vol. I, n. 3, 1890, p. 125. Citado em: Martins, Wilson. Um Brasil Diferente. 27 Relatório do PPPr, Adolfo Lamenha Lins, 1876.

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Oliveira Lisboa, que dizia: “sendo a imigração questão de interesse a que se liga o

progresso do Brasil, em geral, e desta província em particular, entendo que não se deve

perder de vista, nem menosprezar esta questão que, em si, encerra o futuro da província”.29

O mesmo presidente, ao criticar o fracasso da colônia Argelina, formada por argelinos

descendentes de franceses, comenta a seu respeito que: “eram estranhos ao trabalho

agrícola, e acostumados à vida ociosa”, sendo que, na sua opinião, seus terrenos deveriam

ser repassados ao “laboriosos alemães”.30

Em relatório de 1870, as chácaras “amenas e alegres”,31 e a labuta destes alemães já

serve de modelo, sendo colocadas como exemplo a ser seguido por outros imigrantes, como

os argelinos, que abandonaram suas terras e deram um grande prejuízo aos cofres públicos.

Ao falar dos alemães, que se espalhavam nos arredores da cidade, ele afirmava que, entre

os numerosos grupos que semanalmente chegavam de Santa Catarina, “uns entrando pobres

e outros cobertos de dívidas, todos, à força do contínuo trabalho e aturada economia, em

pouco tempo tornaram-se abastados, e alguns até proprietários e ricos.”32 O entusiasmo das

autoridades com este desenvolvimento faz com que, por vezes, até ignorem as dificuldades

e os fracassos que também ali havia.

A colonização do “rocio” da capital, como ela é chamada, passou a merecer

destaque nos relatórios. No de 1872, é dito que “de dia em dia ela prospera e se desenvolve

de maneira lisonjeira. Está constituído em tão boas condições, que a emigração dos colonos

de Santa Catarina para cá é um fato a que não é possível impor obstáculos”.33

Já em 1866, o agente de colonização do Império, Inácio da Cunha Galvão, escreveu

em seus relatórios que de suas andanças pelo país, a experiência que melhor o impressionou

é a do rocio de Curitiba, feita por imigração espontânea, que se estabeleceu ao redor da

capital, sem nenhum custo para os cofres da província. Mesmo tendo recebido lotes em

iguais condições aos recebidos pela maioria dos nacionais, as chácaras das famílias alemãs

se sobressaíam às dos outros. “Quer as casas, quer as plantações dos alemães distinguem-se

vantajosamente, à primeira vista, das dos nacionais... vê-se enfim ali, um princípio de

28 Relatório do Vice-presidente da PPr, Agostinho Ermelino de Leão, 1870. 29 Relatório do PPPr, Venâncio José de Oliveira Lisboa, 1872. 30 Relatório do PPPr, Venâncio José de Oliveira Lisboa, 1872. 31 Relatório do PPPr, Antônio Luiz Affonso de Carvalho, 1870. 32 Ibid., p. 43. 33 Relatório do PPPr, Venâncio José de Oliveira Lisboa, 1872.

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execução da ciência agronômica”.34 O Presidente Abranches dizia, no mesmo ano, em seu

relatório: “O rocio de Curitiba floresce a passos de gigante... Povoado em geral por alemães

ostenta em suas hortas cuidadosamente cultivadas, e em suas ondulantes searas, toda a

beleza da apurada cultura européia, e abastece de cereais, legumes e outros produtos

próprios dos países frios, a não pouco avultada população desta ativa e florescente

cidade”.35 Progresso, bem-estar e evolução que também assinalados por Lamenha Lins.36

Percebe-se que a prosperidade dos que chegavam espontaneamente se tornou em um

motivo de grande satisfação para os governantes. Exemplo é que, no relatório de 1871,

encontramos registro de 200 alemães que chegados a São Francisco, pedem ao governo

daqui para que lhes pague a passagem para cá, pois preferem viver aqui, no que são

prontamente atendidos.37 A própria província catarinense chegou a protestar contra esta

prática, numa tentativa de evitar este fluxo migratório que assim se estabelecera. Para

atendê-los, as passagens deixaram de ser pagas, mas no próprio relatório se reconhece que:

“se os colonos não podem vir por mar, eles chegam em magotes, diariamente, vindos por

terra, atravessando rios e péssimos caminhos... a semente está lançada e o fluxo

estabelecido”,38 e contra isto seria inútil lutar. Para o presidente de então, este processo

inevitavelmente faria com que, em breve, os imigrantes viessem diretamente da Europa

para o Paraná. Posteriormente, de fato, vemos que isto veio a se concretizar, especialmente

contando com a abertura da Estrada da Graciosa, e logo em seguida, da conclusão da

estrada de ferro: Curitiba – Paranaguá, em 1885.

Como conclusão acerca deste período, podemos observar que, de um modo geral, a

inserção do imigrante europeu foi muito positiva em todo Paraná, mas especialmente em

Curitiba. A dinâmica dos contatos culturais teve grande influência tanto sobre quem aqui já

vivia, como sobre quem aqui chegava. É verdade que, num primeiro momento, a influência

do meio sobre o imigrante era predominante e muito forte. Sua pobreza, sua falta de

recursos e de materiais adequados, o colocavam no nível dos nativos ou até subordinado à

estes. Assim, dois pioneiros alemães, de famílias ainda hoje tradicionais, Gustav Hermann

34 Relatório transcrito no Jornal 19 de Dezembro, em 06/01/1875. 35 Relatório do PPPR, Frederico José Cardoso de Araújo Abranches, 1875. 36 MARTINS, Wilson. Op. Cit. P. 66-67. 37 Relatório dp PPPr, Venâncio José de Oliveira Lisboa, 1871. 38 Ibid., p. 42.

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Strobel39 e Antônio Pospissil40 relatam as agruras dos primeiros tempos, e de como tiveram

de se sujeitar a qualquer emprego, como abridores de valas ou estradas, até poderem ter o

suficiente para se estabelecerem com o seu ofício, na cidade de Curitiba. Superado o

primeiro momento, o momento dos choques culturais mais fortes, e já mais integrados à

nova terra, eles passam a se valer dos seus conhecimentos, o primeiro como marceneiro e o

segundo como alfaiate. É a partir deste momento, quando já no exercício de suas

profissões, que eles passam a exercer uma maior influência sobre a cultura e o ambiente

local.

É neste contexto amplamente favorável que aqui se estabelecem os imigrantes.

Tanto alemães, como italianos, poloneses e ucranianos chegam e se em larga escala no

final do século XIX. É verdade que alemães dominavam a paisagem, conforme as citações

acima. Seus costumes, sua simplicidade, seu árduo labor e o costume de poupar, fruto de

sua ética protestante, logo trazia para boa parte deles o capital necessário para investirem

nos mais variados negócios, conforme já citei. Assim, entramos em uma nova fase a partir

da década de 90, e na virada para o século XX. O advento da República, apesar de não ser a

opção política da maioria dos germânicos, traz um novo panorama para eles. Agora, sim,

tem o direito legal a um exercício pleno de sua cidadania. Podem votar e serem eleitos. O

Estado também deixa de regular o espaço religioso, e as religiões protestantes passam a ser

oficialmente reconhecidas. A República lança um novo sopro de liberdade no ar, que sob

diversos aspectos foi bastante vantajoso para os imigrantes, a contribuiu para ratificar um

nítido processo de simbiose com a sociedade receptora. Certo que também houve aspectos

negativos, os quais serão objeto de análise mais aprofundada no próximo capítulo.

39 STROBEL, Gustav Hermann, Op. Cit. P. 74 40 Relato da Viagem de Römerstadt, Áustria, ao Brasil, e dos primeiros tempos no Paraná. In: Heisler, Alfredo, Op. Cit. p. 62-64.

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3 – O NOVO SÉCULO: HORA DE SE TORNAR BRASILEIRO

Toda a proeminência social e econômica alcançada pelos alemães no último quartel

do Século XIX pode ser percebida em estruturas de duração mais longa, como no

crescimento econômico e industrial do Estado, como também em recortes bem mais

pontuais. Um destes fatos, por exemplo, é a organização do primeiro Corpo Voluntário de

Bombeiros, formado por alemães. Seu interesse, em voluntariamente formar e manter um

destacamento de Bombeiros, testemunha a favor de seu interesse na cidade, de sua

participação e de seu engajamento na vida social e no bem coletivo. Tal atitude tipifica o

caráter germânico, sempre muito disposto a olhar para uma dimensão coletiva do ser, e a

não se furtar de sua responsabilidade para com o todo da sociedade.

Se por um lado, porém, havia áreas de intensa simbiose, em outras, havia um grande

distanciamento da sociedade local. Na área da saúde, no comércio e na indústria, havia uma

integração cada vez maior. Muitos eram os industriais, os comerciantes, enfermeiros,

médicos e professores de origem germânica, que passavam a se destacar na sociedade

curitibana e paranaense. A rua Direita, hoje Treze de Maio, e seus arredores, concentravam

o comércio alemão. Eram lojas de secos e molhados, armarinhos, óticas e joalherias,

farmácias e artigos importados. Na área industrial, os Mueller haviam criado uma grande

fundição, onde fundiram os sinos com os quais presentearam a nova Igreja Luterana. Nos

primeiros anos do século XX, porém, já começam a ser registradas muitas queixas da

concentração de diversos ramos da indústria e do comércio, quase que exclusivamente nas

mãos de alemães. Isto acontecia, especialmente, no ramo da panificação e das cervejarias,

cujas primeiras já datam de 1881.41 Mais precisamente, de 1854 a 1929, das cem empresas

constituídas, 54% era de alemães e descendentes. Em 1904, 28% dos membros da Junta

Comercial eram de brasileiros descendentes de alemães. Segundo o relatório do Secretário

dos Negócios da Fazenda, da Agricultura e Obras Públicas do Estado do Paraná, no ano de

1918, os alemães tinham em suas mãos: 36% das empresas, 38% do número de operários, e

28% do valor da produção anual de toda a indústria paranaense.42 São cifras

impressionantes, se apenas levarmos em consideração que a inserção dos imigrantes na

41 MARTINS, Romário. Almanaque do Paraná. Verbete: Alemães no Paraná. P. 16. 42 Ibid. Itens 6.10 a 6.15 – p. 16.

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sociedade curitibana era inferior a 50 anos. Efetivamente, não mais de 40 anos. Neste curto

espaço de tempo, 26,7% dos capitais declarados pertenciam aos alemães. “No campo das

empresas produtoras de bens de consumo, como nas bebidas, frigoríficos, fábricas de

banha... e em novos setores como os da fundição e ferragem, de couros e curtumes, a

penetração dos alemães e seus descendentes foi avassaladora”.43 Não é à toa que ainda

antes da Grande Guerra, encontramos pessoas de proeminência política e social

expressando seu entusiasmo com o desenvolvimento trazido pela mão dos imigrantes.

Assim, o ilustre Alcides Munhoz escreve um artigo em 1907, onde diz: “Eu sou

paranaense, e o meu Estado deve incontestavelmente o seu desenvolvimento industrial aos

alemães!”44 Ainda mais se considerarmos que o número dos imigrantes alemães (cerca de

13%) tinha sido suplantado, de longe, pelo de poloneses (47%) e de ucraínos (19%), ainda

que estes últimos grupos eram de estada mais recente no Paraná.

Na política, os alemães também granjearam algum espaço, mas de forma menos

significativa. Vemos um herdeiro dos Müller, João Müller ocupando o cargo de deputado

provincial, e um dos filhos do famoso farmacêutico da Lapa, Dr. Westphalen, Dr. Emydgio

Westphalen, chegando a ocupar a prefeitura da capital, em 1894. Vários outros, conforme

lista apurada por Alfredo Heisler, haviam ocupado cadeiras na Câmara Municipal.45

Também nas Forças Armadas houve um ingresso expressivo de teuto-brasileiros, sendo que

o próprio Alfredo Heisler se tornara capitão da Guarda Nacional.46

Alguns acontecimentos relativos aos anos de 1892 a 1894, merecem que aqui

façamos um novo recorte. Nadalin cita o ano de 1894 como aquele, em torno do qual, tem

fim a conjuntura de enclave.47 É evidente que, na dinâmica dos contatos culturais e

interétnicos, é muito difícil estabelecer datas e referências desta natureza. Pois, mesmo que

sejam caracterizadas por pertencerem a um grupo étnico, as pessoas são diferentes entre si.

Pertencem a grupos e classes sociais diferentes. Vieram de contextos diferentes e percebem

a realidade de forma distinta. Por mais que suas atitudes sejam impulsionadas por estruturas

43 Ibid. Itens 6.14 e 6.15 – p. 16. 44 MARTINS, Wilson. Op. Cit. p. 37 45 HEISLER, Alfredo. Op. Cit. p. 114 46 Ibid. p. 114. 47 NADALIN, Sérgio O. Imigrantes alemães e descendentes em Curitiba; caracterização de um grupo social. In: História, Questões e Debates. Curitiba, Ano 2, N. 2, p. 23-35, jun. 1981.

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de pensamento comuns, cada indivíduo tem o seu interesse pessoal, suas experiências, e

toma decisões a partir delas.

No plano coletivo, contudo, é possível verificar que havia pensamentos e atitudes

bastante antagônicas e contraditórias, tanto entre os luso-brasileiros, como entre os teuto-

brasileiros. Os primeiros desejavam a presença do culto imigrante europeu, porém instalado

nos mais profundos grotões, ou fazendo qualquer tipo de trabalho que ele não quisesse.

Acima de tudo, que através desse trabalho, ele jamais ameaçasse sua posição social, seu

status e poder. Não ameaçando sua posição, e se instalando nas regiões limítrofes e

distantes, o imigrante era bem-vindo e tolerado. Do lado oposto, da mesma forma, podiam

ser observadas atitudes e pensamentos contraditórios. Se por um lado, como vimos acima,

na economia, no comércio e em outras áreas, ele já se mostrava um sujeito perfeita e

amplamente integrado e aculturado, no interior de sua casa, nos clubes e na igreja, ele

continuava sendo um legítimo europeu. Nestes contextos ele se esforça ao máximo para

manter a língua, a cultura e os costumes da sociedade emissora, ou da pátria-mãe. A

Muttersprache reina absoluta na casa, no clube e na igreja. De certa forma, é um sintoma de

processos naturais. Onde grupos sociais e culturais diferentes convivem, eles precisam

marcar definir as suas identidades, por meio destes contatos. Talvez seja por isso que se fez

um grande esforço para apresentar à sociedade curitibana, dois ícones que retratassem toda

a pujança e a força da qual os teutos vinham se investindo: o novo templo da Comunidade

Evangélica Alemã e a Escola Alemã.

Antes de falarmos da igreja, vamos falar da escola. Num recorte diacrônico do

luteranismo, podemos observar que a educação e a presença da escola “ao lado da Igreja” é

uma característica sempre presente. Isso se deve ao forte apelo do próprio Lutero, que

cobrava insistentemente das autoridades que cada igreja se fizesse acompanhar de uma

escola. Em Curitiba não foi diferente. Assim que se constituiu oficialmente a Comunidade,

ato contínuo, se providenciou também um espaço para a educação. Funcionava no sótão da

casa do Pastor Gäertner. Este, aliás, era professor de ofício, e não um pastor. Na verdade

fazia parte dos chamados “falsos-pastores”, conceito utilizado para definir aqueles que não

tinham formação acadêmica para o exercício do ministério pastoral. Porém, esta situação

era comum nos primeiros 50 anos da imigração, onde um pastor com formação acadêmica

era uma raridade. Em geral, pessoas com um pouco mais de conhecimento, de estudo e

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algum dom na área, acabavam sendo escolhidas para o exercício do ministério pastoral. O

próprio J. F. Gäertner é um destes, que se auto-denominou “Prediger” (pregador). De fato

era professor, e isto o motivou a abrir, já em 1866, a “Deutsche Schule” (Escola Alemã).

Como a educação no Brasil se encontrava em estado lastimável, os alemães logo trataram

de organizar os seus próprios colégios. Era traço de sua consciência coletiva, legar aos

filhos a capacidade de ler, escrever e de fazer contas, ao menos isso. A coisa era tão séria

que, ao serem surpreendidos pelo prematuro falecimento do Pr. Gäertner, trataram de

chamar um pastor com formação acadêmica, o Pr. Kröhne. Este não durou dois anos, e foi

demitido por ter se recusado a dar aulas. Data deste mesmo período, de 1872, o

despertamento da igreja na Alemanha, acerca da necessidade do envio de pastores

formados ao Brasil.

A Deutsche Schule se desenvolve no pátio da Igreja, até que sua estrutura não a

comporta mais. Em 1885, os seus membros decidem fundar uma sociedade escolar,

vinculada à Comunidade, mas desvinculada da confessionalidade. Se isto era possível, era

outra história. O presidente e o tesoureiro da comunidade se empenharam então na

construção de um grande prédio, no terreno da atual praça 19 de Dezembro. Era um prédio

magnífico para a época, que fez a Deutsche Schule florescer. No início de década de 90 já

eram mais de 300 alunos que lá estudavam. Também a própria Comunidade havia feito

enormes progressos, e das 20 famílias iniciais, ela já contava, nos anos noventa, com mais

de 400 famílias e 1800 pessoas.

PROGRESSO! Parece ser esta a palavra-chave no Brasil daquele tempo. Os

alemães passaram a se identificar demais com este mote! A crença no progresso chegava a

um ponto alto. Coincidência ou não, além da construção do faustoso prédio da Deutsche

Schule, mais tarde chamada de Colégio Progresso, tanto católicos como evangélicos

constroem enormes templos neste período. O prédio da Escola Alemã foi inaugurado em

Julho de 1892, a Catedral católica em Setembro de 1893, a Igreja Evangélica, em Maio de

1894 e a Katholische Volkschule, que deu origem ao Colégio Bom Jesus e ao da Divina

Providência, foi inaugurada em 1896. Entendo que a proximidade das datas marca não

apenas uma coincidência, mas o retrato de uma cidade em efervescente desenvolvimento.

Mais do que isso são construções que vão além dos prédios, que intencionam projeção

social, que visam colocar marcos visíveis. É de se perguntar se os Strobel, grandes

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conhecedores do ramo, não teriam sido capazes de escolher as madeiras certas para fazer a

primeira igreja protestante, que tão somente após 15 anos ela estivesse podre, a tão

comprometida a ponto de ter que ser derrubada? Não creio. Parece que o contexto a fez

decair e cair. Parece que ela tinha que ceder seu ar bucólico e romântico a uma Igreja forte,

ostensiva, que fosse mais apreciada pela sua grandeza, do que pela sua beleza! Ela tinha

que ser um retrato do crescimento econômico dos alemães. Tanto é que os católicos haviam

levado 17 anos para fazer a Catedral, e os luteranos ergueram a sua em apenas 15 meses.

Grandes empresas, grandes clubes, uma grande escola e, agora, também uma grande igreja.

Era esta a mensagem que transmitiam aqueles que até pouco tempo antes, sequer tinham o

estatuto da plena cidadania.

Enquanto que a Igreja contava neste período com mais de 400 famílias, contra as 20

do começo em 1866, também o Colégio Alemão, contava com 360 alunos matriculados, e

no final da primeira década do século XX, chegou a ter mais de 500 alunos. Eram números

impressionantes para a realidade escolar da época. Pois foi justamente um incidente nesta

escola que causou a primeira cisão na Comunidade, que durou de 1900 até 1947. Isto

porque a Escola Alemã, no esteio do positivismo, resolveu excluir o ensino religioso de

suas aulas. Logo ela, que fora fruto do trabalho da comunidade religiosa. Ao tentar impedir

e reverter tais fatos, o pastor Siegfried Schultz ficou isolado, pois a maioria apostava numa

inserção social maior, traços evidentes do desejo de assimilação. O pastor e um grupo

minoritário, por não admitirem tal decisão, se retiraram da comunidade, constituindo a

Comunidade Luterana Alemã, conhecida como Igreja de Cristo. Só em 1947 ela se

reintegrou a Comunidade Evangélica Alemã, neste período já denominada de Comuna

Evangélica de Curitiba.

O incidente deixa claro que para muitos existiam dois discursos: um externo, que se

expõe à integração e à assimilação, e outro interno, que faz da fé um elemento de vínculos

com o passado, e que não remete a uma exposição ou a um engajamento social. Mesmo

assim, de um modo geral, os primeiros anos do século XX caminhavam para uma notável

simbiose. O elemento germânico estava espalhado e inserido nas mais diversas frentes e

nos mais diversos estratos sociais. A sociedade receptora já não mais lhes parecia hostil.

Pelo contrário, o processo de aculturação não os havia diluído na sociedade majoritária,

mas havia permitido o surgimento de uma nova sociedade, que se forjou a partir dos

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contatos interétnicos e interculturais. Pelo menos em diversas frentes, a integração se

mostrava pacífica e benéfica. Teria sido este o andar natural das coisas, não tivessem

surgido dois movimentos paralelos e até certo ponto opostos entre si: o movimento

nacionalista brasileiro, de um lado, e o movimento pangermanista, do outro lado.

Ambos se constroem tendo o imigrante como parte importante e integrante do seu projeto e

da sua construção ideológica.

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4 – BRASILIANISMO E PANGERMANISMO

O movimento nacionalista começa a se articular no Brasil já nos anos setenta do

século XIX, quando os pilares de sustentação do Império começam a ruir. Esta articulação

também coincide com uma entrada cada vez mais maciça de imigrantes no Brasil. Estes

traziam novos costumes, novos hábitos, outras línguas, o que levou a intelectualidade

tupiniquim a se perguntar acerca do brasileiro? Quem é o brasileiro, de fato? Se até este

momento ele não existia, ele passa a ser construído a partir de então. E passa a ser

construído no confronto com o novo “estrangeiro”, visto sempre como o “outro”. Se por um

lado, é relativamente fácil dar contornos ao outro, construir o “nós” é muito mais difícil.

Não podemos nos furtar de olhar a natureza destes dois movimentos mais de perto, por que

são eles que, decisivamente, vão estar alimentando as crises, em momentos como a Grande

Guerra, a Semana de Arte Moderna, o Estado Novo e a Segunda Guerra Mundial.

