lucia leao processos de criação em mídias digitais
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pROceSSOS de cRIAO eM MdIAS dIgItAIS: pASSAgenS dO IMAgInRIO nA eSttIcA dA tRAnScRIAO
/ Lucia Leo6
Resumo
Os processos criativos que emergem a partir das passagens entre linguagens so
exemplos de produo miditica freqentes no ciberespao. As mdias digitais, por suas
caractersticas abstratas, facilitam sobremaneira o processo de traduo entre meios.
Remixagem, colagem, releituras, adaptaes, so alguns dos termos que permeiam o
cotidiano dos processos comunicacionais e de produo miditica. O presente artigo tem
por objetivo investigar os processos criativos a partir do ponto de vista das passagens entre
mdias, enquanto transformaes simblicas mticas e manifestaes do imaginrio. A
fundamentao terica articula Jess Martn-Barbero, Flusser, Haroldo de Campos, Plaza,
Bachelard, G. Durand e Maffesoli. Os processos criativos sero investigados enquanto
sistemas complexos, em permanente transformao e em rede com as caractersticas da
poca (Salles). Para o desenvolvimento da metodologia do processo de criao nas mdias
digitais tambm nos basearemos nos conceitos de metfora, analogia e mapeamento
lgico (Lakoff, Leo, Holyoak e Thagard).
Palavras-chaves: Comunicao; Signo e significao nas mdias digitais; Processos de Criao
nas Mdias; Arte e tecnologia; Imaginrio; Transcriao.
Lucia Leo Professora do Programa de Ps Graduao em Comunicao e Semitica da
Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo. Possui Ps Doutorado em Artes pela UNICAMP
(2007), Doutorado e Mestrado em Comunicao e Semitica pela PUC-SP (2001 e 1997).
Bacharel em Artes Plsticas pela Faculdade Santa Marcelina (1985) e tem Especializao
em Ao Cultural pela ECA-USP. Sua pesquisa de natureza interdisciplinar e se concentra
principalmente nos seguintes temas: mdias digitais, design de interface, estticas
tecnolgicas, processos criativos, hipermdia, ciberarte, ciberespao, cibercultura e artes
plsticas. autora de vrios livros entre eles: O Chip e o Caleidoscpio e Cibercultura 2.0.
[...] O pavio desta noite no em absoluto o mesmo de ontem. Gaston Bachelard
Pensar esquecer diferenas, generalizar, abstrair. No mundo abarrotado de Funes no havia seno detalhes, quase imediatos.
Jorge Luiz Borges
preliminares: fundamentos do percurso
Pensar uma esttica da transcriao requer conceitos que fundamentem seus processos.
Nossa proposio se apia em trs pilares. No campo da comunicao, a presente pesquisa
se organiza a partir das idias de Jess Martn-Barbero, especialmente em seu conceito de
experimentao social, tal como est descrito em Ofcio do cartgrafo, que prope um
encontro da universidade com a realidade comunicacional do pas, da regio e do mundo.
Para desenvolver essa proposta, Martn-Barbero fala de trs tipos de relacionamento do
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trabalho acadmico com os modelos hegemnicos ou contra-hegemnicos de comunicao:
dependncia, apropriao e inveno (2004:239). Como veremos, nossa pesquisa busca
pensar processos criativos com caractersticas de apropriao e inveno. Martn-Barbero
fornece outros pontos fundamentais para o desenvolvimento desta pesquisa: o conceito de
mediao (2008), a crtica da razo dualista (2008:261) e o mapa noturno de que prope
o reconhecimento da situao do campo comunicacional simultaneamente a partir das
mediaes e dos sujeitos (2008:290). As reflexes tambm se apiam no modelo de
comunicao Flusser, que, em contraponto ao modelo clssico, centrado no objetivo de
reduzir rudo entre emissor e receptor, prope uma dimenso existencial para o fenmeno,
pois para ele, a comunicao humana um fenmeno de liberdade. A questo para Flusser
diz respeito a como conseguimos criar, armazenar e distribuir informao com objetivo de
tornar aceitvel nossa condio de humanos (Guldin, 2008: 79). Em O mundo codificado: por
uma filosofia do design e da comunicao, fala de dois modos de comunicao: a dialgica e
a discursiva. Na primeira, as informaes disponveis so trocadas com objetivo de se produzir
novas informaes; na segunda, o objetivo preservar, manter as informaes (Flusser,
2007:96-97). Outra referencia primordial se encontra no captulo Uma nova imaginao no
qual Flusser discorre sobre a capacidade humana de criar imagens e apresenta perspectivas
para se pensar as imagens computadorizadas ou de sntese (2007:161).