4. 1 – A CONSTRUÇÃO DO BRASILEIRO NO CONFRONTO COM O

IMIGRANTE

O nacionalismo e a construção do que é nacional, não é uma excrescência

brasileira, do final do Século XIX. Pelo contrário, movimentos nacionalistas estão por toda

parte. Movimentos nacionalistas e imperialistas tomam conta de toda a Europa. Também o

pangermanismo está inserido neste contexto, pois ao lado dele existem muitos outros, como

o paneslavismo, por exemplo. No Brasil, este período coincide com o fim do Império, e a

necessidade da fundação do “Estado Nacional”. Sentia-se a profunda necessidade de criar e

dar contornos ao “homem brasileiro”. A brasilidade precisava ser identificada, para dar

força e legitimidade a nascente República.

O Brasil vive, com o advento desta, um momento desordenado e tenso. Em meio à

ele, as elites buscam articular uma radical reordenação das relações de poder, com vistas à

construção da nação brasileira. Enquanto que no Império, os papéis de cada um estavam

dados, eram claros e definidos, com a liberdade republicana, estes mesmos espaços e papéis

precisam ser conquistados. A nação precisava ser re-fundada. Esta era uma tarefa que as

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elites intelectuais chamaram para si. Era tarefa para uma pequena minoria, pois é delas, e

não das massas que surge a vontade do domínio. Tudo isto, porém, era uma tarefa árdua e

difícil para estes positivistas e progressistas, pois tinha que ser feito em contraposição a um

pessimismo darwinista, determinado pela miscigenação das raças! Esta mistura de raças,

em sua visão, não trazia benefícios. Para muitos, o chamado cadinho racial que dela se

alimentava, a miscigenação das raças, impedia qualquer possibilidade de desenvolvimento

e de progresso.

Estas elites, encharcadas pelo nacionalismo, se colocam a partir daí, na busca por

forjar uma nova consciência nacional. Dividem-se, porém, no entendimento quanto ao

caminho para chegar ao objetivo proposto. De um lado, intelectuais como Monteiro Lobato,

olham para o imigrante, europeu e anglo-saxão, como a solução para impulsionar o

desenvolvimento do país. A maioria, contudo, segue os passos de Capistrano de Abreu e

Sílvio Romero,48 que buscam no caboclo, no mestiço, no resultado da miscigenação, este

novo ser capaz de trazer o real sentido e desenvolvimento para o país. Para eles, o mestiço é

o verdadeiro brasileiro. Ele é a alma da nova nação. É por meio dele que o país deve ser

construído. Assim, eles passam a tratar o imigrante e seus descendentes como

“estrangeiros”, como alguém de fora, sempre tratado como o “outro”, aquele que não é

verdadeiramente brasileiro. Seu amor à pátria passa a ser, por isso, sempre colocado “sob

suspeita”. Sua brasilidade era duvidosa, e a demora na sua aculturação apenas corroborava

com isso. É interessante que justamente quando tem tanta gente nova chegando e se

instalando no país, a geração de Capistrano, Euclides da Cunha, Tobias Barreto, Oliveira

Vianna e Romero, procurem criar uma homogeneidade de raça olhando para o passado. Na

sua tentativa de reescrever o passado, eles ignoram o estado recente e presente das coisas,

acentuadamente no Sudeste e Sul do país. Outra hipótese seria admitir que o fazem

justamente por causa do presente estado de coisas. Talvez um temor ou uma insegurança

consciente ou inconsciente motivada pela presença de tantos “estrangeiros”. Que futuro eles

trariam? Afinal, eles provêm de países com projetos expansionistas ou imperialistas.

Trazem idéias, conceitos e costumes muito distintos, que se não querem impor aos nativos,

fazem questão de cultivar em seus guetos. Aliás, são eles que também estão por detrás de

48 REIS, José Carlos. Capistrano de Abreu, “Heródoto do povo brasileiro”. Rio de Janeiro : FGV, 1999.

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movimentos desconhecidos até então, que surgem especialmente no Sudeste, como os

movimentos operários e anarquistas.

Este é o pano de fundo dos conflitos presentes na primeira República. Tensões que

surgem da tentativa de dar contornos modernos a nação brasileira, de lhe dar uma “cara”,

um “rosto definido”. Era preciso encontrar uma clara identidade nacional, para poder

enfrentar a modernidade que estava por se instalar no país. Lembremos que o progresso era

a palavra-chave, a ordem do dia, em todo este processo. Progresso que passa a ser

encontrado, sobretudo, no ambiente urbano. A cidade vem a ocupar um novo e inusitado

espaço no cenário político brasileiro, enquanto que o mundo rural passa a ser sinônimo de

atraso. A modernidade e o progresso são vinculados estreitamente com o processo de

urbanização. Parece anacrônico, por isso, que os intelectuais acima citados busquem a

identidade nacional no homem interiorano, nos sertões, enquanto que o espírito da época se

volta para o urbano. O esforço civilizador olha para a urbis, lugar onde toda a articulação

do espaço político passa a se desenrolar.

Isto também se observa em Curitiba. Apesar da população paranaense ainda ser

escassa, a previsão de Demétrio da Cruz, citada acima, acerca da inviabilidade de Curitiba,

não se confirmou. Pelo contrário, Curitiba tomou um impulso de crescimento e

desenvolvimento no final do Século XIX e no início do XX. Este fato pode ser constatado,

desconsiderado o ufanismo exagerado, no discurso de Rocha Pombo, pronunciado em

1900, por ocasião dos 400 anos do descobrimento:

A nossa capital é uma das mais belas, das mais opulentas e grandiosas do Sul. Quem viu aquela Curitiba, acanhada e sonolenta, de 1853, não reconhece a Curitiba suntuosa de hoje, com as suas grandes avenidas e boulevards, as suas amplas ruas alegres, as suas praças, os seus jardins, os seus edifícios magníficos. A cidade é iluminada à luz elétrica. É servida por linhas de bonds entre o Batel e o Fontana e a estação da Estrada de Ferro, aproveitando a quase toda a área urbana. O tráfego diário conta, além do que fazem os bonds, com mais de mil veículos diversos. Há plena atividade, dentro do quadro urbano, mais de trezentas fábricas e oficinas, e no município todo, perto de 600. Já se funde em Curitiba tão perfeitamente como no Rio. Já se grava, e se fazem, em suma, todos os trabalhos de impressão tão bem como os melhores da Europa. O movimento da cidade é extraordinário, e a vida de Curitiba, é já a vida afanosa de um grande centro. Existem mais de trinta sociedades, clubes e instituições de ordem popular. Contam-se seis colégios

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particulares, cinco livrarias, nove tipografias, muitas de primeira ordem, e uma litografia importantíssima.49 Luiz Carlos Ribeiro atribui esta transformação social a forte presença do imigrante e

a consolidação do trabalho livre.50 Curitiba se tornou numa capital fortemente marcada

pelos “estrangeiros”, no sentido acima exposto. Todo o espaço urbano da Capital foi

reordenado a partir desta presença maciça de imigrantes, e por sua condição de

trabalhadores livres. O Século XX, assim, trazia ares de modernidade e esperança que

faziam com que o passado recente fosse negado e excluído da memória paranaense. É

evidente que não era tudo tão maravilhoso e bonito. As condições de saúde e higiene eram

muito precárias. As pestes de toda sorte varriam boa parte da população, especialmente

entre os imigrantes recém-chegados.51 Em função disto, o Pastor Karl Frank, que desde

1910, e por 47 anos, pastoreou a ala dissidente da Comunidade (nos últimos 10 anos, já

reunificada com a Comunidade mãe), envidou grande esforço para trazer duas irmãs

enfermeiras da Alemanha. Elas chegaram em 1914, e cumpriram larga função social na

cidade, tornando-se a Schwester Klara , como era chamada, conhecida em qualquer canto

da cidade.

De qualquer forma, Curitiba realmente tinha sofrido grandes transformações,

principalmente na área econômica, industrial, comercial e urbanística. O conceito de

trabalho dos imigrantes foi fundamental para isto. De certa forma ele se impôs aqui, por ter

Curitiba uma população não muito grande, e que logo seria formada por uma maioria de

imigrantes ou descendentes. Sua presença, aos poucos, impôs trocas culturais e sociais, e

sobretudo, firmou e fortaleceu seu conceito de trabalho. Um trabalho livre, braçal e

assalariado, que vinha se tornando na mola propulsora das grandes mudanças da economia

local. Este conceito de trabalho batia de frente com os conceitos formados pela cultura

ibérica, e aqui estabelecidos de longa data. Os ibéricos e reinóis sempre sentiram grande

desprezo pelo trabalhador braçal, ao qual menosprezavam como pessoa de segunda

categoria. A religião do trabalho não recebia acolhida entre eles. Assim, já Sérgio Buarque

de Holanda refletia no antológico clássico Raízes do Brasil:

49 POMBO, José F. Rocha. O Paraná no Centenário (1500-1900). 2a. ed. Rio de Janeiro : José Olympio . Curitiba : Secretaria da Cultura e do Esporte do estado do Paraná, 1980. p.141 50 RIBEIRO, Luiz Carlos, Tese de dissertação de Mestrado defendida na USP. São Paulo : 1985.

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É compreensível, assim, que jamais se tenha naturalizado entre a gente hispânica a moderna religião do trabalho e o apreço à atividade utilitária. Uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia. O que ambos admiram como ideal é a vida de grande senhor, exclusiva de qualquer esforço, de qualquer preocupação. E assim, enquanto povos protestantes preconizam e exaltam o esforço manual, as nações ibéricas colocam-se ainda largamente no ponto de vista da Antigüidade. O que entre elas predomina é a concepção antiga de que o ócio importa mais do que o negócio, e de que a atividade produtora é, em si, menos valiosa do que a contemplação e o amor.52

Estes dois conceitos distintos sobre a vida e o trabalho são apenas uma amostra de

parte do conflito que se estabeleceu com os imigrantes, enquanto se buscava pela formação

de uma identidade nacional. É difícil de se encontrar, na verdade, uma única identidade

nacional, que seja autêntica. O que encontramos é uma pluralidade de identidades,

construídas por diferentes grupos sociais, em diferentes momentos históricos.53 Enquanto

intelectuais, militares, artistas e outras lideranças nacionais procuram saber quem somos

“nós”, para todos estes fica cada vez mais claro quem são “eles”. Eles são os

“estrangeiros”, são os imigrantes de toda sorte. O imigrante passa a ser o espelho às

avessas, desta busca pela identidade brasileira.

Fato curioso é que também eles estão em busca desta identidade. No caso dos

alemães, sabe-se que provém de regiões ou até de países diferentes, têm costumes e culturas

diferentes, e até diferentes origens étnicas. Aqui passam todos a ser simplesmente: alemães!

Assim, eslavos, austro-húngaros, tiroleses, suíços, pomeranos, hunsrücker, badenses,

bávaros e renanos, entre outros, aqui simplesmente se tornaram nos “alemães”. Por serem

uma minoria étnica, eles se uniram prioritariamente em torno da língua comum, no caso o

alemão, e da religião, no caso o luteranismo. Também se uniram em torno dos costumes e

dos elementos da cultura que lhes eram semelhantes. Assim, também eles tiveram que

construir o “sujeito alemão”, conceito segundo o qual passaram a ser conhecidos. Este

“alemão” tipifica o estrangeiro. Ele é muito diferente. Primeiro fala uma língua que eles

mesmos dizem: “não é de exportação”! Não serve como segunda língua, por ser muito

difícil de ser aprendida. Depois seus conceitos culturais, sua cosmovisão, sua idolatria pelo

51 Ibid. p. 6-8 de um abstract do trabalho, que cita relatórios de Jayme e Trajano Reis. 52 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 ed. São Paulo : Companhia das Letras, 1995. p. 38. 53 ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo : Brasiliense, 1994. P. 137.

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trabalho, sua religião e seu jeito fechado e sistemático de ser é muito diferente de tudo o

que caracterizava o brasileiro. O brasileiro era descrito por Capistrano, e depois dele por G.

Freyre e S. B. de Holanda como um sujeito independente, fragueiro, antidisciplinar, não

convencional, místico, de imaginação ardente e coração duro.54 Ortiz, além de

características como a cordialidade, a tristeza e a bondade, caracteriza o brasileiro pela sua

“índole malandra de ser”.55 Tais características fecham com o ideal do sujeito que

atravessara o oceano em busca de riquezas, “que lhe custassem ousadia, mas nunca

trabalho!”56

Este conflito é sentido em grau menor por italianos, que também são latinos e

católicos, pelos também católicos poloneses e pelos ortodoxos eslavos, que não ostentam a

mesma cultura e vêem na religião um forte atenuante. As diferenças maiores se dão na

comparação com os alemães. Interessante é que, este antagonismo vai reafirmando cada um

nas suas crenças. Na medida em que o “nós”, brasileiro, vai se fortalecendo e radicalizando,

o “eles” dos ditos estrangeiros, vai fazendo a mesma coisa. Cria-se uma dinâmica na qual

cada um vai reafirmando o lado oposto nas suas convicções. Assim um tal de Jacques

Lambert, citado por Wilson Martins, teria afirmado: “Há entre os brasileiros dois

sentimentos antagônicos: o amor-próprio coletivo quer que o imigrante mais culto venha

para fazer evoluir o país, e tirá-lo do seu atraso. O amor-próprio individual quer que este

culto imigrante vá substituir o colono nos maiores grotões, faça o trabalho que ele deseja

abandonar, mas não ameace a sua posição!”57

Na raiz do nacionalismo que se exarcebou nos anos 20 a 45, está o sentimento de

inferioridade herdado dos tempos coloniais, o nativismo, o ufanismo e o ressentimento. Na

construção da brasilidade está em jogo, justamente, a negação da grande influência

européia. Está em jogo a criação do novo, e o perigo deste novo ser novamente

determinado “pelo de fora”. Está em jogo o espaço político e social, que passa a ter vínculo

estreito com a urbanização, e percebe que as mais importantes capitais do Sul e Sudeste têm

grande influência da população de imigrantes e estrangeiros. Isto gerou um desprezo para

com o “de fora”, principalmente para com os de origem germânica, mesmo que estes “ditos

54 REIS, José Carlos. Op. Cit. p. 99. 55 ORTIZ, Renato. Op. Cit. p. 138-140. 56 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Op. Cit. P. 49 57 LAMBERT, Jacques. In: MARTINS, Wilson. Op. Cit. p. 47.

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estrangeiros” já fossem brasileiros de segunda ou terceira geração. A força e a coesão dos

que vinham “de fora” se tornava numa ameaça preocupante, pois enquanto conseguiam dar

contornos claros para o “eles”, não conseguiam, ao mesmo tempo, responder quem é

definitivamente o brasileiro? O “outro” já veio formado. Sabia-se quem ele era. Importava

marcá-lo como tal. Chamá-lo de imigrante, de “ariano”, “tedesco”, o oposto do brasileiro,

em quem se inspirar, copiar seus valores e virtudes, mas a quem jamais se igualar. Afinal,

queríamos ser “nós”, e não “eles” novamente. E quem somos nós?

O conflito se agravou em decorrência de alguns fatores marcantes, entre os quais as

duas Guerras Mundiais, onde o país emissor e o receptor se viram em lados dele. Já bem

antes da primeira Guerra, surgem alguns mitos, decorrentes do fortalecimento dos

movimentos nacionalistas, no palco internacional. Sua expansão, no final do Séc. XIX, na

forma de colonialismos e imperialismos, fez surgir o temor de que o grande número de

imigrantes presente no Brasil pudesse vir a ser os representantes do imperialismo europeu

no país. O mito mais recorrente é o do “perigo alemão”, que ganhou força na medida em

que os imigrantes alcançaram o status da cidadania plena com o advento da República. A

partir dele, é inegável que eles experimentaram um crescimento econômico e social

vertiginoso, especialmente no Sul e Sudeste, onde se concentram.

4.2 – O PANGERMANISMO E A PROPAGAÇÃO DO DEUTSCHTUM

O pangermanismo, assim como outros movimentos idênticos existentes na Europa,

são fruto do contexto de época. Surge da mesma efervescência que, no final do XIX faz

brotar os nacionalismos de todas as matizes, que levem diversas nações européias à prática

do neocolonialismo e de novas formas de imperialismos. Quando Alfred Bugenberg funda,

em 1890, a Alldeutsches Verband – a Liga Pangermânica, ele o faz dentro deste contexto.

Do mesmo surge também, apenas para citar, a Liga Judaica, formada num congresso

realizado em Basiléia, na Suíça, em 1897. Evidente que estes grupos têm não apenas um

caráter cultural, mas também, de uma forma intrínseca, um caráter político, social,

econômico e por vezes, um pano de fundo imperialista. Por aí, podemos perceber que o

fortalecimento da identidade nacional, e a busca pela definição do “brasileiro”, é parte dos

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acontecimentos que tomam vez no palco internacional. Só que, enquanto os europeus

olham para além das suas fronteiras, e vão a busca do “outro”, o Brasil ainda se curva sobre

si, e não se reconhece. Ainda está em busca de si mesmo. O “outro” para o brasileiro é ele

mesmo.

É interessante lembrar que a escolha por trazer imigrantes das áreas germânicas,

italianas e polonesas se deve, em grande parte, por estes países não terem colônias no além-

mar. Era menos arriscado e melhor, ter pessoas destes países sem esta tradição

neocolonialista e imperialista, do que buscar cidadãos franceses, ingleses, holandeses ou até

espanhóis, e acabar perdendo o território, virando colônia destes países. Mesmo a

Alemanha já unificada, sob o governo de Bismarck, não acalentava estas pretensões. Martin

Dreher registra uma conhecida sentença dele que dizia: “Um alemão que despe sua pátria

como um velho casaco, não é mais um alemão para mim; não tenho mais interesses de

compatriota em relação à ele!”58 Esta era a postura para com os alemães emigrados. Por

outro lado, podemos dizer que os imigrantes vindos nos primeiros 30 anos, saíram numa

ruptura total com a velha pátria. Sua vinda para a nova pátria é definitiva. Não olham para

trás, pois para cá vieram construir um novo lar.

Os emigrados depois de 1850, porém, já não são mais apenas os das camadas mais

simples da população. Na segunda metade do XIX, não é difícil encontrar intelectuais,

liberais desiludidos, pessoas de posses e de melhor condição social. Políticos (como os

conhecidos Brummer), frustrados com a derrota na revolução de 1848, professores e

intelectuais, artistas e pastores estão em bom número entre as levas de imigrantes da

segunda metade do XIX. São eles que terão um papel diferenciado na promoção do

Deutschtum, que resulta numa postura diferente da inicial, neste período da primeira

República. Tanto da parte da Alemanha, para com quem para cá emigrou, quanto dos então

emigrados, para com a Pátria Mãe. É verdade que os avanços nas comunicações também

ajudaram nisto. Acima de tudo, porém, parece terem sido as elites intelectuais, tanto do

lado dos nacionalistas brasileiros, quanto do lado dos preservadores do Deutschtum, que

desempenharam papéis importantes e fundamentais em todo o processo do conflito.

Gostaria de corroborar estes fatos, com um texto publicado em Paris, por Ernest

Tonnelat, em 1907. Ele trata de suas impressões e do seu contato com as colônias alemãs

58 DREHER, Martin N. Igreja e Germanidade. São Leopoldo : Sinodal, 1984.

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no Brasil. Ele inicia seu texto falando da imprensa alemã, que elogia os teuto-brasileiros

que souberam, mesmo no estrangeiro, se tornar paladinos do germanismo.59 Tal afirmação

denota mudanças nos dois lados: o do interesse que as idéias do pangermanismo passam a

despertar na Alemanha, e o conseqüente interesse por quem vive longe do país. Do outro

lado, se percebe que efetivamente passamos a ter no Brasil, pessoas empenhadas no que

viria a ser chamado de Kulturkampf, batalha cultural ou combate civilizador. Ao declarar

que estes, do lado brasileiro, não são os menos inteligentes e os menos empreendedores, ele

indica para duas frentes: de um lado, se refere a pastores e professores, e de outro lado, aos

ricos comerciantes e industriais. Porém, este interesse pela preservação da germanidade tem

também o seu espaço físico e geográfico definido: “fora aqueles que moram nas cidades ou

nos grandes centros agrícolas, ninguém se interessa pela luta em prol do Deutschtum. A

ignorância dos camponeses é grande...e a ignorância das coisas que se referem à Alemanha

é estarrecedora.”60 Portanto, parece ser entre o povo culto, urbano e mais elitizado que as

propostas do pangermanismo encontram mais eco e adesão. Novamente podemos observar

aqui o “espelho” daquilo que, no lado oposto, acontecia com os nacionalistas brasileiros.

Penso ser importante aqui, dizer que os clubes alemães, as igrejas luteranas, as

escolas e a imprensa alemã não são, em si, pólos difusores do pangermanismo. Mas,

qualquer pangermanista vai se valer destes, para propagar seus ideais. Isto porque em

qualquer um deste ele vai encontrar um povo que se vincula etnicamente e, no mínimo, vai

ter em comum o uso da língua alemã. Falando de etnia e etnicidade, Behs cita Max Weber,

que diz:

Grupos étnicos são aqueles que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou de costumes, ou dos dois, ou nas lembranças de colonização ou de migração, de modo que esta crença se torna importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma comunidade de sangue exista ou não, objetivamente.61

A língua e a religião são importantes na definição destes grupos étnicos. A

identidade étnica dos alemães em Curitiba e no Brasil é construída basicamente em torno

destes dois fatores. Ela não é fruto do “isolamento geográfico”, como afirmava Willems,

59 TONNELAT, Ernest. Les Colonies Allemands au Brésil. Revue de Paris : 1907. p. 352-372. Traduzido por: DIRKSEN, Valberto. In: Revista Catarinense de História. no. 2. 1994. P. 57. 60 Ibid. p. 59 61 BEHS, op. cit. p. 11.

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por exemplo.62 O isolamento geográfico muitas vezes contribuiu para reforçar a

exclusividade de língua e religião. Também Giralda Seyferth enfatiza esta condição:

Colocando a parte as considerações acerca do povoamento, deve ser dito que o isolamento inicial da colônia, a falta de via de comunicação, de recursos suficientes para implantar uma infra-estrutura de serviços públicos (escolas, por exemplo), além do próprio sistema de colonização, fez com que se formasse um grupo étnico relativamente homogêneo que, desde os primeiros contatos, se colocou em oposição aos colonos de outras origens. Este grupo organizou sua vida comunitária de acordo com os padrões que considerava alemães, construiu e organizou suas escolas e igrejas.. seus clubes e sociedades consideradas alemãs (Turnverein, Schützverein, Gesangverein, etc.) e apesar dos contatos com italianos e brasileiros, manteve o uso cotidiano da língua alemã.63

Porém, este isolamento sequer é buscado voluntariamente. Pelo contrário, ao

falarmos da colonização “oficial”, acima, é nitidamente perceptível que o colono alemão

sempre procura furar este esquema. Ele prefere o ambiente urbano ou a proximidade deste.

Ele somente se resigna ao isolamento interiorano, quando não lhe restam outras opções.

Neste sentido podemos dizer que ele busca a integração ao meio, e por conseqüência, a

assimilação. Porém, é constatável, também, que mesmo no meio urbano ele pode viver

“isolado”. Neste caso, o isolamento não é fruto de uma equação simples. Concorrem para

ele diversos fatores. Em primeiro lugar, ele é fruto da marginalização social e política, e do

status de inferioridade a que os imigrantes foram submetidos no período imperial. Já no

período republicano, o isolamento foi um conceito usado e re-enfatizado, como um

instrumento para a demarcação das diferenças. Inúmeras vezes aparece na imprensa e em

outros meios, a ênfase no caráter de “estrangeiros” dos grupos imigrados, também como

forma de inibir seus avanços políticos, econômicos e sociais. Este é o discurso preferido

dos nacionalistas brasileiros. Por outro lado, tal discurso reforça a diferença, o conceito de

raça, de identidade étnica diferenciada, e de uma homogeneidade que não existia antes, pois

foi construída aqui no Brasil.

É na complexidade do meio, das relações interculturais, da conjuntura social,

política e econômica, que surge o “alemão brasileiro”. Este grupo étnico vai se percebendo

62 WILLEMS, Emílio. Assimilação e populações marginais no Brasil. São Paulo : Nacional. 1940. P. 76-93 63 SEYFERTH, Giralda. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis : Fundação Catarinense de Cultura. 1981.

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unido por um conjunto de elementos e tradições não compartilhadas por seus vizinhos.

Assim, ele também vai sendo percebido pelos outros. Por outro lado, os dados apresentados

acima acerca da inserção política, social e econômica em Curitiba, não nos permitem dizer

que exista um isolamento. Ainda mais, se for entendido como um isolamento pelo

isolamento, um isolamento intencional, criado para marcar e manter a diferença, visando a

construção de uma nova sociedade, em confronto com a existente. Pelo contrário, aonde

isto era possível, percebia-se um grande esforço no sentido de integração e assimilação.

Ainda mais que na Curitiba do início do Séc. XX nem é mais possível falar em

minorias étnicas, tal a proporção de imigrantes em relação ao todo da população. Eles

devem passar a ser considerados como grupos étnicos, que se reconhecem e são

reconhecidos pelos outros. Já a minoria é definida apenas pelo preconceito e pela

discriminação exercida pelos grupos dominantes. É notório que são grupos étnicos que

caminham para uma gradual assimilação que, por vezes, sofre retrocessos. Foi o que

aconteceu nas Grandes Guerras, onde estes grupos voltaram a ser tratados tipicamente

como minorias marginais. Em diversos momentos idênticos, se percebe que a pressão sobre

a etnia requer uma despolitização do grupo, um não engajamento. É o que acontece com os

turcos na Alemanha, por exemplo, nos dias atuais.

Para concluir este capítulo, quero ressaltar o fato de que para quase a totalidade dos

imigrados, o Brasil era a sua única pátria. Vieram para ficar, e não para fazer dinheiro e

voltar. Amavam o país que os acolhera e à ele entregavam suas vidas. Respeitavam suas

leis e seus ordenamentos jurídicos e administrativos. A batalha que se travou na primeira

metade do século XX foi pela muito mais pela “alma” do povo. Foi uma batalha em torno

das subjetividades, das identidades que se procuravam firmar. Fato é que no campo das

mentalidades, toda mudança é mais demorada, muito mais lenta. Como deixar de falar a

Muttersprache, se toda a cosmovisão, os conceitos e idéias são organizados a partir da

língua falada. A ruptura com a “alma”, com o mundo da subjetividade, com os amores e

afetos, as lembranças e até a espiritualidade, é bem mais complicada. Cito aqui extratos de

uma entrevista publicada no Jornal Zero Hora, de Porto Alegre, que fala de experiências

semelhantes com brasileiros que vivem nos dias atuais, em Danbury, Connecticut, Estados

Unidos da América:

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Um recém-chegado a Danbury pode concluir, diante do número de estabelecimentos comerciais pertencentes a brasileiros, que é fácil enriquecer nos Estados Unidos... e que a comunidade brasileira conseguiu integra-se plenamente à cidade. Pela opinião dos americanos, falta muito para que esta integração se concretize. Eles enumeram um extenso rol de queixas contra os brasileiros residentes na cidade: não se interessam em aprender o inglês, não sabem pedir “por favor”, falam alto demais e as mulheres “usam roupas ousadas demais”. Um americano conta que sua filha entrou numa lanchonete de brasileiros para pedir um suco de laranja, e não foi atendida pelo balconista que não sabia uma palavra em inglês. Como é possível, reclama ele, morar nos Estados Unidos e não saber uma palavra em inglês? Os brasileiros vivem uma espécie de gueto móvel... Seu itinerário limita-se ao trecho da Main Street, ocupado por lojas brasileiras, e seu lazer ao bar Emilia’s, que pertence a um português, onde passam as noites dos finais de semana dançando ao som de música brasileira.64

Certamente que a distância reforça certos hábitos a atitudes antes até desprezados. É

assim com os laços familiares. É assim com hábitos e costumes. É por isto que os gaúchos

fundam seus Centros de Tradições, os CTG’s, em qualquer lugar do mundo. Recentemente

encontrei um em Natal, RN. Eles existem, também, na Europa, nos Estados Unidos e até

em Tókio, no Japão. Nestes locais se cultivam costumes e lembranças do passado que, na

realidade, são convenções e mitos que não representam a realidade de cada dia. “No Rio

Grande amado”, como costumam dizer, estas coisas já não existem. Mas, são mantidas

como elementos da subjetividade, culturais, que perpetuam certos vínculos, os quais são

meramente convencionais. Tonnelat assim registra que “a saudade dos velhos imigrantes é

mais convencional do que profundamente sentida”.65 É uma saudade pró-forma, pouco

representativa de sentimentos reais. Falavam o alemão da mesma forma como os brasileiros

que moram no exterior preferem falar o português quando estão entre eles. É algo que toca

as coisas do íntimo, da alma, do coração, e que as gerações seguintes inevitavelmente irão

perder. De forma alguma, tal atitude é depreciativa acerca da língua e dos costumes locais.

Encontramos esta visão no editorial do jornal Deutsche Zeitung (Jornal Alemão),

cujo redator-chefe escreve sobre o Deutschtum, em 1906:

Ao tentar preservar e transmitir a nossos descendentes nossa herança cultural e em particular sua mais alta expressão, nossa língua, temos consciência de

64 ZERO HORA. Americanos reclamam dos hábitos dos vizinhos. Porto Alegre, Domingo,

27/01/2002. p. 31. 65 TONNELAT, Ernest. Op. Cit. p. 64.

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prestar um grande serviço não somente aos nossos filhos, mas também a nosso país, o Brasil; pois enquanto a nossa língua continua viva entre nós, subsistem também as nossas tradições civilizatórias, e todas estas qualidades, que sempre fizeram do alemão no estrangeiro o melhor e mais leal colaborador da prosperidade de sua nova pátria.66

É evidente que a visão paradigmática expressa neste editorial, tanto nas mãos de

nacionalistas, como nas de pangermanistas, serve de combustível para qualquer de suas

causas. Os pangermanistas começaram a usar desta via para reforçarem seus conceitos,

introduzindo o culto à raça, ao germanismo, à Pátria-mãe, coisas estas que soavam

estranhas aos velhos imigrantes e seus descendentes, mas que ganhavam eco entre neo-

imigrados, os novos alemães. Entre os simpatizantes do Deutschtum estavam especialmente

professores e liberais da imprensa, além de pastores e veteranos de guerra. Entre os dois

primeiros grupos havia pessoas cultas, que mantinham vínculos cada vez mais fortes com a

Alemanha. Além disto, eram organizados e formadores de opinião. Já em 1910, os

professores realizaram, na cidade da Lapa, o primeiro congresso nacional de professores

teutos, e onze anos após, em 1921, lançaram o dia da Escola teuto-brasileira.67 Já a

Imprensa alemã tomava muitos cuidados em não apoiar explicitamente a causa

pangermanista. Porém, muitas vezes, tomava posições implícitas. É verdade que, do lado

oposto, a imprensa nacional era bem mais explícita, e batia forte em qualquer sentimento

que pudesse levantar suspeita. Sua vantagem é que chegava à toda a população, enquanto

que os jornais alemães circulavam apenas entre os círculos germânicos. O Correio do Povo,

de Porto Alegre, por exemplo, em Agosto de 1904 traz matéria investigando o “perigo

alemão” em periódicos da Alemanha, donde conclui que “os alemães consideravam os três

estados do Sul do Brasil, como uma zona reservada à sua influência”.68 Havia um temor,

real ou imaginário, acercas das intenções do Império Alemão, certamente motivado pelo

número e pela expressão social e econômica dos imigrantes aqui radicados. Desde 1852,

havia 68 jornais alemães, 9 almanaques, 12 revistas religiosas, 5 pedagógicas, 8 sobre

agricultura e 4 sobre a família, circulando no Brasil. Entre os jornais, havia dois editados

em Curitiba: o Kompass (Bússola), de linha conservadora e católica, e o Beobachter

66 Ibid. p. 65. 67 HEISLER, Alfredo. Op. Cit. p. 35. 68 CORREIO DO POVO. Porto Alegre, Agosto de 1904.

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(Observador), de linha mais liberal e evangélica. Emílio Wilems cita o Kompass, que em

1935, publicava artigo em que falava da ambigüidade do termo Deutschtum:

A idéia étnica baseia-se em sangue e língua. Ela ultrapassa as fronteiras do estado e não tem nada a ver com as convicções e os direitos de cidadania. Onde se procura fundir poder estatal, política e nacionalidade com a idéia étnica, trilha-se por caminhos errados, em prejuízo da idéia étnica. Falamos tanto de germanismo, da necessidade de conservá-lo, de cultivá-lo na escola e em casa, da sua importância para a alma e a salvação do homem germânico. Mas o que é germanismo? Não é o lugar de nascimento, não é a cidadania que o definem, mas a grande família étnica, as tribus de que os homens procederam. Um cidadão russo ou norte-americano de sangue germânico, sempre fará parte do povo alemão quanto à mentalidade e caráter. Ele vive da etnia à qual pertence, mesmo se isto jamais lhe vier à consciência.69

O receio dos que combatiam os “estrangeiros”, era de que esta idéia étnica se

fortalecesse e viesse à consciência de muitos. Mais do que isso, que ela viesse a ser

vinculada com política, territorialidade e Estado Nacional, como sonhavam os nazistas.

Contudo, era praticamente impossível que tais coisas viessem a se tornar em um

movimento de massas, pois fazia parte dos ideais de uma minoria das elites, se tanto.

Periodicamente, porém, se levantavam tais suspeitas, questionando a índole dos

descendentes germânicos, e suas reais intenções no Brasil. Wilson Martins cita Raul

Darchanchy, que em 1915 editou um livro chamado: “O pangermanismo no Sul do Brasil”,

no qual procura identificar um caráter para-militar na colonização germânica.70 Para

Martins, tais calúnias se originavam na inveja da situação de prosperidade que os alemães

haviam atingido, o que lhes dava um padrão de vida superior. Para reafirmar suas idéias, ele

cita um relato acerca da experiência do escritor Ernesto Niemeyer, onde lemos:

O colono no Brasil adquire uma mentalidade mais ampla, oriunda de sua vida no seio de uma grande natureza, a sua visão se alarga, e ele se liberta completamente de todos os preconceitos de visão ou de casta, os seus olhos admiram a beleza do país e em pouco tempo aprende a amar a sua nova pátria. Tanto ele quanto seus filhos transformam-se em pouco tempo de “teutos” e “teuto-brasileiros”, em bons brasileiros. Mas, no seu íntimo, ele guarda uma alma alemã, não abandonando a sua língua e os seus velhos costumes. Conservando com fidelidade os cantos alemães, festejando o dia de Natal,... E outras comemorações com maior profundidade ainda

69 Jornal Der Kompass, Curitiba, 1935, No. 36. 70 MARTINS, Wilson. Op. Cit. p. 97.

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do que se estivesse em seu país! Muito colono alemão transforma-se num cidadão alemão melhor do que o era antes de emigrar. O seu germanismo é liberto das escórias da mediocridade. Também os filhos ainda guardam a herança do espírito alemão, pois em tudo eles são os herdeiros de seus pais, visto que simples mudanças geográficas não anulam as características raciais determinadas pela língua e pelas tradições de família. Depois de adquirir recursos, começa a sentir saudades de sua velha pátria, sonhando com os lugares de sua infância, e a sua fantasia faz tudo ser mais belo do que é na realidade. Viaja para a Alemanha e visita a sua cidade natal... Mas, oh! Desapontamento! Não mais encontra o que deixara... Ele se sente, então, um estranho em meio ao seu próprio povo, que não mais o reconhece! Voltando ao Brasil, decide, então, viver definitivamente no país de seus filhos, país que escolheu para si!” “Ele compreende, afinal, que a pátria não é apenas a terra, mas os amigos, o lar, os parentes, além dos hábitos, idéias e crenças que assumiu!.71

Aqui vale a máxima: “ser alemão, sim, deixar de ser brasileiro: jamais!” Por isto,

quando mais tarde o germanismo nacionalista ascendeu ao poder, e a Ausländer

Organisation (Organização para o Exterior) dava a entender que para “ser alemão”

precisava deixar de “ser brasileiro”, o pangermanismo começou a morrer por aqui.72 Fato é

que os filiados ao NSDAP, eram pouco mais de uma centena, em qualquer Estado do sul do

país. Mais precisamente, havia 192 filiados no Paraná.73 A grande massa estava

completamente alienada destas questões, e muitos se colocavam a combater estes

“estranhos no ninho”. Tinham, na verdade, grande antipatia pelos nazistas, pela sua

arrogância e agressividade, mesmo contra a população teuto-brasileira. A causa nazista não

tinha futuro no Brasil. Porém, a marcha do nazismo na Alemanha, seu crescimento, e a

simples presença de elementos destes sendo identificados em diversos círculos no Brasil,

era motivo suficiente para o surgimento de suspeitas e cautelas entre os nacionalistas e as

autoridades brasileiras. Estes elementos escolhiam especialmente as associações, clubes e

escolas, onde o alemão era o idioma oficial, para lá se infiltrarem e propagarem seus ideais.

A igreja evangélica alemã era, também, um destes fóruns. Por isto, queremos ver como ela

se articulou e viu todo este contexto.

71 Ibid. P. 98. 72 DREHER, Martin. Op. Cit. p. 80-87. 73

DEAP – PR. Arquivo do D.O.P.S. pasta No. 125. p. 111.

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4.3 – A GEMEINDE E O DEUTSCHTUM EM CURITIBA

Os clubes, ou Vereine, as associações de todos os tipos, e a Igreja, sobretudo a

luterana, assumem o caráter de locais de encontro com certas tradições, com certos

conceitos e ideais, ou com a subjetividade dos vínculos do passado. Vínculos que o tempo

trata de enfraquecer e diluir, até não sobrar nada deles, senão a subjetividade da memória.

Qual o significado concreto destes, para as gerações que nasceram no Brasil, que nas

décadas de 20 ou 30 do Séc. XX são filhos ou netos de imigrantes? Tonnelat já constatara,

em 1907:

A força dos fatos afasta as jovens gerações do ideal dos velhos. Este mesmo amor à terra natal, que leva invencivelmente a lembrança dos velhos para as margens do Reno, ou aos campos da Pomerânia, prende os filhos dos colonos à floresta materna e ao solo brasileiro. A rede múltipla e imperiosa dos hábitos e da vida diária, as lembranças da infância. O meio familiar, amarra as lembranças dos filhos ao país, e os impedem de voltar-se para uma região da qual sabem apenas o nome. Quanto ao mais, o crescente bem-estar da população alemã não é feito para avivar lamentações da pátria perdida. Do egoísmo satisfeito nasce um novo patriotismo, que os pais não ousam confessar, mas que os filhos proclamam.74

Como já constatamos anteriormente, o germanismo nada significava para os

primeiros imigrantes. Entre eles encontramos, por exemplo, o pastor Frederico

Klingelhoelfen, que se estabeleceu em Campo Bom, RS, no início da colonização. Há

relatos que Frederico tombou como autêntico combatente Farrapo. Sua vida é cantada em

verso e prosa, como alguém que lutou e se entregou pela nova terra, como se na velha

Europa já tivesse nascido gaúcho.75 Verdade é que Frederico era da categoria dos

“pseudopastores”, dos chamados e vocacionados para o ministério pastoral, sem terem tido

uma formação formal. Assim também o era o primeiro pastor de Comunidade Evangélica

Alemã de Curitiba. Johann Friedrich Gärtner, era professor, que se sentiu vocacionado e foi

instituído como pregador. Ignorando a rápida passagem do Pr. Kröehne, que não

permaneceu na Comunidade, já o pastor seguinte, Augusto Boeckert (1872-1885) era um

representante do clero formal. Isto porque, movidos por relatos acerca do triste estado de

74 TONNELAT, Ernest. Op. Cit. p. 64. 75 Canção: “Pastor Farrapo”, uma homenagem a Frederico Klingelhoefeln, lançada no 6o. Acampamento Nativo. Campo Bom, 1986.

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abandono dos fiéis luteranos no Brasil, a partir de 1864, diversas instituições alemãs

começam a enviar para cá, pastores academicamente formados. A primeira foi a Sociedade

Missionária da Basiléia, Suíça. Seguindo seu exemplo, outros órgãos como o Conselho

Superior Eclesiástico da Baviera, o de Berlim, a Sociedade Gustavo Adolfo, a Sociedade

Evangélica para os Alemães Protestantes na América e a Associação da Caixa de Deus,

também começaram a sistematicamente enviar os seus pastores. As comunidades daqui os

recebiam, sem poder interferir na sua escolha. Fora o Pastor Böckert que permaneceu 14

anos no cargo, os que se seguiram não permaneciam mais de cinco anos e voltavam para a

Alemanha.

Dois aspectos importantes devem ser ressaltados, os quais se sucederam com a

vinda destes pastores. Primeiro que, devido à sua profunda formação acadêmica, eles

geralmente deixavam um profundo legado na área do ensino. Num país inculto e iletrado,

onde poucas crianças tinham acesso a escola, a insistência dos luteranos em criar e manter

suas escolas comunitárias era extremamente positiva. Quase todos estes pastores estavam

envolvidos com a educação. De 34 pastores, no RS, apenas 4 não lecionavam.76 Todos os

filhos tinham que estudar, e aprender, nem que fosse o básico: ler, escrever e fazer cálculos.

A insistente oferta de escola para todos os filhos, era uma novidade trazida pelos

imigrantes. Pouco ou nada se podia esperar do governo brasileiro naquela época.

Evidentemente que as aulas eram dadas em alemão, o que preenchia um outro interesse: o

de manter a língua, os conceitos e a cultura alemã. Também aqui a Escola Alemã logo

começou a funcionar junto à casa pastoral. Em 1876, com o novo templo, ela passa a

funcionar no mezzanino deste. A escola vinha crescendo tanto que, em 1884 a Comunidade

o passa para uma Sociedade Escolar, à ela vinculada. Já em 1892, um novo e suntuoso

prédio é inaugurado, onde a escola passa a abrigar 360 alunos matriculados. Estas escolas

se multiplicam em tal quantidade que, até a década de 30 existem em torno de 570 delas.

Em 1927, são contadas 1155 delas. Certamente a difusão das escolas comunitárias no Sul e

Sudeste do Brasil exerceu pressão e influência sobre o sistema escolar no Brasil. Muitas

destas escolas, como a de Curitiba, além do alemão e do português, têm no currículo o

latim e o francês. Neste período, grande parte das famílias influentes da cidade têm seus

76 MÜLLER, Telmo Lauro. Nacionalização e imigração alemã. São Leopoldo : Unisinos, 1994. p. 32

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filhos estudando na Escola Alemã, ou nas escolas alemãs católicas: o Bom Jesus e a Divina

Providência.

Depois da virada do século, porém, as autoridades nacionais começaram a olhar

estas escolas com desconfiança, entendendo que elas “estrangeirizavam” as crianças

brasileiras, germanizando ou italianizando-as. Dentro do que já foi exposto acima, tais

autoridades não deixavam de ter suas razões. Porém, somente a desconfiança, sem uma

ação concreta no sentido de prover o país de escolas públicas, de nada adiantava. Era um

retrocesso. Foi o que aconteceu com a escola Alemã, durante a Primeira Guerra Mundial.

Uma escola com mais de 500 alunos matriculados, numa Curitiba ainda pacata, que contava

com pouco mais de 60.000 habitantes, era fato relevante. Boa parte da intelectualidade local

passava pelos seus bancos. Ainda durante a guerra, houve a mudança do nome de Escola

Alemã, para Colégio Progresso. De forma destacada, foi pintado em sua fachada:

“Fiscalizado pelo Governo Federal”. Mesmo assim, o Colégio foi fechado em 1917, por

causa de um incidente diplomático. Reabriu após e Guerra, e voltou a crescer e ser pujante

na década de 20. Porém, sempre sob a suspeita do estrangeirismo, e de trabalhar para

causas estranhas aos interesses do país.

Certamente, o fortalecimento que vinha a partir da educação permitia um avanço

cultural significativo para os filhos e descendentes de imigrantes. O fato de que um dos

principais almanaques editados no Brasil, o “Almanaque para os Alemães no Brasil”,

publicado por W. Rottermund, ter tido uma edição de quase 30 mil exemplares, mostra que

os alemães liam, e liam muito.