O presente artigo parte da idia de uma esttica da transcriao presente nos processos
criativos em mdias digitais. Tal esttica se desenvolve a partir de tradues do imaginrio,
em processos que incluem passagens entre linguagens. Para compreendermos tal
proposio necessrio que iniciemos apresentando uma breve introduo s teorias
do imaginrio. Em seguida, iremos discorrer sobre discursos da traduo e apresentar o
conceito de transcriao tal como foi proposto por Haroldo de Campos. Ao final, o texto
prope uma metodologia de processo criativo.
Imaginrio/Imaginrios
O imaginrio como objeto de estudo envolve uma srie de autores e conceitos.
Diferentemente de imaginao, definida como a faculdade de produo de imagens, em
termos gerais, a noo de imaginrio envolve o estudo das produes imagticas, suas
propriedades e seus efeitos. Conforme Wunenberger pontua, em sua definio histrica, o
imaginrio uma categoria plstica. O imaginrio se relaciona com a mitologia medida
que esta se define como um conjunto de relatos que constituem o patrimnio das fices
nas culturas tradicionais. O imaginrio tambm se relaciona com a histria das mentalidades
uma vez que esta tem como objeto de estudo as atitudes psicossociais e seus efeitos sobre
os comportamentos. Por outro lado, o imaginrio se distingue da ideologia considerando
que esta designa uma interpretao global e dogmtica de algum campo da vida humana
e, ao mesmo, prope um conjunto de explicaes prontas e estereotipadas para as questes
existenciais do ser. O imaginrio tambm no se reduz ao conceito de fico visto que este
designa invenes s quais corresponde realidade alguma (Wunenberger, 2007:7-11).
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A histria das teorias do imaginrio tem razes nas antigas metafsicas tais como
neoplatonismo e o hermetismo. Os estudos envolvem trs fundamentaes: o estruturalismo
(Levi Strauss, Lacan e Foucault); a fenomenologia (Merleau Ponty) e a hermenutica (Ricoeur).
A onipresena da imagem na vida mental o ponto de partida dos estudos que Gaston
Bachelard desenvolveu sobre a imaginao potica. Os estudos de Bachelard atribuem
imagem duas vises antagnicas: na cincia, Bachelard considera a imagem um obstculo
epistemolgico; j na poesia, as imagens so fontes inspiradoras. Em Bachelard, os quatro
elementos, terra, gua, fogo e ar so vistos como arqutipos, matrizes que nutrem o processo
de imaginao material. Assim, a chama de uma vela, por exemplo, elemento inspirador
para reflexes e processos de imaginao, que refletem tanto o inconsciente pessoal do
sonhador como tambm devaneios csmicos:
A chama determina a acentuao do prazer de ver, algo alm de ser visto [...] dentre os objetos do mundo que nos fazem sonhar, um dos maiores operadores de imagens. Ela nos fora a imaginar. Diante dela, desde que se sonhe, o que se percebe no nada, comparado como que se imagina. As mais frias metforas transformam-se realmente em imagem.
[...] Um sonhador de lmpadas leo compreender instintivamente que as imagens da pequena luz so lamparinas ntimas. Suas luzes plidas tornam-se invisveis quando o pensamento trabalha, quando a conscincia est bem clara. Mas quando o pensamento repousa, as imagens vigiam (Bachelard, 1989:)
Aluno de Bachelard, Gilbert Durand estende suas idias a uma antropologia geral e
prope uma sistematizao, denominada classificao isotpica de imagens em seu
livro clssico, As estruturas antropolgicas do imaginrio (2002). Para Durand, todo
pensamento tem sua matriz nas imagens, imagens estas que indicam o tipo de sistema
simblico que permite o ser no mundo do pensamento. Mas, podemos nos perguntar,
que o imaginrio? Noo plstica e polissmica, vrias so as redes conceituais que
se articulam em torno do tema. Para Durand, o imaginrio um elemento constitutivo
e instaurador do comportamento especfico do homo sapiens. Nessa concepo,
o imaginrio um reservatrio, museu de todas as imagens, narrativas, valores,
perspectivas, pontos de partida, processos cognitivos, mitos, lendas, obras de arte,
molduras conceituais que interferem na percepo do mundo e na construo da cultura.