As coisas começaram a complicar com as mudanças políticas no plano nacional e

internacional, nos anos 30. A perseguição e o fechamento que se desencadeou a partir de

Estado Novo contra esta escola mostra, no mínimo, falta de sabedoria e bom senso. Subtrair

do povo brasileiro cerca de 1000 destas escolas, tratando-as como centros de subversão e

alienação da realidade nacional foi um ato infeliz, e um erro que condenou muita gente à

completa ignorância. O primeiro professor de fala portuguesa enviado pelo governo à

minha cidade natal consta que chegou lá em 1942. A colônia já havia sido estabelecida

naquele lugar cerca de 120 anos antes. Até aquele ano só tiveram escola, porque eles

mesmos a patrocinaram. Se a instrução fazia realmente parte do “projeto civilizador” do

governo, e das elites brasileiras, não terem buscado outra forma de aproveitamento das

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centenas de boas escolas, do que simplesmente fechá-las foi um erro grosseiro.77 Foi uma

grande perda no aspecto cultural e social. Por ironia, em nossos dias, a Escola que funciona

nos moldes do Colégio Progresso é a Escola Internacional de Curitiba. Lá se estuda a partir

de uma língua estrangeira. Além disto, é a mais cara e elitizada da cidade, onde estudam

todos os filhos dos governantes e dos mais ricos empresários.

Estas suspeitas se erguiam também contra clubes e comunidades de fé! Aí entra o

segundo aspecto, o menos vantajoso que se tinha com a presença dos pastores com

formação acadêmica, que vinham ao Brasil, mas vinham só para ficar pouco tempo, e

depois voltavam para a Alemanha. Estes não se vinculavam, nem podiam compreender a

história, os costumes e o pensamento local. Viviam completamente descontextualizados.

Traziam consigo a sempre renovada bagagem cultural européia. Enquanto que os membros

já tinham uma caminhada de assimilação, de contextualização, de interações e trocas, o

clero restringia sua atuação a oficialidade de suas funções.

Se nas coisas do dia a dia, nos costumes e nos contatos culturais começava a existir

um distanciamento entre o clero e a comunidade, a convergência precisava se dar na língua

e nas tradições litúrgicas. Também aí, vemos como o contexto e a conjugação das forças

vai determinando as escolhas e os caminhos que serão trilhados. A igreja luterana que se

estabeleceu nos Estados Unidos, no mesmo período, seguiu outros caminhos. Lá o alemão

não se tornou em língua sacra, litúrgica, e nem o germanismo teve ascendência sobre a

igreja. Nem foi assim nas igrejas luteranas que se estabeleceram na Ásia ou na África. Mas,

o foi na América Latina.

Esta conjugação de forças tem a ver com o momento em que os imigrantes saíram

da Alemanha, suas motivações e ambições. Tem a ver com o momento em que eles

chegaram no Brasil, o contexto social, político e cultural que aqui encontraram. Os 50 anos

iniciais em Curitiba (1866-1916) foram vividos numa grande paradoxalidade. Tanto que

não há registros em seus protocolos de nenhum tipo de comemoração alusiva à esta data.

Também pudera, pois estávamos em meio a primeira Grande Guerra. E o contexto que

vinha se desenhando nos primeiros anos do Século XX era cada vez mais desfavorável para

os imigrantes.

77 MAGALHÃES, Marionilde Brephol de. Pangermanismo e Nazismo. Campinas : Fapesp 1998. p. 65

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Se no último quartel do Século XIX, o grupo das elites brasileiras que entendiam

que o desenvolvimento do país deveria ser alavancado pela presença dos “imigrantes

europeus” foi majoritário, o mesmo já não vinha acontecendo nos anos anteriores à Guerra.

Assim, os imigrantes passam a ser acentuadamente chamados de “estrangeiros”. Suas

diferenças de origem, de raça e cor, passam a ser destacadas pelos próprios brasileiros.

Cria-se um dualismo difícil de ser entendido, pois se haviam sido trazidos com

determinados propósitos ao país, estes estavam sendo rigorosamente cumpridos. Ocupavam

o território e se espalhavam nas regiões onde o governo brasileiro pretendia fazê-lo.

Incrementavam a presença da população branca, dando um outro colorido ao povo

brasileiro, que no entender daquelas autoridades estava escuro demais. Haviam se inserido

social e economicamente, dando uma grande contribuição no desenvolvimento agrícola,

industrial e comercial. Abasteciam as cidades de gêneros alimentícios e traziam novidades

para a construção civil. Enfim, como entender que, ao cumprirem com o papel que lhes fora

proposto, passam a ser considerados como um perigo e uma ameaça ao país? Como

entender que eles, que se achegavam a nova terra, aprendiam a amá-la como sua Pátria, seu

lar, seu chão, por outro lado, viam crescer expressões que os classificavam como

estrangeiros, subversivos e representantes de interesses alheios. Logo eles, que sempre

foram exageradamente ordeiros e conservadores, sempre ao lado da direita liberal?

Do outro lado, o conceito de raça também era reforçado pelo discurso dos

germanistas. Infiltrados na imprensa, entre os professores, pastores e dirigentes de clubes.

Três pastores se seguiram no 15 anos entre 1885 e 1900. Não encontrei registros de

discursos ou manifestações de sua parte. Porém, sua situação “de passagem” certamente

não lhes permitiu outra coisa de que uma legitimação do status quo. Uma situação de

continuidade na vinculação entre germanismo e luteranismo. Eles conheciam a prática

alemã e, vinham para cá, com a intenção de reforçá-la por aqui. Creio que nem poderia ser

diferente, naquele contexto. Porém, enquanto que em outras regiões do Sul do país a

aderência entre germanismo e luteranismo já era bem mais profunda, em Curitiba isto

parece que ainda não era assim. Pelo menos até a virada do Século, que trouxe a novidade

do cisma e da divisão na comunidade. As atas da Comunidade, aliás, como é de praxe, não

dão muitas pistas e quase nunca entram em detalhes quando de ocorrências que “não

interessam” ao público externo. Dão conta apenas que uma parte da Comunidade se retirou

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e posteriormente fundou uma nova, acentuando mais a confessionalidade luterana. O

motivo declarado é a posição da Escola Alemã, diante do ensino religioso. Dentro da

conjuntura que temos analisado, este motivo tem conotações bem mais amplas. O pastor

Siegfried Schulz não gostou e não concordou com a exclusão das aulas de ensino religioso

do currículo da instituição. Lembremos que ele acabara de chegar ao Brasil, em 1896,

portanto há pouco mais de três anos. Vinha de uma Alemanha onde o pangermanismo

tomava ares de discurso do Reich. Um discurso que o nome forte no Rio grande do Sul, o

pastor Wilhelm Rottermund adotara como discurso de todo o Sínodo Riograndense, do qual

ele era presidente. Rottermund, além de pastor, era editor e um dos maiores publicadores de

material em língua alemã, através dos seus jornais, almanaques, revistas e livros.

LUTHERTUM IST DEUTSCHTUM (luteranismo é germanismo) era o discurso que se

oficializava. Tornava-se corrente nos círculos eclesiásticos, o pensamento de que havia uma

relação de vida ou morte entre a fé evangélica/luterana e o germanismo.78 Isto chegava a tal

ponto que afirmavam de que um não existiria sem o outro. Talvez, por que mais e mais as

pessoas justamente se afastavam dos pilares alemães do luteranismo.

Isso também pode ser verificado na situação de Curitiba. No comércio, na indústria

e na vida pública, um intenso caminho de assimilação vem sendo trilhado. Ao passo que na

vida privada, que inclui o lar, a igreja e os clubes alemães, o comportamento é o inverso. O

cerco racial e étnico se fecha cada vez mais. A escola está no meio termo desta situação. O

pastor e algumas lideranças não abrem mão de vê-la como área de sua influência. As aulas

de religião, até então, eram de sua exclusiva atribuição. Como uma extensão da família e da

igreja, a escola era um centro de influência, manutenção e divulgação da cultura germânica.

Já outra parte das lideranças vinha assimilando os princípios republicanos, e se voltando

para o ensino laico, de tendências liberais e positivistas. O próprio nome escolhido para

substituir o nome Escola Alemã, em pleno andamento da Guerra, corrobora estes fatos:

Colégio PROGRESSO. Tal escolha parece estar alinhada com a própria mentalidade da

Comunidade. O fato de se verificar, numa Assembléia Geral, que os que pensavam assim

eram absoluta maioria, a ponto de destituírem o pastor de suas funções, aponta a favor de

inserção e assimilação cultural. Assim como também, o fato da parte retirante fundar outra

escola “confessional”, aponta justamente para a direção oposta. .

78 MAGALHÃES, Marionilde Brephol de. Op. Cit. p. 172-173.

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Comunidade Evangélica Luterana de Cristo, como foi denominada, foi fundada em

1901 a durou até 1947, quando voltou a se unir com a Comunidade mãe. Contudo, até hoje

ela mantém as características que a levaram ao cisma. A “igreja pequena” como era

chamada, era muito mais “alemã”. Depois de ler todas as atas dos 46 anos de existência

desta Comunidade, algumas coisas chamam a atenção. A primeira é que todas as suas atas

foram continuamente escritas em alemão, até 10 de Janeiro de 1942, data da última ata. Nos

cinco últimos anos em que ela ainda tinha vida independente, não há nenhum tipo de

registro. A segunda observação interessante é que em ata alguma, em momento algum é

citado qualquer acontecimento político ou conjuntural, seja do Brasil ou da Europa.

Passamos por duas Guerras Mundiais, e não há nenhuma menção. Por ser uma comunidade

mais vinculada à ortodoxia luterana, era de se esperar que houvesse algum comentário,

algum dado, algum registro. Mas, não há absolutamente nada. O único comentário afim é

do pastor Karl Frank, que diz que a Comunidade não irá assumir o ônus da mudança pela

nacionalização do Jardim de Infância que a Comunidade mantinha. A única nota curiosa é

protagonizada pelo Secretário Germano Döbler que vinha assinando as atas, como

secretário, havia muito tempo. Justamente em 1937, quando as coisas fervem, ele passa a

assiná-las como “Hermann Döbler”, a forma germânica de escrever seu nome. Quando

muitos outros faziam o contrário, aportuguesando seus nomes, ele volta ao alemão,

parecendo fazer questão de dizer quem é, e com isso afirmar suas crenças e convicções.

Aliás, esta é a impressão que dá do grupo da Igreja Pequena. Vale destacar que o mesmo

grupo dirigia a comunidade por mais de vinte anos, e que o seu Pastor, Karl Frank (1910-

1958), foi um dos que foram presos, pelos agentes do DOPS. Depois da fusão, ela não mais

se desenvolveu, e ficou restrita a algumas famílias tradicionais. O que hoje ainda resta,

continua sendo feito totalmente em língua alemã.

Já a Comunidade mãe, depois de ficar sem o seu pastor e uma parte de seus

membros, resolveu romper com Berlim, e decidiu ela mesma buscar o seu pastor. Ele foi

escolhido, não só para a função, mas para liderar um processo, que passava pela

pacificação, pela inserção social e assimilação cultural. Diferente do normal dos seus

colegas, o Pastor Berchner veio para ficar. De 23 de janeiro de 1901 a 1932 ele exerceu o

ministério pastoral à frente da Comunidade. Tal atitude rompe com os esquemas

pangermanistas. Ele não parece ter sido adepto de seus ideais. Ele conseguiu pacificar a

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comunidade e a conduziu por período de crescimento e edificação. Porém, parece que

mesmo ele não conseguiu romper com as barreiras raciais e culturais, levando a

Comunidade para uma hibridização. As duas comunidades atravessam com relativa paz a

primeira grande crise provocada pela I Grande Guerra, e na década de 20 se reafirmavam

como comunidades alemãs, em todo o seu ser. Ele faleceu em 1932, de forma inesperada,

em Hamburgo, quando fazia uma viagem de férias pela Alemanha. Tamanha foi sua

importância para a Comunidade, que ela fez questão de trazer o seu corpo de volta ao

Brasil, para aqui sepultá-lo, ele que era alemão! Mas, aqui também viviam seus três filhos,

e estes não mais queriam saber de voltar para a Alemanha. O Brasil era o seu país, seu lar!

4.4 – AS COMEMORAÇÕES DO CENTENÁRIO (1829-1929)

Ainda antes de sua morte, o Pr. Berchner havia participado intensa e ativamente de

todas as comemorações do Centenário da Imigração Alemã no Paraná. Os festejos

aconteceram nos dias 12-14 de Abril de 1929. Na noite do dia 12, houve um grande desfile

pelas ruas da cidade, onde mais de 400 tochas tremulavam à frente das bandeiras dos

Clubes Alemães. Na frente do consulado alemão, o diretor do Colégio Progresso fez seu

discurso. Depois se deslocaram até a residência do Presidente Affonso A. de Camargo,

onde o Dr. Pamphilo d’Assumpção, um grande tribuno e germanófilo, fez um discurso

memorável, ao qual o Presidente respondeu de improviso, agradecendo pela estima

popular.79 No dia 13, houve uma missa na catedral, seguida por uma grande festa no

grande salão da Handwerker Unterstützungsverein, a Sociedade Operária Alemã, festa para

mais de duas mil pessoas. Aí estamos de volta para o local de onde iniciamos este trabalho.

Com a palavra do Pr. Gustav Berchner, orador oficial da noite, aclamado pelos presentes

pelo magistral discurso nos despedimos de uma etapa, para na seguinte, com os festejos

anunciados na introdução deste trabalho, nos encontrarmos com o Pr. Wilms, de onde

79 NIEMEYER, Ernesto. Os festejos do primeiro centenário da imigração alemã no Paraná. In: Os alemães nos Estados do PR e em SC, Curitiba, 1929. p. 150

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imergimos para os anos mais difíceis da Comunidade e de toda a Igreja Evangélica

Luterana no Brasil.

Antes de fazermos esta transição, quero ressaltar alguns detalhes desta festa que

encerrou os festejos daquele centenário. Primeiro chama atenção a solenidade de tais atos, e

o fato de serem públicos, e abertos à população toda. A segunda mostra a integração dos

alemães na cidade e no estado. O Presidente Estadual esteve sempre presente, ao lado do

arcebispo, e ainda assim o discurso oficial coube ao pastor luterano. Também o Dr.

Pamphilo novamente discursou, lembrando as grandes virtudes germânicas: a incansável

energia de trabalho, a fidelidade, o respeito perante a lei, o amor à ordem, e o seu gênio

pacato.80 Juntos, todos cantaram o hino brasileiro na abertura da solenidade, e o hino

alemão ao encerramento desta. Para Niemeyer, o registro destes fatos em um livro na língua

vernácula, “cristaliza o magno labor, paciência e ardente amor ao nosso querido Brasil”.81

Os anos vinte encerram um período, no qual algumas coisas parecem ter se

acomodado. Os imigrantes, apesar de ainda não terem conseguido vencer suas barreiras

raciais e culturais, assimilaram o Brasil e se vêem como brasileiros. A maioria ainda fala

alemão, ainda mantêm vivas tradições e costumes do passado, mas é só isso. O resto

pertence à memória do passado. Até o comportamento endogâmico costumeiro foi sendo

afrouxado. Apesar de, olhando de fora, ser possível ainda ver a igreja e os clubes como

verdadeiros guetos germânicos, eles próprios já não vêem isto com a mesma rigidez.

Porém, não se imaginava o que estava para vir. Os anos trinta reservaram um

recrudescimento sério de toda a questão pangermânica, motivada pela ascensão do

nacional-socialismo na Alemanha, e do outro lado, pela ascensão ao poder dos nacionalistas

brasileiros, na era Vargas.

80 Ibid. p. 151. 81 Ibid. p. 151.

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5- O IMIGRANTE ENTRE O NACIONALISMO BRASILEIRO E O NACIONAL-

SOCIALISMO ALEMÃO

Coincidência, ou não, no culto em memória pela morte do Pr. Berchner, em 28 de

Setembro de 1932, o coral que conduz os hinos, é o coral da Liga dos Alemães Veteranos

de Guerra.82 Sua presença é significativa, tendo em vista que uma grande leva de alemães

voltou a migrar ao Brasil na década de vinte. Muitos deste eram veteranos da primeira

Guerra Mundial. Com eles, está a profunda consciência do que lá aconteceu, e com eles

está o insuficiente conhecimento da cultura e do espaço social brasileiro.

A situação, dali em diante, ficará cada vez mais crítica. Os nacionalistas brasileiros

vinham se articulando de uma maneira cada vez mais contundente e efetiva. Disso fez parte

a Semana de Arte Moderna ocorrida em São Paulo, em 1922. Muitos identificam naquele

evento, o momento de ruptura com o arcaico e o passado brasileiro, e a inauguração efetiva

do Brasil como Nação. A contestação dos velhos paradigmas, da arte européia, do passado

sem uma identidade nacional, está expressa de todas as formas. Finalmente se passava a

encontrar uma identidade nacional. Um espaço social onde ela devia ser expressa e vivida.

O ideário nacionalista que vai sendo montado visa a independência econômica do exterior,

ao lado da industrialização da nação, e do seu desenvolvimento tecnológico e educacional.

Por outro lado, “paralelamente a esta concepção pragmática, um outro nacionalismo,

calcado em mitos de unidades irracionais, cujo pressuposto era a coesão social e, por

conseguinte, a eliminação do diferente, estava sendo gestado no interior de diversos

discursos relativos à cultura e à política”.83 Seu principal representante é Oliveira Vianna,

que mais tarde será um dos arquitetos da Constituição de 1934, também no que diz respeito

à política imigratória e à educação. Antes disso, porém, já em 1915, intelectuais como Ruy

Barbosa, Graça Aranha e Olavo Bilac, haviam criado a Liga de Defesa Nacional (LDN),

entidade ultranacionalista, que respondia pela difusão de idéias como a do “perigo alemão”

e a da anexação do Sul do Brasil, no caso de uma vitória da Alemanha na Guerra. Mesmo

que estes intelectuais todos se aproximassem de Vargas, os luteranos também o faziam,

82 Folheto distribuído no dia, com a Ordem do Culto. 83 MAGALHÃES, Marionilde Brephol de. Op. Cit. p. 67-68.

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pois entendiam que ele os libertaria de uma grande pressão vinda do outro lado, que queria

a completa recatolização do país.

Inaugurava-se assim uma arma de guerra em tempos de paz: a indústria do boato.

Patrocinada pela LDN durante a primeira Grande Guerra, ela não parou com o fim desta.

Especialmente a imprensa usava qualquer episódio que pudesse, para denegrir a imagem

dos germânicos. Assim foram projetando no inconsciente da nação, o inimigo coletivo de

que precisavam:

A leitura imaginária daqueles fatos, seus usos sociais junto as mais diferenciadas organizações, a circulação intermitente de notícias, falsas ou não, acerca dos teutos e de suas atividades, percorreram de ponta a ponta a sociedade brasileira. Transformando os imigrantes em indivíduos estrangeiros, no pleno sentido deste termo. Passaram a ser vistos como um corpo exógeno, submetido apenas as suas leis e interesses, dotados de um poder amedrontador e clandestino. Atores de uma conspiração sinistra, articuladores de táticas que iam desde a mera perturbação da ordem, até o envenenamento da população civil, falsos, comportando-se como bestas feras, descendentes de homens biologicamente predispostos à agressão, são designações que desvendam um processo de demonização do adversário, cujo poder só será destruído pela violência e pelo Bem Absoluto.84

Que diferente o discurso da realidade. Será que as autoridades políticas, como o

próprio Presidente Estadual, Dr. Affonso Camargo, o Arcebispo católico e os demais

líderes civis e religiosos não sabiam com quem estavam festejando o centenário da

imigração? Como coadunar o ideário do intelectualismo nacionalista, com o discurso do

Dr. D’Assumpção, caracterizando o germânico de incansável e pacato trabalhador? O

próprio imigrante se via assim, pois sempre prestou um culto incansável ao trabalho. Talvez

isto tenha feito uma grande diferença ao seu favor: o trabalho e a economia à qual ele se

força, elementos que não eram e em grande parte não são características da cultura

nacional!

Talvez, eram estas suas virtudes, que o tornavam tão detestável. Seu jeito

sistemático e metódico de ser. O suposto poder de determinação da história e sua

capacidade de controle social o tornavam um ser temível. Para combater esse inimigo

poderoso, mesmo que imaginário, o povo devia ser convencido do seu perigo. Assim,

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surgiam mitos como o mito da conspiração, ou o mito do quinta-colunismo no Brasil.

Assim, notícias do tipo faziam parte do dia a dia da imprensa nacional, nos anos 30.

Também no meio policial, e principalmente entre ele, encontravam eco tais afirmações. O

coronel Aurélio da Silva Py, por exemplo, Chefe de Polícia no Rio grande do Sul, era

taxativo em afirmar, que “a Igreja Luterana era um entreposto do nazismo, do qual o Brasil

só se veria livre, na hora que eliminasse qualquer resquício da língua alemã de seu

território.”85 Afinal, é possível encontrar indícios de que a Comunidade Evangélica Alemã

abrigava focos de subversão ou quinta-colunismo?

Novamente é muito interessante observar a conjuntura dos fatos e ver como eles

determinam o desenrolar dos acontecimentos da década de 1930. Aos festejos do

Centenário de 1929 se sucedeu a República Nova. Já mencionamos que tanto os

pangermanistas, quanto nacionalistas brasileiros queriam Vargas no poder. Todos eram

nacionalistas. Porém, o que estava em jogo era o conceito de nação! Para os pangermanistas

não havia dúvidas que sua nação não era territorial. E justamente isto causava ódio e furor

entre os nacionais. Este também é o entendimento de Gyralda Seyferth, quando afirma: “É

difícil supor que a população teuto-brasileira estivesse realmente de acordo com uma

possível anexação do Sul do Brasil à Alemanha. A impossibilidade disso era reconhecida, e

o Deutschtum não exigia uma vinculação política com a Alemanha. Assim como a

nacionalidade alemã do teuto-brasileiro é intocável, assim também o é a sua cidadania

brasileira.”86

A verdade é que o surgimento de grupos nazistas e pessoas que simpatizavam com

as causas do partido de Hitler, trouxe grande desconforto para a etnia. Em todas as regiões

do país, uma parcela dos teuto-brasileiros se deixou influenciar e estimular pela propaganda

nazista. Ainda mais que o próprio governo Vargas tinha o governo alemão como fonte de

inspiração. Com Vargas, também os intelectuais finalmente se encontravam no governo,

para executar seu projeto de nação. Para tanto, ele deveria ser forte, intervencionista,

responsável pela determinação da ordem social e das relações de trabalho. Foi no momento

que este projeto de brasilidade começou a ser construído e posto em prática, que os

simpatizantes do nacional-socialismo alemão se sentirem livres para levar adiante seus

84 Ibid. p. 117. 85 PY, Aurélio da Silva. A 5ª Coluna no Brasil. Porto Alegre : Livraria do Globo. 1935. p. 402. 86 SEYFERTH, Giralda. Op. Cit. p. 68.

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ideais. É preciso deixar claro, contudo, que a militância em prol do nacional-socialismo,

nada tem a ver com o Deutschtum como entendido até então. O NSDAP, partido de Hitler,

passou a vincular o Deutschtum à idéia de Estado-Nação e não era essa a compreensão de

germanismo por aqui.

Mesmo assim, de 30 a 37, proliferaram diversos núcleos de simpatizantes e de

filiados ao partido. A grande maioria destes simpatizantes era dos chamados Neudeutschen,

os alemães novos. Apesar de serem declarados compatriotas por Hitler, os grupos que se

formaram no Brasil, nem aceitaram aqueles que eram descendentes de alemães, nascidos no

Brasil. Estes não podiam ser membros. Mais uma vez estavam sob pressão. Não eram

brasileiros por serem filhos de “estrangeiros”. Não eram aceitos como partidários por terem

nascido no Brasil.

Os primeiros anos do governo da República Nova de Vargas foram festejados como

anos de encontro com a brasilidade, anos de franco desenvolvimento e especialmente como

os anos de surgimento do “povo brasileiro”, categoria que nas décadas anteriores tanto se

buscara. Porém, aí veio o ano de 1937, e o Estado Novo. A guinada que Getúlio deu, para

muitos um giro de 180o, foi atribuída a Oswaldo Aranha. O articulador do governo Vargas,

de conhecida posição antigermanista, o levou a um realinhamento com os EUA. Mais do

que isto levou a governo Vargas a se tornar um Estado repressivo e autoritário. Festejado

nos círculos militares, o Capitão Antonio Carlos Mourão Ratton, secretário de Segurança

Pública de Santa Catarina sentencia, no prefácio da obra: O Punhal Nazista no Coração do

Brasil, do Delegado da D.O.P.S., Capitão Antonio de Lara Ribas: “... o pangermanismo

está com os dias contados”!87 Mais adiante, Lara Ribas escreve: “com o golpe de 10 de

Novembro de 1937, a República retomou, pela mão firme de Getúlio Vargas, a estrada

luminosa de sua imperecível jornada democrática, acautelando assim, as nossas tradições

de soberania e povo livre”.88 Ele termina o referido documentário saudando mais uma vez

o 10/11/1937, dia do fechamento do Congresso e da instalação da ditadura do estado Novo

como “a data que assinala o marco brilhante de uma era nova, que se abriu para os anais da

história do Brasil, consolidando a sua soberania, salvando-o assim das garras do nazi-

fascismo internacional.”89 Impressiona que de forma tão clara ele fala de golpe, do

87 RIBAS, Antonio de Lara. O punhal nazista no coração do Brasil. Florianópolis. 1943. p. 5. 88 Ibid. p. 23. 89 Ibid. p. 87.

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fechamento do congresso, saudando tal ato como “democrático”. Desde então, denúncias de

qualquer tipo serviam para legitimar diligências a até prisões. Aliás, estamos falando de

documentos produzidos pela D.O.P.S. a Delegacia de Ordem Política e Social, que havia

sido criada no dia 05 de março do mesmo ano de 1937, pelo decreto-lei No. 177 e que só

foi extinta em 1991. A polícia política era o braço secreto e forte do poder e da repressão.

O golpe do Estado Novo acabou com os idealismos dos dois lados. Os nacionalistas

brasileiros se sentiram órfãos, sem projeto e sem causa. Seus sonhos e suas utopias

morreram por ali. Já para a cultura germânica, os prejuízos, desta vez, foram irreparáveis. A

grande maioria das 1155 escolas alemãs filiadas a Associação das Escolas Alemãs, que fora

fundada em São Paulo em 1927, foi fechada ou quebrou. Centenas de clubes foram

fechados ou sofreram intervenções em sua diretoria. Não só os núcleos de simpatizantes do

nazismo foram colocados em cheque, mas o germanismo como um todo. O grande grupo

étnico germânico e da mesma forma o italiano, voltaram a ser tratados neste período como

uma minoria étnica, vigiada e marginalizada.

No período de 1932 a 1937, houvera uma articulação clara e ostensiva do Partido

Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, entre uma fatia dos imigrantes germânicos

e seus descendentes.90 Quantos eram, não se sabe ao certo. Era um grupo representativo?

Certamente que não, se pensarmos no número dos participantes. Mas, se pensarmos

representatividade em outros termos, talvez fosse representativo, pois mesmo sendo uma

pequena minoria, eles tinham articulação e estratégia. Estavam presentes nos principais

fóruns e grupos decisórios, como clubes e igrejas, escolas e jornais. Porém a criação da

DOPS e o golpe do Estado Novo acabaram com estas articulações. Alguns eventos ainda

aconteceram, como a Semana Alemã, que aconteceu em abril de 1938. Seu objetivo era o

de expor ao público a presença da cultura e da etnia germânica em solo paranaense. Foi

uma exposição reconhecida por sua beleza e extensão cultural. Durante a exposição,

contudo, foi armada uma “cidade de lona”, no terreno da Sociedade de Ginástica Teuto-

brasileira, posteriormente Duque de Caxias, no Bacacheri. Esta virou num acampamento de

simpatizantes nazistas, que saíram em passeata pelas ruas da cidade, ostentando bandeiras

com a suástica nazista, e todos trajados de uniformes militares. A imprensa pouco noticiou

90 DOPS. Pastas arquivadas pelo DEAP – PR. Curitiba, junho de 2000.

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o fato, mas a ação repressiva se expandiu deste então. Isso foi o fim de qualquer outra

iniciativa posterior. A repressão levou qualquer articulação para a clandestinidade.

6 – A COMUNIDADE NO TURBILHÃO DA CRISE

É interessante observar que até o golpe de Getúlio, as comunidades viviam uma

realidade germânica. Tudo na vida da comunidade se fazia em alemão. Sua vida cúltica,

seus grupos e reuniões, suas atas e registros. Não era assim em todos os lugares. Nova

Friburgo, no Rio de Janeiro, uma das mais antigas comunidades luteranas, já celebrava

cultos na língua vernácula desde o século passado. Mas, a absoluta maioria das

comunidades no Brasil eram, até então, comunidades germânicas. Mesmo que muitos de

seus membros não assumam postura semelhante fora dali, ao buscarem a Igreja e ao

buscarem a Deus, a língua falada era o alemão. Para fazer parte dela, portanto, não bastava

uma conversão ao cristianismo. Também tinha que acontecer uma conversão ao

germanismo e à língua alemã. Certamente não era este o propósito, mas o mundo conceitual

no qual articulavam a sua fé e as tradições que legitimavam suas posturas, não permitia que

rompessem com a vinculação étnica. Tinha que haver uma ruptura “de fora”, para que

houvesse uma mudança. Ela vem por meio do Estado Novo, fruto de uma arquitetura dos

maiores inimigos da etnia.

Poderíamos dizer que o problema estava lá, no início. Que a Igreja Evangélica

Luterana se estabeleceu no Brasil não a partir de propostas missionárias, de anunciar o

evangelho e a Boa Nova para todas as pessoas, mas para acompanhar e assistir os seus fiéis

que para cá migraram. Não há nada demais nisso. Demonstra toda uma preocupação e um

cuidado pastoral até louvável. Deve ser esta a mesma preocupação que leva a Igreja Batista

a abrir a Brazilian Missionary Community Church, em Boca Ratton, na Flórida, em nossos

dias. Poderíamos perguntar: por que enviar pastores e abrir uma igreja para brasileiros na

Flórida? Ao celebrarem seus cultos em português, não se repete aí a mesma história? Os

americanos que quiserem fazer parte dela terão que se converter não só ao cristianismo,

mas também ao samba e à feijoada? Terão que assumir uma “alma brasileira”?

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O grande problema foi não terem percebido isto desde o começo. Se assim como

aprenderam a comer o feijão e o arroz, tivessem se esforçado para adaptar sua liturgia e

seus cânticos, permitindo que a interação cultural trouxesse à luz um jeito próprio de ser

Igreja, toda a jornada teria sido diferente. Não se trata de uma negação do passado. Não se

trata de romper com os vínculos, as tradições e as práticas do passado. Trata-se apenas abrir

um canal por onde as tradições possam ser arejadas. Caso contrário, elas se transformam

num mero tradicionalismo, a aí passam a ser um culto à coisas mortas, ao passado, que não

faz mais sentido, mas que requer toda a energia de um grupo para ser mantido.

Ao chamarem a Comunidade de “Comunidade Evangélica Alemã”, a pá de cal

estava posta, desde o início, desde 1866. Sacramentaram, desde o início, o estreitamento

étnico para a sua prática de fé! O desenrolar dos acontecimentos, de pressões nacionalistas

de um lado, germanistas do outro, é tão somente a conseqüência desta postura. Pois se na

vida diária tinham que interagir culturalmente, tinham que se adaptar as regras e as leis do

novo país, na igreja buscavam cada vez mais um local de refúgio e manutenção com os

vínculos do passado. Ela se tornou, na guardiã dos elos mais profundos do passado. Mais

do que isso se acomodou e se agradou deste papel. É evidente que a fé é histórica. Que ela

se articula a partir de um legado de milhares de anos. Porém, ela precisa sempre de novo se

contextualizar e se articular para o seu tempo! Uma fé que só olha para trás, que vive para a

manutenção do passado, não serve para nada. É morta, como diz o apóstolo Tiago (Tg

2.26), ou como diz o Senhor: torna-se num sal insípido, que perdeu sua capacidade de

conservar e dar sabor (Mt 5.13).91

Entendo que o fim da Grande Imigração, com o decreto assinado em 1932,

estabelecendo cotas de 2% sobre o total dos imigrantes vindos de determinado país nos 50

anos anteriores, não fez nenhuma diferença para a vida da Comunidade ou da etnia

germânica. Afinal, quanto mais tempo de Brasil as pessoas tinham, tanto mais dificuldades

sentiam de engolir os chamados “novos alemães”. Sua arrogância, seu ar de superioridade,

seus conceitos étnicos e raciais, nada tinham a ver com o espírito daqueles que por décadas

haviam lutado para se estabelecerem e serem aceitos como cidadãos no Brasil. Na década

de trinta, muitas famílias da Comunidade estavam na terceira geração de descendentes

brasileiros. Viviam como brasileiros, e cresciam neste amálgama cultural que surgia das

91 BÍBLIA SAGRADA. Referência à epístola de Tiago e ao evangelho de Mateus.

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relações interétnicas, da interação de pessoas diferentes que comungavam o mesmo espaço

físico, político e social. Para estes, o fim do processo migratório foi até um alívio. Só a

minoria afeiçoada ao pangermanismo se nutria e gostava dele. Eles certamente sentiram

algum impacto negativo com a resolução do governo brasileiro.

Um destes últimos representantes do germanismo foi o Pr. Wilhelm Wilms, que

chegou em 1933, para preencher a grande lacuna deixada pela morte do Pr. Berchner.

Wilms era uma pessoa extremamente culta e ativa. Em pouco tempo organizou diversas

frentes, como corais, grupos de senhoras, de rapazes e moças. Assim ele mesmo se

apresenta no folheto citado na abertura deste trabalho: “Vindo de uma família de pastores

da Westfália, vejo minha tarefa em manter e plantar nos corações dos alemães e teuto-

brasileiros o bom legado cultural de nossos pais: uma profunda e autêntica piedade

evangélica alemã, e a decorrente e profundamente enraizada alegria de trabalhar e viver”.92

Algumas coisas ficam evidentemente estampadas a partir da publicação deste

folheto. Primeiro, que o pastor continua entendo sua tarefa a partir de um vínculo

extremamente étnico: seu trabalho é com e para os alemães e seus descendentes. Segundo,

que a profunda piedade que ele visa despertar e manter, não é uma piedade bíblica, mas

uma piedade evangélica alemã! Não é a mesma coisa, ou o seria, dentro desta mentalidade?

Ou seja: a piedade bíblica é igual a piedade alemã? Em terceiro lugar, fica evidente que a

questão cultural é promovida, mais do que a missão evangélica da igreja, levantando a

suspeita de uma adesão ao pangermanismo. Por último, a organização destes grupos que até

então não se tinha, se faz nos mesmos moldes e no mesmo período em que os nazistas

organizam tais grupos: círculos de jovens, de moças e rapazes, comunhão das mulheres

nacional-socialistas, etc. Na Sociedade de Ginástica, apesar de toda a resistência, haviam

contratado um tal de Sr. Schneider, um nazista que, vindo da Alemanha, tinha a missão de,

além das aulas, propagar as doutrinas do partido entre os sócios daquele clube.93 Em outra

entrevista, Darci O. Woellner confirma que o prof. Schneider iniciou com o grupo da

Juventude Hitlerista em Curitiba.94

O elemento mais contundente, contudo, não está nestas afirmações, mas na contra-

capa do panfleto, distribuído ao público, como convite para aquelas celebrações, onde os

92 PANFLETO alusivo à celebração dos 75 anos de culto evangélico em Curitiba, em 10/11/1935. 93 Entrevista concedida pela Sra. Siedel, em Março de 2001. 94 Entrevista concedida pelo Prof. Darci Olavo Woellner, em 08 de Maio de 2001.

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elementos da Ceia do Senhor, o cálice e o trigo são colocados ao lado da suástica nazista.

Isto certamente não passou despercebido. No final de 1935, no ano da intentona comunista,

no meio de um grande rebuliço social e político, num período de grandes sensibilidades,

tendo como pano de fundo todo o quadro que já descrevemos acima, tal publicação, no

mínimo, seria tomada como uma provocação, quando não uma afronta. Por mais germânico

que fosse um Pr. Berchner, depois de 35 anos no Brasil, jamais faria tal coisa. Isso só

poderia ser atribuído a alguém sem história no país, que veio pastorear um grupo que

considerava uma “mera extensão de seu país”. E como a comunidade embarcou nesta?

Mais uma vez é preciso fazer uma leitura da conjuntura. O próprio panfleto fala de um

incremento de 500 famílias, depois de 1929. De 900 famílias-membro, a comunidade

passou para 1400 famílias membro. É um incremento de praticamente 50% do número de

membros, que chegam ao Brasil já respirando a ascensão dos nacional-socialistas na

Alemanha. Por outro lado, encontram aqui um aparato apropriado para dar vazão aos seus

conceitos. A comunidade continua alemã. Talvez seus membros mais antigos já não o

fossem. Mas, se portavam como tais dentro do reduto da igreja. Lá, além de se falar só na

língua alemã, encontravam as mesmas estruturais mentais e litúrgicas. O culto era igual ao

da Alemanha. Cantavam-se os mesmos hinos, se faziam as mesmas orações, se usavam os

mesmos textos nas pregações, e o pastor era de lá. Como uma articulação política e também

eclesiástica nunca parte de uma maioria, mas sempre de uma minoria articulada, engajada e

pensante, é fácil de entender como tudo isto aconteceu.

Até este momento, sequer havia um hino traduzido para o português. Todas as atas

estão registradas em alemão. Toda a vida cúltica e os conceitos que mexem com o sagrado

estão vinculados à língua alemã. Vi o alcance disto quando, já quase ao final de década de

80, estive reunido com lideranças desta comunidade, quando ao final do encontro se pediu

para uma senhora nos dirigir à Deus em oração, e ela prontamente respondeu: “eu o faço,

mas só se me derem a licença de fazê-lo em alemão”. Evidente que ninguém falara uma

palavra sequer em alemão durante a reunião. Mas, ali entendi o alcance desta linguagem

que toca o íntimo, que fala da alma, que expõe os conceitos mais profundos do ser. Conclui

que também eu, em qualquer lugar do mundo, não teria como expressar a minha intimidade

com Deus, senão em português.

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O pastor Wilms some em seguida. Na opinião do filho do presidente que assume a

Comunidade no final de 1937, era um homem sem convicção de fé, e passava isto aos

jovens.95 Não encontrei registro de suas atividades posteriores, ou de sua saída, a não ser

numa pasta da D.O.P.S. em que se lê que ele está na Alemanha e não voltará ao Brasil.96

Contudo, parece que com o surgimento do Estado Novo, e com o acirramento da questão

nacionalista, o germanismo finalmente começa a ceder lugar e a implodir. O Colégio

Progresso é novamente fechado no ano de 1938. Em meio a este quadro de pressões e

intimidações, a Comunidade passa por radicais transformações. Elege uma diretoria nova,

que chama o Pr. Heinz Soboll, que foi o primeiro pastor que sabia efetivamente falar o

Português. As atas da comunidade também passam a ser redigidas em português, e o

curioso é que, são escritas num português de bom nível. Isto mostra que não o faziam em

Português, não porque houvesse algum impedimento, mas devido ao engessamento que

tradição e cultura lhes impuseram.

Fernando Carlos Hecke, como presidente, além de Alberto Schoneweg, Oscar

Kirchner, Carlos Kauschmann, Artur Staude e Gotthilf Meienberg são os homens que até o

início dos anos 60 dirigirão os destinos da Comunidade. Menos Carlos Kauschmann, que

também era do Colégio Progresso, e logo foi substituído por Luis Gutmann. Interessante

que este Carlos Kauschmann é citado mais tarde como suspeito de ser o “encarregado de

negócios do NSDAP”, e acaba fazendo parte da lista dos que foram expulsos do país em 42,

a pedido do Gen. Meira de Vasconcelos, junto com Otto Braun, Werner Hoffmann, Hans

Benevitz, Hans Buerger, Curt Prayon, Hans Lents, Carl ladenstein e Andersen.97 Seu

primeiro ato foi convocar uma Assembléia para a alteração de Estatutos. Estes são

aprovados e encaminhados pessoalmente ao D.O.P.S., setor de nacionalização, para serem

aprovados pela polícia, onde são homologados em fevereiro de 1939.98 Já em 26 de agosto

de 1938, a diretoria resolve que a liturgia do culto seria feita em Português, e a pregação

continuaria em alemão. A liturgia e também os hinos tinham que ser traduzidos. Os hinos

expressam uma articulação da fé. Através deles, se chega no reduto mais privado e sagrado

95 Entrevista concedida por Airton Hecke, em 24 de Maio de 2001. 96 DEAP – PR. Arquivo das Pastas da D.O.P.S. Pasta No. 125: Atividades nazistas no Sul do Brasil e Alfredo Andersen. 1942. P. 111 97 Ibid. P. 21. 98 Ibid. Pasta 2175 – Comuna Evangélica, onde estão guardados os estatutos e se dá conta da mudança do nome. Fevereiro de 1939.

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do coração! Por usarem uma linguagem poética e musical, os hinos tocam o lugar íntimo da

alma. O pastor Müller, de Joinville, havia se adiantado ao seu tempo, e antes do uso do

alemão ser proibido, ele já havia traduzido cerca de 132 hinos. O hinário chamado de

“Hymnos da Igreja Lutherana”, com primeira edição em 1939, foi a tábua de salvação no

momento em que o alemão foi proibido. Praticamente se tornou no hinário oficial da igreja

evangélica luterana até os anos 60. Cantá-los e tocá-los não seria difícil, já que

conservavam as mesmas melodias originais. Este hinário, ainda não representou um avanço

em termos de aculturação da hinologia, senão em virtude de usar o português. Uma

mudança para uma hinologia mais autóctone só começa pelos anos 60. Até então, a maioria

absoluta dos hinos cantados foi escrita entre os séc. XVI e XVIII, sendo um museu

depositário da cultura luterana, sem incorporar nada da cultura local.99 A frase do pastor

Hans Muller, inserida neste contexto, é lapidar do momento de transformação que se inicia

no período: “se a igreja quiser atender ao seu chamado missionário em terras brasileiras,

precisa ao menos ser bilíngüe”.100

É claro que muitas destas mudanças têm a ver com o decreto-lei 383, de

18/04/1938, que exige a nacionalização dos clubes, igrejas, escolas, etc. Em 24 de Abril de

1939, decidem fazer também os sermões em português. Nas atas, não se fala de política,

germanismo, leis, muito menos da guerra. Por mais de dois anos (1942 e 1943) não há

notícias registradas acerca da comunidade. Certamente sua vida continuou, mesmo que não

na normalidade dos fatos. Há um vácuo, pois o registro das reuniões é retomado em

02/12/43, dando continuidade ao mesmo livra de atas, o que indica que não houve nenhum

sumiço ou extravio, nada. Apenas silêncio. E um silêncio contundente, que fala alto, pois as

reuniões sempre foram regulares nesta comunidade.

Também neste momento houve uma primeira tentativa de reunificar as duas

comunidades, o que só não se concretizou por que exigiam a renúncia do Pr. Karl Frank, da

igreja pequena, o que não foi aceito. Curioso é que Frank e vários presbíteros da igreja

pequena foram presos em 42, o que evidencia que a pequena igreja era realmente muito

mais ortodoxa que a maior. Lá, até 1942 encontramos atas em alemão, e mesmo depois de

42 ainda fizeram cultos em alemão. Parece que com o Pr. Frank preso, as atividades

99 BEHS, Edelberto. Op. Cit P. 64-65. 100 Ibid. p. 58-59.

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paralisaram, e depois ela nunca mais retomou seu ritmo. A volta para uma união com a

igreja mãe era só uma questão de tempo, e esta aconteceu em 23/08/47. Na Assembléia

seguinte, em 30/01/49, decide-se por eliminar definitivamente o alemão das atividades da

Trajano Reis, enquanto que na Inácio Lustosa, na Igreja Pequena, o alemão e o português se

alternariam. O que aconteceu na prática foi que a Christuskirche (Igreja de Cristo) da Inácio

Lustosa se tornou um reduto do que restou de germanismo na cidade, o que levou algumas

famílias para congregarem lá. Porém, o alemão perdeu definitivamente seu lugar na

Comunidade da Trajano Reis. Também hoje, nas mais de vinte Comunidades espalhadas

pela Grande Curitiba hoje, nenhuma realiza atividades usando a velha Muttersprache, a

língua de Lutero como era chamada.