No senso comum, costuma-se separar imaginrio e real, dada a nfase que se coloca no
processo de imaginao, como o processo de criao de imagens. Assim, nessa perspectiva, o
imaginrio distorce o real. Mas, na abordagem defendida por Durand, essa dicotomia falsa,
medida que, em sua complexidade, todo imaginrio real e todo real imaginrio. A rigor,
a existncia do ser ocorre no imaginrio (Durand, 2002).
Em Michel Maffesoli, a noo de imaginrio se amplia ainda mais. Para ele, o imaginrio uma
fora, um catalisador, um patrimnio de grupo que d sentido s tribos, uma vez que define os
valores, as narrativas, afetos e estilos de vida que o grupo compartilha. E existe o imaginrio
individual cuja construo se d, essencialmente por identificao (reconhecimento de si no
outro), apropriao (desejo de ter o outro em si) e distoro (reelaborao do outro para si).
Pelo imaginrio o ser constri-se na cultura (Maffesoli, 2001).
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tradues enquanto passagens do imaginrio
Como se sabe, as tradues semeiam a cultura, aqui pensada como conjunto de tradies.
Para alguns autores, toda obra , por princpio, traduo de algo, anterior prpria obra.
Na obra, Em Busca do Tempo Perdido, Proust falava do ato de escrever como traduo
e, nesse sentido, a escrita se torna memria (Berman, 2009) . Por outro lado, a memria
exige esquecimento, pois seletiva. Isso nos leva a pensar em algo corriqueiro na era das
redes, pois vivemos um perodo de gigantesca produo de arquivos. As mdias digitais
facilitam e estimulam a proliferao de bancos de dados. Mas, esse excesso gera um
paradoxo, pois, muito do que produzido, fica apenas como acmulo, lixo. Em outras
palavras, a quantidade de dados em si no implica necessariamente em gerao de
memria. Para se falar em memria, preciso que se inclua o componente da reflexo. A,
a importncia dos filtros, do selecionar e cortar.
Gosto muito de um conto de Jorge Luiz Borges que ilustra esse problema, Funes o Memorioso.
No conto, o protagonista Funes, obcecado por lembrar tudo detalhadamente, acaba vivendo
o pesadelo de precisar de um tempo exagerado para lembrar de questes simples. Quando
subordinada ao arquivamento direto, sem seleo, a memria intil, mero acmulo. Assim,
a reflexo sobre a experincia vivida, assim como o esquecimento das particularidades, so
elementos constitutivos da memria. Uma outra lio pode ser apreendida a partir deste
conto: ao tentar criar um sistema tradutrio para organizar seus dados, Funes cai no erro de
acreditar que as passagens tradutrias podem ser operadas por analogias. Como to bem j
postulou Jakobson: toda traduo implica em passagem e, nessa passagem, muito se perde.
Portanto, o traduzir implica na busca da equivalncia na diferena (Berman, 2009).
Nos discursos que entrelaam a experincia do traduzir com a reflexo filosfica, nomes como
Benjamin, Campos e Plaza nos apresentam suas vises particulares sobre o processo. Walter
Benjamin, em a Tarefa do Tradutor, ensaio que aparece como prefcio s suas tradues
aos poemas de Baudelaire, uma reflexo instigante que aponta para os problemas e
desafios que acompanham a experincia de traduzir obras criativas. J o poeta tradutor
Haroldo de Campos, em Da traduo como criao e como crtica, vai mais alm e prope
que a traduo de textos criativos ser sempre recriao ou criao paralela, autnoma,
porm recproca (Campos, 1974: 24). O conceito de traduo intersemitica, de Julio Plaza,
ser ponto de partida para o desenvolvimento de modelo de processo criativo nas mdias.
Finalmente, importante apontar as teorias de Raymond Bellour, no livro Entre-Imagens
(1997), que fala das passagens entre fotografia, cinema e vdeo. Mais do que mesclas de
linguagens, Bellour enfatiza a fora do vdeo como um atravessador, um operador de
passagens. Iremos nos apoiar nessa viso de passagens para invocar o poder atravessador
das mdias digitais (Bellour, 1997:14).
Assim, remixagem, mash-ups, releituras so fenmenos freqentes no ciberespao. Tais
procedimentos so processos criativos que traduzem questes do imaginrio para as mdias
digitais e, nesses processos, apontam para a questo das passagens entre linguagens. As
mdias digitais, por suas caractersticas abstratas, facilitam o processo de traduo entre meios.
O que se observa nessas produes que os imaginrios so compartilhados e construdos em
rede, ao mesmo tempo em que so vivenciados e re-traduzidos como universais.
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por uma esttica da transcriao: uma metodologia do processo de criao nas mdias digitais
Para propor uma metodologia de processo de criao nas mdias digitais, iremos comear
apresentando algumas consideraes sobre trs esferas. A primeira, diz respeito a alguns
conceitos que orbitam em torno das pesquisas sobre mdias digitais. Conforme j desenvolvido
em outras publicaes, defino ciberespao como um espao que emerge a partir de relaes
entre trs domnios: matricos (hardwares); lgicos (softwares) e, sobretudo, humanos
(indivduos, grupos e instituies). Defendo que o ciberespao s pode ser entendido quando
se analisa essas dinmicas tridicas em sua complexidade (Leo, 2002).
A segunda esfera se organiza a partir da escolha da abordagem terica sobre processo de
criao propriamente dito. Os processos criativos sero investigados enquanto sistemas
complexos, em permanente transformao e em rede com as caractersticas da poca (tal
como foram elaborados por Salles, 2006 ).
A terceira esfera se dedica a pensar o desenvolvimento da metodologia do processo de
criao nas mdias digitais. As metforas, assim como as analogias e os mapas conceituais, so
tipos de raciocnios com grande potencial criativo. Vrios estudos contemporneos sobre a
natureza dos sistemas conceituais humanos apontam a fora cognitiva da metfora. Holyoak,
& Thagard, por exemplo, no livro Mental Leaps: Analogy in Creative Thought falam como
as metforas so usadas na linguagem potica para falar de questes afetivas complexas.
Alm disso, as metforas esto presentes em vrios outros momentos da vida cotidiana, como
estruturas que organizam vrios de nossos pensamentos e aes (ver, por exemplo, o livro de
Lakoff & Johnson, Metforas da vida cotidiana).
laboratrio
A aplicao da metodologia da esttica da transcriao seguiu os conceitos de traduo
simblica, indicial e icnica, desenvolvidos por Plaza (1987) e ocorreu durante uma oficina
ministrada no Curso de Comunicao e Multimeios da PUC-SP. Vejamos uma delas.
O exemplo escolhido uma traduo simblica que partiu da obra da artista francesa
contempornea Sophie Calle. A traduo foi realizada pela dupla de alunas Caroline
Derschner Videira e Renata Faria. A obra transcriada Cuide de Voc (Prenez soin de vous
Paris, 2007), foi concebida a partir de um e-mail de rompimento enviado por seu ex-namorado
e cuja ltima frase dizia Cuide de Voc. A obra de Calle teve vrias verses e etapas, mas,
em geral, consiste em convidar vrias pessoas a darem suas leituras e interpretaes para o
email recebido. Depois de vrias discusses sobre as caractersticas simblicas da obra de Calle,
a dupla apresentou como proposta de releitura a partir do texto original do e-mail recebido
pela artista que foi decodificado em tags e revisitado atravs de sistemas algortmicos de
tag clouds. A traduo recebeu o ttulo sophienocalle como um convite para que sua
obra no se cale e tambm como aluso ao fato da artista no ter calado consigo uma
experincia pessoal e enfatiza como o ato de trazer o rompimento por e-mail da esfera do
privado para o pblico foi catalizador de mltiplas significaes.
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Reflexes finais
O desenvolvimento de uma metodologia do processo de criao nas mdias digitais que
pense os processos criativos com suas caractersticas de apropriao e inveno; aponte
para modos de comunicao dialgica e se ancore nos conceitos de traduo intersemitica
e transcriao nos levou a buscar as teorias do imaginrio. Segundo tais teorias, a esfera das
imagens compreende tanto os processos como as obras. O imaginrio como fonte catalisadora
de sentidos, sentimentos, imagens e valores, se revelou extremamente rico para desencadear
leituras e processos criativos. O potencial heurstico das metforas tambm foram fundantes
no desenvolvimento de nosso raciocnio. Pensar as passagens entre linguagens foi fundamental
para repensar os processos de criao nas mdias a partir da fora atravessadora do digital.
Embora saibamos do potencial criativo que permeia a metodologia de processos que estamos
propondo, a presente pesquisa pretende no futuro agregar outras bases, e pensamos em
incorporar o conceito de autopoiesis (Maturana e Varela) e especialmente, adensar a reflexo
sobre a questo esttica a partir da criativa formulao de Charles Sanders Peirce.
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