O que se vê nos anos 50 e daí para frente, não são mais as tensões entre o uso do

alemão ou do vernáculo, mas lutas acirradas em torno das mentalidades. Os anos do pós-

guerra trazem o estilo americano para dentro das igrejas. A presença de dois pastores

americanos na Comunidade nos anos 50 e 60 cria sérios conflitos e brigas, não só

teológicas, como também culturais, agora em outra frente. Mas, a Comuna, rebatizada em

1960 com o nome de “Comunidade Evangélica Luterana de Curitiba”, nome que sustenta

até hoje, já não era a mesma. Deixara de ser uma igreja germânica, um reduto étnico, para

se tornar numa igreja missionária e autóctone. Curiosamente, apesar de ainda ser marcada

pela mentalidade germânica, a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil se

apresenta hoje, como uma das mais autóctones igrejas evangélicas do país, talvez a mais

engajada política e socialmente.

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7. CONCLUSÃO

Ao relermos a história da Comunidade Evangélica Luterana de Curitiba,

distinguimos claramente um divisor de águas. Há um antes e um depois. Antes havia a

Deutsch Evangelische Gemeinde. Depois nos deparamos com a Comunidade Evangélica

Luterana de Curitiba. No meio está o Estado Novo. A chave para entender esta mudança,

de uma comunidade germânica e alemã, para uma comunidade brasileira e autóctone, está

na crise experimentada durante o Estado Novo e durante a Segunda Guerra Mundial.

Esta profunda crise em que se viu lançada na década de 35-45, porém, apenas

cristalizou um processo que cresceu com ela, desde a sua constituição. Entendo que esta

crise tem a ver com ela mesma. Tem a ver com a sua presença em Curitiba e, por extensão,

tem a ver com a presença protestante e evangélica em todo o Brasil. Contudo, se fossemos

reduzir os fatores da crise ao elemento religioso novo, passaríamos de largo pelas suas

principais causas. O fator religioso é apenas uma das peças deste intrincado jogo.

Diversas outras peças estão neste tabuleiro, das quais as principais são representadas

pelos interesses políticos e econômicos das elites brasileiras. Aí entram os interesses dos

grandes produtores, a força de uma mão de obra livre e assalariada. Entram os interesses

das elites provinciais e depois estaduais, de fortalecer e verem desenvolvidos seus

respectivos territórios. Entram também interesses estratégicos, de ocupação de espaço,

tanto no plano físico, como no campo da constituição racial do povo brasileiro.

Podemos afirmar tranqüilamente que o projeto da imigração, apesar dos percalços e

de todas as dificuldades iniciais de fazê-lo acontecer, foi um projeto largamente bem

sucedido no Século XIX. Todas as propostas e metas que as lideranças brasileiras tinham se

proposto a alcançar, estavam se concretizando. O Brasil da jovem República começava a

ter um “novo rosto”. Especialmente no Sudeste e, mais ainda no Sul do país. Este “novo

rosto”, desenhado com a participação efetiva das grandes massas de imigrantes, é que se

torna no pivô central de todas as crises que se sucedem nos anos anteriores ao Estado Novo.

Para a intelectualidade que vinha se formando no Brasil Império, o país ainda não

tinha um rosto. Olhavam para o Brasil e não encontravam uma identidade. Quem era esta

nação? Quem era seu povo, e o legítimo brasileiro? Eles não o viam no branco português,

nem no negro escravo, nem no mulato, nem no índio, certamente o mais legítimo dos

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representantes da raça, e ao mesmo tempo, o mais distante do tipo de pessoa que o contexto

da época reclamava.

“Ordem e Progresso”! Eram estas as palavras de ordem daquele tempo. Como

requerer isto do índio, do negro, ou mesmo do ibérico desafeiçoado ao trabalho. O tipo de

pessoa que o positivismo darwinista requeria se encontrava no imigrante! Mas, ele era

europeu. Não era brasileiro. E a busca era por encontrar uma identidade brasileira. Não se

queria que novamente o tipo europeu definisse quem somos. A situação estava dada. O país

estava cada vez mais cheio de imigrantes. E enquanto se discutia, o imigrante ia ocupando

seu espaço. Primeiro na lavoura, depois nos pequenos ofícios, no comércio, na indústria, até

chegar também ao espaço político e público.

O conflito estava armado em torno dele. Ele que fora trazido para o país, com a

tarefa de ajudar no seu desenvolvimento. Que saíra da velha Europa, por vezes explorado,

excluído e marginalizado, mas a quem se acenara com o sonho da liberdade, da

propriedade, do futuro para os filhos e da esperança de uma vida mais rica e melhor. Agora,

pelo discurso dominante, ele se sentia novamente excluído. Não por descumprir com a sua

missão, não por ser desordeiro, desonesto, preguiçoso ou algo assim. Mas, justamente por

evidenciar fatores que as elites intelectuais buscavam, mas não queriam ver nele. Seu amor

ao trabalho, sua capacidade inventiva, seu estágio de desenvolvimento e seu conhecimento

no campo dos negócios, da cultura e da arte. Sua ética do trabalho e preocupação com a

economia e poupança, logo o fizeram granjear um espaço grande e evidente na economia

do país. Era tudo o que se queria, mas não com ele. Pois ele era o “estrangeiro”, era o

“outro”, aquele que viera “de fora”, e não o brasileiro “da gema”.

O conflito que foi sendo armado surge de toda a complexidade das relações

interétnicas. Os contatos culturais são, por um lado, fonte de extrema beleza e riqueza,

podendo contribuir para o engrandecimento e o alargamento das fronteiras, não só dos

cidadãos, como de toda uma nação. Por outro lado, podem se tornar num barril de pólvora,

numa fonte de tensões, por vezes, incontrolável. É o que assistimos nos Bálcãs, no

Afeganistão, no Oriente Médio e, em menor escala, nos tão civilizados e cultos países da

Europa e da América do Norte.

No Brasil, a conjuntura dos anos trinta eliminou qualquer possibilidade de tais

conflitos tomarem vulto por aqui. A intelectualidade brasileira, finalmente no poder, usou

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da ditadura Vargas para impor um “rosto brasileiro” ao país. Por meio da lei e da repressão,

excluiu quaisquer outras feições para este rosto, que não fossem aquelas do seu projeto. De

certa forma isto foi benéfico ao país e para o todo da população, mesmo que tenha sido um

processo sofrido e dolorido para uma boa parcela da nossa população.

A conjuntura que havia se armado no Brasil, dava sentido para uma perpetuação do

enclave étnico, o que não era bom. Se no plano econômico e comercial isto quase não era

sentido, no ambiente familiar, cultural e religioso, era cada vez mais assimilado. De um

lado, estavam os porta-vozes do Brasil sempre reforçando o sentido da diferença, os

conceitos de estrangeiros, de não-pertencentes à brasilidade e indiferentes à alma nacional.

De outro lado, estavam os interesses internacionais, os conflitos na Europa, e a influência

dos Novos Imigrantes que, aos milhares, não paravam de chegar. Tudo isto, levava a

aceitação da cultura de gueto, do quisto, da “normalidade da diferença”.

Em algumas dimensões, criava-se, com esta conjuntura, uma nação dentro da nação!

Marginalizada pela sua origem, pelo seu ethos, pela língua que não deixava de falar. Uma

nação culta e letrada, em meio a uma outra de analfabetos. Uma nação evangélica de fala

alemã, dentro de um país católico, de fala portuguesa. Uma nação de surpreendente

desenvolvimento econômico, em meio a uma outra pobre e subdesenvolvida. No jogo das

forças que se exerciam, o perigo era da aceitação destes fatos pela via da “normalidade”.

Para piorar as coisas, o aviltamento da pátria-mãe, e a posterior exacerbação das

teorias pangermanistas, fez com que um outro tipo de trocas passasse a acontecer: uma

troca fundada nos princípios nacional-socialistas, nos temidos projetos a ambições do III

Reich. Se aqui, o imigrante era desdenhado pela intelectualidade brasileira, do outro lado,

ele passou a ser objeto da cobiça e do desejo de apropriação por parte da intelectualidade

nazista. Havia professores, pastores, diplomatas e veteranos de guerra que se colocavam

por detrás destes projetos, e faziam as pontes necessárias. Eram poucos, é verdade, mas

articulados e eficientes, para fazer difundir e tornar aceitas as suas doutrinas.

Não fosse este jogo de forças e interesses, certamente também no campo cultural e

religioso, teríamos caminhado para uma hibridização. As diferentes culturas e etnias teriam

se enriquecido mutuamente, e um novo rosto brasileiro teria surgido muito mais cedo. Por

força destes jogos de poder, depois de 75 anos, a Comunidade Evangélica Luterana ainda

era alemã. Mesmo depois de tanto tempo na cidade (e bem mais no país), ela ainda se

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chamava: Deutsche Evangelische Gemeinde. Quem entender o que significa, que entenda.

Era assim que ela pensava e celebrava seus 75 anos na cidade. Tudo dentro da normalidade

dos paradigmas aos quais ela havia se conformado.

O decreto 383, de abril de 1938, sob o prisma da aculturação pode ser saudado

como bem-vindo. Arbitrário, sim. Fruto do ato de um ditador que, como a intelectualidade

que o rodeava, tinha uma relação de amor e ódio com a germanidade e o hitlerismo. Bem-

vindo sim, não só porque obrigou uma mudança de nome, mas porque mexeu nos conceitos

mais profundos. Conceitos que ruíram, um a um, com o desenrolar da guerra. Entre eles,

por exemplo, o mito da superioridade racial. Tais realidades fizeram a igreja acordar para o

Brasil. Não fosse a arbitrariedade, o uso da força, a vergonha, talvez ainda hoje a Gemeinde

seria Gemeinde. Porém, em 1938, ela foi forçada a mudar seu mundo conceitual. A se

tornar Comunidade. Não mais alemã, mas agora: COMUNIDADE EVANGÉLICA

LUTERANA DE CURITIBA.

É claro que mudanças desta ordem não acontecem de um dia para o outro. São

processos que consomem gerações. Mas, daquele momento de crise saiu uma igreja nova.

Uma igreja que mantém seus vínculos, sim, que conhece seu passado e tem sua identidade.

Mas, uma igreja que aprendeu a falar português, a ser brasileira de corpo e alma. Uma

igreja que faz uso de toda sua história e bagagem para servir ao povo brasileiro.

E o imigrante, em meio a tudo isto? Este apenas queria ser feliz. Queria ter o seu

chão e um lugar para chamar de seu! Aceitando a oferta de paz, liberdade e a possibilidade

de “fazer sua vida”, ele atravessou o oceano, se lançou em busca de seus sonhos e ideais,

para os quais, no Velho Mundo não havia lugar. Quase que o tiraram dele no Novo Mundo

também! Enfim, a terra prometida, lhe deu o leite, o mel e tudo o que buscou! E ele é

profundamente grato por isso.

SOLI DEO GLORIA! (Somente a Deus a Glória) – palavras sob as quais se funda a

Comunidade, em 02 de dezembro de 1866.

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8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABECK, Helmuth. A colaboração germânica no Paraná nos últimos 50 anos (1929-1979). Curitiba : Casa Romário Martins, 1980. ARQUIVOS DO DOPS. DEAP – PR Atividades Nazistas no sul do Brasil e Alfredo Andersen. Pasta n. 125 ARQUIVOS DO DOPS. DEAP – PR. Comuna Evangélica de Curitiba. Pasta 2155 BEHS, Edelberto. O Processo de Abrasileramento da “ Igreja dos Alemães”. Florianópolis : UFSC, 2001. BÍBLIA SAGRADA. Português. Tradução Revista e Atualizada. São Paulo : Sociedade Bíblica do Brasil, 1996. CRUZ, Demétrio Acácio da. Relatos e reflexões de um funcionário da

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1943. RIBEIRO, Luiz Carlos. Urbanização e crise social em Curitiba – 1890/1920 Tese de Dissertação de Mestrado. São Paulo : USP, 1985. ROCHE, Jean. A colonização alemã e o Rio Grande do Sul. Porto Alegre : Globo,1969. SCHWAB, Carlos Alberto. Resumo histórico e genealogia dos alemães do Volga. Ponta Grossa : Paranaense,1997. SEYFERT, Giralda. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis : Fundação Catarinense de Cultura. 1981. STROBEL, Gustav Hermann. Relatos de um pioneiro da imigração alemã. Curitiba :Estante Paranista, 1987. TONNELAT, Ernest. Lês Colonies Allemands au Bresil. Revue de Paris : !907. Traduzido por Dirksen, Valberto. In : Revista Catarinense de História. Florianópolis : UFSC, 1994. WILLEMS, Emílio. Assimilação e populações marginais no Brasil. São Paulo : Nacional. 1940.

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9. NOTAS SOBRE O USO DE FONTES PRIMÁRIAS: ENTREVISTAS,

DOCUMENTOS E PERIÓDICOS.

9.1 – ENTREVISTAS Além das referências bibliográficas citadas acima, este trabalho se valeu do uso de

algumas fontes de grande valor. Especialmente no caso das entrevistas, pois trazem

elementos, em grande parte não documentados, os quais vão sendo perdidos, na medida em

que o tempo passa e estas pessoas vão morrendo. Depoimentos de pessoas que viveram o

período em questão são muito ricos e, não poucas vezes, trazem novas luzes acerca de

coisas que não encontramos registradas nos documentos da época, ou na historiografia.

É bem verdade que a história oral trata com muitas variantes e possibilidades de

interpretação. Existe um grande risco de, numa entrevista, o entrevistador sugerir ao

entrevistado o que ele busca e quer ouvir. Facilmente, o tipo de perguntas elaboradas e a

forma como são conduzidas, podem levar a um resultado desejado, porém, não isento.

Justamente a isenção precisa ser buscada, o que não é tão fácil. Até por que, o resultado da

pesquisa pode não ser o desejado. Por isso, optei por conversas não dirigidas, onde apenas o

tema era proposto de uma forma mais “macro”, e a conversa poderia seguir um rumo que a

memória do entrevistado trouxesse à lume. É verdade que também a memória pode ser

traiçoeira, privilegiar algumas lembranças, em detrimento de outras. Há processos seletivos

que envolvem o uso da memória, que podem enfatizar fatos ou suprimir outros, de acordo

com processos subjetivos, experiências passadas ou outros fatores que nos ajudam a

“esquecer” ou “lembrar” de fatos de uma forma inconsciente.

Outra dificuldade encontrada está relacionada com a disponibilidade das pessoas

que são o alvo da pesquisa. Como ela se concentrou em fatos relacionados à primeira

metade do século passado, não são muitas as pessoas que podem ser encontradas vivas e

lúcidas, além de dispostas a se submeter a tais tipos de conversas. O tema, em si, para

muitas pessoas se tornou numa espécie de “zona proibida”, que a maioria das pessoas não

faz muita questão de lembrar. Em especial, aquelas que por uma razão ou outra tiveram

algum grau de simpatia ou envolvimento com as doutrinas e práticas nazistas. Quando

falam, geralmente preferem falar das injúrias, dos danos e perdas que tiveram, das

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perseguições e injustiças que sofreram. Assim o simples fato de agendar uma entrevista é,

em geral, um processo longo e demorado.

Tais restrições, por si só, aumentam a relevância de um diálogo com aqueles que

ainda é possível ouvirmos. Há muito que ser revisado sobre o período, mas pouquíssimas

fontes que se permitam divergir da história que conhecemos pela imprensa da época, ou por

documentos oficiais que também, certamente, tem um alto grau de comprometimento.

9.1.1 – LISTA DE PESSOAS ENTREVISTADAS: HECKE, Airton. Entrevista concedida a Rui Petry. Curitiba, 24 de maio de 2001. OASE – Ordem Auxiliadora das Senhoras Evangélicas. Entrevistas coletadas no Grupo de senhoras evangélicas, com diversas senhoras participantes. PASSOS, Hilary Grahl. Entrevista concedida a Rui Petry. Curitiba, 24 de abril de 2001. RAEDER, Carl Ruderich. Entrevista concedida a Rui Petry. Curitiba, 27 de abril de 2001. SIEDEL, Frau. Entrevista concedida a Rui Petry. Curitiba, 8 de março de 2001. WOELLNER, Darcy Olavo. Entrevista concedida a Rui Petry. Curitiba, 8 de maio de 2001. 9.1.2 – TRANSCRIÇÕES DOS TRECHOS MAIS RELEVANTES DAS

ENTREVISTAS CONCEDIDAS:

Entrevista Um:

Meu pai fez os sinos da Igreja na fundição Mueller. Trabalhou por 50 anos na

empresa... chegou a ser diretor... na Comunidade foi um simples membro.

Müeller irmãos – Mateus Leme

O primo deve ter mais documentos sobre a doação, fundição e afinação dos sinos.

Irmãos passaram para a Igreja Católica...

Pai era secretário da Duque de Caxias...

Pai e o Secretário do clube enfrentaram o General quando invadiram a Duque. Mais tarde o

pai se tornou secretário do General. O General ficou até o fim da guerra dentro da Duque,

até o final da Guerra.

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Havia muitos que abraçaram o nazismo... outros não concordavam.. Ela e os irmãos eram

proibidos de tocar no assunto.

A mãe só falava alemão... Lembra que saiu certa vez e foi abordada por falar alemão, com

o filho de dois anos... e teve que se calar para não ir presa!

Em sua família não lembra de outro constrangimento.

Já a comunidade era muito unida... Estavam sempre juntos... Era muito bonito!

A comunidade servia de ponto de reunião de pessoas diferentes, de diferentes agremiações,

ou que defendiam ou eram contrários ao nazismo, porém... Na Comunidade estavam todos

juntos!

Casou em 1950 na Igreja e lembra que era uma Comunidade muito forte e grande...

Tem lembranças muito vivas do Pr. Soboll.

Pelo medo que tinham... Meus tios também enterravam tudo... Eles tinham muito medo. É

interessante, mas o Exército sabia de tudo! Sabia exatamente quem era adepto e quem não

era!

Tenho muitas fotos sobre a Duque... Talvez ajudem!

O instrutor da Duque veio da Alemanha... Sr. Schneider. Veio com um duplo objetivo: o

esporte e a política... Isso foi um assunto muito grave!

Interessante que ele voltou para a Alemanha para lutar na Guerra, onde perdeu uma perna, e

mais tarde voltou para Curitiba, para visitar nos últimos anos...

Se não me engano era “Schneider” seu nome... era nazista com certeza... alemão, dava a

vida pela sua pátria!

A família Fontana morava próximo de nossa casa.

Aqui na redondeza havia muitos alemães...

Em frente de casa há uma senhora que foi enfermeira na guerra e ainda vive...

Ela foi, pois eles induziam os jovens, com panfletos, propaganda de massa, faziam a cabeça

mesmo!

Tem muita coisa da família S. Na família S. havia duas senhoras que também foram para a

Guerra. Uma vive até hoje... Passaram horrores na guerra!

Nossa geração não pode pagar nem por um, nem por outro!!! A gente não sabe como as

coisas realmente foram!

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Entrevista Dois:

Mudou-se para Curitiba em 1941, tornando-se muito amiga de Hildegard Soboll,

filha do Pastor Soboll. Acompanhou toda a luta do Pastor em implantar novamente uma

Escola Evangélica, depois que o Colégio Progresso foi fechado. Foi no mesmo período da

implantação do Hospital Evangélico, onde a Comunidade ficou meio ausente, priorizando a

abertura da Escola.

Em São Mateus estava inserido num contexto polonês/católico...

Quando veio a Curitiba, mesmo durante o contexto da Guerra, não sentiu represálias, talvez

por ter vindo de fora, não estar inserida na cultura local, e por seu nome ser confundido

como sendo de origem Tcheca/eslava...

Para ela, os imigrantes não sofreram tanto como é falado...

Sofreram no período da Guerra, o que é natural, quando se coloca contra a lei em vigor.

O Estado não era contra a Alemanha, ou a cultura alemã. Mas, contra o estado de coisas

vigentes...

Os alemães são meio aventureiros... As famílias que migraram vieram para ficar... não

vieram para enriquecer e voltar como em outras experiências de migração...

Porém, não entendo, como muitos deles demoraram tanto para se aculturar.

Para a entrevistada, apesar de seu orgulho da descendência alemã, a aculturação foi rápida e

natural. O avô, que emigrara para Joinville, sem emprego, subiu para Rio Negro e virou

tropeiro... Casou, nas suas andanças, com uma índia... Iniciando a miscigenação da família.

O tronco da família, que viera para Blumenau, já é de uma leva mais instruída... Como

aqui não havia nada, tinham que “importar” mestres de ofício, professores, pastores, etc...

Os alemães têm muito de índio... se acha superior... como o índio... ele não se deixa afetar

pelas adversidades... ele não se abre... não expressa sentimentos.... mesmo as questões da

guerra: ele passa por cima... Sofre em silêncio... E olha para frente, não se deixa afetar.

Os comerciantes aprendiam o português na marra, pois não havia “instrução” formal. Em

São Mateus, a primeira escola pública foi instalada em 32.

Aí foi aquela coisa da ditadura: Todo mundo tinha que ir. Eram duas salas, primeiro e

segundo ano, e todo mundo misturado.

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O pai mudou para Curitiba, justamente em busca de instrução para os filhos.

Fui muito ligada ao Instituto Brasileiro Germânico.

O pai abriu uma alfaiataria na esquina da Treze com a Mateus Leme...

Ela entrou na Escola de pintura do Alfredo Andersen... Pois é, e ele era Norueguês... só

porque falava alemão eles prenderam ele.

Os alemães estavam integrados e não se ligavam muito à política... Alguns se envolviam

sim, mas eram poucos...

As famílias ricas, importantes, fazendeiras,... Perderam suas riquezas pelas mudanças de

contexto e estrutura, e perderam seu espaço de influência... Com isto, havia uma disputa de

espaço e de poder, que os tradicionais da cidade não queriam perder.

Aqui houve, de princípio, uma triagem grande, e um medo de deixar muitos imigrantes

entrar, para evitar sua influência social... Depois, quando entraram massivamente, isto se

tornou concreto...

Os migrantes tardios, já vinham para “se fazer”, tirar lucros, e achavam que “tudo lá era

melhor”. Isto trouxe instabilidade... Porque quando chegam culturas novas, elas sempre

instabilizam, trazem novidades, inquietam...E atrasam o processo de se firmar uma “cultura

própria” local.

Para que isso ocorresse, tinham que “trancar as fronteiras”. E dar um tempo! Concordo com

o Davi Carneiro, para quem “o alemão veio aqui para ficar e se fazer!” Cria na

possibilidade do progresso e crescimento econômico, que lá na Europa ele não teria.

Não éramos muito ligados à Comunidade...

Marido foi Engenheiro de construção de obras.

Lembro que tinha muita coisa de documentos, pinturas e bibliotecas nos Clubes, como na

Concórdia e no Duque, mas eles invadiram e queimaram tudo...

O pai de uma professora da UFPR foi acusado de ser um agenciador de jovens para lutarem

ao lado dos alemães na Guerra, (mas não ficou muito claro isto)...

Meu avô foi preso em Blumenau (está no livro) por ter falado alemão. Sua alma, contudo,

era já brasileira, e isto o decepcionou demais... Ainda mais que dois netos estavam lutando

na Europa ao lado da FEB. Ele se fechou... Morreu...

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Os Arns contam em seus livros que a Igreja Católica protegia os alemães católicos, mas a

Igreja Luterana não tinha a mesma força... Pelo contrário, ainda era vista pelas autoridades

brasileiras, como um tentáculo dos interesses alemães.

Muitas famílias sofreram... Tiveram seus bens depredados, como foi o caso da família de

Emílio Prohmann, em São Mateus, que teve sua Usina completamente destruída. Aqui, os

Schrappe e outros, os clubes, tiveram muita coisa destruída. O Garibaldi, p. ex., tinha

grandes partituras de óperas italianas, e quase tudo foi destruído. A parte cultural foi a mais

prejudicada em Curitiba.

Os japoneses, os alemães... Todos eles eram muito fechados...

A guerra, contudo, fez com que estes povos se abrissem mais... Os imigrantes passaram a se

integrar mais na vida social, o que reverteu o quadro, e hoje faz com que todos respeitem

muito os alemães. Quando vou a outras partes do Brasil, sempre falam que o Sul é mais

desenvolvido pela presença dos imigrantes, especialmente dos alemães!

Então, a guerra trouxe este benefício: a aculturação.

A obra dos imigrantes foi positiva, tanto para eles como para o país...

Depois da guerra, viram que era um erro se manterem tão fechados, a acabaram se

inserindo melhor na cultura local.

É só ir à Igreja da Trajano hoje, e ver como está miscigenada.

É claro que temos orgulho da ascendência, e cada um deve ter. Mas, não é algo fechado.

Entrevista Três: Há muitos anos canto no coral da Sociedade Harmonia. Somos uma dissidência da

Sociedade Rio Branco, de onde saímos porque eles não queriam mais deixar entrar quem

não era sócio.

Arrumamos um terreno junto à Prefeitura e construímos a Sociedade Harmonia, no

Bigorrilho, da qual sou um dos fundadores.

Lembro-me que tivemos uma bronca na Igreja com o pastor Soboll. Faleceu uma pessoa e

fomos lá para cantar no culto em memória, com o coral Harmonia. Ele embestou e não

queria que a gente cantasse por ser um hino que não era do Hinário da Igreja. Foi todo

mundo embora durante o culto, menos eu. Mesmo vendo tudo isso, chegou a hora e ele

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anunciou o Coral. Fiquei muito brabo, e fui denunciá-lo ao Pr. Presidente, e não muito

depois ele foi “aposentado”...

Mesmo assim, o pastor Soboll era um grande orador, e um pastor muito ativo. Foi ele que

construiu a escola!

Participei dos corais da Igreja, mas nunca foi da diretoria, nem tive outra função. Um dia o

regente Malmann chegou e disse que nós estávamos muito velhos para cantar. Ele queria

gente “jovem”. Todo mundo foi embora. O coral pequeno que ele formou, não agüentou, e

o coral se extinguiu.

Fui batizado e confirmado pelo Pr. Berchner... um grande homem. Faleceu na Alemanha

em 32, numa viagem de férias. Contudo, foi embalsamado lá e trazido para Curitiba, pois

seus filhos e familiares moravam aqui, e daqui não sairiam.

Um filho e duas filhas... O pastor Berchner era um bom orador!

Depois tivemos diversos pastores, jovens... Meio farristas até... Não me lembro do nome

deles... Já o Soboll era exigente em pedir doações, e com isso afastou muita gente, como o

sogro de meu filho... A. Müller, que virou católico, por causa disto...

Documentos... Muitos foram escondidos e sumiram. Alguns cultos deixaram de ser feitos...

Na Igreja pequena ainda foram feitos cultos em alemão, mesmo que tivesse sido proibido.

Um certo Detlef... que era dono de uma empresa de mudanças foi quem os fez. Muitos,

depois da guerra, passaram a freqüentar os cultos em alemão na Igrejinha, pois na Igreja

grande eles não voltaram mais a ser realizados...

Também muitos dos “antigos” deixaram de vir à Igreja Grande, porque não tinha mais culto

em alemão!

Os Ritzmann, por exemplo, não vieram mais... viraram católicos.

Na Igreja pequena, o culto em alemão voltou ao normal. Freqüentei o “Kindergarten” lá,

com o pastor Frank...

Depois tinha uns pastores meio revolucionários... deixavam de observar certas partes da

liturgia, Pai-nosso, etc... muitos não gostavam e saiam.

As famílias, em geral, prezavam muito a língua alemã.

Quem tinha comércio e se relacionava profissionalmente aprendia o português mais

rápido... Já em casa, era mais o alemão... Mas, muitos vinham na minha loja, uma

relojoaria, até pouco tempo atrás, e queriam falar só comigo, para poder falar em alemão...

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Vou completar 90 anos. Trabalhei até um ano atrás... Assumi minha relojoaria em 1929...

Mas, meu pai começou com ela em 1915, na Rua XV. Em 37, a passamos para a Riachuelo,

onde tínhamos construído um prédio novo, e onde está até hoje.

Nosso prédio não foi atacado durante a guerra, pois tivemos a sorte de ter por perto a

Companhia Telefônica, e a polícia impediu que chegassem até lá!

Outras lojas foram depredadas e saqueadas... A Impressora Paranaense, lojas de material

elétrico... Quando o Brasil declarou Guerra ao Eixo, as pessoas aproveitaram...

Eu também fui preso em 42. Não respeitaram o fato de ter nascido no Brasil... Diziam que o

meu nome não ajudava... Fiquei 25 dias preso no AHÚ.

Pastor Frank também estava lá, o Schrappe e muita outra gente graduada de Curitiba...

Tinha alguns simpatizantes dos nazi... mas a maior parte não era, e foram presos mesmo

assim!

Aqui também tinha jornal em alemão... Aliás, tinha dois e meio... Tinha o Kompass, o

Beobachter, e tinha o dos nazistas... mas este não durou muito tempo

O Kompass era dos católicos, e teve suas máquinas apreendidas... só há pouco tempo foram

devolvidas...

Fui piloto privado... Aviador... formado em Osório/RS.

Professor: Karl Heinz Ruhrl... Piloto Chefe da Varig... faleceu em acidente de aviação em

SP. A esposa era dos Rotermund... de São Leopoldo.

O Sr. Sendo piloto, não corria o risco de ser convocado para ir a Guerra?

No começo, nos pediam para fazer o patrulhamento da Baía de Paranaguá... mas só o

fizemos duas vezes. Depois os militares assumiram isto, e não tivemos mais vez...

Estou para fechar minha LOJA, pois nenhum dos filhos quer ela...

Vou fechar depois de 86 anos de atividades.

A Riachuelo era uma região nobre... hoje não dá mais... está depreciada... virou zona... as

prostitutas te atacam em pleno dia...

Tinha o Colégio Progresso...muita gente estudava lá.

O Senhor tem histórias para escrever um livro...

Eu não quero nada disso...

Entrevista Quatro:

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Minha avó veio para Joinville, a acabou casando com o engenheiro responsável por

construir a rancharia e preparar o apoio necessário para a vinda dos imigrantes...

O pai veio de Breslau e outro ramo veio de Schaffenhausen, Suíça.

As condições de Joinville eram muito precárias... Mais tarde, a colônia foi estendida para

São Bento... e por aí muitos vieram para Curitiba...

Curitiba já era um pouco maior, e já exercia uma atração sobre os imigrantes.

Alguns entravam pelos portos mesmo – Paranaguá e Antonina.

Famílias como os Röhrig, Schaeffer e Wolff logo ficaram bem estabelecidas.

Todos aqui eram tomados como alemães, mais por causa da língua...

Mas, a região de origem fazia com que muitos se agrupassem em diferentes regiões da

cidade ou mesmo em torno de clubes distintos. Os principais fatores de mistura eram os

casamentos, que já aconteciam desde a viagem, e continuavam por aqui.

Fugmann e outros trazem elementos a respeito. Porém, eles privilegiavam muito as famílias

de posse. Famílias simples nem eram citadas.

Os alemães traziam novas tecnologias, principalmente na carpintaria, e isso revolucionou o

trabalho nesta área por aqui. Os Strobel, os Wieland e outros trabalharam na Catedral, em

igrejas, clubes e casas de comércio, etc.

Aí surgia uma ciumeira dos estrangeiros, em virtude do progresso que eles cedo começaram

a apresentar. Isto não só devido à dedicação ao trabalho, como pela poupança que faziam e

a conseqüente capitalização que isto trazia.

Esta economia “protestante” fazia com que eles nunca gastassem o total, sempre colocando

algo para a sua reserva. Por isso surgiram os limites entre os que não tinham esta iniciativa,

e os que a tinham, ou tinham qualificação profissional para ir em frente. Principalmente na

área de construções, fabricação de móveis, etc.

Os alemães eram baseados na economia familiar, onde todos iam à luta e trabalhavam. Em

volta de Curitiba surgiam bairros inteiros de alemães, como em torno dos Schaeffer, os

Müller para além do Barigüi, os Wolff no Pilarzinho, etc.

Hoje se misturam muito com os poloneses e italianos.

Como eram pobres, não podiam comprar áreas centrais.

Os italianos e poloneses hoje são mais unidos, até...

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A igreja era um lugar de congregação dos diferentes grupos. Desde cedo havia um

envolvimento na área social ( de assistência) e na área da educação.

Assim foi a Escola Alemã, depois Colégio Progresso, cujo patrimônio foi para o HC, e a

escola foi para o Batel, onde hoje funciona a Escola de Farmácia... Aquilo tudo foi da

Comunidade Luterana... Gyffhorn e Soboll tentaram reaver algo, mas sabe como é a

política...

Devido às perseguições que houve, a comunidade alemã sofreu uma desagregação muito

grande, até hoje...

Houve alguns que provocaram e, em seu afã hitlerista, afrontaram com um acampamento

que fizeram (cidade de lona) lá no Bacacheri, e uma passeata das tochas em plena rua XV.

Nesta passeata foram todos fardados, ostentavam a suástica, usando bandeiras, entoando

cânticos ao som de tambores...

Para este encontro vieram pessoas de outras cidades e regiões, mas daqui não era uma

parcela considerável. Era uma minoria.

No antigo Turnverein (Duque) trouxeram o prof. Schneider, da Alemanha, o qual começou

a Juventude Hitlerista aqui na cidade. Grande parte dos sócios foi contra a vinda do prof.

Schneider, visto que tinha bons prof. Aqui na cidade. Mas, numa Assembléia, os que o

queriam foram maioria e acabaram levando a cabo suas intenções.

Quando o Brasil entrou em guerra, a mídia da época explorou muito, as agressões que o

país teria sofrido da Alemanha, o que até hoje não está muito bem explicado. Aí, porém, as

famílias que tinham participado dos eventos acima, passaram a sofrer grandes e drásticas

perseguições.

Aqueles que não se envolveram na política, pagaram o pato e também sofriam

perseguições. O receio e o medo que tinham que pudessem ter algo que fosse associado ao

nazismo, fez com que fotos, livros, documentos e muitos objetos fossem enterrados ou

queimados.

No Concórdia, o povo entrou, arrasou com tudo, jogaram um piano da galeria, e outras

barbaridades... Eu era novo, mas me recordo de várias coisas. Meu pai era secretário do

Turnverein. O primo era Capitão Militar e presidente da sociedade.

Quando os simpatizantes nazistas iam lá, eles faziam a saudação: “Heil Hitler” e por não

ser correspondida, eles se viravam de costas e batiam os calcanhares em sinal de

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desprezo!!! Havia um desprezo dos militantes por todos os que não queriam fazer parte do

movimento. Eram desprezados por uns, e depois foram perseguidos por outros.

Meu pai tinha uma loja na Riachuelo, alugada de um judeu... Quando vieram pela rua para

depredá-la, nos escondemos nos fundos, embaixo das camas. Foi aí que um dos

funcionários deste judeu nos salvou, pois ele aos gritos, dizia que ali era uma loja de

judeus...

Claro que houve provocações, mas houve muita injustiça, pois quebravam qualquer casa de

comércio, lojas grandes e armazéns, seja de alemães, italianos, e de japoneses, também em

outras regiões.

A cultura germânica ficou esfacelada depois disto...

A comunidade era o ponto de convergência dos luteranos alemães. A cidade era pequena, e

as pessoas convergiam para a comunidade... Ainda mais que se mantinha mais neutra. Aos

Domingos as pessoas iam lá, conversar, falar de seus negócios, progressos e do seu

cotidiano. A comunidade tinha um papel preponderante.

Era perigoso até falar em alemão! Minha mãe, por exemplo, vinha com uma prima num

bonde que descia pela Trajano Reis, e fez uma observação sobre “das Schwarze Kleid” a

vestimenta preta de outra pessoa, a alguém sentado atrás delas começou a desacatá-las, pois

entendeu que estavam falando mal dos “Schwarze”, no caso dos negros... Elas tiveram que

saltar do bonde e sumir rapidamente, pois quase estavam sendo agredidas. Não tinha nada a

ver, pois aprendemos em casa e não ofender nem depreciar pessoas de outra cor ou

nacionalidade...

Quem eram, de fato, os militantes? Entre os que aderiram ao “movimento” havia os

imigrantes diretos, vindos da Alemanha, mas outros eram descendentes que aderiram...

Filhos de alemães, e outros que se entusiasmaram... Foi uma minoria que tentou se afirmar,

ou que tinha interesses específicos, ou até que pensou que com uma vitória alemã na guerra

poderia ter vantagens econômicas, sociais, etc. Mas era uma minoria que tentou algo que a

maioria dos alemães não queria... A maioria não tinha mais ligações com a Alemanha...

Estava aqui para fazer sua vida, viver, crescer e dar um futuro para suas famílias...

É claro que um movimento sempre tem seus líderes... Pessoas com mais posses, que

instalaram livrarias e outros comércios... Eles também entraram nos clubes...

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O Concórdia era o clube dos patrões... Enquanto que o Rio Branco era o dos operários...

Isto também influiu um pouco para que o Concórdia sofresse mais agressões... Também os

italianos sofreram agressões... Mas eles não tinham tanta influência no comércio grande do

centro da cidade...

O Senhor não teve militância na Comunidade Luterana?

Não, nunca estive mais envolvido... Há algumas famílias como os Rothert, os Rodmann, os

Kellermann, principalmente a viúva que também foi aluna do Colégio Progresso... Talvez

alguém dos Hecke, os Kaehler... Os Rutz, talvez os Voss...

Já nos Clubes, quando veio o Cap. Adauto de Mello, para nacionalizar a sociedade, a

diretoria foi logo reconduzida aos seus postos... Pois eles não tinham envolvimento nenhum

com o movimento! Todas as sociedades, na época, já eram abertas às famílias não

germânicas. É claro que havia restrições e cuidados, mas não me lembro de famílias que

não fossem aceitas!

Já o Rio Branco ficou sendo uma unidade militar por um bom tempo, como a corporação da

saúde, até ser devolvido aos sócios, mais tarde!

Entrevista Cinco:

O pastor Wilms (1933-1937) tinha um péssimo comportamento...(Este pastor era o

que publicou o folheto com a suástica nazista estampada no verso, citado no início desta

obra: nota do autor). Contava anedotas em público que nos envergonhavam. Não tinha

convicção de fé e passava isto para os jovens... Depois entrou o Soboll. Era outra pessoa.

Um grande orador! Ele marcou a comunidade um longo período! O Pr. Bachimont o

acompanhou por um tempo!

O Soboll fazia muitas festas em prol da Escola Evangélica. Sim, o Pr. Frank, o

Brepohl, que foi um dos financiadores da escola, lutou muito por ela, os Kaehler. Por fim, a

escola se tornou muito reconhecida...

No final dos anos 40 também edificou a secretaria, a casa do pastor, e os

apartamentos para as irmãs de Marburg (que já trabalhavam no Cristianismo Decidido, e

moravam na Trajano Reis). Nos íamos a muitos churrascos, em prol das construções!

Ele também pintava... Lembro que ele precisava de um carro. Então fazia visitas aos

mais abastados, levava os seus quadros, e fazia com que as pessoas os comprassem, para

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ajudar... Soboll também tinha o coral! Realmente, ele foi uma figura extraordinária...

Alguns o acusavam de “pedir muito” dinheiro. Sim, mas tinha que ser... Senão, ninguém

ajudava!

Quais as conseqüências da guerra sentidas pela comunidade? Houve um despertar

em algumas coisas, para uma maior aculturação... Eles acordaram e tiveram que assumir

uma posição! No mais, acho que não teve muita. A freqüência e participação continuaram

sempre normais! Não deu para dizer que algo mudou! Fale com a Ester Graf. Ela havia se

formado em música na Alemanha, vindo em 47 para o Brasil. Dava concertos belíssimos

(com os Jucksch...) Lá em Blumenau, onde morava a coisa era pior! Tiveram que sumir

com todos os livros em alemão! Não sobrou nada. Minha mãe falava alemão e italiano e

teve que aprender o português! Já meu irmão mais novo, nem mais o alemão aprendeu

direito. Só o português!

Os luteranos eram mais uma igreja “social”... Mesmo o Soboll era mais assim. Não era

ativo...(espiritualmente falando...). Na Cristianismo os pastores eram mais crentes... o

pessoal da Marburger Mission era diferente. Por isso, meu marido também se desligou de lá

e foi para o Cristianismo. A conversão não fazia parte da pregação. Mesmo meu pai,

enquanto presidente, também era membro da Cristianismo. Também nós somos membros

“formais”. Quando casamos, fui considerada membro da Igreja, mesma que eu nunca fui.

As divergências que separaram as igrejas parece terem sido mais teológicas. Houve uma

conferência de um mês, feita por um inglês, que enchia a igreja, noite após noite! Isso

parece ter gerado uma grande crise!

A confirmação era só um passaporte para as moças irem aos bailes, e os rapazes

assumirem a vida adulta! Meu pai foi criticado, certa vez, porque “estragou uma

confirmação”, pois como presidente ele fez uma mensagem, chamando os jovens a um

compromisso com Deus! Segundo alguns membros, ele tirou da confirmação o espírito de

festa e alegria.

O Senhor lembra de algum envolvimento da Comunidade ou de suas lideranças na

política? Não! Não me lembro! O que me lembro é que o delegado era muito amigo do

meu pai... Quando tinha algo, meu pai ia lá, e tudo era tratado na boa! Mas, muitos foram

presos na comunidade, como o próprio Pr. Frank. O Pr. Melzer, da Cristianismo também

foi preso. O K. Tigges também. Outro que ficou preso e morreu na prisão foi o Gaerbers,

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pai do K. Gerbers. Ficou doente, implorou que o libertassem, para que pudesse morrer em

casa, mas não o fizeram. Morreu na prisão! Os motivos de que o acusavam, não sei!

Antigamente... me lembro que eu quase entrei também... Minha mãe queria que eu

participasse! Eu participava no Turnverein, e aí tinha o Schneider, o Adams, que entre

outras coisas nos ensinavam a fazer saltos... Mais tarde, quando estive no CPOR, descobri

que aquilo eram preparativos para paraquedistas! Saltávamos alto, com cambalhotas, para

não se machucar. Fazíamos ginásticas e cantávamos hinos folclóricos alemães! Nada a ver

com hinos nazistas? Não, eram hinos e marchinhas, folclóricas. Muitos dizem que o

Schneider era um nazista chamado para trabalhar aqui.Tinha um pouquinho disso...

Tinha a Hitler Jugend ali... O A. Heinze e o W. Tigges faziam parte deste grupo.

Faziam excursões, tinham suas reuniões e naturalmente a propaganda do “Heil Hitler”.

Lembro-me que certa vez a própria banda da polícia do Estado puxou a frente em um

desfile na Rua XV... (O desfile das tochas, que saiu do “acampamento de lona” da Duque,

no Bacacheri, e desfilou pela Rua XV, durante a Semana Alemã, em 1938).

O A. Heinze esteve 3 meses na Alemanha, e na volta, o Schneider mostrou para todos o

que ele aprendeu, com aquele rigidez, postura, submissão, e aquelas coisas, nazistas

mesmo, coisa e tal... Mas não que fizesse ou obrigasse alguém a ir. Minha mãe achou

bonito, por que aos Domingos tinham as excursões, eles cantavam, e todos achavam isto

interessante. Mas, não tinha relação alguma com a Igreja. Lembro-me que no Handwerker,

eles mostravam filmes... De propaganda do Hitler: como o “Hitler Zeit”. Os jovens que

lutaram, morreram. Mostravam primeiro aquela bagunça dos comunistas, e como depois as

coisas melhoraram! Tudo era uma baderna, e depois as crianças começaram a participar das

reuniões! Os pais, que primeiro eram contra, viram como isto era benéfico, e começaram a

participar também! Primeiro era aquele desemprego, toda aquela bagunça, e depois tudo

mudou. No Handwerker (Clube Operário), depois das sessões de filmes, chegaram a ponto

de levantar, e todos ergueram a mão para fazer a saudação, dizendo: “Heil Hitler”.

Meu pai disse: “filho, você não levanta a mão. Se alguém tirar uma foto, amanhã ou

depois você está amarrado”. Então, esses filmes eram “free”... era propaganda nazista... e

nas colônias alemães este filmes circulavam... Para ver um filme de graça, todo mundo ia!

E era bonito, por que você via aquela mudança: da desordem para a ordem, o progresso, a

construção de estradas, etc...

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Isso suscitava um vínculo maior com a Alemanha? Sim, como acontece até hoje, mas isso é

“cultural”, depende de cada um, de suas experiências ou tradições. Meu bisavô veio como

agricultor... Queria plantar trigo! Dizem que vieram enganados, para São Francisco! Lá

não dava (Joinville). Por isso veio para cá! Ficou abrigado nos Stellfeld, e ganhou um lote

de terra lá na Barreirinha. Lá se estabeleceram... Era bastante terra! Mas, tinha que abrir

picada até lá! Depois buscou sua família e viveu lá! Lá a família já se misturou com índios,

ibéricos, etc. Mais tarde meus pais moraram na Inácio Lustosa.

Meus pais assinavam o KOMPASS, que tinha coisas muito interessantes. Mas, hoje

quem guarda coisas velhas? Além do mais, por causas das suspeitas da guerra, todo mundo

se desfez de tudo que era ligado ao alemão!

Eu mesmo foi convocado à servir à FEB. Como eu era universitário, fui fazer a escola

de Oficiais (CPOR). Num domingo fomos fazer uma excursão para o Anhangava. Na volta,

fomos presos. Entre nós tinha duas moças que tinham vindo da Alemanha. Aí nos

interrogavam sobre nossos planos. Que de lá podíamos ver o mar...Veja só... Disse para o

oficial, que éramos um grupo religioso, e que se os alemães quisessem fazer um

mapeamento do litoral, ou coisa assim, já o teriam feito muito antes! Depois disso, tinha

alguém que sempre me seguia... Aonde eu ia, ele me vigiava.

Minha esposa conta que em Blumenau as pessoas se arrastavam por baixo do assoalho

de madeira da casa deles, para ouvir se eles falariam algo em alemão ou italiano, já que

tinha as duas etnias na família, para poderem denunciá-los. Depois teve todo o quebra-

quebra. Graças a Deus que com a Igreja ninguém mexeu, em nada... Mas, no Concórdia...

Num açougue que tinha na esquina da Paula Gomes com a Trajano Reis, arrebentaram

tudo. Na casa dos Tigges, arrebentaram até as cercas e os portões.

Tudo isso tinha muito de político. Sei que tinha um judeu lá, que invadiu um

concorrente para quebrar o negócio dele! Depois um outro grupo invadiu e quebrou a loja

do próprio! As máquinas que quebraram na Impressora Paranaense, por exemplo, eram do

próprio governo! Depois o governo teve que repô-las! Tudo isso nós passamos nesta

época!

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Extratos de Entrevistas Diversas:

A perseguição, como já dito, não se restringiu aos evangélicos. Um grupo lembrou

de um episódio ocorrido durante a guerra, em que um padre foi perseguido e acabou

acolhido na casa do pastor, que o escondeu das autoridades policiais. Também se

recordaram que as aulas de Ensino Confirmatório ainda eram dirigidas em alemão, e que

por isto, muitas vezes, a porta do salão onde estavam era aberta, para que fossem

observados.

Era comum, segundo E. Kopper, o fato de serem moralmente agredidas ao saírem a

rua. Chamavam ela e suas irmãs, e quem tivesse cabelo loiro de sem-vergonhas, quinta-

colunas, traidoras, e por vezes, eram alvejadas por pedradas e outros objetos. A própria

imprensa e órgãos do governo incentivavam a delação e a denúncia. Com o tempo, elas

tinham além de muito medo, até vergonha de saírem às ruas. Isto que eram crianças e

adolescentes, todos cidadãos brasileiros. O. Kopper conta que andava treze quilômetros

para chegar à escola, e muitas vezes, os jovens ficavam de tocaia e faziam emboscadas para

bater neles. A escola era alemã, pois não havia outra. Ele se considerava um excelente

aluno, que teve seu futuro tolhido pela falta de escola. Só em 1944/45, o governo mandou

os primeiros professores para darem aulas em português!

O. Müller, esteve na FEB, lutando como pracinha do Exército brasileiro. Como ele,

muitos outros descendentes de alemães lutaram pelo exército brasileiro. Um dos mais

condecorados foi o capitão Wolf.

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9.2 – REGISTROS DOS LIVROS DE ATAS DA COMUNIDADE

Além das entrevistas acima citadas, usei como um segundo grupo de fontes primárias os

livros de Atas e registros da Comunidade. Foram consultados basicamente os quatro

primeiros volumes, que contém os registros das reuniões de diretoria relativos aos seguintes

períodos:

Livro 1: 1870- 1894[93]

Livro 2: 1894-1932

Livro 3: 1938-1954

Livro 4: 1954-1955

Livro 5: 1956-1959101

As atas das Assembléias da Comunidade, ou de reuniões de sua diretoria, são o

documento oficial e válido acerca de quaisquer decisões que afetam a vida da Comunidade.

Portanto, é nestes livros que vamos encontrar o registro de decisões tomadas ao longo

destes anos. De certa forma, eles nos darão o retrato, a cara oficial da Comunidade. Este,

nem sempre corresponde a uma cara mais informal da Comunidade. Contudo, sabemos que

nas atas, somente o essencial é colocado. Geralmente, é a expressão de um consenso

mínimo necessário para se tornar numa decisão.

Quem já participou de assembléias e reuniões comunitárias, seja de que natureza for,

sabe que grande parte do conteúdo das reuniões, não vai para as atas. A ata registra apenas

o que realmente precisa ser registrado e tornado público, ainda assim, passando pelo crivo

do que pode ser tornado “público”. Evidentemente que há muitos assuntos de caráter

interno, por vezes sigiloso, que não convém, nem deve ser publicado. Assim sendo, horas

de conversa, por vezes, são resumidas em algumas frases. Outras vezes, nem isso.

O silêncio sobre determinados assuntos também pode falar alto. O fato de não

encontrarmos registro nenhum sobre a situação de guerra e de crise nos turbulentos anos do

final de década de 30 e início da de 40, falam muito. Será que não se falava nada a respeito

nas reuniões? Será que não se tocava na questão do envolvimento de membros ou

lideranças da Comunidade com as organizações vinculadas aos grupos nazistas? Mesmo

101

Os registros completos acerca do acervo de livros e registros da Comunidade Evangélica luterana de Curitiba, desde sua fundação, podem ser encontrados em: Nadalin, Sérgio O. Arquivo da Comuna Evangélica de Curitiba. In: Separata dos Anais do V Simpósio Nacional dos Professores Universitários de História. Campinas, 1971.

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que não haja nenhum vestígio nem comentário sobre a situação internacional, nem sobre a

guerra, certamente estes assuntos estavam na pauta das reuniões. O que fazer diante da

proibição do alemão, da necessidade de ter uma liturgia em português, da pregação e dos

demais serviços prestados? Como adequar a comunidade à nova realidade imposta? A

própria ausência de registros entre 1932 e 1938, fala alto. É de se pressupor que houve

registros de reuniões neste período, pois se poderia ter algum período onde os registros

seriam mais vigiados e controlados, era justamente no período de 1938-45, durante a

guerra. Por que sumiram os registros dos anos anteriores? Será obra do acaso, de uma

perda, ou este livro, por alguma razão desconhecida, terá propositalmente desaparecido?

Além destas limitações que dizem respeito ao conteúdo, os livros anteriores a 1938

trazem outro elemento inibidor ao seu acesso, que é o fato de terem sido escritos em língua

alemã. Geralmente escritos com uma grafia pouco legível, ler estes documentos é algo

moroso, que requer habilidade, conhecimento e dedicação. Vale destacar ainda, que no

hiato de 1900 a 1947, a igreja pequena esteve desvinculada da Igreja Mãe, tendo no período

seus próprios registros. Antes e depois deste período, os registros são comuns para ambas

às comunidades. Abaixo, registro um extrato de alguns fatos e decisões importantes para a

melhor compreensão do período em questão.

9.2.1 - Comunidade Luthérica (Igrejinha) 19(12)-42

Não há nas atas comentários, notícias ou discussões de cunho social ou político, nem

nada que se refira ao que vinha acontecendo na Europa, em momento algum. Basicamente é

o mesmo grupo de pessoas que vinha dirigindo a comunidade nos anos vinte, e que

continua até que os registros sejam interrompidos em 1942.

Apenas há um comentário, registrado em Janeiro de 1938, onde o Pastor Frank (1911

até 1956) se reporta sobre a tarefa de nacionalização do Jardim de Infância que a

comunidade mantinha em funcionamento, cujo ônus de mudanças a comunidade afirma que

não irá assumir.

Uma nota interessante e curiosa é a de observar que o primeiro Secretário, que por

muito tempo vinha assinando as Atas como “Germano Döbler”, em 1937 passa a assiná-las

como “Hermann Döbler” e assim o faz por alguns anos. Mais tarde, já nos anos pós-guerra,

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em Atas de Assembléia da Comunidade Evangélica, reencontramos sua assinatura, de novo

como “Germano Döbler”. A pergunta que se levanta é por que, justamente nos anos de

perseguição, onde todos queriam esconder qualquer resquício da germanidade, ele que já

abrasileirara o seu nome, volta a usar a forma germânica. Tal fato, deve ser interpretado

como uma provocação, necessidade de afirmação, ou de que outra forma?

O último registro de ata que temos da Comunidade de Cristo, é de 10 de Janeiro de

1942. Porém, somente em 1948 é que as duas comunidades voltaram a se unir, e as atas

voltam a ficar sob a guarda da comunidade maior, a chamada Evangélica.

Até a última ata, em Janeiro de 1942, todas elas continuaram sendo elaboradas e

escritas em alemão. Contudo, nenhuma referência é feita acerca de qualquer circunstância,

nem há nenhuma referência à Alemanha, ou a conjuntura de guerra. Nada se fala sobre a

prisão do Pastor Frank, por exemplo.

Após ter ficado preso algumas semanas, uma vez solto, o Pr. Frank voltou a exercer o

pastorado na Igrejinha, e depois unidas as comunidades, ficou como pastor até 1956.

9.2.2 – Comuna Evangélica (1937-1945).

Durante os anos trinta já havia seguidas tratativas de fusão das duas comunidades, mas

que não avançaram por empecilhos burocráticos, por vezes teológicos, ou ainda pessoais.

Um dos fatos protocolados, por exemplo, era a exigência de renúncia do Pr. Frank, sem o

que a Comunidade Evangélica não aceitava a reunificação. Já a comunidade pequena não

abria mão de ver incorporado o nome lutherano, na denominação, e as implicações

teológicas que dele advinham.

As pessoas que assumiram a Comunidade antes da Guerra permaneceram em seus

cargos durante todo o período. Tanto o pastor Soboll, (1937-1962), quanto o presidente,

secretário e tesoureiro. Eram eles, respectivamente, os senhores Fernando Carlos Hecke,

Luís Gutmann e Oscar Kirchner. Soboll é também o primeiro pastor a falar fluentemente o

português.

As atas, já desde 1938, são registradas num português de bom nível e boa caligrafia. O

primeiro ato desta nova diretoria eleita em 1938 foi, em resposta as leis de nacionalização,

organizar os novos estatutos da Comunidade, na língua vernácula. Ela passou então a se

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chamar de Comuna Evangélica de Curitiba, substituindo a antiga Deutsche Evangelische

Gemeinde.

Em 29/05/38, o presidente Fernando Carlos Hecke foi autorizado a levar cópia dos

Estatutos ao DOPS, e ao Quartel General, setor de Nacionalização, para que estes órgãos

dessem seu aval aos mesmos, antes de serem submetidos à aprovação da Assembléia

Geral.102 Interessante observar quando da posterior fusão das duas comunidades, em

23/8/47, consta que estes estatutos da comunidade, encaminhados às autoridades locais em

1938, só foram aprovados e puderam ser registrados em 21/12/1943 (Nota do Autor).

Na ata de 26/8/1938, no ítem 1, foi resolvido pela diretoria que as cerimônias do altar

seriam feitas no idioma nacional, e o sermão do púlpito em língua alemã. Isto demonstra

que já estavam trabalhando no sentido de criar uma liturgia no vernáculo – talvez também

na tradução de hinos (Nota do autor). Na ata de 24/4/1939, no ítem 1, que diz respeito ao

Culto Evangélico, se faz registrar que: “os sócios declaram estarem de acordo com o modo

de agir da diretoria, em fazer a lithurgia, sermão e anúncios em língua portuguesa, até

segunda ordem. Já na ata de 14/9/1939, se faz registrar que de acordo com o decreto-lei

1545, de 25/8/39, a liturgia pode ser feita em língua alemã, mas o sermão deve ser feito em

português. Pela notificação citada acima, é possível entender que voltaram atrás na liturgia,

que já estava sendo feita em português, retornando ao alemão... apesar da sensibilidade da

diretoria, parece que o desejo popular de ter o culto em alemão fez prevalecer esta aparente

volta ao alemão (Nota do Autor).

Na Assembléia de 14/01/1940, é registrado que os estatutos ainda não haviam sido

autorizados pela DOPS. Na ata de 14/03/1940, a Sociedade de Senhoras Evangélicas se

propõe a assumir a reabertura do Jardim de Infância, legalizando-o. Na ata de 11/07/1940, é

registrada uma notificação do Delegado de Polícia para que os cultos sejam feitos só na

Língua Vernácula.

A ata da reunião de 26/02/42 é minúscula e muito comedida. Ela coincide com o

momento em que deixam de haver registros em ata da comunidade pequena. Também com

a declaração de Guerra do Brasil, aos países do eixo. Será que as reuniões deixaram de

existir? Parece que não... Então por que não há mais registros? Os registros voltam a

acontecer ainda no período crítico de 02/12/43 em diante. Não há nenhuma explicação para

102

O documento pode ser encontrado no Arquivo Público, nas pastas do DOPS.

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o vácuo. Nem antes, nem depois é registrado nenhum tipo de incidente, nota sobre a guerra,

dificuldades dos membros, perseguição ou comentários sobre a guerra. (Notas do Autor).

A ata de 15/12/45 registra a contratação de um pastor auxiliar para o Pr. Soboll: Adolfo

Bachimont. O presidente e o tesoureiro continuam os mesmos, sendo apenas o secretário

substituído por motivo de mudança de Curitiba. Em seu lugar entrou o Sr. Osmar Gerhard.

Há uma continuidade de registros feitos no mesmo livro de atas, o que permite supor

que não sumiram, nem foram escondidas ou extraviadas como comumente se ouve. Apenas

há um vácuo, um período que deixaram de ser feitas.

Daí, é claro, várias hipóteses podem ser levantadas, tais como:

- As reuniões deixaram de acontecer, o que é pouco provável;

- Realmente as reuniões continuavam, porém sem registros... mas por quê, se o

que têm antes e depois, não compromete?

- Houve algum outro caderno de anotações que, aí sim, ficou na guarda pessoal de

alguém. O que seria evidentemente perigoso e pouco provável, dada e vigilância

e o medo que havia;

Permito-me achar que a segunda hipótese e a mais plausível, porém, sem fazer muito

sentido. A ruptura na Igrejinha, onde as atas e tudo era feito em alemão é compreensível,

em 1942. Mas, na Igreja Grande, aparentemente as coisas aconteciam dentro da legalidade

vigente, transparecendo uma nítida impressão do desejo da diretoria de aculturar suas

ações.

Na ata de 10/03/46 o pr. Soboll abre a reunião ressaltando “a imensa graça de Deus nos

anos dos distúrbios gerais da humanidade, convidando os presentes para maior fidelidade

no cumprimento da palavra divina e do uso da oração como obreiros da vinha!”

Naquele momento, havia 7 grupos de escola dominical, o coral, o grupo de moças e a

sociedade de senhoras. Faltava um grupo de moços. Em 12/8/46, comenta-se que a situação

financeira da comunidade é excelente. Na ata de 26/1/47 registra-se a decisão de acatar uma

fusão “experimental” com a “Comunidade Lutherana”.

Em 20/06/47, o sínodo PR-SC elege o Pr. Soboll como “präeses” – presidente do

Sínodo. Em 29/7/47, chega-se a um consenso sobre a fusão: O Pr. Frank e a comunidade

lutherana se obrigam a sair do Sínodo Lutherano, e passar para o Sínodo PR-SC, ou então o

Riograndense. A fusão é sacramentada por uma Assembléia conjunta em 23/8/47.

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Os novos estatutos foram aprovados em 09/11/47, sendo uma nova diretoria eleita em

14/5/48. Nela é possível observar uma participação eqüitativa das duas comunidades. A

assembléia de 30/01/49 delibera que os cultos da Trajano devem continuar sendo todos em

português, enquanto que na Inácio Lustosa seriam alternados, sendo um Domingo em

alemão e outro em português.

Em 1949 as atas voltam a registrar uma continuidade e um ritmo normal de reuniões.

Registram também a união dos diferentes sínodos no Brasil, em uma federação sinodal

brasileira, que mais tarde resultaria na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil,

como é conhecida nos dias atuais.

Por fim, há que se registrar uma grande luta política que começa a ser travada nos anos

50, e pega fogo no início dos anos 60, e que reflete a diferença de mentalidades que se

instalaram na Comunidade. De um lado, o estilo americano do grupo de situação e do

pastor Olander, e de outro lado, o estilo alemão, do grupo de oposição e do Pastor Mehler.

Estes, que procuravam reavivar o Volkstum, o Deutschtum, se sairam vitoriosos num

pleito que contou com um recorde de 462 votantes numa assembléia. O resultado, contudo,

foi parelho, evidenciando um profundo cisma de mentalidades, que marcou o período na

Comunidade.

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9.3 – Relatórios dos Presidentes de Província: Outras fontes primárias de grande importância no desenvolvimento deste trabalho

foram os relatórios anuais apresentados pelos presidentes da Província do Paraná.

Especialmente no que diz respeito ao entendimento dos programas de colonização

promovidos no Estado. Estes relatórios também trazem aspectos relevantes no que diz

respeito aos usos e costumes do período, além de dados quantitativos e qualitativos acerca

da presença do imigrante.

Sua leitura certamente é limitada pela visão oficial e governamental do assunto,

contudo, como se tratava de uma defesa pública diante de uma assembléia, seus dados e

relatos devem se aproximar do real, mesmo que este real seja interpretado pela ótica de

quem estava no comando. Relaciono, portanto, abaixo, todos os relatórios lidos e

consultados:

RELATÓRIO. Zacarias de Góes e Vasconcellos. Curityba: Typ. de Candido Martins Lopes, 1854. RELATÓRIO. Francisco Liberato de Mattos. Curityba: Typ. Paranaense de Candido Martins Lopes, 1859. RELATÓRIO. Luiz Francisco da Camara Leal. Curityba: Typ. Paranaense de Candido Martins Lopes, 1859 RELATÓRIO. José Francisco Cardoso. Curityba: Typ. de Candido Martins Lopes, 1860. RELATÓRIO. José Francisco Cardoso. Coritiba: Typografia do Correio Official, 1861. RELATÓRIO. Antonio Barbosa Gomes Nogueira. Curityba: Typographia do Correio Official, 1861. RELATÓRIO. Antonio Barbosa Gomes Nogueira. Curityba: Typographia do Correio Official, 1862. RELATÓRIO. Antonio Barbosa Gomes Nogueira. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1863. RELATÓRIO. Sebastião Gonçalves da Silva. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1864. RELATÓRIO. José Joaquim do Carmo. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1864.

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RELATÓRIO. Manoel Alves de Araújo. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1865. RELATÓRIO. André Augusto de Padua Fleury. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1865. RELATÓRIO. André Augusto de Padua Fleury. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1866. RELATÓRIO. Polidoro Cezar Burlamaque. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1867. RELATÓRIO. Carlos Augusto Ferraz de Abreu. Curityba: Typographia de C. Martins Lopes, 1867. RELATÓRIO. José Feliciano Horta de Araújo. Curityba: Typografia de C. Martins Lopes, 1868. RELATÓRIO. Carlos Augusto Ferraz de Abreu. Curityba: Typografia de Candido Martins Lopes, 1869. RELATÓRIO. Antonio Augusto da Fonseca. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1869. RELATÓRIO. Agostinho Ermelino de Leão. Curityba, Typographia de Candiddo Martins Lopes, 1870. RELATÓRIO. Antonio Luiz Affonso de Carvalho. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1870. RELATÓRIO. Agostinho Ermelino de Leão. Curityba: Typographia de Candido Martins Lopes, 1871. RELATÓRIO. Venancio José de Oliveira Lisboa. Curityba: Typographia da Viuva & Filhos de C.M.Lopes, 1872. RELATÓRIO. Venancio José de Oliveira Lisboa. Curityba: Typographia da Viuva Lopes, 1873. RELATÓRIO. Manoel Antonio Guimarães. Curityba: Typographia da Viuva Lopes, 1873. RELATÓRIO. Frederico José Cardoso de Araújo Abranches. Curityba: Typographia da Viuva Lopes, 1875. RELATÓRIO. Adolpho Lamenha Lins. (Curitiba: Typ. da Viuva Lopes, 1876. RELATÓRIO. Adolpho Lamenha Lins. Typ. Da Viuva Lopes, 1877.

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RELATÓRIO. Jesuino Marcondes de Oliveira e Sá. Typ. Da Viuva Lopes, 1878. RELATÓRIO. Rodrigo Octavio de Oliveira Menezes. Typographia Perseverança, 1879. RELATÓRIO. Manuel Pinto de Souza Dantas Filho. Curityba: Typographia Perseverança, 1879. RELATÓRIO. Manuel Pinto de Souza Dantas Filho. Curityba: Typographia Perseverança, 1880. RELATÓRIO. João José Pedrosa. Curityba: Typographia Perseverança, 1881. RELATÓRIO. Carlos Augusto de Carvalho. Curityba: Typ. Perseverança, 1882. RELATÓRIO. Antonio Alves de Araújo. Curityba: Typ. Perseverança, 1883. RELATÓRIO. Carlos Augusto de Carvalho. Curityba: Typ. Perseverança, 1884.